envio estudo em vermelho - Arthur Conan Doyle

Um estudo em vermelho

Arthur Conan Doyle ;

tradução Lígia Cademartori. - 7. ed. - São Paulo : FTD,
1998. - (Coleção escarlate)
1. Ficção policial e de mistério (Literatura inglesa) 2.
Romance inglês I. Título. II. Série.
98-5643 CDD-823.91
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances : Século 20 : Literatura inglesa 823.91
2. Século 20 : Romances : Literatura inglesa 823.91
Índice
1. O Sr. Sherlock Holmes 9
2. As Ciências da Dedução 19
3. O Mistério de Lauriston Gardens 32
4. O que Johnn Rance tinha a Dizer 47
5. Nosso Anúncio Atrai um visitante 56
6. Tobias Gragson Mostra o que pode Fazer 65
7. Uma Luz na Escuridão 77
Parte II: A Terra dos Santos
1. Na Grande Planície Alcalina 91
2. A Flor de Utah 104
3. John Ferrier Fala com o profeta 113
4. Fuga para a Vida 120
5. Os anjos vingadores 132
6. Continuação das Memórias do Dr John Watson 145
7. Conclusão 159

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PARTE 1 Reimpressão das memórias 9
do Dr. John H. Watson
ex-oficial do departamento
médico do Exército Britânico
.
Em 1878, graduei-me doutor em medicina pela
Universidade de Londres e fui para Netley fazer o cur-
so destinado aos cirurgiões do exército. Concluí meus
estudos a tempo de ser designado para servir como ci-
rurgião-assistente no Quinto Regimento de Northum-
berland. O regimento estava acantonado na Índia, na
época, e, antes que eu pudesse me juntar a ele, reben-
tou a segunda guerra afegã. Quando desembarquei em
Bombaim, soube que minha corporação já havia avan-
çado as passagens entre as montanhas, internando-se
no território inimigo. Unido a inúmeros oficiais na mes-
ma situação, procurei segui-la. Chegamos a Candahar
a salvo. Lá encontrei meu regimento e assumi de ime-
diato as novas funções.
A campanha trouxe honras e promoção para mui-
ta gente; para mim, só infortúnio e desastre. Fui trans-
ferido de minha brigada para a de Berkshire, onde ser-
via, quando ocorreu a batalha fatal de Maiwand. Fui
9
ferido no ombro por uma bala alegã que me lraturou
o osso, atingindo a artéria subclávia. Eu teria caído
nas mãos dos sangüinários ghazis, não fosse a devoção
e a coragem de Murray, meu ordenança, que me colo-
cou no lombo de um cavalo de carga e conseguiu me
trazer a salvo para as linhas britânicas.
Abalado pela dor e enfraquecido pelas prolonga-
das privações, fuí removido para o hospital de base
em Peshawar. Viajei para lá em um longo trem, na com-
panhia de outros homens feridos. Já estava restabeleci-
do a suficiente para caminhar pelas enfermarias e to-
mar sol na varanda, quando fui atacado por tifo, a
maldição de nossas possessões indianas.
Carri risco de vida por vários meses. Quando, fi-
nalmente, recobrei a consciência e entrei em convales-
cença, estava tão fraco e emagrecido que uma junta
médica determinou minha imediata remoção para a In-
glaterra. Fui embarcado no Orontes, navio de transpor-
te de tropas, e, um mês depois, desembarcava no cais
de Portsmouth com a saúde arruinada, mas com a pa-
ternal permissão do governo para tentar recuperá-la
nos próximos nove meses.
Eu não tinha amigos nem parentes na Inglaterra e
era livre como o ar - ou tão livre quanto uma renda
de onze xelins e seis pences por dia permitem a um ho-
mem ser. Sob tais circunstâncias, fui, como é natural,
atraído por Londres, a grande cisterna para a qual são
drenados todos os vagabundos e preguiçosos do Impé-
río. Por lá fíquei algum tempo num pequeno hotel no
Strand, levando uma vida desconfortável e sem senti-
do, gastando todo o dinheiro que recebia com uma pro-
digalidade que não deveria ter.
Minha situação financeira tornou-se alarmante.
Compreendi que ou deixava a metrópole e me mudava
para algum lugar no campo ou teria que alterar por
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complcto meu estilo de vida. Escolhida a última alterna-
tiva, decidi deixar o hotel e me instalar num lugar me-
nos caro e pretensioso.
No mesmo dia em que cheguei a essa conclusão,
estava no Bar Criterion quando alguém bateu no meu
ombro. Virando-me, reconheci Stamford, um jovem
que havia sido meu cirurgião-assistente em Barts. É
uma sensação extremamente agradável para uma pes-
soa solitária ver um rosto amigo em meio ao isolamen-
to londrino. Nos velhos tempos, Stamford não fora
um amigo intimo, mas, agora, eu o saudava com entu-
siasmo e ele, por sua vez, parecia encantado em me en-
contrar. Na exuberância daquela satisfação, convidei-o
a almoçar comigo em Holborn e, juntos, tomamos um
carro.
- Mas o que você andou fazendo, Watson? -
perguntou, sem dísfarçar seu espanto, enquanto sacole-
jávamos pelas congestionadas ruas de Londres. - Es-
tá magro como um sarrafo e escuro como uma noz.
Fiz um relato sucinto de minhas aventuras e, tão
logo acabara de contá-las, chegamos ao nosso destino.
- Coitado! - ele disse, compadecido, depois de
ouvir minhas desgraças. - E o que você vai fazer agora?
- Procurar um lugar para morar - respondi. -
Meu problema é conseguir acomodações confortáveis
por um preço razoável.
- Estranho - observou meu companheiro. -
Você é a segunda pessoa que me diz isso hoje.
- E quem foi a primeira? - perguntei.
- Um sujeito que trabalha no laboratório quími-
co do hospital. Estava se lamentando, esta manhã, por
não encontrar ninguém com quem pudesse dividir as
despesas de um ótimo apartamento que encontrou,
mas demasiado caro para ele.
- Fantástico! - exclamei. - Se ele, de fato,
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quer alguém para dividir a casa e as despesas, sou a
pessoa indicada. Prefiro ter um companheiro a morar so-
zinho.
O rapaz me olhou de modo estranho, por sobre
seu copo de vinho.
- Você ainda não conhece Sherlock Holmes -
disse. - Talvez não gostasse de tê-lo como companhei-
ro permanente.
- Por quê? Qual o problema com ele?
- Bem, eu não disse que havia um problema. Acon-
tece que ele tem idéias um pouco estranhas. É apaixona-
do por certas ciências. Mas, até onde sei, é uma boa
pessoa.
- Um estudante de medicina, suponho.
- Não, não tenho a menor idéia sobre que carrei-
ra ele pretende seguir. É muito bom em anatomia e,
também, um químico de primeira. Mas, que eu saiba,
nunca freqüentou um curso regular de medicina. Seus
estudos são tão assistemáticos quanto excêntricos. Con-
tudo os conhecimentos nada convencionais que acumu-
lou deixariam boquiabertos seus professores.
- Você nunca perguntou a ele o que pretende seguir?
- Não, ele não é um homem fácil de desvendar,
embora, algumas vezes, possa ser bastante comunicativo.
- Gostaria de conhecê-lo - disse. - Se vou mo-
rar com alguém, prefiro que seja com uma pessoa que
estude e que tenha hábitos tranqüilos. Não estou bas-
tante forte para suportar barulho e excitação. O que
tive, no Afeganistão, foi suficiente para o resto de mi-
nha vida. Como posso encontrar esse seu amigo?
- Deve estar no laboratório - respondeu. - Às
vezes não aparece por várias semanas, noutras, traba-
lha lá da manhã à noite. Se quiser, podemos encontrá-
lo depois do almoço.
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- De acordo - respondi. E passamos a falar de
outras coisas.
Enquanto caminhávamos para o hospital depois
de deixar Holborn, Stamford me deu outros detalhes
sobre o cavalheiro com quem eu pretendia morar.
- Não me responsabilize, se você não se der bem
com ele - disse. - O que sei a seu respeito é tudo o
que se pode saber em encontros casuais de laboratório.
Você é que propôs essa parceria, não me culpe se algo
der errado.
- Se não houver entendimento, será fácil separar-
mo-nos - respondi. - Está parecendo, Stamford -
acrescentei, olhando com firmeza para meu companhei-
ro - , que você tem alguma razão para se eximir neste
assunto. Esse homem tem um temperamento terrível
ou há alguma coisa mais? Não seja tão cauteloso; fale!
- Como é que se diz o inexprimível? - respon-
deu rindo, meu interlocutor. - Holmes é demasiado
científico para o meu gosto. Aproxima-se da frialdade.
É o tipo do sujeito que faz um amigo ingerir uma pita-
da do último alcalóide vegetal, não por maldade, enten-
da, mas por espírito de investigação, porque quer ter i
uma idéia clara dos efeitos da droga. Por uma questão
de justiça, é preciso que se diga que ele também estaria
disposto a tomar o alcalóide. Parece ter paixão pelo co-
nhecimento exato e definido.
- Por mim, não há nada de errado nisso.
- Sim, contanto que não se chegue a excessos. A
situação muda de figura quando se passa a dar paula-
das nos corpos na sala de dissecação.
- Dar pauladas nos corpos?
- Sim, para verificar quanto tempo depois da
morte o corpo pode apresentar escoriações. Vi Holmes
fazer isso com meus próprios olhos.
- E você diz que ele não é estudante de medicina?
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- Não. Só Deus sabe o que ele estuda. Bem, aqui
estamos, e você deve formar suas próprias impressões
sobre ele.
Enquanto falávamos, dobramos para uma ruela
estreita. Por uma portinha lateral, chegamos a uma ala
do grande hospital. O cenário me era familiar e eu não
precisava de guia para subir a fria escada de pedra e
percorrer o longo corredor de paredes caiadas e portas
cor de castanha. Antes de seu final, uma passagem em
arco dava acesso a outras direções e por ela chegamos
ao laboratório químico.
O lugar, amplo e imponente, estava entulhado com
um sem-número de frascos. Mesas baixas e largas, espa-
lhadas pelo salão. Eram cobertas por retortas, tubos
de ensaios e pequenos bicos de Bunsen com trêmulas
chamas azuis. Via-se apenas um estudante no laborató-
rio. Ele estava curvado sobre uma mesa distante e ab-
sorvido em seu trabalho. Ao ouvir nossos passos, olhou
em torno, erguendo-se com um grito de satisfação.
- Descobri! Descobri! - dizia a meu companhei-
ro, enquanto corria a nosso encontro com um tubo de
ensaio nas mãos. - Descobri um reagente que é preci-
pitado pela hemoglobina e por nada mais!
Se tivesse descoberto uma mina de ouro, não pode-
ria estar mais feliz.
- Dr. Watson, Sr. Sherlock Holmes - disse Stam-
ford, apresentando-nos.
- Como vai? - disse cordialmente, apertando
minha mão com uma força que eu não esperava que
ele tivesse. - Vejo que esteve no Afeganistão.
- Como é que você sabe? - perguntei, atônito.
- Não importa - respondeu, rindo para si mes-
mo. - No momento, o que interessa é a hemoglobina.
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Sem dúvida, você percebe o significado dessa minha
descoberta, não?
- É quimicamente interessante, sem dúvida - res-
pondi -, mas do ponto de vista prático...
- Meu caro, esta é a mais prática descoberta mé-
dico-legal dos últimos anos! Não vê que é um teste infa-
lível para manchas de sangue? Venha aqui!
Com impetuosidade, puxou-me pela manga do ca-
saco, levando-me para a mesa onde esteve trabalhando.
- Vamos colher um pouco de sangue fresco -
disse, enfiando uma agulheta comprida em seu dedo.
Colheu o sangue numa pipeta. - Agora acrescento es-
, ta pequena quantidade de sangue a um litro de água.
Como vê, a mistura resultante tem a aparência da água
pura, porque a proporção de sangue não pode ser mais
que um para um milhão. No entanto não tenho dúvi-
da de que obteremos a reação característica.
Enquanto falava, colocou no recipiente alguns cris-
tais brancos e adicionou algumas gotas de um fluido
transparente. De imediato, o conteúdo assumiu uma
cor escura como a do mogno, e um pó marrom precipi-
tou-se no fundo do recipiente de vidro.
- Aha! - exclamou, batendo palmas e parecen-
do uma criança encantada com um brinquedo novo.
- O que acha disto?
- Parece um teste muito delicado - observei.
- Excelente! Excelente! O antigo teste com guáia-
co era muito precário e impreciso. E pode-se dizer o
mesmo do exame microscópico dos glóbulos vermelhos,
que não ajudará em nada se a mancha de sangue já ti-
ver algumas horas. Isto aqui, porém, parece agir tão
bem em sangue fresco quanto em antigo. Se este teste
já tivesse sido inventado, centenas de homens que an-
dam por aí à solta estariam pagando seus crimes, há
muito tempo.
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- De fato! - murmurei.
- Casos criminais continuamente esbarram nesse
ponto. Um homem é suspeito de crime, talvez, meses
depois do ato ter sido cometido. Suas roupas íntimas
ou exteriores são examinadas e encontram-se manchhas
pardas nelas. Serão manchas de sangue, lama, ferrugem,
frutas ou do quê? Essa questão tem confundido muitos
especialistas. E qual a razão? A não existência de um
teste garantido. Agora, temos o teste Sherlock Holmes
e não haverá mais dificuldade.
Seus olhos brilhavam enquanto ele falava e, com
a mão no peito, curvou-se, como se agradecesse os aplau-
sos de uma multidão imaginária.
- Você merece parabéns - comentei, bastante
surpreso com seu entusiasmo.
- Houve o caso de Von Bischoff, em Frankfurt,
no ano passado. Ele teria sido enforcado, se meu teste
já existisse. Houve também o caso Mason, em
Bradford; o do famoso Müller; o de Lefèvre, em
Montpellier; o de Samson, em Nova Orleans. Eu pode-
ria citar uma série de casos em que o teste teria sido
decisivo.
- Você parece um catálogo ambulante do crime
- disse Stamford, rindo. - Poderia publicar um jor-
nal sobre isso com o nome de Notícias policiais do passado.
- Seria uma leitura interessante - observou Sher-
lock Holmes, colocando um emplastro no dedo espetà-
do. - Preciso ter cuidado - continuou, virando-se pa-
ra mim e sorrindo -, porque estou sempre às voltas
com venenos.
Estendeu as mãos enquanto falava e verifiquei que
havia muitos emplastros semelhantes nelas e que esta-
vam descoradas devido ao uso de ácidos fortes.
- Viemos a negócio - disse Stamford, sentando-
se num banco alto de três pernas e empurrando outro
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com o pé em minha direção. - Meu amigo, aqui, es-
tá procurando um lugar para se mudar e como você es-
tava se queixando por não ter com quem dividir as des-
pesas, achei que deveria fazer o contato entre vocês.
Sherlock Holmes pareceu encantado com a idéia
de dividir sua moradia comigo.
- Estou de olho num apartamento da Baker Street
- disse -, que seria ótimo para nós. Você não se inco-
moda com o cheiro de fumo forte, espero.
- Eu mesmo uso fumo de marinheiro - respondi.
- Ótimo. Geralmente tenho produtos químicos
em casa e, às vezes, faço experiências. Isso o incomodaria?
- De maneira alguma.
- Deixe-me ver quais são meus outros defeitos.
Fico deprimido em algumas ocasiões e não abro a bo-
ca por vários dias. Não vá pensar que estou bravo quan-
do fizer isso. Basta me deixar em paz que logo ficarei
bem. E você, o que tem para confessar? É bom que
dois sujeitos que pretendam morar juntos conheçam
,
os piores defeitos um do outro, antes de fazê-lo.
Achei engraçado esse procedimento.
- Tenho um cachorrinho - disse - e faço restri-
ão a barulho. Levanto em horas impróprias e sou ex-
tremamente preguiçoso. Tenho outros vícios, quando
estou saudável, mas, no momento, esses são os principais.
- Você inclui violino na sua categoria de baru-
lho? - perguntou Sherlock, ansioso.
- Depende do executante - respondi. - Um vio-
lino bem tocado é uma oferenda aos deuses. Quando
mal tocado, porém...
- Oh, está tudo bem! - exclamou com um sorri-
so satisfeito. - Podemos considerar o assunto 'resolvi-
do. Isto é, se você gostar do apartamento.
Quando iremos vê-lo?
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- Venha aqui amanhã, ao meio-dia, e iremos jun-
tos decidir isso - respondeu.
- De acordo. Ao meio-dia em ponto - disse, aper-
tando sua mão.
Nós o deixamos trabalhando com suas químicas e
caminhamos em direção ao hotel.
- A propósito - perguntei repentinamente, paran-
do e voltando-me para Stamford -, como ele desco-
briu que vim do Afeganistão?
Meu companheiro deu um sorriso enigmático.
- Esta, exatamente, é sua pequena peculiaridade
- disse. - Muita gente gostaria de saber como ele des-
cobre as coisas.
- Ah! É um mistério? - exclamei, esfregando
as mãos. - Muito interessante! Agradeço-lhe por ha-
ver nos apresentado. Como sabe, "o interessante ao
gênero humano é o homem"
- Pois estude-o - disse Stamford, despedindo-
se. - Vai ver que é bastante complicado. Aposto que
ele saberá mais a seu respeito do que você sobre ele. Adeus.
- Adeus - respondi, e entrei no hotel, profunda-
mente interessado na pessoa que acabara de conhecer.
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2. A Ciêência da Dedução

Encontramo-nos no dia seguinte, conforme o com-
binado, e examinamos o apartamento 221 B da Baker
Street. Eram dois quartos confortáveis e uma sala am-
pla e arejada, mobiliada com graça e iluminada por
duas grandes janelas. A moradia era tão atraente e seu
preço tão razoável, na medida em que seria dividido
entre nós, que decidímos no ato e, na hora, tomamos
posse das instalações.
Na mesma tarde, transportei meus pertences do
hotel e, na manhã seguinte, Sherlock Holmes trouxe
várias caixas e malas. Durante um ou dois dias, estive-
mos ocupados em desempacotar nossas coisas e dispô-
las da melhor maneira. Feito isso, gradualmente fomos
nos acomodando ao novo ambiente.
Não era difícil conviver com Holmes. Era um su-
jeito sossegado e com hábitos muito regulares. Era ra-
ro encontrá-lo em pé depois das dez da noite e, invaria-
velmente, quando eu levantava pela manhã, já tinha to-
19
mado café e saído. As vezes, passava o dia no laborato-
rio químico; outras, na sala de dissecação, e havia oca-
siões em que dava longas caminhadas às partes mais
baixas da cidade.
A energia de Holmes, quando mergulhava no tra-
balho, era insuperável. Mas, depois, sobrevinha-lhe
uma reação e ele passava os dias estirado sobre o sofá
da sala, sem articular uma palavra e sem mover um
músculo da manhã à noite. Nesses períodos, percebia
uma expressão tão vaga e onírica em seus olhos, que
teria suspeitado do uso de algum narcótico, se a sobrie-
dade e a correção de sua vida não me impedissem de
pensar tal coisa.
À medida que as semanas passavam, meu interes-
se por ele e a curiosidade pelos objetivos de sua vida
cresciam cada vez mais. Ele próprio, com sua aparên-
cia, chamava a atenção do observador mais casual.
Media em torno de um e oitenta de altura, mas era tão
magro que dava impressão de ser ainda mais alto. Seu
olhar era aguçado e penetrante, a não ser naqueles pe-
ríodos de torpor a que já me referi. O nariz, fino e adun-
co como o de um falcão, dava ao semblante um ar de
vivacidade e decisão. Também o queixo, quadrado e
proeminente, caracterizava-o como homem de determi-
nação. Suas mãos estavam sempre manchadas com tin-
ta e produtos químicos, mas seu toque era muito delica-
do, conforme pude observar inúmeras vezes, enquanto
ele manipulava seus frágeis instrumentos de alquimista.
Talvez o leitor esteja me julgando um bisbilhotei-
ro incurável, porque confesso o quanto aquele homem
espicaçava minha curiosidade e quantas vezes procurei
romper todas as reticências presentes em tudo que dizia
respeito a Sherlock Holmes. Antes de me julgar assim,
porém, tenha presente o quanto minha vida carecia de
objetivos e quão poucas coisas havia para despertar
20
minha atençào. Minha saúde impedia que eu me aventu-
rasse fora de casa, a menos que o tempo estivesse excep-
cionalmente bom. Não tinha amigos que pudessem me
visitar, quebrando a monotonia de meus dias. Sob tais
circunstâncias, desfrutava com ansiedade o pequeno
mistério que cercava meu companheiro e passava a
maior parte do tempo tentando decifrá-lo.
Holmes não estudava medicina. Ele próprio, em
resposta a uma pergunta, confirmara a opinião de Stam-
ford a esse respeito. Tampouco parecia ter freqüenta-
do qualquer curso que lhe tivesse dado um título em
ciência ou qualquer outro crédito que garantisse sua en-
trada no mundo acadêmico. No entanto sua dedicação
a certos estudos era notável e, embora limitado a te-
mas excêntricos, seu conhecimento era de extensão e
minúcias extraordinárias. Suas observações me deixa-
vam impressionado.
Sem dúvida, ninguém trabalharia de forma tão de-
votada nem acumularia informações tão precisas sem
ter algum objetivo em vista. Leitores fortuitos dificil-
mente se destacam pela exatidão de seus conhecimentos.
Homem nenhum sobrecarregaria a mente com minú-
cias, sem ter uma boa razão para isso.
A ignorância de Holmes era tão notável quanto
seu conhecimento. O que sabia de literatura, filosofia
e política contemporâneas erá praticamente nada. Quan-
do citei Thomas Carlyle*, ele me perguntou, da forma
mais ingênua, de quem se tratava e o que havia feito.
Minha surpresa maior, porém, foi descobrir, incidental-
mente, que ele desconhecia a Teoria de Copérnico e a
composição do sistema solar. Encontrar um homem ci-
vilizado, em pleno século XIX, ignorando que a Terra gi-
* Thomas Carlyle (1795-1881). Escritor inglês, autor de numerosa obra
no campo da história e do pensamento social. (N. do T.)
21
ra em torno do Sol, era algo dífícil de acreditar, de tão
extraordinário.
- Você parece espantado - disse ele, rindo da
minha surpresa. - Agora que sei, farei o possível pa-
ra esquecer.
- Esquecer?
- Veja bem - explicou. - Para mim, o cérebro
humano, em sua origem, é como um sótão vazio que
você pode encher com os móveis que quiser. Um tolo
vai entulhá-lo com todo tipo de coisa que for encontran-
do pelo caminho, de tal forma que o conhecimento que
poderia ser-lhe útil ficará soterrado ou, na melhor das
hipóteses, tão misturado a outras coisas que não conse-
guirá encontrá-lo quando necessitar dele. O especialis-
ta, ao contrário, é muito cuidadoso com aquilo que co-
loca em seu sótão cerebral. Guardará apenas as ferra-
mentas de que necessita para seu trabalho, mas dessas
terá um grande sortimento mantido na mais perfeita
ordem. É um engano pensar que o quartinho tem pare-
des elásticas que podem ser estendidas à vontade. Che-
ga a hora em que, a cada acréscimo de conhecimento,
você esquece algo que já sabia. É da maior importância,
portanto, evítar que informações ínúteis ocupem o lu-
gar daquelas que têm utilidade.
- Mas o sistema solar! - protestei.
- O que isso tem a ver comigo? - interrompeu
com impaciência. - Você disse que giramos ao redor
do Sol. Se girássemos em torno da Lua, não faria a
menor díferença para mim e para meu trabalho.
Era o momento certo para perguntar-lhe que traba-
lho era esse, mas algo me dizia que a pergunta não se-
ria bem recebida. Fiquei pensando sobre essa nossa bre-
ve conversa e procurei tirar minhas conclusões. Ele dis-
sera que não adquiria conhecimentos que não servissem
a seus objetivos. Portanto os conhecímentos que tínha
22
eram os que serviam a seus objetivos.
Enumerei men-
talmente os temas nos quais ele havia demonstrado ser
excepcionalmente bem informado. Cheguei a pegar
um lápis para anotá-los. Não pude deixar de sorrir quan-
do completei a lista. Ficou assim:
Sherlock Holmes - seus limites
l. Conhecimento de literatura: nulo.
2. Conhecimento de filosofia: nulo.
3. Conhecimento de astronomia: nulo.
4. Conhecimento de política: fraco.
5. Conhecimento de botânica: variável.
Entende de beladona, ópio e venenos em geral.
Não sabe nada sobre plantas úteis.
6. Conhecimento de geologia: prático, mas limitado.
Distingue, à primeira vista, diferentes tipos de solos.
Depois de suas caminhadas, mostra-me manchas
em suas calças e diz, a partir da cor e da consistên-
cia, de que parte de Londres são.
7. Conhecimento de química: profundo.
8. Conhecimento de anatomia: acurado, mas assiste-
mático.
9. Conhecimento de publicações sensacionalistas: imen-
so. Parece conhecer cada detalhe de todos os horro-
res perpetrados neste século.
10. Toca violino bem.
11. Perito em esgrima e boxe. Um espadachim.
12. Bom conhecimento prático das leis inglesas.
Quando cheguei a esse ponto da lista, desanima-
do, joguei-a ao fogo.
- Se para descobrir o que esse sujeito faz preciso
compor todos esses atributos e deduzir que profissão
precisa de todos eles - disse para mim mesmo -, é
melhor desistir logo.
Já me referi a seus dotes de violinista. Eram notá-
23
veis, mas tão excêntricos quanto suas outras habilida-
des. Tocava peças difíceis, eu sabia, pois, a meu pedi-
do, havia executado Lieder', de Mendelssohn, e outras
de minha preferência. Por conta própria, porém, nun-
ca executava qualquer música ou tentava alguma ária
conhecida. À tardinha, recostava-se em sua poltrona
e, olhos fechados, tocava sem atenção o violino, que
pousava sobre os joelhos.
Às vezes os acordes eram sonoros e melancólicos;
outras, fantásticos e animados. Com certeza, refletiam
seus pensamentos, embora não se pudesse dizer se os
acordes ajudavam-no a pensar ou se eram, apenas, o
resultado de capricho ou fantasia. Eu teria me insurgi-
do contra aqueles solos irritantes, se ele não costumas-
se encerrá-los com uma rápida seqüência de minhas
músicas preferidas, tocadas por inteiro, como uma com-
pensação ao fato de ter abusado de minha paciência.
Durante a primeira semana, talvez um pouco mais,
não recebemos visita alguma e eu já começara a pensar
que meu companheiro, como eu, não tinha amigos. Vim
descobrir, mais tarde, que tinha muitas relações e nas
mais diversas classes sociais.
Havia um sujeitinho pálido, com olhos escuros e
cara de rato, apresentado como Sr. Lestrade, que che-
gou a aparecer três ou quatro vezes numa só semana.
Uma manhã, veio uma jovem, muito bem vestida, que
se demorou por uma meia hora ou mais. Nesse mes-
mo dia, à tarde, o visitante foi um senhor espigado e
grisalho, parecendo ser um pequeno negociante judeu,
que dava a impressão de estar muito excitado. Logo a
seguir, apareceu uma mulher de idade, com sapatos en-
tortados pelo uso. Noutra ocasião, um cavalheiro de ca-
* Pequenas peças melodiosas, sentimentais e espirituosas que compòem
as várías coleçôes dos Lieder uhne Worte (Canções sem palavras), de
Mendelssohn (compositor e regente alemão, 1809-1847). (N. do T.)
24
belos brancos teve uma entrevista com meu companhei-
ro. Depois, recebeu um guarda de estrada de ferro ves-
tido com um uniforme de algodào veludoso.
Quando surgia algum desses visitantes, Sherlock
Holmes costumava pedir-me que desocupasse a sala
de estar, e eu me retirava para meu quarto. Ele sempre ¡
se desculpava por isso.
- Tenho de usar a sala como lugar de trabalho
- dizia -, e essas pessoas são meus clientes.
Era, mais uma vez, a oportunidade para perguntar-
lhe o que fazia, mas, como nas outras ocasiões, a dis-
crição me impediu de forçar alguém a confiar em mim.
Imaginei, então, que teria alguma forte razão para não
falar a respeito, mas ele desfez essa idéia, abordando
o assunto espontaneamente.
Foi num quatro de março, tenho boas razões pa-
ra lembrar a data. Eu havia levantado um pouco mais
cedo que o habitual e Sherlock não terminara seu desje-
jum. A empregada, acostumada com o fato de eu levan-
tar mais tarde, não preparara meu lugar à mesa nem
minha refeição.
Com toda a irracional petulância de que um ser
humano é capaz, toquei a sineta e disse-lhe, sumaria-
mente, que estava aguardando. Peguei uma revista que
estava sobre a mesa para passar o tempo, enquanto
meu companheiro mastigava silenciosamente sua torra-
da. Um dos artigos havia sido sublinhado a lápis e, co-
mo é natural, minha atenção foi atraída por ele. '
O título - "O livro da vida" - era um tanto pre-
tensioso, e o autor desejava demonstrar o quanto um
homem observador pode aprender com o exame acura-
do e sistemático do que está a seu redor. Pareceu-me
uma notável mistura de absurdo e perspicácia. A argu-
mentação era cerrada e intensa, mas as deduções ten-
diam ao exagero e à inconseqüência. Afirmava que
25
uma expressão momentãnea, uma contração de múscu-
los ou um movimento de olhos podiam denunciar os
pensamentos mais íntimos de um homem. Segundo ele,
era impossível que alguém, treinado para a observação
e a análise, errasse. Suas conclusões seriam tão infalí-
veis quanto as proposições de Euclides'. Aos não-inicia-
dos, suas conclusões pareciam tão espantosas que, en-
quanto não conhecessem o método pelo qual ele havia
chegado até elas, pensariam que se tratava de um bruxo.
"A partir de uma gota de água", dizia o articu-
lista, "um pensador lógico poderá inferir a possibilida-
de de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter jamais
visto um ou outro ou, sequer, ouvido falar a respeito.
Assim, a vida é uma grande cadeia, cuja natureza po-
de ser depreendida a partir do simples confronto com
um de seus elos. Como todas as artes, a Ciência da De-
dução e da Análise só pode ser adquirida mediante
um longo e paciente aprendizado, mas a vida não é lon-
ga o bastante para permitir que um mortal atinja o
mais alto grau de perfeição nessa área. Antes de voltar-
se para esses aspectos morais e mentais da questão, que
são os que apresentam as maiores dificuldades, o pes-
quisador deve começar pelo domínio dos problemas
mais elementares. Ao conhecer um homem, que ele
aprenda a deduzir, só por olhá-lo, qual sua história,
seu ofício ou profissão. Por mais infantil que esse exer-
cício possa parecer, desenvolve as faculdades de obser-
vação e ensina para onde se deve olhar e com que inten-
ção. As unhas de um indivíduo, as mangas de seu casa-
co, seus sapatos, os joelhos de suas calças, os calos do
indicador e do polegar, sua expressão, os punhos de
sua camisa, todos esses detalhes revelam a profissão de
* Matemático grego, viveu na primeira metade do século III a.C., autor
de Elementos, obra dividida em treze livros, um dos mais notáveis com-
pêndios de Matemática. (N. do T.)
26
um homem. E quase inconcebível que tudo isso reuni-
do deixe de esclarecer um observador competente" .
- Quanto disparate! - desabafei, jogando a revis-
ta sobre a mesa. - Nunca li tanta bobagem na vida.
- O que é? - perguntou Sherlock Holmes.
- É este artigo - disse, apontando-o com a co-
lher para o ovo, enquanto me preparava para iniciar o
desjejum. - Você já o leu, está assinalado a lápis. Não
nego que foi escrito com inteligência, mas é irritante.
Sem dúvida, é teoria de desocupado, alguém que desen-
volve todos esses pequenos paradoxos a portas fecha-
das em seu gabinete. Não é nada prático. Gostaria de
vê-lo sacolejando num vagão de terceira classe do trem
subterrâneo para perguntar-lhe quais as profissões de
seus companheiros de viagem. Apostaria mil por um
contra ele.
- Perderia seu dinheiro - observou Holmes cal-
mamente. - Quanto ao artigo, eu o escrevi.
- Você?
- Sim. Tenho tendência a observar e a deduzir.
As teorias que expus aí, e que lhe parecem tão fantasio-
sas, são extremamente práticas, tanto que dependo de-
las para comer e beber.
- E como? - perguntei sem querer.
- Bem, trabalho por conta própria. Imagino que
seja o único no mundo com meu ofício. Sou um deteti-
ve-consultor, se entende o que quero dizer. Aqui, em
Londres, há muitos detetives particulares e a serviço
do governo. Quando eles têm dificuldades, procuram
por mim e tento colocá-los na pista certa. Apresentam-
me todos os indícios e, graças a meus conhecimentos
da história do crime, geralmente consigo encaminhá-los
corretamente. Existe uma grande similaridade entre os
delitos, de tal modo que, se você tem os detalhes de
mil casos na cabeça, dificilmente deixará de resolver o
27
milésimo primeiro. Lestrade é um detetive completo.
No entanto, há pouco tempo, atrapalhou-se com um
caso de falsificação e veio me procurar.
- E aquelas outras pessoas?
- A maioria foi enviada por agências particulares
de investigação. Têm algum problema e vêm em busca
de esclarecimento. Escuto suas histórias; ouvem os co-
mentários e eu embolso meu dinheiro.
- Você está querendo dizer - falei - que, sem
sair de seu quarto, deslinda o mistério que outros não
conseguem esclarecer, mesmo com conhecimento dos
detalhes?
- Exato. Tenho uma certa intuição sobre esse ti-
po de coisa. Às vezes, surge um caso um pouco mais
complexo. Então, tenho que andar por aí e ver as coi-
sas com meus próprios olhos. Você sabe que tenho co-
nhecimento especializado para aplicar à solução dos
problemas, e isso facilita de modo fantástico a situação.
As regras de dedução expostas no artigo, e que você
considerou desprezíveis, são inestimáveis para meu tra-
balho prático. Observação é minha segunda natureza.
Você ficou surpreso quando lhe disse, à primeira vez
em que nos encontramos, que você havia estado no
Afeganistão.
- Alguém lhe contou, sem dúvida.
- Nada disso. Eu sabia que você vinha do Afega-
nistão. Como o hábito é antigo, a seqüência de pensa-
mentos se formou tão rápido em minha mente que che-
guei à conclusão sem ter consciência das etapas interme-
diárias. No entanto elas existiram. A seqüência foi a
seguinte: "Aqui temos um cavalheiro com aparência
de médico, mas que também parece um militar. Trata-
se de um médico do exército, portanto. Veio há pouco
dos trópicos, porque seu rosto está bronzeado e esta
não é a cor natural de sua pele, uma vez que seus pul-
28
sos sao claros. Sofreu doenças e privações, seu rosto
abatido denuncia isto. Feriram-lhe o braço esquerdo,
pois ele o mantém rígido numa postura nada natural.
Em que lugar dos trópicos um médico do exército britâ-
nico enfrentaria dificuldades e poderia ter seu braço fe-
rido? No Afeganistào, é claro". Toda essa corrente de
pensamentos não levou um segundo. Aí, comentei que
você vinha do Afeganistão e deixei-o espantado.
- Do modo como você explica, tudo parece mui-
to simples - ponderei, sorrindo. - Você me lembra
o Dupin', de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que indi-
víduos comc ele pudessem existir fora das páginas dos
livros.
Sherlock Holmes ergueu-se e acendeu seu cachimbo.
- Com certeza, pensa estar me fazendo um cum-
primento ao me comparar com Dupin - observou. -
Bem, em minha opinião, Dupin era um tipo inferior.
Aquele truque de interromper o pensamento de seus
amigos com um comentário oportuno, após um quar-
to de hora de silêncio, é exibicionista e superficial. Ti-
nha um certo gênio analítico, sem dúvida. Mas, de ma-
neira alguma, era o fenômeno que Poe imaginava que
fosse.
- Já leu as obras de Gaboriau"? - perguntei.
- Lecoq corresponde a sua idéia de detetive?
Sherlock fungou com sarcasmo.
- Lecoq era um pobre estúpido - disse, com irri-
tação. - A única coisa que o recomendava era sua ener-
gia. Esse livro me deixou doente. A questão era identi-
ficar um prisioneiro desconhecido. Eu o teria feito em
* Personagem criado pelo poeta, crítico e ficcionista americano Edgar
Allan Poe (1809-1849). Dupin é considerado o primeiro detetive do ro-
mance policial. (N. do T.)
** Émile Gaboriau (1835-1873), ficcionista francês, autor de narrativas
policiais que celebrizaram seu personagem, o detetive Lecoq. (N. do T.)
29
vinte e quatro horas. Lecoq levou seis meses ou mais.
Esse deveria ser o livro didático dos detetives: para en-
sinar-lhes o que não deveriam fazer!
Eu estava realmente indignado por ver tratados
dessa forríza dois personagens que tanto admirava. Ca-
minhei até a janela e fiquei olhando o movimento da rua.
"Esse sujeito pode ser muito esperto", pensei,
"mas, sem dúvida, é muito arrogante".
- Hoje em dia, não há mais crimes nem crimino-
sos - disse ele, lamentando-se. - De que adianta cére-
bro em nossa profissão? Sei que tenho inteligência sufi-
ciente para ser um nome famoso. Não há e jamais hou-
ve alguém com a profundidade de conhecimentos e o
talento natural para a investigação de crimes que tenho.
E para quê? Não há crimes para desvendar. No máxi-
mo, alguma vilania mal executada e causada por moti-
vos tão transparentes, que até um oficial da Scotland
Yard consegue resolver.
A presunção com que falava me aborrecia e resol-
vi mudar de assunto.
- O que aquele sujeito estará procurando? - per-
guntei, apontando para um homem forte, vestido com
simplicidade, que caminhava devagar, no outro lado
da calçada, observando com ansiedade os números das
casas. Trazia um grande envelope azul na mão e, sem
dúvida, estava encarregado de entregar uma mensagem.
- Está falando daquele ex-sargento da Marinha?
- perguntou Holmes.
"Mas que fanfarrão!", pensei. "Sabe que não pos-
so confirmar uma coisa dessas."
Mal tinha esse pensamento me ocorrido, quando
o homem que observávamos viu o número da nossa ca-
sa e, com rapidez, atravessou a rua. Ouvimos uma batida
30
forte, uma voz grave no andar de baixo e, a seguir,
passos pesados na escada.
- Para o Dr. Sherlock Holmes - disse, entran-
do na sala e estendendo a carta a meu amigo.
Ali estava a oportunidade para acabar com tanta
presunção. Holmes não previra isto fazendo a observa-
ção ao acaso.
- Posso perguntar-lhe, jovem - falei com a maior
suavidade possível -, qual a sua profissão?
- Mensageiro, senhor - respondeu com aspere-
za. - Estou sem uniforme porque foi preciso consertá-lo.
- E o que fazia antes? - perguntei, dirigindo a
meu companheiro um olhar enviesado e malicioso.
- Era sargento, senhor, da Real Infantaria Ligei-
ra da Marinha. Não há resposta, Sr. Holmes? Perfei-
to, senhor.
Bateu nos calcanhares, ergueu a mão em continên-
cia e se foi.
31
3. O Mistério de Lauriston Gardens

