O Unico e Eterno Rei - T. H. White - Txt

T. H. White
O ÚNICO E ETERNO REI
Tradução de Maria José Silveira
Ilustrações de Alan Lee



Título original: The Sword in the Stone
1938 by T. H. White


Índice


INCIPIT LIBER PRIMUS – A Espada na Pedra
INCIPIT LIBER SECUNDUS – A Rainha do Ar e das Sombras
INCIPIT LlBER TERTIUS – O Cavaleiro Imperfeito
INCIPIT LIBER QUARTUS – A Chama ao Vento
INCIPIT LIBER QUINTOS – O Livro do Merlin
EXPLICIT LIBER


O Eterno e Futuro Rei 01
A ESPADA NA PEDRA



INCIPIT LIBER PRIMUS


Ela não é terra comum
Água, madeira ou ar,
Mas Gramarye, ilha de Merlin
Onde você e eu iremos chegar



I


Segundas, quartas e sextas eram dias de Beija-Mão e Summulae Logicales e, no resto da semana,
Princípios de Investigação, Recapitulação e Astrologia. A preceptora sempre se atrapalhava com o
astrolábio e, quando ficava especialmente atrapalhada, ela o tomava das mãos de Wart, batendo-lhe
nos nós dos dedos. Não batia nos nós dos dedos de Kay porque Kay, quando crescesse, seria Sir
Kay, o senhor da propriedade. Wart era chamado de Wart porque rimava mais ou menos com Art, e
era uma abreviatura de seu verdadeiro nome. Kay lhe dera esse apelido. Kay era chamado apenas
de Kay, pois era muito importante para ter apelido, e imediatamente teria um ataque se alguém
tentasse lhe dar um. A preceptora tinha cabelos ruivos e uma ferida misteriosa com a qual
conseguia grande prestígio ao mostrá-la, a portas fechadas, para todas as mulheres do castelo.
Diziam que estava no lugar onde ela se sentava, e que fora causada por ter se sentado, por engano,
sobre uma armadura em um piquenique. Ela acabou se oferecendo para mostrá-la a Sir Ector, que
era pai de Kay, teve um ataque histérico e foi mandada embora. Depois descobriram que ela havia
passado três anos em um hospício.

De tarde o programa era: segundas e sextas, torneio e equitação; terças, falcoaria; quartas, esgrima;
quintas, arco e flecha; sábados, a teoria da Cavalaria, com as maneiras adequadas de se receber um
golpe em qualquer situação, terminologia da etiqueta da caça e perseguição. Se, por exemplo,
fizessem a coisa errada no toque de "mort" ou no "desmanche", eram curvados sobre o corpo do
animal morto e recebiam um golpe com o lado cego da espada. Isso era chamado de ser laminado.
Era uma grosseria, uma espécie de brincadeira, como ter o cabelo raspado ao cruzar pela primeira
vez a linha do Equador. Kay, no entanto, nunca fora laminado, embora errasse com freqüência.

Quando se livraram da preceptora, Sir Ector disse:

— Afinal de contas, maldição, os meninos não podem ficar correndo o dia todo como
desordeiros... afinal de contas, maldição? Deveriam ter uma educação de primeiro grau. Quando eu
tinha a idade deles, tinha toda essa coisa de Latim e o resto às cinco, toda manhã. O tempo mais
feliz de minha vida. Passa o Porto.
Sir Grummore Grummursum, que ficou para passar a noite porque fora surpreendido no meio de
uma busca, depois de uma corrida especialmente longa, disse que, quando tinha a idade deles,
desaparecia toda manhã porque ia atrás dos falcões em vez das lições. Atribuía a essa fraqueza o
fato de nunca ter conseguido passar do futuro simples de Utor. Ficava na metade inferior da coluna
esquerda, ele disse. Na página noventa e sete, achava. Passou o Porto.

Sir Ector perguntou:


— Teve uma boa busca hoje?
— Oh, nada má — Sir Grummore disse. — Um dia esplendidamente bom, na verdade. Encontrei
um camarada chamado Sir Bruce Saunce Pite cortando a cabeça de uma donzela em Weedon
Bushes, corri atrás dele até a Mixbury Plantation, em Bicester, daí ele fugiu de novo, e o perdi em
Wicken Wood. Deve ter sido uns bons quarenta quilômetros.
— Uma perseguição das boas — comentou Sir Ector. — Mas quanto a esses meninos e todo esse
Latim e tudo isso — acrescentou o velho cavalheiro. — Amo, amas, entende?, e ficarem nesse
corre-corre de desordeiros: o que você aconselharia?
— Ah — disse Sir Grummore, colocando um dedo no nariz e dando uma piscadela para a garrafa
—, isso requer que se pense bem a respeito, se você não se importa que o diga.
— De jeito nenhum — disse Sir Ector. — Muito gentil de sua parte dizer seja o que for. Muito
amável, com certeza. Sirva mais Porto.
— Bom esse Porto.
— Ganhei de um amigo.
— Mas quanto a esses meninos — disse Sir Grummore. — Quantos eles são, você sabe?
— Dois — respondeu Sir Ector —, isto é, contando ambos.
— Eles não poderiam ser enviados a Eton, suponho? — perguntou Sir Grummore cautelosamente.
— Muito longe e tudo isso, bem sabemos.
Não era exatamente Eton que ele queria dizer, pois o Colégio da Sagrada Maria só seria fundado
em 1440, mas a um lugar do mesmo tipo. Também, estavam bebendo hidromel e não Porto, mas
mencionar o vinho moderno dá uma idéia melhor.

— Não é tanto a distância — disse Sir Ector — mas aquele gigante — qual-é-mesmo-o-nomedele?
— que está no caminho. Tem de passar pela terra dele, você sabe.
— Qual é mesmo o nome dele?
— Não consigo me lembrar no momento, por nada nesse mundo. É aquele que vive perto de Burbly
Water.
— Galapas — disse Sir Grummore.
— Exatamente esse.
— A única outra possibilidade — disse Sir Grummore — é ter um tutor.
— Você quer dizer um camarada que ensina.
— Isso mesmo — disse Sir Grummore. — Um tutor, você sabe, um camarada que ensina.
— Sirva mais Porto — disse Sir Ector. — Você precisa, depois de toda essa busca de hoje.
— Dia esplêndido — disse Sir Grummore. — Só que, atualmente, parece que nunca se mata.
Corre-se quarenta quilômetros e então, ou se cai no chão, ou você o perde completamente. O pior é

quando se começa uma busca nova.

— Matamos todos os filhotes de nossos gigantes — comentou Sir Ector. — Depois disso, eles o
fazem correr, mas logo somem.
— Perdem o faro — disse Sir Grummore —, ouso dizer. É sempre a mesma coisa com esses
grandes gigantes em um território grande. Perdem o faro.
— Mas mesmo se fosse para ter um tutor — disse Sir Ector —, não vejo como conseguir um.
— Anúncio — disse Sir Grummore.
— Já anunciei — disse Sir Ector. — Publiquei no Humberland Newsman e no Cardoile
Advertiser.
— A única outra maneira — disse Sir Grummore — é começar uma busca.
— Você quer dizer uma busca de um tutor — comentou Sir Ector.
— Isso.
— Hic, Haec, Hoc — disse Sir Ector. — Tome mais desta bebida, seja qual for o nome que ela
tenha.
— Hunc — disse Sir Grummore.
Assim ficou decidido. Quando Grummore Grummursum voltou para casa no dia seguinte, Sir Ector
deu um nó no lenço para se lembrar de começar uma busca por um tutor assim que tivesse tempo
para isso e, como não tinha certeza de como proceder, contou para os meninos o que Sir Grummore
sugerira e os advertiu para não serem desordeiros nesse entretempo. Depois, todos foram trabalhar
no feno.

Era julho, e todos os homens e mulheres capacitados da propriedade trabalhavam no campo durante
esse mês, sob a direção de Sir Ector. Naquele momento, de qualquer maneira, os meninos teriam
sido dispensados de receberem qualquer edificação.

O castelo de Sir Ector ficava numa enorme clareira em uma floresta ainda maior. Tinha um pátio e
um fosso com peixes. O fosso era cruzado por uma ponte de pedra fortificada que terminava no
meio do cruzamento. A outra metade era coberta por uma ponte de madeira levadiça que era içada
toda noite. Assim que se atravessava a ponte levadiça, estava-se no topo da rua da aldeia — existia
somente uma rua —, que se estendia por cerca de oitocentos metros, com casas de taipa e telhado
de colmo grosseiramente pintadas, de ambos os lados. A rua dividia a clareira em dois campos
enormes, o da esquerda sendo cultivado em centenas de leiras compridas e estreitas, enquanto o da
direita descia até um rio e era usado como pasto. A metade do campo da direita era proibida para
feno.

Era julho, com um clima verdadeiro de julho, como os que se tinha na Velha Inglaterra. Todo
mundo estava bronzeado, como índios pele-vermelha, com dentes faiscando e olhos brilhantes. Os
cachorros passavam com a língua de fora ou se deitavam ofegantes nas pontas das sombras,
enquanto os cavalos da fazenda suavam pelo pêlo, chicoteavam os rabos e tentavam escoicear as
mutucas da barriga com suas grandes patas traseiras. Nos campos de pastagem, as vacas


perambulavam, e podiam ser vistas galopando com os rabos levantados para o ar, coisa que
enfurecia Sir Ector.

Sir Ector ficava de pé no alto de uma meda, de onde podia ver o que todo mundo fazia, gritando
ordens por todo o campo de duzentos acres, e ficando com o rosto cada vez mais vermelho. Os
melhores ceifeiros ceifavam em uma faixa onde a relva ainda não fora cortada, as foices bramindo
sob a forte luz do sol. Com ancinhos de madeira, as mulheres juntavam o feno seco em faixas
compridas, e os dois meninos seguiam de cada lado da faixa, com forcados, virando o feno para
dentro para que ficasse em ordem para ser recolhido. Então vinham as grandes carroças, ressoando
com as rodas de madeiras guarnecidas de pontas de ferro, puxadas por cavalos ou bois brancos
vagarosos. Um homem ia em pé na carroça para receber o feno e dirigir as operações, enquanto
outro ia caminhando em um dos lados e pegando, com um forcado, o que os meninos tinham
preparado, e jogando-o para o outro homem. A carroça era conduzida ao longo da trilha entre as
duas faixas de feno, e carregada metodicamente da frente para trás, o homem em pé na carroça
gritando com voz severa onde queria que cada forcado fosse arremessado. Os carregadores
resmungavam com os meninos por não terem arrumado direito o feno e ameaçavam dar-lhes uma
surra quando os pegassem, se eles fossem deixados para trás.

Quando o vagão ficava cheio, era levado para a meda de Sir Ector e ali descarregado. A carga caía
facilmente porque tinha sido carregada com método — não como o feno moderno — e Sir Ector,
desajeitado, trepava até o topo, atrapalhando seus assistentes que verdadeiramente faziam o
trabalho, e batendo e transpirando e arranhando com seu forcado, tentando fazer a meda ficar firme,
e gritando que tudo cairia assim que os ventos do oeste chegassem.

Wart adorava apanhar o feno, e era bom nisso. Kay, que era dois anos mais velho, geralmente
ficava muito perto do feixe que tentava pegar e, em conseqüência, trabalhava duas vezes mais do
que Wart com apenas metade do resultado. Mas odiava ser vencido em qualquer coisa, e costumava
labutar com o maldito do feno — que abominava como veneno — até ficar completamente passado.

O dia seguinte à visita de Sir Grummore foi sufocante para os homens que trabalharam de ordenha a
ordenha, e depois outra vez até o pôr do sol, na batalha contra o elemento opressivo. O feno, para
eles, era um elemento, como o mar ou o ar, no qual se banhavam e mergulhavam e até respiravam.
As sementes e palhinhas grudavam-se-lhes nos cabelos, bocas, narinas e ficavam fazendo cócegas
dentro de suas roupas. Não usavam muitas roupas, e as sombras entre seus músculos flexíveis
pareciam azuis nas peles bronzeadas como nozes. Os que temiam trovões tinham se sentido
apreensivos naquela manhã.

À tarde, a tempestade irrompeu. Sir Ector manteve-os trabalhando até que os grandes relâmpagos
estavam sobre suas cabeças, e então, com o céu tão escuro como noite, a chuva veio arremessando
contra eles, deixando-os imediatamente ensopados e sem conseguir ver quase nada à sua frente. Os
meninos agacharam-se debaixo das carroças, enrolados no feno para manterem os corpos molhados
aquecidos contra o vento agora frio, e todos brincavam uns com os outros enquanto o céu desabava.
Kay estava tremendo, embora não de frio, mas brincava como os outros, pois não queria mostrar
que estava com medo. Com o último e maior dos trovões, todos os homens involuntariamente se
assustaram e cada um viu o susto do outro, então começaram a rir para afastar a vergonha.


Aquele foi o fim do trabalho com o feno e o começo das brincadeiras. Os meninos foram para casa
mudar de roupa. A velha dama que fora ama-seca dos dois rapidamente foi buscar jaquetas de
couro secas, ralhou com eles por estarem brincando com a morte, e censurou Sir Ector por ter
demorado tanto. Então eles enfiaram as roupas limpas cabeça abaixo, e correram para o pátio
fresco e reluzente.

— Eu voto para pegarmos Cully e ver se conseguimos caçar alguns coelhos — gritou Wart.
— Os coelhos não saem no molhado — disse Kay com sarcasmo, encantado por pegá-lo em
História Natural.
— Ora, vamos! Logo vai estar seco.
— Então, eu carrego Cully.
Kay insistia em carregar o açor e fazê-lo voar quando iam falcoar juntos. Tinha o direito de fazer
isso, não só por ser mais velho que Wart, mas também porque era filho legítimo de Sir Ector. Wart
não era filho legítimo. Ele não entendia isso direito, mas sentia-se triste por que Kay parecia achar
que isso, de alguma forma, o tornava inferior. Também era diferente não ter pai e mãe, e Kay lhe
dissera que ser diferente era errado. Ninguém falava com ele sobre isso, mas Wart pensava nisso
quando estava só, e sentia-se angustiado. Não gostava que as pessoas trouxessem o assunto à baila.
Como o outro menino sempre tocava no assunto quando uma questão de precedência surgia, ele
pegou o hábito de imediatamente ceder, antes que o assunto precisasse ser mencionado. Além
disso, admirava Kay e era um seguidor nato. Era um "adorador de heróis".

— Então vamos — gritou Wart, e partiram precipitadamente para as Gaiolas, derrubando alguns
carrinhos de mão pelo caminho.
As Gaiolas eram uma das partes mais importantes do castelo, perto dos estábulos e dos canis.
Ficava em frente ao solário, viradas para o sul. As janelas que davam para fora tinham que ser
pequenas, por razões de fortificação, mas as janelas que davam para o pátio interno eram grandes e
ensolaradas. As janelas tinham ripas verticais pregadas bem juntas, mas não horizontais. Não havia
vidros, e para evitar as correntes de ar para os falcões, havia lamelas de chifres nas janelas
pequenas. No fundo das Gaiolas havia uma pequena lareira e um tipo de recanto, como o lugar
onde, no quarto dos arreios, os cavalariços se sentam para limpar seus apetrechos nas noites
úmidas depois da caça às raposas. Ali havia alguns tamboretes, um caldeirão, uma banqueta com
todos os tipos de facas pequenas e instrumentos cirúrgicos, e algumas prateleiras cheias de potes.
Os potes estavam etiquetados Cardamono, Gengibre, Açúcar de Cevada, Disputa, Para o
Resfolego, Para a Prisãode Ventre, Vertigem etc. Havia pedaços de couro pendurados, que eram
cortados à medida que se tiravam pedaços para fazer peias, caparão ou trelas. Em uma fileira bem
arrumada de pregos havia campainhas indianas, tornéis e anilhas de prata, todos com um "Ector"
gravado. Em uma prateleira especial, e a mais bonita, estavam os caparões: uns muito antigos e
gretados que tinham sido feitos para as aves antes de Kay nascer, outros minúsculos, para os
esmerilhões, ou pequenos, para os falcões machos, excelentes, novos, feitos para as noites longas
de inverno. Todos os caparões, exceto os destinados aos pólos recém-capturados, tinham as cores
de Sir Ector: couro branco com baetas laterais vermelhas e um tufo de plumas cinza-azuladas no


topo, feito das penas do pescoço da garça real. Na bancada, havia uma mixórdia de bugigangas
como as encontradas em toda oficina, pedaços de corda, arame, metal, ferramentas, pedaços de pão
e queijo por onde os camundongos já tinham passado, uma garrafa de couro, algumas manoplas
desgastadas de armaduras para a mão esquerda, pregos, pedaços de saco, um par de chamarizes e
alguns entalhes toscos feitos na madeira, onde se lia: Conays 11111111, Harn 111 etc. Não estavam
escritos corretamente.

Por todo o comprimento da sala, com a luz do sol da tarde incidindo sobre eles, estavam os
poleiros onde os pássaros ficavam amarrados. Havia dois esmerilhões pequenos que mal tinham
sido tirados da liberdade parcial, uma velha falcoa peregrina que não tinha muita utilidade nessa
terra de florestas, mas que era mantida pelas aparências, um gavião peneira com o qual os meninos
aprenderam os rudimentos da falcoaria, um gavião que Sir Ector tinha a gentileza de manter para o
pároco e, engaiolado em um compartimento especial todo seu no canto do final, ficava o açor
macho Cully.

As gaiolas eram mantidas bem arrumadas, com serragem no chão para absorver os excrementos,
que eram retirados todos os dias. Sir Ector visitava o lugar toda manhã às sete horas e os dois
tratadores ficavam em posição de sentido do lado de fora da porta. Se tivessem se esquecido de
pentear os cabelos, ele mandava encarcerá-los nos quartéis. Não se incomodavam com isso.

Kay calçou uma das manoplas da mão esquerda e chamou Cully do poleiro — mas Cully, com
todas as suas penas fechadas e de mau humor, encarou-o com um olho enraivecido e se recusou a
obedecer. Então Kay o pegou.

— Você acha que devemos fazê-lo voar? — perguntou Wart, em dúvida. — Assim tão mau-
humorado como está?
— Claro que podemos fazê-lo voar, seu bobóide — disse Kay. — Ele só quer ser carregado um
pouco, só isso.
Então atravessaram o campo de feno, notando como o feno cuidadosamente revolvido estava outra
vez encharcado e perdendo sua excelência, e entraram no campo de caça onde as árvores
começavam a crescer, ainda bastante esparsas como em um parque, mas gradualmente se
compactando em direção à sombra da floresta. Os coelhos tinham centenas de tocas debaixo dessas
árvores, tão próximas umas das outras que o problema não era achar um coelho, mas achar um
coelho longe o bastante de seu buraco.

— Hob diz que não devemos fazer Cully voar se antes ele não tiver se levantado pelo menos duas
vezes — disse Wart.
— Hob não sabe nada disso. Ninguém pode dizer se um falcão está pronto para voar exceto o
homem que o está carregando.
De qualquer maneira, Hob não é mais que um enxerido — acrescentou Kay, e começou a
desprender a trela e o tornei das peias.

Quando sentiu que os arreios estavam sendo tirados e que, portanto, ele estava com ordem de caça,
Cully realmente fez alguns movimentos como se fosse se levantar. Ergueu a crista, as penas dos


ombros e a penugem macia das coxas. Mas, no último momento, pensou melhor ou pior, e aquietou-
se sem estrépito. Esse movimento do falcão fez Wart se coçar de vontade de carregá-lo. Ansiava
por tirá-lo de Kay e prepará-lo, ele mesmo, para voar. Tinha certeza de que poderia fazer Cully
ficar de bom humor coçando seus pés e eriçando-lhe suavemente as penas do peito, se pelo menos
lhe fosse permitido cuidar dele ele mesmo, em vez de ter que se arrastar atrás com a isca estúpida.
Mas sabia o quanto devia ser chato para o amigo mais velho ser permanentemente alvo de
recomendações, e assim resolveu ficar quieto. Da mesma maneira como no tiro ao alvo moderno,
nunca se deve criticar quem está no comando, assim também na falcoaria era importante não
permitir que conselhos de fora prejudicassem o julgamento do falcoeiro.

— Ô-Ôoo! — gritou Kay, jogando os braços para o alto para permitir ao falcão uma melhor
decolagem, um coelho passou em disparada pela relva toda roída à frente deles, e Cully estava no
ar. O movimento surpreendeu Wart, o coelho e o falcão, e todos os três pararam um momento, pela
surpresa. Então, as grandes asas do assassino aéreo começaram a cortar o ar, mas de modo
relutante e indeciso. O coelho sumiu em uma toca escondida. E o falcão voou, subindo como uma
criança e lançando-se alto num balanço, até as asas se fecharem e ele pousar no galho de uma
árvore. Cully olhou seus mestres lá embaixo, abriu o bico em raivosa arfada de frustração e
permaneceu imóvel. Os dois corações pararam.

II


Um bom tempo depois, quando cansaram de assobiar, e colocar iscar e seguir de árvore em árvore

o falcão perturbado e amuado, Kay perdeu a calma.
— Deixe-o ir, então — disse. — Não tem mesmo utilidade alguma.
— Ah, não podemos deixá-lo ir — disse Wart. — O que Hob vai dizer?
— O falcão é meu, não do Hob — exclamou Kay, furioso. — Que importa o que Hob diga? Ele é
um servo.
— Mas foi Hob quem treinou Cully. É fácil para nós perdê-lo, porque não tivemos que ficar em pé
com ele três noites e carregá-lo o dia todo e tudo isso. Mas não podemos perder o falcão de Hob.
Seria abominável.
— Ele merece. É um tolo e esse é um falcão estragado. Quem quer um falcão estúpido e estragado?
Se você está tão interessado nisso, então você fica. Eu vou para casa.
— Eu fico — disse Wart, com tristeza — se você mandar o Hob quando chegar lá.
Kay começou a voltar para casa na direção errada, com ódio no coração porque sabia que fizera o
falcão voar quando não estava com a disposição apropriada, e Wart de lhe gritar a direção certa.
Depois, este sentou-se debaixo de uma árvore e pôs-se a olhar para Cully lá em cima, como um
gato olhando um pardal, com o coração batendo rápido.

Era fácil para Kay, que não era realmente fã de falcoaria, exceto como ocupação adequada para um
menino de sua condição, mas Wart tinha um pouco da sensibilidade de um falcoeiro e sabia que um
falcão perdido era a pior calamidade possível. Sabia que Hob trabalhara com Cully catorze horas
por dia para lhe ensinar o ofício, e que seu trabalho fora como a batalha de Jacó com o anjo. Se
Cully se perdesse, uma parte de Hob também se perderia. Wart não queria enfrentar o olhar de
reprovação que estaria nos olhos do falcoeiro depois de tudo que ele tentara lhes ensinar.

O que deveria fazer? O melhor era ficar sentado quieto, deixando a isca no chão, até Cully se
acalmar e se aproximar em seu próprio tempo. Mas Cully não tinha a menor intenção de fazer isso.
Tinham-lhe dado uma ração generosa na noite passada, por isso não estava com fome. O dia quente

o deixara de mau humor. Os acenos e assobios dos meninos lá embaixo, e o fato de terem vindo
atrás dele de árvore em árvore, perturbara seu cérebro um tanto fraco. Agora, não sabia exatamente
o que queria fazer, mas não era o que os outros queriam. Pensou que talvez fosse legal matar algo,

por despeito.

Longo tempo depois disso, Wart estava na orla da verdadeira floresta, e Cully estava dentro dela.
Em uma série de mudanças enfurecidas de pouso, foram chegando cada vez mais perto da floresta,
até estarem mais distante do castelo do que o menino jamais estivera, e agora tinham chegado lá.

Wart não ficaria atemorizado com uma floresta da Inglaterra dos dias de hoje, mas a grande selva
da Velha Inglaterra era bem diferente. Não apenas porque nela havia javalis selvagens, cujas
manadas nesta estação estariam furiosamente fossando por ali, nem porque um dos lobos
sobreviventes poderia estar se escondendo atrás de alguma árvore, com seus olhos mortiços e
beiços escorrendo baba. Os animais selvagens e cruéis não eram os únicos habitantes da povoada
escuridão. Quando os próprios homens se tornavam maus, eles também procuravam refúgio ali,
foras-da-lei astutos e sanguinários como o corvo, e tão perseguidos quanto. Wart pensava
especialmente em um homem chamado Wat, cujo nome os aldeões usavam para assustar seus filhos.
Antes, ele vivia na aldeia de Sir Ector e Wart lembrava-se dele. Era vesgo, não tinha nariz, e era
fraco das idéias. As crianças atiravam-lhe pedras. Um dia, correu atrás das crianças, pegou uma,
deu um rugido e lhe arrancou o nariz com uma mordida. Depois, fugiu para a floresta. Agora, eles
atiravam pedras na criança sem nariz, mas Wat supostamente ainda estava na floresta, correndo
como se tivesse quatro pés e vestido de peles.

Naqueles tempos lendários, também havia magos na floresta e animais estranhos não mencionados
nos livros modernos de História Natural. Havia bandos regulares de foras-da-lei saxões — não
como Wat —, que viviam juntos, e se vestiam de verde e atiravam com flechas que nunca erravam

o alvo. Havia também alguns dragões, que eram pequenos, viviam debaixo das pedras e
assobiavam como uma chaleira.
Além disso, ainda havia o fato de que estava escurecendo. A floresta não tinha trilhas e ninguém da
aldeia sabia o que havia no outro lado. A quietude da noite começara a cair e as altas árvores
olhavam imóveis para Wart, sem fazer um único som.

Ele achou que seria mais seguro ir para casa, enquanto ainda sabia onde estava — mas era
corajoso, e não queria desistir. Sabia que se Cully passasse uma noite inteira em liberdade, tornarse-
ia selvagem outra vez e irrecuperável. Cully era uma ave em trânsito.

Mas se o pobre Wart conseguisse pelo menos marcar onde ele estava pousado, e se Hob pelo
menos chegasse com uma lanterna, ainda poderiam pegá-lo essa noite trepando na árvore, enquanto
ele estivesse sonolento e confuso com a luz. O menino conseguia mais ou menos ver onde o falcão
pousara, cerca de cem metros para o interior das árvores grossas, porque as gralhas que
procuravam abrigo à noite estavam aglomerando-se no lugar.

Fez uma marca em uma das árvores da orla da floresta, na esperança de que o ajudasse a encontrar

o caminho de volta, e então começou a tentar abrir caminho entre a vegetação rasteira, da melhor
maneira possível. As gralhas lhe avisaram que Cully imediatamente se movera mais para dentro.
A noite caiu silenciosa enquanto Wart tentava passar entre as sarças. Mas ele prosseguiu
teimosamente, escutando com toda atenção, e as fugas de Cully foram se tornando mais sonolentas e
mais curtas até que, finalmente, antes que a completa escuridão caísse, ele pôde ver seus ombros


levantados contra o céu, numa árvore acima dele. Wart sentou-se embaixo da árvore para não
perturbar ainda mais a ave até que dormisse, e Cully, imóvel sobre uma perna, ignorou sua
existência.

"Talvez", Wart disse a si mesmo, "mesmo se Hob não vier, e não vejo como ele poderia me seguir
muito bem nessa floresta sem trilha, eu poderia subir sozinho por volta da meia-noite e pegar o
Cully. Ele deve estar ali por volta da meia-noite, porque já estará dormindo a essa hora. Eu
poderia chamá-lo suavemente pelo nome, para ele pensar que é a pessoa que normalmente vem
pegá-lo quando está encapuzado. Vou ter que subir sem fazer barulho. Depois, se conseguir mesmo
pegá-lo, tenho de achar o caminho de casa, e a ponte levadiça estará levantada. Mas talvez alguém
esteja esperando por mim, pois Kay vai lhes dizer que fiquei fora. Qual será o caminho? Seria tão
bom se Kay não tivesse ido embora".

Aconchegou-se junto às raízes da árvore, tentando encontrar um lugar confortável onde a madeira
dura não espetasse suas costelas.

"Acho que o caminho é atrás daquele abeto grande com um espigão no topo. Tenho que tentar me
lembrar de que lado o sol está se pondo, assim, quando ele nascer, posso seguir pelo mesmo lado
para ir para casa. Será que alguma coisa se moveu debaixo do abeto? Ah, tomara que eu não
encontre o velho louco do Wat e não perca meu nariz a dentada! Como o Cully está irritante,
apoiado ali em uma perna só como se não existisse problema algum no mundo."

Nesse momento, houve um zunido rápido e um estalo, e Wart viu uma flecha enfiada na árvore entre
os dedos de sua mão direita. Puxou a mão, pensando que tinha sido atingido por alguma coisa, antes
de ver que era uma flecha. Depois, tudo aconteceu lentamente. Ele teve tempo de verificar muito
cuidadosamente que tipo de flecha era, e como havia entrado três polegadas na madeira sólida. Era
uma flecha preta com listas amarelas em volta, como uma vespa, e a pena do topo era amarela. As
outras duas eram pretas. Eram penas de ganso tingidas.

Wart descobriu que, embora tivesse medo dos perigos da floresta antes que acontecessem, agora
que estavam acontecendo não sentia medo. Levantou-se rápido — mas parecia devagar — e foi
para trás, do lado oposto da árvore. Enquanto fazia isso, outra flecha passou zunindo e sumiu, mas a
seguinte enterrou-se quase toda na relva, menos o penacho, e que ficou ali, imóvel, como se nunca
tivesse se movido.

Do outro lado da árvore havia um matagal de uns dois metros de altura. Era um ótimo esconderijo,
mas denunciava seu paradeiro pelo farfalhar da folhas. Escutou um outro silvo de flecha passando
pelas frondes e o que parecia a voz de um homem praguejando, mas não estava muito perto. Então
escutou o homem, ou seja lá o que fosse, correndo de um lado para o outro no matagal. Relutava em
lançar mais flechas porque elas eram valiosas e poderiam se perder na vegetação. Wart movia-se
como uma cobra, um coelho, uma coruja silenciosa. Era pequeno e a criatura não tinha chance
contra ele nesse jogo. Em cinco minutos, estava a salvo.

O assassino procurou suas flechas e foi embora resmungando — mas Wart percebeu que, embora
tivesse escapado do arqueiro, perdera o caminho e o falcão. Não tinha a menor idéia de onde
estava. Ficou deitado por meia hora, espremido debaixo da árvore caída onde se escondera para


dar tempo da coisa ir embora e para seu próprio coração parar de retumbar. Começado a bater
quando ele percebeu que havia escapado.

"Ah, agora estou realmente perdido" — pensou — "e agora praticamente não há outra alternativa
exceto ver meu nariz arrancado a dentadas, ou ser perfurado bem no meio por uma dessas flechas
de vespa, ou ser comido por um dragão sibilante ou por um lobo ou por um javali selvagem ou por
um mago — se é que magos comem meninos, e acho que comem. Agora bem que eu gostaria de ter
sido bonzinho, não ter enfurecido a preceptora quando ela se atrapalhava com o astrolábio, e ter
amado meu querido protetor Sir Ector como ele merecia".

Com esses pensamentos melancólicos, e especialmente com a lembrança do querido Sir Ector com
seu forcado e seu nariz vermelho, os olhos do pobre Wart se encheram de lágrimas, e ele se viu
completamente desolado, ali, deitado debaixo da árvore.

O sol enviou os últimos raios de sua demorada despedida e a lua se ergueu em deslumbrante
majestade sobre os topos prateados das árvores, antes que ele ousasse se levantar. Então levantou-
se, limpou os gravetos de sua jaqueta de couro e começou a vagar sem esperanças, tomando o
caminho mais fácil e se entregando a Deus. Já estava caminhando assim por quase meia hora, às
vezes sentindo-se mais animado — porque realmente era mesmo fresco e agradável a floresta no
verão sob a luz do luar —, quando se deparou com a coisa mais bonita que já vira em sua curta
vida.

Havia uma clareira na floresta, uma ampla extensão de relva sob o clarão da lua, os raios brancos
brilhando em cheio sobre os troncos das árvores do outro lado. Essas árvores eram faias, cujos
troncos ficam sempre mais belos sob uma luz perolada e, entre as faias, havia um pequeníssimo
movimento e um tilintar de prata. Antes do tilintar, havia apenas as faias, mas imediatamente depois
havia um cavaleiro com sua armadura completa, parado imóvel, silencioso e sobrenatural, entre as
árvores majestosas. Montava um enorme cavalo branco, que parecia tão embevecido quanto o
dono, empunhando na mão direita, com o cabo apoiado no estribo, uma lança de torneio alta e lisa,
que se erguia entre o topo das árvores, mais e mais alta, até se delinear contra o veludo do céu.
Tudo era iluminado pelo luar, tudo prateado, bonito demais para ser descrito.

Wart não soube o que fazer. Não sabia se seria seguro se aproximar do cavaleiro, pois havia tantas
coisas terríveis na floresta que mesmo um cavaleiro poderia ser um fantasma. E ele parecia mesmo
fantasmagórico, pairando assim para meditar no limiar da escuridão. No final, o menino acabou
decidindo que mesmo que fosse um fantasma, seria o fantasma de um cavaleiro, e os cavaleiros
eram obrigados por juramento a ajudar as pessoas em desgraça.

— Perdão — disse, quando estava bem embaixo da misteriosa figura —, mas poderia me indicar o
caminho de volta ao castelo de Sir Ector?
Com isso, o fantasma deu um salto, quase caiu de seu cavalo, e soltou um baaa
abafado através da
viseira, como um carneiro.

— Perdão — Wart começou de novo, mas parou, aterrorizado, no meio da fala.
Pois o fantasma levantara a viseira, revelando dois enormes olhos frios como gelo; exclamou numa
voz ansiosa, "O quê? O quê?"; tirou os olhos — que na verdade eram óculos com aros feitos de


chifres, embaçados por estarem dentro do elmo; tentou limpá-los com a crina do cavalo — o que só
piorou as coisas —; levantou ambas as mãos sobre a cabeça, e tentou limpá-los com seu penacho;
deixou cair a lança; deixou cair os óculos; desmontou do cavalo para pegá-los — a viseira se
fechando no processo; levantou a viseira; abaixou-se para pegar os óculos; levantou outra vez
quando a viseira se fechou de novo, e exclamou com voz queixosa: "Oh, vida!".

Wart pegou os óculos, limpou-os e entregou-os ao fantasma, que imediatamente os colocou (a
viseira se fechou a seguir) e começou a escalar o cavalo para retomar sua vida. Quando se ajeitou,
estendeu a mão para a lança, que Wart lhe entregou e, sentindo-se outra vez seguro, abriu a viseira
com a mão esquerda e segurou-a aberta. Olhou o menino com uma mão levantada — como um
marinheiro perdido à procura de terra — e exclamou:

— Ah-hah! A quem temos aqui, o quê?
— Por favor — disse Wart —, sou um menino cujo protetor é Sir Ector.
— Sujeito encantador — disse o Cavaleiro. — Nunca o encontrei na vida.
— Você poderia me indicar o caminho para o castelo dele?
— A menor idéia. Eu mesmo não conheço essas partes.
— Estou perdido — disse Wart.
— Coisa engraçada, essa. Eu já estou perdido há dezessete anos.
— Meu nome é Rei Pellinore — continuou o Cavaleiro. — Já escutou falar de mim, o quê? — A
viseira fechou com um estouro, como um eco ao "O quê", mas foi imediatamente aberta outra vez.
— Dezessete anos atrás, aconteceu a festa de São Miguel, e desde então ando atrás da Besta
Gemente. Tedioso, muito.
— Imagino que seja — disse Wart, que nunca tinha escutado falar do Rei Pellinore, nem da Besta
Gemente, mas achou que era a coisa mais segura a dizer nas circunstâncias.
— É a Sina dos Pellinores — disse o Rei, orgulhosamente. — Só um Pellinore pode agarrá-la —
isto é, claro, ou o próximo da linhagem. Todos os Pellinores são treinados com essa idéia na
cabeça. Edificação limitada, na verdade. Excrementos e tudo isso.

— Eu sei o que são excrementos — disse o menino com interesse. — É o que uma fera perseguida
vai deixando. O perseguidor os guarda na corneta para mostrar a seu senhor, e por eles é possível
dizer se é uma fera autorizada ou não, e qual é o seu estado.
— Menino inteligente — comentou o Rei. — Muito. Eu agora carrego excrementos comigo
praticamente o tempo todo.
— Hábito pouco higiênico — acrescentou, começando a parecer desalentado — e completamente
inútil. Só tem uma Besta Gemente, sabe, portanto não há dúvidas sobre se ela é autorizada ou não.
Aqui sua viseira começou a cair tanto que Wart decidiu que era melhor esquecer seus próprios
problemas e tentar alegrar seu companheiro, fazendo perguntas a respeito do único tema sobre o
qual ele parecia qualificado a falar. Mesmo a conversa com uma realeza perdida era melhor do que


ficar sozinho na floresta.

— Como ela é, essa Besta Gemente?
— Ah, nós a chamamos de Fera Glatisant,
sabe — retrucou o monarca, assumindo um ar de
entendido e começando a falar com loquacidade. — Agora, a Fera Glatisant,
ou como falamos em
inglês, a Besta Gemente (você pode dizer das duas maneiras) — acrescentou com graça —, essa
Fera tem a cabeça de serpente, ah, e o corpo de leopardo, as coxas de leão e os pés de cervo. Onde
quer que vá, essa fera faz um barulho com a barriga como se fosse o barulho de trinta parelhas de
cães de caça em perseguição.
— Exceto quando ela está bebendo, claro — acrescentou o Rei.
— Deve ser um tipo pavoroso de monstro — Wart disse, olhando em volta, preocupado.
— Um monstro pavoroso — repetiu o Rei. — A Fera Glatisant.
— E como você a persegue?
Esta parece ter sido uma pergunta errada, pois Pellinore começou a ficar ainda mais deprimido.
— Tenho uma cadela de caça — ele disse, com tristeza. — Ali está ela, ali.
Wart olhou para a direção que lhe foi indicada com um dedo desanimado e viu uma grande
quantidade de corda amarrada em volta de uma árvore. A outra ponta da corda estava atada à sela
do Rei Pellinore.

— Não a vejo bem.
— Está enrolada do outro lado da árvore, receio dizer. Ela vai sempre na direção contrária à
minha.
Wart deu a volta na árvore e viu um grande cachorro branco se coçando, atrás das pulgas. Assim
que viu Wart, começou a sacudir todo o corpo, abrindo a boca com ar apatetado, e arquejando com

o esforço de tentar lamber seu rosto, apesar da corda. Mas estava emaranhada demais para se
mover.
— É uma cadela muito boa — disse o Rei Pellinore —, só que arqueja demasiado, e se enrola nas
coisas, e vai para o lado oposto. E com isso e com minha viseira, às vezes fico sem saber para que
lado ir.
— Por que não a deixa solta?— Wart perguntou. — Ela poderia seguir a Fera do mesmo jeito.
— Ela some, sabe, e às vezes fico semanas sem vê-la.
— Fica muito solitário sem ela — o Rei acrescentou —, seguindo a Fera, e sem saber direito ondese está. É uma boa companhia, sabe.
— Ela parece ter uma natureza amigável.
— Amigável até demais. As vezes fico na dúvida se ela está mesmo caçando a Fera ou não.
— O que ela faz quando a vê?