Confesso que fiquei bastante impressionado com
a nova prova de praticidade das teorias de meu amigo.
Meu respeito por sua capacidade analítica cresceu de
forma considerável. No entanto permanecia em minha
mente uma secreta suspeita de que tudo não passava
de um episódio montado para me deslumbrar, embora
não conseguisse perceber a intenção que o teria levado
a agir assim. Holmes terminara de ler a correspondên-
cia e havia em seus olhos aquela expressão vaga e sem
brilho que revela mergulho em alguma abstração.
- Como pôde deduzir aquilo? - perguntei.
- Deduzir o quê? - respondeu com petulância.
- Ora, que ele era um sargento reformado da
Marinha.
- Não tenho tempo para falar de bagatelas - res-
pondeu de maneira brusca, porém, em seguida, sorrin-
do, falou: - Desculpe minha grosseria. Você cortou
o fio de meu pensamento. Mas, talvez, tenha sido me-
32
lhor. Então, voce nao foi mesmo capaz de percener
que aquele homem era um sargento da Marinha?
- Realmente não.
- Percebê-lo foi mais fácil do que tentar explicar
agora como foi que o consegui. Se lhe pedirem para
provar porque dois mais dois são quatro, você pode en-
contrar uma certa dificuldade, embora não tenha a me-
nor dúvida a respeito. Mesmo o homem estando do ou-
tro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul ta-
tuada no dorso de sua mão. Ora, isso remete a mar.
Além disso, ele tinha postura militar e usava suíças à
moda da Marinha. Aparentava uma certa importância
de quem costuma comandar. Você deve ter observado
a maneira como ele mantinha a cabeça e balançava a
bengala. Seu rosto era o de um homem de meia-idade
seguro e respeitável. A soma de tudo isso me levou a
dizer que ele tinha sido um sargento.
- Fantástico! - exclamei.
- É banal - disse Holmes, embora sua expressão
denunciasse que minha visível surpresa e a admiração
que sentia por ele o deixavam muito satisfeito. - Há
pouco eu dizia que não existiam mais criminosos. Pare-
ce que me enganei. Veja isto!
Passou-me a carta que acabara de receber do men-
sageiro.
- Que é isso? ! - exclamei, quando pus meus
olhos nela. - É terrível!
- Parece um tanto fora do comum. Você se im-
porta de ler em voz alta para mim?
Esta foi a carta que li para ele:
Caro Sr. Sherlock Holmes,
Houve uma grave ocorrência esta noite, em Lauris-
ton Gardens, 3, perto de Brixton Road.
Nosso policial de ronda viu uma luz nessa casa
por volta das duas da manhã e, como a residência não
33
estivesse habitada, suspeitou que houvesse algo errado.
Encontrou a porta aberta e, na sala da frente, vazia
de qualquer móvel, encontrou o corpo de um cavalhei-
ro bem vestido, cujos cartões de visita no bolso traziam
o nome de `.`Enoch J. Drebber, Cleveland, Ohio, U.S.A. ".
Não houve roubo nem gualguer evidência sobre a
maneira como o homem morreu. Há marcas de sangue
na sala, mas o corpo não apresenta ferimentos. Não
sabemos o que ele fazia numa casa desocupada. A his-
tória toda é um enigma. Se puder ir até a casa antes
das doze horas, poderá me encontrar lá. Deixei tudo
como estava, até ter notícias suas. Se não puder vir,
mandarei maiores detalhes e serei muito grato se tiver
a bondade de manifestar sua opinião.
Atenciosamente,
Tobias Gregson
- Gregson é o homem mais esperto da Scotland
Yard - observou meu amigo. - Ele e Lestrade são
os únicos que valem alguma coisa naquela corporação.
São rápidos e enérgicos, mas convencionais... tremenda-
mente convencionais. E rivalizam um com o outro. São
ciumentos como um par de beldades profissionais. Vai
ser divertido se ambos tiverem sido designados para o caso.
Eu estava espantado com a calma com que ele sus-
surrava essas palavras.
- Sem dúvida, não há um momento a perder -
exclamei. - Chamo um carro para você?
- Não estou certo se devo ir ou não. Sou o sujei-
to mais preguiçoso que já pisou neste mundo... Isto é,
às vezes, porque noutras sou bastante ativo.
- Ora, mas esta é a oportunidade que você tanto
esperava!
- Meu querido amigo, que diferença fará para
mim? Suponha que eu venha a desvendar o caso todo.
Pode estar certo de que Gregson, Lestrade & Compa-
34
nhia irão faturar todo o crédito. É o que acontece quan-
do não se é um investigador oficial.
- Mas ele está pedindo sua ajuda.
- Sim. Ele sabe que sou superior a ele; reconhe-
ce isso. Mas seria capaz de cortar a própria língua an-
tes de admiti-lo diante de uma terceira pessoa. Mesmo
assim, vamos dar uma espiada lá. Vou trabalhar a meu
modo. Se não der em nada, pelo menos vou rir deles.
Vamos lá!
Vestiu o sobretudo, movendo-se de maneira a dei-
xar claro que a apatia cedera lugar a uma enérgica dis-
posição.
- Pegue seu chapéu - disse.
- Você quer que eu vá?
,
- Sim, se você não tem nada melhor para fazer.
Um minuto depois, estávamos em um carro e, a
toda velocidade, rumávamos para Brixton Road.
A manhã era sombria e nebulosa e um véu casta-
nho pairava sobre os telhados como se fosse o reflexo
das ruas lamacentas sob ele. Meu companheiro estava '
com ótima disposição e falava sobre violinos de Cremo- '
na e a diferença entre um Stradivarius e um Amati.
Quanto a mim, ia calado, porque o mau tempo e o
melancólico assunto em que estávamos envolvidos me '
deprimiam.
- Você não parece dar muita importância ao as-
sunto que tem pela frente - falei finalmente, interrom-
pendo a explanação musical de Holmes.
- Não tenho dado nenhum - respondeu. - É
um grande erro teorizar antes de ter todos os indícios.
Prejudica o raciocínio.
- Você terá seus dados em breve - observei, apon-
tando com o dedo. - Aqui é Brixton Road e, se não
estou enganado, a casa é aquela.
- É aquela. Pare, cocheiro, pare!
35
Estávamos a uns cem metros aproximadamente
do local, mas ele insistiu em descer ali mesmo, de mo-
do que completamos o percurso a pé.
A casa número três de Lauriston Gardens tinha
uma aparência fatídica e ameaçadora. Era uma entre
quatro casas construídas um pouco afastadas da rua.
Duas delas estavam ocupadas; duas permaneciam sem
moradores. A de número três espiava a rua por três fi-
leiras de janelas tristes e vazias, que seriam ainda mais
desoladoras e funestas, não fossem os cartazes de "Alu-
ga-se" que, como cataratas, cobriam algumas das vidra-
ças turvas. Um pequeno jardim em que árvores anêmi-
cas haviam sido salpicadas, distantes umas das outras,
separava cada casa da rua. Atravessava-o uma senda
estreita e amarelada, feita com o que parecia ser uma
mistura de saibro e argila. A chuva durante a noite dei-
xara o lugar lamacento e úmido.
O jardim era cercado por uma parede de tijolos
de mais ou menos um metro, encimada por um grade-
ado de madeira. Contra essa parede, recostava-se um
forte policial, cercado por um pequeno grupo de deso-
cupados que aguçavam os olhos e espichavam os pesco-
ços na esperança vã de perceber numa olhadela o que
acontecia no interior.
Eu havia imaginado que, tão logo chegasse, Sher-
lock Holmes correria em direção à casa no afã de mer-
gulhar no estudo do mistério.Nada poderia estar mais
longe de sua intenção do que isso. Com um ar displicen-
te que, naquelas circunstâncias, parecia bem próximo
à afetação, pôs-se a caminhar de úm lado para outro
na calçada, olhando vagamente o chão, o céu, as ou-
tras casas e o gradeado sobre o muro. Terminada essa
observação, percorreu lentamente a senda do jardim,
ou melhor, o gramado que o margeava, com os olhos
cravados no chão.
36
Parou por duas vezes e, numa delas, eu o vi sorrir.
A certa altura, deixou escapar uma exclamação satisfei-
ta. Havia muitas pegadas no solo molhado e argiloso.
Mas como a polícia tinha ido e vindo por ali, não po-
dia compreender o que ele pretendia encontrar no solo.
No entanto já tivera provas extraordinárias da agilida-
de de suas faculdades e não duvidava de que ele pudes-
se estar vendo muitas coisas que, para mim, eram invi-
síveis.
Fomos recebidos à entrada da casa por um homem
alto e claro, cabelos cor de palha, com um caderno de
anotações na mão, é ue correu em direção a Holmes,
apertando sua mão com entusiasmo.
- Foi muito gentil em ter vindo - disse ele. -
Nada foi tocado.
- Exceto lá! - respondeu meu amigo, apontan-
do para a senda do jardim. - Se uma manada de búfa-
los tivesse passado por ali, a confusão não teria sido
maior. Sem dúvida, Gregson, você tirou suas próprias
,
conclusões, antes de permitir que acontecesse tal coisa.
- Tive tanto que fazer dentro da casa! - respon-
deu evasivo o detetive. - Meu colega, o Sr. Lestrade
está aqui. Confiei que ele cuidaria dessa parte.
Holmes me olhou de relance, erguendo as sobran-
celhas com ar sarcástico.
- Com homens como você e Lestrade no caso,
não haverá muita coisa para um terceiro descobrir - disse.
Gregson esfregou as mãos, satisfeito.
- Creio que fizemos tudo que era para ser feito
- respondeu. - No entanto trata-se de um caso estra-
nho e conheço sua predileção por esse tipo.
- Veio para cá de carro? - perguntou Sherlock
Holmes.
- Não.
- E Lestrade?
37
- Também não.
- Então vamos dar uma olhada na sala.
Com essa observação inconseqüente entrou na ca-
sa e Gregson o seguiu com um ar de espanto no rosto.
Um pequeno corredor, com o pavimento descober-
to e empoeirado, levava à cozinha e às áreas de servi-
ço. Tinha duas portas: uma à direita e outra à esquer-
da. Uma delas, era evidente, estivera fechada por vá-
rias semanas. A outra dava passagem à sala de jantar,
dependência onde ocorrera o estranho caso. Holmes
entrou e eu o segui com aquele sentimento de opressão
no peito que a presença da morte costuma provocar.
A sala era ampla e quadrada e a total ausência de
mobília dava a impressão de que era ainda maior. Um
papel vulgar e muito vistoso forrava as paredes, mas,
em vários lugares, estava manchado de mofo e, em al-
gumas partes, rasgara-se em grandes tiras que, pendura-
das, deixavam ver o reboco amarelo. Frente à porta,
havia uma pomposa lareira que acabava em uma plati-
banda de falso mármore branco. Em um canto havia
um toco de vela vermelha. A única janela estava tão
suja que apenas filtrava uma luz fosca e incerta, tingin-
do tudo de uma tonalidade cinza, intensificada pela es-
pessa camada de poeira que a tudo cobria.
Todos esses detalhes só observei mais tarde. No
momento, minha atenção estava centrada tão-somente
naquela figura imóvel e perturbadora que jazia estendi-
da no chão com olhos vazios e estáticos voltados para
o teto desbotado. O homem devia ter uns quarenta e
três ou quarenta e quatro anos e era de estatura média.
Seus ombros eram largos, o cabelo crespo e preto e ti-
nha uma barba curta e cerrada. Vestia fraque e colete
de tecido grosso e de boa qualidade, calças claras e co-
larinho e punhos imaculados. Uma cartola
bem-feita e escóvada encontrava-se ao lado dele. Suas
mãos estavam crispadas e os braços, abertos. Suas per-
nas, porém, estavam contorcidas, sugerindo uma ago-
nia sofrida. O rosto rígido guardava uma expressão de
terror e, segundo me pareceu, também de um ódio que
eu jamais vira em rosto humano.
Aquela contorção maléfica e terrível, somada à tes-
ta baixa, ao nariz chato e ao queixo proeminente, da-
va ao morto uma peculiar aparência simiesca, acentua-
da pela posição antinatural. Eu já vira a morte sob vá-
rios aspectos, mas nenhum tão assustador como aque-
le que encontrei naquela peça escura e sinistra de uma
casa situada numa das principais artérias suburbanas
de Londres.
Lestrade, alto e magro, semelhante a um furão,
estava parado junto à porta e cumprimentou a mim e
a meu companheiro.
- Este caso vai dar o que falar - comentou. -
Supera tudo que já vi, e olha que não comecei ontem.
- Nenhuma pista?
- Nada - respondeu Lestrade.
Sherlock Holmes aproximou-se do corpo e, ajoe-
lhando-se, examinou-o atentamente.
- Vocês têm certeza de que não há ferimentos?
- perguntou, apontando para as numerosas gotas e
salpicos de sangue que havia em redor.
- Nenhum - disseram ambos.
- Então, é claro, este sangue pertence a um outro
indivíduo, provavelmente o assassino, se é que foi co-
metido assassinato. Isto me lembra as circunstâncias
em que morreu Van Jansen, em Utrecht, em 1834. Lem-
bra do caso, Gregson?
- Não, não lembro.
- Pois procure ler a respeito... Realmente, deve
fazê-lo. Não há nada de novo sob o sol. Tudo já foi feito.
Enquanto falava, seus dedos ágeis voavam de um
40
lado para outro, apalpando, pressionando, desabotoan-
do, examinando. Os olhos tinham aquela expressão dis-
tante que mencionei. Fazia esse exame com tanta rapi-
dez que, dificilmente, alguém avaliaria o detalhamen-
to com que era processado. Ao final, cheirou os lábios
do homem morto e olhou as solas de suas finas botas
de couro.
- Não o removeram do lugar
- Apenas o necessário para o exame.
- Podem levá-lo para o necrotério - disse. -
Não há mais nada para examinar.
Gregson dispunha de uma maca e de quatro ho-
mens. Atendendo a seu chamado, eles entraram na sa-
la e ergueram o morto. Nesse momento, uma aliança
caiu e rolou pelo chão. Lestrade a apanhou, olhando
para ela deslumbrado.
- Houve uma mulher aqui - gritou. - Isto é
uma aliança de mulher.
Colocou-a na palma da mão, enquanto falava.
Nós o cercamos, olhando para a jóia. Não havia dúvi-
da de que aquele simples aro de ouro havia adornado
o dedo de uma noiva.
- Isto complica as coisas - disse Gregson. - E,
meu Deus, elas já estão bastante complicadas.
- Tem certeza de que não as simplifica? - obser-
vou Holmes. - Não vamos descobrir nada simplesmen-
te olhando para esta aliança. O que foi encontrado
em seus bolsos?
- Temos tudo aqui - disse Gregson, apontando
um punhado de objetos que estava sobre um dos de-
graus mais baixos da escada. - Um relógio de ouro,
número 97163, da Casa Barraud, de Londres; uma cor-
rente de ouro Albert, maciça e muito pesada; um anel
de ouro com o símbolo maçônico; um alfinete de grava-
ta de ouro, em forma de cabeça de buldogue, com olhos
41
de rubi; uma carteira de couro russo com cartões dee
Enoch J. Drebber, de Cleveland, correspondente às ini-
ciais E.J.D. na roupa íntima. Não trazia carteira de no-
tas, mas dinheiro trocado no valor de sete libras e tre-
ze xelins. Tinha uma edição de bolso do Decameron'
,
de Boccaccio, com o nome de Joseph Stangerson na
primeira folha. Havia, ainda, duas cartas: uma endere-
çada a E.J. Drebber e outra a Joseph Stangerson.
- Para que endereço?
- American Exchange, Strand, para serem entre-
gues quando reclamadas pelos destinatários. Ambas fo-
ram enviadas pela Companhia de Navegação Guion e
tratam da partida de seus barcos de Liverpool. É cla-
ro que este pobre homem estava para voltar a Nova York.
- Investigou esse Stangerson?
- Imediatamente - disse Gregson. - Enviei anún-
cios a todos os jornais e um de meus homens foi ao
American Exchange, mas ainda não voltou.
- Fez contato com Cleveland?
- Telegrafei esta manhã.
- O que você disse?
- Apresentamos os fatos com os devidos detalhes
e dissemos que apreciaríamos qualquer informação que
pudesse nos ajudar.
- Perguntou por alguma coisa em particular, al-
go que lhe parecesse importante?
- Pedi informações sobre Stangerson.
- Nada mais? Não há nenhuma circunstância so-
bre a qual o caso pareça se assentar? Irá telegrafar
mais uma vez?
- Disse tudo o que tinha para dizer - respondeu
Gregson, ofendido.
* Coleção de contos picarescos de Boccaccio (1313-1375), escritor italia-
no. (N. do T.)
42
Sherlock Holmes riu consigo mesmo e parecia que-
rer fazer alguma observação quando Lestrade, que per-
manecia na peça em frente, enquanto conversávamos
no corredor, reapareceu em cena, esfregando as mãos
com pompa e satisfação.
- Sr. Gregson - disse -, fiz uma descoberta da
maior importância. Algo que passaria despercebido,
não tivesse eu feito um cuidadoso exame das paredes.
Os olhos do homenzinho brilhavam enquanto ele
falava, e - era evidente - estava exultante por ter
marcado um ponto contra seu colega.
- Venham cá! - chamou, voltando para a sala
cuja atmosfera parecia, agora, mais leve, devido à re-
moção de seu tétrico inquilino. - Fiquem aqui!
Riscou um fósforo na bota e ergueu-o até a parede.
- Vejam isto! - disse, triunfante.
Já mencionei que o papel de parede havia se rom-
pido em tiras. Nesse canto da sala, uma tira grande se
desprendera, deixando exposto um quadrado amarela-
do de áspero reboco. Nesse espaço descoberto, estava
rabiscado, em letras de sangue, uma única palavra: rache.
- Que acha disso? - perguntou o detetive, com
ares de artista exibindo seu espetáculo. - Ninguém viu
porque estava no canto mais escuro da sala e não se '
pensou em examinar aqui. O assassino ou a assassina
escreveu isto com seu próprio sangue. Vejam a mancha
que escorreu pela parede. Isto, de certa forma, afasta
a idéia de suicídio. Por que terá escolhido este canto?
Eu explico a vocês. Observem aquela vela sobre a larei-
ra. Estava acesa na hora e, portanto, este canto era o
mais iluminado, em lugar de ser, como agora, o mais
escuro da parede.
- E o que significam essas letras que você desco-
briu? - perguntou Gregson com desdém.
43
- O que significam'I Ura, que a pessoa ia escrever
o nome feminino Rachel, mas que foi interrompida,
antes que pudesse terminá-lo. Guardem minhas pala-
vras: quando este caso começar a ser esclarecido, desco-
brirão que uma mulher de nome Rachel tem algo a ver
com ele. Pode rir, Sr. Sherlock Holmes. O senhor é
muito esperto e inteligente, mas verá, quando tudo ti-
ver terminado, que o velho cão de caça é o melhor.
- Sinceramente, desculpe! - disse meu compa-
nheiro, que o havia irritado com um acesso de riso.
- Sem dúvida, você tem o crédito de ser o primeiro
de nós a descobrir esse indício. E, como disse, tudo in-
dica que se trata de algo escrito pelo outro participan-
te do mistério da noite passada. Ainda não tive tempo
para examinar a sala, mas, com sua licença, vou fazê-
lo agora.
Enquanto falava, tirou do bolso uma fita métrica
e uma grande lente de aumento redonda. Munido des-
ses dois instrumentos, pôs-se a caminhar pela sala, rá-
pido, mas silencioso. Às vezes, parava; outras, ficava
de joelhos e, em uma ocasião, estirou-se de bruços no
chão. Tão envolvido estava nessa ocupação, que pare-
cia ter esquecido de nossa presença, pois falava consi-
go mesmo, o tempo todo, soltando exclamações, res-
mungos, gritos e assobios de estímulo e coragem.
Observando-o, era inevitável a comparação com
um cão de caça puro-sangue bem treinado, correndo
de um lado para outro atrás da presa e ganindo de an-
siedade pelo momento em que iria farejá-la. Por vinte
minutos ou mais, ele continuou em suas buscas, aferin-
do meticulosamente distâncias entre marcas invisíveis
para mim e, uma vez ou outra, medindo a parede com
a fita métrica num procedimento que me era incompre-
ensível. A certa altura, colheu do assoalho, com todo
o cuidado, um montinho de pó acinzentado, guardan-
44
do-o em um envelope. Por fim, examinou com a lente
a palavra grafada na parede, analisando cada letra da
forma mais detida. Feito isso, pareceu satisfeito, por-
que guardou a lente e a fita métrica no bolso.
- Dizem que gênio é quem tem uma capacidade
infinita para o trabalho - Holmes comentou com um
sorriso. - Essa é uma definição muito ruim, mas se
aplica no caso do trabalho de detetive.
Gregson e Lestrade haviam observado as mano-
bras de seu companheiro amador com muita curiosida-
de e com um certo desprezo. Era evidente que eles não
conseguiam perceber algo que eu começara a descobrir:
as ações mais insignificantes de Sherlock Holmes eram
totalmente dirigidas a um fim prático e definido.
- O que acha de tudo isso? - perguntaram.
- Eu estaria roubando-lhes o crédito do caso, se
pretendesse ajudá-los - comentou meu amigo. - Vo-
cês estão se saindo tão bem que a interferência de um
terceiro seria lamentável. - Havia toneladas de sarcas-
mo em sua voz. - Se vocês me mantiverem informa-
do do andamento de suas investigações - prosseguiu
-, terei prazer em ajudá-los no que puder. Enquanto
isso, gostaria de falar com o policial que encontrou o
corpo. Poderiam me dar o nome e o endereço dele?
Lestrade consultou seu caderno de notas.
- John Rance - disse. - Está de folga, mas po-
derá encontrá-lo em Audley Court, 46, Kennington
Park Gate.
Holmes anotou o endereço.
- Venha, doutor - disse, dirigindo-se a mim. -
Vamos visitá-lo.
Em seguida, voltou-se para os detetives.
- Vou dizer-lhes algo que poderá ajudá-los no ca-
so. Houve um homicídio e o assassino era homem. Tem
mais de um metro e oitenta de altura, é jovem, seus
45
pés são pequenos para seu porte, usa botas grosseiras
de bico quadrado e fumou um charuto Trichinopoly.
Chegou aqui com a vítima num carro de quatro rodas
puxado por um cavalo com três ferraduras velhas e
uma nova na pata dianteira. É bastante provável que
o assassino tenha o rosto corado e que suas unhas da
mão direita sejam bastante longas. São apenas alguns
detalhes, mas podem ajudar.
Lestrade e Gregson entreolharam-se com um sorri-
so de incredulidade.
- Se esse homem foi assassinado, como foi feito?
- perguntou o primeiro.
- Veneno - disse Sherlock Holmes de forma lacô-
nica. - Outra coisa, Lestrade - acrescentou, virando-
se da porta. - Rache é vingança em alemão. Portan-
to não perca tempo atrás de nenhuma Rachel.
Depois desse. lance definitivo, afastou-se, deixan-
do atrás de si, boquiabertos, os dois rivais.
464. O que John Rance Tinha a Dizer