— Nada.
— Ah, bom — Wart disse. — Imagino que depois de um tempo ela acabará se interessando.
— De qualquer maneira, já faz oito meses que vimos a Fera pela última vez.
A voz do pobre sujeito foi se tornando cada vez mais e mais triste desde o começo da conversa, e
agora, indiscutivelmente, ele começara a fungar.

— É a maldição dos Pellinores — exclamou. — A vida toda correndo atrás dessa abominável
Besta. Que utilidade tem ela, afinal? Primeiro, é preciso parar para desenrolar a cadela, depois a
viseira fecha, e já não se consegue ver com os óculos. Sem lugar para dormir, sem nunca saber
onde se está. Reumatismo no inverno, insolação no verão. Toda essa armadura horrenda leva horas
para ser colocada. Depois, ou ela torra você ou congela, e além do mais enferruja. É preciso passar
a noite inteira polindo o material. Oh, como eu gostaria de ter uma casa confortável de minha
propriedade para viver, uma casa que tivesse camas e travesseiros e lençóis verdadeiros. Se eu
fosse rico, era isso que compraria. Uma bela cama com um belo travesseiro e um belo lençol onde
pudesse me deitar, e então eu soltaria esse cavalo abominável em um prado e mandaria essa
abominável cadela ir embora se divertir, e jogaria essa abominável armadura pela janela, e
deixaria a abominável Besta perseguir-se a si mesma — isso é o que eu faria.
— Se você me indicasse o caminho de casa — disse Wart, astutamente —, tenho certeza que Sir
Ector lhe daria uma cama para passar a noite.
— Você está falando sério? — gritou o Rei. — Em uma cama?
— Uma cama de penas.
Os olhos do Rei Pellinore ficaram redondos como pires. "Uma cama de penas!", ele repetiu
lentamente.

— Com travesseiro?
— Travesseiros fofos.
— Travesseiros fofos! — sussurrou o Rei, segurando a respiração. E depois, soltando-a de uma
vez. — Que casa encantadora seu protetor deve ter!
— Acho que não deve estar a mais do que a duas horas daqui — disse Wart, aproveitando sua
vantagem.
— E esse fidalgo realmente mandou você aqui para me convidar? — (Tinha se esquecido que Wart
estava perdido.) — Que gentileza a dele, que gentileza dele, eu acho, o quê?
— Ele ficará feliz em nos ver — Wart disse, com sinceridade.
— Ah, que gentileza a dele — exclamou o Rei outra vez, começando a se atrapalhar com os vários
arreios. — E que nobre encantador deve ser para ter uma cama de penas!
— Suponho que terei de dividi-la com alguém — ele acrescentou, em dúvida.
— Poderia ter uma só para si.

— Uma cama de penas só para mim, com lençóis e um travesseiro — talvez até dois travesseiros,
ou um travesseiro e um suporte — e sem hora de levantar para o desjejum! Seus protetores têm
hora de levantar para o desjejum?
— Nunca — Wart respondeu.
— Pulgas na cama? — Nenhuma.
— Ótimo! — disse o Rei Pellinore. — Parece bom demais para dizer com palavras, devo dizer.
Uma cama de penas e tão cedo nada de excrementos. Quanto tempo daqui até lá, você disse?
— Duas horas — Wart respondeu, mas teve de gritar a segunda dessas palavras, pois os sons
ficaram sufocados em sua boca por um barulho que naquele momento se levantou bem perto deles.
— O que foi isso? — Wart perguntou.
— Atenção!
— Misericórdia!
— É a Besta!
E imediatamente o dedicado caçador esqueceu-se de tudo o mais, e se ocupou de sua tarefa.
Limpou os óculos nos fundilhos de suas calças, o único pedaço de pano acessível, enquanto o
maldito barulho de barriga inundava a redondeza. Equilibrou-os na ponta de seu comprido nariz,
imediatamente antes de a viseira automaticamente se fechar. Apertou sua lança de torneio na mão
direita e partiu a galope em direção ao barulho. Mas foi logo puxado de volta pela corda que
estava enrolada na árvore — enquanto a cadela apatetada soltava um ganido melancólico — e caiu
do cavalo com um tremendo barulho de metal. Em um segundo, já estava de novo em pé — Wart
convencido de que os óculos certamente haviam se quebrado —, e pulando em volta do cavalo
branco com um pé no estribo. A barrigueira suportou o teste e, fosse como fosse, lá estava ele de
volta à sela, com sua lança comprida entre as pernas, e depois galopando ao redor e ao redor da
árvore, na direção oposta à que a cadela se enrolara. Deu três voltas muito rapidamente, enquanto a
cadela gania e corria no outro sentido e então, depois de quatro ou cinco tentativas, ficaram ambos
livres da obstrução.


No começo, apenas mergulhou sob a superfície do sono e deslizou como um salmão em água
rasa, tão perto da superfície que se imaginava no ar. Pensou que estivesse acordado quando já
estava dormindo.

— Avante! O quê! — gritou o Rei Pellinore, brandindo sua lança no ar e agitando-se alvoroçado na
sela. Depois, desapareceu dentro da escuridão da floresta, com o desventurado cão correndo atrás
dele na outra ponta da corda.

III


O menino dormiu bem no abrigo na floresta onde se deitou, aquele tipo de sono leve mas reparador
que as pessoas têm quando começam a dormir ao ar livre. No começo, apenas mergulhou sob a
superfície do sono e deslizou como um salmão em água rasa, tão perto da superfície que se
imaginava no ar. Pensou que estivesse acordado quando já estava dormindo. Viu as estrelas sobre o
rosto, girando silenciosas e sem descanso, e as folhas das árvores farfalhando debaixo delas, e
ouviu pequenos movimentos na relva. Esses pequenos ruídos de passos e bater leve de pequenas
asas e de ventres furtivos arrastando-se pelas folhas da relva ou farfalhando no matagal, a princípio
o assustaram e interessaram, e ele se mexeu tentando ver o que era (sem conseguir), depois o
acalmaram, e então ele já não se interessou para ver o que eram, mas confiou que eram eles
mesmos, e finalmente se deixou ir, mergulhando cada vez mais e mais fundo, se aninhando na relva
perfumada, no chão generoso, nas intermináveis águas sob a terra.

Foi difícil pegar no sono ao luar brilhante do verão, mas depois que dormiu não foi difícil
continuar dormindo. O sol chegou cedo, fazendo com que se virasse em protesto, mas ao dormir
aprendera a vencer a luz, e agora a luz não conseguia acordá-lo. Eram nove horas, cinco horas
depois do alvorecer, quando ele rolou, abriu os olhos, e imediatamente despertou. Estava com
fome.

Wart escutara falar de pessoas que viviam de bagas silvestres, mas isso não parecia prático no
momento, porque era julho e não havia nenhuma. Achou dois morangos selvagens e os comeu com
gula. Estavam mais gostosos do que qualquer outra coisa que já comera, e desejou que tivesse
mais. Então, desejou que fosse abril, para que pudesse achar ovos de pássaros e comer alguns, ou
que não tivesse perdido Cully, para que seu açor pudesse pegar um coelho que ele cozinharia
esfregando dois gravetos um contra o outro, como os índios primitivos. Mas tinha perdido Cully, ou
não teria se perdido ele próprio e, de qualquer forma, provavelmente os gravetos não pegariam
fogo. Refletiu que não poderia ter se afastado mais do que cinco ou seis quilômetros de casa, e que
a melhor coisa que poderia fazer era sentar-se quieto e escutar. Então talvez escutasse o barulho
dos colhedores de feno se tivesse sorte com o vento, e poderia assim escutar qual seria a direção
do castelo.

Mas o que ele escutou foi um fraco estalido de metal que o fez pensar que o Rei Pellinore deveria
estar atrás da Besta Gemente, ali por perto. Só que o barulho era tão regular e intencional que o fez
pensar que o Rei Pellinore estaria fazendo alguma ação especial, com grande paciência e


concentração — tentando coçar as costas sem tirar a armadura, por exemplo. Seguiu em direção ao
ruído.

Havia uma clareira na floresta, e nessa clareira havia um chalé bonitinho feito de pedra. Era um
chalé que, embora Wart não pudesse ver naquele momento, estava dividido em duas partes. A parte
principal era o saguão ou "sala-para-tudo", que era alta porque ia do chão ao teto e tinha uma
lareira cuja fumaça saía por um buraco no telhado de colmo. A outra metade do chalé estava
dividida em duas por um piso horizontal que transformava a metade de cima em quarto de dormir e
escritório, enquanto a metade de baixo servia de despensa, depósito, estábulo e cocheira. Um asno
branco vivia nessa dependência de baixo, e uma escadinha de madeira levava ao quarto de cima.

Havia um poço em frente do chalé, e o ruído metálico que Wart escutara era provocado por um
senhor muito idoso que estava tirando água dali com a ajuda de uma manivela e uma corrente.

Tlin, tlin, tlin, fazia a corrente, até o balde bater na borda do poço e "Arre essa coisa toda!" disse o
velho.

— Era de imaginar que depois de todos esses anos de estudo, seria possível fazer melhor do que
apanhar água nesse "poço-de-donzela", com um "balde-de-donzela", seja quem for a donzela.
— Valha-me e valha-me aquilo! — acrescentou o velho, puxando o balde do poço com um olhar
mau-humorado —, por que não colocam luz elétrica e água encanada aqui?
Estava vestido com uma roupa larga esvoaçante, com uma estola de pele toda enfeitada com signos
do zodíaco e vários sinais cabalísticos, como triângulos com olhos, cruzes estranhas, folhas de
árvores, ossos de pássaros e outros animais, e um planetário cujas estrelas brilhavam como
pedaços de espelho refletindo o sol. Usava um chapéu pontudo, como o das "orelhas de burro", ou
como os usados pelas damas da época, só que as damas costumavam ter um pedaço de véu
flutuando a partir do topo. Também tinha uma varinha de condão de pau-santo, que deixara deitada
na grama a seu lado, e um par de óculos com armação de chifre como os do Rei Pellinore. Eram
óculos diferentes, pois não tinham a parte que se prende na orelha, e tinham mais a forma de
tesouras ou de antenas de uma vespa-caçadora.

— Perdão, senhor — Wart disse —, mas saberia me indicar o caminho para o castelo de Sir Ector,
se não se importar?
O velho cavaleiro desceu o balde e olhou para ele.

— Seu nome deve ser Wart.
— Sim, senhor, por favor, senhor.
— Meu nome é Merlin — disse o velho.
— Como está passando?
— Como está.
Quando terminaram essas formalidades, Wart teve tempo para observá-lo mais de perto. O mago
olhava para ele, sem pestanejar, com uma espécie de curiosidade firme e benevolente, o que o fez
achar que não seria de jeito algum grosseiro olhar ele também para o velho, não mais grosseiro do


que seria fitar uma das vacas de seu protetor que, com a cabeça apoiada sobre a cerca, parecia
matutar sobre quem seria ele.

Merlin tinha uma barba comprida e branca e bigodes compridos e brancos que desciam de ambos
os lados. Uma inspeção acurada mostrava que estava longe de limpo. Não que tivesse unhas sujas,
ou coisas assim, mas algum grande pássaro parecia ter feito o ninho em seus cabelos. Wart
conhecia bem os ninhos de gavião e de açor, o conglomerado desconjuntado de gravetos e coisas
avulsas tomados de esquilos e gralhas, e sabia como os galhos e raízes ficavam salpicados de
dejetos brancos, ossos velhos, folhas enlameadas e restos. Essa foi a impressão que teve de Merlin.
O velho estava riscado com sujeiras caídas sobre os ombros, entre as estrelas e triângulos da veste,
e uma grande aranha descia, vagarosa, da ponta de seu chapéu, enquanto ele fitava atentamente,
piscando um pouco, o menino à sua frente. Tinha uma expressão preocupada, como se tivesse
tentando se lembrar de um nome que começava com Chol mas que se pronunciava de maneira
completamente diferente, possivelmente Menzies ou seria Dalziel? Seus suaves olhos azuis, muito
grandes e redondos sob os óculos de tarântula, aos poucos velavam-se e se nublavam enquanto ele
fitava o menino, e então virou a cabeça com expressão resignada, como se tudo aquilo fosse
demasiado para ele, afinal.

— Você gosta de pêssegos?
— Gosto muito, realmente — Wart respondeu, e sua boca começou a salivar e ficou cheia de um
líquido doce e macio.
— São raros nesta estação — disse o velho, de maneira reprovadora, e se dirigiu ao chalé.
Wart seguiu atrás, já que essa era a coisa mais simples a fazer, e se ofereceu para levar o balde (o
que pareceu agradar Merlin, que o deu a ele) e esperou enquanto ele contava as chaves — e
resmungava e as confundia e as derrubava na relva. Finalmente, quando conseguiram entrar na casa
branca e preta com tanto esforço como se a tivessem arrombando, subiu a escada atrás de seu
anfitrião até a sala de cima.

Era a sala mais maravilhosa em que jamais entrara.

Havia um verdadeiro crocodilo pendurado nos caibros do teto, muito natural e horrível, com olhos
de vidro e cauda escamosa esticada atrás. Quando seu dono entrou na sala, ele piscou um olho em
saudação, embora estivesse embalsamado. Havia milhares de livros marrons com encadernação de
couro, alguns presos com correntes às estantes e outros escorados uns nos outros, como se tivessem
bebido demais e não confiassem muito em si mesmos. Esses tinham um cheiro denso de bolor e
couro que dava confiança. Depois, havia os pássaros empalhados, papagaios, pegas e martim-
pescador, e pavões com todas as penas exceto duas, e pássaros miúdos e besouros, e uma suposta
fênix que cheirava a incenso e canela. Não poderia ser uma fênix autêntica porque só existe uma
dessas em cada época. Sobre o consolo da lareira havia uma máscara de raposa, debaixo dela
estava escrito GRAFTON, BUCKINGHAM A. DAVENTRY, 2 H 20 MIN, e também um salmão de
uns dez quilos, com AWE, 43 MIN, BULLDOG escrito embaixo, e um basilisco parecendo vivo,
com CÃES DE CROWHURST OTTER em alfabeto romano. Havia várias presas perfuradas e
garras de tigres e leopardos montadas em padrões simétricos, e uma grande cabeça de Ovis Poli,


seis cobras de relva vivas em uma espécie de aquário, alguns ninhos de vespa solitária bem-
arrumados em um cilindro de vidro, uma colméia comum cujos habitantes entravam e saíam pela
janela sem serem perturbados, dois jovens ouriços em ramos de algodão, um casal de texugos que
imediatamente começou a gritar Yik-Yik-Yik-Yik em voz alta assim que o mago apareceu, vinte
caixas contendo lagartas enfiadas e seis com borboletinhas, e até uma espirradeira que valia seis
pences — todos se alimentando nas folhas apropriadas —, um estojo de armas com todo tipo de
armas que só seriam inventadas dali a quinhentos anos, uma caixa com bastões idem, uma cômoda
com gavetas cheias de iscas artificiais amarradas pelo próprio Merlin, outra cômoda cujas gavetas
estavam etiquetadas com Mandrágora, Mandrake, Barba de Velho etc, um punhado de penas de
peru e de ganso para fazer canetas, um astrolábio, doze pares de botas, um dúzia de bolsas de
malha, duas dúzias de tela para coelhos, doze saca-rolhas, alguns formigueiros entre duas placas de
vidro, vidros de tinta com todas as cores possíveis do vermelho ao violeta, agulhas de cerzir, uma
medalha de ouro para o melhor bolsista de Winchester, quatro ou cinco arquivos, um ninho de
camundongos do campo todos vivos, duas caveiras, muitos vidros lapidados, garrafas de Veneza,
garrafas de Bristol, um vidro de verniz de Mastic, porcelana de Satsuma e cloisonné,
a décima-
quarta edição da Enciclopédia Britânica (prejudicada como estava pelo sensacionalismo das
ilustrações populares), duas caixas de pintura (uma a óleo, outra de aquarela), três globos do
mundo geográfico conhecido, alguns fósseis, a cabeça empalhada de uma girafa, seis formigões,
algumas retortas de vidro com bico, maçaricos de Bunsen etc, e um jogo completo de cartas de
cigarros com ilustrações de aves selvagens feitas por Peter Scott.

Merlin tirou o chapéu pontudo quando entrou na sala, porque era muito alto para o teto, e
imediatamente houve uma precipitação em um dos seus cantos escuros e um bater de asas suaves, e
uma coruja amarelo-castanha pousada no solidéu que protegia o topo de sua cabeça.

— Oh, que coruja encantadora! — gritou Wart.
Mas quando chegou perto e estendeu a mão, a coruja se ergueu pela metade outra vez, ficou dura
como um atiçador de brasas, fechou os olhos de maneira a ter apenas uma minúscula fenda através
da qual espreitar — como se costuma fazer quando se tem de fechar os olhos na brincadeira de
esconde-esconde — e disse com voz indecisa:


— Não tem coruja nenhuma.
Depois, fechou completamente os olhos e se virou para o outro lado.
— É só um menino — disse Merlin.
— Não tem menino nenhum — a coruja disse, esperançosa, sem se virar.
Wart ficou tão espantado ao ver que a coruja podia falar que esqueceu a educação e chegou ainda
mais perto. Com isso, a ave ficou tão nervosa que fez uma trapalhada na cabeça de Merlin — a sala
toda estava quase branca com os dejetos — e voou para pousar na ponta mais distante da cauda do
crocodilo, fora do alcance.


— Temos tão pouca companhia que Archimedes fica acanhado com estranhos — explicou o mago,
limpando a cabeça com a metade de um pijama velho que guardava com esse propósito. — Venha,
Archimedes, quero lhe apresentar um amigo meu chamado Wart.

Aqui, ele estendeu sua mão para a coruja, que veio gingando como um ganso pelas costas do
crocodilo — vinha com esse andar bamboleante para não danificar a cauda — e pulou para o dedo
de Merlin, com todos os sinais de relutância.

— Estique seu dedo e coloque-o atrás das pernas dele. Não, levante-o por baixo da cauda.
Quando Wart fez isso, Merlin gentilmente moveu a coruja para trás, de maneira que o dedo do
menino pressionasse suas pernas por trás, e ele ou tinha de dar um passo recuando, para cima do
dedo, ou perderia completamente o equilíbrio. Ele deu o passo. Wart ficou ali parado, encantado,
enquanto a pata felpuda apertava seu dedo e as unhas afiadas espetavam sua pele.

— Diga prazer em conhecê-lo, educadamente — disse Merlin.
— Não digo — respondeu Archimedes, olhando para o outro lado, e apertando o dedo.
— Oh, ele é mesmo encantador — Wart disse outra vez. — Há muito tempo que você o tem?
— Archimedes está comigo desde pequeno, na verdade desde que tinha uma cabeça pequena como
a de uma galinha.
— Queria que ele falasse comigo.
— Talvez se você lhe der esse camundongo aqui, com polidez, ele poderá começar a conhecê-lo
melhor.
Merlin tirou um camundongo morto de seu solidéu.

— Sempre os guardo aqui, e minhocas também, para pescaria. Acho que é muito prático — e o
passou para Wart, que o estendeu, um tanto cautelosamente, para Archimedes. O bico curvado
como noz parecia capaz de provocar danos, mas Archimedes olhou atentamente o camundongo,
piscou para Wart, aproximou-se mais pelo dedo, fechou os olhos e se inclinou para a frente. Ficou
assim com os olhos fechados e uma expressão de enlevo, como se estivesse dando Graças e então,
com um mordisco lateral extremamente cômico, pegou o bocado tão gentilmente que não teria
rompido uma bolha de sabão. Continuou inclinado para a frente de olhos fechados, com o
camundongo suspenso pelo bico, como se não estivesse seguro do que fazer com ele. Então
levantou o pé direito — era destro, embora as pessoas achem que só os homens são — e agarrou o
camundongo. Segurou-o como um menino seguraria um pirulito ou um policial seu cassetete, olhou-
o, mordiscou-lhe o rabo. Virou-o para que a cabeça ficasse para cima, pois Wart tinha-o oferecido
do jeito errado e ao contrário, e engoliu-o de uma vez. Com o rabo pendendo do canto de sua boca,
olhou em torno para o público — como se fosse dizer, "Gostaria que não ficassem me encarando
assim" — virou a cabeça para o outro lado e polidamente engoliu o rabo, coçou sua barba de
marujo com o dedo do pé esquerdo e começou a eriçar as penas.
— Deixe-o sossegado — disse Merlin. — Talvez ele não queira fazer amizade com você até saber
como você é. Com corujas, as coisas nunca são muito fáceis.
— Talvez ele fique no meu ombro — disse Wart, e com isso, instintivamente, abaixou a mão, e a
coruja, que gostava de ficar o mais alto possível, subiu o degrau e se postou timidamente ao lado
da orelha dele.

— Agora, o desjejum — disse Merlin.
Wart viu que o mais perfeito desjejum estava posto caprichosamente para dois, numa mesa perto da
janela. Havia pêssegos. Havia também melões, morangos e creme, biscoitos, truta dourada no
ponto, perca grelhada que era ainda melhor, frangos condimentados a ponto de queimar a boca de
alguém, rins e cogumelos em torradas, fricassê, caril e, em chávenas grandes, a alternativa de
escolher entre café fervendo ou o melhor dos chocolates com creme.

— Ponha um pouco de mostarda — disse o mago, quando chegaram aos rins.
O pote de mostarda levantou-se e andou até seu prato sobre finas pernas de prata que gingavam
como as da coruja. Então, esticou as asas e uma delas levantou a tampa com cortesia exagerada
enquanto a outra lhe servia uma generosa colherada.

— Oh, adoro esse pote de mostarda — exclamou Wart. — Onde o conseguiu?
Com isso, o pote sorriu exultante com todo o rosto e começou a se pavonear um pouco, mas Merlin
deu-lhe umas pancadinhas na cabeça com uma colher de chá, fazendo-o sentar-se e se calar
imediatamente.

— Não é um mau pote — disse, contrariado. — Só que é inclinado a se dar certos ares.
Wart estava tão impressionado com a gentileza do velho, e particularmente com as coisas
encantadoras que ele possuía, que dificilmente pensava em lhe fazer perguntas pessoais. Parecia
mais po


lido ficar quieto e falar só quando a palavra lhe fosse dirigida. Mas Merlin não falava muito e,
quando falava, nunca era com perguntas, portanto, Wart tinha pouca oportunidade para uma
conversação. Por fim, sua curiosidade levou a melhor, e ele perguntou uma coisa que o estava
intrigando há algum tempo.

— Você se importaria se eu fizesse uma pergunta?
— É para isso que estou aqui.
— Como sabia e preparou um desjejum para dois?
O velho cavaleiro se inclinou para trás na cadeira e acendeu um cachimbo enorme de sepiolita. —
"Santa Misericórdia, ele respira fogo", pensou Wart, que nunca escutara falar de tabaco — antes de
estar pronto para responder. Depois, pareceu confuso, tirou o solidéu — três camundongos caíram

— e coçou o alto da cabeça careca.
— Você alguma vez tentou desenhar em um espelho?
— Acho que não.
— Espelho — disse Merlin, estendendo a mão. Imediatamente apareceu um pequeno espelho de
toucador de dama em sua mão.
— Não desse tipo, seu tolo — disse, irritado. — Quero um suficientemente grande para fazer a
barba.
O espelhinho desapareceu e, em seu lugar, apareceu um espelho de barba de cerca de 30


centímetros quadrados. A seguir, pediu lápis e folha em rápida seqüência; conseguiu um lápis sem
ponta e a Folha da Manhã; devolveu-os; conseguiu uma caneta tinteiro sem tinta e seis resmas de
papel marrom, bom para fazer embrulhos; devolveu-os; teve um ataque de nervos no qual disse
"pela virgem donzela" várias vezes e terminou com um lápis-carvão e papel para enrolar cigarros
que ele disse que teriam que servir.

Pôs um dos papéis na frente do espelho e fez cinco pontinhos.

— Agora — disse — quero que você ligue esses pontos para formar um w, olhando só para o
espelho.
Wart pegou o lápis e tentou fazer como lhe fora ordenado.

— Bem, não está mal — disse o mago, em dúvida — e de alguma forma parece um pouco com um
M.
Então, começou a devanear, cofiando a barba, respirando o fogo, e fitando o papel.
— E o desjejum?
— Ah, sim. Como eu sabia que o desjejum seria para dois? Foi por isso que lhe mostrei o espelho.
Agora as pessoas comuns nascem viradas para a frente no Tempo, se entende o que quero dizer, e
quase tudo no mundo também vai para a frente. Isso faz com que seja muito fácil viver, para as
pessoas comuns, assim como teria sido fácil para você juntar os cinco pontinhos em um w se
pudesse olhar para eles de frente, e não só de trás para a frente e ao revés. Mas eu, infelizmente,
nasci no lado errado do tempo, e tenho que viver de frente para trás, cercado por uma quantidade
de pessoas que vivem de trás para a frente. Algumas pessoas chamam isso de ter segunda visão.
Ele parou de falar e olhou, ansioso, para Wart.

— Já lhe falei nisso antes?
— Não, nós nos conhecemos há cerca de meia hora apenas.
— Tão pouco tempo assim? — disse Merlin, e uma grande lágrima correu até a ponta de seu nariz.
Limpou-a com o pijama e acrescentou, ansioso: — Vou ter que lhe contar de novo?
— Não sei — disse Wart —, a menos que você ainda não tenha acabado de me contar.
— Você vê, a gente se confunde com o Tempo, quando ele é assim. Para começar, todos os tempos
de verbo se misturam. Se você sabe o que vai acontecer às pessoas, e não o que já aconteceu, fica
difícil evitar que aconteça, se não quer que aconteça, será que você entende o que quero dizer?
Como desenhar no espelho.
Wart não entendeu perfeitamente, mas ia dizer que sentia muito por Merlin se essas coisas o faziam
infeliz, quando sentiu uma curiosa sensação no ouvido.

— Não mexe — o velho disse, no momento em que já ia fazer isso, e Wart permaneceu quieto.
Archimedes, que ficara esquecido em seu ombro durante todo esse tempo, estava gentilmente se
encostando nele. O bico estava bem pertinho do lóbulo da sua orelha, que as cerdas faziam coçar, e
de repente uma voz grossa e suave sussurrou, "Como tem passado?", soando bem dentro de sua

cabeça.

— Oh, coruja! — exclamou Wart, imediatamente esquecendo os problemas de Merlin. — Olha, ele
resolveu falar comigo!
Wart gentilmente encostou a cabeça nas penas macias, e a coruja amarelo-castanha, pegando-lhe a
borda da orelha com o bico, rapidamente mordiscou ao seu redor, com os menores mordisquinhos
possíveis.

— Vou chamá-lo de Archie!
— Sabia que você iria fazer algo no estilo — disse Merlin no mesmo instante, com voz severa e
zangada, e a coruja se retirou para a ponta mais distante de seu ombro.
— É errado?
— Você poderia também me chamar de Ar ou Uja — disse a coruja, azeda — e pronto, dava no
mesmo. Ou Amarelinho — resmungou com voz ainda mais azeda.
Merlin pegou a mão de Wart e disse gentilmente:

— Você é jovem e ainda não entende essas coisas. Mas aprenderá que as corujas são as criaturas
mais delicadas, sinceras e leais. Você nunca deve ser atrevido, rude ou vulgar com elas, ou fazê-las
parecer ridículas. A mãe delas é Atenas, a deusa da sabedoria, e embora com freqüência elas
estejam prontas a bancar o bufão para o divertir, essa conduta é a prerrogativa do verdadeiro
sábio. Nenhuma coruja, definitivamente, poderia ser chamada de Archie.
— Sinto muito, coruja — Wart disse.
— Eu também sinto muito, garoto — disse a coruja. — Posso entender perfeitamente que você
falou por ignorância, e me arrependo amargamente por ter sido tão mesquinho a ponto de ver ofensa
onde nenhuma intenção havia.
A coruja realmente estava arrependida, e parecia tão cheia de remorsos que Merlin teve que fazer
uma cara alegre e mudar o rumo da conversa.

— Muito bem — ele disse —, agora que terminamos o desjejum, acho que já é mais do que hora de
nós três pegarmos o caminho de volta para Sir Ector.
— Desculpe-me só um momento — acrescentou como se tivesse se esquecido de algo e, virando-se
para as coisas do desjejum, apontou-lhes um dedo nodoso e disse com voz firme:
— Lavem-se.
Com isso, toda a louça e os talheres desceram em rebuliço da mesa, a toalha sacudiu as migalhas
pela janela, e os guardanapos se dobraram sozinhos. Todos desceram correndo a escada, até onde
Merlin deixara o balde, e começou um barulho e uma gritaria como se um punhado de crianças
tivesse saído da escola. Merlin foi até a porta e gritou, "Atenção, ninguém deve se quebrar", mas
sua voz foi inteiramente abafada por guinchos esganiçados, pancadas na água e gritos de "Ai! está
gelado!", "Não vou demorar", "Cuidado, você vai me quebrar!", ou "Vem, vamos dar um caldo no
bule de chá!".


— Você vai mesmo comigo até minha casa? — perguntou Wart, que mal podia acreditar na boa
notícia.
— Por que não? De que outra maneira posso ser seu tutor? Com isso, os olhos de Wart
esbugalharam-se mais e mais, até ficarem tão grandes como os da coruja que ainda estava sentada
em seu ombro, e seu rosto foi ficando mais e mais vermelho, e sua respiração pareceu se juntar
debaixo de seu coração.
— Caramba! — exclamou Wart, enquanto seus olhos faiscavam com a excitação da descoberta. —
Então eu estava numa Busca!


IV


Wart começou a falar antes de chegar à metade da ponte levadiça.

— Vejam quem eu trouxe — ele disse. — Vejam, eu estava numa Busca! Atiraram três flechas em
mim! Tinham riscas pretas e amarelas. A coruja se chama Archimedes. Vi o Rei Pellinore. Este é
meu tutor, Merlin. Estava na Busca dele. Ele estava atrás da Besta Gemente.Quero dizer, o Rei
Pellinore. Foi terrível na floresta. Merlin fez os pratos se lavarem sozinhos. Oi, Hob. Veja, nós
trouxemos o Cully.
Hob apenas olhava para Wart, mas com tanto orgulho que Wart ficou todo vermelho. Era tão bom
voltar para casa outra vez, com todos os seus amigos e com tudo resolvido.

Hob disse com voz grave:

— Ah, senhor, ainda faremos do senhor um falcoeiro.
Veio buscar Cully, como se não conseguisse mais ficar longe dele, mas deu um tapinha em Wart
também, afagando os dois porque não tinha certeza de qual deles estava mais feliz em ver de novo.

Pôs Cully em seu próprio punho, reapossando-se do falcão como um perneta coloca sua perna de
madeira costumeira depois de a haver perdido.

— Merlin o pegou — contou Wart. — Ele mandou Archimedes procurá-lo quando estávamos vindo
para casa. Então Archimedes nos falou onde ele estava e que havia matado uma pomba e a estava
comendo. Chegamos perto e ele fugiu. Então Merlin colocou seis penas em círculo do rabo da
pomba, e fez uma laçada com um pedaço de cordão rodeando as penas. Amarrou uma ponta em um
bastão enfiado no chão e nos escondemos atrás de um arbusto com a outra ponta. Ele disse que não
ia usar mágica. Disse que não se deve usar magia nas Grandes Artes, assim como seria desleal
fazer uma grande estátua com magia. Você tem de esculpi-la com um cinzel, sabe. Então, Cully
desceu para terminar de comer sua pomba, e nós puxamos o cordão, e a laçada deslizou pelas
penas e o pegou pelas pernas. Ele ficou furioso! Mas nós o deixamos comer a pomba.
Hob fez uma mesura para Merlin que, cortesmente, a retribuiu. Olharam um para o outro com
apreço circunspecto, um reconhecendo o outro como mestre no mesmo ofício. Quando pudessem se
encontrar a sós, conversariam sobre falcoaria, embora Hob fosse por natureza um homem
silencioso. Nesse ínterim, deveriam aguardar o momento.

— Oh, Kay — Wart gritou, quando este apareceu com a ama e outras pessoas que vieram,

deliciadas, lhe dar as boas-vindas. — Veja, consegui um mago para ser nosso tutor. Ele tem um
pote de mostarda que anda.

— Estou contente por você ter voltado — disse Kay.
— Ai de mim!, onde dormistes, Senhor Art? — exclamou a ama-seca. — Olhai como sua jaqueta
limpa agora está toda suja de lama e rasgada. Que susto nos pregastes, realmente não sei não. E
olhai vosso pobre cabelo todo cheio de gravetos. Oh, minha pobre sina, meu carneirinho travesso!
Sir Ector veio alvoroçado, com as grevas ao contrário, e beijou Wart em ambas as bochechas.

— Bom, bom, bom — exclamou comovido. — Aqui estamos de novo, hein? Que diabos andamos
fazendo, hein? Pondo todo o castelo de pernas para o ar.
Mas no fundo estava orgulhoso por Wart ter ficado fora para procurar um falcão, e mais orgulhoso
ainda por ver que conseguira trazê-lo, pois durante todo esse tempo Hob ficara levantando o
pássaro no ar para todo mundo ver.

— Oh, senhor — Wart disse —, eu estava na busca que o senhor disse de um tutor, e o achei. Por
favor, ele é esse senhor aqui, e seu nome é Merlin. Ele trouxe texugos e ouriços e camundongos e
formigas e outras coisas nesse burro branco aqui, porque não podíamos deixá-los para morrer defome. É um grande mago, e pode fazer as coisas aparecerem no ar.
— Ah, um mago — disse Sir Ector, colocando seus óculos e olhando Merlin de perto. — Magia
branca, eu espero?
— Seguramente — disse Merlin, que tinha ficado pacientemente no meio da multidão, com os
braços cruzados sobre a veste nigromântica, enquanto Archimedes se sentava muito duro e
alongado no topo de seu chapéu.
— Devemos ter testemunhos — disse Sir Ector, em dúvida. — É o usual.
— Testemunhos — ordenou Merlin, estendendo sua mão. Instantaneamente, apareceram nela
pesadas tabuinhas assinadas por Aristóteles, um pergaminho assinado por Hécate, umas duplicatas
datilografadas assinadas pelo reitor do Trinity, que não se lembrava de tê-lo conhecido. Todas
confirmavam a excelente reputação de Merlin.
— Estavam dentro da sua manga — disse Sir Ector, espertamente. — Poderia fazer outra coisa?
— Árvore — ordenou Merlin. Imediatamente apareceu uma amoreira enorme plantada no meio do
pátio, com suas deliciosas frutas roxas prontas para serem colhidas. Isso era absolutamente notável,
inclusive porque as amoras só se tornariam populares nos tempos de Cromwell.
— Eles fazem isso com espelhos — disse Sir Ector.
— Neve — ordenou Merlin. — E um guarda-chuva — acrescentou rapidamente.
Antes que pudessem se virar, o céu de cobre de verão foi assumindo um bronze frio e sem luz,
enquanto os maiores flocos brancos jamais vistos começaram a flutuar no ar e a cair nas ameias.
Uma polegada de neve caiu antes que eles conseguissem falar, e todos se puseram a tremer com a
rajada invernal. O nariz de Sir Ector ficou azul, e tinha um pingente de gelo pendurado em sua


ponta, enquanto todos, exceto Merlin, tinham uma camada de neve sobre os ombros. Merlin ficou
no meio, segurando alto seu guarda-chuva por causa da coruja.

— Isso é feito com hipnotismo — disse Sir Ector, batendo os dentes. — Como aqueles wallahs das
índias.
— Mas é suficiente — acrescentou rapidamente —, é muito suficiente. Tenho certeza de que você
será um tutor excelente para ensinar os meninos.
A neve parou imediatamente e o sol voltou.

— O suficiente para dar pneumonia num corpo — disse a ama — ou assustar os comissários
elásticos — enquanto Merlin fechava seu guarda-chuva e o devolvia ao ar, onde o pegara.
— Imaginem o menino fazendo uma busca dessas sozinho — exclamou Sir Ector. — Bom, bom,
bom! Os prodígios nunca cessam.
— Não acho que foi exatamente uma busca — disse Kay. — Afinal, ele só foi atrás do falcão.
— E voltou com o falcão, senhor Kay — disse Hob, reprovando.
— Ora, está bem — disse Kay —, mas aposto que foi o velho que pegou o Cully para ele.
— Kay — disse Merlin, subitamente terrível —, foste sempre um falador orgulhoso e maldizente, e
um infeliz. Tua pena virá por tua própria boca.
Com isso, todo mundo se sentiu constrangido, e Kay, em vez de se enfurecer como seria normal,
abaixou a cabeça. Ele não era realmente, de jeito nenhum, uma pessoa má, mas inteligente,
perspicaz, orgulhoso, apaixonado e ambicioso. Era uma daquelas pessoas que não seriam nem um
seguidor nem um líder, mas só um coração que aspira, impaciente dentro do corpo impotente que
lhe serve de prisão. Merlin imediatamente se arrependeu de sua descortesia. Para endireitar as
coisas, fez uma pequena faca de caça de prata aparecer do ar e a deu para ele. O puxador do cabo
era feito com a caveira de uma doninha, azeitada e polida como marfim, e Kay adorou.


V


A casa de Sir Ector chamava-se O Castelo da Floresta Sauvage. Parecia mais uma aldeia ou vila
do que a casa de um homem só, e realmente, era uma aldeia nos tempos de perigo: essa parte da
história trata de tempos inquietos. Sempre que havia um ataque de surpresa ou uma invasão de
algum tirano vizinho, todo mundo na propriedade corria para o castelo, conduzindo os animais na
frente para os pátios, e ali permaneciam até o perigo passar. As cabanas de palha e taipa por perto
eram sempre queimadas, e tinham que ser reconstruídas depois, entre muita blasfêmia. Por esse
motivo, não valia a pena ter uma igreja na aldeia, pois teria constantemente que ser refeita. Os
aldeões iam à missa na capela do castelo. Aos domingos, vestiam suas melhores roupas e
marchavam pelas ruas da maneira mais respeitável possível, lançando olhares vagos e dignos em
todas as direções, como se relutassem em revelar para onde iam, mas, nos dias de semana, iam às
missas e vésperas com suas roupas normais, caminhando muito mais alegremente. Todo mundo ia à
igreja naquela época, e gostava.

O Castelo da Floresta Sauvage ainda está de pé e é possível ver suas lindas muralhas em ruínas,
cobertas de hera, resistindo ao sol e ao vento. Lagartos vivem ali agora,
e pardais famintos se
abrigam na hera nas noites de inverno, e uma coruja-de-igreja a percorre metodicamente, pairando
ao largo da congregação assustada e batendo na hera com as asas para afugentá-los. A maior parte
da muralha de ligação já caiu, embora seja possível rastrear o alicerce das doze torres redondas
que guardavam o castelo. Eram redondas e sobressaíam do muro sobre o fosso, para que os
arqueiros pudessem atirar em todas as direções e controlar todas as partes da muralha. Dentro das
torres há escadas em caracol. Descem dando voltas em uma coluna central, e essa coluna tem
buracos abertos por onde atirar flechas. Mesmo se o inimigo conseguisse penetrar no interior da
muralha e lutasse para abrir caminho até as torres, seus defensores poderiam se retirar pelas
escadas e atirar naqueles que os perseguiam lá dentro através dessas frestas.

A parte de pedra da ponte levadiça com seus barbacãs e as ameias da torre de entrada estão em
boas condições. Tem muitas disposições engenhosas. Mesmo se os inimigos conseguissem
atravessar a ponte de madeira, que era içada para que não conseguissem, havia uma grade de ferro
lastrada com uma tora gigantesca que os esmagaria e também os prenderia ao chão. Havia um
alçapão grande, escondido no piso do barbacã, que os acabaria levando ao fosso. Do outro lado do
barbacã, havia uma outra grade de ferro, de maneira tal que eles podiam ficar presos entre as duas
e serem aniquilados a partir de cima, enquanto as ameias, ou torreões suspensos, tinham buracos no
assoalho através dos quais os defensores poderiam jogar coisas nas cabeças deles. Por fim, no


interior da torre de entrada, havia um pequeno buraco, muito bem-feito, no meio do teto em
abóbada, com arabescos pintados e relevos. Esse buraco dava para o cômodo de cima, onde havia
um grande caldeirão, para ferver chumbo ou óleo.

Essas eram as defesas exteriores. Uma vez dentro da muralha, estava-se em uma espécie de grande
aléia, provavelmente cheia de carneiros assustados, com outro castelo completo à sua frente. Era afortaleza interior, com suas oito enormes torres redondas que ainda permanecem. É muito agradável
subir na mais alta delas, acomodar-se e ficar olhando as fronteiras, de onde vinham alguns desses
perigos antigos, com nada além do sol acima e os turistas pequeninos caminhando lá embaixo, sem
a menor preocupação com flechas nem azeite fervente. Pense em quantos séculos essa torre
inconquistável resistiu. Mudou de mãos por secessão muitas vezes, por cerco uma vez, por traição
duas vezes, mas nunca por ataque. Nesta torre o sentinela fazia a ronda. Daqui, ele guardava os
campos azuis em direção ao País de Gales. Seus velhos ossos limpos descansam hoje embaixo do
assoalho da capela, portanto você deve tomar o lugar dele.

Se olhar para baixo e não tiver medo de altura (a Sociedade de Proteção Disso e Daquilo colocou
parapeitos excelentes para evitar que você caia), pode ver a anatomia completa do pátio interno
estendida à sua frente como um mapa. Pode ver a capela, agora completamente aberta a seu Deus, e
as janelas do grande saguão com o solário por cima. Pode ver as colunas das enormes chaminés e
com que habilidade se arquitetou a entrada dos canos laterais, e as pequenas casinhas de banho
privadas agora públicas, e a enorme cozinha. Se você for uma pessoa sensível, passará dias aí,
talvez semanas, tentando adivinhar por si mesmo por dedução onde estavam os estábulos, as
gaiolas, o curral das vacas, o arsenal, os celeiros, o poço, a forja, o canil, as casernas, os quartos
dos padres, e os aposentos de Milorde e Milady. Então tudo reaparecerá à sua volta outra vez. As
pessoinhas — elas eram menores do que você, e seria um esforço para a maioria de nós conseguir
entrar nas poucas peças de armadura e manoplas antigas que sobraram — passarão apressadas sob
a luz do sol, as ovelhas soltarão seus baas
como sempre fazem, e talvez do País de Gales virá o
ziii-ffi
da flecha de tríplice penas que parecerá não ter se mexido.

Esse lugar, certamente, era um paraíso para um jovem viver. Wart corria por ali como um coelho
em seu próprio labirinto complicado. Conhecia tudo, todo mundo, todos os cheiros especiais, bons
locais para escalar, tocas macias, esconderijos secretos, lugares para saltar, para escorregar,
cantos, despensas e lugares sagrados. . Como um gato, sabia qual era o melhor lugar em cada
estação, e gritava e corria e brigava e perturbava as pessoas e tirava uma soneca e sonhava
acordado e fingia ser um cavaleiro, sem parar. Agora, ele estava no canil.

As pessoas naqueles tempos tinham idéias bem diferentes das que temos hoje sobre como treinar os
cachorros. Elas o faziam mais com amor do que com rigidez. Imagine um M.F.H. (um Senhor de
Cervos e de Cães de Caças) moderno indo para a cama com seus cães, mas Flavius Arrianus diz
que "O ideal é que eles possam dormir com uma pessoa, pois isso os faz mais humanos e porque se
alegram com a companhia dos seres humanos: também, se tiverem um noite inquieta ou estiverem
internamente perturbados, você saberá e não os usará na caça no dia seguinte". No canil de Sir
Ector havia um menino especial, chamado o Menino-Cão, que vivia dia e noite com os cães. Era
uma espécie de chefe dos cachorros, e era sua tarefa todos os dias levá-los para caminhar, tirar os


espinhos de suas patas, curar as feridas de suas orelhas, arrumar-lhes os ossos pequenos quando se
deslocavam, purgá-los dos vermes, isolá-los e cuidar deles quando estavam infectados, arbitrar
suas disputas, e dormir enrolado entre eles à noite. Se ainda me permitem uma outra citação
erudita, foi assim que, mais tarde, o Duque de York, que foi assassinado em Azincourt, descreveu
um garoto desses em seu Mestre da Caça: "Também ensinarei o menino a passear com os cães de
caça duas vezes por dia, de manhã e à tarde, enquanto o sol estiver no céu, especialmente no
inverno. Então ele deverá deixá-los correr e brincar nos prados ao sol, e depois pentear cada cão
um após o outro, e lavá-los com uma grande escova de palha, e deverá fazer isto todas as manhãs.
E depois deverá levá-los para um lugar agradável onde cresça relva macia como trigo e outras
coisas, e que lá eles possam se alimentar, pois isso é remédio para eles". Assim, como o "seu
coração e suas tarefas estão com os cães", os próprios cães ficam "bonitos e gentis e limpos,
contentes e alegres e brincalhões e agradáveis com toda a sorte de pessoas, exceto os animais
selvagens com os quais devem ser cruéis, impetuosos e maus".

O Menino-Cão de Sir Ector não era outro senão aquele que teve seu nariz arrancado pela mordida
do terrível Wat. Não tendo um nariz como os humanos, e sendo, além disso, alvo das pedras
jogadas pelas crianças da aldeia, sentia-se mais à vontade com os animais. Conversava com eles,
não em linguagem de bebê como uma donzela, mas corretamente, com seus próprios rosnados e
latidos. Todos o adoravam, e o veneravam por tirar os espinhos de suas patas, e iam imediatamente
procurá-lo quando tinham problemas. Ele sempre entendia na hora o que estava errado e, em geral,
conseguia endireitar as coisas. Era ótimo para os cachorros ter seu deus, de forma visível, entre
eles.

Wart gostava do Menino-Cão, e o achava muito inteligente por ser capaz de fazer tantas coisas com
os animais — pois conseguia que eles fizessem quase tudo apenas mexendo suas mãos — e o
Menino-Cão adorava Wart quase da mesma maneira que seus cachorros o adoravam, e achava que
Wart era quase santo porque sabia ler e escrever. Passavam muito tempo juntos, rolando no chão
com os cachorros no canil.

O canil ficava no piso térreo, perto das estrebarias, com um celeiro em cima para que fosse fresco
no verão e quente no inverno. Os cães eram alãos, de caça à vista, mestiços e de faro. Eram
chamados de Canhestro, Trowneer, Phoebe, Colle, Gerland, Talbot, Luath, Luffra, Apoio, Orthros,
Bran, Gelert, Bounce, Boy, Lion, Bungery, Toby e Diamond. O favorito de Wart chamava-se
Cavall, e ele estava justamente lambendo o nariz de Cavall — não o contrário — quando Merlin
entrou e o encontrou.

— Isso virá a ser considerado um hábito nada higiênico — disse Merlin —, embora eu mesmo não
entenda porque. Afinal, Deus fez o nariz das criaturas tão bem como fez sua língua.
— Se não melhor — acrescentou o filósofo, pensativamente.
Wart não sabia sobre o que Merlin estava falando, mas gostava quando ele falava. Não gostava dos
adultos que se colocavam no nível dele, mas os que continuavam falando do jeito normal,
deixando-o segui-los aos saltos, pulando alguns significados, adivinhando, agarrando-se às
palavras conhecidas, e rindo exultante das piadas complicadas quando de repente as entendia.
Nesses momentos, sentia o júbilo dos botos, mergulhando e saltando por mares desconhecidos.


— Vamos sair? — perguntou Merlin. — Acho que já é hora de começarmos as lições.
O coração de Wart desfaleceu ao ouvir isso. Seu tutor estava ali havia um mês, e já era agosto, mas
ainda não tinham tido nenhuma lição até o momento. Agora, de repente, lembrava-se de que era
para isso que Merlin estava ali, e pensou com pavor na Summulae Logicales e na porcaria do
astrolábio. Sabia, no entanto, que teria que se resignar, e se levantou, obediente, depois de dar um
último tapinha relutante em Cavall. Pensou que talvez não fosse tão ruim com Merlin, que seria
capaz de fazer até o velho Princípios de Investigação interessante, sobretudo se fizesse alguma
mágica.

Foram para o pátio, sob um sol tão escaldante que o calor do trabalho no feno parecia não ter sido
nada. Estava um forno. As nuvens escuras de trovões que geralmente acompanham o clima quente
estavam lá, colunas altas de cúmulos com bordas brilhantes, mas por enquanto não haveria
trovoada. Estava demasiado quente até para isso.

"Se pelo menos", pensou Wart, "eu não tivesse que entrar numa sala de aula abafada, mas pudesse
tirar minhas roupas e nadar no fosso".

Atravessaram o pátio, tendo que respirar fundo antes de o atravessarem correndo, como se
tivessem passando rápido por dentro de um forno. A sombra da torre da entrada estava fresca, mas

o barbacã, com seus muros fechados, era o mais quente de todos. Com uma última corrida pelo
deserto, alcançaram a ponte levadiça — será que Merlin adivinhara o que ele estava pensando? —
e ficaram olhando o fosso embaixo.
Era a estação dos nenúfares. Se Sir Ector não tivesse reservado uma parte livre deles para o banho
dos meninos, toda a água estaria coberta. Assim, cerca de vinte metros de cada lado da ponte eram
cortados todos os anos, e dava para mergulhar da própria ponte. O fosso era profundo. Era usado
como viveiro, para que os habitantes do castelo pudessem comer peixe às sextas-feiras e, por esse
motivo, os arquitetos tiveram o cuidado de não deixar os drenos e esgotos irem parar lá. Todos os
anos era abastecido de peixes.

— Eu gostaria de ser um peixe — disse Wart.
— Que espécie de peixe?
Estava quase quente demais até para pensar nisso, mas Wart fitou as profundezas frescas cor de
âmbar, onde um cardume de pequenas percas estava zanzando sem destino.

— Acho que gostaria de ser uma perca — ele disse. — São mais corajosas do que as tolas carpas,
e não tão assassinas quanto os lúcios.
Merlin tirou o chapéu, levantou sua vara de pau-santo no ar e disse lentamente:

— Snylrem stnemilpmoc ot enutpen dna Iliw eh yidnik tpecca siht yob sa a hsif?
Imediatamente escutou-se um forte barulho de ventania de conchas-marinhas, búzios e coisas assim,
e um cavaleiro corpulento e bem-humorado apareceu sentado em uma nuvem rechonchuda sobre as
ameias. Tinha uma âncora tatuada no estômago e, no peito, uma bonita sereia com Mabel escrito
embaixo. Cuspiu um pouco de tabaco, cumprimentou Merlin afavelmente com a cabeça e apontou


seu tridente para Wart. Wart viu que estava sem roupas. Viu que tinha caído da ponte levadiça,
pousando na água com um estalo de lado. Viu que o fosso e a ponte levadiça estavam cem vezes
maiores. Viu que tinha se transformado em um peixe.

— Ah, Merlin — ele gritou —, por favor, venha também.
— Desta vez, eu vou — disse uma tenca grande e séria ao seu ouvido. — Mas no futuro você terá
que ir sozinho. Educação é experiência, e a essência da experiência é a autoconfiança.
Wart achou difícil ser um novo tipo de criatura. Não dava certo tentar nadar como um ser humano,
pois o fazia avançar em espiral e muito devagar. Não sabia nadar como peixe.

— Não é assim — disse a tenca, séria. — Ponha seu queixo no ombro esquerdo e dê saltos para a
frente. Para começar, não se preocupe com as barbatanas.
As pernas de Wart tinham se fundido com sua coluna dorsal, e seus pés e respectivos dedos tinham
se transformado em uma barbatana caudal. Seus braços transformaram-se em mais duas barbatanas

— de um rosa delicado —, e apareceram outras tantas em algum lugar perto do estômago. Sua
cabeça estava de frente para os ombros, e assim, quando ele se dobrava ao meio, seus pés se
dirigiam para a orelha e não para sua testa. Era de um bonito verde-azeitona, com placas laminadas
riscadas por todo o corpo, e faixas escuras laterais. Não tinha certeza do que eram seus flancos e o
que eram sua frente e costas, mas o que agora parecia ser sua barriga tinham uma atraente cor
esbranquiçada, enquanto as costas estavam armadas com uma maravilhosa barbatana que podia se
eriçar para batalhas e que tinha espigões. Deu alguns saltos como a tenca orientou e viu que estava
nadando verticalmente para baixo, direto para o lodo.
— Use os pés para girar para a esquerda ou para direita — disse a tenca —, e abra essa barbatana
em sua barriga para manter a horizontal. Você está vivendo em dois planos agora, não em um.
Wart percebeu que poderia se manter mais ou menos no nível horizontal, alterando a inclinação das
barbatanas do braço e da barriga. Saiu nadando ainda vacilante, mas divertindo-se muitíssimo.

— Volte — disse a tenca. — Você tem que aprender a nadar antes de poder adquirir velocidade.
Wart retornou até seu tutor em uma série de ziguezagues e observou:
— Parece que não consigo nadar reto.
— O problema é que você não está nadando com os ombros. Nada como se fosse humano,
curvando os quadris. Tente dar seus saltos direto a partir do pescoço para baixo, e mexa o corpo
exatamente o mesmo tanto para a direita que vai mexer para a esquerda. Trabalhe também as
costas.
Wart deu dois saltos espetaculares e desapareceu completamente em um tufo de cavalinhas, a
vários metros dali.

— Está melhor — disse a tenca, agora fora da vista na água verde escura, e Wart conseguiu se
desvencilhar do sargaço com esforço infinito, contorcendo suas barbatanas laterais. Ondulou de
volta em direção à voz, com outro impulso espetacular, para se exibir.
— Ótimo —, disse a tenca, quando eles se chocaram rabo com rabo. — Mas direção é a melhor

parte do valor. — Tente fazer assim — ele acrescentou.
Sem nenhum esforço aparente, nadou de ré, por baixo de um nenúfar. Sem nenhum esforço aparente


— mas Wart, que era um aprendiz aplicado, observava o levíssimo movimento das barbatanas.
Mexeu as suas em sentido contrário ao do relógio, deu um hábil impulso na ponta do rabo, e lá
estava ele ao lado da tenca.
— Esplêndido — disse Merlin. — Agora vamos nadar um pouco.
Wart estava bem equilibrado agora e razoavelmente capaz de avançar. Estava relaxado o suficiente
para examinar o universo extraordinário no qual o cavalheiro tatuado com tridente o mergulhara.
Era diferente do universo com o qual estava acostumado. Para começar, o céu ou o firmamento
acima era agora um círculo perfeito. O horizonte estava fechado. Para que você pudesse se ver na
mesma posição de Wart, teria que imaginar um horizonte redondo, poucas polegadas acima de sua
cabeça, em vez do horizonte plano que normalmente se vê. Por baixo desse horizonte de ar, teria
que imaginar outro horizonte debaixo da água, esférico e praticamente de cabeça para baixo —
porque a superfície da água atuava parcialmente como um espelho para o que estivesse debaixo
dela. E difícil imaginar. O que o torna ainda mais difícil de imaginar é que tudo que os seres
humanos considerariam como estando acima do nível da água aparecia orlado com todas as cores
do espectro. Por exemplo, se você estivesse tentando pescar Wart, ele veria você, na beira do pires
que seria o ar exterior para ele, não como uma pessoa agitando uma vara com anzol, mas como sete
pessoas, cujas silhuetas seriam vermelha, laranja, amarelo-esverdeado, azul, anil e violeta, todas
agitando a mesma vara cujas cores seriam também variadas. Na verdade, você seria um homem
arco-íris para ele, um farol de lampejos de cores irradiantes, que se misturariam umas com as
outras, com raios por todos os lados. Você teria flamejado acima da água como Cleópatra no
poema.

A segunda coisa mais deliciosa era que Wart não tinha peso. Já não estava mais ligado à Terra e
não tinha que caminhar pesadamente por uma superfície plana, comprimido pela gravidade e pelo
peso da atmosfera. Podia fazer o que o homem sempre quis fazer, isto é, voar. Praticamente não
existe diferença entre voar na água e voar no ar. O melhor de tudo é que ele não tinha que voar
numa máquina, puxando alavancas e ficando sentado, mas podia fazê-lo com o próprio corpo. Era
como os sonhos que as pessoas têm.


A casa de Sir Ector chamava-se O Castelo da Floresta Sauvage. Parecia mais uma aldeia ou vila
do que a casa de um homem só, e realmente, era uma aldeia nos tempos de perigo.

Quando eles iam começar a sair nadando no passeio de inspeção uma carpinha tímida surgiu de
entre duas moitas ondulantes de cavalinhas e parou ali perto, pálida de agitação. Fitou-os com
olhos grandes e apreensivos e, evidentemente, queria alguma coisa, mas não conseguia se decidir.

— Aproxima-te — Merlin disse, sério.
Com isso, a carpa avançou agitada como uma galinha, caiu em lágrimas e começou a gaguejar sua
mensagem.

— Po-po-por favor, doutor — gaguejou a pobre criatura, tão rápido que eles mal podiam entender
o que ela dizia —, temos um ca-ca-so tão horrível de u-u-uma ou outra coisa em nossa família, e s-
s-s-será que o s-s-s-senhor teria um tempinho? É n-n-nossa querida Mama, que está n-n-n-nadando
só de cabeça pra cima, e e-e-e-e-está de um jeito horrível e f-f-f-falando de um jeito tão esquisito,
se n-n-não for incomodar? C-C-C-Clara disse para dizer isso, o s-s-s-senhor entende o que quero
dizer?
Aqui a pobre carpa começou a chiar tanto que com sua gagueira e sua disposição às lágrimas
tornou-se quase incapaz de falar e só conseguia encarar Merlin com seus olhos pesarosos.

— Está bem, meu jovem — disse Merlin. — Vamos, vamos, me leve até sua querida Mama e
veremos o que poderemos fazer.

Puseram-se a nadar todos os três em direção à escuridão sob a ponte levadiça, em sua incumbência
de misericórdia.

— São neuróticas, essas carpas — sussurrou Merlin, por trás de sua barbatana. — Provavelmente,
trata-se de um caso de histeria nervosa, assunto para um psicólogo e não para um médico.
Mama carpa estava deitada de costas, como o filho descrevera. Tinha os olhos semicerrados, as
barbatanas dobradas sobre o peito, e de vez em quando soltava uma borbulha. Todos os filhos
estavam à sua volta, formando um círculo, e toda vez que ela soltava uma borbulha, eles cutucavam
um ao outro e suspiravam. A Mama tinha um sorriso seráfico no rosto.

— Bem, bem, bem — disse Merlin, assumindo sua melhor pose de médico —, e como está a Sra.
Carpa hoje?
Deu umas palmadinhas nas cabeças das carpinhas e avançou com movimentos solenes em direção à
paciente. Talvez deva ser mencionado que Merlin era um peixe pesado, grande sorriso, pesando
uns dois quilos e meio, pele colorida, escamas pequenas, barbatanas adiposas, um tanto
escorregadio, e olhos brilhantes de cravo-de-defunto — uma figura respeitável.

A Sra. Carpa estendeu, lânguida, uma barbatana, suspirou enfaticamente e disse:

— Ah, doutor, finalmente o senhor veio.
— Hum — respondeu o médico, com seu tom mais grave. Depois, disse a todos que fechassem os
olhos — Wart ficou espreitando — e começou a nadar em volta da doente, em uma dança lenta e
imponente. Enquanto dançava, ele cantava. Sua canção era assim:
Terapêutico,
Elefântico,
Diagnóstico,
Buum!
Pancreático,
Microstático,
Antitóxico,
Fim!
Com catabolismo normal,
Lengaleguísmo e tagarelismo
Isso, aquilo, aquilorum
Acabe seu abundonorum
Dispepsia,
Anaemia,
Toxaemia,
Um, dois, três
Lá vai de uma vez,
E tralali-traloló para o
Pinto Pedrês



No final da canção, ele estava nadando tão perto, em volta de sua paciente, que na verdade a
tocava, roçando seus flancos marrons de escamas macias contra os dela, mais claros e ásperos.
Talvez ele a estivesse curando com seu visco — pois dizem que todos os peixes procuram a tenca
para se curar — ou talvez fosse pelo toque, por massagem ou por hipnotismo. De qualquer modo, a
Sra. Carpa de repente parou de cerrar os olhos, virou-se do lado certo, e disse:

— Ah, doutor, querido doutor, sinto que poderia comer uma pequena minhoca agora.
— Nada de minhocas — disse Merlin — por pelo menos dois dias. Vou lhe dar uma receita para
um caldo forte de algas a cada duas horas, Sra. Carpa. Temos que trabalhar para fortalecê-la, a
senhora compreende. Afinal, Roma não foi construída em um dia.
Depois, voltou a dar palmadinhas em todas as carpinhas, disse-lhes que crescessem e se tornassem
peixinhos valentes, e foi embora nadando com ar de importância em direção à escuridão. Enquanto
nadava, inflava e desinflava a boca.

— O que você quis dizer com aquilo sobre Roma? — perguntou Wart, quando já não podiam ser
escutados.
— Só os céus sabem.
Continuaram nadando. Merlin ocasionalmente lembrando Wart de trabalhar as costas, quando ele se
esquecia, e o estranho mundo das águas começou a se mostrar ao redor, deliciosamente fresco
depois do calor do ar de cima. As grandes florestas de ervas daninhas eram delicadamente
traçadas, e dentro delas vários cardumes de esgana-gatas pairavam imóveis, aprendendo a fazer
seus exercícios físicos em perfeita sincronia. A ordem de Um, todas se deitavam quietas; a Dois,
viravam-se uma para a outra; a Três, disparavam todas juntas para formar um cone, cujo vértice era
um pedaço de algo para comer. Caracóis aquáticos vagarosamente moviam-se pelos caules dos
nenúfares ou sob suas folhas, enquanto mexilhões de água doce estendiam-se no fundo sem nada
fazer de especial. Sua carne era cor rosa salmão, como um bom sorvete de morango. O pequeno
cardume de percas — era uma coisa estranha, mas todos os peixes maiores pareciam ter se
escondido — tinha circulação delicada, e elas ficavam ruborizadas ou pálidas tão facilmente
quanto uma donzela nas novelas vitorianas. Só que o rubor delas era de uma cor verde-azeitona
escura, e era o rubor da raiva. Sempre que Merlin e seu companheiro nadavam passando por elas,
levantavam suas pontudas barbatanas frontais em ameaça, e só as baixavam quando viam que
Merlin era uma tenca. Suas listras pretas laterais faziam que parecessem ter sido grelhadas, e
também podiam ficar mais escuras ou mais claras. Uma vez, os viajantes passaram por baixo de um
cisne. A criatura branca flutuava acima como um Zeppelin, todo indistinto a não ser pelo que estava
por baixo da água. Essa parte estava bastante clara e mostrava que o cisne flutuava levemente de
um lado, com uma pata dobrada sobre as costas.

— Veja — disse Wart —, é o pobre cisne da pata aleijada. Só pode bater uma perna, e a outra fica
dobrada.
— Bobagem — retrucou o cisne, vivamente, enfiando a cabeça dentro da água e fazendo-lhes uma

carranca com as narinas pretas. — Os cisnes gostam de descansar nessa posição, e você pode
guardar sua compaixão piscosa para você mesmo, ora bolas! — Continuou a encará-los de cima,
como uma cobra branca de repente descendo pelo teto, até que eles saíram de seu raio de visão.

— Você vai nadando — disse a tenca — como se não houvesse nada para temer nesse mundo. Não
percebe que este lugar é exatamente como a floresta que você teve de atravessar para me
encontrar?
— É?
Wart olhou e, a princípio, não viu coisa alguma. A seguir, viu uma pequena forma translúcida
imóvel perto da superfície. Estava fora da sombra de um nenúfar e claramente desfrutava o sol. Era
um lúcio bebê, absolutamente rígido e provavelmente adormecido, e parecia o cabo de um
cachimbo ou um cavalo-marinho achatado e esticado. Quando crescesse, seria um bandoleiro.

— Vou levar você para ver um desses — disse a tenca —, o imperador desses rufiões. Como
médico, tenho imunidade, e acredito que ele respeitará também você como meu companheiro, mas é
melhor ficar com o rabo dobrado, caso ele esteja se sentindo tirânico.
— Ele é o Rei do Fosso?
— É. Velho Jack é como é chamado, e alguns o chamam de Negro Peter, mas a maioria não o
chama por nome nenhum. Dizem apenas Sr. P. Você verá o que é ser rei.
Wart começou a seguir um pouco atrás de seu condutor, e talvez tenha sido mesmo bom que o
fizesse, pois antes que notasse já estavam chegando ao lugar de destino. Quando viu o velho
déspota, começou a recuar com horror, pois o Sr. P. tinha bem um metro e vinte de comprimento e
peso incalculável. O corpo enorme, sombrio e quase invisível entre os galhos, terminava em um
rosto já devastado por todas as paixões de um monarca absoluto — crueldade, tristeza, idade,
orgulho, egoísmo, solidão e pensamentos demasiado intensos para cérebros comuns. Ali ficava ou
pairava, a grande boca irônica permanentemente voltada para baixo, em uma espécie de
melancolia, as faces magras e bem barbeadas dando-lhe um ar de americano, como um Tio Sam.
Era impiedoso, desiludido, lógico, predatório, cruel, implacável — mas o brilho intenso de um
olho era o de um cervo ferido, grande, atemorizado, sensível e cheio de pesares. Não fez
movimento algum, mas olhou para os dois com seu olho ruim.

Wart pensou consigo mesmo que não gostava do Sr. P.

— Senhor — disse Merlin, sem prestar atenção ao nervosismo dele —, eu trouxe um jovem
professante que gostaria de aprender a professar.
— A professar o quê? — perguntou o Rei do Fosso lentamente, mal abrindo suas mandíbulas e
falando pelo nariz.
— Poder — disse a tenca.
— Deixe-o falar por si mesmo.
— Por favor — disse Wart —, eu não sei o que deveria perguntar.
— Nada existe — disse o monarca —, exceto o poder que você pretende procurar: poder de

triturar e poder de digerir, poder de procurar e poder de encontrar, poder de esperar e poder de
exigir, todos os poderes e a implacabilidade brotando da nuca.

— Obrigado.
— O amor é uma peça que as forças da evolução nos pregaram. O prazer é a isca que nos jogam.
Só existe o poder. O poder é da mente individual, mas o poder da mente não é suficiente. O poder
do corpo no final decide tudo, e só a Força é Certa.
— Agora creio que é hora de você se retirar, jovem mestre, pois estou achando essa conversa
desinteressante e cansativa. Creio que, realmente, você deve se retirar imediatamente, caso minha
boca desiludida não determine de repente que eu deva lhe apresentar minhas grandes guelras, as
quais têm também dentes. Sim, realmente acho que você devia ser sábio o bastante para ir embora
já, neste momento. Realmente, acho que deve pôr suas costas para trabalhar. E, portanto, dê já seu
longo adeus à toda a minha grandeza.
Wart sentiu-se quase hipnotizado por essas palavras pomposas, e mal notou que a boca tensa estava
cada vez mais e mais perto dele. Aproximava-se imperceptivelmente, enquanto o discurso distraía
sua atenção e, de repente, assomou-se a pouquíssimos centímetros de seu nariz. Com a última frase,
ela se abriu, horrível e enorme, a pele se esticando voraz de osso a osso e dente a dente. Dentro
dela parecia só existir dentes, dentes afiados como espinhos em filas e serras por todo lado, como
os cravos nas botas dos trabalhadores, e foi só no último segundo que ele conseguiu recuperar sua
vontade própria, reassumir seu autocontrole, entender as instruções e fugir.

Todos aqueles dentes se fecharam com estrépito atrás dele, bem na pontinha de seu rabo, enquanto
ele dava o salto mais entusiástico que jamais daria outra vez.

Em um segundo, estava de novo em terra firme, de pé ao lado de Merlin na ponte levadiça, ofegante
em suas roupas abafadas.


VI


Uma quinta-feira à tarde, os meninos estavam treinando arco e flecha, como usual. Havia dois alvos
de palha a uns quarenta e cinco metros um do outro, e depois que atiravam as flechas em um deles,
só tinham que ir até lá, recolhê-las e atirar no outro alvo, depois de olhar em torno. O clima ainda
era o mais agradável do verão, e no almoço teve galinhas, portanto Merlin retirara-se para o limite
do campo de treino e se sentara debaixo de uma árvore. E com o calor e as galinhas e o creme que
colocara em seu pudim, e o contínuo repassar dos meninos e o ruidinho das flechas nos alvos —
que dava tanto sono quanto o barulho de um cortador de grama ou de uma partida de críquete na
aldeia —, e com a dança das manchas do sol em forma de ovos entre as folhas da árvore, o velho
logo caiu no sono.

A arte de manejar o arco era uma ocupação séria naquela época. Ainda não tinha sido relegada aos
índios e aos garotos. Se você atirasse mal, ficava de mau humor, assim como ainda hoje ficam os
ricos caçadores de faisão. Kay estava atirando mal. Estava se esforçando demais e puxando na hora
de disparar, em vez de deixar por conta do arco.

— Ah, vamos embora — ele disse. — Estou farto desses alvos abomináveis. Vamos atirar no
papagão.
Abandonaram os alvos e atiraram várias vezes no papagão — que era um pássaro artificial grande,
bem colorido, preso na ponta de um bastão, parecido com um papagaio — e Kay também errou
todas as vezes. Primeiro, pensou, "Bom, vou acertar nessa porcaria, mesmo se tiver que ficar sem
meu chá até conseguir". Depois, foi ficando simplesmente chateado.

Wart disse:

— Vamos brincar de Bandoleiros, então. Podemos voltar em meia hora e acordar Merlin.
O que eles chamavam de brincar de bandoleiros consistia em sair para uma caminhada com os
arcos e atirar uma flecha cada a qualquer marca que encontrassem e concordassem que seria oalvo. Às vezes era um monte de terra levantado por alguma toupeira, às vezes uma moita de junco,
às vezes um cardo grande quase a seus pés. Variavam a distância em que escolhiam esses objetos,
às vezes escolhendo um alvo tão afastado quanto uns 110 metros — o que era mais ou menos a
maior distância a que seus arcos de jovens conseguiam chegar —, e à vezes tendo de apontar na
verdade para baixo de um cardo próximo, porque a flecha sempre levanta uns trinta ou sessenta
centímetros quando deixa o arco. Contavam cinco pontos para um tiro certeiro, e um se a flecha


ficava dentro do comprimento do arco, e depois somavam os pontos no final.

Nessa quinta-feira, eles escolheram seus alvos sabiamente. Além disso, a relva do campo fora
cortada recentemente, e assim nunca tinham que procurar muito tempo pelas flechas, o que quase
sempre acontece, como no golfe, se você atira imprudentemente perto de sebes ou lugares
abandonados. O resultado foi que se afastaram mais do que o costume e se encontraram perto da
beira da floresta selvagem, onde Cully se perdera.

— Eu voto para irmos caçar aí por essas tocas e ver se a gente pega um coelho — disse Kay. —
Vai ser mais divertido do que atirar nessas bobagens.

Eles foram. Escolheram duas árvores a cerca de cem metros de distância uma da outra, e cada um
postou-se debaixo de uma delas esperando que os coelhos tornassem a sair das tocas. Ficaram
imóveis, com os arcos já levantados e as flechas prontas, de modo a fazerem o mínimo movimento
para não perturbar as criaturas quando elas aparecessem. Não era difícil para nenhum deles ficar
parado assim, pois a primeira prova que tinham que passar nas aulas de manejo de arco era
permanecer de pé, parado, com o arco no braço esticado por meia hora. Tinham seis flechas cada
um e poderiam atirar e perder todas antes de precisarem assustar os coelhos, tendo que ir recolhê-
las. Uma flecha não faz ruído suficiente para incomodar mais do que aquele coelho em particular
que está sendo flechado por ela.

No quinto tiro, Kay teve sorte. Calculou com precisão a força certa de vento e distância, e sua
flecha pegou um jovem coelho na cabeça. O coelho ficara parado um tempão para observá-lo,
tentando descobrir o que era aquilo.

— Ah, belo tiro! — gritou Wart, enquanto corriam para pegá-lo. Era o primeiro coelho que
acertavam, e por sorte a flechada conseguira matá-lo de uma vez.
Depois que cuidadosamente o destriparam — para mantê-lo fresco — com a faca de caça que
Merlin dera a Kay, e passaram uma de suas patas traseiras sobre a outra atrás do osso tarso para
conveniência ao carregar, os dois meninos se prepararam para voltar para casa com sua presa. Mas
antes de desencordoar, tinham o costume de fazer uma cerimônia. Toda quinta-feira à tarde, depois
que a última flecha fora lançada a sério, tinham permissão de colocar mais uma no arco e atirar
direto para cima, no ar. Era em parte um gesto de adeus, em parte de triunfo, e era uma beleza. Eles

o fizeram agora como uma saudação à sua primeira presa.
Wart viu sua flecha subir. O sol já estava se pondo a oeste, rumo ao anoitecer, e as árvores onde
eles estavam os cobriam parcialmente com sua sombra. Assim, quando a flecha passou pelas
árvores e subiu rumo à luz do sol, começou a incandescer contra o anoitecer como o próprio sol.
Para cima e para cima, cada vez mais ela subiu, sem oscilar como poderia ter feito com um disparo
brusco, mas se elevando, deslizando, almejando o céu, firme, dourada e soberba. Justo no momento
em que esgotara sua força, justo no momento em que sua ambição fora turvada pelo destino e ela se
preparava para fraquejar, desistir, voltar para o regaço da terra mãe, um prodígio aconteceu. Um
corvo surgiu batendo as asas, cansado, frente à noite que se aproximava. Surgiu, não hesitou, e
levou a flecha. Voou para longe, pesado e alçando-se, com a flecha no bico.

Kay ficou amedrontado mas Wart ficou furioso. Adorara os movimentos de sua flecha, sua ambição


de queimar à luz do sol e, além disso, era a melhor flecha que tinha. Era a única com balanço
perfeito, afiada, as penas firmes, bem emplumada, a curvatura exata, e nem empenhada, nem
arranhada.

— Era um bruxo — disse Kay.

VII


Duas tardes por semana, tinha torneio e equitação porque esses eram os ramos mais importantes da
educação de um cavaleiro naqueles tempos. Merlin resmungava contra as práticas atléticas,
dizendo que hoje em dia as pessoas pareciam pensar que você era um homem educado se
conseguisse derrubar outro homem do cavalo e que a mania pelos esportes era a ruína da erudição

— ninguém estudava como antes, quando ele era pequeno, e todas as escolas públicas tinham sido
forçadas a rebaixar seus padrões — mas Sir Ector, que fora um velho membro da equipe azul de
torneio, dizia que a batalha de Crécy fora vencida nos campos de batalha de Camelot. Isso deixou
Merlin tão furioso que fez Sir Ector ter reumatismo duas noites seguidas antes de aplacar. O torneio
era uma grande arte e precisava de prática. Quando dois cavaleiros se enfrentavam em uma justa,
empunhavam a lança na mão direita, mas dirigiam os cavalos um contra o outro de maneira que
cada homem tivesse seu oponente no outro lado. De fato, segurava-se a base da lança no lado
oposto do corpo ao que o inimigo atacava. Isso parece completamente ao contrário para quem tenha
o hábito, digamos, de abrir cancelas com o cabo do chicote, mas tinha lá suas razões. Para
começar, significava que o escudo estava no braço esquerdo, e assim os oponentes atacavam
escudo contra escudo, totalmente cobertos. Também significava que um homem poderia ser
derrubado de seu cavalo com o lado ou gume da lança, em uma espécie de pancada horizontal, se
não tinha lá muito certeza de atingi-lo com a ponta. Esse era o mais simples ou o menos habilidoso
dos golpes em um torneio.
Um bom justador, como Lancelot ou Tristão, sempre usava o golpe da ponta que, embora estivesse
propenso a falhar em mãos inábeis, fazia o contato mais cedo. Se um cavaleiro atacava segurando
firme sua lança de lado para derrubar da sela seu oponente, o outro cavaleiro com sua lança
apontada diretamente para a frente o derrubaria um comprimento de lança antes que sua pretendida
derrubada se efetivasse.

Depois, havia a maneira certa de segurar a lança para o golpe da ponta. Não era bom se curvar na
sela e segurar a lança com um aperto firme preparatório para o grande choque, pois se você a
segurasse assim rigidamente, sua ponta iria oscilar para cima e para baixo a cada movimento de
sua retumbante cavalgada, e era praticamente certo perder a mira. Ao contrário, você tinha que se
sentar relaxado na sela com a lança solta e equilibrada seguindo o movimento do cavalo. Só no
momento exato do ataque é que deveria apertar os joelhos contra os flancos do cavalo, jogar o peso
para a frente, no assento, agarrar a lança com a mão toda em vez de com os dedos e o dedão,
apertar o cotovelo direito contra o corpo para agüentar o tranco.


Outra coisa era o tamanho da lâmina. Obviamente, um homem com uma lança de cem metros
acertaria um oponente com uma lança de três ou três metros e meio antes que esse último sequer
chegasse perto. Mas seria impossível fazer uma lança de cem metros e, fosse feita, seria impossível
carregá-la. O justador devia descobrir o comprimento máximo que seria capaz de manejar com a
máxima velocidade, e tinha que se fixar nisso. Sir Lancelot, que aparecerá algum tempo depois
dessa parte da história, tinha lanças de vários tamanhos e usava sua Grande Lança ou sua Lança
Menor conforme a ocasião exigisse.

Havia os lugares onde o inimigo deveria ser ferido. No arsenal do Castelo da Floresta Sauvage
havia um grande desenho de um cavaleiro com armadura, com círculos marcando os pontos
vulneráveis. Estes variavam de acordo com o estilo da armadura, portanto, era preciso estudar o
adversário antes de atacar e selecionar um ponto. Os bons armeiros — os melhores viviam em
Warrington e ainda vivem lá — tinham o cuidado de fazer com que todas as superfícies salientes e
as reentrâncias da armadura tivessem forma convexa, para que a ponta da lâmina resvalasse ao
chocar-se com elas. Curiosamente, no entanto, os escudos dos trajes góticos tendiam mais a serem
côncavos. Era melhor que a ponta de uma lâmina permanecesse no escudo em vez de ricochetear
para cima ou para baixo, e talvez atingir um ponto mais vulnerável da armadura. O melhor lugar de
todos para atingir uma pessoa era bem na crista do elmo, isto é, se a pessoa em questão era vaidosa

o suficiente para ter uma grande crista de metal em cujas dobras e enfeites a ponta encontraria um
lugar fácil para se alojar. Muitos eram vaidosos o bastante para ter essas cristas armoriais, com
ursos e dragões, ou mesmo navios e castelos como enfeites, mas Sir Lancelot sempre se contentava
com um capacete simples, ou um punhado de penas que não agüentariam uma lâmina ou, em uma
ocasião, a luva macia de uma dama.
Demoraria muito entrar em todos os detalhes interessantes de como deveria ser um torneio que os
jovens precisavam aprender, pois naqueles dias você tinha que ser um mestre do ofício do começo
ao fim. Tinha que saber qual madeira era melhor para as lanças e por quê, e até como torneá-la
para que não lascasse ou empenas-se. Havia milhares de questões controversas sobre armas e
armaduras, e todas tinham que ser entendidas.