Era uma hora quando saímos da casa número três
de Lauriston Gardens. Acompanhei Sherlock Holmes
ao posto de telégrafo mais próximo, de onde ele expe-
diu um longo telegrama. Depois disso, chamou um car-
ro e ordenou ao cocheiro que nos levasse ao endereço
fornecido por Lestrade.
- Nada melhor que um indício colhido na fonte
- observou. - Na realidade, já tenho opinião forma-
da sobre o caso, mas ainda podemos saber mais sobre ele.
- Você me espanta, Holmes. É claro que não es-
tá tão seguro quanto aparenta a respeito de todos os
detalhes a que se referiu.
- Não há margem para erro - respondeu. - A
primeira coisa que observei, quando lá cheguei, foi que
as rodas de um carro haviam feito dois sulcos perto
do meio-fio. Não chovera por uma semana antes da
noite passada, portanto, se as rodas deixaram marcas
tão profundas, isso só poderia ter acontecido durante
47
a noite. Além disso, percebi as marcas dos cascos. O
contorno de um deles estava bem mais marcado que o
dos outros três, indicando que uma das ferraduras era
nova. Uma vez que o carro esteve lá depois que come-
çou a chover, e nenhum carro parou por ali durante a
manhã, conforme afirmou Gregson, conclui-se que as
marcas foram feitas durante a noite e, por conseguin-
te, são do carro que trouxe os dois indivíduos para a casa.
- Até aí parece simples - comentei -, mas e a
dedução a respeito da altura do homem?
- Ora, de nove em cada dez casos, a altura de
um homem pode ser aferida pela extensão de seus pas-
sos. É um cálculo simples, mas não vou aborrecê-lo
com a demonstração. Eu tinha suas pegadas no barro,
lá fora, e na poeira que havia dentro da casa. Além dis-
so, eu podia testar meu cálculo de outra maneira. Quan-
do alguém escreve na parede, o faz, instintivamente, à
altura dos olhos. Ora, a palavra foi grafada a cerca
de um metro e oitenta do chão. Foi brincadeira de criança.
- Mas, e a idade? - perguntei.
- Bem, se um homem pode dar passadas de um
metro e vinte sem grande esforço, está em pleno apo-
geu da forma física. Essa era a largura de um charco
no jardim que ele evidentemente atravessou numa pas-
sada. As botas finas de couro o contornaram, e os bi-
cos quadrados o saltaram. Não há nenhum mistério nis-
so. Tudo que estou fazendo é aplicar na vida real os
preceitos de observação e dedução de que falava no ar-
tigo. Algo mais intriga você?
- O que você falou sobre as unhas e o charuto
Trichinopoly.
- A palavra foi escrita na parede com um indica-
dor molhado em sangue. Com a lente, pude observar
que o reboco foi um pouco arranhado durante o ato,
o que não teria acontecido se a unha do homem estives-
48
se aparada. Ficou um pouco de ciza espalhada pelo
chão. Era escura e laminada, como a cinza que só um
Trichinopoly produz. Fiz um estudo especial sobre cin-
zas de charuto. Na realidade, trata-se de uma monogra-
fia sobre o tema. Eu me vanglorio de poder distinguir
num relance a cinza de qualquer marca de charuto ou
cigarro. São nesses detalhes que um detetive especializa-
do se distingue dos Gregsons e dos Lestrades da vida.
- E quanto ao rosto corado? - perguntei.
- Ah, isso foi uma ousadia, embora eu não tenha
dúvida de que estou certo. Não me pergunte como é
que sei tal coisa a esta altura da investigação.
Passei a mão na testa.
- Minha cabeça está dando voltas - comentei.
- Quanto mais eu penso, mais misterioso me parece
esse caso. Como foi que esses dois homens, se é que
eram dois homens, vieram parar nessa casa vazia? O
que foi feito do cocheiro que os levou lá? De que mo-
do o assassino compeliu o outro a tomar veneno? E o
sangue, de onde veio? Qual teria sido a razão do assas-
sinato, uma vez que não houve latrocínio? Por que aque-
la aliança de mulher estava lá? E, sobretudo, por que
alguém escreveria a palavra alemã rache antes de sair?
Confesso que não consigo conciliar todos esses fatos.
Meu companheiro deu um sorriso de aprovação.
- Você reuniu as dificuldades da situação de mo-
do, ao mesmo tempo, próprio e sucinto - disse. -
Muita coisa permanece obscura, embora eu já tenha re-
solvido os fatos principais. Quanto à descoberta do po-
bre Lestrade, é apenas uma tentativa de desviar a polí-
cia para pistas falsas, simulando indícios de que se tra-
ta de algo referente a socialismo ou sociedades secretas.
A letra a, não sei se você notou, foi grafada mais ou
menos à maneira alemã. Ora, um alemão geralmen-
49
te o grafa à latina, quando se trata de atrair à impren-
sa. Portanto não foi escrito por um alemão, mas por
um imitador desajeitado que exagerou seu papel. Ape-
nas um ardil para desviar a investigação do caminho
certo. Não vou dizer-lhe mais nada sobre o caso, dou-
tor. Sabe que um mágico perde o prestígio ao explicar
seu truque. Além disso, se eu lhe desvendar meu méto-
do de trabalho, acabará concluindo que eu, afinal de
contas, sou um indivíduo bastante comum.
- Jamais pensaria assim - respondi. - Você, co-
mo ninguém jamais o fez no mundo, aproximou a de-
dução das ciências exatas.
Meu companheiro enrubesceu de prazer ao ouvir
minhas palavras e ao perceber a seriedade com que eu
as pronunciava. Eu já havia observado que ele era tão
sensível a elogios a sua arte quanto uma menina a res-
peito de sua beleza.
- Vou lhe dizer mais uma coisa - acrescentou.
- O Sr. Finas Botas de Couro e o Sr. Bicos Quadra-
dos vieram juntos no mesmo carro e caminharam jun-
tos pela senda do jardim da forma mais amigável. É
provável, até, que a tenham percorrido de braços da-
dos. Entraram na casa e ficaram andando de um lado
para outro. Ou melhor, o Sr. Finas Botas de Couro fi-
cou parado, enquanto o Sr. Bicos Quadrados andava.
Pude ler tudo isso na poeira do assoalho, assim como
pude ver que, à medida que conversavam, tornavam-
se cada vez mais excitados. A largura crescente das pas-
sadas indica isso. Falava o tempo todo, ficando cada
vez mais furioso. Então, ocorreu a tragédia. Disse-lhe
tudo o que sei até o momento; o resto é süposição e
conjetura. Temos, no entanto, uma boa base para co-
meçar a trabalhar. Vamos nos apressar. Pretendo ouvir
Norman-Neruda, esta tarde, em um concerto no Hallé.
Esta conversa ocorreu enquanto nosso carro per-
50
corria uma longa sucessão de ruas escuras e becos tris-
tes. Na rua mais escura e triste delas todas, nosso co-
cheiro parou subitamente.
- Ali é Audley Court - disse, apontando para
uma passagem estreita numa parede de tijolos desbota-
dos. - Quando voltarem, estarei aqui.
Audley Court não era um local atraente. A passa-
gem estreita conduzia a uma área quadrangular pavi-
mentada com lajes e margeada por moradias sórdidas.
Abrimos caminho entre bandos de crianças sujas e va-
rais de roupa já sem cor até o número quarenta e seis.
A porta era decorada com uma pequena placa de latão
na qual estava gravado o nome Rance. Perguntamos
por ele e soubemos que estava na cama. Fomos encami-
nhados para uma saleta e lá aguardamos.
O guarda apareceu logo depois, parecendo um pou-
co irritado por termos perturbado seu descanso.
- Já apresentei meu relatório no posto - disse.
Holmes tirou meio soberano' de seu bolso e ficou
brincando pensativamente com a moeda.
- Pensamos que seria melhor ouvir tudo de seus
próprios lábios - disse.
- Terei o máximo prazer em contar-lhe tudo -
respondeu o guarda com os olhos postos na pequena
moeda de ouro.
- Basta que nos diga, com suas palavras, tudo o
que aconteceu.
Rance sentou-se no sofá e franziu a testa, determi-
nado a não omitir nada em sua narrativa.
- Vou contar toda a história desde o começo -
disse. - Dou serviço das dez da noite às seis da manhã.
Às onze, houve uma briga no White Hart, mas, fora
isto, tudo esteve tranqüilo. A uma hora começou a cho-
* Moeda inglesa de ouro equivalente a dez xelins. (N. do T.)
51
ver e encontrei Harryuurcner, que faz a ronda em
Holland Grove, e ficamos conversando na esquina da
Henrietta Street. Um pouco mais tarde, talvez às duas
horas ou pouco depois, resolvi dar uma olhada para
ver como andavam as coisas em Brixton Road. A chu-
va enlameara tudo e não se via vivalma por lá, embo-
ra um carro ou outro tenha passado por mim. Fiquei
andando por ali, pensando em como me cairia bem
uma dose de gim quente, quando, de repente, meus
olhos deram com uma janela iluminada naquela casa.
Ora, eu sabia que duas casas em Lauriston Gardens es-
tavam vazias, porque o proprietário delas não manda
limpar os esgotos, apesar do último inquilino de uma
delas ter morrido de febre tifóide. Fiquei espantado
ao ver luz na janela, e suspeitei de que houvesse algo
errado. Quando cheguei à porta...
- Você parou e, então, correu ao portão do jar-
dim - interrompeu Holmes. - Por que fez isso?
Rance deu um salto e fitou Sherlock Holmes com
perplexidade.
- Foi isso mesmo, senhor - disse -, embora só
Deus saiba como foi que o senhor descobriu. Olhe, quan-
do cheguei à porta, estava tudo tão quieto e solitário
que temi estar só por ali. Não tenho medo de nada no
mundo dos vivos, mas pensei que talvez fosse o sujei-
to que morreu de tifo, examinando os esgotos que o
mataram. Fiquei assustado com a idéia e corri para o
portão, tentando avistar a lanterna de Murcher, mas
não havia sinal dele ou de quem quer que fosse.
- Não havia ninguém na rua?
- Nem uma só alma, senhor, sequer um cachor-
ro. Então, eu me recompus e voltei. Empurrei a porta
e entrei. Estava tudo tranqüilo lá dentro e eu fui em
direção à peça onde havia luz. Havia uma vela tremeluzin-
52
do sobre a lareira... uma vela de cera vermelha... e à
sua luz vi...
- Sim, sei o que viu. Caminhou pela sala várias
vezes, ajoelhou-se junto ao corpo, depois foi em dire-
ção à cozinha e..
John Rance ,pôs-se em pé com uma expressão de
susto no rosto e de suspeição nos olhos.
- Onde estava escondido para poder ver tudo is-
so? - gritou. - Está me parecendo que sabe muito
mais do que deveria.
Holmes riu e atirou seu cartão sobre a mesa, para
que o guarda o pegasse.
- Não me prenda por assassinato - disse. - Sou
um dos cães da caça, não o lobo. Gregson e Lestrade
confirmarão isto. Prossiga. O que fez a seguir?
Rance voltou a sentar-se, sem, contudo, perder a
expressão perturbada.
- Fui até o portão e fiz soar meu apito. Isso trou-
xe Murcher e mais dois até mim.
- A rua estava vazia nesse momento?
- Bem, estava, pelo menos de qualquer pessoa
que valesse alguma coisa.
- O que quer dizer?
O rosto do guarda se abriu num sorriso.
- Já tenho visto muitos bêbados - disse -, mas
nenhum tão alcoolizado como aquele. Estava no portão
quando cheguei, encostado nas grades e cantando a ple-
nos pulmões Columbine's New fangled Banner, ou al-
go assim. Não podia parar em pé, imagine ajudar.
- Que tipo de homem era?
John Rance pareceu um pouco irritado com essa
digressão.
- Era o tipo do beberrão. Teria sido levado ao
posto policial, se não estivéssemos tão ocupados.
53
- Seu rosto, sua roupa, notou como eram?
rompeu Holmes com impaciência.
- Notei, sim. Tive de pô-lo em pé, com a ajuda
de Murcher. Era um sujeito alto, com rosto avermelha-
do, a parte de baixo encoberta...
- Basta! - gritou Holmes. - O que foi feito dele?
- Tínhamos mais o que fazer para ficar toman-
do conta dele - respondeu o policial com um tom ofen-
dido. - Deve ter encontrado o caminho de volta para
casa.
- Como estava vestido?
- Um casacão marrom.
- Tinha um chicote na mão?
- Um chicote... não.
- Deve tê-lo largado em algum lugar - murmu-
rou meu companheiro. - Por acaso viu ou ouviu baru-
lho de um carro depois disso?
- Não.
- Aqui está meio soberano para você - disse
Holmes, pondo-se de pé e pegando o chapéu. - Te-
mo, Rance, que você não fará carreira na polícia. De-
via usar a cabeça, em lugar de tê-la apenas como enfei-
te. Podia ter ganho sua divisa de sargento ontem à noi-
te. O homem que teve nas mãos é quem tem a chave
do mistério, é aquele que estamos buscando. Não há
por que ficar discutindo isso agora, mas sei o que estou
dizendo. Venha, doutor.
Saímos em direção ao carro, deixando nosso infor-
mante um tanto incrédulo e, sem dúvida, nada confor-
tável.
- Que grande idiota! - Holmes exclamou acre-
mente, enquanto voltávamos para casa. - Pensar que
teve uma oportunidade dessas e não soube aproveitá-la!
- Ainda estou sem entender. A descrição do ho-
mem corresponde à sua idéia sobre a segunda persona-
54
gem no misterio. Mas por que ele voltaria para casa
depois de ter saído de lá? Não é o que os criminosos
costumam fazer.
- A aliança, homem, a aliança! Foi por isso que
ele voltou. Se não tivermos outra maneira para pegá-
lo, sempre poderemos atraí-lo com essa jóia. Eu vou
pegá-lo, doutor, aposto dois contra um que vou pegá-
lo. Tenho que lhe agradecer por tudo. Eu não teria vin-
do, não fosse por você. E teria perdido o mais interes-
sante estudo com que já me deparei: um "Estudo em
vermelho", hein? Por que não usarmos um pouco a lin-
guagem artística? O fio vermelho do crime entremeia-
se à meada descolorida da vida. Nossa missão é desen-
rolá-lo, isolá-lo, expondo-o em toda sua extensão. E,
agora, vamos ao almoço e, depois, assistir Norman-Ne-
ruda. Suas introduções e toda sua execução são esplên-
didas. Como é aquela pecinha de Chopin, que ele toca
de forma tão genial? Tra-lá-lá-lira-lira-lá.
Recostado no carro, o cão de caça amador cantaro-
lava tal qual uma calandra, enquanto eu meditava so-
bre as múltiplas facetas da mente humana.
55
5. Nosso Anúncio Atrai um visitante

As atividades daquela manhã haviam sido excessi-
vas para minha saúde abalada e, à tarde, eu estava
exausto. Depois que Holmes saiu para o concerto, dei-
tei no sofá, pretendendo dormir umas duas horas. Foi
inútil. Estava demasiado excitado com tudo o que acon-
tecera e minha mente se enchera das mais estranhas fan-
tasias e suspeitas. Fechava os olhos e via diante de mim
a fisionomia contraída e simiesca do homem assassina-
do. Tão sinistra fora a impressão produzida por aque-
le rosto que me era difícil sentir qualquer coisa que não
fosse gratidão por quem retirara seu dono desse mun-
do. Se alguma vez feições humanas revelaram o vício
em sua forma mais maligna, foi, sem dúvida, nos tra-
ços de Enoch J. Drebber, de Cleveland. Reconhecia,
no entanto, que era preciso haver justiça e que a depra-
vação da vítima não constituía atenuante aos olhos da lei.
Quanto mais pensava no caso, mais extraordinária
me parecia a hipótese de meu companheiro de que o
56
homem havia sido envenenado. Lembrava como havia
cheirado os lábios do morto e não duvidava de que ha-
via detectado algo que fundamentasse essa idéia. Se
não fosse veneno, o que teria causado a morte do sujei-
to, já que não estava ferido nem apresentava marcas
de estrangulamento? Por outro lado, de quem seria to-
do aquele sangue derramado no chão? Não havia si-
nais de luta, nem a vítima possuía qualquer arma com
a qual pudesse ter ferido o antagonista. Sentia que, en-
quanto todas essas questões permanecessem sem respos-
ta, não seria fácil para mim nem para Holmes conciliar
o sono. O comportamento sereno e autoconfiante de
meu amigo convenciam-me de que ele havia formado
uma teoria que explicava todos os fatos, embora eu
não pudesse imaginar, sequer por um instante, que te-
oria era essa.
Holmes voltou bem tarde, de modo que não pode-
ria ter estado no concerto o tempo todo. O jantar já
estava servido quando ele chegou.
- Foi magnífico! - comentou ao sentar-se. -
Lembra-se do que Darwin' disse sobre a música? Afir-
mou que o poder de produzi-la e apreciá-la existiu na
raça humana antes mesmo da língua. Talvez por isso
sejamos tão influenciados por ela. Há, em nossas al-
mas, vagas memórias daqueles séculos nebulosos em
que o mundo vivia sua infância.
- Essa, de fato, é uma idéia bastante ampla...
- Nossas idéias precisam ser tão amplas quanto
a natureza, caso queiramos interpretá-la - respondeu.
- O que há? Você não parece tranqüilo. O caso de
Brixton Road o perturbou.
- Para ser sincero, sim. Era para eu ter ficado
* Charles Robert Darwin (1809-1882), naturalista britânico cuja teoria
da evolução através da seleçào natural causou uma revolução na ciên-
cia biológica. (N. do T.)
57
menos sensível após as experiências no Afeganistão: Vi
companheiros serem feitos em pedaços na batalha de
Maiwand sem perder o controle.
- Entendo isso. É que neste caso há um mistério
estimulando a imaginação. Quando não há imaginação,
não há horror. Viu o jornal da tarde?
- Não.
- Traz um relato bastante bom do caso. Mas não
menciona o fato de que, quando o corpo foi erguido,
uma aliança de mulher caiu no chão. Ótimo que não
o tenha feito.
- Por quê?
- Olhe este anúncio - respondeu. - Mandei
um para cada jornal após os acontecimentos desta manhã.
Estendeu-me o jornal e olhei para o lugar indica-
do. Era o primeiro anúncio da coluna "Achados".
Foi encontrada uma aliança de ouro, esta ma-
nhã, em Brixton Road, entre a Taverna White Hart e
Holland Grove. Entrar em contato com Dr. Watson,
Baker Street, 221 B, entre oito e nove da noite.
- Desculpe-me por ter usado seu nome - disse.
- Se tivesse usado o meu, algum desses policiais idio-
tas iria reconhecê-lo e se intrometer no assunto.
- Tudo bem. Mas suponha que apareça alguém.
Não tenho aliança nenhuma.
- Ah, sim, você tem - disse, entregando-me
uma. - Esta servirá. É quase idêntica à verdadeira.
- E quem você espera que responda ao anúncio?
- Ora, o homem do casacão marrom. Nosso cora-
do amigo das biqueiras quadradas. Se não vier em pes-
soa, mandará um cúmplice.
- Não vai achar perigoso demais?
- De jeito nenhum. Se minha teoria sobre o caso
estiver correta, e tenho todos os motivos para achar
que está, esse homem arriscará qualquer coisa para não
58
perder a aliança. Minha tese é de que ele a deixou cair
enquanto se debruçava sobre o corpo de Drebber e,
na hora, não percebeu. Só depois de ter deixado a ca-
sa, descobriu que a perdera e voltou com pressa, mas
a polícia já estava no lugar, graças a sua falha de dei-
xar a vela acesa. Teve, então, que fingir uma bebedei-
ra para afastar as suspeitas que sua presença no portão
poderia levantar. Agora, ponha-se no lugar dele. Reca-
pitulando tudo, deve ter achado possível ter perdido a
aliança no caminho, após ter deixado a casa. O que te-
rá feito, então? Deve ter procurado ansiosamente nos
jornais da tarde, nos anúncios de achados e perdidos,
na esperança de encontrar alguma coisa. Seus olhos de-
vem ter brilhado quando encontrou meu anúncio. De-
ve ter exultado. Por que temeria uma armadilha? A
seus olhos, nada há que conecte o achado da aliança
com o assassinato. Deve vir. Virá e você vai vê-lo den-
tro de uma hora.
- E aí? - perguntei.
- Oh, pode deixar comigo. Eu cuido disso. Você
tem alguma arma?
- Tenho meu velho revólver de serviço e alguns
cartuchos.
- É bom limpá-lo e deixar carregado. O homem
está desesperado e, embora venha aqui desprevenido,
é melhor ficarmos preparados.
Fui para meu quarto e segui seu conselho. Quan-
do voltei com a arma, a mesa já havia sido arrumada
e Holmes estava envolvido com sua ocupação preferi-
da: brincar com o arco no violino.
- A situação está se definindo - disse, quando
entrei. - Acabo de receber a resposta de meu telegra-
ma para a América. Minha teoria está correta.
- E qual é? - perguntei de modo um tanto abrupto.
- Meu violino precisa de cordas novas - obser-
59
vou. - Coioque seu revólver no bolso. Quando o su-
jeito chegar, fale com naturalidade. Deixe o resto comi-
go. Não o assuste olhando-o demasiado.
- Agora são oito horas - comentei, olhando o
relógio.
- Sim, deve estar aqui dentro de poucos minutos.
Abra a porta só um pouquinho. Assim. Deixe a chave
do lado de dentro. Obrigado. Este é um estranho livro
antigo que encontrei ontem numa banca: De Jure inter
Gentes. Foi publicado em latim, em Liège, nos Países
Baixos, em 1642. O rei Carlos ainda tinha a cabeça so-
bre os ombros quando este livrinho marrom foi impresso.
- Quem imprimiu?
- Philippe de Croy, seja lá quem for. Na folha
de rosto, em tinta meio apagada, está escrito: "Ex li-
bris Gulielmi Whyte". Quem terá sido esse William
Whyte? Algum advogado pragmático do século XVII
,
suponho. Tem algo de legalidade em sua caligrafia.
Acho que nosso homem está vindo.
A campainha havia soado fortemente enquanto ele
falava. Holmes levantou-se suavemente e moveu sua
cadeira em direção à porta. Ouvimos os passos da cria-
da no vestíbulo e o ruído brusco do trinco da porta.
- O Dr. Watson mora aqui? - perguntou uma
voz clara, mas rouca. Não ouvimos a resposta da cria-
da, mas a porta foi fechada e alguém começou a subir
as escadas. Os passos eram incertos e arrastados. Um
ar de surpresa invadiu o rosto de meu companheiro en-
quanto os ouvia. O som vinha lentamente pelo corre-
dor. Ouvimos uma batida fraca na porta.
- Entre - respondi.
À minha ordem, em lugar do homem violento que
esperava, entrou capengando na sala uma mulher velha
e enrugada. Parecia estar ofuscada pelo repentino bri-
lho da luz da sala e, após fazer uma mesura, ficou pis-
60
canao os omos embaciados e remexendo nos bolsos os
dedos trêmulos e nervosos. Olhei para meu companhei-
ro, tinha no rosto uma tal expressão de desconsolo que
mal pude me conter e não rir.
A velha mostrou o jornal da tarde, apontando nos-
so anúncio.
- Foi isso que me trouxe aqui, cavalheiros - dis-
se, fazendo outra mesura -, uma aliança encontrada
em Brixton Road. Pertence a minha filha Sally, casa-
da há apenas um ano. Seu marido é camareiro num na-
vio da Union e não quero imaginar o que ele diria se,
voltando para a casa, encontrasse a mulher sem a alian-
ça. Ele já é grosseiro no normal, mas é muito mais quan-
do bebe. Se querem saber, ontem à noite ela foi ao cir-
co com...
- Essa é a sua aliança? - perguntei.
- Graças a Deus! - exclamou a velha. - Sally
vai ficar feliz esta noite. É esta a aliança.
- E qual é seu endereço? - perguntei, pegando
um lápis.
- Duncan Street, 13, em Houndsditch. É bem dis-
tante daqui.
- Brixton Road não fica entre nenhum circo e
Houndsditch - interrompeu Holmes bruscamente.
A velha virou o rosto e o encarou com seus olhos
miúdos e avermelhados.
- O cavalheiro perguntou qual o meu endereço
- respondeu. - Sally mora numa pensão em Mayfield
Place, 3, Peckham.
- E seu sobrenome é...?
- Sawyer, e o dela é Dennis, pois é casada com
Tom Dennis. Rapaz esperto, direito, quando está no
mar. Ninguém é melhor do que ele na companhia. Mas,
em terra firme, as mulheres e a bebida...
61
- Aqui está sua aliança, Sra. Sawyer - mterrom-
pi, obedecendo a um sinal de Holmes. - Sem dúvida,
pertence a sua filha e fico feliz em poder devolvê-la a
seu verdadeiro dono.
Balbuciando muitas bênçãos e expressões de grati-
dão, a velha colocou a jóia em seu bolso e arrastou-se
escada abaixo. Sherlock Holmes levantou-se, assim que
ela saiu, e correu para seu quarto. Voltou alguns segun-
dos depois, vestindo uma capa e um cachecol.
- Vou segui-la - disse, apressado. - Deve ser
uma cúmplice e vai me levar até ele. Espere por mim.
Mal a porta havia se fechado atrás de nossa visitan-
te e Sherlock Holmes já estava descendo a escada.
Olhando pela janela, podia ver a mulher caminhando
com dificuldade no outro lado da rua, seguida a curta
distância por seu perseguidor.
Pensei comigo mesmo: "Ou sua teoria está total-
mente errada ou ele está a caminho de esclarecer todo
o mistério".
Não era necessário que Holmes pedisse para espe-
rá-lo. Não conseguiria dormir antes de saber em que
tinha dado aquela aventura.
Holmes saíra em torno das nove e eu não tinha
idéia da hora em que voltaria. Sentei e fiquei fuman-
do calmamente meu cachimbo e folheando a esmo pá-
ginas da Iiie de Bohème, de Henri Murger. Soaram dez
horas e ouvi as passadas da empregada em direção à
cama. Às onze, os passos altivos da senhoria desfilaram
por minha porta com o mesmo destino. Era quase meia-
noite quando ouvi o som da chave de Holmes.
No momento em que entrou, vi que não se saíra
bem. Em seu rosto, o riso e o desgosto pareciam estar
disputando o prevalecimento, até que, vencendo o pri-
meiro, ele explodiu em uma sincera gargalhada.
- Por nada no mundo eu deixaria que o pessoal
62
da Scotland Yard soubesse disso - exclamou, deixan-
do-se cair na poltrona. - Tenho zombado tanto deles
que jamais deixariam que esquecesse o que me aconte-
ceu. Mas consigo rir do que houve, porque sei que não
me trará nenhuma desvantagem no final da caçada.
- Mas, afinal, o que aconteceu?
- Oh, não me importo de contar uma história
que depõe contra mim. Ouça, a criatura caminhou um
pouco e começou a mancar e dar sinal de estar com
os pés machucados. Daí a pouco parou e fez sinal pa-
ra um carro que passava. Procurei me aproximar para
ouvir o endereço, mas não era necessário, porque ela
o disse em voz alta o suficiente para que fosse ouvido
do outro lado da rua. "Leve-me para Durlcan Street,
13, em Houndsditch", disse ela. A história começava
a parecer verdadeira e, vendo-a entrar tranqüilamente
no carro, pendurei-me atrás do veículo. Todo detetive
deveria ser perito nessa arte. Bem, lá fomos nós, sacole-
jando rua afora e não paramos até chegar ao endere-
ço em questão. Saltei antes que chegássemos à porta e
me pus a andar calmamente, como se passeasse. Vi o
carro parar. O cocheiro saltou, abriu a porta e ficou
parado esperando. Ninguém saiu. Quando passei por
ele, examinava frenético o carro vazio, soltando a mais
variada coleção de pragas que já ouvi. Não havia o
menor vestígio de passageiro e o homem vai levar algum
tempo para receber por aquela corrida. Fiz perguntas
na casa número treze e soube que era de um respeitá-
vel forrador de paredes de nome Keswick. Lá ninguém
tinha ouvido falar de Sawyer ou de Dennis.
- Você não vai me dizer - comentei, perplexo
- que aquela velha fraca e manca foi capaz de saltar
do carro em movimento sem que você ou o cocheiro a
vissem?
Velha coisa nenhuma! - disse Sherlock Hol-
63
mes de forma brusca. - Deve ser um homem vivo,
ágil e excelente ator. Uma montagem excelente! Viu
que estava sendo seguido, sem dúvida, e usou esse re-
curso para me enganar. Isso demonstra que o homem
que perseguimos não é tão solitário quanto pensamos.
Ao contrário, tem amigos dispostos a correr riscos por
ele. Mas, doutor, o senhor parece exausto. Ouça meu
conselho: vá dormir.
Eu estava, de fato, muito cansado e, portanto,
obedeci ao que dizia. Deixei Holmes sentado frente ao
fogo já sem chamas da lareira e, alta noite, ainda ou-
via os lamentos baixos e melancólicos de seu violino.
Sabia que ele ainda estava pensando no singular proble-
ma que tinha que resolver.
64
6. tobias Gregson Mostra o que Pode Fazer