Logo do lado de fora do castelo de Sir Ector havia um campo de justas para competições, embora
não tivesse acontecido nenhum torneio ali desde que Kay nascera. Era um prado verde, bem
cortado, com uma grande encosta relvada em volta, na qual poderiam se erguer pavilhões. Havia
uma grande tribuna de honra de madeira de um lado, construída sobre estacas, para as damas. No
momento, o campo só era usado como campo de treinamento para justas, e um quintano foi
instalado em uma ponta e uma argola na outra. O quintano era um sarraceno de madeira, enfiado em
um mastro. Seu rosto estava pintado de azul claro, com barba vermelha e olhos brilhantes. Tinha
um escudo na mão esquerda e uma espada de madeira achatada na direita. Se você o acertasse no
meio da testa tudo ficava bem, mas se sua lança o acertasse no escudo ou em qualquer parte para a
esquerda ou para a direita da linha do meio, ele então rodopiava com grande velocidade, e
geralmente conseguia lhe dar uma pancada forte com a espada enquanto você galopava ao redor,
tentando se esquivar. Sua pintura estava um tanto arranhada e a madeira esgravatada sobre seu olho
direito. A argola era só uma argola comum de ferro, amarrada a uma espécie de forca por um fio.
Se conseguisse enfiar a ponta da lança na argola, o fio se rompia, e você saía galopando orgulhoso


com a argola em sua lança.

O dia estava mais frio, como não ficava há tempos, pois o outono estava quase chegando, e os dois
meninos estavam no campo de torneio com o mestre de armas e Merlin. O mestre de armas, ou
sargento-de-armas, era um cavaleiro tenso, pálido, vigoroso, com bigodes encerados. Sempre
caminhava com o peito empinado como um pombo de papo, e em todas as ocasiões possíveis
gritava "Quando eu disser Um...". Tinha que se esforçar muito para manter a barriga pra dentro e,
com freqüência, tropeçava nos próprios pés porque não conseguia vê-los sob o peito. Geralmente,
ficava exercitando os músculos, o que aborrecia Merlin.

Wart estava sentado ao lado de Merlin, à sombra da tribuna de honra e se coçava por causa dos
percevejos da colheita. Só há pouco tempo as foices tinham sido postas de lado e o trigo se
levantava em medas, entre o restolho alto daqueles tempos. Wart ainda se coçava. Também tinha
dores nos ombros e uma orelha latejando, por ter errado algumas vezes com o quintano — pois,
evidentemente, o treino de torneio era feito sem armadura. Wart estava contente porque agora era a
vez de Kay e descansava, sonolento, à sombra, dormitando, coçando-se, revirando-se como um cão
e, em parte, se divertindo.

Merlin, sentado de costas para todo o atletismo, estava praticando um feitiço que se esquecera. Era
um feitiço para tirar a curvatura do bigode do sargento, mas até agora só conseguira desencurvar
um deles, e o sargento nem notara. Distraidamente, enrolava-o para cima a cada vez que Merlin
fazia o feitiço, e Merlin dizia, "Por mil virgens-donzelas!", e começava de novo. Uma vez, por
engano ele fez a orelha do sargento bater, e este lançou um olhar perplexo para o céu.

A distância, do outro canto do campo de torneio, a voz do sargento veio flutuando no ar parado.

— Na-nã-nã-não, Senhor Kay, não é assim de jeito nenhum. Não estás nada bem, não estás nada
bem. Deveis segurar a lança entre o polegar e o indicador da vossa mão direita, com o escudo a se
alinhar com a sutura das pernas de vossa calça...
Wart esfregou a orelha dolorida e suspirou.

— Por que você está suspirando?
— Eu não estava suspirando, estava pensando.
— O que você estava pensando?
— Ah, em nada. Estava pensando em Kay aprendendo a ser um cavaleiro.
— E com razão pode suspirar — exclamou Merlin, irritado. — Um punhado de unicórnios sem
cérebro se pavoneando e se chamando de homens educados só porque são capazes de empurrar um
ao outro do cavalo com a ponta de um pedaço de pau! Isso me deixa cansado. Ora, acredito que Sir
Ector ficaria bem mais contente se tivesse como tutor de vocês um desses velhos praticantes de
justas, um sei-lá-o-quê! que saísse gingando, apoiado nas articulações, como um gorila antropóide,
em vez de um mago de conhecida probidade e reputação internacional, com diplomas de honra de
todas as universidades européias. O problema da aristocracia normanda é que são maníacos por
jogos, é isso que eles são, maníacos por jogos.

Calou-se, indignado, e deliberadamente fez as orelhas do sargento se abanarem devagar duas vezes,
em uníssono.

— Não era bem nisso que eu estava pensando, — disse Wart. — Na verdade, estava pensando em
como seria bom ser um cavaleiro, como Kay.
— Bom, você logo será um, não será? — perguntou o velho, com impaciência.
Wart não respondeu.
— Não será?
Merlin se virou e olhou de perto o menino através dos óculos.
— Qual é o problema agora? — inquiriu, grave.
Sua inspeção lhe mostrara que seu aluno estava tentando não chorar, e se lhe falasse com voz gentil
ele certamente não resistiria mais e começaria mesmo a chorar.

— Eu não serei cavaleiro — respondeu Wart, com frieza. O truque de Merlin deu certo e ele já não
queria chorar: queria bater em Merlin. — Não serei um cavaleiro porque não sou filho legítimo de
Sir Ector. Eles farão de Kay um cavaleiro e eu serei seu escudeiro.
Merlin virou-se de costas outra vez, mas seus olhos estavam brilhando atrás dos óculos.

— Que pena — ele disse, sem compaixão.
Wart explodiu, deixando escapar todos seus pensamentos.
— Ah, eu bem queria ter nascido de mãe e pai adequados, para poder ser um cavaleiro errante —
exclamou.

— O que você faria?
— Teria uma armadura esplêndida e dúzias de lanças, e um cavalo preto com um metro e oitenta de
altura, e eu me chamaria O Cavaleiro Negro. E iria para perto de uma fonte ou de um vau ou de
alguma coisa assim e faria todos os verdadeiros cavaleiros que passassem pelo caminho lutarem
comigo pela honra de suas damas, e pouparia a vida de todos eles depois de derrubá-los. E viveria
ao ar livre, o ano todo em um pavilhão, e não faria nada a não ser lutar e sair em buscas e levar o
prêmio dos torneios, e nunca revelaria a ninguém meu verdadeiro nome.
— Sua esposa não iria gostar dessa vida.
— Ah, eu não teria esposa. Acho que elas são estúpidas. Mas teria uma dama favorita —
acrescentou pouco à vontade o futuro cavaleiro — para poder usar seu penhor no elmo e fazer
proezas em sua honra.

Uma abelha grande passou zunindo entre eles, sob a tribuna de honra, e seguiu para a luz do sol.

— Você gostaria de ver alguns verdadeiros cavaleiros errantes? — perguntou o mago, devagar. —
Agora, em favor de sua educação?

— Ah, claro! Nunca vimos nenhum torneio desde que estou aqui.

— Suponho que posso arranjar isso.
— Ah, por favor, arranje. Você poderia me levar a um, como fez com o peixe.
— Acredito que possa ser educativo, de certa forma.
— E muito educativo — disse Wart. — Não consigo pensar em nada mais educativo do que ver
cavaleiros verdadeiros lutando. Ah, por favor, você faz isso?
— Você tem preferência por algum cavaleiro?
— O Rei Pellinore — ele respondeu, imediatamente. Tinha um fraco por esse cavaleiro desde o
estranho encontro com ele na floresta.
— Esse servirá muito bem. Ponha suas mãos de lado e relaxe os músculos. Cobridas arei thurum,
catalamus, singulariter, nominativa, haec musa. Fecha os olhos e mantenha-os fechados. Bônus,
bona, bonum. Lávamos nós! Deus Sanctus, est-ne aratio Latinas? Etiam, oui, quare? Pour-quoi?
Quai substantivo et adjectivum concordai in generi, numuerum etcasus. Cá estamos.
Enquanto esses encantamentos eram ditos, o paciente sentia sensações estranhas. Primeiro, escutou

o sargento gritando com Kay, "Na-nã-não assim, não assim, mantei vossos joelhos para baixo e
balançai o corpo a partir dos vossos quadris". Então, as palavras foram diminuindo, diminuindo,
como se ele estivesse olhando para os pés pelo lado errado de um telescópio, e começaram a girar
como em um funil, como se estivessem na extremidade pontuda de um redemoinho que o estivesse
sorvendo para o ar. Depois, não tinha mais nada a não ser um barulho como um ronco e assovio
giratórios ensurdecedores, que foram aumentando como um furacão, e ele achou que não agüentaria
mais. Finalmente, houve um completo silêncio e Merlin dizendo, "Cá estamos". Tudo isso
aconteceu mais ou menos no período que um foguete barato levaria para levantar com seu silvo de
fogo, curvar depois do clímax e se dispersar em raios e estrelas coloridas. Abriu os olhos justo no
momento em que se escutaria o bastão invisível chegando ao chão.
Estavam debaixo de uma faia na Floresta Sauvage.

— Cá estamos — disse Merlin. — Levanta e limpa suas roupas. E ali, suponho — continuou o
mágico, com satisfação porque seu feitiço funcionou dessa vez sem nenhuma falha —, está nosso
amigo, o Rei Pellinore, esporeando seu cavalo em nossa direção pela planície.
— Olá, olá! — gritou o Rei Pellinore, com sua viseira estalando para cima e para baixo. — É o
jovem da cama de penas, não é?, eu diria, o quê?
— Sim, sou eu — Wart respondeu. — E estou muito feliz de rever o senhor. Conseguiu pegar a
Besta?
— Não — respondeu o Rei Pellinore —, não consegui pegar a Fera. Oh, venha já aqui, sua cadela
malvada, e deixe a moita em paz. Tcha! Tcha! Malcriada, malcriada! Ela faz o maior tumulto, está
vendo, o quê? Gosta muito de coelhos. Já lhe disse que não tem nada aí, cadela abominável. Tcha!
Tcha! Larga isso, larga isso! Ah, faça o que lhe digo, obedeça — e acrescentou: — Ela nunca me
obedece.
Nisso, a cachorra fez um faisão macho sair da moita e subir como um foguete com tremendo


estardalhaço, deixando-a tão excitada que ela correu ao redor do dono duas ou três vezes, na
extremidade da corda, ofegando rouca como se tivesse asma. O cavalo do Rei Pellinore ficou
parado, pacientemente, enquanto a corda rodeava suas pernas, e Merlin e Wart tiveram que pegar a
cadela e desenrolá-la antes que a conversa pudesse continuar.

— Eu digo muito obrigado a vocês — disse o Rei Pellinore. — E o que devo dizer. Não vai me
apresentar seu amigo, o quê?
— Este é meu tutor Merlin, um grande mago.
— Como tem passado? — disse o Rei. — Sempre gosto de conhecer magos. Na verdade, sempre
gosto de conhecer qualquer pessoa. Ajuda o tempo a passar, o quê, numa busca.
— Salve!— disse Merlin, no seu jeito mais misterioso.
— Salve! — respondeu o Rei, ansioso para causar boa impressão.
Apertaram-se as mãos.
— Você disse Salve?— inquiriu o Rei, olhando em volta, nervoso. — Pensei que estivesse a salvo,
na verdade.
— Ele quis dizer como-tem-passado — explicou Wart.
— Ah, sim, como-tem-passado? Apertaram-se as mãos outra vez.
— Boa tarde — disse o Rei Pellinore. — Como você acha que está o tempo agora?
— Acho que parece um anticiclone.
— Ah, sim — disse o Rei — Um anticiclone. Bem, acho que já devo ir andando.
Com isso, o Rei tremeu muito, abriu e fechou a viseira várias vezes, tossiu, deu um nó nas rédeas,
exclamou "Perdão?", e deu sinais de começar a sair a meio galope.

— Ele é um mago branco — disse Wart. — Não é preciso ter medo dele. É meu melhor amigo, sua
majestade, e de qualquer forma, geralmente seus feitiços se embaralham.
— Ah, sim — disse o Rei Pellinore. — Um mago branco, o quê? Como o mundo é pequeno, não é?
Como-tem-passado?
— Salve! — disse Merlin.
— Salve! — disse o Rei Pellinore. Apertaram-se as mãos pela terceira vez.
— Eu não iria embora, se fosse você — disse o mago. — Sir Grummore Grummursum está a
caminho para desafiá-lo para uma justa.
— Não, você não diga! Sir seja-lá-qual-for-seu-nome está vindo para cá para me desafiar para uma
justa?
— Com toda a certeza.
— É um homem com pontos em desvantagem?
— Eu diria que é um competidor à altura.

— Bem, devo dizer, ou vai salvar um, ou vai salvar o outro — exclamou o Rei.
— Salve! — disse Merlin.
— Salve! — disse o Rei Pellinore.
— Salve! — disse Wart.
— Agora, realmente, não vou apertar a mão de ninguém — anunciou o monarca. — Devemos
admitir que todos já nos conhecemos antes.
— Sir Grummore realmente está vindo para desafiar o Rei Pellinore para uma batalha? —
perguntou Wart, mudando rápido de assunto.

— Olhem ali — disse Merlin e os dois olharam na direção que ele apontou com o dedo.
Sir Grummore Grummursum vinha a meio galope pela clareira, em armadura completa de guerra.
Em vez de seu elmo comum com viseira, usava o elmo próprio para duelos, que parecia um grande
balde para carvão e retinia com o galope.

Vinha cantando a canção de sua velha escola:

Juntos duelaremos
Firmes dos pés aos dentes
E nunca na vida romperemos
Nosso amor pela velha turma
Em frente, em frente, em frente, frente,
Até o escudo soar e ressoar
aos estrépitos de homens honrados a lutar.


— Por Deus! — exclamou o Rei Pellinore. — Há quase dois meses não participo de uma justa
adequada, e no último inverno me fizeram entrar em dezoito. Foi quando estabeleceram as novas
contagens de pontos.
Sir Grummore chegou enquanto ele falava, e reconheceu Wart.

— Diga — disse Sir Grummore. — Você é o menino de Sir Ector, não é? E quem é esse sujeito
com o chapéu cômico?
— É meu tutor — disse Wart, rapidamente. — Merlin, o mago.
Sir Grummore olhou para Merlin — os magos eram considerados muito classe média pelos
verdadeiros competidores de justas naqueles dias — e disse, distante:

— Ah, um mago. Como-tem-passado?
— E este é o Rei Pellinore — disse Wart. — Sir Grummore Grummursum, Rei Pellinore.
— Como-tem-passado?— cumprimentou Sir Grummore.

— Salve! — disse o Rei Pellinore. — Não, não quero dizer que é para salvar alguém, o quê?
— Lindo dia — disse Sir Grummore.
— Sim, está bonito, não está, o quê?
— Estava numa busca hoje?
— Ah, sim, obrigado. Sempre numa busca, você sabe. Atrás da Besta Gemente.
— Trabalho interessante, esse, muito.
— Por Jove, sim. Gostaria de ver uns excrementos?
— Tenho melhores em casa, mas esses são muito bons, na verdade.
— Abençoado seja. Então, esses são excrementos dela.
— Sim, são excrementos dela.
— Excrementos interessantes.
— Sim, são interessantes, não são? Mas você acaba se cansando deles — acrescentou o Rei
Pellinore.
— Bom, bom. Está um dia agradável, não?
— Sim, está muito agradável.
— Suponho que ficaria melhor se a gente tivesse uma justa, hein, que tal?
— Sim, suponho que seria melhor, realmente — disse o Rei Pellinore.
— E por qual motivo lutaremos?
— Oh, pelo de sempre, suponho. Um de vocês poderia fazer a gentileza de me ajudar com o elmo?
No final, todos os três tiveram que ajudá-lo, pois, com todo o desatarrachar dos parafusos e o
afrouxar das porcas e pinos que o Rei, desajeitado, enfiara do jeito errado quando se levantara às
pressas essa manhã, foi toda uma proeza de engenharia tirá-lo do elmo e voltar a colocá-lo outra
vez lá dentro. O elmo era uma coisa enorme como um tambor de gasolina, acolchoado por dentro
com duas camadas de couro e uns três centímetros de palha.

Tão logo ficaram prontos, os dois cavaleiros se posicionaram nos dois extremos da clareira e
depois avançaram para se encontrar no meio.

— Nobre Cavaleiro — disse o Rei Pellinore —, rogo que me digas vosso nome.
— Isso só a mim diz respeito — respondeu Sir Grummore, usando a fórmula adequada.
— Dizer isso é uma descortesia, o quê? — retrucou o Rei Pellinore. — Pois nenhum cavaleiro
deve temer dizer seu nome abertamente, exceto por razões de desonra.
— Seja como for, decido que não sabereis meu nome nesse momento, não adianta perguntar.
— Então, deve ficar e lutar comigo, falso cavaleiro.
— Você não falou errado, Pellinore? — inquiriu Sir Grummore. — Acho que é "deveis ficar".

— Oh, perdão, Sir Grummore. Sim, é assim o correto, claro. Então, deveis ficar e lutar comigo,
falso cavaleiro.
Sem mais palavras, os cavaleiros se retiraram para os extremos opostos da clareira, ergueram as
lanças e se prepararam para se arremessarem um contra o outro no ataque preliminar.

— Acho que devemos subir nesta árvore — disse Merlin. — Você nunca sabe o que pode
acontecer em uma justa como essa.
Subiram na grande faia, que tinha ramos confortáveis se estendendo para todo lado, e Wart se
posicionou na ponta de um galho liso, a cerca de quatro metros e meio de altura, de onde podia ter
uma boa visão. Não tem lugar mais confortável para sentar do que uma faia.

Para poder imaginar a terrível batalha que naquele momento acontecia, há uma coisa que é preciso
saber. Um cavaleiro com sua armadura completa naqueles tempos ou, em todo caso, nos tempos
áureos das armaduras, geralmente carregava tanto ou mais que seu próprio peso em metal. Com
freqüência, pesava não menos que cento e quarenta quilos; às vezes, chegava a uns cento e sessenta.
Isso significava que sua montaria tinha que ser um carregador de peso enorme e lento, como os
atuais cavalos de fazenda, e seus movimentos eram tão atrapalhados pela carga de ferro e
acolchoamentos que se viam obrigados a se mover em câmera lenta, como no cinema.

— Aí vão eles! — gritou Wart, prendendo a respiração, tão excitado estava.
Devagar e majestosamente, os sobrecarregados cavalos moviam-se pesadamente. As lanças, que
estavam apontadas para o ar, baixaram para uma linha horizontal e apontaram uma para a outra.
Dava para ver o Rei Pellinore e Sir Grummore batendo com energia os calcanhares nos flancos de
seus cavalos e, em poucos minutos, os esplêndidos animais, trôpegos, começaram uma imitação de
trote que fazia a terra tremer. Com estrépidos, ribombar e pancadas secas, lá foram os cavalos, e
agora os cavaleiros agitavam cotovelos e pernas em uníssono, deixando suas selas verem bastante
da luz do sol. Houve uma mudança no andamento, e podia-se ver que o cavalo de Sir Grummore
decididamente começara um meio galope. No minuto seguinte, o Rei Pellinore também fazia o
mesmo. Era um espetáculo terrível.

— Meu Deus!— exclamou Wart, sentindo-se envergonhado por ter sido, com sua sede de sangue,
responsável por fazer esses dois cavaleiros lutarem frente a ele. — Você acha que eles vão se
matar?
— Esporte perigoso — disse Merlin, balançando a cabeça.
— Agora! — gritou Wart.
Com um bater de ferros de fazer gelar o sangue, os poderosos ginetes se encontraram. Suas lanças
balançaram-se, por um momento, a poucos centímetros dos elmos um do outro — ambos
escolheram o difícil golpe-da-ponta — e logo estavam galopando em direções opostas. Sir
Grummore arremessou sua lança bem no meio da faia onde eles estavam trepados, e parou exausto.
O Rei Pellinore que continuava correndo, desapareceu completamente.

— Posso olhar?— inquiriu Wart, que fechara os olhos no momento crítico.

— Seguramente — disse Merlin. — Eles vão demorar para retomar as posições.
— Uau, uau, eu diria! — gritou o Rei Pellinore numa voz abafada e distante, bem longe, entre as
moitas de tojo.
— Ei, Pellinore, ei! — gritou Sir Grummore. — Volte, meu caro companheiro, eu estou aqui!
Houve uma pausa comprida, quando as complicadas posições dos dois cavaleiros se reajustavam, e
então o Rei Pellinore estava no extremo oposto àquele de onde começara, enquanto Sir Grummore

o enfrentava a partir da que fora sua posição original.
— Cavaleiro traidor — gritou Sir Grummore
— Renda-se, covarde, o quê?— gritou o Rei Pellinore. Apontaram as lanças outras vez e
retumbaram ao ataque.
— Oh — disse Wart —, espero que não se machuquem.
As duas montarias pacientemente se acercavam, e os dois cavaleiros simultaneamente decidiram
atacar para derrubar. Cada um segurou sua lança em ângulo reto para a esquerda e, antes que Wart
pudesse dizer algo mais, houve um terrível, embora melodioso, baque. A armadura estrondou como
um motor de ônibus colidindo com uma forja, e os competidores encontraram-se sentados lado a
lado na relva verde, enquanto seus cavalos galopavam em direção oposta.

— Uma queda magnífica! — disse Merlin.
Os dois cavalos pararam, dever cumprido, e começaram resignadamente a pastar a relva. O Rei
Pellinore e Sir Grummore ficaram lá sentados, olhando um para o outro, cada um com a lança do
outro esperançosamente presa debaixo do braço.

— Bom!— disse Wart. — Que batida! Os dois parecem estar bem, até agora.
Sir Grummore e o Rei Pellinore levantaram-se com esforço.
— Defendei-vos — gritou o Rei Pellinore.
— Deus vos proteja! — gritou Sir Grummore.
Com isso, desembainharam suas espadas e lançaram-se com tal ferocidade um contra o outro que
cada um, depois de deixar um amassado no elmo do outro, sentou-se de repente para trás.

— Bah! — gritou o Rei Pellinore.
— Buuh! — gritou Sir Grummore, também sentado.
— Misericórdia — exclamou Wart. — Que combate!
Os cavaleiros agora tinham perdido a calma e a batalha era para valer. O que não importava muito,
na verdade, pois estavam tão encerrados em seus metais que não podiam causar muito dano um ao
outro. Demoravam tanto para se levantar, e era um negócio tão cansativo dar um soco quando se
carrega a oitava parte de uma tonelada, que era possível prestar atenção e avaliar bem cada etapa
da disputa.

Na primeira etapa, o Rei Pellinore e Sir Grummore mantiveram-se frente a frente por quase meia


hora, golpeando fortemente um ao outro no elmo. Só havia oportunidade para um golpe de cada vez,
e eles mais ou menos se revezavam, o Rei Pellinore atacando quando Sir Grummore estava se
recuperando, e vice-versa. No começo, se um deles deixava cair sua espada ou a enterrava no
chão, o outro dava um ou dois golpes extras enquanto ele, com paciência, a procurava ou tentava
desenterrá-la. Depois, entraram mais perfeitamente no ritmo da coisa, como os bonecos que serram
madeira nos brinquedos mecânicos das árvores de Natal. No final, o exercício e a monotonia
restauraram o bom humor dos dois e eles começaram a se aborrecer.

A segunda etapa foi introduzida como uma variante, de comum acordo. Sir Grummore caminhou a
passos pesados até um extremo da clareira, enquanto o Rei Pellinore laboriosamente caminhava até
o outro. Então, viraram-se e se balançaram para a frente e para trás uma ou duas vezes, com o
objetivo de assentarem o peso nos dedos dos pés. Quando se inclinavam para a frente, tinham que
correr para manter o equilíbrio, e se se inclinassem muito para trás, caíam. Portanto, até andar era
complicado. Quando conseguiram distribuir o peso apropriadamente à frente, a ponto de estarem
quase se desequilibrando, irromperam em um trote para se manterem de pé. Atracaram-se como se
fossem dois ursos.

Encontraram-se no meio do campo, peito a peito, com um barulho de naufrágio e dobres de grandes
sinos, e ambos, quicando com força, caíram sem fôlego para trás. Ficaram estendidos por alguns
minutos, ofegando. Então, vagarosamente, começaram a pelejar para se levantar, e era óbvio que
tinham se irritado outra vez.

O Rei Pellinore não apenas se irritou como pareceu ter ficado um pouco atordoado com o impacto.
Levantou-se virado para o lado errado, e não conseguia ver Sir Grummore. Havia uma justificativa
para isso, já que tinha apenas uma fresta pela qual espiar — e ela estava a uns oito centímetros de
seus olhos por causa dos acolchoados de palha —, mas também parecia confuso. Talvez tivesse
quebrado seus óculos. Sir Grummore foi rápido e aproveitou essa vantagem.

— Tome isto! — Sir Grummore gritou, dando com as duas mãos uma violenta pancada no cocuruto
do infeliz monarca enquanto ele lentamente virava sua cabeça de um lado para o outro, olhando na
direção oposta.
O Rei Pellinore virou-se com lentidão, mas seu oponente foi muito rápido para ele. Marchara em
volta sem pressa, continuando por trás do Rei, e agora lhe dava outro golpe terrível no mesmo
lugar.

— Onde está você?— gritou o Rei Pellinore.
— Aqui — gritou Sir Grummore, golpeando-o de novo. O pobre Rei girou tão ligeiro quanto podia,
mas Sir Grummore lhe escapuliu outra vez.
— Agüente isto! — gritou Sir Grummore, com outro golpe.
— Acho que você é um mal-educado — disse o Rei.
— Outro golpe — retrucou Sir Grummore, executando-o.
E com a batida preliminar, e os repetidos golpes na nuca, e a natureza enigmática de seu oponente,
podia-se ver que o Rei Pellinore agora estava com os miolos perturbados. Balançava para a frente


e para trás, sob a saraivada de golpes que lhe estavam sendo administrados, e fragilmente agitava
os braços.

— Pobre Rei — disse Wart. — Queria que ele não apanhasse tanto.
Como se em resposta a seu desejo, Sir Grummore parou seu trabalho.
— Deseja a Pax? — perguntou Sir Grummore. O Rei Pellinore não respondeu.
Sir Grummore favoreceu-o com outra pancada e disse:
— Se você não disser pax, cortarei sua cabeça.
— Não direi — disse o Rei.
Plang! fez a espada no topo de sua cabeça.
Plang! fez outra vez.
Plang! fez uma terceira vez.
— Pax — disse o Rei Pellinore, na verdade sussurrando.
Então, justo quando Sir Grummore começava a relaxar com os frutos da vitória, o Rei girou sobre
si mesmo e gritou "Não!" a plenos pulmões, e lhe deu um bom empurrão no meio do peito.
Sir Grummore caiu para trás.


— Nossa! — exclamou Wart. — Que trapaça! Não o imaginaria capaz!
O Rei Pellinore às pressas sentou-se no peito de sua vítima, aumentando assim o peso sobre ele a
um quarto de tonelada, e tornando-lhe impossível se mexer, e começou a desapertar o elmo de Sir
Grummore.

— Você disse Pax!
— Eu disse Pax Não em voz baixa.
— É uma trapaça.
— Não é.
— Você não tem educação.
— Sim, tenho.
— Não, não tem.
— Sim, tenho.
— Não, você não tem.
— Eu disse Pax Não.
— Você disse Pax.
— Não, não disse.
— Sim, você disse.

— Não, não disse,
— Sim, você disse.
A essa altura, o elmo de Sir Grummore estava desatarrachado e dava para ver sua cabeça careca
olhando para o Rei Pellinore, com o rosto completamente vermelho.

— Renda-se, seu covarde — disse o Rei.
— Não me renderei — disse Sir Grummore.
— Você tem que se render, ou cortarei sua cabeça.
— Corte-a, então.
— Ah, vamos — disse o Rei. — Você sabe que tem que se render quando está sem o elmo.
— Finjo — disse Sir Grummore.
— Bom, eu terei que cortar sua cabeça.
— Não me importo.
O rei agitou sua espada ameaçadoramente no ar.
— Continue — disse Sir Grummore. — Eu o desafio. O rei abaixou sua espada:
— Ah, eu digo, renda-se, por favor.
— Renda-se você — disse Sir Grummore.
— Mas eu não posso me render. Estou em cima de você, afinal, não estou, o quê?
— Bom, eu finjo que me rendo.
— Ah, vamos, Grummore. Vou pensar que você não tem mesmo educação se não se render. Você
sabe muito bem que não conseguirei cortar sua cabeça.
— Não me renderei para um trapaceiro que recomeçou a lutar depois de dizer Pax.
— Eu não sou um trapaceiro.
— Você é um trapaceiro.
— Não, não sou.
— Sim, você é.
— Não, não sou.
— Sim, você é.
— Muito bem — disse o Rei Pellinore. — Pode se levantar à vontade e colocar seu elmo e
lutaremos. Não serei chamado de trapaceiro por ninguém.
— Trapaceiro! — disse Sir Grummore.
Levantaram-se e labutaram juntos com o elmo, sibilando. "Não, não sou", "Sim, você é", até que o
colocaram outra vez. Então, retiraram-se para os extremos opostos da clareira, assentaram o peso


nos dedos dos pés, e lá vieram ribombando e retumbando como dois trens extraviados.

Infelizmente, os dois estavam agora tão irritados que deixaram de prestar atenção e, na fúria do
momento, passaram um pelo outro sem conseguir se acertar. O impulso das armaduras foi
demasiado forte, e não conseguiram parar até ficarem com uma boa distância entre si, e então se
movimentaram de tal jeito que não acontecia de um entrar no campo de visão do outro. Era
engraçado observá-los porque o Rei Pellinore, tendo sido pego por trás uma vez, ficava
continuamente girando em torno de si para olhar atrás, e Sir Grummore, tendo usado ele mesmo o
estratagema, também fazia a mesma coisa. Assim, eles zanzaram por uns cinco minutos, parando,
escutando, estrepitando, agachando-se, movendo-se furtivamente, praguejaram e os pombos
abandonaram seus poleiros frondosos a meia milha de distância. Os dois cavaleiros ficaram atentos
até que se contasse três. Então, com um derradeiro tilintar em uníssono e melodioso, ambos caíram
prostrados na relva fatal.


— Você não precisará voar. Não pretendo transformá-lo em um falcão livre, mas apenas colocá-
lo nas Gaiolas por uma noite, para que você possa conversar com os outros. Esta é a maneira de
aprender, escutando os especialistas.
— Eles falam?
— Eles falam a noite toda, no fundo da escuridão. Conversam, sobre como foram pegos, sobre o
que se lembram de suas casas, sobre sua linhagem, e as grandes proezas de seus antecessores,
sobre seus treinamentos e o que aprenderam e o que aprenderão. E uma conversa de caserna, na
verdade, como a que se tem no meio de um papo de regimento da cavalaria: táticas, armas

pequenas, manutenção, apostas, caçadas famosas, vinho, mulheres e canções.

— Desmaiaram — disse Merlin. — Eu acho.
— Meu Deus — disse Wart. — Devemos descer e ajudá-los?
— Podíamos jogar água na cabeça deles — disse Merlin, pensativo —, se água houvesse. Mas não
creio que nos agradeceriam por enferrujar suas armaduras. Eles ficarão bem. Além disso, é hora de
voltarmos para casa.
— Mas eles podem estar mortos!
— Não estão mortos, eu sei. Em um ou dois minutos eles voltarão a si e irão para casa jantar.
— O pobre Rei Pellinore não tem casa.
— Então Sir Grummore vai convidá-lo para passar a noite. Serão os melhores amigos do mundo
quando voltarem a si. Sempre são.
— Você acha mesmo?
— Meu querido menino, eu sei que sim. Feche os olhos e iremos embora.
Wart desistiu frente ao conhecimento superior de Merlin.
— Você acha — ele perguntou com os olhos fechados — que Sir Grummore tem uma cama de
penas?
— Provavelmente.
— Ótimo — disse Wart. — O Rei Pellinore vai gostar disso, mesmo se tiver desmaiado.
As palavras em latim foram ditas e os passes secretos foram feitos. O funil de ruídos e assobios e o
espaço os receberam. Em dois segundos, estavam deitados debaixo da tribuna de honra, e a voz do
sargento gritava, no extremo oposto do campo, "E agora, então, Senhor Wart, e agora então. Já
andastes tirando muita soneca. Vinde aqui à luz do sol com o Senhor Kay, um-dois, um-dois, para
ver um pouco de um verdadeiro torneio".


VIII


Era um final de tarde frio e úmido, tal como pode acontecer mesmo no final de agosto, e Wart não
sabia como agüentar ficar dentro de casa. Passou algum tempo nos canis, conversando com Cavall,
depois vagou um pouco e foi ajudar a voltear o espeto na cozinha. Mas estava quente demais. Por
causa da chuva, era obrigado pelas mulheres supervisoras a ficar em casa, como acontece com
freqüência com as infelizes crianças de nossa geração, mas a mera umidade e tristeza do ar lá fora

o desencorajava a sair. Estava com ódio de todo mundo.
— Diabos o levem, menino! — disse Sir Ector. — Pelo amor de Deus, pare de ficar com esse ar
desanimado olhando pela janela e vá achar seu tutor. Quando eu era menino, o costume era estudar
nos dias de chuva, sim, e edificar nossas mentes.
— Wart é burro — disse Kay.
— Ah, para fora, já, meu patinho — disse a velha ama. — Não tenho tempo de cuidar de vossas
queixas agora, com todo essa roupa para lavar.
— Agora não, jovem Mestre — disse Hob. — Melhor ir para vosso quarto e parar de confundir as
galinhas.
— Na-nã-não — disse o sargento-de-armas. — Nada tendes a ver por aqui. Tenho já bastante a
fazer para limpar essa maldita armadura.
Até o Menino-Cão latiu para ele quando voltou aos canis. Wart se arrastou para o quarto da torre,
onde Merlin estava ocupado tricotando um gorro de dormir, de lã, para o inverno.

— Estou diminuindo a cada nova carreira — disse o mago —, mas por algum motivo está ficandomuito pontudo. Como uma cebola. É a volta do bico que sai errado toda vez.
— Acho que eu deveria ter alguma edificação — disse Wart. — Não consigo pensar em mais nada
para fazer.
— Você acha que educação é algo que você deve ter quando tudo o mais falha? — inquiriu Merlin
irritado, pois também estava de mau humor.
— Bem — disse Wart —, algumas espécies de educação.
— A minha? — perguntou o mágico, com os olhos fuzilando.
— Ah, Merlin — exclamou Wart, sem responder —, por favor, me arranje alguma coisa para fazer,

porque estou me sentindo péssimo. Ninguém me quer para nada hoje, e não sei como ser sensato.
Está chovendo tanto.

— Você deveria aprender a tricotar.
— Eu não poderia ir lá para fora e me transformar em alguma coisa, em um peixe ou algo assim?
— Você já foi um peixe — disse Merlin. — Ninguém com um pouco de esperteza precisa ser
educado duas vezes na mesma coisa.
— Bom, e se eu fosse um pássaro?
— Se você soubesse algo de alguma coisa — disse Merlin —, o que não é o caso, saberia que um
pássaro não gosta de voar na chuva porque suas penas se molham e ficam grudadas. Ficam pesadas.
— Eu poderia ser um falcão nas Gaiolas — teimou Wart. — Assim, não sairia e não me molharia.
— É muita pretensão — disse o velho — querer ser um falcão.
— Você sabe que pode me fazer virar um falcão quando quiser — gritou Wart —, mas você gosta
de me atormentar porque está chovendo. Não agüento mais isso!
— Cabeça-de-vento!
— Por favor, querido Merlin — disse Wart —, me transforme em um falcão. Se você não fizer
isso, vou acabar fazendo uma tolice. Não sei o quê.
Merlin pôs o tricô de lado e olhou seu aluno por sobre os óculos.

— Meu jovem — ele disse —, você será qualquer coisa no mundo, animal, vegetal, mineral,
protista ou vírus, pelo que me concerne, antes de deixar meu trabalho com você, mas terá que
confiar em minha visão retrospectiva superior. Ainda não é o momento de você ser um falcão —
para começar, Hob ainda está nas Gaiolas, alimentando-os —, portanto, pode se sentar por um
momento enquanto aprende a ser um humano.
— Muito bem, se isso é uma ordem — disse Wart. E se sentou. Depois de alguns minutos,
perguntou:
— É permitido falar como um ser humano ou será que se aplica aqui aquela coisa do tipo vê e
cala?
— Todo mundo pode falar.
— Ainda bem, porque queria lhe advertir que tricotou sua barba com a lã por três carreiras até
agora.
— Por mil donzelas, eu...
— Suponho que o melhor a fazer seria cortar a ponta de sua barba. Devo buscar a tesoura?
— Por que não me avisou antes?
— Eu queria ver o que aconteceria.
— Você corre o sério risco, meu caro — disse o mago —, de ser transformado em uma fatia de

pão, e torrado.

Com isso, lentamente ele começou a recuperar sua barba, resmungando para si mesmo enquanto o
fazia e tomando a maior das precauções para não dar nenhum ponto.

— Voar será tão difícil como foi nadar? — perguntou Wart quando achou que seu tutor tinha se
acalmado.
— Você não precisará voar. Não pretendo transformá-lo em um falcão livre, mas apenas colocá-lo
nas Gaiolas por uma noite, para que você possa conversar com os outros. Esta é a maneira de
aprender, escutando os especialistas.
— Eles falam?
— Eles falam a noite toda, no fundo da escuridão. Conversam sobre como foram pegos, sobre o
que se lembram de suas casas, sobre sua linhagem e as grandes proezas de seus antecessores, sobreseus treinamentos e o que aprenderam e o que aprenderão. É uma conversa de caserna, na verdade,
como a que se tem no meio de um papo de regimento da cavalaria: táticas, armas pequenas,
manutenção, apostas, caçadas famosas, vinho, mulheres e canções.
— Outro assunto deles — continuou — é comida. É um pensamento deprimente mas, claro, eles são
treinados principalmente pela fome. São um grupo faminto, os pobres coitados, pensando nos
melhores restaurantes onde costumavam ir, e em como tinham champanhe e caviar e música cigana.
É claro que todos têm sangue nobre.
— Que vergonha eles serem mantidos presos e famintos.
— Bom, eles realmente não se consideram prisioneiros, não mais que os oficiais da cavalaria.
Vêem a si mesmos como profissionais dedicados, membros de uma ordem de cavalaria ou algo
assim. Pertencer ao quadro das Gaiolas, afinal, como você sabe, é restrito às aves de rapina — e
isso ajuda muito, de fato. Sabem que ninguém das classes inferiores pode entrar ali. Seus poleiros
não abrigam melros ou esse tipo de ralé. E quanto à parte da fome, estão longe de morrer de fome
ou ter esse tipo de sofrimento. Estão em treinamento e, como todo mundo em treinamento rigoroso,
como você sabe, pensam em comida.
— Quando posso começar?
— pode começar agora, se quiser. Minha intuição me diz que Hob acabou as tarefas da noite neste
minuto. Mas primeiro, você escolhe que tipo de falcão prefere ser.
— Eu gostaria de ser um esmerilhão{1}. —Wart disse, educadamente.
A resposta agradou ao mágico.
— Uma escolha excelente — ele disse —, e se lhe agradar, procederemos de imediato.
Wart levantou-se do banco e ficou de pé em frente ao tutor. Merlin parou de tricotar.
— Primeiro, você vai diminuir de tamanho — ele disse, pressionando o topo de sua cabeça até que
Wart ficou um pouco menor que um pombo. — Agora, fique na ponta dos pés, dobre os joelhos,
grude os cotovelos nos lados, levante as mãos ao nível dos ombros e junte os indicadores com os

médios, e também os anulares com os mínimos. Olhe, é assim.

Com essas palavras, o velho nigromante ficou nas pontas dos pés e fez como explicara.

Wart imitou-o cuidadosamente e se perguntou o que aconteceria a seguir. O que aconteceu foi que
Merlin, que estava dizendo os encantamentos finais em voz baixa, subitamente transformou-se em
condor, deixando Wart sem mudança, tal como estava, nas pontas dos pés. O condor ficou lá
parado como se estivesse se secando ao sol, com uma envergadura de asas de cerca de três metros,
uma cabeça alaranjada brilhante e um carbúnculo magenta. Parecia muito surpreso e muito
engraçado.

— Volte — Wart disse.— Você transformou a pessoa errada.
— É esta sei-lá-que coisa da dama da limpeza — exclamou Merlin, voltando a ser ele mesmo. —
Depois que você deixa uma mulher em seu estúdio por meia hora, já não sabe mais onde pegar o
feitiço certo, nem se ele era mesmo o certo. Levante-se e vamos tentar de novo.

Desta vez, o já agora minúsculo Wart sentiu seus dedos do pé crescendo e arranhando o piso.
Sentiu seus calcanhares se erguerem e se estenderem para trás, e os joelhos sumirem na barriga. As
coxas ficaram pequenas. Uma membrana cresceu de seus punhos aos ombros, enquanto as penas
primárias irrompiam grandes, macias, das pontas dos dedos, e rapidamente cresciam. As penas
secundárias brotaram nos antebraços, e uma charmosa falsa primária pequena brotou da ponta de
cada dedão.

As dúzias de penas de sua cauda, com as coberturas de penas duplas no meio, cresceram em um
piscar de olhos, e todas as penas de coberturas das costas, peito e ombros deslizaram por sua pele,
escondendo as raízes das plumas mais importantes. Wart olhou rapidamente para Merlin, enfiou a
cabeça entre as pernas e deu uma olhada de lá, sacudindo as penas para colocá-las no lugar, e
começando a coçar o queixo com a garra pontuda de um dedo do pé.

— Ótimo — disse Merlin. — Agora, salte para a minha mão — ei!, cuidado para não apertar— e
escute o que tenho a dizer. Vou levar você até as Gaiolas, agora que Hob já fechou tudo para a
noite, e deixar você solto e sem capuz ao lado de Balin e Balan. Agora, preste atenção. Não se
aproxime de ninguém sem primeiro falar. Lembre-se de que a maioria está encapuzada e pode se
assustar e fazer alguma coisa temerária. Você pode confiar em Balin e Balan, também no gavião
peneira e no gavião. Não fique ao alcance da falcoa, a menos que ela o convide. Por nenhum
motivo deve se pôr ao lado do reservado especial de Cully, pois ele fica sem capuz e irá atrás de
você se tiver qualquer chance. Ele não é lá muito certo da cabeça, pobre sujeito, e se conseguir
agarrar você, nunca sairá de suas garras vivo. Lembre-se de que está visitando um tipo de caserna
militar espartana. Esses caras são soldados de carreira. Como subalterno júnior, sua única tarefa é
manter a boca fechada, falar só quando lhe falarem, e não interromper.
— Se sou um esmerilhão, aposto que sou mais do que um subalterno — disse Wart.
— Bom, para falar a verdade, é. Verá que ambos, o gavião peneira e o gavião, serão polidos com
você, mas para seu próprio bem, não interrompa os esmerilhões mais velhos nem a falcoa. Ela é a
coronela honorária do regimento. E quanto a Cully, bem, ele também é um coronel, ainda que da
infantaria, portanto, tenha cuidado com seus jeitos e trejeitos.

— Terei cuidado — disse Wart, que estava começando a se sentir um pouco assustado.
— Ótimo. Volto para pegar você de manhã, antes de Hob aparecer.
Todos os falcões estavam em silêncio quando Merlin levou o novo companheiro para as Gaiolas, e
permaneceram em silêncio por algum tempo depois que foram deixados no escuro. A chuva dera
lugar a uma lua cheia de agosto tão clara que se podia ver uma lagarta ursa peluda a uns dez metros
de distância lá fora, subindo pelo arenito áspero da torre de vigia, e só demorou alguns instantes
para os olhos de Wart se acostumarem à luz difusa do interior das Gaiolas. A escuridão tornou-se
regada de luz, com brilho de prata, e então uma cena impressionante entrou no seu campo de visão.
Na luz prateada, todas as aves de rapina estavam paradas sobre uma pata, a outra dobrada para
cima, e cada uma delas era uma estátua imóvel de um cavaleiro com armadura. Posicionavam-se
solenemente com seus elmos de plumas, com esporões e armadas. Os toldos ou telas de saco dos
poleiros moviam-se pesadamente com o roçar do vento, como estandartes em uma capela, e a
embevecida nobreza do ambiente cercava com cavalheiresca paciência a vigília os cavaleiros.
Naqueles tempos, costumavam encapuzar todos, inclusive os açores e esmerilhões, que já não são
encapuzados nas práticas modernas.

Wart prendeu a respiração ao ver todas essas figuras imponentes, tão quietas como se fossem
talhadas em pedra. Estava tão extasiado por tanta magnificência que sentiu não precisar do aviso de
Merlin para ser humilde e se comportar.

Nesse momento, houve um tinir suave de campainha. A grande falcoa peregrina havia se movido e,
com uma voz aguda e nasal, saindo de seu aristocrático nariz, disse:


— Senhores, podem palestrar.
Houve um silêncio mortal.
Só no canto distante do cômodo, que fora reservado para Cully — solto lá, sem capuz e de
profundo mau humor — foi possível ouvir o resmungo baixo do colérico coronel de infantaria.


— Malditos negros — ele estava murmurando.— Maldita administração. Malditos políticos.
Malditos bolcheviques. É um maldito punhal o que vejo diante de mim, o cabo virado para mim?
Maldito lugar. Agora, Cully, tendes apenas uma breve hora para viver, e depois serás
perpetuamente amaldiçoado.
— Coronel — advertiu a peregrina, com frieza —, não na frente dos jovens oficiais.
— Peço seu perdão, Madame — disse imediatamente o pobre coronel. — É uma coisa que entra na
minha cabeça, sabe. Uma terrível maldição.
Houve um silêncio de novo, formal, terrível e calmo.


— Quem é o novo oficial?— inquiriu a primeira voz, arrebatada e bonita.
Ninguém respondeu.
— Fale por si mesmo, Sir — comandou a peregrina, olhando direto para a frente como se estivesse
falando durante o sono.

Eles não conseguiam vê-lo, através dos caparões.

— Por favor — disse Wart —, eu sou um esmerilhão...
E parou, aterrorizado com o silêncio.
Rlan que era um dos esmerilhões verdadeiros parado ao seu lado inclinou-se e sussurrou muito
gentil em seu ouvido:


— Não tema. Chame-a de Madame.
— Sou um esmerilhão, Madame, e espero que isso lhe agrade.
— Um esmerilhão. Isso é bom. E de qual ramo dos Esmerilhões você vem?
Wart não tinha a menor idéia de qual ramo dos Esmerilhões ele vinha, mas não podia ser apanhado
na mentira agora.


— Madame — ele disse —, sou um dos Esmerilhões da Floresta Sauvage.
Houve silêncio outra vez depois disso, o silêncio de prata que ele começara a temer.
— Tem os Esmerilhões de Yorkshire — disse finalmente a coronela honorária com sua voz lenta
—, e os Esmerilhões Welsh, e os Esmerilhões do Norte. Depois, tem os de Salisbury, e vários nas
vizinhanças de Exmoor, e os Esmerilhões de Connaught. Não creio que tenha escutado falar de
nenhuma família da Floresta Sauvage.
— Deve ser um novo ramo, Madame, suponho — disse Balan.
"Bendito seja!", pensou Wart. "Vou pegar um pardal especialmente para ele amanhã e lhe dar sem
que Hob veja".


— Deve ser essa a solução, Capitão Balan, sem dúvida. O silêncio caiu de novo.
Finalmente, a peregrina tocou sua campainha. Disse:
— Procederemos com o catecismo, antes que ele preste o juramento.
Wart escutou o gavião à sua esquerda tossir nervosamente ao escutar isso, mas a peregrina não
prestou atenção.


— Esmerilhão da Floresta Sauvage — disse a peregrina, — o que é um Animal de Pata?
— Um Animal de Pata — respondeu Wart, agradecendo aos céus por Sir Ector ter decidido lhe dar
uma Edificação de Primeira Categoria — é um cavalo, ou um cão de caça, ou um falcão.
— Por que são chamados Animais de Pata?
— Porque esses animais dependem da força de suas patas, de modo que, por lei, qualquer dano
causado às patas de um falcão, cão de caça ou cavalo é reconhecido como um dano à sua vida. Um
cavalo manco é um cavalo morto.
— Certo — disse a peregrina. — Quais são seus membros mais importantes?
— Minhas asas — disse Wart, depois de um momento, adivinhando porque não sabia.

Com essas palavras, houve um tilintar exasperado de todas as campainhas, pois cada um daqueles
ídolos baixou a pata erguida, em desaprovação. Estavam agora parados sobre ambas as patas,
agitados.

— Suas o quê? — gritou a peregrina agudamente.
— Ele disse suas malditas asas — falou o Coronel Cully, de sua área privada. — E maldito seja
aquele que primeiro gritar "Pare, já basta!".
— Mas até um tordo tem asas! — gritou o gavião peneira, falando pela primeira vez, em seu tom
esganiçado de alarme.
— Pense! — sussurrou Balan, baixinho. Wart pensou febrilmente.
Um tordo tinha asas, cauda, olhos, pernas — aparentemente tudo.
— As minhas garras!
— Passa — disse a peregrina, com suavidade, depois de uma de suas majestosas pausas. — A
resposta deveria ser Patas, como para todas as outras questões, mas Garras serve.
Todos os falcões, e na verdade estamos usando o termo de maneira livre, pois alguns eram falcões
e outros não, levantaram outra vez a pata com campainha e relaxaram.

— Qual é a primeira lei da Pata?
— Pense — disse amigavelmente o pequeno Balan, por trás de sua falsa pena primária.
Wart pensou e pensou direito.
— Nunca soltar — ele disse.
— Última pergunta — disse a peregrina. — De que maneira você, como um esmerilhão, mataria um
pombo maior do que você?
Wart teve sorte nessa, pois escutara Hob descrevendo como Balan certa tarde matara um, e
respondeu com cautela:

— Eu o estrangularia com minha pata.
— Ótimo! — disse a peregrina.
— Bravo! — gritaram os outros, eriçando as penas.
— Noventa por cento — disse o gavião, depois de uma rápida soma. — Isto é, se você lhe der
meio ponto pelas garras.
— Maldito seja o diabo preto!
— Coronel, por favor!
Balan sussurrou para Wart:
— O Coronel Cully não anda muito bom da cabeça. É do fígado, nós achamos, mas o gavião
peneira diz que é pelo estresse constante de viver de acordo com os padrões elevados da Madame.
Disse que a Madame uma vez falou com ele do alto de sua posição, de cavalaria para infantaria,

entende?, e que ele imediatamente fechou os olhos e teve uma vertigem. Nunca mais foi o mesmo.

— Capitão Balan — disse a peregrina —, é descortês cochichar. Passaremos a proceder ao
juramento do novo oficial. Agora, capelão, tenha a bondade.
O pobre gavião, que já há algum tempo ficava cada vez mais nervoso, corou profundamente e
começou a gaguejar um juramento complicado referente às anilhas, peias e caparões.

— Com esta anilha — Wart escutou — eu vos doto... amor, honra e obediência... até que a peia nos
separe.
Mas antes que chegasse ao final, o capelão desmoronou completamente e soluçou:

— Ah, por favor, Madame. Peço seu perdão mas me esqueci de guardar os
artefatos.
— Os artefatos são ossos e coisas — Balan explicou —, e evidentemente, você
tem de jurar sobre
ossos.
— Esqueceu de guardar os artefatos. Mas é seu dever guardar os artefatos.
— E-e-eu sei.
— O que você fez com eles?
A voz do gavião se engasgou com a enormidade de sua confissão.
— E-e-eu os comi — soluçou o padre infeliz.
Ninguém disse nada. A negligência no cumprimento dos deveres era demasiado terrível para
palavras. Todos pararam nos dois pés e voltaram as cabeças cegas para o culpado. Nenhuma
palavra de reprovação foi dita. Durante um silêncio absoluto de cinco minutos, escutava-se apenas

o incontinente padre fungando e soluçando.
— Bem — disse a peregrina, finalmente —, a iniciação terá que ser adiada
até amanhã.
— Com a sua licença, Madame — disse Balin. — Talvez pudéssemos proceder ao ordálio esta
noite? Acredito que o candidato está solto, pois não o escutei sendo amarrado.
À menção da palavra ordálio, Wart tremeu e privadamente decidiu que Balin não ganharia nenhuma
pena do pardal de Balan no dia seguinte.

— Agradecida, Capitão Balin. Eu estava justamente refletindo sobre isso.
Balin se calou.
— Você está solto, candidato?
— Ah, Madame, sim, estou, por favor; mas não acho que queira um ordálio.
— O ordálio faz parte do costume. Deixe-me ver — continuou a coronela honorária.— Como foi o
último ordálio que tivemos? Você se lembra, Capitão Balan?
— Meu ordálio, Madame — disse o esmerilhão amigo —, foi ficar pendurado por minhas peias
durante a terceira vigília.
— Se ele está solto, não pode fazer isso.

— Sua Senhoria mesma poderia golpeá-lo, Madame — disse o gavião peneira —, judiciosamente,
claro.
— Mande-o ficar ao lado do Coronel Cully enquanto tocamos três vezes — disse o outro
esmerilhão .
— Ah, não! — gritou o coronel louco, agoniado, de seu canto escuro. — Ah, não, Sua Senhoria.
Imploro que não o faça. Sou um vilão tão desgraçado, Madame, que não respondo pelas
conseqüências. Poupe o pobre jovem, Sua Senhoria, e não nos deixe cair em tentação.
— Controle-se, coronel. Este ordálio estará de bom tamanho.
— Ah, Madame, fui avisado para não ficar perto do Coronel Cully.
— Avisado? E por quem?
O pobre Wart percebeu que agora ele teria que escolher entre confessar que era humano, e não
aprender mais dos segredos deles, ou passar por esse ordálio para ter sua educação. Não queria ser
um covarde.

— Ficarei ao lado do Coronel, Madame — ele disse, notando imediatamente que sua voz pareceu
insultante.
A peregrina não prestou atenção no tom.

— Certo — ela disse. — Mas primeiro temos que cantar um hino. Agora, capelão, se você não
comeu também os hinos como fez com os artefatos, poderia ter a gentileza de nos dirigir no Antigo,
não no Moderno, nº 23? O Hino do Ordálio.
— E você, Sr. Kee — ela voltou-se para o gavião peneira —, é melhor se manter calado pois
sempre canta num tom alto demais.
Os falcões aguardaram ao luar, enquanto o gavião contava "Um, Dois, Três". A seguir, todos
aqueles bicos curvos ou denteados se abriram dentro dos capuzes em um forte uníssono, e cantaram
assim:

A vida é sangue, derramado e oferecido.
Os olhos da águia podem encarar o embate.
As feras da caça se profere o mentido:
TIMOR MORTIS CONTURBAT ME.


Segura bem canta o predador
Pois a carne é fraca e a pata firme.
Força ao forte, ao solidário e ao senhor.
TIMOR MORTIS EXULTAT ME.


Vergonha ao indolente e desgraça ao fraco.
Morte ao miserável que foge sem voz.



Sangue ao que rasga, ao de garras, ao de bico.
TIRMOR MORTIS somos Nós.


— Muito bem — disse a peregrina. — Capitão Balan, acho que você desafinou no dó bemol. E
agora, candidato, vá e se posicione ao lado do reservado do Coronel Cully enquanto tocamos três
vezes nossas campainhas. Ao terceiro toque, você pode recuar o mais rápido que puder.
— Muito bem, Madame — disse Wart, com a audácia do ressentimento. Bateu as asas e
posicionou-se no canto extremo do poleiro de tela, ao lado do reservado de rede de corda de Cully.
— Jovem — gritou o Coronel, com voz fantasmagórica —, não se aproxime, não se aproxime. Ah,
não tenteis o demônio abominável em sua maldição.
— Não temo o senhor, Coronel — disse Wart.— Não se exaspere, pois nenhum mal virá para
nenhum de nós.
— Nenhum mal, ora bolas! Ah, afasta, antes que seja tarde demais. Sinto ânsias do eterno em mim.
— Não tema, senhor. Eles só têm que tocar a campainha três vezes.
Com isso, os cavaleiros abaixaram as patas erguidas, dando-lhes uma sacudida solene. O primeiro
doce tinido encheu o cômodo.

— Madame! Madame! — gritou o Coronel, torturado. —Tenha piedade, tenha piedade de um
maldito sanguinário. Soe a velha campainha, soe a nova. Não posso suportar um minuto a mais!
— Seja bravo, senhor — disse Wart, suavemente.
— Seja bravo, senhor! Mas se duas noites atrás encontraram duque, por volta da meia-noite, em
uma ruela atrás da Igreja de Sã Marcos, com a perna de um homem nos ombros: e ele gemia
terrivelmente.
— Não era nada — disse Wart.
— Nada! Disse que era um lobo, só que a diferença é que pele do lobo é peluda por fora, a dele
era peluda do lado de dentro. Rompa minha carne e veja. Ah, pela quietude da morte, com um
simples alfinete!
As campainhas soaram pela segunda vez.

O coração de Wart batia com força, e agora o Coronel fez um movimento lateral em sua direção no
poleiro, rata ante pata vinh; ele, batendo na madeira por onde avançava com um aperto convulsivo
a cada passada. Seus pobres olhos enlouquecidos, cismadores brilhavam ferozes à luz da lua, era
um clarão contra a escuridão persecutória de suas sobrancelhas franzidas. Nada havia de cruel nele
nenhuma paixão ignóbil. Estava aterrorizado com Wart, não triunfante, e precisava matar.

— Se isso fosse feito quando tivesse que ser feito — sussurrou o Coronel —, então melhor seria se
fosse feito rapidamente. Quem imaginaria que o jovem tinha tanto sangue dentro dele?
— Coronel! — disse Wart, mas parou aí.

— Jovem! —, gritou o Coronel. — Fale alguma coisa, me detenha, piedade!
— Tem um gato atrás de você — disse Wart, calmamente —, ou outro bicho semelhante. Olhe.
O Coronel se virou, rápido como um ferrão de vespa, ameaçando a escuridão. Não havia nada.
Outra vez, voltou seus olhos selvagens para Wart, adivinhando o truque. Então, disse com a voz fria
de uma víbora:

— A campainha me convida. Não a escute, esmerilhão, pois é um tilintar que vos chama para o céu
ou para o inferno.
As campainhas realmente estavam tocando pela terceira vez enquanto ele falava, e a honra agora
permitia se mover. O ordálio terminara e Wart podia voar. Mas quando ele se mexeu, quando voou
mais rápido do que qualquer movimento ou vôo no mundo, as terríveis foices tinham sido
disparadas das patas plantadas do Coronel — não como um relâmpago, pois seu movimento foi
demasiado rápido para ser visto —, e com um baque, com um apertão, com uma captura, como
estar sendo preso por um grande policial, as poderosas cimitarras fecharam-se sobre seu dedão em
retirada.

Elas se fecharam, e se fecharam irrevogavelmente. Aperta, aperta, e os enormes músculos das
coxas tensionaram-se em duas convulsões. Então Wart se viu a dois metros mais abaixo da tela, e o
Coronel Cully sobre uma pata, e com seu outro punho fechado, apertando algumas malhas da rede
de corda e a falsa primária de Wart, com suas penas de cobertura. Duas ou três penas menos
importantes desceram suavemente no vento, sob o brilho da lua, para o chão.

— Teste realizado — gritou Balan, deliciado.
— Uma exibição bastante cavalheiresca — disse a peregrina, sem se importar de o Capitão Balan
ter falado antes dela.
— Amém! — disse o gavião.
— Coração valente! — disse o gavião peneira.
— Poderíamos lhe ofertar a Canção do Triunfo? — perguntou Balin, excitado.
— Certamente — disse a peregrina.
E eles cantaram juntos, liderados pelo Coronel Cully a plenos pulmões, todos soando triunfalmente
as campainhas sob a magnífica claridade do luar.

Os pássaros da montanha são doces
Mas os pássaros do vale são gordinhos,
Por isso pensamos que faremos nossos ninhos
Por donde nos leve o amigo fiel.
Encontramos um coelho agachado
E o atacamos nas vitais
O coelho era como mel
E guinchou seus ais.



Uns atacaram as cotovias emplumadas
E lufadas de penas espalharam-se aos pares
Outros agarraram as perdizes nas planadas
E outros agarravam mais presas nos ares
Mas Wart, dos Esmerilhões o rei
Golpeou com pata firme antes de nós.
Suas aves e presas
Abastecem nossas mesas
E suas proezas canta nossa voz!


— Anotem minhas palavras — exclamou o bonito Balan —, teremos um rei consumado neste jovem
candidato. Agora, rapazes, juntos em coro pela última vez:
Mas Wart, dos Esmerilhões o rei
Golpeou com pata firme antes de nós.
Suas aves e presas
Abastecem nossas mesas
E suas proezas canta nossa voz!



IX


— Bom — disse Wart, quando acordou em sua própria cama na manhã seguinte. — Que turma
terrível e formidável.
Kay sentou-se na cama e começou a resmungar como um esquilo:

— Onde você esteve ontem à noite? Vou contar para meu pai e você ganhará uma surra. Você sabe
que não podemos sair depois do toque de recolher. Procurei você por todo canto. Sei que você
escapuliu.
Os meninos tinham um jeito de escapulir por um escoadouro de água de chuva até o fosso, por onde
saíam a nado em ocasiões secretas, quando era necessário sair à noite — para caçar um texugo, por
exemplo, ou pegar tencas, que só se podem pescar pouco antes do amanhecer.

— Ah, cala essa boca — disse Wart. — Estou com sono.
— Acorda, acorda, seu animal. Onde você esteve? — Kay perguntou.
— Não lhe direi.
Tinha certeza de que Kay não só não acreditaria na história, como o chamaria de mentiroso e
ficaria mais zangado do que nunca.

— Se você não me contar, vou matá-lo.
— Não, não vai.
— Vou.
Wart virou-se para o outro lado.
— Animal — disse Kay. Pegou uma dobra da pele do braço de Wart entre as unhas do polegar e
indicador, e deu um beliscão tão forte quanto pôde. Wart pulou como um salmão que subitamente
foi fisgado, e lhe deu um tremendo soco nos olhos. Em um segundo, eles estavam fora da cama,
pálidos e indignados, parecendo coelhos esfolados — pois naquele tempo ninguém usava roupas
para dormir — e agitando os braços como cataventos no esforço de acabar um com o outro.
Kay era mais velho e maior que Wart, portanto estava destinado a acabar vencendo, mas era mais
nervoso e tinha grande imaginação. Podia imaginar o efeito de cada golpe dirigido a ele, o que
enfraquecia sua defesa. Wart era apenas um furacão enfurecido.


— Deixe-me em paz, está bem? — Falava isso, mas ele mesmo não deixava Kay em paz, abaixando
a cabeça e girando os braços de tal maneira que tornava impossível para Kay fazer o que lhe fora
pedido. Socavam a cara um do outro.
Kay tinha um alcance maior e um punho mais pesado. Esticou seu braço, mais em autodefesa do que
qualquer outra coisa, e Wart enfiou seu próprio olho em sua extremidade. O céu virou uma
escuridão barulhenta e impactante, relampejando com labaredas de meteoros. Wart começou a
soluçar e ofegar. Conseguiu dar um soco no nariz do adversário, que começou a sangrar. Kay
baixou a guarda, virou as costas para Wart e disse com uma voz fria, fungada, reprovadora:

— Está sangrando.
A batalha terminara.
Kay deitou-se no piso de pedra, o sangue escorrendo de seu nariz e Wart, com um olho roxo, tirou a
enorme chave da porta para colocá-la debaixo das costas de Kay. Nenhum dos dois disse uma
palavra.
Logo Kay virou seu rosto e começou a soluçar. Ele disse:


— Merlin faz tudo por você, mas nunca faz nada por mim. Com isso, Wart sentiu que tinha sido um
bruto. Vestiu-se em silêncio e saiu para procurar o mago. No caminho, foi pego pela ama.
— Ah, meu pequenino vilão — ela exclamou, sacudindo-lhe o braço —, estivestes brigando com o
Senhor Kay. Veja vosso pobre olho, eu declaro. É o bastante para desconcertar o colégio de
cirurgiões.
— Está tudo bem — disse Wart.
— Não, não está, meu pequeno — exclamou a ama, ficando mais chateada e dando mostras de
querer esbofeteá-lo. — Vamos, respondei como fizestes isto, ou terei que chicotear-vos?
— Bati no espaldar da cama.
A velha ama imediatamente puxou-o para junto de seu amplo peito, deu-lhe palmadinhas nas costas
e disse:

— Ora, ora meu anjinho. É a mesma história que Sir Ector me contou quando o peguei com um olho
roxo, mais de quarenta anos atrás. Nada como uma boa família para ser fiel a uma boa mentira.
Vamos, meu inocente, agora vinde comigo à cozinha que num instante ponho um bife nesse roxo.
Mas não deveríeis lutar com pessoas maiores que vós.
— Está tudo bem — Wart disse outra vez, chateado com a preocupação exagerada, mas o destino
estava decidido a puni-lo, e a velha dama foi inexorável. Levou mais de meia hora até conseguir
escapar e, mesmo assim, só ao preço de levar consigo um pedaço sangrento de bife cru que
supostamente deveria colocar sobre o olho.
— Nada como um bom pedaço de alcatra para fazer sair os humores — a ama dissera e o
cozinheiro respondera:
— Desde a Páscoa ninguém por aqui cá viu melhor naco de carne crua, não, nem mais sumarenta.

"Vou levar essa coisa horrorosa para Balan", pensou Wart, voltando a procurar seu tutor.

Encontrou-o sem problemas no quarto da torre que ele escolhera assim que chegara. Os filósofos
preferem viver em torres, como podemos constatar ao visitar o quarto que Erasmo escolheu no seu
colégio em Cambridge, mas a torre de Merlin era ainda mais bonita que aquela. Era o cômodo mais
alto do castelo, diretamente abaixo da sentinela da torre de vigia, e de sua janela podia-se avistar o
campo aberto — com seus coelhos — do outro lado do parque e da coutada, até seus olhos
finalmente se perderem nas distantes copas azuis das árvores da Floresta Sauvage. Esse mar de
mata frondosa estendia-se longe, longe, em protuberâncias como a superfície de um mingau, até
finalmente se perder nas montanhas remotas que ninguém nunca visitou, e nas torres cobertas de
nuvens e nos grandiosos palácios do céu.

Os comentários de Merlin sobre seu olho roxo foram de natureza médica.

— A descoloração — ele disse — é causada pela hemorragia dos tecidos (equimoses) e passa do
púrpura escuro a verde e amarelo antes de desaparecer.
Parecia não haver resposta sensata para isso.

— Suponho que você o conseguiu — continuou Merlin — brigando com Kay?
— Sim. Como você sabe?
— Ah, bom, lá vem você.
— Eu vim lhe pedir por Kay.
— Fala. Faça sua demanda. Eu responderei.
— Bom, Kay acha que não é justo você sempre me transformar em outras coisas e a ele não. Não
lhe contei nada mas acho que ele adivinhou. Eu também acho que não é justo.
— Não é justo.
— Então, você nos transforma os dois da próxima vez que nos transformarmos?
Merlin tinha acabado seu desjejum, e estava soprando no cachimbo de sepiolita que fizera seu
pupilo pensar que ele respirava fogo. Agora, puxou uma boa baforada, olhou para Wart, abriu a
boca para falar, mudou de idéia, soprou a fumaça e encheu outra vez os pulmões.

— Às vezes a vida parece mesmo injusta — ele disse. — Você conhece a história de Elias e o rabi
Kahana?
— Não — disse Wart. — E sentou-se resignadamente na parte mais confortável do piso,
percebendo que estava se encaminhando para algo parecido com a parábola do espelho.
— Esse rabino — disse Merlin — partiu em uma jornada com o profeta Elias. Caminharam o dia
todo e, ao cair da noite, chegaram ao casebre humilde de um homem pobre, cujo único tesouro era
uma vaca. O pobre saiu correndo do casebre, com sua mulher, para darem as boas-vindas aos
estranhos e lhes oferecer toda a hospitalidade simples que podiam nessas limitadas circunstâncias,
se quisessem passar ali a noite. Elias e o rabino foram servidos de abundante quantidade do leite
da vaca, alimentados com pão feito em casa e manteiga, e colocados para dormir na melhor cama

enquanto seus gentis anfitriões se deitaram perto do fogo da cozinha. Mas, de manhã, a vaca do
pobre homem estava morta.

— Continue.
— Caminharam todo o dia seguinte e, naquela noite, chegaram à casa de um mercador muito rico,
cuja hospitalidade eles tiveram que suplicar. O mercador era frio, e orgulhoso e rico, e tudo o que
fez pelo profeta e seu companheiro foi alojá-los no estábulo e lhes dar pão e água. Na manhã
seguinte, no entanto, Elias agradeceu-lhe muitíssimo pelo que fizera e, em retribuição por sua
gentileza, mandou um pedreiro consertar um de seus muros, que estava caindo.
— O rabi Kahana, incapaz de ficar mais tempo em silêncio, implorou ao santo homem que lhe
explicasse o sentido de sua maneira de tratar os seres humanos.
— Quanto ao pobre que nos recebeu tão hospitaleiramente, — o profeta respondeu —, havia sido
decretado que sua esposa deveria morrer aquela noite mas, como prêmio pela sua bondade, Deus
levou a vaca em vez da esposa. Eu mandei consertar o muro do rico avarento porque um baú de
ouro estava escondido perto daquele lugar, e se o avarento fosse consertar o muro poderia
descobrir o tesouro. Portanto, nunca diga frente ao Senhor: o que fizestes? Mas diga em seu
coração: O Senhor de toda a Terra há de saber bem o que faz.
— É um tipo interessante de história — disse Wart, porque parecia já ter acabado.
— Lamento — disse Merlin — que você deva ser o único a receber meus ensinamentos extras, mas
entenda, fui enviado só para isso.
— Não vejo nenhum problema se Kay também pudesse vir.
— Nem eu. Mas o rabi Kahana não via porque o avarento deveria ter seu muro consertado.
— Entendo isso — disse Wart, em dúvida —, mas ainda acho que foi uma pena a vaca ter morrido.
Kay não poderia vir comigo pelo menos uma vez?
Merlin disse gentilmente:

— Talvez o que é bom para você seja ruim para ele. Além disso, lembre-se de que ele nunca pediu
para ser transformado em outra coisa.
— Ele quer ser transformado, pode ter certeza. Eu gosto de Kay, você sabe, e acho que as pessoas
não o entendem. Ele tem que ser orgulhoso porque está amedrontado.
— Você ainda não está entendendo o que quero dizer. Suponha que ele tivesse se transformado num
esmerilhão ontem à noite, e não tivesse passado no ordálio, e tivesse perdido a cabeça?
— Como você sabia que ia ter um ordálio?
— Ah, bom, lá vem você de novo.
— Muito bem — disse Wart, teimoso. — Mas suponha que ele tivesse passado no ordálio e não
tivesse perdido a cabeça. Não vejo porque você tem que supor que ele teria perdido.
— Ah, que cabeça dura! — gritou o mágico, exasperado. — Esta manhã, parece que você não está
vendo nada. O que é que você quer de mim?

— Transforme eu e Kay em cobras ou outra coisa.
Merlin arrancou seus óculos, jogou-os com força no chão e pulou sobre eles com os dois pés.
— Que Castor e Pollux me soprem para Bermuda! — exclamou, e imediatamente desapareceu com
um rugido terrível.
Wart ainda estava olhando a cadeira vazia de seu tutor com certa perplexidade quando Merlin
reapareceu, momentos depois. Perdera o chapéu, e seu cabelo e a barba estavam emaranhados,
como se um furacão tivesse passado por ali. Sentou-se outra vez, arrumando sua veste com os
dedos trêmulos.

— Por que você fez isso? — perguntou Wart.
— Não fiz isso por querer.
— Você quer dizer que Castor e Pollux realmente o sopraram para Bermuda?
— Que isto seja uma lição para você não praguejar — retrucou Merlin. — Acho melhor mudarmos
de assunto.
— Nós estávamos falando sobre Kay.
— Sim, e o que eu ia dizer antes de minha — helás!
— visita ao ainda vexado Bermoothes, era
isso. Eu não posso transformar Kay em coisas. Esse poder não me foi conferido quando me
enviaram. Por que é assim, nem você nem eu somos capazes de explicar, mas esse continua sendo o
fato. Tentei sugerir algumas das razões para esse fato, mas você não as aceita, portanto deve
simplesmente aceitar o fato em sua realidade crua. Agora, por favor, pare de falar até que eu
recupere o fôlego, e meu chapéu.
Wart sentou-se quieto enquanto Merlin fechava os olhos e começava a resmungar consigo mesmo.
Nesse instante, um curioso chapéu cilíndrico preto apareceu em sua cabeça. Era uma cartola.

Merlin o examinou, desapontado, e disse, azedo:

— E eles chamam isso de serviço de entrega! — e o devolveu ao ar. Finalmente, levantou-se em
um frenesi e exclamou: — Venha cá!
Wart e Archimedes olharam um para o outro, sem entender qual deles estava sendo chamado —
durante todo esse tempo, Archimedes esteve sentado no parapeito da janela, olhando a vista pois, é
claro, nunca saía de perto de seu dono — mas Merlin não prestava atenção neles.

— Vamos — disse Merlin, furioso, aparentemente para ninguém —, você acha que está sendo
engraçado?
— Muito bem, então, por que você faz isso?
— Isso não é desculpa. É claro que me refiro ao que estava usando.
— Mas usando agora, é evidente, seu idiota. Não quero um chapéu que usei em 1890. Você não tem
nenhum senso de época?
Merlin tirou o chapéu de marinheiro que acabara de aparecer em sua cabeça e o levantou no ar para


inspeção.

— Isto é um anacronismo — disse, severo. — É isso que é, um anacronismo desagradável.
Archimedes parecia acostumado a essas cenas, pois agora disse com voz razoável:
— Por que não pede o chapéu pelo nome, mestre? Diga, "Eu quero meu chapéu de mago", e não "Eu
quero o chapéu que estava usando". Talvez o pobre ache tão difícil viver de trás para frente quanto
você.
— Quero meu chapéu de mágico — disse Merlin, de má vontade.
No mesmo instante, o chapéu pontudo apareceu em sua cabeça.

A tensão no ar relaxou. Wart sentou-se outra vez no chão e Archimedes recomeçou sua toalete,
passando suas rêmiges e penas da cauda pelo bico para alisar os filamentos. Cada filamento tinha
centenas de ganchos ou bárbulas diminutas, através das quais os filamentos se firmavam. Ele as
estava penteando.

Merlin disse:

— Perdão. Meu dia hoje não está nada bom, essa é a verdade.
— Quanto a Kay — disse Wart — mesmo não podendo transformá-lo em outra coisa, não poderia
dar a nós dois uma aventura sem transformação?
Merlin fez um esforço visível para não perder a calma e examinar a questão sem paixão. Já estava
completamente cheio desse assunto.

— Não posso fazer nenhuma magia para Kay — ele disse lentamente —, exceto minha própria
magia, a que possuo em qualquer circunstância. Visão retrospectiva e visão de dentro, essas coisas.
Você quer dizer alguma coisa que eu possa fazer com isso?
— O que sua visão retrospectiva faz?
— Ela me diz o que você diria que vai acontecer, e a visão de dentro às vezes me diz o que está
acontecendo ou aconteceu em outros lugares.
— Tem alguma coisa acontecendo agora, alguma coisa que Kay e eu podemos ir ver?
Merlin imediatamente deu um tapa em sua cabeça e exclamou, excitado:
— Agora estou entendendo. Sim, claro que há, e vocês vão poder ver. Sim, vá chamar Kay e
apresse-se. Vocês devem ir logo depois da missa. Tomem desjejum primeiro e sigam
imediatamente depois da missa. Sim, exatamente. Vá direto até a leira de cevada de Hob no campo
e siga essa linha até chegar a alguma coisa. Será esplêndido, com certeza, e eu terei tempo para
tirar uma soneca esta tarde em vez das nojentas Summulae Logicales. Ou já tirei minha soneca?
— Não, ainda não tirou — disse Archimedes. — A soneca ainda está no futuro, Mestre.
— Esplêndido, esplêndido. E por favor, Wart, não esqueça de levar Kay com você para que eu
possa tirar minha soneca.
— O que nós vamos ver?

— Ah, não me esquente a cabeça com um pormenor desses. Agora vá logo, seja um bom menino, e
atenção para não se esquecer de levar Kay. Por que você nunca falou sobre isso antes? Não se
esqueça de seguir em frente depois da leira de cevada. Bem, bem, bem! Este é o primeiro meio-
feriado que tenho desde que comecei essas malditas aulas. Primeiro, acho que vou tirar uma
pequena soneca antes do lanche, e depois acho que tirarei uma pequena soneca antes do chá.
Depois, terei que pensar em algo para fazer antes do jantar. O que vou fazer antes do jantar,
Archimedes?
— Tirar uma pequena soneca, suponho — disse a coruja com frieza, virando as costas para o
mestre porque ela, assim como Wart, gostava de ver a vida acontecer.

X


Wart sabia que se contasse ao menino mais velho sobre sua conversa com Merlin, Kay recusaria a
condescendência e não iria. Então, não disse nada. Era estranho, mas a batalha tornara-os amigos
novamente e um podia olhar nos olhos do outro com uma espécie de afeição confusa. Seguiram
juntos sem vacilar, ainda que com timidez e sem explicações, e se viram parados, depois da missa,
no final da leira de cevada de Hob. Wart não precisou usar subterfúgios. Quando chegaram lá foi
fácil.