Os jornais do dia seguinte só falavam do "Misté-
rio de Brixton", como passaram a denominar o caso.
Todos traziam amplas matérias a respeito e alguns acres-
centavam chamadas especiais.
Havia na imprensa algumas informações novas pa-
ra mim. Ainda guardo várias delas em meu álbum de
recortes junto a alguns sumários do crime. Aqui vai
um resumo do que saiu:
O Daily Telegraph afirmava que, na história do
crime, poucas tragédias apresentavam características
tão estranhas. O nome alemão da vítima, a ausência
de motivos aparentes, a sinistra inscrição na parede, tu-
do sugeria envolvimento de refugiados políticos e revo-
lucionários. Os socialistas tinham muitas ramificações
na América e, sem dúvida, o morto havia infringido
alguma de suas leis não escritas e saíram em seu encal-
ço. Depois de rápidas referências ao Vehmgericht, à
água-tofana, aos carbonários, à marquesa de Brinvil-
65
liers, à teoria darwmana, aos prmcipios ae mamus e
aos assassinatos da Ratcliff Highway, o artigo concluía
criticando o governo e propondo um controle mais aus-
tero sobre os estrangeiros que viviam na Inglaterra.
O Standart comentava que esse tipo de fato ocor-
ria, de hábito, quando os liberais estavam no governo.
Brotavam da inquietação das massas e do conseqüente
enfraquecimento da autoridade. O morto era um cava-
lheiro americano que tinha vivido algumas semanas na
metrópole. Ficara hospedado na pensão de madame
Charpentier, em Torquay Terrace, em Camberwell.
Em suas viagens, era acompanhado pelo secretário par-
ticular, Joseph Stangerson. Ambos haviam se despedi-
do da dona da pensão na terça-feira, dia quatro do cor-
rente, e partido para a estação Euston com a intenção
manifesta de tomar o expresso para Liverpool. Depois
disso, tinham sido vistos juntos na plataforma. Nada
mais se soube deles até que o corpo do Sr. Drebber foi,
como se sabe, descoberto em uma casa vazia de Brix-
ton Road, a milhas de Euston. Como havia ido para
lá e como encontrara seu destino, essas eram questões
ainda envoltas em mistério. Nada se sabia sobre o para-
deiro de Stangerson. Afirmava, ainda, o jornal: "Fica-
mos felizes em saber que os oficiais da Scotland Yard,
Sr. Lestrade e Sr. Gregson, estão ambos encarregados
do caso. Já se sabe por antecipação que tão renomados
policiais desvendarão com rapidez o caso"
Segundo o Daily News, não restavam dúvidas de
que o crime era de natureza política. O despotismo e
o ódio ao liberalismo por parte dos governos continen-
tais, afirmava, fizeram com que desembarcassem em
nossas praias um grande número de homens que pode-
riam ser excelentes cidadãos se conseguissem esquecer
o que suportaram em suas terras. Entre eles havia um
rígido código de honra e qualquer infração era punida
66
com a morte. Todos os esforços deveriam ser envida-
dos no sentido de encontrar Stangerson, o secretário,
para que fornecesse detalhes sobre hábitos particulares
da vítima. Um grande passo havia sido dado com a des-
coberta do endereço da casa onde haviam se hospeda-
do, avanço que se devia tributar à sagacidade e à deter-
minação do Sr. Gregson, da Scotland Yard.
Sherlock Holmes e eu lemos essas notícias à mesa
do café e elas pareciam diverti-lo muito.
- Eu já disse que, haja o que houver, Lestrade e
Gregson, sem sombra de dúvida, levarão o mérito!
- Depende de como tudo terminar.
- Ora, amigo, não faz diferença. Se prenderem
o homem, será graças aos esforços dos dois. Se o deixa-
rem escapar, será apesar dos esforços deles. Cara, eu
ganho; coroa, você perde. Façam eles o que fizerem,
terão admiradores. Un sot trouve toujours un plus sot
qui I'admire'.
- O que vem a ser isso? - exclamei, porque, nes-
se momento, ouvia o ruído de muitos passos no vestíbu-
lo e nas escadas, acompanhados por audíveis expres-
sões de desgosto da senhoria.
- É a força policial dos detetives da Baker Street
- disse Holmes gravemente e, enquanto falava, irrom-
peram na sala meia dúzia dos moleques mais sujos e
andrajosos que eu já vira.
- Atenção! - gritou Holmes em tom incisivo.
Os seis moleques sujos formaram fila, parecendo gros-
seiras estatuetas. - No futuro, mandem Wiggins sozi-
nho para relatar e os demais fiquem esperando na rua.
Você encontrou, Wiggins?
- Não, senhor - disse um dos garotos.
- Tinha dúvidas se você conseguiria. Continuem tra-
* Um tolo sempre encontra alguém ainda mais tolo que o admira. (N. do T.)
67
balhando até descobrir. Aqui está o pagamento. - En-
tregou um xelim a cada um. - Agora podem ir e vol-
tem com melhores notícias na próxima vez.
Fez um gesto com a mão e eles correram escada
abaixo como ratos e, no momento seguinte, já ouvía-
mos suas vozes em algazarra na rua.
- Tira-se mais de um desses pequenos mendigos
do que de uma dúzia de policiais - observou Holmes.
- A simples imagem de alguém que aparente ser um
policial é o suficiente para selar os lábios das pessoas.
Esses garotos, porém, vão a toda parte e ouvem de tu-
do. São muito vivos, também, e tudo o que precisam
é de organização.
- Você os está empregando para que trabalhem
no caso da Brixton Road?
- Sim, há um ponto do qual preciso me certificar.
É apenas uma questão de tempo. Olhe! Em compensa-
ção, vamos ouvir novidades agora. Lá vem Gregson,
descendo a rua com a beatitude gravada em cada tra-
ço de seu rosto. Vem para cá, tenho certeza. Sim, está
parando. Aqui está!
Houve um forte toque da campainha e, em poucos
segundos, o detetive loiro subia as escadas, três degraus
a cada passo, parando em nossa sala.
- Meu caro amigo - exclamou, sacudindo a mão
inerte de Holmes. - Dê-me os parabéns, tornei o ca-
so todo tão claro quanto o dia.
Uma sombra de ansiedade pareceu toldar o expres-
sivo rosto de meu companheiro.
- Quer dizer que estão na pista certa? - perguntou.
- Pista certa? ! Nós temos o homem atrás das grades!
- E quem é?
- Arthur Charpentier, subtenente da Marinha de
Sua Majestade - exclamou Gregson pomposamente,
esfregando as mãos gordas e inflando o peito.
68
Sherlock Holmes soltou um suspiro de alívio e des-
contraiu-se num sorriso.
- Sente-se e experimente um desses charutos -
disse. - Estamos ansiosos para saber como resolveu
tudo. Aceita uísque e água?
- Acho que sim - respondeu o detetive. - Os
grandes esforços dos últimos dois dias me deixaram
exausto. Não tanto pelo esforço físico, compreenda,
mas pela tensão mental. O senhor saberá avaliar, Sr.
Holmes, porque ambos trabalhamos com o cérebro.
- O senhor me honra muito - disse Holmes com
gravidade. - Conte como chegou a uma conclusão tão
gratificante.
O detetive sentou-se na poltrona e, de forma com-
placente, soltava baforadas de charuto. De repente, deu
uma palmada na coxa e caiu na risada.
- O divertido nisso tudo - disse - é que o bo-
bo do Lestrade, que se considera tão esperto, foi atrás
da pista errada. Está buscando o secretário Stangerson,
que tem tanto a ver com o caso quanto um nenê que
ainda não nasceu. Não duvido de que até já o tenha
prendido.
A idéia o divertia tanto, que ele riu até se sufocar.
- E como conseguiu a pista?
- Bem, eu vou contar tudo sobre isso. Mas é cla-
ro, Dr. Watson, que isso deve ficar estrïtamente entre
nós. A primeira dificuldade que tive de enfrentar foi
descobrir os antecedentes do americano. Outro teria es-
perado até que seus anúncios fossem respondidos ou
que alguém se adiantasse dando informações espontane-
amente. Esse, porém, não é o modo de Tobias Gregson
trabalhar. Lembra do chapéu ao lado do homem morto?
- Sim - disse Holmes. - Fabricação de John
Underwood & Sons, da Camberwell Road, 129.
Gregson murchou nesse momento.
69
- Não pensei que tivesse reparado nisso - disse.
- Esteve lá?
- Não.
- Ah! - disse Gregson, aliviado. - Não deveria
ter negligenciado uma oportunidade, por menor que fosse.
- Para um grande cérebro, nada é pequeno -
destacou Holmes em tom sentencioso.
- Bem, fui até Underwood e perguntei se haviam
vendido um chapéu daquele tamanho e com aquelas ca-
racterísticas. Ele olhou em seus livros e encontrou lo-
go o registro. Havia mandado o chapéu ao Sr. Drebber,
que morava na Pensão Charpentier, em Torquay Terra-
ce. Foi assim que consegui o endereço.
- Esperto... muito esperto! - murmurou Sher-
lock Holmes.
- Em seguida, visitei madame Charpentier - con-
tinuou o detetive. - Encontrei-a muito pálida e aflita.
Sua filha estava na sala também. Uma graça de meni-
na! Tinha os olhos vermelhos e seus lábios tremiam en-
quanto eu falava com ela. Isso não me escapou. Come-
cei a desconfiar. O senhor conhece a sensação, Sr. Hol-
mes, quando sentimos estar na pista certa: um arrepio
nos nervos. "Já soube da morte misteriosa de seu últi-
mo hóspede, Sr. Enoch J. Drebber, de Cleveland?",
perguntei. A mãe moveu a cabeça. Parecia não ser ca-
paz de dizer uma só palavra, A filha irrompeu em lá-
grimas. Mais do que nunca, senti que sabiam algo so-
bre o assunto.
"- A que horas o Sr. Drebber deixou sua casa
para pegar o trem?"
"- Às oito horas - disse, engolindo em seco pa-
ra controlar a agitação. - Seu secretário, Sr. Stanger-
son, disse que havia dois trens: um às nove e quinze e
outro às onze horas. EIe pretendia pegar o primeiro."
"- E foi a última vez que o viu?"
70
- Uma mudança terrível ocorreu no rosto da mu-
lher - prosseguiu o detetive - quando fiz essa pergun-
ta. Ela ficou lívida. Passaram-se alguns segundos antes
que ela pudesse pronunciar uma única palavra - "sim"
-, e numa voz rouca e pouco natural. Houve silêncio
por um momento e, então, a filha falou com voz cla-
ra e serena.
"- Nada de bom vem da mentira, mãe. Vamos
ser sinceras com o cavalheiro. Nós vimos, sim, o Sr.
Drebber depois disso."
"- Deus a perdoe - disse madame Charpentier,
jogando os braços para cima e afundando na cadeira.
- Você assassinou seu irmão."
"- Arthur preferiria que contássemos a verdade
- respondeu a menina com firmeza."
"- É melhor contar tudo que sabem - disse. -
Meias verdades são piores que mentiras. Além disso,
vocês não imaginam quanto sabemos a respeito."
"- Você será a responsável, Alice! - gritou a
mãe e, voltando-se para mim, prosseguiu: - Vou lhe
contar tudo, senhor. Não vá imaginar que minha agita-
ção se deva a algum temor de que meu filho tenha par-
ticipado desse caso horrível. Ele é totalmente inocente.
Mas tenho medo de que, a seus olhos e aos olhos de
outros, ele possa parecer envolvido. Isso, sem dúvida,
é impossível. Seu caráter superior, sua profissão, seus
antecedentes jamais permitiriam qualquer comprometi-
mento."
"- O melhor que tem a fazer é uma confissão
completa dos fatos - respondi. - Se seu filho for ino-
cente, o que disser não vai piorar a situação."
"- Talvez, Alice, fosse melhor deixar-nos a sós.
- Tendo dito isso, a filha se retirou. - Eu não preten-
dia contar-lhe nada disso, mas, já que a minha pobre
filha tomou a dianteira, não tenho alternativa. E já
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que decidi falar, vou contar tudo sem a omissáo de ne-
nhum detalhe."
"- É a atitude mais sábia - respondi."
"- O Sr. Drebber esteve conosco em torno de
três semanas. Ele e seu secretário, o Sr. Stangerson, es-
tiveram viajando pelo continente. Reparei que havia
uma etiqueta de Copenhague em cada uma de suas ma-
las, o que demonstrava ter sido essa sua parada ante-
rior. Stangerson era um homem calmo e reservado, exa-
tamente o oposto de seu patrão que, lamento dizer, era
grosseiro nos hábitos e rude nas maneiras. Já na noite
em que chegou, embriagou-se e ficou péssimo. E, na
realidade, nunca se podia dizer que estivesse sóbrio
após o meio-dia. Tratava as empregadas de modo desa-
gradavelmente permissivo e íntimo. O pior de tudo foi
que, em pouco tempo, assumiu a mesma atitude com
minha filha Alice e, mais de uma vez, dirigiu-se a ela
de uma forma que, felizmente, ela é muito inocente pa-
ra entender. Certa ocasião, chegou a tomá-la nos bra-
ços e a abraçá-la, um ultraje que levou seu próprio se-
cretário a reprová-lo por uma conduta tão indigna."
"- Mas por que suportou isso tudo? - pergun-
tei. - Entendo que pode se livrar de seus hóspedes quan-
do quer."
- Madame Charpentier corou diante da pertinên-
cia de minha observação.
"- Ah, que bom se eu o tivesse despachado no
mesmo dia em que chegou - disse. - Mas foi uma
tentação danada. Estavam pagando, cada um, uma li-
bra por dia de diária, portanto, quatorze libras por se-
mana, e estamos na baixa estação. Sou viúva, e ter
um filho na Marinha tem me custado caro. Não queria
perder o dinheiro. Fiz o que me pareceu melhor. No
entanto a última do Sr. Drebber foi demais, e pedi-lhe
que saísse. Essa foi a razão pela qual se foi."
72
- E depois?"
"- Fiquei com o coração aliviado quando ele par-
tiu... Meu filho está de folga agora, mas não lhe con-
tei nada disso, porque ele tem o temperamento violen-
to e é louco pela irmã. Quando fechei a porta atrás
dos dois, foi como se um peso tivesse sido retirado de
mim. Pois menos de uma hora depois soou a campai-
nha e era o Sr. Drebber voltando. Estava muito excita-
do e, sem dúvida, bastante embriagado. Entrou na sa-
la onde eu estava com minha filha e fez umas observa-
ções confusas sobre ter perdido o trem. Voltou-se, en-
tão, para Alice e, na minha frente, propôs-lhe fugir
com ele. Disse que ela era maior e que lei nenhuma po-
dia impedi-la, que tinha dinheiro de sobra para gastar
e que devia ir com ele sem se importar com a velha.
Disse-lhe que viveria como uma princesa. A pobre Ali-
ce estava tão apavorada que tentou escapar, mas ele a
pegou pelo pulso e, à força, levou-a até a porta. Gritei
e, nesse momento, Arthur, meu filho, apareceu. O que
aconteceu, então, eu não sei. Ouvi maldições e os sons
confusos de uma briga. Estava apavorada e não levan-
tava a cabeça. Quando finalmente olhei, Arthur esta-
va rindo, junto à porta, com uma bengala na mão. Dis-
se que o distinto cavalheiro não iria mais nos importu-
nar, mas que iria segui-lo para ver o que ele pretendia.
Apanhou, então, o chapéu e saiu para a rua. Na ma-
nhã seguinte, soubemos da misteriosa morte de Drebber."
- Essas declarações - continuou o detetive - fo-
ram feitas por madame Charpentier entre pausas e inde-
cisões. Às vezes falava tão baixo que eu mal podia en-
tendê-la. Taquigrafei o que ela dizia para evitar a possi-
bilidade de erro.
- Que excitante! - disse Sherlock Holmes com
um bocejo. - O que aconteceu depois?
- Quando madame Charpentier terminou - pros-
73
seguiu o detetive - vi que todo o caso dependia de
um único ponto. Olhei-a fixamente, de um modo que
sempre funciona com mulheres, e, então, perguntei-lhe
a que horas seu filho tinha voltado.
"- Não sei - respondeu."
"- Não sabe?"
"- Não, ele tem a chave da porta e entra quan-
do quer."
"- Depois que a senhora foi para cama, então?"
"- Sim."
"- A que horas foi isso?"
"- Por volta das onze horas."
"- Então, seu filho esteve ausente umas duas ho-
ras?"
"- Sim."
"- Talvez umas quatro ou cinco horas?"
"- É possível."
"- O que fez durante esse tempo?"
"- Não sei - respondeu empalidecendo de tal
forma que até seus lábios perderam a cor."
- Depois disso, é evidente, não havia nada mais
a fazer. Descobri onde estava o "oficial" Charpentier,
levei dois policiais comigo e o prendi. Quando pus a
mão em seu ombro e disse-lhe para vir conosco sem re-
agir, ele replicou com audácia:
"- Suponho que estejam me prendendo como sus-
peito da morte daquele patife do Drebber."
- Como não havíamos mencionado nada nesse
sentido, minhas suspeitas aumentaram.
- Sem dúvida - comentou Holmes.
- Ele ainda trazia consigo a pesada bengala que,
segundo sua mãe, havia levado quando saiu atrás de
Drebber. É um bastão de carvalho maciço.
- Qual a sua teoria, então?
- Bem, a minha teoria é de que ele seguiu Dreb-
74
ber até Brixton Road. Lá, os dois tiveram uma acalora-
da discussão no meio da qual Drebber foi atingido pe-
la bengala, talvez no meio do estômago, que o matou
sem deixar marca. Chovia tanto que ninguém andava
nas ruas, e Charpentier arrastou o corpo de sua víti-
ma para a casa vazia. Quanto à vela, ao sangue, ao es-
crito na parede e ao anel, podern ser apenas truques
para desviar a polícia para pistas falsas.
- Muito bom! - disse Holmes em tom encoraja-
dor. - De fato, Gregson, você fez progressos. Você
vai longe!
- É, sem falsa modéstia, eu conduzi tudo muito
bem - respondeu com orgulho o detetive. - O rapaz
prestou depoimento espontaneamente. Disse que, após
ter seguido Drebber por algum tempo, este percebeu o
que acontecia e tomou um carro para se ver livre dele.
Voltando, então, para casa, encontrou um colega da
Marinha e deram um longo passeio juntos. Quando
perguntei onde vivia esse colega, ele não conseguiu dar
uma resposta satisfatória. Tudo se encaixa perfeitamen-
te. O que me diverte é pensar em Lestrade, que saiu
atrás da pista falsa. Temo que ele não consiga ir mui-
to longe. Mas, vejam só, é o próprio Lestrade que es-
tá aqui, em carne e osso.
De fato, era mesmo Lestrade. Subira as escadas
enquanto conversávamos e entrava, agora, na sala.
Não se via, porém, a segurança e a boa aparência que,
habitualmente, o caracterizavam. Seu rosto estava per-
turbado e suas roupas sujas e desalinhadas. Era eviden-
te que tinha víndo com a intenção de consultar Sher-
lock Holmes, mas ao perceber a presença do colega fi-
cara embaraçado. Parou no meio da sala, mexendo ner-
vosamente o chapéu e sem saber o que fazer.
- Este caso é dos mais extraordinários - disse
por fim - e dos mais incompreensíveis que já vi.
75
- Ah, você acha assim, não é, Lestrade! - excla-
mou Gregson, triunfante. - Achei que chegaria a es-
sa conclusão. Conseguiu encontrar Joseph Stangerson?
- O secretário, Joseph Stangerson - disse Lestra-
de com gravidade -, foi assassinado no Hotel Halli-
day, às seis horas desta manhã.
76
7. Uma Luz na Escuridão