— Venha — ele disse. — Merlin disse-me que lhe contasse que, daqui para a frente, haveria algo
especial para você.
— Que tipo de coisa? — perguntou Kay.
— Uma aventura.
— Como chegamos lá? — perguntou Kay.
— Temos que seguir a linha a partir desta leira, e suponho que isso nos levará até a floresta.
Devemos manter o sol à nossa esquerda, mas levando em conta seu movimento.
— Está bem — disse Kay. — Que aventura é essa?
— Não sei.
Os dois caminharam pelo campo, seguindo sua borda imaginária para além do parque e da coutada,
mantendo os olhos bem abertos para algum acontecimento miraculoso. Perguntaram-se se a meia
dúzia de faisões que espantaram tinha algo de extraordinário e Kay estava prestes a jurar que um
deles era branco. Se fosse branco, e se uma águia negra subitamente mergulhasse dos céus sobre
ele, saberiam muito bem que maravilhas os aguardavam à frente, e só teriam que seguir o faisão —
ou a águia — até encontrar a donzela no castelo encantado. No entanto, o faisão não era branco.

Na borda da floresta Kay disse:

— Suponho que tenhamos que entrar aí?
— Merlin disse para seguir a linha.
— Bem — disse Kay —, eu não tenho medo. Se a aventura for para mim, com certeza será das
boas.
Então entraram, e ficaram surpresos ao perceber que a caminhada não era difícil. Era quase o


mesmo como se fosse um grande bosque de hoje, enquanto a floresta normal daquela época era
como se fosse a selva amazônica. Não havia, naqueles tempos, proprietários atirando em faisões e
providenciando para que a vegetação rasteira fosse retirada, e nem uma milésima parte dos atuais
mercadores de madeira que desbastam cuidadosamente as poucas florestas que restaram. A maior
parte da Floresta Sauvage era quase impenetrável, uma barreira enorme de árvores eternas, as
mortas caídas por cima das vivas e presas entre si por heras, as vivas lutando em competição umas
com as outras na direção do sol que lhes dava a vida, o solo encharcado por falta de drenagem, ou
cheio de gravetos e galhos velhos nos quais de repente se podia tropeçar e cair num formigueiro, ou
se emaranhar em sarças, lianas, madressilvas, espinheiros e cardos e essa coisa que as pessoas do
campo chamam de namorados, até ser feito em pedaços em poucos metros.


A maior parte da Floresta Sauvage era quase impenetrável, uma barreira enorme de árvores
eternas, as mortas caídas por cima das vivas e presas entre si por heras, as vivas lutando em
competição umas com as outras na direção do sol que lhes dava a vida, o solo encharcado por
falta de drenagem, ou cheio de gravetos e galhos velhos nos quais de repente se podia tropeçar e
cair num formigueiro, ou se emaranhar em sarças, lianas, madressilvas, espinheiros e cardos e
essa coisa que as pessoas do campo chamam de namorados, até ser feito em pedaços em poucos
metros.


Essa parte era boa. A linha de Hob apontara para o que parecia ser uma sucessão de clareiras,
lugares sombreados e rumorejantes nas quais o tomilho selvagem zumbia com as abelhas. O auge
da estação dos insetos já passara, pois era realmente a época das vespas e frutas; mais ainda havia
muitas fritilárias, com borboletas de asas castanho-alaranjada e de cores brilhantes pairando no
hortelã florido. Wart arrancou uma folha dessas e a mastigou como chiclete enquanto caminhava.

— É esquisito — disse —, mas já passaram pessoas por aqui. Olhe, ali está a marca de uma pata
de cavalo, e estava ferrada.
— Você está enxergando pouco — disse Kay —, pois ali adiante está um homem.
Sem equívocos, havia um homem no fim da clareira seguinte, sentado perto de um machado, ao lado
de uma árvore que abatera. Era um homenzinho pequeno e estranho, com uma corcunda e um rosto
cor de mogno, vestido com várias peças de couro velho que prendera nas pernas e braços
musculosos com pedaços de corda. Estava comendo um pedaço de pão e queijo de cordeiro com
uma faca que anos de afiação reduziram a um filete, as costas apoiadas numa das árvores mais altas
que eles jamais tinham visto. Cavacos brancos da madeira se espalhavam ao seu redor. O tronco da
árvore abatida parecia ter sido trabalhado há pouco. Os olhos dele brilhavam como os de uma
raposa.

— Espero que ele seja a aventura — sussurrou Wart.
— Ora — disse Kay —, em uma aventura você tem cavaleiros com armaduras, ou dragões ou
coisas parecidas, e não velhos sujos cortando madeira.
— Bem, de qualquer forma vou perguntar a ele o que acontece por aqui.
Aproximaram-se do pequeno lenhador que mastigava e parecia não tê-los visto, e perguntaram
aonde as trilhas levavam. Perguntaram duas ou três vezes antes de perceber que o pobre sujeito era
surdo ou louco, ou ambos. Nem respondia nem se mexia.

— Ora, vamos — disse Kay. — E provável que seja um tantã como Wat e não sabe nem onde está.
Vamos embora e deixemos esse velho maluco aí.
Avançaram quase um quilômetro e o caminho continuava bom. Não existiam propriamente trilhas e
as clareiras não eram contínuas. Qualquer um que chegasse ali por acaso pensaria que só existia a
clareira onde estava, com uns duzentos metros de comprimento, a menos que fosse até o final e
descobrisse outra, oculta por algumas árvores. Aqui e ali descobriam um cepo com as marcas de
um machado, mas a maior parte desses fora coberta com sarças ou arrancadas. Wart supôs que as
clareiras tinham sido feitas de propósito.

Kay agarrou Wart pelo braço, na borda de uma clareira, e apontou em silêncio para a outra ponta.
Ali havia um pequeno monte relvado, ascendendo com suavidade até um sicômoro gigantesco, com
mais de vinte e cinco metros de altura, plantado bem no topo. No monte estava um homem
igualmente gigantesco deitado à vontade, com um cão a seu lado. O homem era tão impressionante
quanto o sicômoro, pois media ou se estendia por uns dois metros e dez centímetros sem os sapatos,
e não vestia nada mais que um saiote escocês de um tecido verde comum. Tinha uma braçadeira de
couro no antebraço esquerdo. A cabeça do cachorro — que levantara as orelhas e observava os


meninos, mas sem fazer nenhum outro movimento — apoiava-se sobre o enorme peito bronzeado,
cujos músculos moviam-se suavemente, subindo e descendo. O homem parecia estar dormindo. A
seu lado, havia um arco de dois metros, com flechas de mais de setenta centímetros de
comprimento. Ele, tal como o lenhador, tinha a cor do mogno, e os cabelos encaracolados do peito
formavam um halo dourado onde o sol batia.

— Aí está — sussurrou Kay, excitado.
Aproximaram-se cautelosamente do homem, com medo do cachorro. Mas este apenas os seguiu
com os olhos, mantendo o queixo firmemente apoiado em seu amado mestre, e dando conhecimento
deles apenas com um ínfimo abanar do rabo. Mexia o rabo, sem levantá-lo, cinco centímetros de
lado, na grama. O homem abriu os olhos — obviamente não estava dormindo coisa nenhuma —,
sorriu para os meninos, e sacudiu o dedo numa direção que apontava mais adiante na clareira.
Depois, parou de sorrir e fechou os olhos.

— Desculpe-me — disse Kay —, o que está acontecendo lá? O homem não respondeu e manteve os
olhos fechados, mas levantou novamente a mão e apontou com o dedão para a frente.
— Ele quer que prossigamos — disse Kay.
— Isso com certeza é uma aventura — disse Wart. — Fico pensando se aquele lenhador mudo não
subiu naquela árvore grande onde estava se apoiando e mandou uma mensagem para essa árvore
avisando que estávamos chegando? Ele com certeza parecia estar nos esperando.
Com isso, o gigante desnudo abriu um olho e olhou para Wart com certa surpresa. Então abriu os
dois olhos e, piscando, caiu na risada, sentou, acariciou o cachorro, pegou seu arco e levantou-se.

— Mui que bem, jovens senhoritos — disse, ainda rindo. — A gente há de ir junto, então. Cabeças
novatas são as mais espertas, é o que dizem.
Kay olhou para ele completamente surpreso.

— Quem é você? — perguntou.
— Naylor — disse o gigante. — Era John Naylor nesse mundão grande aí de fora, até a gente virar
homem da floresta. Depois, foi John Little por uns tempos, como se diz na floresta, mas a maioria
do povo agora diz ao contrário e chama a gente de Little John.
— Oh! — exclamou Wart, deliciado. — Já ouvi falar de você muitas vezes, quando contam as
histórias dos saxões à noite, de você e de Robin Hood.
— Hood, não, senhorito — disse Little John, em tom reprovação — Não é jeito de chamar
ninguém, não na floresta.
— Mas nas histórias é Robin Hood — disse Kay.
— Ah, esse povo sabichão que fica sabendo das coisas pelos livros. Não sabem de tudo. Mas
vamos indo, já é tempo de a gente ir andando.
Os dois se colocaram um de cada lado do homem enorme, e tinham que correr um passo em cada
três para ficar emparelhado com ele, pois, apesar de falar bem devagar, caminhava muito rápido


descalço. O cachorro trotava nos seus calcanhares.

— Por favor — perguntou Wart —, aonde é que está nos levando?
— Ora, para Robin 'ood, pois não é? Vocês não têm esperteza o bastante para adivinhar isso
também, mestre Wart?
O gigante deu uma olhadela maliciosa com uma piscadela, pois sabia que colocara ao mesmo
tempo dois problemas para os meninos — primeiro, qual era o verdadeiro nome de Robin, e
segundo, como Little John sabia o nome de Wart?

Wart se fixou primeiro na segunda questão.

— Como é que sabe meu nome?
— Ah — disse Little John. — A gente sabe.
— E esse Robin 'ood sabe que estamos indo?
— Não, meu patinho, um senhorito instruído devia saber falar um nome instruidamente.
— Bem, qual é o nome dele? — gritou o menino, entre a exasperação e a falta de ar por ter que
correr para acompanhar o gigante. — Você disse 'ood.
— Então é 'ood, meu patinho. Robin 'ood, como a floresta que a gente está atravessando. Um grande
e belo nome é o que é.
— Robin Wood{2}!
— Sim, Robin Wood. O que mais poderia ser, já que é ele quem reina aqui. Florestas são lugares
livres, e ótimos lugares são. Deixam que você durma nelas, no inverno como no verão, e deixam
caçar nas suas áreas, senão você morre de fome; e cheirar o cheiro que aparece nas folhas novas e
brilhantes, conforme o tempo, ou quando elas caem segundo o mesmo tempo ao contrário; deixam
que a gente fique nelas sem ser visto, e se mova por dentro delas sem que ninguém escute, e
aquecem quando a gente cai adormecido — ah, são mesmo bons lugares, as florestas, para um
homem de coração e mãos livres. Kay disse:
— Mas eu pensava que todos os homens de Robin Wood usavam jaquetas e calças de lã verde.
— Isso a gente faz no inverno, quando a gente precisa disso, ou as calças de couro; mas agora pelo
verão, estar assim é mais agradável para quem fica de vigia, quando não se faz nada mais que
olhar.
— Então você estava lá de sentinela?
— Sim, e também o velho Munch, aquele com quem vocês falaram na árvore derrubada.
— E eu acho — exclamou, triunfante, Kay — que essa árvore enorme aonde estamos chegando é a
fortaleza de Robin Wood!
Estavam chegando à majestade da floresta.

Era uma tília tão grande quanto as que costumavam crescer no Moor Park, em Hertfordshire, com
não menos de trinta metros de altura e cinco de circunferência, a um metro do chão. O tronco,


parecido com o da faia, estava adornado com uma barba de pequenos galhos embaixo e, onde cada
grande galho brotara do tronco, a casca tinha se partido e estava agora descolorida pela água da
chuva ou pela seiva. As abelhas zuniam entre suas folhas brilhantes e pegajosas, cada vez mais
para o alto, na direção dos céus, e uma escada de corda desaparecia entre a folhagem. Ninguém
poderia subir sem a escada, nem mesmo com cravelhos.

— Pensou direito, mestre Kay — disse Little John. — E lá está Mestre Robin, entre suas raízes.
Os meninos, que estavam até então mais interessados no vigia encarapitado no alto daquele
dominador e sussurrante orgulho da terra, baixaram imediatamente o olhar e o cravaram no grande
fora-da-lei.

Não era o que esperavam, uma figura romântica — pelo menos no começo —, apesar de ser quase
tão alto quanto Little John. Os dois, é claro, eram as duas únicas pessoas no mundo que haviam
disparado uma flecha à distância de um quilômetro e meio, com o grande arco inglês. Era um
sujeito vigoroso, cujo corpo não tinha gordura alguma. Não estava semidespido, como John, mas
vestido discretamente com uma roupa verde desbotada, com um trompete prateado a tiracolo.
Estava barbeado, queimado de sol, vigoroso, nodoso como as raízes das árvores; mas nodoso e
maduro pela intempérie e pela poesia, não pela idade, pois mal tinha trinta anos. (Chegaria a viver
até os oitenta e sete anos, e atribuiu sua longa vida ao cheiro de terebentina dos pinheiros.) Naquele
momento estava deitado de costas e olhava para cima, mas não para os céus.

Robin Wood estava deitado feliz, com a cabeça apoiada no colo de Marian. Ela sentava-se entre as
raízes da tília, vestida com uma veste de lã verde cingida por uma aljava de flechas, e seus braços
e pés estavam nus. Soltara sua cascata de cabelos castanhos e brilhantes, que geralmente estavam
presos em um rabo-de-cavalo para melhor conveniência na caça e na cozinha, e suas madeixas
pendentes emolduravam a cabeça dele. Eles cantavam um dueto, baixinho, e ela roçava seus
cabelos macios na ponta do nariz de Robin.

A donzela Marian cantava:

Sob a árvore no bosque frondoso,
Quem comigo se deita amoroso,
Afina seu alegre trino,
Com o que canta o doce amigo.


-Venha para cá, venha para cá, venha para cá — murmurou Robin.

Aqui ele não verá
Nenhum inimigo,
Salvo o inverno e o tempo ruim.



Os dois riram de felicidade e começaram de novo, cantando os versos alternadamente:

Quem da ambição esquece,
E ama ficar deitado ao sol,
Buscando o que comer
E feliz com o que consegue,


Então, ambos juntos:

Venha para cá, venha para cá, venha para cá:
Aqui ele não verá
Nenhum inimigo,
Salvo o inverno e o tempo ruim.


A canção terminou numa risada. Robin, que estava enredando seus dedos bronzeados nos fios
sedosos que caíam sobre seu rosto, deu neles um puxão final e se pôs de pé.

— Olá, John — disse ao vê-los.
— Olá, Mestre — disse Little John.
— Então você trouxe os jovens escudeiros?
— Eles me trouxeram.
— Bem-vindos de qualquer forma — disse Robin. — Jamais ouvi falar mal de Sir Ector, e não
tenho nenhuma razão para perseguir seus escutadores. Como estão vocês, Kay e Wart, e quem
meteu vocês na floresta e nas minhas clareiras, hoje, entre todos os dias?
— Robin — interrompeu Marian —, você não pode aceitá-los!
— E por que não, coração?
— São crianças.
— Exatamente o que queremos.
— É desumano — disse ela aborrecida, e começou a pentear os cabelos.
O fora-da-lei evidentemente achou mais seguro não discutir. Virou-se para os meninos e fez-lhes
uma pergunta.

— Vocês sabem flechar?
— Pode acreditar — disse Wart.
— Posso tentar — disse Kay, mais reservado, ao ver que os outros riam da segurança de Wart.

— Vamos, Marian, empreste a eles um de seus arcos.
Ela entregou-lhe um arco e uma dúzia de flechas com setenta centímetros de comprimento.
— Atire no alvo — disse Robin, entregando-os a Wart.
Este olhou e viu um alvo a cem metros de distância. Percebeu que tinha sido um idiota e disse
alegremente:

— Sinto muito, Robin Wood, mas receio que esteja longe demais para mim.
— Não importa — disse o fora-da-lei. — Atire nele. Posso avaliar pela maneira como você
dispara.
Wart ajustou a flecha da forma mais rápida e precisa que foi capaz, abriu os pés alinhados na
direção que queria que a flecha fosse, ajustou os ombros, puxou a corda até o queixo, fez pontaria,
levantou a ponta em um ângulo de cerca de vinte graus, apontou uns dois metros à direita porque
sempre puxava para a esquerda quando soltava a corda, e mandou a flecha. Errou, mas não tão mal.

— Agora você, Kay — disse Robin.
Kay fez os mesmos movimentos e fez um bom disparo. Os dois seguraram o arco para cima da
forma certa, encontraram rapidamente e colocaram em posição a pena traseira, seguraram a corda
para esticar o arco — a maioria dos jovens não treinados inclinam-se para agarrar a ranhura da
flecha, quando esticam a corda, entre o indicador e o polegar, mas o verdadeiro arqueiro puxa a
corda com seus primeiros dois ou três dedos e deixa a flecha segui-la — e nenhum deles deixara a
ponta desviar para a esquerda enquanto armavam, nem deixaram a corda bater nos antebraços, dois
erros comuns em pessoas que não conhecem o assunto — e ambos dispararam a corda de uma vez,
sem sacudi-la.

— Bom — disse o fora-da-lei. — Não temos tocadores de alaúde por aqui.
— Robin — disse Marian, abruptamente —, você não pode pôr essas crianças em perigo. Mande-
as de volta ao pai.
— Isso eu não farei — disse —, a menos que eles queiram ir. A disputa é tanto deles quanto minha.
— Qual é a disputa?— perguntou Kay.
— É a Fada Morgana — disse. — É difícil explicá-la.
— Eu não tentaria.
Robin voltou-se zangado para sua amada.
— Marian — disse. — Ou temos a ajuda deles ou deixamos os outros três sem ajuda. Não quero
pedir aos meninos para irem até lá, mas é isso ou deixar Tuck com ela.
Wart achou que era o momento de fazer uma pergunta delicada, assim que deu uma tossida discreta
e disse:

— Por favor, quem é a Fada Morgana?
Os três responderam ao mesmo tempo.

— É uma malvada — disse Little John.
— É uma fada — disse Robin.
— Não é não — disse Marian. — É uma feiticeira.
— A questão é que ninguém sabe exatamente o que ela é. Na minha opinião, é uma fada — disse
Robin. — E essa opinião — acrescentou, olhando para a mulher — eu mantenho.
Kay perguntou:

— Quer dizer que ela é uma dessas pessoas que usa jacintos como chapéus e passam o tempo todo
sentadas em cogumelos venenosos?
A risada irrompeu.

— Certamente que não. Essas criaturas não existem. A Rainha é de verdade, e uma das piores.
— Se os meninos têm que se meter nisso — disse Marian —, é melhor que você explique desde o
começo.
O fora-da-lei soltou um profundo suspiro, descruzou as pernas, e o olhar enigmático voltou ao seu
rosto.

— Bem — disse —, suponha que Morgana é a rainha das fadas, ou de alguma maneira tem a ver
com elas, e que as fadas não são o tipo de criaturas que sua ama lhes contou. Algumas pessoas
dizem que elas são As Mais Velhas de Todos, que viviam na Inglaterra antes da chegada dos
romanos — antes de nós, saxões, antes dos próprios Antigos — e que foram empurradas para os
subterrâneos. Alguns dizem que parecem humanas, como anões, e outros dizem que parecem
pessoas comuns, e outros dizem que não se parecem com nada, mas assumem várias formas
conforme lhes convém. Seja o que for que pareçam, possuem a sabedoria dos antigos celtas. Lá
dentro de suas tocas, sabem de coisas que a raça humana já esqueceu, e boa parte delas não são
boas de ouvir.
— Fale baixo — disse a senhora dourada, com um estranho olhar, e os jovens notaram que o
pequeno círculo se estreitou.
— Bem, agora — disse Robin, abaixando a voz — a questão sobre essas criaturas das quais estou
falando, e vocês me desculpem, mas não voltarei a mencioná-las, é que não têm coração. Não é
tanto que queiram fazer o mal, mas que se você agarrar uma e abrir seu peito, não vai achar nenhum
coração lá dentro. Têm o sangue frio como os peixes.
— Estão por toda a parte, mesmo quando as pessoas estão falando.
Os meninos olharam ao redor.
— Fiquem quietos — disse Robin. — Não preciso lhes dizer mais nada. Dá má sorte falar delas. A
questão é que acredito que essa Morgana é a rainha dos... bem... das Boas Gentes, e sei que às
vezes ela vive em um castelo ao norte da nossa floresta, chamado Castelo Chariot. Marian acha que
a rainha não é exatamente uma fada, mas uma necromante amiga delas. Outras pessoas dizem que
ela é filha do Conde da Cornualha. Não se preocupem com isso. O que importa é que nesta manhã,

com seus encantamentos, o Povo Mais Velho de Todos levou como prisioneiro um dos meus servos
e um dos seus.

— Não o Tuck? — gritou Little John, que não sabia dos acontecimentos recentes porque tinha
ficado de sentinela.
Robin assentiu com a cabeça.

— A notícia chegou das árvores do norte, antes que chegasse sua mensagem sobre os jovens.
— Ai de mim, pobre Frei!
— Conte como aconteceu — disse Marian. — Mas talvez seja melhor você explicar os nomes.
— Uma das poucas coisas que sabemos — disse Robin — sobre as Abençoadas é que atendem por
nomes de animais. Por exemplo, podem ser chamadas de Vaca, ou Bode, ou Porco, e assim por
diante. Então, se você estiver chamando uma de suas próprias vacas, deve sempre apontar para ela
quando chamar. De outra forma, pode estar invocando uma fada — uma Pessoinha, eu deveria ter
dito — que atende pelo mesmo nome, e, uma vez que a invoque, ela vem e pode levá-lo.
— O que aparentemente aconteceu — disse Marian, continuando a história — é que o seu Menino-
Cão lá do castelo levou seus cães de caça para a borda da floresta, onde iriam defecar, e por acaso
viu o Frei Tuck conversando com um velho chamado Wat, que vive por ali...
— Desculpem — gritaram os dois meninos —, será o velho que vivia em nossa aldeia antes de
perder o juízo? Ele arrancou o nariz do Menino-Cão com uma mordida, na verdade, e agora vive na
floresta, uma espécie de ogro.
— É a mesma pessoa — respondeu Robin —, mas coitado... Não é bem um ogro. Vive de ervas e
raízes e bolotas, e não machucaria uma mosca. Acho que contaram uma história errada para vocês.
— Imagine Wat vivendo de bolotas!
— O que aconteceu — disse Marian, com paciência — foi isto: os três se juntaram para passar o
tempo, e um dos cães de caça (acho que era o que chamam de Cavall), começou a pular em cima do
pobre Wat, para lamber seu rosto. Isso assustou o velhote, e o seu Menino-Cão gritou, "Venha cá,
Cachorro!" para fazer com que parasse. E não apontou com o dedo. Ele devia ter apontado,
entende.
— E o que aconteceu?
— Bem, meu homem Scathelocke, ou Scarlett, como o chamam nas baladas, estava cortando
madeira ali por perto, e diz que eles desapareceram, simplesmente desapareceram, incluindo o
cachorro.
— Meu pobre Cavall!
— Então as fadas os aprisionaram.
— Você quer dizer o Povo da Paz.
— Desculpe.

— Mas a questão é que se Morgana é realmente a rainha dessas criaturas, e se queremos trazê-los
de volta antes que sejam encantados — uma de suas antigas rainhas chamada Circe costumava
transformar seus cativos em porcos —, temos que procurá-los no castelo dela.
— Então, temos que ir até lá.

XI


Robin sorriu para o menino mais velho e deu-lhe uma palmada nas costas, enquanto Wart pensava
desesperançado em seu cachorro. O fora-da-lei pigarreou e começou a falar outra vez.

— Você está certo quanto a ir até lá — disse —, mas tenho que lhes contar a parte desagradável.
Ninguém pode entrar no Castelo Chariot, exceto um garoto ou uma garota.
— Quer dizer que você não pode entrar lá?
— Vocês podem.
— Suponho — explicou Wart quando pensou sobre o assunto — que seja como essa coisa dos
unicórnios.
— Certo. O unicórnio é um animal mágico, e somente uma donzela pode capturá-lo. As fadastambém são mágicas e só pessoas inocentes podem entrar em seus castelos. É por isso que levam as
crianças de berço.
Kay e Wart sentaram-se em silêncio por algum tempo. Depois Kay disse:

— Bem, estou dentro. Afinal, é minha aventura.
Wart disse:
— Também quero ir. Gosto muito do Cavall. Robin olhou para Marian.
— Muito bem — disse. — Não vamos fazer muito alarde sobre isso, mas temos que conversar
sobre planos. Acho que é bom para vocês irem realmente sem saber no que estão se metendo, mas
não vai ser tão ruim quanto imaginam.
— Iremos com vocês — disse Marian. — Nosso bando vai acompanhá-los até o castelo. Vocês só
vão ter que fazer a parte final da entrada.
— Sim, e o bando provavelmente vai ser atacado depois pelo grifo dela.
— Ela tem um grifo?
— Realmente, lá tem um. O Castelo Chariot é guardado por um bem feroz, como um cão de guarda.
Temos que passar sem que ele nos veja no caminho de ida, senão ele dará o alarme e vocês não
conseguirão entrar. Vai ser uma tremenda entrada furtiva.
— Teremos que esperar anoitecer.

Os jovens passaram uma manhã agradável, acostumando-se com dois dos arcos de Marian. Robin
insistiu nisso. Disse que nenhum homem podia disparar com o arco do outro assim como não
conseguia ceifar com a foice do outro. Na refeição do meio-dia comeram carne de caça fria com
hidromel, como todo mundo. Os fora-da-lei foram aparecendo para a refeição como se
obedecessem a um truque de mágica. Em um momento não havia ninguém na borda da clareira e, no
seguinte, meia dúzia estava lá — homens queimados de sol e vestidos de verde que apareciam
silenciosamente de dentro de uma moita ou desciam das árvores. No final havia quase cem deles,
comendo alegremente e rindo. Eram fora-da-lei hão porque fossem assassinos, ou por alguma razão
parecida. Eram saxões que se revoltaram contra a conquista de Uther Pendragon e se recusavam a
aceitar um rei estrangeiro. Os pântanos e as florestas selvagens da Inglaterra estavam cheios deles.
Eram como os soldados da resistência em outras ocupações. A comida era servida em um
caramanchão, onde Marian e seus ajudantes cozinhavam.

Os guerrilheiros, em geral, colocavam uma sentinela para receber as mensagens nas árvores e
dormiam durante a tarde, em parte porque muito da sua caçada tinha que ser feita em horas nas
quais a maioria dos trabalhadores dormia, e em parte porque os animais selvagens tiram uma
soneca à tarde, e assim devem fazer seus caçadores. Nessa tarde, entretanto, Robin chamou os
meninos para uma conversa.

— Olhem — disse —, é bom que saibam como vamos fazer. Meu bando de cem vai marchar com
vocês até o castelo da Rainha Morgana, em quatro grupos. Vocês dois estarão no grupo de Marian.
Quando chegarmos a um carvalho que foi atingido por um raio no ano da grande tempestade,
estaremos a um quilômetro e meio do lugar onde o grifo fica de guarda. Vamos nos encontrar lá, e
depois teremos que nos movimentar como sombras. Teremos que passar pelo grifo sem dar alarme.
Se conseguirmos isso e tudo for bem, vamos parar a cerca de uns quatrocentos metros do castelo.
Não podemos nos aproximar mais, por causa do ferro na ponta de nossas flechas, e a partir daí
vocês terão que ir sozinhos.
— Agora, Kay e Wart, devo explicar a vocês sobre o ferro. Se nossos amigos foram realmente
capturados por... pelas Boas Pessoas... e se a Rainha Fada Morgana for realmente sua rainha, temos
uma vantagem do nosso lado. Nenhuma das Boas Pessoas suporta a proximidade do ferro. A razão
disso é que os Mais Velhos de Todos começaram nos dias da pedra, antes que o ferro fosse
inventado, e todos os seus problemas vieram com o novo metal. Os povos que os venceram tinham
espadas de aço (que é ainda melhor que o ferro), e foi assim que conseguiram expulsar os Velhos
para os subterrâneos.
— Essa é a razão pela qual temos que ficar distantes esta noite, para não provocarmos neles
nenhuma sensação desconfortável.
Mas vocês dois, com uma faca escondida à mão, estarão a salvo da Rainha, desde que não a
deixem cair. Um par de pequenas facas não vai provocar alarme, a menos que sejam mostradas.
Tudo o que terão que fazer é caminhar o último trecho segurando bem seu ferro; entrar no castelo
com segurança; achar o caminho até a cela onde os prisioneiros estão. Logo que os prisioneiros
estiverem protegidos por seu metal, poderão caminhar com vocês. Estão compreendendo, Kay e
Wart?


— Sim, sim — disseram os dois. — Compreendemos tudo perfeitamente.
— Há mais uma coisa. O mais importante é segurar seu ferro, mas a coisa mais importante depois
disso é não comer. Quem come qualquer coisa na fortaleza de vocês sabem quem tem que ficar lá
para sempre, então, para o bem de todos, não comam nada que esteja dentro do castelo, mesmo que
pareça muito apetitoso. Vão se lembrar disso?
— Vamos sim.
Depois desse esclarecimento, Robin saiu para dar ordens a seus homens. Fez um longo discurso
para eles, explicando sobre o grifo e a caminhada furtiva e sobre o que os meninos fariam.

Quando terminou seu discurso, que foi ouvido em perfeito silêncio, uma coisa estranha aconteceu.
Ele começou novamente do começo e falou do começo ao fim com as mesmas palavras. Quando
terminou a segunda vez, disse:

— Agora, capitães.
Os cem homens se dividiram em grupos de vinte que se dirigiram a diferentes partes da clareira e
rodearam Marian, Little John, Much, Scarlett e Robin. De cada grupo elevou-se um rumor forte.

— Que será que estão fazendo?
— Escuta — disse Wart.
Estavam repetindo o discurso, palavra por palavra. Provavelmente nenhum deles podia ler ou
escrever, mas haviam aprendido a escutar e a lembrar. Era dessa maneira que Robin mantinha
contato com seus combatentes noturnos, sabendo que cada homem sabia de cor tudo o que o próprio
líder sabia, e assim podia confiar que, se necessário, cada homem poderia agir sozinho.

Quando os homens repetiram suas instruções, e todos sabiam todas as palavras do discurso, houve
uma distribuição de flechas de guerra, uma dúzia para cada um. Essas flechas tinham cabeças
maiores, afiadas como navalhas, e estavam aparelhadas com penas em uma ranhura quadrada.
Houve uma inspeção dos arcos, e dois ou três homens receberam cordas novas. Depois tudo ficou
em silêncio.

— Agora vamos — gritou Robin alegremente.
Acenou com o braço e os homens, sorrindo, levantaram os arcos em saudação. Depois houve um
suspiro, um farfalhar, um galho extraviado que quebrou, e a clareira da tília gigante ficou tão vazia
quanto tinha estado antes da chegada do Homem.

— Venham comigo — disse Marian, tocando os meninos no ombro. Atrás deles as abelhas
zumbiam nas folhas.
Foi uma marcha longa. As clareiras artificiais que levaram à tília na forma de uma cruz já não eram
mais úteis depois da primeira meia hora. Depois disso, tinham que abrir caminho pela floresta
virgem da melhor maneira que podiam. Não seria tão ruim se pudessem empurrar e cortar os galhos
para abrir caminho, mas deviam caminhar em silêncio. Marian mostrou como eles podiam ir de
lado, um lado depois do outro; como parar de imediato quando uma sarça os agarrava, e como
soltá-la com paciência; como pisar cuidadosamente e apoiar o peso naquela perna quando tivessem


certeza de que não havia um graveto embaixo daquele pé; como distinguir de relance os lugares que
pareciam dar passagem mais fácil; e como uma espécie de ritmo no movimento os ajudaria, apesar
dos obstáculos. Apesar de haver uma centena de homens invisíveis ao seu redor, movendo-se na
direção do mesmo objetivo, não escutavam outro som além do que faziam.

Os meninos tinham ficado aborrecidos no começo, ao serem incluídos no grupo de uma mulher.
Preferiam ter ido com Robin, e achavam que ser colocados sob o comando de Marian era como
serem cuidados por uma ama. Mas logo descobriram seu erro. Ela fizera objeções à ida dos dois,
mas agora que a presença deles lhe fora ordenada, aceitou-os como companheiros. Em primeiro
lugar, era impossível acompanhar seu ritmo, a menos que ela os esperasse — pois Marian podia se
mover de quatro ou até mesmo se contorcer como uma cobra tão rapidamente quanto eles podiam
caminhar —, e em segundo lugar, era um soldado completo, o que eles não eram. Era uma
verdadeira Weyve
— uma mulher fora-da-lei —, exceto pelos cabelos longos, que a maioria delas
costumava cortar. Um dos conselhos que ela lhes deu antes que a conversa tivesse que parar foi
este: mirem para o alto quando dispararem em uma batalha, e não para baixo. Uma flecha baixa
bate no chão, uma alta pode matar na segunda fila.

"Se um dia eu tiver que casar" — pensou Wart, que tinha dúvidas sobre o assunto — "hei de me
casar com uma garota como essa: um tipo de raposa dourada".

Na verdade, embora os meninos não soubessem disso, Marian podia piar como uma coruja,
soprando na mão fechada, ou dar um assovio agudo entre a língua e os dentes com os dedos no
canto da boca; podia chamar todos os pássaros imitando o pio deles, e compreender muito do seu
linguajar— como quando os chapins avisam que uma águia está chegando; e podia dar cambalhotas.
Mas nenhuma dessas façanhas era necessária naquele momento.

O lusco-fusco chegou com uma garoa — era a primeira garoa do outono —, e na escuridão as
famílias dispersas da coruja marrom chamavam uns aos outros, os pequenos com guinchos e os
mais velhos com o adequado hoooorooo, hooooroooo. O ruído de tuuu-wiii, tuuu-wooo, que os
poetas atribuem à coruja, na verdade é um som de família, feito por vários pássaros.
Proporcionalmente, à medida que sarças e obstáculos ficavam mais difíceis de ver, passavam a ser
mais fáceis de sentir. Era estranho, mas no silêncio cada vez mais profundo, Wart descobriu que
era mais capaz de se movimentar silenciosamente, em vez de menos. Ao ficar reduzido ao toque e
ao ruído, viu que era mais sensível a estes, e que podia ir mais silenciosa e rapidamente.

Era por volta das completas ou, como a chamaríamos, umas nove horas da noite — e haviam
percorrido pelo menos onze quilômetros na fatigante floresta —, quando Marian tocou Kay no
ombro e apontou na escuridão azulada. A essa altura, eles conseguiam ver no escuro tão bem
quanto seres humanos podem, e muito melhor do que os citadinos jamais conseguirão, e lá estava
diante deles, alcançado depois de onze quilômetros na floresta sem trilhas pelas habilidades de
Marian, o carvalho atingido. Decidiram, sem nem um murmúrio, alcançá-lo tão silenciosamente que
nem mesmo os membros de seu próprio exército, que talvez já estivessem lá esperando, ouviriam
sua chegada.

Mas o homem imóvel tem vantagem sobre o homem em movimento, e mal tinham chegado às pontas
das raízes quando mãos amigas os receberam, bateram em suas costas tão levemente como uma


penugem, e os guiaram para se sentarem. As raízes estavam cheias de gente. Era como ser membro
de um bando de estorninhos, ou de gralhas empoleiradas. No mistério da noite, uma centena de
homens respirava ao redor de Wart, como o pulsar do próprio sangue que podemos escutar quando
lemos ou escrevemos a altas horas. Estavam no útero escuro e silencioso da noite.

Naquele instante, Wart notou que os gafanhotos chirriavam sua nota aguda, tão baixo que era quase
inaudível, como o guincho do morcego. Chirriavam um depois do outro. Depois que Marian
chirriou três vezes por conta de Kay, Wart e dela mesma, chirriaram mais cem vezes. Todos os
fora-da-lei estavam presentes, e era o momento de avançar.

Ouviu-se um farfalhar, como se o vento tivesse movido as últimas folhas do carvalho de
novecentos anos. Em seguida, uma coruja piou baixinho, um rato-do-campo guinchou, um coelho
bateu os pés, uma raposa latiu sua tosse rouca como a de um leão, e um morcego guinchou acima de
suas cabeças. As folhas farfalharam de novo, pelo tempo necessário para se contar até cem, e então
Marian, que fizera o bater de pés do coelho, ficou rodeada por seu bando de mais de vinte. Wart
sentiu um homem, de cada lado seu, segurar suas mãos, enquanto permaneciam em círculo, e depois
notou que o chirriar dos gafanhotos recomeçara outra vez. O ruído ia em círculo, em sua direção e,
quando o último gafanhoto esfregou as patas no chirrio, o homem à sua direita apertou sua mão.
Wart chirriou. Imediatamente, o homem à sua esquerda fez o mesmo, e também apertou-lhe a mão.
Foram vinte e dois gafanhotos, antes que o bando da Donzela Marian estivesse pronto para partir
em sua última caminhada através do silêncio.

A última etapa da caminhada poderia ter sido um pesadelo, mas para Wart foi o paraíso. De
repente, viu-se na exaltação da noite, e sentia-se incorpóreo, silencioso, transportado. Sentia que
podia chegar até um coelho que se alimentava e agarrá-lo pelas orelhas, peludo e chutando, antes
que ele percebesse sua presença. Sentia que poderia correr entre as pernas dos homens a seus dois
lados, ou lhes tirar as brilhantes adagas das bainhas, enquanto eles se mexiam sem se dar conta
disso. A paixão do segredo noturno era um vinho em suas veias. Era realmente pequeno e jovem o
suficiente para se mover tão secretamente quanto os guerreiros. A idade e o peso deles os fazia
moverem-se lentamente, apesar de toda sua experiência de vida na floresta, e a juventude e leveza
de Wart o fazia mais móvel, apesar de sua falta de prática.

Era uma caminhada fácil, exceto pelo perigo. Os arbustos rareavam e as samambaias ruidosas
raramente cresciam na terra pantanosa, e assim podiam movimentar-se três vezes mais rápido.
Avançavam como em um sonho, sem ter por guia os pios das corujas ou

o guincho dos morcegos, mas mantidos juntos pelo ritmo obrigatório que a floresta adormecida lhes
impunha. Alguns deles estavam temerosos, outros vingativos por conta dos camaradas feitos
prisioneiros e alguns, na verdade, como se não tivessem corpos, no sonambulismo da ação furtiva.
Mal tinham se esgueirado uns vinte minutos quando Marian parou de avançar. Apontou para a
esquerda.

Nenhum dos meninos lera o livro de Sir John de Mandeville, portanto, não sabiam que um grifo era
oito vezes maior que um leão. Agora, olhando à esquerda na sombra silenciosa da noite, viram
recortado contra o céu e as estrelas algo que jamais teriam acreditado possível. Era um jovem grifo


em sua primeira plumagem.

A parte frontal, e dali até as patas dianteiras e o ombro, assemelhava-se a um enorme falcão. O
bico persa, as longas asas, das quais a primeira rêmige dianteira era a mais longa, e as poderosas
garras, tudo era igual ao falcão mas, como observou Mandeville, o todo tinha oito vezes o tamanho
de um leão. A partir dos ombros, acontecia uma mudança. Onde um falcão comum ou uma águia se
contentaria com as doze penas de sua cauda, esse falco leonis serpentis começava a apresentar ocorpo leonino e as patas traseiras da fera da África e, depois disso, uma cauda de serpente. Com
seus sete metros de altura sob o luar misterioso, a cabeça adormecida inclinada sobre o peito, de
forma que o bico perverso repousava sobre as penas do peito, os meninos viram um autêntico grifo
que valia muito mais a pena ver do que uma centena de condores. Os dois soltaram a respiração
entre os dentes e se apressaram, guardando nos recônditos da memória a visão majestosa de terror.