A informação trazida por Lestrade era tão grave
e tào inesperada que ficamos pasmos os três. Gregson
ergueu-se de sua cadeira e engoliu o resto de seu uísque
com água. Fiquei olhando em silêncio para Sherlock
Holmes. Seus lábios estavam comprimidos e suas sobran-
celhas franzidas.
- Stangerson também! - murmurou. - A tra-
ma se complica.
- Já estava bastante complicada antes - grunhiu
l.estrade, pegando uma cadeira. - Parece que interrom-
pi um conselho de guerra ou algo assim.
- Você... está mesmo certo dessa informação que
nos deu? - gaguejou Gregson.
- Eu acabo de vir do quarto dele - disse Lestra-
de. - Fui o primeiro a descobrir o que aconteceu.
- Estávamos ouvindo o ponto de vista de Greg-
son sobre o caso - observou Holmes. - Importa-se
de nos contar o que viu e o que fez?
77
- Nãoo faço objeçoes - responaeu Lesuaue, sen-
tando-se. - Confesso com franqueza que, na minha
opinião, Stangerson estava envolvido na morte de Dreb-
ber. Este último acontecimento mostrou que eu estava
completamente errado. Centrado numa idéia única, pro-
curei descobrir o que tinha sido feito do secretário. Fo-
ram vistos juntos na estação Euston, em torno das oi-
to e trinta da noite do dia três. Às duas da manhã, Dreb-
ber foi encontrado em Brixton Road. A questão com
a qual eu me debatia era descobrir o que ele fizera en-
tre oito e trinta e a hora do crime, e o que havia feito
depois. Telegrafei a Liverpool, dando uma descrição
do homem e recomendando que controlassem os bar-
cos americanos. Então, eu me pus a trabalhar, visitan-
do hotéis e pensões nos arredores de Euston. Minha te-
oria era que, se Drebber e seu companheiro tivessem
se separado, o previsível era que este último se alojas-
se em algum lugar perto da estação para passar a noi-
te e voltar para lá na manhã seguinte.
- Eles devem ter, antecipadamente, combinado
um ponto de encontro - observou Holmes.
- Exato. Passei a noite de ontem investigando sem
nenhum resultado. Esta manhã comecei muito cedo e,
às oito horas, já estava no Hotel Halliday, na Little
George Street. Quando perguntei se um Sr. Stangerson
estava hospedado lá, de imediato responderam afirma-
tivamente.
"- Sem dúvida, o senhor é o cavalheiro que ele
aguarda - disseram. - Há dois dias que ele espera
por alguém."
"- Onde está ele agora? - perguntei."
"- No andar de cima, dormindo. Pediu para ser
acordado às nove."
"- Vou subir e falar com ele logo - disse."
- Achei que meu repentino aparecimento iria dei-
78
T
xá-lo ~nervoso e poderia fazer com que deixasse escapar
algo. O empregado dispôs-se a me mostrar o quarto:
era no segundo andar e chegava-se a ele por um peque-
no corredor. Ele indicou-me a porta e já estava para
descer quando vi algo que fez com que eu me sentisse
mal, apesar de meus vinte anos de experiência. Por bai-
xo da porta, corria um pequeno filete vermelho de san-
gue que serpenteava pelo corredor, formando uma po-
ça perto do rodapé da parede em frente. Gritei, fazen-
do o empregado voltar. Ele quase desmaiou quando viu
o sangue. A porta estava fechada por dentro, mas nós
arremessamos os ombros contra ela e a arrombamos.
A janela do quarto estava aberta e, junto dela, descom-
posto, jazia o corpo de um homem em roupa de dor-
mir. Já estava morto há algum tempo, pois seus mem-
bros estavam frios e rígidos. Quando o desviramos, o
empregado o reconheceu de imediato como sendo o
mesmo homem que alugara o quarto sob o nome de
Joseph Stangerson. A causa da morte fora uma profun-
da punhalada do lado esquerdo, que deve ter penetra-
do o coração. E agora vem a parte mais estranha do
caso. O que você imagina que encontrei sobre o cadáver?
Senti um arrepio na pele e um pressentimento de
horror, mesmo antes de Sherlock Holmes ter respondido.
- A palavra rache, escrita em letras de sangue -
disse.
- Exato! - disse Lestrade com voz atemorizada.
Ficamos todos em silêncio por um tempo. Havia
algo metódico e incompreensível nos feitos desse assas-
sino desconhecido que tornava ainda mais assustadores
seus crimes. Meus nervos, fortes o suficiente no cam-
po de batalha, latejavam agora.
- O assassino foi visto - continuou Lestrade.
- O leiteiro, indo a caminho do trabalho, descia pelo
beco que liga as cavalariças ao fundo do hotel. O meni-
79
no notou que uma escada, geralmente deixada lá, esta-
va erguida em direção a uma janela escancarada do se-
gundo andar. Depois de passar, olhou para trás e viu
um homem descendo por ela. Descia de modo tão cal-
mo e explícito que o rapaz imaginou que fosse algum
carpinteiro ou encanador a serviço do hotel. Não lhe
deu muita atenção, embora pensasse que era muito ce-
do para que o indivíduo já estivesse trabalhando. Te-
ve a impressão de que o homem era alto, tinha o ros-
to corado e vestia um longo casaco marrom. Deve ter
permanecido algum tempo no quarto depois do assassi-
nato, porque encontramos água manchada de sangue
na bacia, onde ele deve ter lavado as mãos, e marcas
nos lençóis, onde ele deliberadamente limpou seu punhal.
Olhei para Holmes, ao perceber que a descrição
do assassino concordava exatamente com a que ele fize-
ra. No entanto não havia sinal de alegria ou satisfação
em seu rosto.
- Não encontrou alguma coisa no quarto que pu-
desse fornecer uma pista? - perguntou.
- Nada. Stangerson tinha a carteira de Drebber
em seu bolso, mas parece que isso costumava aconte-
cer, uma vez que ele era encarregado dos pagamentos.
Havia oitenta e poucas libras nela, mas nada foi retira-
do. Sejam quais forem os motivos desses crimes tão ex-
traordinários, pode-se dizer que roubo não é um deles.
Não havia papéis ou anotações nos bolsos da vítima,
exceto um único telegrama, datado em Cleveland, cer-
ca de um mês atrás, contendo as palavras, "J. H. está
na Europa". Não havia nome do remetente.
- Nada mais? - perguntou Holmes.
- Nada de importante. O romance que ele lia an-
tes de dormir estava caído na cama e seu cachimbo esta-
va em uma cadeira a seu lado. Um copo de água esta-
va sobre a mesa e, no peitoril da janela, havia uma cai-
80
T
xinha de unguento contendo duas pilulas.
Sherlock Holmes saltou de sua cadeira com uma
exclamação de alegria.
- O último elo! - gritou, exultante. - Meu ca-
so está completo!
Os dois detetives o olharam com espanto.
- Tenho, agora, em minhas mãos - disse, confian-
te, meu companheiro -, todos os fios desse emaranha-
do. Há, é claro, detalhes a serem esclarecidos, mas não
tenho dúvidas a respeito dos fatos principais, a partir
do momento que Drebber deixou Stangerson na estação
até a descoberta do corpo desse último. É como se eu
tivesse visto tudo com meus próprios olhos. Vou dar-
lhes uma prova do que sei. Você pegou essas pílulas?
- Tenho-as aqui - disse Lestrade, mostrando
uma caixinha branca. - Eu as peguei e, também, a
carteira e o telegrama, para deixá-los em segurança no
posto policial. Recolhi as pílulas por acaso, porque, sin-
ceramente, não dei nenhuma importância a elas.
- Deixe que eu veja - pediu Holmes. - Doutor
- disse, virando-se para mim -, agora, me diga se
são pílulas comuns.
Não eram, sem dúvida. De cor cinza-pérola, eram
pequenas, redondas e quase transparentes quando olha-
das contra a luz.
- A julgar pela leveza e transparência, devem ser
solúveis em água - observei.
- Exato - respondeu Holmes. - E agora você
poderia buscar aquele pobre cachorrinho, doente há
tanto tempo, que a senhoria queria que você pusesse
fim a suas dores ontem?
Fui lá embaixo e voltei com o cachorro nos braços.
A respiração difícil e o olhar vidrado do terrier indica-
vam que ele não estava longe do fim. De fato, o foci-
nho branco anunciava que ele havia transposto os limi-
81
tes previstos de existencia canina.
Coloquei-o sobre uma almofada no tapete.
- Vou, agora, dividir uma dessas pílulas em duas
- disse Holmes e, tirando o canivete do bolso, trans-
formou as palavras em ação. - Uma das metades de-
volvemos à caixa para futuras investigações. A outra
metade vou pôr neste copo de vinho com uma colher
de chá de água. Percebem que nosso amigo doutor es-
tá certo, pois a pílula se dissolve logo.
- Isso pode ser muito interessante - disse Lestra-
de com o tom ressentido de quem suspeita que caiu
no ridículo. - No entanto não consigo ver em que se
relaciona com a morte do Sr. Joseph Stangerson.
- Calma, amigo, calma! Verá em seguida que tem
tudo a ver. Vou, agora, misturar um pouco de leite pa-
ra a mistura ficar mais agradável e verão que o cachor-
ro vai bebê-la sem demora.
Enquanto falava, verteu o conteúdo do copo de
vinho em um pires e colocou-o frente ao terrier, que,
rapidamente, o lambeu todo. A seriedade de Sherlock
Holmes nos impressionou tanto que sentamos todos
em silêncio, olhando o animal com atenção e esperan-
do algum efeito surpreendente. No entanto nada acon-
tecia. O cachorro continuava deitado sobre a almofa-
da, respirando com dificuldade, mas, segundo parecia,
nem melhor nem pior do que estava antes de beber a
mistura.
Holmes havia tirado o relógio e, como passavam
os minutos sem que se visse qualquer resultado, uma
expressão de profundo pesar e desapontamento surgiu
em seu rosto. Mordeu os lábios, tamborilou os dedos
na mesa e mostrou todos os sinais de impaciência. Esta-
va tão abalado que, com sinceridade, senti pena dele.
Os dois detetives, porém, sorriam sutilmente, nada abor-
recidos com a situação.
82
- Não pode ser coincidência! - exclamou, saltan-
do da cadeira e caminhando nervoso de um lado para
outro da sala. - É impossível que seja uma mera coin-
cidência. As mesmas pílulas de que suspeitei no caso
de Drebber são encontradas após a morte de Stanger-
son. E são inócuas? O que significa? É claro que o
meu raciocínio inteiro não pode ser falso. É impossível!
E, no entanto, este pobre cachorro sequer piorou. Ah,
já sei! Já sei!
Com um grito agudo de alegria, correu até a cai-
xa, partiu a outra pílula em duas partes, dissolveu-a,
acrescentou leite e deu ao terrier. A língua do infeliz
animal mal parecia ter tocado na mistura e seus mem-
bros começaram a se agitar em convulsão. Logo caiu
rígido e sem vida como se tivesse sido fulminado por
um raio.
Sherlock Holmes deu um longo suspiro e enxugou
o suor da testa.
- Eu deveria ter tido mais confiança - disse. -
Já deveria saber, a estas alturas, que, quando um fato
parece ser contrário a uma longa seqüência de dedução,
demonstra, invariavelmente, ter alguma outra interpre-
tação. Das duas pílulas na caixa, uma era do veneno
mais terrível e a outra completamente inocente. Devia
ter percebido isso antes mesmo de ver a caixa.
Esta última afirmação me pareceu tão surpreenden-
te que eu mal acreditava que ele estivesse em seu juízo
perfeito. Mas ali estava o cachorro morto para provar
que suas conjeturas estavam corretas. Aos poucos, a
nebulosidade se afastava de forma gradual de minha
mente e eu começava a ter uma vaga, mas ainda som-
bria percepção da verdade.
- Tudo isso parece-lhes estranho - continuou
Holmes - porque, no início das investigações, não de-
ram importância à única pista real que havia diante
83
dos olhos. Tive a grande sorte de captá-la e tudo o
mais que aconteceu só confirmou minha suposição ini-
cial e, sem dúvida, deu logicidade a toda a seqüência.
Assim, aquelas coisas que os deixavam perplexos, tor-
nando o caso ainda mais confuso, serviam para esclare-
cer e fortificar minhas conclusões. É um erro confun-
dir estranheza com mistério. O crime mais comum po-
de ser o mais misterioso, porque não apresenta caracte-
rísticas novas ou especiais capazes de fornecer outras
deduções. Este assassinato teria sido infinitas vezes
mais difícil de revelar se o corpo da vítima simplesmen-
te tivesse sido encontrado na rua sem nenhum desses
outré' e das características sensacionais que o tornaram
tão notável. Esses detalhes estranhos, em lugar de tor-
narem o caso mais difícil, acabaram fazendo-o mais fácil.
Gregson, que ouvira todo esse discurso com consi-
derável impaciência, não conseguiu mais se conter.
- Ouça aqui, Sr. Sherlock Holmes - disse. -
Estamos prontos a reconhecer que é um homem inteli-
gente e que tem seus próprios métodos de trabalho.
Mas, agora, queremos algo mais do que sermões e teo-
ria. A questão é apanhar o culpado. Expus minha ver-
são e parece que estava errado. Charpentier não pode-
rá ser acusado do segundo crime. Lestrade foi atrás
de seu homem, Stangerson, e parece que ele está erra-
do também. O senhor soltou insinuações aqui, suges-
tões ali, e parece saber mais do que nós. Chegou o mo-
mento em que nos sentimos com direito a perguntar-
lhe diretamente o que sabe a respeito. Pode dizer quem
é o culpado?
- Não posso deixar de reconhecer que Gregson
está certo, senhor - observou Lestrade. - Nós dois
tentamos, mas não tivemos sucesso. O senhor mencionou
* Em francês, no original. Tem o sentido de exagero, excessivo. (N. do T.)
84
mais de uma vez, desde que cheguei, que tinha todas
as coincidências necessárias. Seguramente, não irá ocul-
tá-las por mais tempo.
- Qualquer atraso na captura do assassino - co-
mentei - pode significar tempo para que cometa no-
vas atrocidades.
Embora pressionado por todos, Holmes parecia in-
deciso. Continuou a caminhar de um lado a outro da
sala, com a cabeça baixa e as escuras sobrancelhas cer-
radas, como costumava ficar quando mergulhado em
seus pensamentos.
- Não haverá mais assassinatos - disse, finalmen-
te, parando de modo abrupto e olhando para nós. -
Não se preocupem com isso. Perguntaram se eu sei o
nome do assassino. Eu sei. O que em si não significa
muito, se comparado com a possibilidade de pôr as
mãos nele. Isso eu espero fazer em breve. Tenho gran-
des esperanças de consegui-lo a minha maneira, mas é
coisa que exige um cuidado especial, porque terei que
tratar com um homem astuto e desesperado, apoiado,
conforme tive ocasião de provar, por outro tão esper-
to quanto ele. Enquanto esse homem não imaginar que
alguém está na pista, haverá alguma possibilidade de
apanhá-lo. Mas, se ele tiver a mais leve suspeita, muda-
rá de nome e desaparecerá num instante entre os qua-
tro milhões de habitantes desta cidade grande. Sem que-
rer ofendê-los, devo dizer que considero esses homens
melhores que a força policial, e por essa razão não soli-
citei a ajuda de vocês. Se eu fracassar, é claro que se-
rei o responsável por essa omissão. Já estou prepara-
do para isso. No momento, posso prometer que, quan-
do tiver condições de entrar em contato, sem com isso
comprometer meus planos, eu o farei.
Gregson e Lestrade não pareciam estar nada satis-
feifos nem com a promessa nem com a alusão deprecia-
85
tiva à polícia. O primeiro ficou vermelho até à raiz dos
seus cabelos cor de palha, enquanto os olhos redondos
do outro brilhavam pela curiosidade e pelo ressentimen-
to. Não chegaram a dizer nada, porque ouviu-se umà
batida na porta e o jovem Wiggins, porta-voz dos mole-
ques da rua, introduziu na sala sua figura desagradável
e insignificante.
- Por favor, senhor - disse, passando a mão na
testa. - O carro está esperando lá embaixo.
- Bom menino! - disse Holmes com brandura.
- Por que não adotam esse modelo na Scotland Yard?
- prosseguiu, tirando um par de algemas de aço de
uma gaveta. - Vejam como funciona bem essa mola.
Fecham-se num instante.
- O modelo antigo é bastante bom - observou
Lestrade -, se encontrarmos o homem em quem colo-
cá-las.
- Muito bem, muito bem - sorriu Holmes. -
O cocheiro poderá me ajudar com a bagagem. Peça-lhe
para subir, Wiggins.
Fiquei surpreso ao ouvir meu companheiro falar
como se fosse fazer uma viagem, uma vez que nada ti-
nha me falado a respeito. Havia uma mala na sala. Ele
pegou-a e começou a afivelá-la. Estava ocupado nisso,
quando o cocheiro entrou.
- Ajude-me com essa fivela, cocheiro - disse, fi-
cando de joelho sobre a mala, sem virar a cabeça.
O sujeito se aproximou, com um ar provocador e
parecendo aborrecido. Estendeu as mãos para ajudar.
Nesse instante, ouviu-se um estalido agudo, um ruído
metálico, e Sherlock Holmes pôs-se de pé.
- Cavalheiros! - gritou, com os olhos brilhan-
tes. - Quero apresentar-lhes o Sr. Jefferson Hope, as-
sassino de Enoch Drebber e Joseph Stangerson.
Aconteceu tudo num instante. Foi tão rápido que
86
não podia entender o que estava acontecendo. Tenho
uma lembrança nítida daquele momento: a expressão
triunfante de Holmes e o timbre de sua voz; a expres-
são assombrada e selvagem do cocheiro, olhando para
as algemas cintilantes que haviam surgido em seus pul-
sos como num passe de mágica.
Por um instante ficamos petrificados. Parecíamos
estátuas. Então, com um rugido desarticulado de fera,
o prisioneiro livrou-se de Holmes e precipitou-se em
direção à janela. Os vidros e os caixilhos não resistiram.
Mas antes que seu corpo transpusesse completamente
a janela, Gregson, Lestrade e Holmes saltaram sobre
ele como cães de caça. Trouxeram o homem de volta
e, então, teve início uma luta terrível. Ele era tão for-
te e tão furioso que os quatro fomos derrubados várias
vezes. Parecia ter a força convulsiva de um homem du-
rante um ataque epilético. Seu rosto e suas mãos esta-
vam terrivelmente machucados pelo vidro, mas a per-
da de sangue não diminuía sua resistência. Somente
quando Lestrade conseguiu segurar o lenço que o sujei-
to tinha ao pescoço, quase o estrangulando, é que ele
percebeu a inutilidade de lutar. Mesmo assim, só nos
sentimos seguros quando amarramos seus pés e suas
mãos. Feito isso, levantamos cansados e ofegantes.
- Temos seu carro esperando - disse Sherlock
Holmes. - Servirá para levá-lo à Scotland Yard. E,
agora, senhores - continuou com um sorriso amável
-, chegamos ao final do nosso pequeno mistério. Fi-
quem à vontade para fazer as perguntas que desejarem.
Não há perigo de que eu me recuse a respondê-las.
87
linha 1640
PARTE 2 A Terra dos Santos
1. Na Grande Planície Alcalina
Na região central do grande continente norte-ame-
ricano, estende-se um deserto árido e repulsivo que, du-
rante muito tempo, serviu de obstáculo ao avanço da
civilização. Da Sierra Nevada ao Nebrasca, do rio Yel-
lowstone, ao norte, até o Colorado, ao sul, formou-se
uma região de desolação e silêncio. A natureza, porém,
não é uniforme nesse lugar terrível. Ora apresenta altas
montanhas encimadas por neve, ora vales soturnos e
sombrios. Rios impetuosos correm para canyons escar-
pados. Imensas planícies ficam brancas de neve no in-
verno e, no verão, tornam-se cinzentas pela poeira alca-
lina e salitrosa que as recobre. Em tudo, no entanto,
persistem as características de uma região estéril, inaces-
sível e miserável.
Não há habitantes nesse lugar de desespero. Um
bando de Pawnees ou Blackfeet" pode, uma vez ou ou-
tra, atravessá-lo em busca de outras terras para caça,
mas o mais valente dos bravos se alivia ao deixar para
trás essas planícies aterrorizantes e voltar para as prada-
rias. O coiote se esconde na vegetação rasteira, o abu-
tre bate as asas pesadamente pelo ar e o desajeitado urso
· Tribos aborígenes dos Estados Unidos da América. (N. do T.)
91
cinzento se arrasta pelas ravinas escuras, colhendo o
que encontra pelas rochas para sobreviver. São os úni-
cos habitantes desse deserto.
Não se encontra no mundo inteiro vista mais tétri-
ca que essa que se descortina da encosta norte da Sier-
ra Blanco`. Até onde a vista alcança, estendem-se gran-
des faixas de terreno plano manchadas pela poeira alca-
lina e interrompidas por pequenos bosques formados
pela vegetação raquítica dos chaparrais. No extremo li-
mite do horizonte, ergue-se uma longa cadeia de picos
montanhosos com cumes escarpados salpicados de ne-
ve. Em tão grande extensão de terra, não se percebe si-
nal de vida ou de algo relacionado a ela. No metálico
azul do céu não voam pássaros nem há movimento no
chão agreste e cinzento. Reina por toda a parte um pro-
fundo silêncio. Por mais que se procure, não se conse-
gue ouvir o mais leve ruído nesse deserto imponente.
Nada existe além do silêncio, um silêncio absoluto e
opressor.
Foi dito não haver vida nessa vasta planície, o que
seria totalmente verdadeiro se uma trilha não se esten-
desse pelo deserto até desaparecer na distância, confor-
me se avista da Sierra Blanco. Está sulcada de rodas e
marcada pelos pés de inúmeros aventureiros. Ao lon-
go dessa senda, espalham-se objetos claros que brilham
ao sol, em contraste com a areia opaca e alcalina. Apro-
xime-se e observe! São ossos. Uns, grandes e grosseiros;
outros, menores e delicados. Os primeiros são de gado;
os últimos, de homens. Essa macabra rota desenvolve-
se por quase dois mil e quinhentos quilômetros e pode-
se segui-la pelos despojos daqueles que tombaram du-
rante o percurso.
No dia quatro de maio de mil oitocentos e quarenta e
* Conforme original. (N. do T.)
92
sete, um solitário viajante contemplava esse cenário.
Tinha tal aparência que poderia ser tomado por um gê-
nio ou um demônio daquela região. Um observador te-
ria dificuldade em dizer se tinha quarenta ou sessenta
anos. O rosto era magro e macilento e a pele, escura e
seca como um pergaminho, estava repuxada sobre os
ossos salientes. Os longos cabelos e barba escuros esta-
vam salpicados de branco, os olhos afundavam nas ór-
bitas e ardia neles um brilho pouco natural. A mão
que segurava o rifle era tão descarnada quanto a de
um esqueleto. Para manter-se em pé, precisou apoiar-
se na arma. No entanto a estatura alta e a compleição
dos ossos sugeriam uma constituição forte e firme. O
rosto muito magro, porém, e as roupas que pendiam
frouxas dos membros esqueléticos, denunciavam a cau-
sa daquela aparência decrépita e senil. O homem esta-
va morrendo... morrendo de fome e de sede.
Ele havia se arrastado pela ravina até essa peque-
na elevação na esperança de vislumbrar sinais de água.
Agora, a grande planície salgada se estendia diante de
seus olhos e, tarnbém, o cinturão longínquo de monta-
nhas agrestes, sem que visse qualquer vegetação que
comprovasse a presença de umidade. Não vislumbrava
em tão vasto panorama um único vestígio de esperan-
ça. Seus olhos arclentes e perscrutadores examinaram
o norte, o leste e o oeste e ele percebeu, então, que aque-
la errância chegaria a seu final e que ali, na aridez da-
quele deserto, ele iria morrer.
- Por que Wro aqui, em lugar de ser numa cama
macia, vinte anos atrás? - murmurou, sentando-se
ao abrigo de uma pedra.
Antes de sentar-se, descansou no chão a arma inú-
til e um fardo grande amarrado por um xale cinza que
viera carregando no ombro direito. Parecia ser demasia-
do pesado para as suas forças, porque quando o trou-
93
'
xe ao chão foi com uma certa violência. Nesse mstan-
te, ouviu-se do fardo cinzento um leve gemido e apare-
ceu uma carinha assustada, com olhos castanhos mui-
to brilhantes, seguida de dois punhos miúdos e muito
magros.
- Você me machucou! - disse em tom queixoso
uma voz infantil.
- Desculpe - respondeu o homem, penitencian-
do-se. - Não tive intenção.
Enquanto falava, desembrulhou o xale cinza, fazen-
do aparecer uma linda menininha de uns cinco anos
de idade. Os sapatos delicados e o elegante vestido ro-
sa com aventalzinho atestavam cuidados maternos. A
criança estava pálida e abatida, mas seus braços e per-
nas saudáveis demonstravam ter ela sofrido menos que
seu companheiro.
- Como está agora? - perguntou ele com ansie-
dade, porque ela continuava esfregando os cachos dou-
rados e curtos que lhe cobriam a parte de trás da cabeça.
- Dê um beijo que passa - disse a menina com
convicção, mostrando a ele a parte machucada. - É
o que a mamãe faz. Onde está ela?
- Sua mãe se foi, mas não vai demorar muito e
você estará com ela.
- Ela se foi?! - surpreendeu-se a menininha. -
Engraçado, não se despediu de mim. É o que sempre
faz, mesmo quando vai tomar chá com a tia. Já faz
três dias que não volta. Está muito seco, não? Não te-
mos água ou algo para comer?
- Não, não temos nada, querida. Você só preci-
sa ser um pouco paciente e logo tudo ficará bem. En-
coste sua cabecinha em mim, assim, e irá se sentir me-
lhor. Não é fácil falar com os lábios ressequidos, mas
acho melhor dizer a quantas andamos. O que é que vo-
cê tem aí?
94
- Uma coisa bonita! É muito linda! - exclamou
com entusiasmo a menina, mostrando-lhe dois fragmen-
tos de mica. - Quando voltarmos para casa, vou dá-
los a meu irmão Bob.
- Em breve você verá coisas mais belas do que
essa - disse o homem com firmeza. - É só esperar
um pouco. Eu ia lhe contar que... lembra quando dei-
xamos o rio?
- Claro.
- Bem, pensamos que iríamos encontrar outro rio
logo, veja só. Mas algo saiu errado. Compassos, ma-
pa, ou o que seja, não funcionaram. Não apareceu
água. Só temos algumas gotas para você e... e...
- E você não pode se lavar - falou ela com serie-
dade, olhando para seu rosto empoeirado.
- Não, nem beber. Veja, o Sr. Bender foi o pri-
meiro a ir; depois, foi o índio Pete; a seguir, a Sra.
McGregor; logo, Johnny Hones e, depois, querida, foi
sua mãe.
- Então, mamãe também morreu! - gritou a
menina, escondendo o rosto no avental e soluçando
amargamente.
- Sim, todos se foram, exceto você e eu. Então
pensei que poderíamos encontrar água nesta direção.
Pus você no ombro e caminhei até aqui. A situação,
porém, não parece ter melhorado nada. Não há muita
chance para nós agora.
- Quer dizer que vamos morrer? - perguntou a
criança, refreando os soluços e erguendo o rostinho ba-
nhado de lágrimas.
- Acho que é o que vai acontecer.
- Por que não me disse? - perguntou, rindo com
alegria. - Você me deu um susto. Se a gente vai mor-
rer, então logo estaremos com mamãe.
- Sim, querida, você estará.
95
- E você também. Eu vou contar-lhe como voce
foi bom para mim. Aposto que vai nos esperar na por-
ta do céu com um grande jarro de água e muitos boli-
nhos quentes, tostados dos dois lados, como eu e Bob
gostamos. Quando vai ser?
- Não sei... Mas não vai demorar.
Os olhos do homem estavam fixos no horizonte
ao norte. Na abóbada azul do céu, apareceram três pe-
quenas manchas que aumentavam de tamanho a cada
momento, tão rápido se aproximavam. Logo se viu que
eram três grandes pássaros. Voaram em círculos sobre
a cabeça dos dois andarilhos e pousaram em algumas
rocas acima deles. Eram abutres, as aves de rapina do
oeste. Esse aparecimento era o prenúncio da morte.
- Galos e galinhas - exclamou a menina com en-
tusiasmo, apontando para aqueles vultos agourentos e
batendo palmas para fazê-los voar. - Este lugar foi
feito por Deus?
- Claro que foi! - disse seu companheiro, surpre-
endido com a pergunta inesperada.
- Ele fez também Illinois e Missouri - continuou
a menina. - Acho que alguém mais fez este lugar, por-
que não é tão bem-feito como lá. Esqueceram de pôr
água e árvores.
- O que acha de fazermos uma oração? - per-
guntou o homem com pouca segurança.
- Ainda não é noite.
- Não importa. Não é muito comum, mas pode
ficar certa de que ele não se importa. Diga as orações
que rezava todas as noites na carroça, quando estáva-
mos na planície.
- Por que não reza também? - perguntou a me-
nina com curiosidade.
- Não lembro mais como se reza - respondeu.
- A última vez que rezei eu tinha a metade do tama-
96
nho deste rifle. Acho, no entanto, que nunca é tarde
demais. Comece a rezar que eu vou repetindo o que disser.
- Então precisa se ajoelhar e eu também - disse
ela, estendendo o xale no chão. - Você tem que pôr
as mãos assim. Faz a gente se sentir bem.
Era uma cena estranha, mas só havia abutres pa-
ra assisti-la. Lado a lado, ajoelharam no xale estreito
os dois andarilhos: a menina tagarela e o destemido e
calejado aventureiro. O rostinho rechonchudo dela e a
face angulosa e descarnada dele estavam voltados pa-
ra o céu sem nuvem, em oração piedosa dirigida a um
ser temível, diante do qual se prostravam. As duas vo-
zes, uma fina e clara, a outra grave e rouca, se uniam
em oração por clemência e perdão. A oração terminou
e os dois voltaram para a sombra da rocha. A criança
adormeceu aninhada contra o peito largo de seu prote-
tor. Ele velou seu sono por algum tempo, mas a nature-
za foi mais forte. Por três dias e três noites ele não se
havia permitido descanso ou repouso. Suas pálpebras
foram se fechando lentamente sobre os olhos fatigados
e a cabeça pendeu mais e mais sobre o peito, até que
a barba grisalha misturou-se aos cachos dourados da
criança e ambos caíram no mesmo sono profundo e sem
sonhos.
Tivesse o andarilho permanecido acordado por
mais meia hora e seus olhos teriam visto um estranho
espetáculo. Muito além dali, no extremo limite da pla-
nície alcalina, levantava-se uma poeira, muito fraca
no início, e difícil de ser distinguida das brumas da dis-
tância, mas que gradualmente ficava mais alta e mais
larga até formar uma sólida e bem definida nuvem. Es-
sa nuvem continuou a crescer até ficar evidente que só
poderia ser levantada por uma grande quantidade de
criaturas em movimento. Em terras mais férteis, um
observador concluiria tratar-se da aproximação de uma
97
daquelas grandes manadas de búfalos que pastam nas
pradarias. Obviamente, era impossível acontecer tal coi-
sa em região tão árida. À medida que o torvelino de
poeira chegava mais perto do solitário penhasco, onde
repousavam os dois viajantes, começavam a surgir da
areia os toldos de lona das carroças e as figuras dos ca-
valeiros armados. A aparição revelou-se uma grande
caravana avançando para oeste. Mas que caravana!
Quando sua vanguarda atingiu o sopé das montanhas,
a retaguarda ainda não era visível no horizonte. Por to-
da a imensidão da planície estendia-se o serpenteante
desfile de carroças e carroções, de homens montados e
homens a pé. Numerosas mulheres cambaleavam sob
a carga que levavam, crianças andavam vacilantes ao
lado das carroças ou espiavam entre os toldos claros.
Era evidente que aquele não era um grupamento co-
mum de imigrantes, mas algum povo nômade compeli-
do, pela força das circunstâncias, a procurar novas ter-
ras. Dele elevava-se para o ar um confuso alarido, um
ruído surdo produzido por aquela massa humana, mis-
turado ao rangido das rodas e ao relincho dos animais.
Forte como era, o barulho não foi suficiente para des-
pertar os dois cansados viajantes que dormiam mais
acima.
À frente da coluna iam uns vinte ou mais cavalei-
ros de feições graves e duras, vestidos com escuros tra-
jes de confecção caseira e armados com rifles. Quan-
do chegaram à base do penhasco, fizeram alto e forma-
ram um breve conselho entre si.
- As fontes ficam à direita, irmãos - disse um
deles, de lábios salientes, cabelo grisalho e rosto bem
barbeado.
- Seguindo pela direita de Sierra Blanco, alcança-
remos o Rio Grande - disse outro.
- Não temam a falta d'água! - exclamou um ter-
98
ceiro. - Aquele que a fez brotar das pedras não aban-
donará os seus eleitos!
- Amém! Amém! - responderam todos.
Iam prosseguir a viagem quando um dos mais jo-
vens e de visão mais apurada exclamou, apontando pa-
ra o penhasco escarpado acima deles. No alto da rocha,
ondulava algo rosado, cujo brilho contrastava com o
fundo cinza das pedras. Diante dessa visão, todos sofre-
aram os cavalos e prepararam as armas. Novos cavalei-
ros vieram a galope para reforçar a vanguarda. A pala-
vra "peles-vermelhas" estava em todas as bocas.
- Não pode haver índios aqui - disse o homem
mais velho, que parecia estar no comando.
- Já passamos pelos Pawnees e não há outras tri-
bos antes das grandes montanhas.
- Vou até lá verificar, Irmão Stangerson - disse
um do grupo.
- Eu também! Eu também! - gritaram muitas
vozes.
- Deixem seus cavalos aqui embaixo. Ficaremos
aguardando - disse o homem mais velho.
Nesse mesmo momento, os cavaleiros jovens des-
montaram, prenderam seus cavalos e iniciaram a subi-
da daquela íngreme encosta que despertara a curiosida-
de do grupo. Avançaram rápidos e silenciosos, com a
segurança e a habilidade de exploradores experientes.
Da planície lá embaixo, os outros podiam vê-los saltan-
do de pedra em pedra, até que seus vultos se destacas-
sem contra o céu. O jovem que dera o alarme os guia=
va. De repente, seus seguidores viram-no erguer os bra-
ços, como se algo o tivesse espantado. Quando se junta-
ram a ele, reagiram do mesmo modo diante da cena
que seus olhos descortinavam.
No pequeno platô que existia no cimo da elevação,
havia um grande e solitário rochedo. Nele estava esten-
99
dido um homem alto, com feições marcantes, barba
comprida e em estado de grande fraqueza. A placidez
do rosto e a regularidade da respiração revelavam que
dormia. A seu lado, estava deitada uma menininha.
Seus braços alvos e roliços abraçavam o pescoço escu-
ro e másculo do homem. A cabecinha de cabelos doura-
dos descansava contra o peito de sua túnica de veludi-
lho. Os lábios rosados da menina estavam entreabertos,
mostrando uma fileira regular de dentes brancos e um
sorriso travesso pousado nas feições infantis. Nas per-
ninhas claras e gordas vestia meias brancas e sapatos
finos com fivelas reluzentes, em estranho contraste com
os membros compridos e esquálidos de seu companhei-
ro. Na borda do rochedo, acima desse estranho par,
pousavam solenemente três abutres que, ao perceberem
os recém-chegados, soltaram roucos gritos de decepção
e alçaram vôo de imediato.
Os gritos das aves repugnantes despertaram os ador-
mecidos, que olharam ao redor espantados. O homem
pôs-se de pé vacilante e olhou para a planície, tão deso-
lada no momento em que adormecera e, agora, toma-
da por grande quantidade de homens e animais. Seu
rosto assumiu uma expressão de incredulidade e ele pas-
sou a mão ossuda sobre os olhos.
- Deve ser isto o que chamam de delírio - mur-
murou.
A menina ficou a seu lado, agarrada a sua túnica,
e nada dizia, mas olhava tudo com o olhar espantado
e inquiridor da infância.
O grupo de resgate, porém, logo os convenceu de
que seu aparecimento não era ilusão. Um deles pegou
a criança e colocou-a no ombro, enquanto ouiros dois
seguraram seu esquálido companheiro, ajudando-o a
dirigir-se às carroças.
- Meu nome é John Ferrier - explicou o andari-
100
lho. - Eu e a menina somos os sobreviventes de um
grupo de vinte e uma pessoas. Morreram todos de fo-
me e de sede lá na direção sul.
- É sua filha?
- Acho que agora é - respondeu desafiante. -
É minha porque eu a salvei. Ninguém vai tirá-la de mim.
Chama-se Lucy Ferrier, de agora em diante. E vocês,
quem são? - prosseguiu, olhando com curiosidade pa-
ra seus robustos e bronzeados salvadores. - Parece
que formam uma multidão.
- Somos uns dez mil - dísse um dos jovens. -
Somos os perseguidos filhos de Deus, os escolhidos do
Anjo Merona.
- Nunca ouvi falar nele - disse o andarilho. -
Parece ter escolhido um bando de gente.
- Não zombe do que é sagrado - disse o outro,
ressentido. - Acreditamos nas sagradas escrituras gra-
vadas em caracteres egipcios em lâminas de ouro bati-
do e entregues ao santo Joseph Smith, em Palmira. Vie-
mos de Nauvoo, no estado de Illinois, onde erguemos
nosso templo. Buscamos um refúgio para nos abrigar
dos homens víolentos e sem Deus, mesmo que esse abri-
go seja no coração do deserto.
O nome Nauvoo evidentemente evocou lembranças
em John Ferrier.
- Entendo - disse. - Vocês são mórmons.
- Sim, somos mórmons - responderam a uma
só voz.
- E para onde estão indo?
- Não sabemos. A mão de Deus nos guia na pes-
soa de nosso Profeta. Você irá vê-lo. Ele dirá o que fa-
remos com você.
Estavam, agora, na base da elevação e uma multi-
dão de peregrinos os cercavax:l: mulheres de rostos páli-
dos e humildes; crianças saudáveis e alegres; homens
101
serios e impacientes. Muitas toram suas exclamações
de surpresa e de piedade quando perceberam a tenra
idade da menina e o estado miserável do homem. A es-
colta de ambos não parou, foi em frente, seguida por
grande quantidade de mórmons, até chegar a uma car-
roça que se distinguia das demais pelo tamanho maior
e pela aparência suntuosa e cuidada. Puxavam-na seis
cavalos, enquanto as demais estavam atreladas a dois
ou, no máximo, quatro animais. Ao lado do cocheiro
sentava-se um homem que não devia ter mais do que
trinta anos, mas que tinha a cabeça sólida e a expres-
são resoluta próprias de um líder. Estava lendo um li-
vro de lombada escura, mas deixou de fazê-lo com a
aproximação de toda aquela gente. Ouviu atentamente
o relato do episódio. Voltou-se então para os dois extra-
viados.
- Se nós os levarmos conosco - falou com sole-
nidade -, será como crentes em nossa religião. Não
temos lobos em nosso rebanho. Será melhor que seus
ossos se calcinem no deserto a que se transformem no
início de putrefação que irá corromper a fruta toda.
Virão conosco sob essa condição?
- Irei com vocês sob quaisquer condições - res-
pondeu Ferrier com tal ênfase que mesmo os graves
Anciãos' não puderam evitar um sorriso.
Somente o líder manteve seu ar severo e impressio-
nante.
- Encarregue-se dele, Irmão Stangerson - disse.
- Dê-lhe comida e bebida, e à criança também. Igual-
mente será responsabilidade sua iniciá-lo em nosso cre-
do sagrado. Já nos atrasamos muito. Em frente! Em
frente para Sião!
- Em frente! Em frente para Sião! - gritou a
* Oficiais religiosos que ocupam alto cargo na hierarquia da Igreja Mór-
mon. (N. do T.)
102
multidão de mormons.
As palavras ecoaram ao longo da extensa carava-
na, passando de boca em boca até definhar em um con-
fuso murmúrio a distância. Estalaram os chicotes, as
rodas rangeram. As carroças começaram a mover-se e
logo a caravana serpenteava mais uma vez deserto afora.
O Ancião a quem os dois resgatados haviam sido
confiados levou-os para sua carroça, onde uma refeição
os aguardava.
- Vocês devem ficar aqui - disse. - Em poucos
dias estarão recuperados dessa exaustão. Enquanto is-
so, lembrem-se de que, de agora em diante, pertencem
a nossa religião para sempre. Foi Brigham Young quem
disse, e ele falou com a voz de Joseph Smith, que é a
voz de Deus.
103
2. A flor de Utah

Este não é o lugar para rememorar as provações
e as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes mór-
mons até alcançar seu paraíso final. Das margens do
Mississípi às escarpas ocidentais das Montanhas Rocho-
sas, eles lutaram com uma persistência quase sem prece-
dentes na história. Os selvagens, os animais ferozes, a
fome, a sede, a fadiga, a doença, todos os obstáculos
que a natureza podia colocar no caminho foram venci-
dos pela tenacidade anglo-saxônica. No entanto a lon-
ga viagem e os freqüentes temores abalaram mesmo
os mais fortes entre eles. Não houve um só que não ca-
ísse sobre os joelhos, em fervorosa oração, à vista do
amplo vale de Utah banhado de sol, e ouvindo da bo-
ca de seu líder que aquela era a terra prometida e que
aqueles campos virgens seriam deles para todo o sempre.
Young logo revelou-se tão hábil administrador quan-
to chefe determinado. Mapas e cartas foram prepara-
dos projetando a futura cidade. Nos arredores, as ter-
104
ras roram divididas e distribuídas segundo a posição
de cada indivíduo. O comerciante dedicou-se a seu ne-
gócio e o artesão a seu ofício. Ruas e praças surgiram
na cidade como num passe de mágica. No campo, ho-
mens cercavam e drenavam; aravam e plantavam.
O verão seguinte encontrou a terra coberta pelo
ouro dos trigais. Tudo prosperava naquela estranha co-
munidade. Acima de tudo, o grande templo, construí-
do no centro da, cidade, tornava-se cada vez maior e
mais alto. Desde as primeiras luzes da manhã até as
últimas do anoitecer, as batidas do martelo e o ruído
das serras er am incessantes no monumento que os imi-
grantes ergueram àquele que os conduzira sãos e salvos
por entre tantos perigos.
Os resgatados, John Ferrier e a menina que parti-
lhara de sua sorte e tinha sido adotada por ele como
filha, acompanharam os mórmons até o fim de sua pe-
regrinação. A pequena Lucy Ferrier ficava muito à von-
tade na carroça do Anciãó Stangerson, moradia que ela
dividia com as três esposas do mórmon e com seu filho,
um rapazinho de doze anos, teimoso e precoce. Tendo
superado, com a facilidade da infância, o choque causa-
do pela perda da mãe, Lucy logo se tornou a preferi-
da das mulheres e adaptou-se à nova vida na casa am-
bulante de teto de lona. Enquanto isso, Ferrier, recupe-
rado de suas privações, distinguia-se como um guia
útil e um infatigável caçador.
Conquistou tão rapidamente a estima de seus no-
vos companheiros que, quando chegaram ao fim da pe-
regrinação, foi decidido, por unanimidade, que ele rece-
beria uma porção de terra tão vasta e tão fértil quan-
to qualquer um dos colonos, com exceção do próprio
Young, e de Stangerson, Kemball, Johnston e Drebber
,
que eram os quatro oficiais mais importantes da Igreja.
Na terra que assim adquiriu, John Ferrier construiu
105
uma sólida casa de toros de madeira, que receoeu tan-
tos acréscimos em anos sucessivos que acabou se trans-
formando numa espaçosa moradia. Era um homem do-
tado de senso prático, tão hábil nos negócios quanto
no uso das mãos. Sua férrea constituição permitia-lhe
trabalhar dia e noite, lavrando e melhorando suas ter-
ras. Sendo assim, seu lote e tudo que pertencia a ele
prosperaram extraordinariamente. Em três anos, era o
de melhor condição entre seus vizinhos, em seis, um su-
jeito abastado, em nove, um homem rico e, em doze,
não havia, em toda Salt Lake City, meia dúzia de ho-
mens que pudessem se comparar com ele. Do grande
mar interior até as distantes montanhas Wahsatch não
existia nome mais conhecido que o de John Ferrier.
Em apenas um ponto, apenas um, ele feria as sus-
cetibilidades de seus confrades. Não houve argumento
ou persuasão que o induzisse a formar um harém co-
mo seus companheiros. Nunca justificou a persistente
recusa, satisfazendo-se em manter firme e resolutamen-
te sua decisão. Alguns o acusavam de ter pouca convic-
ção religiosa; outros, de ser tão ávido por dinheiro que
relutava em aumentar despesas. Outros, ainda, falavam
em um antigo amor, e numa moça loira que havia se
consumido de paixão na costa atlântica. Fosse qual fos-
se a razão, Ferrier permaneceu radicalmente celibatário.
Em qualquer outro aspecto, porém, ele vivia de acor-
do com a religião da jovem comunidade, conquistan-
do a fama de ser um homem reto e ortodoxo.
Lucy Ferrier cresceu na casa de madeira e em tu-
do assistia seu pai adotivo. O ar puro da montanha e
o bálsamo dos pinheiros foram a ama e mãe da meni-
na. Ano após ano, ela ficava mais alta e mais forte, o
rosto mais corado e o passo mais elástico. Muitos da-
queles que passavam pela estrada principal, ao longo
das terras de Ferrier, reviveram pensamentos esqueci-
106
dos no tempo do mar aquela figura jovem e ágil passe-
ando pelos trigais ou galopando no cavalo de seu pai
com a desenvoltura e a graça de uma verdadeira filha
do oeste. Foi assim que o botão se transformou em
flor, e o ano em que seu pai foi o mais rico entre to-
dos os fazendeiros foi o mesmo em que ela se tornou
a mais bela moça americana que poderia ser encontra-
da na costa do Pacífico.
Não foi o pai, no entanto, o primeiro a descobrir
que a menina havia se transformado em mulher. Em
tais casos, isso raramente acontece. É uma mudança
muito sutil e demasiado gradual para ser medida por datas.
Menos do que todos percebe-o a própria jovem,
antes que o timbre de uma voz ou o toque de uma mão
deixe seu coração pulsando forte dentro do peito. Só
então ela descobre, com um misto de orgulho e temor,
que uma natureza nova e mais forte despertou dentro
dela. Poucas não evocam esse dia, lembrando o peque-
no acidente que anunciou o surgimento dessa vida no-
va. Na vida de Lucy Ferrier, o episódio foi bastante sé-
rio em si mesmo, além da influência futura que teria
em seu destino e no de muitas outras pessoas.
Era uma cálida manhã de junho e os Santos dos
Últimos Dias estavam tão ocupados quanto as abelhas,
cuja colméia haviam escolhido para seu emblema. Nos
campos e nas ruas soava o mesmo zunido de trabalho
humano. Desciam as estradas poeirentas longas filas
de mulas carregadas, todas a caminho do oeste, porque
irrompera a febre de ouro na Califórnia, e a rota por
terra atravessava a cidade dos Eleitos. Havia também
rebanhos de ovelhas e bois vindos de pastagens distan-
tes, filas de imigrantes cansados, homens e cavalos, to-
dos fatigados pela interminável jornada.
Por entre essa mistura, abrindo caminho com a
habilidade de uma amazona perfeita, galopava Lucy
107
Ferrier, com o lindo rosto corado pelo exercicio e os
longos cabelos castanhos soltos ao vento. O pai lhe de-
ra uma incumbência para cumprir na cidade e ela esta-
va empenhada nisso, como em tantas outras vezes, com
toda a intrepidez da juventude, pensando apenas em
sua tarefa e em como agiria. Os empoeirados viajantes
a olhavam com espanto e mesmo os índios impassíveis,
enrolados em suas peles, cederam em seu costumeiro
estoicismo, encantando-se com a beleza da moça cara-
pálida.
Ela já havia atingido a entrada da cidade quando
se deparou com a estrada bloqueada por uma grande
manada, conduzida por meia dúzia de vaqueiros rudes
vindos das planícies. Impaciente, tentou ultrapassar es-
se obstáculo, avançando com seu cavalo no que parecia
ser um vazio no meio do gado. Mal ela havia entrado,
no entanto, e os animais fecharam-se atrás dela, deixan-
do-a inteiramente cercada pela corrente em movimen-
to de gado de chifres longos e olhos ferozes.
Acostumada como era a lidar com gado, ela não
se alarmou, aproveitando todas as oportunidades para
avançar com seu cavalo, na esperança de abrir caminho.
Por desgraça, tenha sido por acidente ou desígnio, os
chifres de uma das reses bateram violentamente nos flan-
cos do cavalo, excitando-o até a loucura. De imediato,
o animal empinou-se nas patas traseiras, relinchando
com fúria, e pôs-se a saltar e a corcovear de tal manei-
ra que teria derrubado qualquer cavaleiro menos expe-
riente. A situação era muito perigosa. Cada pulo do
cavalo assustado o colocava contra os chifres novamen-
te, deixando-o mais enlouquecido. Tudo que ela pôde
fazer foi manter-se sobre a sela, uma vez que um escor-
regão significaria uma morte terrível sob as patas de
animais pesados e enfurecidos.
Não sendo acostumada a enfrentar emergências, sua
108
cabeça começou a dar voltas e foi perdendo o contro-
le das rédeas. Sufocada pela crescente nuvem de poei-
ra e também pela exalação dos animais em luta, ela te-
ria desistido de resistir e se desesperado, se uma voz
amiga, a seu lado, não lhe garantisse que seria socorri-
da. No mesmo momento, uma mão morena e musculo-
sa conteve pelas rédeas o cavalo assustado, forçando
caminho entre a manada até levá-la para fora dali.
- Espero que não esteja ferida, senhorita - dis-
se com respeito seu salvador.
Ela olhou para seu rosto escuro e enérgico e riu
com vontade.
- Estou terrivelmente assustada - disse com ar
ingênuo. - Quem diria que Poncho ficaria com medo
de um punhado de vacas?
- Graças a Deus, você conseguiu se manter na se-
la - disse o rapaz com ar sério.
Era um rapaz alto, de aparência rude, montava
um cavalo forte, vestia as roupas toscas de um caçador
e levava um longo rifle sobre o ombro.
- Você deve ser a filha de John Ferrier - obser-
vou. - Vi quando saiu cavalgando de casa. Quando
estiver com ele, pergunte-lhe se lembra dos Jefferson
Hope, de Saint Louis. Se é o mesmo Ferrier, meu pai
e ele foram muito ligados.
- Não seria melhor ir lá em casa fazer-lhe a per-
gunta diretamente? - perguntou com cuidado.
O rapaz pareceu gostar do que ela sugeria. Seus
olhos escuros brilharam de satisfação.
- Farei isso - disse. - Passamos dois meses nas
montanhas e não estamos nada apresentáveis para visi-
tas. Terá que nos aceitar como estamos.
- Papai tem muito a agradecer-lhe e eu também
- respondeu. - Ele me quer múito. Se aquele gado
me pisoteasse, ele jamais se recuperaria.
109
- Nem eu - disse o rapaz.
- Você? Bem, não vejo em que faria alguma dife-
rença para você. Sequer é nosso amigo.
O rosto do rapaz ficou tão triste com a observação
que fez Lucy Ferrier sorrir.
- Não quis dizer isso - ela comentou. - Natu-
ralmente, a partir de agora você é um amigo. Venha
nos ver. Agora preciso ir ou papai não me confiará
mais seus interesses. Adeus.
- Adeus - respondeu ele, erguendo o chapéu de
abas largas e inclinando-se sobre a mão miúda da jovem.
Ela fez o cavalo dar volta, chicoteou-lhe com o re-
benque e disparou como uma flecha pela ampla estra-
da, erguendo uma nuvem de poeira.
O jovem Jefferson Hope voltou para junto de seus
companheiros triste e taciturno. Estivera com eles nas
Montanhas Nevadas em busca de prata e voltavam ago-
ra para Salt Lake City na esperança de levantar capital
suficiente para a exploração de veios que haviam desco-
berto. Como os outros, havia se fixado nesse pensamen-
to até que o repentino incidente o levasse para outra
direção.
A visão daquela bela moça, franca e saudável co-
mo as brisas da Sierra, atiçara intensamente seu cora-
ção inflamado e selvagem. Quando ela desapareceu de
sua vista, percebeu que uma crise irrompera em sua vi-
da e que nem as especulações com a prata nem qual-
quer outra questão seriam de tanta importância para
ele como este novo e absorvente interesse. O amor que
brotava em seu coração não era a repentina e volúvel
fantasia de um rapazinho, mas a paixão feroz e selva-
gem de um homem de vontade forte e temperamento
dominador. Costumava ter sucesso em todos os empre-
endimentos. Jurou a si mesmo que não falharia agora,
110
se a vitória dependesse do esforço e da perseverança
de que um homem é capaz de ter.
Visitou John Ferrier nessa mesma noite, e muitas
vezes depois, até seu rosto se tornar familiar na proprie-
dade. Isolado no vale e absorvido em seu trabalho,
John tivera poucas oportunidades de saber o que se
passara no mundo exterior nos últimos doze anos. Jef-
ferson Hope pôde informá-lo a respeito de uma manei-
ra tal que interessou tanto ao pai quanto à filha. Havia
sido pioneiro na Califórnia e contou muitas histórias
estranhas sobre fortunas feitas e desfeitas naqueles dias
desregrados. Também fora batedor, laçador, explora-
dor de prata e vaqueiro. Onde quer que houvesse aven-
turas, lá estava Jefferson Hope. Em pouco tempo, tor-
nou-se o amigo preferido do velho fazendeiro, que dis-
corria sobre suas qualidades com eloqüência. Nessas
ocasiões, Lucy ficava em silêncio, mas o rosto corado
e a felicidade nos olhos brilhantes demonstravam com
bastante clareza que seu jovem coração não lhe perten-
cia mais. O pai, sem malícia, pode não ter observado
esses sintomas, mas, com certeza, não passaram desper-
cebidos ao homem que havia conquistado a afeição da
moça.
Num final de tarde de verão, ele veio galopando
pela estrada e parou ao portão. Lucy estava na entra-
da da casa e veio encontrá-lo. Hope jogou as rédeas so-
bre a cerca e percorreu com rapidez a senda que condu-
zia à casa.
- Vou partir, Lucy - disse, tomando as mãos
da moça nas suas, e olhando seu rosto com ternura.
- Não vou lhe pedir que venha comigo agora, mas es-
tará pronta para me acompanhar quando eu voltar?
- E quando será? - perguntou ela, enrubescen-
do e rindo.
- Daqui a dois meses, no máximo. Virei buscá-
111
la e você virá comigo, minha querida. Ninguem pode-
rá impedir isso.
- E papai? - perguntou.
- Ele já consentiu, contanto que mantenhamos
aquelas minas rendendo. Não tenho medo quanto a isso.
- Bem, é claro que se você e papai já combinaram
tudo, não há mais nada a dizer - murmurou ela com
o rosto apoiado no peito largo do rapaz.
- Graças a Deus! - disse ele com voz rouca, in-
clinando-se para beijá-la. - Está tudo resolvido, então.
Quanto mais eu me demorar, mais difícil será partir.
Estão me esperando no canyon. Adeus, minha queri-
da... adeus! Voltará a me ver dentro de dois meses.
Separou-se dela enquanto falava e, saltando sobre
o cavalo, galopou com fúria, sem olhar ao redor, co-
mo se temesse abalar sua decisão se contemplasse o
que estava deixando. Ela permaneceu no portão, olhos
postos nele até que desaparecesse na distância. Cami-
nhou, então, de volta a casa e era a moça mais feliz
de todo Utah.
112
3. John Ferrier fala com o Profeta

Três semanas se passaram desde que Jefferson Ho-
pe e seus companheiros haviam partido de Salt Lake
City. John Ferrier sentia pesar-lhe o coração quando
pensava na volta do jovem e na iminente perda da filha
adotiva. No entanto o rosto feliz e radiante da moça
reconciliou-o com a idéia melhor do que qualquer argu-
mento. Bem no fundo de seu resoluto coração, ele já
tinha decidido que nada o induziria a permitir que sua
filha casasse com um mórmon. Não considerava esse
tipo de união um casamento, mas sim uma vergonha e
uma desgraça. Fosse qual fosse sua opinião a respeito
da doutrina mórmon, sobre esse ponto era inflexível.
Não podia, porém, abrir a boca sobre o assunto, por-
que, naqueles dias, era perigoso expor uma opinião he-
terodoxa na Terra dos Santos.
Sim, era muito perigoso. Tanto que mesmo os
mais santos mal ousavam sussurrar suas opiniões reli-
giosas e só o faziam com respiração contida, temendo
113
que suas palavras fossem mal interpretactas e provocas-
sem uma rápida reação contra elas. As antigas vítimas
da perseguição haviam se transformado, agora, em per-
seguidores, na acepção mais terrível do termo. Nem a
Inquisição de Sevilha, nem o Vehmgericht alemão, se-
quer as Sociedades Secretas da Itália colocaram em mo-
vimento uma máquina tão formidável quanto a que es-
tendia sua sombra sobre o estado de Utah.
Sua invisibilidade e o mistério que a cercava faziam
a organização duplamente terrível. Parecia ser oniscien-
te e onipotente, embora não fosse vista ou ouvida. O
homem que se levantasse contra a Igreja desaparecia,
e ninguém ficava sabendo para onde tinha ido nem o
que lhe acontecera. A esposa e os filhos ficavam aguar-
dando-o em casa, mas ele nunca voltava para contar
como havia se saído nas mãos de seus juízes secretos.
Uma palavra precipitada ou um ato irrefletido eram se-
guidos pelo aniquilamento e, no entanto, ninguém sa-
bia qual a natureza daquele poder suspenso sobre a ca-
beça de todos. Não surpreende que as pessoas vivessem
tremendo de medo e que, mesmo no meio do deserto,
não ousassem murmurar as dúvidas que as oprimiam.
A princípio, esse vago e terrível poder era exerci-
do apenas contra os recalcitrantes que, tendo abraça-
do a fé mórmon, quiseram, mais tarde, pervertê-la ou
abandoná-la. Em breve, porém, aumentou seu raio de
ação. O número de mulheres adultas escasseava, e poli-
gamia sem uma população feminina que a suporte não
passa de uma doutrina estéril. Começaram, então, a
surgir estranhos rumores. Comentava-se que imigrantes
foram assassinados e suas terras saqueadas em regiões
onde não havia índios. Em seguida, surgiam novas mu-
lheres no harém dos Anciãos, mulheres que choravam
e definhavam, trazendo nos rostos os traços de um hor-
ror interminável. Andarilhos que permaneciam nas
114
montanhas falavam de bandos de homens armados, em-
buçados, silenciosos e escondidos que passavam por
eles na escuridão. Tais histórias e rumores ganharam
forma e substância, afirmação e confirmação, e, final-
mente, um nome definido. Até hoje, nos solitários ran-
chos do oeste, o nome do Bando dos Danitas ou dos
Anjos Vingadores é algo sinistro e agourento.
O conhecimento mais profundo da organização
que produzia feitos tão terríveis só servia para aumen-
tar, em lugar de diminuir, o horror que inspirava na
mente das pessoas. Não se sabia quem era membro des-
sa sociedade implacável. Os nomes dos que participa-
vam nas façanhas de sangue e violência praticadas por
razões pretensamente religiosas eram guardados em ab-
soluto segredo. O melhor amigo a quem se confidencias-
sem dúvidas, a respeito do Profeta e de sua missão, po-
dia ser um dos que surgiria à noite para infligir a fer-
ro e fogo uma horrível reparação. Por isso, todos te-
miam seu vizinho e ninguém falava das coisas que se-
cretamente levavam dentro de si.
Uma bela manhã, John Ferrier estava de saída pa-
ra os campos de trigo quando ouviu o estalido do ferro-
lho e, olhando pela janela, viu um homem de meia-ida-
de, forte, cabelos claros, caminhando pela senda. O co-
ração subiu-lhe à boca, pois era ninguém mais ninguém
menos que o grande Brigham Young em pessoa. Pertur-
bado, porque sabia que essa visita não pressagiava na-
da de bom, Ferrier correu à porta para saudar o chefe
mórmon. Este, porém, recebeu com frieza as sauda-
ções e seguiu o donó da casa até a sala de visitas com
uma expressão de severidade.
- Irmão Ferrier - disse ele, pegando uma cadei-
ra e olhando o fazendeiro fixamente, por sob os cílios
claros -, os verdadeiros crentes têm sido bons amigos
seus. Nós o encontramos faminto no deserto e compar-
115
tilhamos com você nossa comida, nós o trouxemos a
salvo para o Vale dos Escolhidos. Nós lhe demos uma
ótima porção de terra e permitimos que enriquecesse
sob nossa proteção. Não é verdade?
- Sem dúvida - respondeu John Ferrier.
- Como retribuição a tudo isso só apresentamos
uma condição: isto é, que você deveria abraçar a verda-
deira fé, adaptando-se a seus costumes. Isso foi o que
você prometeu fazer e, se é verdade o que dizem, é is-
so que tem negligenciado.
- Como negligenciei? ! - perguntou Ferrier, er-
guendo as mãos, indignado. - Não contribuí para o
fundo comum? Não freqüento o templo? Não...?
- Onde estão suas esposas? - perguntou Young,
olhando ao redor. - Chame-as que quero cumprimen-
tá-las.
- É verdade que não me casei - respondeu Fer-
rier. - Mas as mulheres eram poucas e muitos reclama-
vam mais do que eu. Eu não estava só, tinha minha fi-
lha para me atender.
- É dessa filha que quero lhe falar - disse o che-
fe mórmon. - Ela cresceu e se tornou a flor de Utah
e tem agradado os olhos de homens de alta posição nes-
ta terra.
John Ferrier reprimiu um gemido.
- Há histórias sobre elamas quais prefiro não acre-
ditar... histórias de que estaria prometida a um homem
que não é da nossa fé. Deve ser mexerico de gente deso-
cupada. Qual é o décimo terceiro mandamento da lei
do santo Joseph Smith? "Toda moça de verdadeira fé
deve casar com um dos eleitós; se ela se unir a um in-
fiel, cometerá um grave pecado." Sendo assim, não é
possível que você, professando a verdadeira religião,
permita que sua filha viole nossas leis.
116
Fem i~errier não respondeu, ficou mexendo nervo-
samente no chicote.
- Toda a sua fé será testada a partir desse único
ponto. Assim é que ficou decidido pelo Sagrado Conse-
lho dos Quatro. Sua filha é jovem e não queremos que
se case quando tiver cabelos grisalhos, mas tampouco
será privada de escolha. Nós, Anciãos, já temos muitas
novilhas', mas nossos filhos precisam ter as suas. Stan-
gerson tem um filho e Drebber também. Qualquer um
dos dois receberia com agrado sua filha em casa. Dei-
xe-a escolher entre os dois. São jovens e ricos e ambos
professam a verdadeira religião. O que diz a isso?
Ferrier permaneceu em silêncio por algum tempo
com o cenho franzido.
- Conceda-nos algum tempo - disse afinal. -
Minha filha é muito jovem... mal tem idade para casar.
- Ela terá um mês para escolher - disse Young,
erguendo-se da cadeira. - No final desse prazo ela de-
verá dar sua resposta.
Quando ia cruzar a porta, ele se voltou com o ros-
to vermelho e os olhos fuzilantes.
- Teria sido melhor para você, John Ferrier -
vociferou -, que você e ela estivessem calcinando os
ossos na Sierra Blanco do que opondo suas fracas von-
tades às ordens dos Quatro Sagrados!
Com um ameaçador gesto de mão cruzou a porta,
e Ferrier ouviu seus passos pesados esmagando o casca-
lho da senda.
Ainda estava sentado com o cotovelo apoiado no
joelho, pensando em como falaria para sua filha sobre
esse assunto, quando sentiu o toque macio de uma mão
sobre a sua e, erguendo os olhos, viu-a em pé a seu la-
* Herber C. Kemball, em um de seus sermões, empregou esse afetuoso
epíteto para referir-se a suas cem esposas. (N. do A.)
117
do. Um olhar a seu rosto pálido e assustado reveiou-
Ihe que ela escutara o que havia acontecido.
- Não pude evitar - disse, em resposta a seu
olhar. - A voz dele ecoava pela casa. Oh, pai, pai, o
que vamos fazer?
- Não se assuste - respondeu ele, puxando-a pa-
ra si e acariciando com a mão grande e calejada os ca-
belos castanhos da moça. - Resolveremos isso de um
jeito ou de outro. Você não mudou de idéia a respeito
do rapaz, não foi?
Um soluço e um aperto em sua mão foram a úni-
ca resposta dela.
- Não, claro que não. E eu não acreditaria, mes-
mo que você dissesse o contrário. É um belo rapaz e é
cristão, o que o faz melhor que esses sujeitos daqui,
apesar de todas as suas rezas e sermões. Há um grupo
saindo para Nevada amanhã. Vamos dar um jeito de
enviar uma mensagem a ele para que saiba a situação
em que estamos. Se conheço esse rapaz, ele virá para
cá com mais rapidez que o telégrafo elétrico.
Lucy riu entre lágrimas da comparação do pai.
- Quando vier, ele nos aconselhará sobre o me-
lhor a fazer. Mas é com você, pai, que estou preocupa-
da. A gente ouve... ouve tantas histórias horríveis en-
volvendo pessoas que se opuseram ao Profeta. Sempre
acontecem coisas terríveis a elas.
- Mas nós ainda não nos opusemos a ele - res-
pondeu o pai. - Teremos tempo para tomar precau-
ções quando isso acontecer. Temos um mês inteiro dian-
te de nós. No final do prazo, é melhor fugirmos de Utah.
- Ir embora de Utah?
- Não temos outra coisa para fazer.
- E as terras?
- Vamos reunir todo o dinheiro que pudermos
e deixar o resto para trás. Para falar a verdade, Lucy, não é
118
a primeira vez que penso em fazer isso. Não me agra-
da ceder para homem nenhum, como fazem esses sujei-
tos para o Profeta. Sou um americano livre e tudo is-
so é novo para mim. Acho que sou velho demais para
mudar. Se ele se meter nesta propriedade, pode receber
uma carga de chumbo.
- Mas eles não vão nos deixar sair - objetou a
moça.
- Espere até Jefferson voltar e resolveremos tu-
do. Até lá, não se desgaste, querida, nem fique de olhos
inchados, senão ele vai cobrar isso de mim quando
olhar para você. Não há nada a temer e não há perigo
algum.
John Ferrier pronunciou essas palavras de confor-
to em tom confiante, mas Lucy não pôde deixar de no-
tar que, aquela noite, ele fechou as portas com uma
atenção especial e, também cuidadosamente, limpou e
carregou a antiga e enferrujada carabina que ficava pen-
durada na parede de seu quarto.
119
4. Fuga para a Vida

Na manhã seguinte à entrevista com o Profeta
mórmon, John Ferrier foi a Salt Lake City e, tendo en-
contrado a pessoa que conhecia e que estava a caminho
das Montanhas Nevadas, confiou-lhe sua mensagem a
Jefferson Hope. Nela relatava ao jovem o iminente pe-
rigo que os ameaçava, explicando a importância de seu
regresso. Feito isso, sentiu-se mais tranqüilo e voltou
para a fazenda mais aliviado.
Ao aproximar-se de sua casa, surpreendeu-se ao
ver cavalos atados às traves do portão. Mais surpreso
ficou ao entrar, quando encontrou dois rapazes instala-
dos em sua sala de visitas. Um deles, de rosto compri-
do e pálido, acomodara-se na cadeira de balanço, dei-
xando os pés apoiados sobre a estufa. O outro, um jo-
vem com pescoço de touro, feições grosseiras e volumo-
sas, estava em pé, frente à janela, com as mãos enfia-
das nos bolsos, assoviando um hino conhecido. Ambos
cumprimentaram Ferrier com um aceno de cabeça no
120
momento em que ele entrou. U que estava na cadeira
de balanço iniciou a conversa.
- Talvez não nos conheça - disse ele. - Este
aqui é o filho do Ancião Drebber e eu sou Joseph Stan-
gerson. Viajamos juntos pelo deserto quando o Senhor
estendeu-lhe sua mão, trazendo-o para o rebanho verda-
deiro.
- Como fará com todas as nações quando achar
que chegou a hora - disse o outro com voz nasalada.
- Ele mói devagar, mas sua farinha é finíssima.
John Ferrier assentiu com frieza. Já imaginava
quem seriam seus visitantes.
- Viemos aqui a conselho de nossos pais - conti-
nuou Stangerson - a fim de pedir a mão de sua filha
para aquele de nós que o senhor e ela preferirem. Co-
mo tenho apenas quatro esposas e o irmão Drebber,
aqui, tem sete, parece-me que sou eu quem necessita mais.
- Nada disso, Irmão Stangerson! - exclamou o
outro. - A questão não é quantas esposas temos, mas
quantas podemos sustentar. Meu pai doou-me seus
moinhos e, de nós dois, sou o mais rico.
- No entanto minhas perspectivas são melhores
- disse o outro, acalorado. - Quando o Senhor cha-
mar meu pai, herdarei seu curtume e sua fábrica de pro-
dutos de couro. Além disso, sou o mais velho e o de
melhor posto na Igreja.
- Deixemos que a moça decida - replicou o jo-
vem Drebber, sorrindo afetadamente para sua própria
imagem refletida na vidraça. - Deixaremos isso por
conta dela.
Durante esse diálogo, John Ferrier permaneceu à
porta, fervendo de raiva, mal contendo a vontade de
chicotear as costas de seus visitantes com o rebenque
que segurava.
- Um momento - disse por fim, aproximando-
121
se deles com passadas largas. - CZuando minha filha
os chamar, podem vir, mas até lá não quero ver suas
caras de novo.
Os dois jovens mórmons o olharam com espanto.
Na opinião deles, a competição entre ambos pela mão
da moça era a mais alta honra que poderiam render tan-
to a ela quanto a seu pai.
- Há duas saídas nesta sala - gritou Ferrier. -
Ali está a porta e ali a janela. Qual delas preferem usar?
Seu rosto bronzeado parecia tão selvagem e tão
ameaçadoras suas mãos descarnadas que os visitantes
se puseram em pé e bateram em rápida retirada. O ve-
Iho fazendeiro seguiu-os até a porta.
- Avisem-me quando decidirem quem deverá ser
o noivo - disse com sarcasmo.
- Vai pagar por isso! - gritou Stangerson, bran-
co de raiva. - Desafiou o Profeta e o Conselho dos
Quatro. Vai se arrepender até o último de seus dias.
- A mão do Senhor Ihe será pesada! - gritou o
jovem Drebber. - Ela se erguerá para esmagá-lo!
- Então eu começarei a destruição! - exclamou
Ferrier, furioso.
Ele teria corrido para o andar de cima em busca
de sua carabina, se Lucy não o tivesse segurado pelo
braço, detendo-o. Antes que pudesse escapar dela, ou-
viu o ruído dos cascos dos cavalos e percebeu que esta-
vam fora de seu alcance.
- Hipócritas! Velhacos! - exclamou, enxugan-
do o suor da testa. - Prefiro vê-la na sepultura, mi-
nha menina, que casada com um deles.
- Eu também, pai - respondeu ela, decidida. -
Mas Jefferson logo estará aqui.
- Sim. Ele não vai demorar. E quanto mais cedo
melhor, porque eu não sei qual será o próximo movi-
mento deles.
122
Sem dúvida, aquele era o momento para que al-
guém, capaz de dar conselho e ajuda, viesse em socor-
ro do velho e rijo fazendeiro e de sua filha adotiva.
Em toda a história da colônia, jamais houvera um ca-
so de franca desobediência à autoridade dos Anciãos.
Se pequenos erros eram punidos com tanta severidade,
qual não seria a sina daquele arqui-rebelde? Ferrier sa-
bia que sua fortuna e posição não o protegeriam de na-
da. Outros tão prestigiados e tão ricos quanto ele já
haviam desaparecido antes, sendo seus bens doados à
Igreja. Ferrier era um homem de coragem, mas tremia
ao pensar nos vagos e sombrios terrores que pairavam
sobre sua cabeça. Podia enfrentar com firmeza qual-
quer perigo conhecido, mas esse suspense o enervava.
Procurava ocultar da filha seus temores e fingia fazer
pouco de tudo aquilo. Ela, porém, o amava muito e
percebia com clareza que ele estava tenso.
Ferrier esperava receber alguma mensagem ou ma-
nifestação de Young sobre sua conduta. E não estava
errado, embora ela tenha vindo de maneira inesperada.
Na manhã seguinte, quando levantou, encontrou, pa-
ra sua surpresa, um pequeno pedaço de papel pregado
à coberta de sua cama por um alfinete, bem à altura
de seu peito. Nele estava escrito em letras de imprensa
grandes e mal desenhadas:
"Restam vinte e nove dias para que se corrija, e
então..."
As reticências eram mais aterradoras que qualquer
outra ameaça. A maneira como aquele aviso chegara
a seu quarto deixava John Ferrier totalmente perplexo,
uma vez que os empregados dormiam fora da casa e
as portas e janelas estavam bem fechadas. Ele amassou
o papel e não disse nada à filha, mas seu coração esta-
va gelado de pavor. Os vinte e nove dias, ficava eviden-
te, eram o que restava do mês prometido a Young.
123
Que tipo de força ou coragem poderia opor a um ini-
migo armado com tão misteriosos poderes? A mão que
espetara aquele alfinete poderia tê-lo golpeado no cora-
ção e ele jamais saberia quem o matava.
Ferrier ficou ainda mais abalado na manhã seguin-
te. Estavam sentados à mesa para o desjejum quando
Lucy apontou para cima com uma exclamação de sur-
presa. No centro do teto havia sido riscado, aparente-
mente com um tição aceso, o número vinte e oito. Pa-
ra a moça, isso era ininteligível, e o pai não lhe deu ne-
nhum esclarecimento. Naquela noite ele pegou sua ar-
ma e ficou de guarda, observando. Não viu nem ouviu
nada. No entanto, na manhã seguinte, um enorme vin-
te e sete fora pintado no lado de fora da porta.
Assim foi, dia após dia, e, sempre, com a chega-
da da manhã, ele via que seus inimigos invisíveis tinham
feito o registro, marcando, de algum modo impressio-
nante, quantos dias ainda lhe restavam daquele mês
de graça. Às vezes, os números fatais surgiam nas pa-
redes; outras, no assoalho; e, ocasionalmente, em pe-
quenos cartazes fixados sobre as grades ou portão dos
jardins. Por mais que vigiasse, John Ferrier não conse-
guia descobrir de onde vinham aqueles avisos diários.
Sobrevinha-lhe um horror quase supersticioso quando
os enxergava. Tornou-se pálido e extenuado e trazia
nos olhos a expressão perturbada dos animais persegui-
dos. Ele só tinha uma esperança na vida, agora, e era
a chegada do jovem caçador que estava em Nevada.
Faltavam vinte dias e, logo, apenas quinze; os quin-
ze reduziram-se para dez e não havia notícias do rapaz
ausente. Os números iam minguando sem que houves-
se sinal dele. Toda vez que ouvia alguém cavalgando
pela estrada, ou um carreteiro gritando para os ani-
mais, o velho fazendeiro corria ao portão, pensando
que, finalmente, chegava socorro. Por fim, quando ele viu
124
o número cinco passar para quatro e este para três, de-
sanimou, perdendo toda a esperança de escapar. Sozi-
nho e com um conhecimento limitado das montanhas
que cercavam o lugar, ele começou a perceber sua impo-
tência. As estradas mais movimentadas eram rigidamen-
te vigiadas e ninguém podia passar por elas sem uma
licença do Conselho. Por qualquer caminho que fosse,
não conseguiria evitar a ameaça que pendia sobre ele.
Ainda assim, o velho não hesitou em sua decisão de
perder a vida antes de consentir com o que ele conside-
rava uma desonra para a filha.
Certa noite, ele sentou-se, a sós, mergulhado inten-
samente em seus problemas e buscando, em vão, uma
maneíra de resolvê-los. Pela manhã, havia surgido o
número dois na parede da casa e o dia seguinte seria o
último do prazo concedido. O que aconteceria então?
Sua imaginação era tomada pelas mais vagas e terríveis
fantasias. E sua filha? O que seria dela depois que ele
se fosse? Não haveria mesmo como escapar da rede in-
visível que se erguera ao redor deles? Deixou cair a ca-
beça sobre a mesa e soluçou diante de sua própria im-
potência.
Mas o que era aquilo? Ouvira um leve ruído de
arranhadura, baixinho, mas bem perceptível no silêncio
da noite. Vinha da porta da casa. Ferrier esgueirou-se
até o vestíbulo e ficou ouvindo atentamente. Houve
uma pausa durante alguns minutos e, então, repetiu-se
o som baixo e insidioso. Sem dúvida, alguém estava
batendo suavemente na almofada da porta. Seria o as-
sassíno que, no meio da noite, vinha cumprir as ordens
criminosas do tribunal secreto? Ou algum agente mar-
cando a chegada do último dia da graça? John Ferrier
concluiu que a morte repentina seria melhor que a ex-
pectativa que lhe abalava os nervos e lhe gelava o san-
gue. Deu um salto à frente, puxou o ferrolho e abriu
125
a porta de relance.
Lá fora tudo estava calmo e silencioso. Era uma
linda noite e as estrelas piscavam brilhantemente no céu.
O pequeno jardim estendia-se diante dos olhos do fa-
zendeiro cercado pelo portão e pelas grades. Mas nele
ou na estrada não havia qualquer ser humano. Ferrier,
com um suspiro de alívio, olhou para a esquerda e pa-
ra a direita até que, baixando os olhos em direção a
seus pés, viu, com o maior espanto, um homem de bru-
ços estendido no chão, braços e pernas estendidos.
Tão nervoso ficou que teve que encostar-se contra
a parede, levando a mão à garganta para refrear o dese-
jo de gritar. Seu primeiro pensamento foi que aquele
homem prostrado era um moribundo ou um ferido,
mas pôde Iogo observar que ele rastejava pelo solo rá-
pido e silencioso como uma serpente. Quando entrou
em casa, ergueu-se, fechou a porta e mostrou ao fazen-
deiro atônito o rosto corajoso e a expressão decidida
de Jefferson Hope.
- Bom Deus! - sussurrou John Ferrier. - Vo-
cê me assustou! O que fez você vir até aqui dessa maneira?
- Me dê comida - pediu o outro com a voz rou-
ca. - Não tive tempo para comer ou beber nada nas
últimas quarenta e oito horas.
Lançou-se sobre a carne fria e o pão que ainda es-
tavam sobre a mesa de jantar de Ferrier, devorando-
os vorazmente.
- E Lucy está enfrentando isso bem? - pergun-
tou após ter satisfeito sua fome.
- Sim. Não conhece a dimensão do perigo - res-
pondeu.
- Ainda bem. A casa está cercada por todos os
lados. Por isso rastejei até aqui. Eles podem ser muito
espertos, mas não o suficiente para agarrar um caçador
Washoe.
126
Fe rerrier se sentia um novo homem, agora que
contava com um aliado tão dedicado. Segurou a mão
calosa do jovem e a apertou afetuosamente.
- Tenho orgulho de ser seu amigo - disse. -
Muito poucos viriam aqui partilhar o perigo e as difi-
culdades que enfrentamos.
- Está certo - respondeu o jovem caçador. -
Sinto muito respeito pelo senhor, mas, se estivesse sozi-
nho nesta história, eu pensaria duas vezes antes de pôr
minha cabeça no vespeiro. É Lucy que me traz aqui, e,
antes que qualquer coisa aconteça a ela, creio que have-
ria em Utah uma pessoa a menos na família Hope.
- O que vamos fazer?
- Amanhã é o último dia, e estará pérdido, a me-
nos que aja hoje à noite. Tenho uma mula e dois cava-
los esperando no Canyon da Águia. Quanto tem em
dinheiro?
- Dois mil dólares em ouro e cinco mil em notas.
- É o bastante. Tenho mais ou menos isso tam-
bém. Temos que ir para Carson pelas montanhas. É
melhor acordar Lucy. Ainda bem que os criados não
dormem na casa.
Enquanto Ferrier se ausentava para preparar a fi-
lha para a viagem a ser feita imediatamente, Jefferson
Hope fez um pacote com todos os comestíveis que en-
controu, e encheu um garrafão com água. Sabia por
experiência que eram poucas as fontes nas montanhas
e distantes entre si. Mal terminou seus preparativos, o
fazendeiro voltou com a filha vestida e pronta para par-
tir. O encontro dos namorados foi caloroso, mas rápi-
do, porque os minutos eram preciosos e havia muito a
ser feito.
- Temos que partir já - disse Jefferson Hope,
falando em voz baixa mas decidida, como quem conhe-
ce a enormidade do perigo, mas está preparado para
127
enfrentá-lo. - As entradas da frente e dos fundos es-
tão guardadas, mas, com cuidado, podemos sair pela
janela lateral e cruzar os campos. Uma vez na estrada,
estaremos a apenas três quilômetros da ravina, onde
estão as montarias. Quando alvorecer, estaremos em
plenas montanhas.
- E se formos detidos? - perguntou Ferrier.
Hope bateu na coronha do revólver que se avolu-
mava à frente de sua túnica.
- Se eles forem muitos para nós, levaremos dois
ou três conosco - falou com um sorriso sinistro.
Foram apagadas todas as luzes da casa e, pela ja-
nela escura, Ferrier olhou os campos que tinham sido
seus e que, agora, iria abandonar para sempre. Há
muito preparava-se para tal sacrifício. A honra e a feli-
cidade de sua filha superavam qualquer pesar pela for-
tuna arruinada. Tudo parecia tão calmo e feliz - árvo-
res sussurrantes e uma ampla e silenciosa extensão de
trigo - que era difícil pensar que ali se ocultava uma
ameaça de morte. No entanto o rosto pálido e rígido
do jovem caçador revelava que, enquanto se aproxima-
va da casa, havia visto o suficiente para saber o que o
esperava.
Ferrier levava a bolsa com o ouro e as notas,
Jefferson Hope carregava a parca provisão e a água,
enquanto Lucy trazia um pequeno embrulho com al-
guns de seus pertences mais valiosos. Abriram a jane-
la muito lenta e cuidadosamente e esperaram até que
uma nuvem densa escurecesse um pouco mais a noite.
Então, um por um atravessaram o pequeno jardim.
Com a respiração contida e agachados, esgueiraram-se
até abrigar-se na sebe, e foram contornando-a até atin-
gir uma abertura que dava para os campos de trigo.
Tinham acabado de atingir esse ponto quando o jovem
segurou seus dois companheiros, puxando-os para a
128
sombra, onde permaneceram calados e trêmulos.
Era uma sorte que a vida na pradaria houvesse da-
do a Jefferson Hope ouvidos de lince. Mal tinham se
abaixado, ouviram o pio melancólico do mocho soan-
do a alguns metros deles. De imediato, foi respondido
por outro pio a pouca distância dali. No mesmo mo-
mento, um vulto vago e escuro emergia da abertura pe-
la qual tinham passado, repetindo o pio lastimoso.
Um segundo homem apareceu na escuridão.
- Amanhã à meia-noite - disse o primeiro, pare-
cendo ser o chefe. - Quando o mocho piar três vezes.
- Está bem - replicou o outro. - Devo infor-
mar o Irmão Drebber?
- Sim, e que ele informe aos outros. Nove por sete!
- Sete por cinco! - respondeu o outro, e as duas
figuras desapareceram em direções opostas. As últimas
palavras, sem dúvida, eram uma espécie de senha e con-
tra-senha. Quando o som dos passos dos dois homens
desapareceu na distância, Jefferson Hope pôs-se em
pé e, ajudando seus companheiros a passar pela abertu-
ra, liderou o percurso através da plantação, na maior
velocidade possível, amparando e quase carregando a
moça, nos momentos em que suas forças pareciam faltar.
- Depressa! Depressa! - sussurrava ele, vez por
outra. - Estamos atravessando a linha dos sentinelas.
Tudo depende de nossa rapidez. Depressa!
Uma vez na estrada, foi tudo mais rápido. Só en-
contraram alguém uma vez e, então, esgueiraram-se pa-
ra uma plantação, evitando, assim, serem reconhecidos.
Antes de alcançarem a cidade, o caçador desviou para
uma trilha acidentada e estreita que conduzia às monta-
nhas. Dois picos escuros e denteados surgiram da escu-
ridão. O desfiladeiro entre os cumes era o Canyon da
Águia, onde estavam os cavalos.
Com instinto certeiro, Jefferson Hope pegou seu
129
caminho entre os penhascos gigantescos, seguindo ao
longo de um rio seco até alcançar um recanto isolado
escondido entre as rochas. Lá os fiéis cavalos haviam fi-
cado amarrados. A moça foi colocada sobre a mula,
o velho Ferrier e sua sacola de dinheiro sobre um dos
cavalos, enquanto Jefferson Hope puxava o terceiro
animal pela trilha escarpada e perigosa.
O caminho desnorteava qualquer um que não esti-
vesse acostumado a enfrentar a natureza em seus aspec-
tos mais selvagens. De um lado, elevava-se um roche-
do com uns trezentos metros de altura, negro, rígido e
ameaçador, com longas colunas basálticas sobre sua su-
perfície áspera como se fossem costelas de um monstro
petrificado. Do outro, uma confusão selvagem de ro-
chas e fragmentos de pedras impossibilitava qualquer
avanço. Havia entre os dois lados uma trilha irregular,
tão estreita em alguns lugares que tinham que cami-
nhar em fila indiana, e tão acidentada que apenas cava-
leiros experimentados poderiam atravessá-la toda. Mes-
mo assim, apesar de todos os perigos e dificuldades, o
coração dos fugitivos estava aliviado, pois cada passo
aumentava a distância entre eles e o terrível despotis-
mo do qual tentavam escapar.
No entanto logo tiveram uma prova de que ainda
estavam dentro da jurisdição dos Santos. Haviam alcan-
çado a parte mais agreste e mais isolada do passo, quan-
do a jovem soltou um grito de pavor e apontou para
o alto. Na rocha da qual se divisava a trilha, destaca-
va-se, nítida e escura contra o céu, a figura de um sen-
tinela solitário. Ele também havia percebido os viajan-
tes e sua interpelação militar soou no silêncio da ravina:
- Quem vem lá?
- Viajamos para Nevada - respondeu Jefferson
Hope, com a mão sobre o rifle que pendia da sela.
Podiam ver o guardião solitário, com o dedo na
arma, observando-os como se não estivesse satisfeito
130
com a resposta.
- Com permissão de quem? - perguntou.
- Dos Quatro Sagrados - respondeu Ferrier.
Sua experiência com os mórmons o havia ensina-
do que aquela era a autoridade mais alta à qual pode-
ria se referir.
- Nove por sete! - gritou o sentinela.
- Sete por cinco! - respondeu Jefferson Hope
de imediato, lembrando a contra-senha que ouvira no
jardim.
- Passem e que o Senhor os acompanhe! - dis-
se a voz mais acima.
Além daquele posto de sentinela, a trilha se alarga-
va e os cavalos podiam prosseguir a trote. Olhando pa-
ra trás, podiam ver o guarda solitário apoiado sobre
sua arma. Compreenderam, então, que haviam ultra-
passado o último posto do povo escolhido e que a liber-
dade os aguardava à frente.
131
5. Os Anjos Vingadores