Finalmente, estavam perto do castelo, e chegou o momento em que os fora-da-lei tinham que se
deter. O capitão tocou silenciosamente as mãos de Kay e Wart, e os dois avançaram pela floresta
que ficara rarefeita, na direção de um brilho fraco que se via para além das árvores.

Encontraram-se em uma ampla clareira ou planície. Pararam de chofre, surpresos com o que viram.
Era um castelo inteiramente feito de comida, exceto que, na torre mais alta, estava pousado um
urubu, com uma flecha no bico.

Os Mais Velhos de Todos eram glutões. Provavelmente porque raramente tinham o suficiente para
comer. Pode-se ler até hoje um poema escrito por um deles, conhecido como a Visão de Mac
Conglinne. Nessa Visão há uma descrição do castelo feito com diferentes tipos de comida. A parte
inglesa do poema é assim:

Um lago de leite fresco contemplo
Nas brumas de urna planície macia
Vejo uma casa bem construída
Telhada com manteiga
Suas duas suaves portas de pudim de creme,
Seus batentes de coalhada e manteiga.
Camas de glorioso toucinho,
Muitos escudos defino queijo prensado.
Sob as amarras desses escudos
Estavam homens feitos de queijo fresco e doce,
Homens que não saberiam ferir um Celta,
Portando lanças de macia manteiga velha.
Um enorme caldeirão cheio de carne
(Pensei em me atracar com ele),
Coziafolhudas couves marrom-esbranquiçadas,
Um vaso cheio até a borda de leite.
Uma casa de bacon de quarenta costelas,
Um trançado de tripas — suporte de panelinhas —



Com todas as comidas agradáveis ao homem,
Me parecia que de tudo havia nela.
De lingüiças eram feitos
Seus belos caibros,
Esplêndidas as traves e os pilares
De deliciosa carne de porco.


Os meninos ficaram ali, maravilhados e nauseados, diante de tal fortaleza.

Levantava-se de um lago de leite, numa luz própria, fantasmagórica — um brilho gordurento e
amanteigado. Era esse aspecto fantástico do Castelo Chariot que os Mais Antigos — sentindo,
afinal, as facas escondidas — pensaram que seria tentador para as crianças. Era para tentá-las a
comer.

O lugar cheirava como se fosse ao mesmo tempo um armazém, um açougue, uma fábrica de
laticínios e uma peixaria. Era horrível para além da imaginação — doce, pegajoso e pungente —,
de forma que eles não sentiram o menor desejo de provar nem mesmo uma partícula daquilo. A
tentação verdadeira era fugir dali.

No entanto, havia prisioneiros a ser resgatados.

Passaram se atolando pela imunda ponte levadiça — de manteiga, e ainda com pêlos de vaca —
afundando até as canelas. Tremeram diante das tripas e dos miúdos. Apontaram as facas de ferro
para os soldados feitos de queijo macio e doce, e estes fugiram.

Finalmente chegaram na câmara interna, onde a própria Fada Morgana estava estendida em sua
gloriosa cama de toucinho.

Era uma mulher de meia-idade, gorda e desleixada, com cabelos negros e um leve bigode, mas era
feita de carne humana. Quando viu as facas, fechou os olhos bem fechados — como se estivesse em
transe. Talvez, quando estivesse fora desse castelo muito estranho, ou quando não estivesse fazendo
essa magia de tentar o apetite, ela fosse capaz de assumir formas mais bonitas.

Os prisioneiros estavam atados em incríveis pilares de carne de porco.

—Sinto muito se este ferro a está ferindo — disse Kay —, mas viemos resgatar nossos amigos.

A Rainha Morgan estremeceu.

— Diga a seus homens de queijo para desamarrá-los. Ela não iria fazer isso.
— É magia — disse Wart. — Você acha que devemos ir até lá e beijá-la ou fazer algo assim
horrível?
— Talvez se fôssemos até lá e a tocássemos com o ferro?
— Você faz isso.
— Eu não. Você.
— Vamos juntos.

Então eles se deram as mãos para se aproximar da Rainha. Ela começou a se contorcer como uma
lesma. Estava agoniada diante do metal.

Finalmente, e justamente quando a alcançavam, houve um ri-bombo ou murmúrio de água e lama —
e toda a aparência fantástica do Castelo Chariot se dissolveu e sumiu, deixando os cinco humanos e
um cachorro de pé, parados no meio da clareira da floresta, que ainda cheirava vagamente a leite
azedo.

— Deus do céu! — disse Frei Tuck. — Deus do céu e mais! Vou para o inferno se não acreditei
que estávamos liquidados!
— Mestre! — disse o Menino-Cão.
Cavall se contentou em latir selvagemente, mordendo-lhe os calcanhares, deitando de costas e
tentando balançar o rabo nessa posição, e se portando, no geral, como um idiota. O velho Wat
tocava sua juba.

— Então, foi isso — disse Kay —, essa foi minha aventura, e agora temos que voltar para casa
rápido!

XII


Mas a Fada Morgana, apesar de não suportar o ferro em sua forma de fada, ainda tinha o grifo. Em
um passe de mágica, soltou-o de sua corrente dourada no momento em que seu castelo desapareceu.

Os fora-da-lei ficaram satisfeitos com o sucesso, e menos cuidadosos do que deveriam ser.
Decidiram dar uma volta, passando longe de onde tinham visto o monstro amarrado, e marcharam
pelas árvores sombrias sem pensar no perigo.

Houve um ruído como o de um trem de ferro apitando e, respondendo a isso — sobrepondo-lhe
como a voz da fênix —, o trompete prateado de Robin começou a tocar.

— Tum, tum, turun tun tun, tututuntum — tocava o trompete. — Tara, tara, taratatá, taratatatá. Fi, fi.
fi, fi, firi fi fi.
Robin tocou sua música de caça e os arqueiros emboscados giraram quando o grifo atacou.
Colocaram adiante os pés esquerdos e, no mesmo movimento, soltaram uma chuva de flechas que
caiu como se fosse uma nevasca.

Wart viu a criatura cambalear, com uma flecha com mais de meio metro saindo de entre seus
ombros. Viu sua própria flecha voar longe, e rapidamente se inclinou para pegar outra do cinto. Viu
a fila de seus companheiros arqueiros oscilar como se obedecesse a um sinal preestabelecido, e
cada homem se abaixou para pegar a segunda flecha. Escutou as cordas soarem novamente, o silvo
das flechas no ar. Viu a falange de flechas brilhar como piscadelas à luz do luar. Até então, em toda
a sua vida, ele só tinha atirado em alvos de palha que faziam um ruído de fluut! E sempre desejara
ouvir o ruído que esses mísseis perfeitos e mortais fariam ao atingir carne sólida. Agora ouvia.

Mas o grifo tinha escamas duras como as de um crocodilo e só as flechas mais bem colocadas não
resvalavam. O monstro continuava avançando. Soltava gritos agudos enquanto avançava. Os
homens começaram a cair, jogados à esquerda e à direita pelo rabo que chicoteava.

Wart estava arrumando a flecha em seu arco. A pena de galo não se ajustava. Tudo se movia
lentamente.

Ele viu o enorme corpo negro avançando contra o luar. Sentiu a garra que o atingiu no peito. Sentiu
ele mesmo girar vagarosamente, com um peso cruel por cima dele. Viu o rosto de Kay em algum
lugar naquele universo que girava, corado de excitação à lua das estrelas, e a Donzela Marian, do
outro lado, com a boca aberta, gritando. Antes de resvalar para a escuridão, achou que ela gritava


para ele.

Eles o tiraram de baixo do grifo morto e descobriram a flecha de Kay enfiada no olho do monstro.
Este tinha morrido em pleno salto.

Então houve um momento em que ele se sentiu mal — enquanto Robin colocava sua clavícula no
lugar e fazia uma tipóia com o pano verde de seu capuz —, e, depois disso, todo o bando foi
dormir, todos mortos de cansaço, ao lado do cadáver. Era tarde demais para voltar ao castelo de
Sir Ector, ou mesmo para regressar ao acampamento dos fora-da-lei na grande árvore. Os perigos
da expedição tinham terminado e tudo o que podia ser feito naquela noite era acender fogueiras,
postar sentinelas e dormir onde se encontravam.

Wart não dormiu muito. Sentou-se apoiado em uma árvore, observando as sentinelas vermelhas
passando de lá para cá à luz das fogueiras, escutando suas senhas e pensando nos acontecimentos
excitantes do dia. Estes giravam e giravam em sua cabeça, às vezes fora de ordem e de trás para
frente, ou aos pedaços. Viu o grifo saltando, ouviu Marian gritando "Belo disparo!", escutou o
zumbir das abelhas misturado com o chirrio dos gafanhotos, e disparou e disparou, centenas de
milhares de vezes, em alvos que se transformavam em grifos. Kay e o Menino-Cão liberado se
mexiam, adormecidos ao seu lado, parecendo estranhos e incompreensíveis como acontece com as
pessoas quando dormem, e Cavall, encostado em seu ombro são, lambia-lhe de vez em quando as
faces quentes. A alvorada chegou devagar, tão devagar e pausadamente que era impossível
determinar quando na verdade amanhecera, como acontecia nos meses de verão.

— Bem — disse Robin, depois que despertaram e comeram o desjejum de pão e carne de caça fria
que haviam trazido —, você vai nos amar e nos deixar, Kay. Caso contrário, vou ter Sir Ector
armando uma expedição contra mim para levar você de volta. Obrigado por sua ajuda. Posso lhe
dar um presentinho de agradecimento?
— Foi ótimo — disse Kay. — Absolutamente ótimo. Posso levar o grifo que matei?
— É muito pesado para carregar. Por que não leva só a cabeça?
— Isso será suficiente — disse Kay — se alguém não se importar em cortá-la. É meu grifo.
— O que vai fazer com o velho Wat? — perguntou Wart.
— Depende do que ele queira fazer. Talvez queira ficar por conta própria e comer bolotas, como
costumava, ou se quiser unir-se ao nosso bando teremos prazer em acolhê-lo. Ele fugiu da sua
aldeia, de forma que não acho que queira voltar para lá. O que você acha?
— Se você quiser me dar um presente — disse Wart, lentamente —, eu gostaria de tê-lo. Você acha
que isso seria certo?
— Na verdade, não acho certo — disse Robin. — Não acho muito bom dar pessoas de presente:
elas podem não gostar. Pelo menos é assim que nós, saxões, sentimos. O que você quer fazer com
ele?
— Não quero ficar com ele ou coisa assim. Sabe, tenho um tutor que é mago e pensei que poderia
ser capaz de restaurar o juízo dele.

— Bom menino — disse Robin. — Claro que pode levá-lo. Sinto muito ter pensado mal de você.
Pelo menos, podemos perguntar a ele se gostaria de ir.
Quando alguém foi buscar Wat, Robin disse:

— É melhor você mesmo falar com ele.
Trouxeram o pobre velho, sorrindo, confuso, horrendo e muito sujo, e o colocaram diante de Robin.
— Vá em frente — disse Robin.
Wart não sabia exatamente como colocar a questão, mas disse:
— Olhe, Wat, você gostaria de ir para casa comigo, por favor, só por um tempo?
.— Aba duga buga gufa lula — disse Wat, puxando os cabelos, inclinando-se e balançando os
braços em várias direções.

— Vem comigo?
— Dib dub déb dob.
— Jantar? — perguntou Wart, desesperado.
— Rrr! — gritou afirmativamente a criatura, e seus olhos brilhavam de prazer com a perspectiva de
receber algo para comer.
— Por ali — disse Wart, apontando na direção que ele sabia, pelo sol, ser a do castelo de seu
protetor. — Jantar. Venha comigo. Eu levo.
— Mestre — disse Wat, lembrando-se de repente de uma palavra, a palavra que tinha se
acostumado a dirigir aos grandes personagens que lhe presenteavam com comida, seu único meio
de vida. Estava decidido.
— Bem — disse Robin —, foi uma grande aventura, e lamento que estejam indo. Espero vê-los
novamente.
— Venham a qualquer hora — disse Marian —, quando estiverem aborrecidos. É só seguir as
clareiras. E você, Wart, cuidado com essa clavícula durante alguns dias.
— Mandarei alguns homens com vocês até a borda da floresta — disse Robin. — Depois vão ter
que ir por conta própria. Espero que o Menino-Cão possa carregar a cabeça do grifo.
— Adeus — disse Kay.
— Adeus — disse Robin.
— Adeus — disse Wart.
— Adeus — disse Marian, sorrindo.
— Adeus — gritaram os fora-da-lei, acenando com os arcos. E Kay e Wart e o Menino-Cão e Wat
e Cavall e sua escolta partiram na longa jornada para casa.
Tiveram uma imensa recepção. O regresso no dia anterior de todos os cães de caça, exceto Cavall
e o Menino-Cão, e quando Kay e Wart não voltaram à noite, tinha armado a maior confusão na


casa. A ama ficara histérica. Até a meia-noite, Hob tinha percorrido as vizinhanças da floresta —
os cozinheiros deixaram queimar o assado do jantar— e o sargento-de-armas tinha polido todas as
armaduras duas vezes e afiado o corte de todas as espadas e machados para o caso de uma invasão.
Finalmente, alguém pensou em consultar Merlin, que descobriram já em sua terceira soneca. O
mago, para o bem da paz e para ter paz no resto do seu descanso, usara sua visão para contar a Sir
Ector exatamente o que os meninos estavam fazendo, e quando se podia esperar que voltassem.
Profetizou até os minutos do regresso.

Assim, quando a pequena procissão de guerreiros que regressava ficou à vista da ponte levadiça,
foi saudada por todos da casa. Sir Ector estava parado no meio com uma grossa bengala, com a
qual pretendia dar-lhes umas bordoadas por terem saído dos limites e provocado tanta confusão; a
ama tinha insistido em trazer o estandarte que era costume içar quando Sir Ector voltava para casa
das férias, quando menino, e onde estava escrito Bem-Vindo ao Lar; Hob esquecera seus amados
falcões e estava parado ao lado, protegendo os olhos de águia para ser o primeiro a vê-los; os
cozinheiros e todo o pessoal da cozinha batiam em panelas e frigideiras, cantando "Não voltarás
para casa?" ou outra música assim, mas fora do tom; o gato da cozinha miava; os cães tinham
escapado do canil porque não havia ninguém para cuidar deles e se preparavam para caçar o gato
da cozinha; o sargento-de-armas tinha o peito tão inchado de prazer que parecia capaz de explodir
a qualquer momento, e ordenava a todos que se preparassem para a saudação quando ele dissesse,
"Um, Dois!".

— Um, Dois! — gritou o sargento.
— Hurra! — gritaram todos, obedientemente, inclusive Sir Ector.
— Olhem só o que eu trouxe — gritou Kay. — Matei um grifo e Wart foi ferido.
— Au-au-au! — latiram os cães de caça, e pularam em cima do Menino-Cão, lambendo-lhe o rosto,
arranhando-lhe o peito, cheirando-o todo para saber o que tinha acontecido com ele, e olhando com
esperanças para a cabeça do grifo que o Menino-Cão segurava bem alto para que não pudessem
comê-la.
— Bendito seja! — exclamou Sir Ector.
— Ai de mim, meu pobre rouxinolzinho — gritou a ama, deixando cair o estandarte. — Coitado!
Com seu braço numa tipóia verde, que Deus nos ajude!
— Está tudo bem — disse Wart. — Ah, não me abrace. Dói.
— Posso mandar empalhar? — perguntou Kay.
— Bem, com os diabos — disse Hob. — Não é o nosso velho Wat, o que ficou lunático?
— Meus queridos, queridos meninos — disse Sir Ector. — Estou tão feliz em vê-los de volta.
— Velho cabeça tonta — exclamou a ama, triunfante. — Onde meteu a bengala?
— Então! — disse Sir Ector. — Como se atreveram a sair dos limites e nos deixar aqui agoniados?
— É um grifo de verdade — disse Kay, que sabia que não havia nada a temer. — Matei dúzias
deles. Wart quebrou a clavícula. Resgatamos o Menino-Cão e Wat.

— Isso é o resultado de minhas lições de arco e flecha para esses jovens — disse o sargento,
orgulhoso.
Sir Ector beijou ambos os meninos e ordenou que o grifo fosse exibido diante dele.

— Bem! — exclamou. — Que monstro! Vamos empalhar e pôr na sala de jantar. Como disse que
era o tamanho disso?
— Dois metros de orelha a orelha. Robin disse que deve ser um recorde.
— Vamos fazer uma crônica do feito.
— É um dos bons, não é? — comentou Kay, com uma calma estudada.
— Mandarei que Sir Rowland Ward o faça — disse Sir Ector, na maior alegria —, com uma
pequena placa de marfim, com O PRIMEIRO GRIFO DE KAY escrito com letras negras, e a data.
— Ora, deixai de criancice — exclamou a ama. — Vamos, Mestre Wart, meu inocente, vamos logo
para vossa cama neste instante. E vós, Sir Ector, deveis vos envergonhar de estar brincando com
cabeças de monstros como esse galinhão enquanto a pobre criança está à beira da morte. Vamos,
sargento, pegue o cavalo e vá até Cardoyle buscar o cirurgião.
Ela sacudiu o avental para o sargento, que desinchou o peito e saiu enxotado como uma galinha.

— Está tudo bem — disse Wart. — Estou dizendo, é só uma clavícula quebrada, e Robin a colocou
no lugar ontem à noite. Não está mais doendo.
— Deixe o menino em paz, ama — ordenou Sir Ector, ficando do lado dos homens contra as
mulheres, ansioso por restabelecer sua superioridade depois do assunto da bengala. — Merlin
cuidará dele se for preciso, sem dúvida. Quem é esse Robin?
— Robin Wood — exclamaram juntos os meninos.
— Nunca ouvi falar.
— Você o conhece como Robin Hood — explicou Kay, com ar de superioridade. — Mas na
verdade é Wood, como a floresta da qual ele é o espírito.
— Ora, ora, ora, então vocês andaram metidos com esse malandro! Vamos tomar o desjejum,
meninos, e me contem tudo sobre ele.
— Já tomamos — disse Wart —, horas atrás. Por favor, posso levar Wat comigo para ver Merlin?
— Bem, é o velho que ficou louco e foi viver na floresta. Onde é que vocês o encontraram?
— As Boas Gentes o capturaram com o Menino-Cão e Cavall.
— Mas nós matamos o grifo — Kay acrescentou. — Eu mesmo o matei.
— Então, agora quero ver se Merlin pode restabelecer o juízo dele.
— Mestre Wart — disse a ama com firmeza. Ela ficara sem fôlego com a repreensão de Sir Ector.
— Mestre Wart, vosso quarto e vossa cama é para onde deveis ir, e já. Velhos bobos podem ser
velhos bobos, pelo sim ou pelo não, mas não servi a Família por cinqüenta anos para que me

ensinem minhas obrigações. Ficar com caprichos por conta de um sem juízo enquanto vosso
próprio braço pode estar caindo no chão!


Ora, a floresta pertencia tio rei, que tinha todo o direito de mandar seus cães caçarem nela. [...]
O rei estava no seu direito. Mas isso não eliminava o fato de que Sir Ector via a floresta como
sua floresta, e se ressentia com a intrusão dos cães de caça reais — como se os seus não fossem
suficientemente bons!

— Sim, seu peru velho — acrescentou, voltando-se arrebatada para Sir Ector —, e vós podeis
manter aquele mago longe do quarto do pobre garoto até ele descansar, isso podeis fazer!
— Brincando com monstros e lunáticos — continuou a vitoriosa enquanto levava seu indefeso
cativo para longe do campo de batalha. — Nunca vi coisa igual.
— Por favor, alguém diga a Merlin para cuidar do Wat — gritou a vítima por sobre os ombros, em
tom cada vez mais débil.
Ele acordou em sua cama fresca, sentindo-se melhor. A velha brigona que cuidara dele tinha
fechado as janelas com as cortinas, portanto o quarto estava escuro e confortável, e ele pôde
perceber, por um raio dourado de sol que iluminava o chão, que já era tarde. Não se sentia apenas


melhor. Sentia-se muito bem, tão bem que era impossível ficar na cama. Virou-se rapidamente para
tirar o lençol, mas parou com o chiado ou arranhão do osso em seu ombro, que tinha esquecido
durante o sono. Então levantou-se com mais cuidado, deslizando da cama e apoiando-se em uma
mão para se erguer, enfiou os pés descalços nos chinelos e conseguiu enrolar mais ou menos um
roupão no corpo. Saiu silenciosamente pelas passagens de pedra e subiu a gasta escada circular
para encontrar Merlin.

Quando chegou à sala de aula, descobriu que Kay estava recebendo sua Edificação de Alto Nível.
Estava fazendo ditado pois, quando Wart abriu a porta, escutou Merlin pronunciando em tom
medido a famosa mnemônica medieval:

— Barabara Celarent Darri Ferioqui Prioris.
E Kay dizendo:
— Espere um pouco. Minha pena está seca.
— Você vai apanhar — disse Kay, quando o viu. — Devia estar de cama, morrendo de gangrena ou
coisa assim.
— Merlin — disse Wart. — Com Wat você fez o quê? Diga-me o quê.
— Você deve tentar falar sem assonâncias — disse o mago. — Por exemplo, "o menino pequenino
está sozinho, coitadinho" é infeliz, mesmo como assonância. E sua frase é no mínimo ambígua. "O
que é o quê?" Eu poderia responder como uma charada, ou se fosse o Rei Pellinore, "O que é oquê, quê?" É preciso ser muito cuidadoso com o jeito de falar.
Era evidente que Kay estava se saindo bem no ditado e que o velho cavalheiro estava de bom
humor.

— Você sabe o que eu quis dizer — disse Wart. — O que você fez com o velhote sem nariz?
— Ele o curou — disse Kay.
— Bem — disse Merlin —, você pode chamar disso, ou não. E claro, quando já se viveu neste
mundo tanto tempo quanto eu, e de trás para a frente também, aprende-se uma ou duas coisas sobre
patologias. Mas as maravilhas da psicologia analítica e da cirurgia plástica ainda são um livro
fechado para esta geração, receio.
— O que você fez com ele?
— Oh, eu simplesmente o psicanalizei — respondeu, pomposo, o mago. — Isso, e claro, costurei
narizes novos, nos dois.
— Que tipos de narizes? — perguntou Wart.
— Foi engraçado — disse Kay. — Ele queria usar o nariz do grifo para um, mas não deixei. Então,
ele pegou os narizes dos dois leitões que vamos comer hoje à noite, e usou. Pessoalmente, acho que
eles vão grunhir.
— Uma operação delicada — disse Merlin —, mas realizada com sucesso.
— Bom — disse Wart, duvidando. — Espero que esteja tudo bem. O que eles fizeram depois?

— Foram para o canil. O velho Wat sente muito pelo que fez com o Menino-Cão, mas diz que não
se lembra de nada. Diz que de repente tudo ficou negro, quando uma vez as crianças estavam lhe
jogando pedras, e que não se lembra de nada depois disso. O Menino-Cão o perdoou e disse que
não se importava. De agora em diante, trabalharão juntos no canil e não pensarão mais no passado.
O Menino-Cão diz que o velho foi bom para ele quando foram prisioneiros da Rainha das Fadas, e
sabe que não devia ter jogado pedras nele, para começar. Diz que pensou muitas vezes nisso
quando os outros garotos começaram a jogar pedras nele também.
— Bom — disse Wart —, fico feliz em saber que tudo terminou bem. Você acha que posso ir
visitá-los?
— Pelos céus, não faça nada que chateie sua ama — exclamou Merlin, olhando ansiosamente para
ele. — Aquela velha me atacou com uma vassoura quando fui ver você esta tarde, e quebrou meus
óculos. Será que você não pode esperar até amanhã?
Na manhã seguinte, Wat e o Menino-Cão já eram os melhores amigos do mundo. A experiência
comum de terem sido apedrejados pela multidão e depois atados a colunas de carne de porco pela
Fada Morgana serviria como um elo entre os dois e tópico de lembranças, quando se deitavam
entre os cachorros à noite, para o resto de suas vidas. Também, pela manhã, tinham arrancado os
narizes que Merlin gentilmente lhes dera. Explicaram que se acostumaram a não ter nariz e que,
além disso, preferiam viver com os cachorros.


XIII


Apesar de seus protestos, o infeliz inválido ficou confinado em seu quarto por três dias mortais.
Ficava sozinho, exceto na hora de dormir, quando Kay vinha, e Merlin se viu limitado a gritar sua
edificação através do buraco da fechadura, nos momentos que sabia que a ama estava ocupada
lavando roupas.

A única diversão do menino eram os formigueiros — aqueles entre vidros que tinha trazido quando
regressou do chalé de Merlin na floresta.

— Será que você não poderia me transformar em outra coisa enquanto estou trancado aqui? —
gemia desesperado atrás da porta.

— Não posso fazer encantamentos através do buraco da fechadura.
— Através do quê?
— DO BURACO DA FECHADURA.
— Oh!
— Você está aí?
— Sim.
— Quê?
— Quê?
— Que confusão essa gritaria! — exclamou o mago, esmagando seu chapéu com os pés. — Que
Castor e Pollux... Não, de novo não. Ai!, minha pressão...
— Você pode me transformar numa formiga?
— No quê?
— Uma FORMIGA! Esse é um encantamento pequeno, não é? Esse pode passar pelo buraco da
fechadura?
— Não acho que deva fazer isso.
— Por quê?

— São perigosas.
— Você poderia me ver com sua visão de dentro e me trazer de volta se as coisas se complicarem.
Por favor, me transforme em alguma coisa, ou acabo fraco da cabeça.
— Essas formigas não são normandas, meu jovem. Vieram da África. São beligerantes.
— E eu sei lá o que é beligerante.
Houve um longo silêncio atrás da porta.
— Bem — finalmente disse Merlin. — Ainda estamos muito no começo
de sua educação. Mas em
algum momento você teria que passar por isso. Deixe-me pensar. Existem dois formigueiros nessa
geringonça?
— Existem dois pares de placas.
— Apanhe uma palha do chão e a coloque entre os dois formigueiros, como uma ponte. Já fez isso?
— Sim.
O lugar onde ele se encontrava parecia um grande campo de pedregulhos, com uma fortaleza
achatada numa ponta — entre as placas de vidro. Penetrava-se na fortaleza por túneis na rocha e,
em cada entrada de cada túnel, havia um letreiro onde estava escrito:

TUDO O QUE NÃO É PROIBIDO É OBRIGATÓRIO

Ele leu o aviso com desagrado, apesar de não entender seu significado. Pensou consigo mesmo:
Vou explorar um pouco, antes de entrar. Por alguma razão, o aviso provocou nele uma relutância
em avançar, fazendo o túnel tosco parecer sinistro.

Balançou cuidadosamente suas antenas, considerando o aviso, familiarizando-se com seus novos
sentidos, plantando firmemente os pés no mundo dos insetos, como se para se agarrar nele. Limpou
as antenas com as patas dianteiras, alisando-as e torcendo-as de tal maneira que parecia um vilão
vitoriano torcendo os bigodes. Bocejou — pois as formigas bocejam e também se espreguiçam,
como os seres humanos. Então, tomou consciência de algo que estivera aguardando ser percebido

— que havia um ruído articulado em sua cabeça. Ou era um ruído ou um cheiro complicado, e a
maneira mais fácil de explicar era dizer que parecia uma transmissão de rádio. Chegava através
das antenas.
A música tinha um ritmo monótono como um pulsar, e as palavras que a acompanhavam eram sobre
junho-punho-cunho, ou mamã-mamã-mamã, ou aqui-ali, ou lá-dá-cá. No começo, ele estava
gostando, principalmente as que falavam de amor-flor-calor, até descobrir que não variavam.
Depois de uma ou duas horas, isso o fez ficar enjoado.

Havia também uma voz em sua cabeça, durante as pausas da música, que parecia estar dando
ordens. Dizia "Todos os que têm dois dias de idade devem se mover para a Ala Oeste", ou
"Número 210397/WD deve se apresentar ao esquadrão da sopa, em substituição ao número
333105/ WD que caiu do formigueiro". Era uma voz frutada, mas de alguma forma parecia
impessoal — como se seu encanto fosse o resultado de uma longa prática, como um truque de circo.
Era sem tom.


O menino, ou talvez devêssemos dizer a formiga, afastou-se da fortaleza logo que se sentiu
preparado para zanzar por ali. Inquieto, começou explorando o deserto de pedregulhos, relutando
em visitar o lugar de onde vinham as ordens, e também chateado com a visão estreita. Descobriu
pequenos caminhos entre os pedregulhos, trilhas esparsas ao mesmo tempo sem sentido e
propositais, que levavam ao depósito de grãos, e também em várias outras direções que ele não
conseguia compreender. Uma dessas trilhas terminava num torrão com uma cavidade natural por
baixo. Na cavidade — mais uma vez com a estranha aparência de propósito sem sentido —
descobriu duas formigas mortas. Estavam deitadas e arrumadas, mas ao mesmo tempo
desarrumadas, como se uma pessoa muito arrumada as tivesse levado até ali, e depois esquecido a
razão quando lá chegou. Estavam dobradas, e não pareciam nem alegres nem tristes por estarem
mortas. Estavam lá, como um par de cadeiras.

Enquanto observava os cadáveres, uma formiga viva desceu pela trilha carregando uma terceira.

A formiga disse:

— Salve, Barbaras!
O menino disse — Salve! — com educação.

Em um ponto, sobre o qual nada sabia, ele tinha sorte. Merlin se lembrara de lhe dar o cheiro
adequado para esse formigueiro — pois, se cheirasse a qualquer outro formigueiro, teria sido
morto imediatamente. Se a Senhorita Cavell fosse uma formiga, teria que escrever em sua estátua:
CHEIRAR NÃO É SUFICIENTE.

A nova formiga colocou o cadáver vagamente e começou a arrastar os outros dois em várias
direções. Parecia não saber onde colocá-los. Ou melhor, sabia que uma certa arrumação devia ser
feita, mas não conseguia imaginar como seria. Era como um homem com uma xícara de chá numa
mão e um sanduíche na outra, querendo acender um cigarro com um fósforo. Mas quando o homem
pensaria em deixar a xícara e o sanduíche — antes de pegar o cigarro e o fósforo — essa formiga
deixaria o sanduíche e pegaria o fósforo, depois deixaria o fósforo no chão para pegar o cigarro,
depois colocaria o cigarro no chão e levantaria o sanduíche, depois abaixaria a xícara e levantaria

o cigarro, até finalmente abaixar o sanduíche e pegar o fósforo. A formiga tendia a depender de
uma série de acidentes até alcançar seu objetivo. Era paciente e não pensava. Depois de ter
colocado as três formigas mortas em várias posições, estas finalmente estariam alinhadas embaixo
do torrão, e isso era o que tinha que fazer.
Wart observou esses arranjos primeiro com surpresa, depois com aflição e, finalmente, com
desagrado. Queria perguntar como era possível não pensar nas coisas com antecedência — esse
sentimento incômodo que as pessoas têm ao ver um serviço ser mal executado. Mais tarde começou
a desejar poder fazer várias perguntas, tais como "Você gosta de cuidar dos mortos?" ou "Você é
um escravo?" ou mesmo "Você é feliz?"

A coisa extraordinária é que ele não podia fazer essas perguntas. Para poder fazê-las, teria que
traduzi-las para a língua das formigas através das antenas — e descobria agora, com uma sensação
de impotência, que não existiam palavras para o que queria dizer. Não havia palavras para
felicidade, liberdade, gostar, assim como não havia palavras para seus opostos. Sentia-se como um


mudo tentando gritar "Incêndio!". O mais próximo que conseguia chegar até mesmo de Certo e
Errado era dizer Feito e Não Feito.

A formiga terminou de mexer com os cadáveres e voltou para a trilha, deixando-os jogados ao
acaso. Então viu que Wart estava no caminho, e parou, mexendo suas antenas em direção a ele,
como se fosse um tanque. Com o rosto mudo e ameaçador como se fosse um elmo, e seu aspecto
peludo, talvez fosse mais parecida com um cavaleiro de armadura ou com um cavalo de armadura:
ou uma combinação dos dois: um centauro peludo de armadura.

A formiga disse novamente:

— Salve, Barbaras!
— Salve.
— O que você está fazendo?
O menino respondeu fielmente:
— Não estou fazendo nada.
A formiga ficou desconcertada com isso durante vários segundos, como você ficaria se Einstein lhe
contasse suas últimas idéias sobre o espaço. Em seguida, estendeu os doze segmentos de sua antena
e falou por cima dele para o azul.

Disse:

—105978/UDC contatando do quadrado cinco. Tem uma formiga maluca aqui no quadrado cinco.
Câmbio.

A palavra que usou para maluca foi Não-Feita. Mais tarde, Wart descobriria que havia apenas duas
qualificações na linguagem, Feito e Não-Feito, que se aplicavam a todas as questões de avaliação.
Se as sementes que os coletores achavam eram doces, eram sementes Feitas. Se alguém as tivesse
temperado com um pó venenoso, seriam sementes Não-Feitas, e assim por diante. Mesmo os
punhos, mamas, flores etc. ficavam completamente descritas, nas irradiações, quando se
declaravam que eram Feitas.

A irradiação parou um momento e a voz frutada disse:

— G. H. Q. respondendo a 105978/UDC. Qual é o número dela. Câmbio.
A formiga perguntou:
— Qual o seu número?
— Não sei.
Quando essa notícia foi transmitida para o quartel-general, veio uma mensagem dizendo para
perguntar se ele podia fazer um relatório sobre si mesmo. A formiga perguntou a ele. Usou as
mesmas palavras que a irradiação usara, e na mesma voz. Isso o fez sentir-se desconfortável e com
raiva, duas emoções das quais não gostava.

— Sim — disse com sarcasmo, pois era óbvio que a criatura percebia o sarcasmo —, caí de ponta

cabeça e não me lembro de nada.

— 105978/UDC relatando. Formiga Não-Feita esqueceu de tudo porque caiu do formigueiro.
Câmbio.
— G.H.Q. respondendo a 105978/UDC. Formiga Não-Feita é o número 42436/WD, que caiu do
formigueiro hoje de manhã quando trabalhava no esquadrão da papa. Se for competente para
continuar com seus deveres — era mais fácil dizer "Se for competente para continuar seus deveres
na linguagem das formigas", pois era simplesmente Feito, como tudo o mais que era Não-Feito.
Mas chega de questões de linguagem. — Se for competente para continuar com seus deveres,
instrua 42436/WD para voltar para o esquadrão da papa, dispensando 210021/WD, que foi
enviado para substituí-lo. Câmbio.
A criatura repetiu a mensagem.

Parece que Wart, mesmo se quisesse, não poderia ter dado explicação melhor do que dizer que
tinha caído de ponta-cabeça, pois as formigas de vez em quando caem mesmo. Eram de uma
espécie de formigas chamada Messor Barbaras.

— Muito bem.
A arrumadora de cadáveres não prestou mais atenção nele e se arrastou pela trilha atrás de outra
formiga morta, ou qualquer outra coisa que precisasse ser removida.

Wart foi pelo caminho oposto, para unir-se ao esquadrão da papa. Memorizou seu próprio número
e o número da unidade que teria que substituir.

O esquadrão da papa estava postado diante de uma das câmaras externas da fortaleza como se fosse
um círculo de adoradores.

Ele se uniu ao círculo, anunciando que 2100021/WD devia voltar para o formigueiro central.
Depois, começou a se empanturrar com a papa doce, como os demais. Faziam a papa raspando as
sementes que os outros tinham coletado, mastigando as migalhas até que estas se transformavam
numa espécie de papa ou sopa, e depois engolindo-a para armazená-la em seu próprio papo. No
início, a coisa lhe pareceu deliciosa, e começou a comer com vontade, mas depois de poucos
segundos perdeu a graça. Não conseguia compreender por quê. Mastigava e engolia rapidamente,
imitando o resto do esquadrão, mas era como se comessem um banquete de nada, ou como um
jantar no palco, representado. De certa forma, era como um pesadelo, no qual se continuava a
comer enormes quantidades de gororoba sem ser capaz de parar.

Uma procissão que ia e vinha circulava em torno da pilha de sementes. As formigas, depois de
encherem o papo até a borda, caminhavam de volta para a fortaleza, substituídas por uma procissão
de formigas vazias que vinham da mesma direção. Nunca apareciam formigas novas na procissão,
apenas aquela mesma dúzia indo e voltando, como fariam durante toda as suas vidas.

De repente, ele compreendeu que o que comia não ia para seu estômago. Uma pequena proporção
daquilo penetrara em seu ser privado no começo, mas agora o volume principal estava sendo
armazenado numa espécie de estômago superior, ou papo, de onde podia ser removido. Ocorreu-
lhe então que, quando entrasse na corrente que voltava, teria que vomitar a provisão em um balde


ou coisa parecida.

O esquadrão da papa conversava entre si enquanto trabalhava. No começo, achou que isso era um
bom sinal, e ficou atento para ouvir o que pudesse.

— Oh, Ark! — disse um deles. — Nuss ouviduss chega de novuss a canção da mamã-mamã-mamã.
Eu achuss essa canção mamã-mamã-mamã adorávelsss (Feita). E tão classudasss (Feita).
Outra observação:

— Eu achusss que nossa amada Líder é maravilhosa, concordasss?, Dizem que ela foi picada
maisss de trezentassss vezesss na última guerra, e recebeuss a Cruzzzz de Valor das Formigasss.
— Que sorte termusss nascidusss no formigueirusss "A", conrdassss? Não seria horrorosusss ser
uma dessassss horrorosassss "B"?
— Que coisa terrívelsss essa históriasss sobre 310099/WD! EU achusss que é clarusss que ela
foissss imediatamente executada, por ordem direta de nossa amada Líder.
— Oh, Ark! Aí vem de novusss aquela canção mamã-mamã-mamã. Eu achusss...
Dirigiu-se com o papo cheio para o ninho, deixando-as dar outra volta. Elas não tinham novidades,
nenhum escândalo, nada sobre o que conversar. Ali não aconteciam novidades. Mesmo as
observações sobre a execução eram feitas em fórmulas, e só variavam quanto ao número de
registro da criminosa. Quando terminavam com a mamã-mamã-mamã, voltavam para a amada
Líder, e depois para os imundos Barbaras B e para a última execução. E assim iam em círculo.
Mesmos as amadas, maravilhosas e coisas assim eram todas Feitas, e as horríveis eram Não-
Feitas.

O menino se viu no saguão da fortaleza, onde centenas e centenas de formigas estavam lambendo ou
se alimentando nas creches, carregando larvas para várias alas para conseguir uma temperatura
estável, e abrindo e fechando as passagens de ventilação. No meio, a Líder sentava-se
complacentemente, pondo ovos, ouvindo as transmissões, dando instruções ou ordenando
execuções, rodeada por um mar de adulação. (Mais tarde, ele aprendeu com Merlin que o método
de sucessão entre essas Líderes variava de acordo com as inerentes espécies de formiga. Nas
Bothriomyrmex,
por exemplo, a ambiciosa fundadora de uma Nova Ordem invadiria um
formigueiro de Tapinoma
e pularia nas costas da antiga tirana. Ali, disfarçada pelo cheiro da
invadida, lentamente cortava a cabeça da falecida, até ela mesma adquirir o direito à Liderança.)