Durante toda a noite atravessaram intrincados des-
filadeiros e caminhos irregulares salpicados de pedras.
Mais de uma vez se perderam, mas a familiaridade de
Hope com as montanhas permitia que reencontrassem
a trilha novamente. Quando rompeu a manhã, depara-
ram-se com uma cena maravilhosa e de selvagem bele-
za. Em todas as direções, grandes picos nevados os cer-
cavam, parecendo que espreitavam um sobre o outro
até desaparecerem no horizonte longínquo. Tão escarpa-
das eram as encostas rochosas que os pinheiros e os la-
riços pareciam suspensos sobre a cabeça deles, dando
a impressão de que bastaria uma simples rajada de ven-
to para que despencassem sobre os passantes. Esse te-
mor não era apenas uma ilusão, pois aquele vale estéril
estava entulhado de árvores e rochas que haviam caí-
do de modo similar. No exato momento em que passa-
vam, uma enorme rocha despencou num estrondo rou-
132
co, ctespertando ecos nas gargantas silenciosas e assus-
tando os cavalos extenuados, que se puseram a galope.
Quando o sol se levantou lentamente no horizon-
te oriental, os picos das gigantescas montanhas foram
se iluminando um após o outro, como lâmpadas em
um festival, até que ficassem todos rubros e brilhantes.
Esse magnífico espetáculo animou o coração dos três
fugitivos, renovando-lhes as energias. Pararam junto
a uma torrente impetuosa que brotava de uma ravina
e deram de beber aos cavalos, participando de um rápi-
do desjejum. Lucy e o pai gostariam de ter descansa-
do um pouco mais, mas Jefferson Hope foi inexorável.
- A esta altura, já estão no nosso rastro - disse.
- Tudo vai depender de nossa velocidade. Uma vez
em Carson, a salvo, poderemos descansar pelo resto
de nossas vidas.
Durante o dia inteiro enfrentaram a travessia pelos
desfiladeiros e, à tardinha, calcularam haver se distan-
ciado uns cinqüenta quilômetros de seus inimigos. À
noite, escolheram a base de uma saliência rochosa em
que as pedras ofereciam certa proteção contra o vento
gelado. Aconchegaram-se uns aos outros para que se
aquecessem e aproveitaram umas poucas horas de so-
no. Antes que amanhecesse, contudo, puseram-se de
pé e novamente a caminho. Não tinham visto nenhum
sinal de perseguidores e Jefferson Hope começou a pen-
sar que já estavam praticamente fora do alcance da ter-
rível organização em cuja ira haviam incorrido. Não
sabiam que distância alcançava aquela mão nem quão
próxima estava de apanhá-los e aniquilá-los.
Por volta da metade do segundo dia de fuga, as
poucas provisões que levaram começaram a escassear.
Isso, no entanto, provocou pouco desconforto ao caça-
dor, porque havia caça nas montanhas e, com freqüên-
cia, em ocasiões anteriores, ele dependera de seu rifle
133
para prover a subsistência. Escolneu um recanto anriga-
do, empilhou uns galhos secos e fez uma boa fogueira
para que seus companheiros pudessem se aquecer, uma
vez que estavam a uns mil e quinhentos metros acima
do nível do mar e o ar era frio e cortante naquelas alturas.
Hope prendeu os animais, deu adeus a Lucy, jo-
gou a arma sobre os ombros e partiu em busca da ca-
ça que porventura se atravessasse em seu caminho. Vol-
tando-se, viu o velho e a moça agachados perto do fo-
go aceso, enquanto os três animais permaneciam imó-
veis ao fundo. Depois, os rochedos se interpuseram,
escondendo-os de sua vista.
Ele andou por uns três quilômetros, atravessando
uma ravina após outra sem sucesso, embora, pelas mar-
cas deixadas nas cascas das árvores, e também por ou-
tras indicações, julgasse haver numerosos ursos nas ime-
diações. Finalmente, depois de duas ou três horas de
busca infrutífera, quando, sem esperanças, já pensava
em voltar, ergueu os olhos e viu algo que lhe encheu
de satisfação.
Na borda de um penhasco inclinado, noventa ou
cem metros acima, viu um animal semelhante a um car-
neiro, mas com um par de chifres gigantescos. O chifre-
comprido - porque era assim que o animal se chama-
va - provavelmente cumpria a função de guardião de
um rebanho invisível ao caçador. Por sorte, o animal
ia em direção contrária e não o viu. Deitando-se de bru-
ços, Hope apoiou o rifle sobre uma pedra e fez uma
longa e cuidadosa pontaria antes de puxar o gatilho.
O animal saltou no ar, tropeçou por um instante na
borda do precipício e rolou para o vale mais abaixo.
Era um animal muito pesado para ser carregado,
e o caçador contentou-se em cortar-lhe um quarto e
parte do flanco. Com o troféu sobre o ombro, apres-
sou-se em voltar, pois a noite se aproximava. Mal co-
134
meçara a andar, no entanto, percebeu a dificuldade com
que se defrontava. Na ansiedade em que estava, havia
ultrapassado as ravinas conhecidas e, agora, não era
fácil reencontrar o caminho que percorrera. O vale em
que estava dividia-se e subdividia-se em muitas gargan-
tas, tão parecidas entre si que era impossível distingui-
las. Entrou por uma delas e andou um quilômetro e
meio, ou um pouco mais, até chegar a uma corrente
vinda das montanhas que, ele tinha certeza, nunca vi-
ra antes. Convencido de ter seguido o caminho errado,
tentou outro, mas o resultado foi o mesmo.
Anoitecia rapidamente e já estava quase escuro
quando, por fim, Hope encontrou-se em um desfiladei-
ro que lhe era familiar. Mesmo assim, não foi fácil
manter-se no cáminho certo, porque a lua ainda não
havia aparecido e os altos penhascos das margens fa-
ziam a escuridão ainda mais profunda. Sobrecarrega-
do com o que levava, cansado pelo esforço dispendido,
ele cambaleava, animado pelo pensamento de que ca-
da passo o aproximava de Lucy e, além disso, de que
levava consigo o suficiente para garantir-lhes alimenta-
ção para o resto da jornada.
Finalmente atingiu a entrada do desfiladeiro onde
deixara os companheiros. Mesmo na escuridão podia
reconhecer o contorno dos penhascos que o cercavam.
Imaginou que Ferrier e Lucy deveriam estar aguardan-
do-o com ansiedade, pois estivera ausente por umas cin-
co horas. Satisfeito, levou as mãos à boca, fazendo eco-
ar por todo o vale um forte "alô", como sinal de que
estava se aproximando. Parou, aguardando uma respos-
ta. Nada ouviu além de seu próprio grito, que ecoou
pelas ravinas tristes e silenciosas, voltando a seus ouvi-
dos em repetições incontáveis. Gritou mais uma vez,
mais alto do que na primeira e, de novo, não ouviu se-
quer um sussurro dos amigos que deixara pouco tem-
135
po atrás. Um terror vago e inominável apossou-se dele.
Precipitou-se, frenético, deixando cair a preciosa caça
em sua agitação.
Quando dobrou a curva, teve uma visão ampla
do lugar onde a fogueira fora acesa. Ardia ainda uma
pilha de tições vermelhos lá, mas era evidente não ter
sido reavivada a partir da hora em que saíra. O mes-
mo silêncio mortal reinava por toda parte. Seus temo-
res se transformaram em certeza e ele correu. Nem
um único ser vivo se via perto do que restara da foguei-
ra: animais, homem e mulher haviam desaparecido.
Era demasiado evidente que um terrível e repentino de-
sastre ocorrera durante sua ausência: um desastre que
atingira a todos, mas que não deixara pistas.
Confuso e aturdido pelo golpe, Jefferson Hope sen-
tiu sua cabeça girar e teve que apoiar-se no rifle para
não cair. Mas ele era, essencialmente, um homem de
ação e recuperou-se logo de sua momentânea impotên-
cia. Pegou um tição meio consumido da fogueira sem
labaredas, soprou-o até conseguir uma chama e, com
essa ajuda, pôs-se a examinar o pequeno acampamen-
to. O chão tinha marcas de vários cascos de cavalo, o
que indicava que um grande grupo de cavaleiros rende-
ra os fugitivos, e a direção das pegadas revelava que,
depois disso, retornaram a Salt Lake City. Teriam leva-
do os dois com eles? Jefferson Hope quase se convence-
ra disso, quando seus olhos caíram sobre algo que fez
estremecer cada nervo de seu corpo. Pouco além, a
um lado do acampamento, encontrou um montinho
de terra avermelhada que, ele tinha certeza, não esta-
va lá antes. Não havia como se enganar, era uma sepul-
tura recente. O jovem caçador aproximou-se e percebeu
uma forquilha sobre ela com um papel enfiado na bi-
furcação do graveto. A inscrição sobre o papel era bre-
ve, mas suficiente:
136
John 1-errier
Originário de Salt Lake City
Falecido a 4 de agosto de 1860
Então, fora-se aquele velho forte que deixara há
tão pouco tempo, e esse era o seu único epitáfio! Jef-
ferson Hope olhou desesperado ao redor para ver se
havia uma segunda sepultura, mas não viu nada. Lucy
fora levada por seus perseguidores terríveis para cum-
prir o destino que lhe tinham traçado: ser uma das mu-
lheres do harém do filho de algum Ancião. Quando o
jovem compreendeu que esse seria o fim inevitável da
moça e, também, sua impotência para evitá-lo, desejou
estar como o velho fazendeiro, em sua última e silencio-
sa morada.
Mais uma vez, porém, seu espírito combativo afas-
tou a letargia provocada pelo desespero. Se nada mais
lhe restava, podia, ao menos, dedicar sua vida à vingan-
ça. Homem de paciência e perseverança indômitas, Jef-
ferson Hope sabia também persistir na vingança. Apren-
dera com os índios entre os quais havia vivido. Enquan-
to permanecia em pé, junto do fogo que restara, sentiu
que a única coisa capaz de amenizar sua dor seria a re-
tribuição completa e absoluta a seus inimigos, concreti-
zada por suas próprias mãos. Sua vontade férrea e sua
energia infatigável seriam devotadas, ele assim se deter-
minou, a uma única finalidade. Com o rosto pálido e
contraído, voltou ao lugar onde deixara cair a caça e,
tendo atiçado o fogo moribundo, cozinhou o suficien-
te para durar alguns dias. Embrulhou a comida e, mes-
mo cansado, retomou o caminho das montanhas, seguin-
do a trilha dos Anjos Vingadores.
Por cinco dias, pés doloridos e exausto, ele percor-
reu os desfiladeiros que atravessara a cavalo. À noite,
acomodava-se entre as rochas para umas poucas horas
de sono. Antes do dia romper, no entanto, já havia re-
137
tomado seu caminho. No sexto dia alcançou o Canyon
da Águia, local de início da desventurada fuga. Dali,
podia ver a Terra dos Santos. Debilitado e exausto
,
apoiou-se no rifle e ergueu o punho descarnado sobre
a cidade silenciosa que se estendia abaixo dele. Enquan-
to a observava, percebeu que havia bandeirolas em algu-
mas das ruas principais e outros indícios de festa. Ain-
da especulava sobre o que poderia ser aquilo, quando
ouviu o bater de cascos de cavalos e viu um cavaleiro
avançando em sua direção. Aproximando-se, reconhe-
ceu tratar-se de um mórmon chamado Cowper, a quem
prestara serviços em diversas ocasiões. Abordou-o com
a intenção de descobrir qual tinha sido o destino de Lucy.
- Sou Jefferson Hope. Deve lembrar-se de mim.
O mórmon olhou para ele com indisfarçável espan-
to. De fato, não era fácil reconhecer naquele andarilho
roto e desalinhado, com rosto cadavérico e olhos de fú-
ria selvagem, o jovem e garboso caçador de outros tem-
pos. Certificando-se da identidade do moço, a surpre-
sa do homem transformou-se em consternação.
- Você é louco em vir aqui! - exclamou. - Cor-
ro risco de vida se nos virem conversando. Há uma or-
dem de prisão contra você, expedida pelos Quatro Sa-
grados, por ter ajudado os Ferrier a fugir.
- Não tenho medo deles nem de sua ordem - res-
pondeu Hope com seriedade. - Você deve saber algo
a respeito, Cowper. Por tudo que lhe for mais sagra-
do, peço que me responda a algumas perguntas. Temos
sido amigos. Por Deus, não se recuse a me responder.
- O que quer saber? - perguntou o mórmon pou-
co à vontade. - Seja rápido. As próprias rochas têm
ouvidos e as árvores, olhos.
- O que aconteceu a Lucy Ferrier?
- Casou-se ontem com o jovem Drebber. Coragem,
homem, coragem! Não lhe sobra muita vida.
139
- ~ao se preocupe comigo - aisse riope com
voz fraca. Até seus lábios haviam perdido a cor e deixa-
ra-se cair sobre a rocha em que se encontrava. - Ca-
sou-se, você disse?
- Casou-se ontem. É por isso que a Casa dos Do-
nativos está embandeirada. Houve uma discussão entre
Drebber e Stangerson sobre quem deveria ficar com ela.
Ambos tomaram parte do grupo de perseguição. Stan-
gerson foi quem matou o pai da moça, o que parecia
dar-lhe maior direito. Mas quando a discussão foi leva-
da ao Conselho, como o partido de Drebber era mais
forte, o Profeta deu a moça para ele. No entanto ne-
nhum dos dois ficará com ela. Vi a morte em seu ros-
to ontem. Parece mais um fantasma que uma mulher.
Já vai?
- Sim, vou - respondeu Jefferson Hope, que ha-
via se erguido. Seu rosto parecia esculpido em mármo-
re, tão rígida e dura era sua expressão, os olhos arden-
do em brilho funesto.
- Para onde vai?
- Não importa - respondeu.
Pôs a arma sobre o ombro, e caminhou em gran-
des passos em direção ao desfiladeiro. De lá, foi para
o coração das montanhas, onde habitam as feras selva-
gens. Mas, entre todas, não havia nenhuma mais feroz
e perigosa que Jefferson Hope.
A previsão do mórmon cumpriu-se exatamente.
Fosse pela terrível morte do pai ou pelos efeitos do odio-
so casamento a que fora obrigada, a pobre Lucy não
levantou a cabeça nunca mais. Foi se consumindo e
morreu dentro de um mês. Seu estúpido marido, que
a desposara principalmente por causa das propriedades
de John Ferrier, não demonstrou nenhum grande pesar
por seu padecimento. Suas outras esposas, porém, la-
mentaram a morte e velaram seu corpo na véspera do
140
sepultando, de acordo com o costume mórmon. Esta-
vam ainda reunidas em torno do caixão, nas primeiras
horas da manhã, quando, com indizível espanto e te-
mor, viram a porta ser aberta e entrar um homem em
farrapos, com expressão selvagem e marcas da exposi-
ção à intempérie.
Sem um olhar ou uma palavra às mulheres aninha-
das ao redor, Hope dirigiu-se para a branca e silencio-
sa forma que abrigara em vida a alma pura de Lucy
Ferrier. Parou junto ao corpo, pousou com reverência
os lábios na fria testa da moça e, tomando sua mão,
retirou a aliança do dedo.
- Ela não será enterrada com isto! - rugiu com
ferocidade.
E, antes que fosse dado alarme, desceu veloz as
escadas e desapareceu. Tão estranho e rápido fora o
episódio que os que o assistiram teriam duvidado do
que aconteceu, ou tido dificuldade em convencer al-
guém do evento, não fosse o fato inegável de que o aro
de ouro que caracterizava Lucy como esposa havia de-
saparecido.
Durante alguns meses, Jefferson Hope perambulou
pelas montanhas, levando uma vida selvagem e acalen-
tando o feroz desejo de vingança que se apossara dele.
Na cidade, contavam-se histórias sobre uma figura fan-
tasmagórica que era vista vagando pelos subúrbios ou
assombrando os solitários desfiladeiros das montanhas.
Uma vez, uma bala entrou assoviando pela janela de
Stangerson e achatou-se contra a parede a poucos centí-
metros dele. Noutra ocasião, quando Drebber passava
sob um penhasco, uma enorme pedra despencou sobre
ele, que escapou de uma morte horrível atirando-se de
frente contra o solo. Os dois jovens mórmons não de-
moraram a descobrir a razão desses atentados contra
suas vidas e organizaram sucessivas expedições às mon-
141
tanhas, na esperança de capturar ou matar o inimigo.
Não tiveram nenhum sucesso. Então, adotaram a pre-
caução de jamais andar a sós ou sair após escurecer,
além de manter suas casas sob vigilância. Depois de
um tempo, como mais nada foi visto ou ouvido do ini-
migo, relaxaram essas medidas, confiando que o tem-
po teria acalmado o desejo de vingança de Jefferson Hope.
Muito longe disso, o ódio do jovem apenas aumen-
tara. Seu caráter era rígido e implacável e a predomi-
nância da idéia de vingança apossara-se tão completa-
mente dele que não deixava espaço para qualquer outra
emoção. Mas ele era, acima de tudo, um homem práti-
co. Logo percebeu que nem mesmo sua privilegiada
constituição física suportaria a incessante tensão a que
era submetida. A exposição permanente à intempérie e
a falta de alimentação sadia o estavam consumindo.
Se morresse como um cão, no meio das montanhas, o
que seria de sua vingança? No entanto, se persistisse,
sem dúvida essa era a morte que teria. Percebeu que,
desse modo, estava fazendo o jogo do inimigo. Então,
relutante, voltou às velhas minas de Nevada para recu-
perar a saúde e amealhar dinheiro suficiente para per-
sistir em seu objetivo sem passar privações.
Sua intenção era ausentar-se por um ano, no máxi-
mo, mas um conjunto de circunstâncias imprevistas im-
pediu-o de afastar-se das minas por quase cinco anos.
Findo esse tempo, a lembrança do que passara e o dese-
jo de vingança estavam tão vivos quanto naquela noi-
te memorável em que permaneceu junto à sepultura
de John Ferrier.
Disfarçado e sob um nome falso, ele voltou a Salt
Lake City, sem se preocupar com o que poderia lhe acon-
tecer, contanto que conseguisse fazer o que considera-
va justiça. Lá, porém, más notícias o aguardavam.
Acontecera um cisma entre o Povo Eleito uns me-
142
ses antes. Alguns membros jovens da Igreja se rebela-
ram contra a autoridade dos Anciãos e o resultado fo-
ra o afastamento de um certo número de descontentes,
que partiram de Utah e abandonaram a crença. Entre
estes estavam Drebber e Stangerson. E ninguém sabia
para onde haviam ido. Diziam que Drebber consegui-
ra converter boa parte de sua propriedade em dinheiro
e que partira como um homem rico, enquanto Stanger-
son, seu companheiro, era comparativamente pobre.
Não existia nenhum indício, no entanto, do paradeiro
deles.
Muitos homens, por vingativos que fossem, teriam
desistido de qualquer idéia de desforra diante dessa di-
ficuldade. Jefferson Hope, porém, não vacilou por
um momento sequer. Com os poucos recursos que pos-
suía, e mais o que ganhava nos empregos que conse-
guia aqui e ali, viajou pelos Estados Unidos, de cida-
de em cidade, atrás de seus inimigos. Os anos se passa-
vam, seu cabelo preto já estava grisalho, e ele continua-
va, como um cão de caça humano, a mente concentra-
da no único objetivo a que devotara sua vida.
Finalmente sua perseverança foi recompensada.
Bastou apenas o olhar de relance de um rosto pela jane-
la para revelar-lhe que os homens que perseguia esta-
vam em Cleveland, em Ohio. Voltou para o alojamen-
to miserável com todo o plano de vingança montado.
Aconteceu que Drebber, no momento em que olhou
pela janela, reconheceu o vagabundo que passava pela
rua, lendo em seus olhos o desejo homicida.
Acompanhado de Stangerson, que havia se torna-
do seu secretário, Drebber correu a um juiz de paz, de-
clarando que sua vida e a do amigo corriam perigo por
causa do ódio e do ciúme de um antigo rival. Na mes-
ma noite, Jefferson Hope foi detido e, não tendo con-
dição de pagar a fiança, ficou preso algumas semanas.
143
Quando, por fim, foi posto em liberdade, soube que a
casa de Drebber estava vazia e que ele e seu secretário
haviam partido para a Europa.
Mais uma vez o vingador se frustrara e, de novo,
o ódio concentrado o impelia a continuar a perseguição.
No entanto precisava de dinheiro e teve que voltar, por
algum tempo, ao trabalho, economizando cada dólar
para a próxima viagem.
Por fim, tendo reunido o suficiente para sobrevi-
ver, partiu para a Europa, seguindo a pista dos inimi-
gos de cidade em cidade, ganhando a vida com traba-
lhos subalternos, sem, contudo, alcançar os fugitivos.
Quando chegou a São Petersburgo, eles haviam parti-
do para Paris. Seguiu-os até lá e ficou sabendo que ti-
nham acabado de viajar para Copenhague. À capital
dinamarquesa chegou, também, com uns dias de atra-
so, porque tinham viajado para Londres, onde, final-
mente, a perseguição atingiu seu objetivo.
Quanto ao que ocorreu lá, o melhor a fazer é citar
o próprio relato do velho caçador, conforme ficou re-
gistrado no diário do Dr. Watson, a quem já devemos
tanto.
144
6. continuação das Memórias do Dr. Watson

A resistência furiosa de nosso prisioneiro não pare-
cia indicar nenhuma ferocidade em relação a nós, pois,
ao se perceber impotente, sorriu de maneira afável e
disse que esperava não ter nos machucado durante a luta.
- Com certeza vão me levar para o posto policial
- disse a Sherlock Holmes. - Tenho um carro estacio-
nado à porta. Se soltarem minhas pernas, vou andan-
do até lá. Não sou mais tão leve para ser carregado
quanto era antes.
Gregson e Lestrade se entreolharam como se achas-
sem a proposta um tanto atrevida, mas Holmes aceitou
a palavra do prisioneiro e retirou a toalha com que pren-
dera seus tornozelos. O homem ergueu-se e espichou
as pernas, querendo ter certeza de que estava livre. Lem-
bro-me de que pensei comigo mesmo, olhando-o, que
raramente vira um homem de constituição tão forte.
Além disso, em seu rosto moreno e bronzeado havia
145
uma expressão enérgica e determinada tão formidável
quanto sua força física.
- Se houver uma vaga para chefe de polícia, vo-
cê é o mais indicado para ela - comentou ele, olhan-
do com grande admiração para meu companheiro de
moradia. - A maneira como seguiu minha pista é uma
garantia disso.
- É melhor virem comigo - disse Holmes aos
dois detetives.
- Posso levá-los - ofereceu-se Lestrade.
- Muito bem. E Gregson ficará dentro do carro
comigo. O senhor, também, doutor. Interessou-se pe-
lo caso e poderá segui-lo até o final.
Concordei satisfeito e descemos todos juntos. O
prisioneiro não fez qualquer tentativa de fugir. Cami-
nhou calmamente para o carro que havia sido seu e
nós o seguimos. Lestrade subiu para a boléia, chicote-
ou o cavalo e, em pouco tempo, chegávamos a nosso
destino. Fomos introduzidos numa sala pequena onde
um inspetor de polícia anotou o nome do prisioneiro e
dos homens que ele assassinara. O oficial era um ho-
mem imperturbável, de rosto pálido, que cumpria suas
obrigações de modo mecânico e indiferente.
- O prisioneiro comparecerá perante os magistra-
dos durante esta semana - disse. - Enquanto isso,
senhor Jefferson Hope, há alguríza coisa que deseje de-
clarar? Devo avisá-lo que o que disser ficará registra-
do e poderá ser usado contra o senhor.
- Tenho muita coisa a declarar - respondeu len-
tamente o prisioneiro. - Quero contar a história toda
aos cavalheiros.
- Não acha melhor reservar-se para o julgamen-
to? - perguntou o inspetor.
- Talvez eu nem venha a ser julgado - respon-
146
deu. - mao se surpreendam. Não estou pensando em
suicídio. O senhor é médico?
Virou seus olhos escuros e febris para mim ao fa-
zer a pergunta.
- Sim, sou - respondi.
- Então, ponha a mão aqui - disse com um sor-
riso, movendo suas mãos algemadas em direção ao peito.
Assim fiz e percebi de imediato a comoção inter-
na. As paredes do peito pareciam vibrar e tremer co-
mo uma frágil edificação em cujo interior funcionasse
um poderoso maquinismo. No silêncio da sala, eu po-
dia ouvir um som seco e um zumbido que provinham
da mesma fonte.
- Ora! - exclamei. - Você tem um aneurisma
da aorta!
- É como o chamam - respondeu, placidamen-
te. - Fui a um médico na semana passada e ele me dis-
se que isso vai estourar dentro de alguns dias. Tem pio-
rado nos últimos anos. Fiquei assim naquela época em
que vivia exposto ao tempo e mal alimentado nas mon-
tanhas de Salt Lake. Mas eu já fiz meu trabalho e não
me importo de morrer agora. Gostaria, no entanto,_ de
deixar relatado tudo o que aconteceu: Não quero ser
lembrado como um assassino comum.
O inspetor e os dois detetives tiveram uma rápida
discussão sobre a conveniência de permitir a ele que
contasse sua história.
- O senhor acha, doutor, que há um risco de vi-
da imediato? - perguntou o inspetor.
- Tudo indica que sim - respondi.
- Nesse caso, certamente é nosso dever, no inte-
resse da justiça, tomar seu depoimento - declarou o
inspetor. - É livre para apresentar seu relato, senhor,
mas volto a adverti-lo de que suas palavras serão consi-
deradas.
147
- Com sua licença, vou me sentar - aisse o pri-
sioneiro, passando da palavra à ação. - Esse aneuris-
ma me deixa cansado com facilidade e a briga que tive-
mos meia hora atrás não melhora em nada a situação.
Estou à beira da sepultura e não iria mentir para vocês.
Tudo que eu disser será a mais absoluta verdade e não
me interessa o uso que os senhores farão do que irão ouvir.
Com essas palavras, Jefferson I-Jope reclinou-se
na cadeira e iniciou sua extraordinária narrativa. Fala-
va de modo calmo e metódico, como se os episódios
que narrava fossem comuns. Posso atestar a precisão
do que foi dito, porque tive acesso ao caderno de Les-
trade, no qual as palavras do prisioneiro foram regis-
tradas tal qual foram proferidas.
- Não lhes interessa saber a razão pela qual eu
odiava esses homens - disse ele. - Basta saber que
eram culpados da morte de dois seres humanos, pai e
filha, e que, por isso, já tinham perdido o direito à pró-
pria vida. Depois de todo o tempo transcorrido após
o crime, era impossível para mim apresentar queixa con-
tra eles em qualquer tribunal. No entanto eu sabia que
eram culpados e decidi ser o juiz, os jurados e o execu-
tor deles ao mesmo tempo. Os senhores teriam feito o
mesmo, se, sendo dotados de sentimento humano, esti-
vessem em meu lugar.
"A moça de quem falei ia casar-se comigo, há vin-
te anos, mas foi obrigada a tornar-se esposa de Dreb-
ber, o que a aniquilou. Retirei a aliança de seu dedo
de morta jurando que os últimos pensamentos de Dreb-
ber seriam sobre o crime pelo qual morreria castigado.
Levei a aliança sempre comigo, e segui a ele e a seu
cúmplice, pelos dois continentes, até agarrá-los. Pensa-
vam que me deixariam cansado. Não conseguiram. Se
eu morrer amanhã, o que é provável, morro sabendo
que cumpri meu dever neste mundo e que o cumpri bem.
148
Os dois estáo mortos e por minhas mãos. Não tenho
mais nada a esperar ou a desejar.
"Eles eram ricos e eu, um homem pobre; não era,
portanto, fácil para mim segui-los. Quando cheguei a
Londres, já estava com os bolsos vazios, e percebi que
precisava fazer alguma coisa para sobreviver. Conduzir
e montar cavalos sempre foi tão natural para mim quan-
to caminhar, de modo que me apresentei ao proprietá-
rio de uma empresa de carros e consegui logo o empre-
go. Tinha que entregar uma determinada quantia sema-
nal ao dono do negócio e o que a ultrapassasse ficaria
comigo. Raramente rendia alguma coisa, mas eu conse-
guia sobreviver de alguma forma. O difícil foi apren-
der a circular, porque, confesso, dentre todos os labirin-
tos que foram inventados, esta cidade é a mais confu-
sa. Tinha a meu lado um mapa de Londres e, quando
localizei os principais hotéis e estações da cidade, eu
me saí muito bem.
"Levou algum tempo até que eu descobrisse onde
viviam os dois cavalheiros. Investiguei aqui e ali e, fi-
nalmente, dei com eles. Estavam em uma pensão em
Camberwell, no outro lado do rio. Assim que os desco-
bri, soube que estavam em minhas mãos. Tinha deixa-
do crescer a barba, e não havia possibilidade de que
me reconhecessem. Iria rasteá-los e persegui-los até che-
gar a hora certa. Não os deixaria escapar uma outra vez.
"Estiveram perto de fazê-lo, mas eu os seguia por
onde quer que andassem. Às vezes ia atrás deles em
meu carro; outras, a pé. Mas da primeira forma era
melhor, porque não podiam ficar distantes de mim. So-
mente bem cedo pela manhã ou bem tarde à noite é
que eu conseguia ganhar algum dinheiro e, sendo assim
,
comecei a dever a meu patrão. No entanto isso não
me preocupava, tudo o que queria era pôr as mãos nos
dois.
149
"Eles eram, porém, muito espertos. nunca iam imagi-
nar que pudessem estar sendo seguidos, porque nunca
saíam a sós, nem mesmo depois de escurecer. Andei
atrás deles por duas semanas, sem perder um só dia, e
nunca os vi separados. Drebber estava bêbado a meta-
de do tempo, mas Stangerson permanecia vigilante.
Observava-os de manhã à noite, sem ter a menor opor-
tunidade. Mas não desanimava, alguma coisa me dizia
que se aproximava o momento. Meu único temor era
que esta coisa em meu peito explodisse antes da hora,
deixando meu trabalho incompleto.
"Por fim, uma noite em que eu estava subindo e
descendo a Torquay Terrace, que é como se chama a
rua onde estavam hospedados, vi um carro parar em
frente à porta da pensão. Uma bagagem foi trazida pa-
ra fora e, pouco depois, saíram Drebber e Stangerson
e tomaram um carro. Chicoteei meu cavalo, sem per-
dê-los de vista, aborrecido com a possibilidade de que
fossem trocar de acomodações. Saltaram na estação
Euston. Deixei um menino tomando conta de meu cava-
lo e segui-os até a plataforma. Ouvi perguntarem pelo
trem de Liverpool; o guarda respondeu que tinha acaba-
do de partir e que só haveria outro dentro de algumas
horas. Stangerson pareceu irritado com isso, mas Dreb-
ber, ao contrário, demonstrava satisfação. Cheguei tão
perto deles, em meio à agitação toda, que pude ouvir
cada palavra que disseram. brebber disse que tinha
um pequeno assunto pessoal a resolver e que, se o ou-
tro o esperasse, logo se reuniria a ele. Seu companhei-
ro protestou, lembrando que haviam combinado perma-
necer juntos. Drebber respondeu que se tratava de um
assunto delicado e que precisava ir só. Não entendi o
que Stangerson respondeu, mas o outro explodiu em
pragas, lembrando-lhe que era um assalariado a seu ser-
viço e que não podia pretender dar-lhe ordens. O secre-
150
tário perceneu que era melhor recuar, e limitou-se a
combinar que, caso perdesse o último trem, iria encon-
trá-lo no Hotel Halliday. Drebber, então, respondeu
que estaria na estação antes das onze e afastou-se.
"O momento pelo qual eu esperava há tanto tem-
po finalmente havia chegado. Juntos podiam proteger-
se um ao outro, mas, separados, ficavam a minha mer-
cê. No entanto não agi com precipitação. Meus planos
já estavam feitos. Não há prazer na vingança se aque-
le que nos ofendeu não tiver tempo para perceber quem
o está atacando e por quê. Tinha feito meus planos pa-
ra que meu inimigo compreendesse que estava pagan-
do por seu antigo pecado. Aconteceu que, dias antes
um cavalheiro que fora ver algumas casas em Brixton
Road havia esquecido a chave de uma delas em meu
carro. Reclamou-a na mesma noite e eu a devolvi, mas,
no intervalo, tirei o molde da chave e mandei fazer
uma duplicata. Desse modo, pude ter acesso a, pelo
menos, um lugar nesta grande cidade onde poderia fa-
zer algo sem ser interrompido. Como atrair Drebber a
essa casa era o difícil problema que eu tinha que resolver.
"Descendo a rua, ele entrou num e noutro bar
permanecendo quase meia hora no último deles. Quan-
do saiu, caminhou cambaleante, demonstrando que pas-
sara da conta. À minha frente ia um cupê e Drebber o
fez parar. Segui-o tão de perto que o focinho de meu
cavalo não ficou a mais de um metro de seu cocheiro
durante todo o percurso. Cruzamos a ponte de Water-
loo e percorremos quilômetros de rua até que, para
minha surpresa, voltamos à rua da pensão onde ele se
hospedara. Não conseguia imaginar por que razão ele
voltava para aquela casa, mas fui em frente e estacio-
nei meu carro a uns cem metros dali. Ele entrou na pen-
são e o cupê foi embora."
151
- Por favor, me dêem um copo de agua. i enno
a boca seca de tanto falar.
Alcancei-lhe um copo e ele bebeu toda a água.
- Assim está melhor - disse. - Bem, eu fiquei
esperando por um quarto de hora, ou mais, quando,
de repente, ouvi barulho de pessoas brigando dentro
da casa. No momento seguinte, a porta escancarou-se
e apareceram dois homens. Um era Drebber e o outro
um jovem que eu nunca vira antes: O rapaz agarrava
Drebber pelo colarinho e, quando chegaram ao alto
da escada, deu-lhe um empurrão e um pontapé que o
lançaram no meio da rua.
"- Canalha! - gritou o rapaz, brandindo a ben-
gala. - Vou lhe ensinar como se insulta uma moça séria!
"Ele estava tão furioso que poderia ter despedaça-
do Drebber a bengaladas, se o patife não descesse cam-
baleante a rua o mais rápido que suas pernas o permi-
tiam. Correu até a esquina e, vendo meu carro; fez si-
nal e entrou.
"- Leve-me para o Hotel Halliday - disse.
"Quando eu o tive dentro de meu carro, meu cora-
ção pulsava no peito com tanta alegria que temi fosse
aquele meu último momento, uma vez que o aneuris-
ma poderia não suportar a tensão. Eu dirigia devagar,
pensando qual seria a melhor coisa a fazer. Poderia le-
vá-lo diretamente para o campo e lá, em alguma estra-
da deserta, ter minha última entrevista com ele. Já esta-
va quase decidido quando ele próprio resolveu o proble-
ma para mim. A vontade de beber o dominava mais
uma vez, e ele ordenou que eu parasse em frente a uma
casa de bebidas. Entrou, depois de dizer que eu deveria
esperar por ele. Permaneceu lá até a hora de fechar-se
o estabelecimento e, quando saiu, estava tão bêbado
que percebi estar com todo o jogo em minhas mãos.
"Não pensem que pretendia matá-lo a sangue frio.
152
Se o fizesse, estaria cumprindo a mais estrita justiça,
mas não era o que eu queria. Há muito decidira dar-
lhe uma oportunidade de sobreviver, caso soubesse apro-
veitá-la. Entre os muitos ofícios que exerci na Améri-
ca, durante minha vida de andarilho, fui, uma vez, por-
teiro e varredor do laboratório da Universidade de
York. Um dia, o professor deu uma aula sobre vene-
nos e mostrou aos estudantes alguns alcalóides, como
os chamava, que extraíra de certo veneno usado em fle-
chas na América do Sul. Afirmou que eram tão poten-
tes que a menor porção provocava morte imediata. Lo-
calizei o frasco onde o preparado era guardado e, quan-
do todos se foram, retirei um pouquinho para mim.
Tinha uma boa prática em farmácia, de modo que trans-
formei aquele alcalóide em duas pequenas pílulas solú-
veis e pus cada uma em uma caixinha junto a uma pílu-
la similar, mas sem o veneno. Decidi que, quando che-
gasse a hora do encontro com os dois cavalheiros, ca-
da um escolheria sua pílula e eu engoliria as pílulas res-
tantes. Seria um método igualmente mortal, mas bem
menos ruidoso que disparar com um revólver através
de um lenço. Desse dia em diante, sempre carreguei co-
migo as caixinhas com as pílulas e, agora, era chega-
do o momento de usá-las.
"Estava mais perto de uma hora do que da meia-
noite. A noite era fria e tenebrosa; soprava um vento
furioso e chovia torrencialmente. Por mais feio que fos-
se o tempo lá fora, por dentro eu estava eufórico. Tan-
to que desejava gritar de pura alegria. Se algum dos se-
nhores já se consumiu por alguma coisa, sonhando com
ela por vinte longos anos e, de repente, conseguiu tê-
la ao alcance da mão, então poderá compreender co-
mo eu me sentia. Acendi um charuto e puxei umas ba-
foradas para acalmar meus nervos, mas minhas mãos
tremiam e mirihas têmporas latejavam de excitação.
153
Enquanto dirigia, podia ver Jonn rerrier e a doce Lucy
me olhando e sorrindo para mim no escuro, de modo
tão nítido como vejo vocês nesta sala. Durante todo o
percurso eles estiveram a minha frente, um de cada la-
do do cavalo, até eu parar diante da casa em Brixton Road.
"Não se via vivalma por ali e não se ouvia nenhum
som, exceto o da chuva caindo. Quando olhei pela jane-
linha do carro, vi Drebber todo encolhido, dormindo
seu sono de bêbado. Sacudi-o pelo braço.
"- Está na hora de descer - avisei.
"- Muito bem, cocheiro - respondeu.
"Imagino que tenha pensado estar chegando ao
hotel que havia mencionado, porque desceu sem dizer
nada e me seguiu pelo jardim. Eu tive que ficar ao la-
do dele para mantê-lo firme, porque não se mantinha
sobre as próprias pernas. Quando chegamos à porta,
eu a abri e fiz com que entrasse na sala. Dou minha
palavra que, durante o tempo todo, o pai e a filha ca-
minhavam a nossa frente.
"- Está escuro como o diabo! - disse ele, arras-
tando os pés.
"- Logo teremos luz - falei, riscando um fósfo-
ro e acendendo uma vela de cera que trouxera comigo.
- E agora, Enoch Drebber - continuei, virando-me
para ele e erguendo a vela à altura do rosto -, quem
sou eu?
"Ele me fitou por um momento com olhos turvos
e embriagados, mas logo vi brotar neles o horror que
convulsionou suas feições, revelando que me identifica-
ra. Cambaleou com o rosto lívido, enquanto eu via o
suor lhe inundar a testa e ouvia seus dentes batendo co-
mo castanholas. Diante de semelhante quadro, encostei-
me à porta e dei uma gargalhada. Sempre imaginei que
a vingança seria doce, mas não esperava ser tomado
por tal contentamento como o que sentia agora.
154
- "Cachorro! - exclamei. - 'Tenho seguido seu
rastro de Salt Lake City a São Petersburgo, e você sem-
pre me escapou. Agora, finalmente, suas andanças che-
garam ao fim, porque um de nós dois jamais voltará
a ver o sol se levantar.
"Ele se contraía cada vez mais á medida que eu
falava e podia ver em seu rosto que ele me julgava lou-
co. E eu, de fato, estava naquele momento. O sangue
martelava minhas têmporas e penso que teria sofrido
um ataque qualquer, se não o tivesse esguichado pelo
nariz, o que me deu alívio.
"- O que pensa agora de Lucy Ferrier? - gritei,
trancando a porta e sacudindo a chave diante de seu
rosto. - O castigo demorou a chegar, mas finalmente
o alcançou!
"Vi tremerem os lábios do covarde enquanto ele
falava. Teria suplicado por sua vida, se não estivesse
certo de que seria inútil.
"- Você vai me assassinar?
- gaguejou.
"- Não haverá nenhum assassinato - respondi.
- Quem fala de assassinato quando se trata de matar
um cão raivoso? Que piedade teve de minha pobre ama-
da, quando a afastou do pai trucidado para levá-la a
seu harém maldito e indecente?
"- Não fui eu que matei o pai dela! - exclamou.
"- Mas foi você que despedaçou seu coração ino-
cente - vociferei, estendendo a caixinha diante dele.
- Deixe que Deus julgue entre nós dois. Escolha uma
e engula. Há morte em uma e vida noutra. Vamos ver
se existe justiça na terra ou se somos dirigidos pelo acaso.
"Acovardado, ele se pôs a gritar e tentou fugir,
suplicando piedade, mas puxei minha faca e a encostei
em sua garganta até fazê-lo obedecer. Então, engoli a
pílula restante e ficamos em pé, encarando um ao ou-
tro, em silêncio, por um minuto ou mais, esperando para
155
saber quem viveria e quem iria morrer. J amais esquece-
rei a expressão que lhe cobriu o rosto quando começou
a sentir as primeiras dores, anúncio de que o veneno
estava em seu organismo. Eu me pus a rir e sacudi o
anel de noivado de Lucy frente a seus olhos. Foi ape-
nas por um momento, porque a ação do alcalóide é rá-
pida. Um espasmo de dor contorceu-lhe o rosto, ele es-
tendeu as mãos para frente, cambaleou e, então, com
um grito rouco, caiu pesadamente sobre o chão. Virei-o
com o pé e coloquei a mão sobre seu coração. Não ba-
tia. Ele estava morto!
"O sangue estivera correndo de meu nariz, mas
eu não percebera. Não sei o que foi que me deu a idéia
de escrever na parede com ele. Talvez a intenção per-
versa de colocar a polícia na pista errada, porque me
sentia animado e de coração leve. Recordei o caso de
um alemão encontrado morto em Nova York com a
palavra rache escrita acima dele. Na ocasião, os jornais
atribuíram o caso a sociedades secretas. Supus que, aqui-
lo que confundira os nova-iorquinos, confundiria, tam-
bém, os londrinos. Então, molhei o dedo em meu pró-
prio sangue e escrevi a mesma palavra num lugar conve-
niente na parede. Caminhei, depois disso, em direção
a meu carro e vi que não havia ninguém nos arredores,
porque a noite continuava horrível. Já havia percorri-
do uma certa distância quando pus a mão no bolso on-
de costumava levar a aliança de Lucy e percebi que não
estava lá. Fiquei atordoado com isso, porque era a úni-
ca lembrança que guardava dela. Imaginando que devia
tê-la deixado cair quando me debrucei sobre o corpo
de Drebber, voltei e, estacionando o carro em uma rua
lateral, corri ousadamente para a casa. Eu estava dis-
posto a qualquer audácia antes de perder a aliança.
Chegando lá, esbarrei com um policial que estava sain-
156
do, e a úmca torma de escapar de suas suspeitas ioi fin-
gir que estava totalmente embriagado.
"Foi assim que Enoch Drebber encontrou seu fim.
Tudo que me restava a fazer era dar o mesmo castigo
a Stangerson, para que pagasse seu débito com John
Ferrier. Sabía que estava hospedado no Hotel Halliday
e fiquei perambulando pelos arredores o dia inteiro,
mas ele não apareceu. Deve ter suspeitado de algo, quan-
do Drebber não compareceu ao encontro. Stangerson
era esperto e nunca afrouxava a guarda. Se pensava,
porém, que me manteria afastado, ficando dentro do
hotel, estava completamente enganado. Logo descobri
qual a janela de seu quarto. Na manhã seguinte, usan-
do uma das escadas que eram deixadas na passagem
atrás do hotel, subi até lá mal o dia clareava. Desper-
tei-o, avisando que tinha chegado a hora dele respon-
der pela vida que havia tirado tanto tempo atrás. Des-
crevi-lhe a morte de Drebber e ofereci a ele a mesma
escolha das pílulas envenenadas. Em lugar de aceitar a
oportunidade de salvação que eu lhe oferecia, saltou
da cama e voou em meu pescoço. Para defender-me,
apunhaleí-o no coração. Daria no mesmo, em qualquer
caso, porque a Providência não iria permitír que aque-
la mão culpada pegasse outra que não fosse a pílula en-
venenada.
"Tenho pouco mais a dizer, e ainda bem, porque
estou no fim de minhas forças. Continuei trabalhando
por mais um dia ou dois, esperando juntar o dinheiro
suficiente para voltar à América. Estava parado no esta-
cionamento quando um menino maltrapilho perguntou
se havia um cocheiro lá chamado Jefferson Hope e di-
zendo que um cavalheiro precisava de um carro na Ba-
ker Street, 221 B. Fui até lá sem suspeitar de nada e tu-
do o que sei é que, no momento seguinte, este jovem
aqui punha algemas em meus pulsos, com eficiência
157
nunca vista. Esta é toda minha história, cavalheiros.
Podem me considerar um assassino, mas, em minha
opinião, sou um instrumento da justiça como vocês tam-
bém o são."
Tão emocionante fora a narrativa daquele homem
e tão impressionante seu comportamento que havíamos
permanecido calados e absortos. Até mesmo os deteti-
ves profissionais, acostumados como eram a todos
os aspectos do crime, demonstraram estar vivamente
interessados na história de Jefferson Hope. Quando
concluiu, ficamos alguns momentos num silêncio que-
brado apenas pelo ruído do lápis de Lestrade no papel,
que dava os retoques finais em seu relato taquigrafado.
- Há apenas um ponto sobre o qual eu gostaria
de ter um esclarecimento - disse, por fim, Sherlock
Holmes. - Quem era o cúmplice que se apresentou pa-
ra recuperar a aliança quando publiquei o anúncio?
O prisioneiro piscou o olho para meu amigo de
modo jocoso.
- Posso contar-lhe meus segredos - respondeu
-, mas não ponho outras pessoas em encrenca. Vi seu
anúncio e pensei que tanto poderia ser uma cilada quan-
to, de fato, ser a jóia que buscava. Meu amigo dispôs-
se a ir ver. Penso que não vai deixar de admitir que ele
se saiu muito bem.
- Sem dúvida! - exclamou Holmes com ênfase.
- Agora, senhores - observou o inspetor com
gravidade -, vamos cumprir com as formalidades le-
gais. Na quinta-feira, o prisioneiro será levado a tribu-
nal e a presença dos senhores será exigida. Até lá, eu
serei responsável por ele.
Tocou uma sineta enquanto falava e Jefferson Ho-
pe foi conduzido por dois guardas, enquanto meu ami
go e eu deixamos o posto policial e pegamos um carro
em direção a Baker Street.
158
7. Conclusão

Tínhamos sido todos convocados a comparecer pe-
rante os magistrados na quinta-feira. Mas, quando es-
se dia chegou, não havia mais necessidade de nosso tes-
temunho. Um juiz mais alto tomara o assunto em suas
mãos, e Jefferson Hope fora intimado a um tribunal
que o julgaria com absoluta justiça. Na mesma noite
após sua captura, o aneurisma estourou e, pela manhã,
ele foi encontrado estirado sobre o piso da cela, com
um plácido sorriso estampado no rosto. Era como se,
em seus momentos finais, recapitulando a vida que leva-
ra, tivesse concluído que fora útil e que cumprira sua
missão.
- Gregson e Lestrade ficarão furiosos com essa
morte - observou Holmes, quando comentávamos o
caso na noite seguinte. - Acabou-se a grande publici-
dade que esperavam ter.
- Não vejo que grande participação tiveram nes-
sa captura - respondi.
159
- O que voce traz neste munao nao tem nenhuma im-
portância - replicou meu companheiro com amargu-
ra. - A questão é o que os outros acreditam que vo-
cê fez. Não importa - continuou ele mais animado,
após uma pausa. - Eu não perderia essa investigação
por nada. Não houve caso melhor de que me lembre.
Apesar de simples, apresentou aspectos bastante instru-
tivos.
- Simples? ! - exclamei.
- Bem, na verdade, é difícil considerá-lo de outra
forma - disse Sherlock Holmes, sorrindo diante de
minha surpresa. - A prova de sua intrínseca simplici-
dade é que, apenas com a ajuda de algumas deduções
bastante comuns, fui cápaz de prender o criminoso
em três dias.
- É, isso é verdade - concordei.
- Já comentei com você que um detalhe fora do
comum funciona mais como uma orientação do que co-
mo um obstáculo. Para resolver problemas semelhantes,
o fundamental é saber raciocinar de modo retrospecti-
vo. É um procedimento de grande utilidade e muito fá-
cil, apesar das pessoas recorrerem pouco a ele. Nos as-
suntos do dia-a-dia, o mais conveniente é raciocinar
para frente e, assim, a outra forma de pensar acaba sen-
do negligenciada. Para cinqüenta pessoas que racioci-
nam sinteticamente, há apenas uma que raciocina de
modo analítico.
- Confesso que não estou entendendo bem o que
quer dizer - falei.
- Não esperava que o fizesse. Deixe ver se consi-
go ser mais claro. A maioria das pessoas, quando ou-
vem a descrição de uma seqüência de eventos, são capa-
zes de dizer qual o provável resultado deles. Alinham
mentalmente esses acontecimentos e deduzem o que vi-
rá a acontecer. Há poucas pessoas, no entanto, que,
160
conhecendo um resultado, são capazes de desmontá-lo
interiormente e recompor cada etapa do processo que
levou a tal conclusão. É dessa faculdade que falo, quan-
do me refiro a raciocinar retrospectivamente ou de for-
ma analítica.
- Compreendo.
- Este foi um caso em que só se tinha o resulta-
do e todo o resto ficou por nossa conta descobrir. Dei-
xe eu tentar mostrar as diferentes etapas de meu racio-
cínio. Vamos começar pelo princípio. Como sabe, che-
guei a casa a pé e com a mente livre de qualquer impres-
são. Naturalmente, comecei pelo exame da rua e lá,
conforme já lhe expliquei, vi com clareza as marcas
de um carro que, foi confirmado na investigação que
fiz, havia estado na casa durante a noite. Tive certeza
de que era um carro de aluguel, e não um particular,
pela bitola estreita das rodas. O que costuma circular
em Londres é bem mais estreito que a carruagem de
um cavalheiro.
"Esse foi o primeiro ponto ganho. Caminhei, en-
tão, vagarosamente pela trilha do jardim, que era de
solo argiloso, muito bom para guardar impressões. Sem
dúvida aquilo pareceu a você apenas um lamaçal pisote-
ado, mas para meus olhos treinados cada marca tinha
um significado. Não há ramo da ciência da investiga-
ção que seja tão importante e tão negligenciado quan-
to a arte de identificar pegadas. Por sorte, sempre me
dediquei muito a isso e a prática constante fez com que
se tornasse em mim uma segunda natureza. Notei as
pesadas pegadas do agente policial, mas reparei também
na dos dois homens que primeiro passaram pelo jar-
dim. Era fácil dizer que eram anteriores, porque em
alguns lugares suas pegadas haviam sido inteiramente
apagadas pelas que vieram depois. Formei, então, o se-
gundo elo de minha cadeia, que me dizia que os visitantes
161
noturnos eram dois, um deles de estatura notável (con-
forme calculei pela largura de seus passos) e o outro
elegantemente vestido, a julgar pela marca pequena e
distinta deixada por suas botas.
"Quando entrei na casa, essa suposição foi confir-
mada. O homem bem calçado jazia a minha frente. O
alto, portanto, cometera o assassinato, se é que houve-
ra um. A vítima não apresentava ferimentos aparentes,
mas a expressão perturbada em sua face me garantia
que tinha pressentido seu destino antes de ser abati-
do por ele. Quem morre de doença cardíaca, ou de ou-
tra súbita causa natural, jamais apresenta feições tão
dramáticas.
"Ao cheirar os lábios do homem morto, percebi
um ligeiro odor acre, e concluí que ele havia sido força-
do a beber veneno. Confirmei isso em vista da expres-
são de ódio e de medo em sua face. Cheguei a tal resul-
tado pelo método de exclusão, pois nenhuma outra hi-
pótese se adaptaria aos fatos. Não imagine que foi uma
idéia muito incomum. A administração forçada de vene-
no não é, de maneira nenhuma, algo novo nos anais
do crime. Os casos de Dolsky, em Odessa, e de Letu-
rier, em Montpellier, teriam ocorrido logo a um toxico-
logista.
"Agora, vinha a grande questão: por quê? Não
era roubo o móvel do crime, uma vez que nada tinha
sido levado. Seria algo ligado à política? Ou a uma
mulher? Com essa questão eu me debatia. Desde o iní-
cio, eu me havia inclinado a essa última suposição. As-
sassinos políticos fazem seu serviço e desaparecem.
Aquele assassinato, ao contrário, tinha sido cometido
deliberadamente e o executante deixara suas marcas
na sala inteira, mostrando que ele havia estado lá o tem-
po todo. Devia ser um problema pessoal e não políti-
co, uma vez que a vingança fora tão metódica. Quan-
162
do a inscriçáo ioi descoberta na parede, convenci-me
mais do que nunca de que estava certo. Era evidente
que se tratava de um artifício para despistar. Quando
a aliança foi encontrada, no entanto, tudo se confir-
mou. Era evidente que o assassino a usara para lem-
brar a vítima de alguma mulher morta ou ausente. Foi
nessa altura que perguntei a Gregson se, no telegrama
enviado a Cleveland, ele pedira informações a respeito
de algum ponto em particular na vida pregressa de Dreb-
ber. Ele respondeu, você lembra, negativamente.
"Passei, então, a fazer um cuidadoso exame da
peça, o que confirmou minha opinião a respeito da altu-
ra do assassino, além de fornecer detalhes adicionais,
como o charuto Trichinopoly e o comprimento das
unhas. Eu havia chegado à conclusão, uma vez que não
existiam sinais de luta, de que o sangue que manchava
o chão escorrera do nariz do assassino tal era sua exci-
tação. Pude perceber que a direção do sangue coincidia
com a de seus pés. É raro que um homem, a menos
que tenha compleição sangüínea, perca tanto sangue
devido à tensão do momento. Assim, arrisquei o palpi-
te de que o criminoso era um homem robusto e de ros-
to corado. Os fatos provaram que eu estava com a razão.
"Depois que saí da casa, fui fazer o que Gregson
negligenciara. Telegrafei ao chefe de polícia de Cleve-
land, restringindo meu pedido de informações às circuns-
tâncias relacionadas ao casamento de Enoch Drebber.
A resposta foi conclusiva. Soube que Drebber já havia
solicitado proteção policial contra um antigo rival em
um caso de amor, cujo nome era Jefferson Hope e que,
no momento, estava na Europa. Fiquei, então, saben-
do que já tinha a chave do mistério nas mãos e que só
restava apanhar o assassino.
"Estava convicto de que o homem que entrara na
casa com Drebber não era outro senão aquele que diri-
163
gia o carro. As marcas na estrada me revelaram que o
cavalo havia ficado andando de um lado para outro,
o que não teria acontecido se alguém estivesse toman-
do conta dele. Então, onde estaria o cocheiro, se não
dentro de casa? Mais uma vez, seria absurdo supor que
um homem em juízo perfeito cometesse um crime deli-
berado em presença de uma terceira pessoa que poderia
traí-lo. Por último, supondo que um homem quisesse
seguir outro através de Londres, que melhor saída do
que transformar-se em cocheiro de aluguel? Todas es-
sas considerações levavam-me à conlusão irresistível
de que Jefferson Hope poderia ser encontrado entre
os cocheiros da metrópole.
"Se havia se transformado num deles, não existia
razão para acreditar que tivesse deixado de sê-lo. Ao
contrário, pelo seu ponto de vista, qualquer mudança
repentina iria atrair a atenção sobre ele. Era provável,
portanto, que, pelo menos por um tempo, ele continuas-
se exercendo a mesma função. Não havia nenhuma ra-
zão para supor que estivesse sob nome falso. Por que
trocaria de nome num país onde ninguém o conhecia?
Organizei, então, minha patrulha de detetives de meni-
nos de rua e mandei-os investigar sistematicamente to-
dos os proprietários de carro de aluguel em Londres,
até que encontrassem o homem que eu queria. Você
ainda deve ter clara lembrança de como eles foram bem
sucedidos e de quão rápido tirei vantagem disso. O as-
sassinato de Stangerson foi um incidente totalmente ines-
perado, mas, de qualquer modo, difícil de ser evitado.
E foi através desse assassinato, como você bem o sa-
be, que tive acesso às pílulas, de cuja existência já ha-
via suspeitado. Você vê que a história toda foi um enca-
deamento lógico de seqüências sem a menor falha ou
interrupção."
- É fantástico! - exclamei. - Seus méritos deve-
164
riam ser publicamente reconhecidos. Você devia publi-
car um relato do caso. Se não o fizer, eu o farei por você!
- Faça como quiser, doutor - respondeu. - Ve-
ja isto! - acrescentou, estendendo-me um jornal. Olhe
o que diz!
Era a edição do Eco daquele dia, e o parágrafo
por ele indicado era a respeito do caso em questão.
"O público", dizia o jornal, "perdeu uma oportu-
nidade sensacional com a repentina morte de Hope, o
suspeito pela morte de Enoch Drebber e Joseph Stan-
gersoIi. É provável que os detalhes do caso jamais che-
guem a ser conhecidos, embora saibamos por fonte
segura que o crime foi o resultado de uma antiga dispu-
ta sentimental, na qual amor e mormonismo tiveram
sua parte. Consta que ambas as vítimas, quando jo-
vens, pertenceram à religião dos Santos dos Últimos
Dias, e Hope, o prisioneiro morto, também provinha
de Salt Lake City. Se o caso não tiver outras conseqüên-
cias, terá servido, ao menos, para evidenciar, de manei-
ra notável, a eficiência de nossa força policial. Funcio-
nou, também, como uma lição aos estrangeiros, de que
é melhor que resolvam suas contendas em casa, em lu-
gar de transferi-las para solo britânico. Não é nenhum
segredo que os créditos de tão brilhante captura perten-
cem inteiramente aos conhecidos investigadores da Sco-
tland Yard, os senhores Lestrade e Gregson. Ao que
parece, o indivíduo foi preso na residência de um cer-
to Sr. Sherlock Holmes, ele próprio um detetive ama-
dor que demonstra certo talento para a investigação.
Contando com tais mestres, é de se esperar que, com
o tempo, o Sr. Holmes adquira parte da habilidade de
Gregson e Lestrade. Espera-se que os dois oficiais rece-
bam algum certificado como reconhecimento por seus
serviços" .
- Não foi o que eu lhe disse que aconteceria quan-
165
do tudo começou'I - exclamou Sherlock Holmes com
uma risada. - Aí temos o resultado de nosso "Estu-
do em vermelho": dar-lhes um certificado de reconheci-
mento público.
- Não importa - respondi. - Tenho todos os
fatos registrados em meu diário e o público irá conhe-
cê-los. Até lá, você pode desfrutar a consciência do su-
cesso, como aquele avarento romano: Populus me sibi-
lat, at mihi plaudo Ipse domi simul ac nummos contem-
plar in arca'.
* O povo me vaia, mas eu me aplaudo, quando contemplo o dinheiro
em minha arca. (N. do T.)
166
Quem é Sir Arthur Conan Doyle
Arthur Conan Doyle, novelista inglës, nasceu em 1859 e morreu
em 1930.
Formou-se em Medicina, exercendo a profissão por apenas oito
anos.
Escrevia novelas desde a juventude, no entanto o sucesso junto
ao público aconteceu em 1887, com a obra A s!udy in scarlet (Um
estudo em nermelho), na qual criou Sherlock Holmes, o famoso
detetive da Baker Street, e seu fiel ajudante, Watson. Esta novela
foi tão bem aceita que Conan Doyle iniciou então a série Sherlock
liolmes, totalizando cinqüenta e seis contos e três outras novelas:
The sign of the four (O signo dos quatro), The hound of the Basker-
villes (O cão dos Baskervilles) e The ~alley of fear (O ~ale do me-
do).
Comentam os críticos que, enciumado pelo sucesso de Sher-
lock Holmes, seu próprio criador escreveu um conto assassinando-
o. A reação dos leitores foi tão forte que Conan Doyle foi obrigado a
ressuscitá-lo, em outra história.
Além da série policial de Sherlock, Conan Doyle escreveu pe-
ças de teatro, romances históricos, novelas de mistério e poesia.
Mais tarde, abandonou a ficção para dedicar-se ao estudo do espi-
ritismo.
Em 1902, o governo britânico concedeu título de nobreza a Co-
nan Doyle.
Bibliografia consultada
Enciclopédia Delta Universal. Rio de Janeiro, Editora Delta, vol. 4,
1980.
Albuquerque, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do ro-
mance policial. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1979.

Fim
Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!


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