Não havia nenhum balde para depositar a papa, afinal. Quando alguém queria uma refeição, o
parava, fazia que abrisse a boca, e se alimentava direto dali. Não o tratavam como pessoa e,
realmente, eram mesmo impessoais. Ele era um garçom-robô do qual os comedores-robôs se
alimentavam. Nem mesmo seu estômago era seu.

Mas não precisamos entrar em muitos detalhes sobre as formigas — não é um assunto agradável.
Basta dizer que o jovem continuou a viver entre elas, adaptando-se a seus hábitos, observando-as
de forma a compreender o mais que pudesse, mas incapaz de fazer perguntas. Isso não apenas
porque a linguagem delas não dispunha das palavras que interessavam aos humanos — seria
impossível
perguntar-lhes se acreditavam na Vida, na Liberdade e na Busca da Felicidade —, mas


também porque era perigoso fazer perguntas. Para elas, uma pergunta era sinal de insanidade. A
vida não era questionável: era dirigida. Ele rastejava do formigueiro para as sementes e depois de
volta, exclamava que a canção da mama era adorável, abria o papo para regurgitar, e tentava
compreender o mais que pudesse.

No meio da tarde, uma formiga exploradora zanzou pela ponte de palha que Merlin tinha ordenado
que ele fizesse. Era uma formiga exatamente da mesma espécie, mas veio do outro formigueiro. Foi
descoberta por uma das formigas coletoras e assassinada.

As irradiações mudaram depois dessa notícia ser divulgada — ou melhor, mudaram depois que
espiãs descobriram que o outro formigueiro tinha um bom estoque de sementes.

Mamã-mamã-mamã foi substituída por Terra das formigas, Terra das formigas acima de tudo, ea
corrente de ordens foi interrompida para dar lugar a palestras sobre a guerra, patriotismo ou sobre
a situação econômica. A voz frutada disse que sua amada pátria estava sendo cercada por uma
horda de imundos Outros-formigueiros, no que o coro irradiado cantava:

Quando o sangue de outros jorrarem das picadas
Então tudo estará bem para as companheiras amadas.


Também explicava que a Formiga-Antepassada ordenara em sua sabedoria que os covardes dos
Outros-formigueiros deveriam sempre ser escravos dos Deste-Formigueiro. A pátria amada
atualmente só contava com uma bandeja de alimentação — uma situação lamentável que tinha de
ser remediada para a raça eleita não perecer. Uma terceira declaração dizia que a propriedade
nacional Deste-Formigueiro estava ameaçada. Suas fronteiras prestes a serem violadas, seus
animais domésticos, os besouros, a serem seqüestrados, e seu estômago comunal a ser esvaziado.
Wart escutou com atenção duas dessas transmissões, para que pudesse lembrar bem depois.

A primeira estava arranjada da seguinte maneira:

A. Somos tão numerosos que estamos famintos.
B. Portanto, devemos encorajar famílias ainda maiores para que sejamos mais
numerosos e mais famintos.
C. Quando formos tão numerosos e famintos como devemos ser, obviamente teremos
o direito de tomar os estoques de sementes dos outros. Além do mais, teremos,
então, um exército numeroso e faminto.
Só depois que esse exercício de lógica foi posto em prática, e a produção dos viveiros triplicado

— ambos os formigueiros, nesse ínterim, recebendo de Merlin papa suficiente para todas as suas
necessidades, pois temos que admitir que nações famintas nunca parecem estar tão famintas que não
possam arranjar meios para adquirir armamentos muito mais caros do que as outras —, foi então

que o segundo tipo de conferência começou. Era assim que esta se desenrolava:

A. Somos mais numerosos que eles, portanto temos direito à sua papa.
B. Eles são mais numerosos que nós, portanto estão perversamente tentando roubar
nossa papa.
C. Somos uma raça poderosa e temos o direito natural de subjugar esses fracotes.
D. Eles são uma raça poderosa e, contra a natureza, estão tentando subjugar nossa
raça indefesa.
E. Temos que atacá-los como autodefesa.
F.Eles nos atacam ao se defenderem.
G. Se não atacarmos hoje, eles nos atacarão amanhã.
H. De qualquer forma, não estamos, de maneira alguma, atacando-os. Estamos lhes
oferecendo benefícios incalculáveis.
Depois desse segundo tipo de palestra começaram os serviços religiosos. Estes datavam — como
Wart descobriu mais tarde — de um passado tão fabuloso e antigo que dificilmente se poderia
datá-lo, um passado no qual as formigas ainda não tinham adotado o comunismo. Vinham de uma
época em que as formigas eram como os homens, e alguns desses serviços eram muito
impressionantes.

O salmo de um deles — começando, se relevarmos a diferença de linguagens, com as palavras bem
conhecidas, "A Terra e tudo que há nela é da Espada, até onde alcançam os bombardeiros e o que
lá bombardeiam" — terminava com a conclusão terrível: "Explodi vossas cabeças, O vós, Portões,
e sejam explodidas vós, Portas Eternas, para que o Rei da Glória possa entrar. E quem é o Rei da
Glória? Também o Senhor dos Fantasmas, Ele é o Rei da Glória".

Uma característica estranha é que as formigas comuns não se emocionavam com as canções, nem se
interessavam pelas palestras. Aceitavam tudo isso como fatos naturais. Para elas, eram rituais,
como as canções da mama ou as conversas sobre a Amada Líder. Não percebiam essas coisas
como boas ou más, excitantes, racionais ou terríveis. Não se importavam nadinha com elas, mas as
aceitavam como Feitas.

O tempo de guerra logo chegou. As preparações estavam prontas, os soldados treinados ao
máximo, as muralhas do formigueiro tinham slogans patrióticos pintados, como "Ferrões ou papa?"
ou "Consagro-me a vós, meu Cheiro", e Wart estava desesperado. As vozes que repetiam dentro de
sua cabeça, e que não podia desligar — a falta de privacidade, quando alguns comiam do seu
estômago e outros cantavam dentro do seu cérebro, o terrível vazio que substituía o sentimento, a
privação de todos salvo dois valores, a monotonia total mais do que a maldade: isso tudo começou
a matar a alegria de viver que pertencia à sua juventude.

Os terríveis exércitos estavam a ponto de entrar na batalha, para disputar as fronteiras imaginárias
entre suas placas de vidro, quando Merlin veio salvá-lo. Com um passe de mágica, colocou o
enfermo explorador do reino animal de volta à sua cama, e lá ele ficou, muito feliz por estar de


volta.



XIV


No outono todos se preparavam para o inverno. De noite, passavam o tempo salvando os
mosquitos-bernes das velas e candeeiros. Durante o dia, levavam as vacas para o restolho alto e as
ervas daninhas que sobraram depois da ceifa. Os porcos eram levados às clareiras da floresta,
onde os jovens batiam nas árvores para fazer as bolotas caírem. Cada um tinha uma tarefa diferente.
Do celeiro, chegava o invariável ritmo do mangual debulhando cereais; nos campos, os vagarosos e
tremendamente pesados arados de madeira sulcavam para cima e para baixo, para a cevada e o
trigo, enquanto os semeadores ritimadamente trabalhavam ao lado, com os alforjes pendurados nos
pescoços, atirando com a mão direita por sobre o pé esquerdo e vice-versa. Grupos de
forrageadores vinham atrás com carroças pesadas que enchiam com palhas, observando sabiamente
que tinham de:

Pôr as palhas em casa antes do verão acabar
Para o gado no estábulo nela se deitar.


Enquanto outros arrastavam lenha para as lareiras do castelo o ar da floresta vibrava com o som
das marretas e cunhas.

Todos estavam felizes. Vistos de certa forma, os saxões eram escravos de seus senhores normandos

— mas, se vistos de outra forma, eram como os trabalhadores agrícolas que hoje se viram com
alguns xelins por semana. Mas nem o aldeão nem o trabalhador agrícola passavam fome quando o
senhor era um homem como Sir Ector. Nunca foi boa política econômica para o proprietário de
gado deixar seu gado passar fome, então por que um proprietário de escravos faria isso com seus
escravos? A verdade é que até hoje o trabalhador agrícola resigna-se a receber tão pouco dinheiro
porque não tem que dar sua alma em troca, na barganha — como aconteceria na cidade —, e a
mesma liberdade de espírito se mantém no campo desde os primeiros tempos. Os aldeões eram
trabalhadores. Moravam na mesma choça de um único cômodo com suas famílias, algumas
galinhas, sujeira de porcos, ou com uma vaca possivelmente chamada Crumbocke — algo
realmente espantoso e não higiênico! Mas gostavam disso. Eram saudáveis, livres para respirar um
ar sem fumaça de fábrica e, o que era mais importante para todos eles, seus interesses pessoais

estavam ligados às suas habilidades no trabalho. Sabiam que Sir Ector tinha orgulho deles. Eram
mais valiosos para ele que seu próprio gado e, como ele valorizava seu gado mais que qualquer
coisa exceto os filhos, isso certamente significava muito. Ele caminhava e trabalhava ao lado de
seus aldeãos, pensava no seu bem-estar e distinguia o bom do mau trabalhador. De fato, era um
verdadeiro fazendeiro — uma dessas pessoas que parecia que pagavam ao trabalhador tantos xelins
por semana mas que, na verdade, pagavam mais da metade disso em horas extras voluntárias,
proporcionavam uma cabana grátis, e possivelmente davam presentes extras de leite e ovos e
cerveja caseira.

Em outras partes de Gramarye, é claro, existiam senhores déspotas e malvados — bandidos feudais
que o Rei Arthur teria por atino castigar —, mas o mal estava nas pessoas más que abusavam dele,
não no sistema feudal.

Sir Ector passava por essas atividades com expressão carrancuda, quando uma velha senhora, que
estava sentada na beira de um de seus campos de trigo para espantar as gralhas e os pombos,
levantou-se de repente a seu lado com um guincho terrível, ele pulou vários centímetros no ar.
Estava bem nervoso.

— Maldição! — disse Sir Ector. Depois, considerando o assunto com mais atenção, acrescentou
em voz alta e indignada — Esplendor de Deus!
Tirou a carta do bolso e a leu novamente.

O Suserano do Castelo da Floresta Sauvage era mais que um fazendeiro. Era um capitão militar,
pronto para organizar e liderar a defesa de suas terras contra os bandidos, e era também um
esportista que, quando tinha tempo, tirava um ou dois dias para participar de justas. Sir Ector era
também um M. F. H. — ou seja, Senhor de Cervos e de Cães de Caça — e caçava com sua própria
matilha. Clumsy, Trowneer, Phoebe, Colle, Gerland, Talbot, Luath, Luffra, Apollon, Orthros, Bran,
Gelert, Bounce, Boy, Lion, Bungey, Toby, Diamond e Cavall não eram cãezinhos de estimação.
Eram os Cães de Caça da Floresta Sauvage, sem apelação, duas vezes por semana a serviço,
caçando com seu Senhor.

Isso era o que a carta dizia, se a traduzirmos do latim:

Do Rei para Sir Ector etc.

Mandamos a vós William Twyti, nosso caçador, e seus companheiros, para caçar na
Floresta Sauvage com nossos cães de caça de javalis (canibus nostris porkericis),
para que capturem dois ou três javalis. Vós deveis fazer que a carne que
capturarem seja salgada e mantida em boas condições, mas as peles vós deveis
branqueá-las as que vos forem dadas, como o dito William vos dirá. E ordenamos
que proporcioneis o necessário a eles pelo tempo que estiverem convosco por
ordem minha, e o custo etc, deverá ser contado etc. Testemunhado na Torre de
Londres, 20 de novembro, no décimo segundo ano de nosso reinado.


UTHER PENDRAGON

Ora, a floresta pertencia ao Rei, que tinha todo o direito de mandar seus cães caçarem nela. Até
porque mantinha uma boa quantidade de bocas famintas — em sua corte e seu exército —, de forma
que era natural que desejasse o máximo de javalis, gamos, cabritos etc, para serem salgados
conforme possível.

O rei estava no seu direito. Mas isso não eliminava o fato de que Sir Ector via a floresta como sua
floresta, e se ressentia com a intrusão dos cães de caça reais — como se os seus não fossem
suficientemente bons! Bastava o Rei encomendar um par de javalis e ele ficaria feliz de oferecê-
los. Temia que suas reservas de caça fossem perturbadas por um bando de selvagens cortesãos —
nunca se sabe o que esses tipos da cidade são capazes de fazer —, e que o caçador do Reino, esse
tal de Twyti, zombasse de suas humildes instalações de caça, perturbasse os criados da caça e
talvez até mesmo interferisse na administração do seu canil. Na verdade, Sir Ector era tímido. E
havia outra coisa. Onde guardar esses cães de caça reais? Será que ele, Sir Ector, teria que deixar
ao relento seus próprios cães para poder colocar os do Rei em seu canil?

— Esplendor de Deus! — repetia, infeliz, o senhor. A coisa era tão ruim como pagar o dízimo.
Sir Ector enfiou a maldita carta no bolso e saiu da lavra batendo o pé. Os trabalhadores,
observando-o ir-se, comentaram alegremente:

— Nosso velho senhor parece que não sabe mais para onde ir. Era um detestável ato de tirania,
isso é o que era. Acontecia todos os anos, mas era isso mesmo. Sempre resolvia o problema do
canil da mesma maneira, mas ainda assim ficava preocupado. Teria que convidar especialmente
seus vizinhos para o encontro, para parecer o mais impressionante possível aos olhos do caçador
real, e isso significava ter que mandar mensageiros pela floresta até Sir Grummore etc. E teria que
mostrar a caça. O Rei tinha escrito cedo assim evidentemente pretendia enviar o sujeito logo no
começo da estação. A estação só começava no dia 25 de dezembro. O sujeito poderia mesmo
insistir num desses malditos encontros no dia depois do Natal — só exibição e nada de prático —,
com centenas de pessoas a pé gritando e espantando o javali e pisando as sementes e acabando por
perturbar a diversão. E como diabos ele iria saber, no começo de novembro, onde estariam os
melhores javalis na época do Natal? Com varas de javalis e porcos selvagens, você nunca sabia
onde é que estava. E outra coisa. O cão que seria usado no verão seguinte para a caça de cervos
sempre era iniciado no Natal, na caçada de javalis. Era, de fato, o começo do seu treinamento —
que passava por lebres e bichos menores, até a verdadeira presa —, e isso queria dizer que esse tal
de Twyti viria com uns filhotes que só serviriam para atrapalhar todo mundo.
— Diacho! — disse Sir Ector, e pisou num poço de lama. Ficou parado melancólico por ali,
observando seus dois jovens tentando agarrar as últimas folhas do outono. Não tinham saído
expressamente com essa intenção, e nem mesmo naqueles tempos distantes acreditavam realmente
que a cada folha apanhada correspondia a um mês feliz no ano seguinte. Só que, como o vento oeste
espalhava para longe as folhas douradas, estas pareciam fascinantes e difíceis de agarrar. E pelo
simples divertimento de agarrá-las, de gritar e rir e ficar tontos ao olharem para o alto, e disparar

para agarrar as criaturas que pareciam vivas ao girar para escapar, os dois saltavam como jovens
faunos no final do ano. O ombro de Wart já estava novamente bom.

O único tipo, refletiu Sir Ector, que realmente poderia ser útil para mostrar ao caçador real uma
caça realmente boa era esse tal de Robin Hood. Robin Wood, como parecia que o chamavam agora

— algum modismo da hora, com certeza. Mas Wood ou Hood, esse era o sujeito que saberia onde
encontrar um bom dentuço. Há meses ele andaria se banqueteando com as criaturas, disso não
duvidava, mesmo que estivessem fora da estação.
Mas dificilmente poderia pedir a um sujeito que fizesse uma caçada e não convidá-lo para a festa.
E o que diriam os caçadores do Rei e seus vizinhos se tivessem um guerrilheiro como colega
convidado? Não que esse Robin Wood fosse um mau sujeito: era um bom tipo e bom vizinho.
Muitas vezes dera dicas para Sir Ector quando um bando de invasores se aproximavam vindo dos
Pântanos, e nunca incomodou o cavaleiro nem sua propriedade de maneira alguma. E que importava
se caçasse um pouco de vez em quando? A floresta tinha seiscentos quilômetros quadrados, diziam,
e isso era suficiente para todos. Viver e deixar viver era o lema de Sir Ector. Mas isso não mudava

o pensar dos vizinhos.
Outra coisa era a confusão. Poderiam ser muito divertidas essas caçadas nas florestas praticamente
artificiais de Windsor, onde o Rei caçava, mas na Floresta Sauvage era coisa bem diferente.
Suponha que os famosos cães de caça reais disparem atrás de um unicórnio ou algo semelhante?
Todo mundo sabe que não se consegue agarrar um unicórnio sem uma donzela virgem como isca
(caso em que o unicórnio simplesmente repousaria sua cabeça branca e chifre de madrepérola no
colo dela), e assim os filhotes iam correr léguas e léguas pela floresta adentro sem alcançá-lo, e se
perderiam, e o que diria Sir Ector a seu soberano? E não eram apenas os unicórnios. Havia também
a Besta Gemente da qual todos tinham escutado falar muito. Se você tivesse a cabeça de uma
serpente, o corpo de um leopardo, os quadris de um leão e os pés de cervo e fizesse um ruído como

o de uma matilha de trinta pares de cães de caça, é de supor que uma boa quantidade de filhotes
reais seria destroçada antes que você caísse. E seria bem-feito. E o que diria o Rei Pellinore se o
Senhor William Twyti conseguisse realmente matar sua besta? Depois havia os pequenos dragões
que viviam debaixo das pedras e chiavam como chaleiras — bichos perigosos, muito perigosos
mesmo. Ou suponha que encontrassem um dos dragões bem grandes? E suponha que encontrassem
um grifo?
Sir Ector encarou essas alternativas melancolicamente por algum tempo, e depois começou a se
sentir melhor. Seria muito bom, concluiu, se o Senhor Twyti e seus cães detestáveis enfrentassem a
Besta Gemente, sim senhor, e fossem todos devorados por ela. Todos eles.

Animado com essa visão, deu a volta pelas bordas do campo e marchou para casa. Na cerca onde a
velha estava sentada para espantar gralhas, teve a sorte de ver alguns pombos se aproximando antes
que ela os visse ou vissem a ele, o que lhe deu oportunidade de soltar um grito tal que o fez sentir-
se recompensado pelo próprio pulo causado pelo susto que ela lhe dera. Afinal, iria ser uma noite
boa.

— Boa noite — disse Sir Ector, afável, quando a velha se recuperou o suficiente para lhe fazer uma
mesura.

Sentiu-se tão bem depois disso que chamou o pároco, quando ia pela metade da rua da aldeia, e o
convidou para jantar. Depois, subiu até o solário, que era sua câmara especial, e sentou-se
pesadamente para escrever uma mensagem submissa ao Rei Uther, durante as duas ou três horas que
lhe restavam antes da refeição. E levaria mesmo todo esse tempo, com todo o afiar das penas, o uso
excessivo de areia para apagar os borrões, o subir até o alto da escada para perguntar ao mordomo
como soletrar palavras, e o começar de novo se tivesse errado.

Sir Ector sentou-se no solário, enquanto a luz invernal lançava raios laranjas sobre sua cabeça
calva. Ficou garatujando e fazendo borrões, mordendo laboriosamente a ponta da pena enquanto a
câmara do castelo escurecia ao seu redor. Era tão grande quanto o saguão principal que estava
embaixo, e podia ter grandes janelas abertas para o sul porque estava no segundo andar. Havia
duas lareiras onde as toras cinzentas de madeira se avermelhavam com a retirada da luz solar. Em
volta, alguns de seus cães favoritos fungavam em sonhos, ou se cocavam atrás de pulgas, ou roíam
ossos de carneiro que arrastaram da cozinha. A falcoa peregrina, encapuzada, estava no poleiro do
canto, ídolo imóvel pensando em outros céus.

Se você fosse agora ao solário do Castelo Sauvage, o encontraria vazio de mobílias. Mas o sol
ainda fluiria por aquelas janelas de pedra com sessenta centímetros de espessura, e, quando
cruzasse os caixilhos de madeira, refletiria neles um vivo colorido de arenito — a cor ambarina do
tempo. Se você fosse ao antiquário mais próximo, poderia encontrar algumas boas imitações do
mobiliário que supostamente esteve ali. Seriam arcas de carvalho e armários com painéis góticos
com estranhas faces de homens ou anjos — ou demônios — esculpidas em preto, polidas com cera
negra, carcomidas e brilhantes, testemunhas sombrias da vida passada em sua solidez de caixão.
Mas a mobília do solário não era assim. As cabeças de demônios estavam lá, assim como o
drapejo esculpido nos painéis, mas a madeira seria seis, sete ou oito séculos mais nova. Portanto,
na luz cálida do pôr-do-sol, não eram apenas os caixilhos que tinham um brilho ambarino. Todas as
arcas sólidas da sala (que serviam para sentar quando se colocavam tapetes coloridos sobre elas)
eram de carvalho novo e dourado, e as bochechas dos demônios e querubins brilhavam como se
tivessem tomado um bom banho.


XV


Era noite de Natal, véspera do dia da grande caçada. Deve-se lembrar que isso acontecia na velha
Alegre Inglaterra de Gramarye, quando os barões rosados comiam com os dedos e faziam servir
faisões com todas as penas da cauda balançando, ou cabeças de javali com as presas enfiadas
novamente no assado — quando não havia desemprego porque havia poucas pessoas a empregar
—, quando a floresta retinia com cavaleiros batendo nos elmos uns dos outros, e os unicórnios
galopavam com seus pés prateados sob o luar invernal e sopravam seu hálito azul no ar gelado.
Tais maravilhas eram grandes e tranqüilizadoras. Mas na Velha Inglaterra havia ainda uma
maravilha maior. O clima se comportava.

Na primavera, as florzinhas obedientemente brotavam nos prados, o orvalho brilhava e os pássaros
cantavam. No verão, o tempo ficava maravilhosamente quente por pelo menos quatro meses e, se
chovia, era apenas o suficiente para as necessidades agrícolas, e eles davam um jeito de fazer que
só chovesse quando estivessem na cama. No outono, as folhas avermelhavam e sacudiam frente ao
vento oeste, temperando de glória seu triste adeus. E no inverno que legalmente se restringia a dois
meses, a neve caía regularmente, com um metro de altura, mas nunca virava lama.

Era noite de Natal no Castelo Sauvage e, ao redor do castelo a neve caía como devia cair. Pendia
pesadamente das muralhas como uma espessa cobertura sobre um bolo muito bom e, em alguns
lugares convenientes, transformava-se em claros pingentes de gelo do maior comprimento possível.
Pendurava-se nos galhos das árvores em bolas redondas, mais perfeitas que maçãs, e
ocasionalmente deslizava dos tetos da aldeia quando percebiam a oportunidade de cair sobre algum
tipo divertido e assim dar prazer a todos. Os rapazes faziam bolas de neve, mas nunca enfiavam
pedras para machucar os outros, e os cães, quando levados a passear, mordiam-nas e rolavam
nelas, e ficavam surpresos mas deliciados quando elas desapareciam nas camadas mais fundas.
Patinavam no fosso, que rugia com os ossos deslizantes usados como patins, e castanhas quentes e
ponche quente eram servidos nas margens para todo mundo. As corujas piavam. Os cozinheiros
jogavam muitas migalhas para os passarinhos. Os aldeãos usavam seus cachecóis vermelhos. O
rosto de Sir Ector brilhava ainda mais vermelho. E mais vermelhas que tudo brilhavam as lareiras
dos chalés acesas na rua principal, à noite, enquanto o vento uivava lá fora e os lobos da Velha
Inglaterra vagavam babando da forma adequada, ou às vezes espreitando pelos buracos de
fechadura com seus olhos sangüíneos.

Era noite de Natal e todas as coisas que deviam ser feitas tinham sido feitas. A aldeia inteira fora


cear no saguão. Havia cabeça de javali e carne de veado e porco e bife e carneiro e capões — mas
não peru, já que esse pássaro ainda não tinha sido inventado. Havia pudim de ameixas e passas que
deixavam as pontas dos dedos azuis, e quanto hidromel se desejasse. Havia se bebido à saúde de
Sir Ector com "O maior respeito, Senhor", ou "Com os melhores cumprimentos natalinos, meus
senhores e senhoras, e muitos". Houve murmúrios para se representar uma excitante história
dramática na qual São Jorge e um Sarraceno e um Doutor divertido faziam coisas surpreendentes, e
também um coro cantando "Adeste Fidelis" e "Canção da Donzela", com vozes altas e límpidas de
tenor. Depois disso as crianças que não tinham ficado enjoadas com o jantar brincaram de cabra-
cega e outros jogos adequados, enquanto os jovens e donzelas dançavam danças folclóricas no
meio, depois que removeram as mesas. Os velhos sentavam-se perto das paredes, segurando taças
de hidromel e sentindo-se felizes por terem passado da idade dessas brincadeiras, danças e pulos,
e as crianças que não tinham enjoado sentavam-se com eles e logo adormeciam, as pequenas
cabeças reclinadas sobre os ombros. Na mesa principal Sir Ector sentava-se com os cavaleiros
visitantes, que lá estavam para a caçada do dia seguinte, sorrindo e acenando e bebendo Borgonha
ou xerez ou vinho fortificado.

Depois de um tempo, pediu-se silêncio para ouvir Sir Grummore. Ele levantou-se e cantou a
canção da sua velha escola, entre grandes aplausos, mas esqueceu da maior parte da letra e teve
que ficar murmurando por trás do bigode. Depois, o Rei Pellinore foi cutucado e ficou de pé e
cantou timidamente:

Oh, nasci um Pellinore no famoso Lincolnshire, terra excelente.
E por mais de dezessete anos, cacei a Besta Gemente.
Até que amigo fiquei de Sir Grummore na melhor parte de um ano inclemente.
(Desde então) é meu prazer crescente
Numa cama de penas e mansamente
Dormir as noites em casa, minha gente.


— Sabem — explicou o Rei Pellinore, enrubescendo enquanto sentava-se com todos dando-lhe
palmadinhas nas costas —, o velho Grummore me convidou à sua casa, o quê?, depois de termos
feito uma boa justa juntos, e desde então deixei que minha Besta bestial morra por conta própria,
quê?
— Muito bem — disseram todos. — Vive-se a própria vida enquanto se pode.
William Twyti, que chegara na noite anterior, foi chamado, e o famoso caçador levantou-se com a
cara muito séria, e com os olhos vesgos fixos em Sir Ector, cantou:

Conhecem William Twyti
Com seu casaco ajustado?
Conhecem William Twyti
Que nunca chegou atrasado?



Sim, conheço William Twyti
Que devia ser amordaçado
Com seus cães e trompete mal tivesse chegado.


— Bravo! — gritou Sir Ector. — Ouviram só essa, hem? Disse que devia ser amordaçado, meu
caro amigo. Raios me partam se não pensei que ele ia se gabar quando começou. Bons sujeitos,
esses caçadores, não? Sirvam vinho para o Mestre Twyti, com meus cumprimentos.
Os meninos estavam agachados embaixo dos bancos, perto da lareira, Wart com Cavall em seus
braços. Cavall não gostava do calor e da gritaria e do cheiro de hidromel, e queria escapar, mas
Wart o segurou firme porque precisava de algo para abraçar, e assim Cavall foi obrigado a ficar,
arfando com a grande língua rosada de fora.

— Agora é a vez de Ralph Passelewe.
— O bom e velho Ralph.
— Quem matou a vaca, Ralph?
— Silêncio, por favor, para Mestre Passelewe falar.
Nesse instante, um velhote muito ágil levantou-se do canto mais distante e humilde do saguão, tal
como se levantara em todas as ocasiões semelhantes no último meio século. Tinha pelo menos
oitenta e cinco anos de idade, estava quase cego, quase surdo, mas ainda capaz e desejoso de
cantar com voz trêmula a mesma canção que cantara para deleite da Floresta Sauvage desde antes
de Sir Ector ser enrolado em uma espécie de faixa de linho, em seu berço. Não o escutavam na
mesa principal — estava longe demais no Tempo para ser capaz de fazer sua voz chegar ao outro
lado do salão —, mas todos conheciam o que a voz rachada cantava, e todos adoravam. Isto é o que
ele cantou:

Qua-quando o Velho Rei Cole pa-passeava na praça,
Vi-viu a be-bela dama p-pisando na po-poça
E-ela le-levantou a sa-saia
Pa-para p-por cinta pu-pular,
E aí e-ele viu se-seu to-tornozelo
Na-não foi uma lo-loucura?
Na-não pôde deixar de vê-lo. E-e ajudar.


A canção tinha uns vinte versos desse tipo, nos quais o pobre Rei Cole via cada vez mais coisas
que não deveria ver, e todos aplaudiam no final de cada estrofe até que, ao acabar, o velho Ralph
foi soterrado por congratulações e sentou-se sorrindo vagamente diante da taça reabastecida de
hidromel.

Chegara o momento de Sir Ector encerrar as manifestações. Levantou-se com imponência e


pronunciou o seguinte discurso:

— Amigos, rendeiros e outros. Desacostumado como sou de falar em público...
Houve um débil aplauso, pois todos reconheciam o discurso que Sir Ector fazia nos últimos vinte
anos, e o recebiam como a um irmão.

— ...Desacostumado como sou de falar em público, é meu prazeroso dever — poderia dizer que é
meu muito prazeroso dever — dar as boas-vindas a todos e a todo mundo presente a essa nossa
festa caseira. Foi um bom ano, e digo sem medo de contradição, tanto no pasto como no arado.
Todos sabemos que a vaca Cumbrocke da Floresta Sauvage ganhou o primeiro prêmio da Feira de
Gado de Cardoyle pela segunda vez: mais um ano e ficaremos de vez com essa taça. Mais poder
para a Floresta Sauvage. Agora que estamos sentados aqui esta noite, sinto a falta de alguns rostos
que partiram e de alguns novos que foram acrescentados ao círculo familiar. Esses assuntos estão
nas mãos da toda-poderosa Providência, pela qual todos nos sentimos gratos. Nós mesmos
primeiro fomos criados e depois poupados para nos juntarmos e desfrutarmos a festa desta noite.
Penso que devemos todos agradecer pelas bênçãos que nos foram dadas. Esta noite temos em nosso
seio o famoso Rei Pellinore, cujos labores para livrar nossa floresta da temível Besta Gemente são
conhecidos de todos. Deus abençoe o Rei Pellinore. (Viva, viva!) Também Sir Grummore
Grummursum, um esportista, e digo diante dele, que ficará plantado em sua sela enquanto sua Busca
não terminar. (Hurra!) Finalmente, por último, mas não em último lugar, estamos honrados pela
visita do mais famoso caçador de Sua Majestade, Mestre William Twyti, o qual nos mostrará, estou
certo, tanta esportividade amanhã que iremos esfregar os olhos e desejar que uma matilha de cães
reais possa sempre caçar na Floresta que todos nós amamos tanto. (Viva, viva, e várias imitações
de gritos de caça.) Obrigado, queridos amigos, pelas boas-vindas espontâneas que deram a esses
cavalheiros. Sei que eles irão aceitá-las com o espírito sincero e cálido do coração com que as
ofertamos. E agora é o momento em que devo encerrar minhas breves observações. Outro ano já
quase terminou e chegou a hora de olharmos para o futuro desafiador. Como será a Feira de Gado
do próximo ano? Amigos, só posso desejar a todos um Natal muito feliz e, depois do Padre
Sidebottom dar as graças em nome de todos, concluiremos cantando o Hino Nacional.
Os vivas que estouraram no final do discurso de Sir Ector foram abafados pelos psius, pois
abafavam o final das Graças que o vigário rezava em latim, e depois todos se levantaram e, à luz
do fogo, cantaram:

Deus salve o Rei Pendragon,
Possa seu reino ser longo,
Deus salve o Rei.
E que seja o mais glorioso,
Grande e soberbo,
Magnífico e estrondoso
Deus salve nosso Rei.



Apenas uma coisa era capaz de mexer com o Mestre William Twyti. Verão ou inverno, neve ou
sol, ele galopava e corria atrás de javalis e cervos, e todo o tempo sua alma estava em outro
lugar.

As últimas notas esmaeceram, o saguão esvaziou-se da jubilosa humanidade. As lanternas
faiscaram nas ruas da aldeia, enquanto todos voltavam para suas casas em grupos, temendo os
lobos do luar, e o Castelo da Floresta Sauvage adormeceu pacificamente e às escuras, no estranho
silêncio da neve sagrada.


XVI


Wart levantou cedo no dia seguinte. Fez um esforço deliberado no momento que acordou, jogou
para o lado a grande manta de pele de urso debaixo da qual dormia e mergulhou seu corpo no ar
gelado. Vestiu-se furiosamente, tremendo, dando pulos para se manter aquecido, soprando bafos
azuis em si mesmo como se estivesse cuidando de um cavalo. Quebrou o gelo de uma bacia e
mergulhou o rosto, fazendo caretas como se comesse algo amargo, disse ui-iiii
e esfregou
vigorosamente com uma toalha o rosto que picava. Então, já se sentia razoavelmente aquecido e foi
para os canis provisórios para ver os caçadores do Rei fazendo seus últimos ajustes. Visto à luz do
dia, o Mestre William Twyti parecia um homem enrugado, com olhar atormentado e uma expressão
melancólica no rosto. Durante toda sua vida fora obrigado a perseguir os mais variados animais
para a mesa real e, quando os caçava, a esquartejá-los corretamente. Era mais que um meio
açougueiro. Tinha que saber que partes os cães deviam comer e que partes dar a seus assistentes.
Tinha que cortar tudo bonito, deixando duas vértebras na cauda para fazer o lombo atraente, e
quase desde quando podia se lembrar tinha estado ou perseguindo um cervo ou cortando-o em
pedaços.

Não gostava particularmente de fazer isso. Os cervos e corças em manadas, os javalis isolados, as
cabeças das raposas, a opulência das martas, os bandos de cabritos-monteses, as famílias de
texugos e as alcatéias de lobos — todos eram vistos por ele mais ou menos como algo que se
esfolava ou estripava e depois levava para casa para cozinhar. Podia-se conversar com ele sobre
ossos e esporões, sebo e gordura, excrementos e estéreos deste ou daquele jeito, mas ele era
apenas educado. Sabia que você estaria apenas exibindo seus conhecimentos daquelas palavras
que, para ele, eram parte de seu ofício. Você poderia falar de um enorme javali que quase o
destroçara no inverno passado, e ele apenas o observaria com o olhar distante. Fora atingido
dezesseis vezes por grandes javalis, e suas pernas tinham vergões brancos e brilhantes que se
estendiam até o torso. Enquanto você falava, ele continuaria cuidando do trabalho que o ocupava no
momento. Apenas uma coisa era capaz de mexer com o Mestre William Twyti. Verão ou inverno,
neve ou sol, ele galopava e corria atrás de javalis e cervos, e todo o tempo sua alma estava em
outro lugar. Mas ao mencionar lebre
para o Mestre Twyti, ele podia continuar galopando atrás do
maldito cervo que parecia ser seu objetivo, mas teria um olho por cima do ombro procurando o
bicho. Era a única coisa sobre a qual falava. Estava sempre sendo enviado para um castelo e outro,
por toda a Inglaterra, e enquanto estivesse ali os súditos locais o festejavam e mantinham sua taça
cheia, e lhe perguntavam sobre suas grandes caçadas. Ele respondia distraído e com monossílabos.


Mas se alguém mencionasse um bando de lebres, imediatamente ficava atento, e então batia a taça
no tampo da mesa e começava a discursar sobre as maravilhas desse assombroso animal,
declarando que nunca se podia prever exatamente seu comportamento, pois a mesma lebre podia
uma hora ser macho e na outra fêmea, e se tinha gordura se consumia e se roía, coisas que nenhum
animal da terra fazia, exceto ela.

Wart observou o grande homem em silêncio durante algum tempo e depois entrou outra vez em casa
para ver se havia alguma esperança de desjejum. De fato havia, pois todo o castelo passava pelo
mesmo tipo de excitação nervosa que o tirara da cama tão cedo, e até Merlin se vestira com
calções que iriam virar moda séculos mais tarde entre os guardas de universidade.

A caçada
de javalis era divertida. Nada parecida com o desentocar de texugos ou com a caçada à
raposa de hoje. Talvez a coisa mais parecida seja a caçada a coelhos com furões — salvo que se
usavam cães em vez de furões; a caça, em vez de um coelho, era de um javali, que podia facilmente
matar você e, em vez de uma espingarda, se carregava uma lança para javalis da qual sua vida
dependia. Em geral, não se caçavam javalis a cavalo. Talvez a razão para isso fosse porque a
estação de caça de javalis acontecia nos dois meses de inverno, quando a neve da Velha Inglaterra
era bem capaz de se embolar sob os cascos dos cavalos e fazer do galope coisa bem perigosa. O
resultado era que você ficava a pé, armado apenas com a lança, contra um adversário que pesava
muito mais e que podia destripá-lo de cima a baixo e jogar sua cabeça por cima das ameias. Só
havia uma regra na caçada de javali: agüentar. Se o javali atacasse, você tinha que abaixar um
joelho e virar a ponta da lança na direção do bicho. Tinha que segurar o cabo da lança com a mão
direita, apoiando-o no chão para agüentar o choque, enquanto estendia ao máximo a mão esquerda
com a ponta na direção do javali que atacava. A lâmina era afiada como uma navalha, e tinha uma
guarda — barra horizontal — a uns quarenta e cinco centímetros da ponta. Essa guarda evitava que
a lança entrasse mais de quarenta e cinco centímetros no peito do animal. Sem a guarda, um javali
atacando poderia ter ímpeto para chegar até o final da lança, mesmo que esta o atravessasse, e ferir

o caçador. Mas com a guarda o bicho parava na distância da lança, com quarenta e cinco
centímetros de aço dentro dele. Era nessa situação que você tinha que agüentar.
O bicho pesava entre noventa e cento e oitenta quilos, e seu único objetivo na vida era grunhir, se
arremessar e esquivar até conseguir chegar a seu atacante e mastigá-lo em pedacinhos, enquanto o
único objetivo do atacante era não deixar a lança cair, prendendo-a firmemente embaixo do braço,
até que alguém viesse liquidar o bicho de vez. Se conseguisse manter firme sua ponta da lança,
sabia que havia pelo menos o comprimento da lança entre eles, não importa quanto o javali
conseguisse arrastá-lo pela floresta. Se você refletir sobre isso, vai compreender a razão pela qual
todos os esportistas do castelo se levantaram cedo para a caçada e tomaram seu desjejum com certa
dose de emoções abafadas.

— Ah — disse Sir Grummore, roendo a costeleta de porco que tinha entre os dedos -, baixou a
tempo para o desjejum, hein?
— Sim, baixei — disse Wart.
— Bela manhã para caçar — disse Sir Grummore. — Está com a lança afiada, hein?

— Sim, estou — disse Wart. E foi até o aparador pegar também uma costeleta.
— Vamos, Pellinore — disse Sir Ector. — Coma alguns desses franguinhos aqui. Você ainda não
comeu nada esta manhã.
O Rei Pellinore disse:

— Acho que não, obrigado de qualquer forma. Acho que não estou lá muito bem esta manhã, quê?
Sir Grummore tirou o nariz de perto da costeleta e perguntou de repente:
— Nervos?
— Oh, não — exclamou o Rei Pellinore. — Oh, realmente não é nada disso, quê? Acho que tomei
algo ontem à noite que entrou em desacordo comigo.
— Bobagem, meu caro amigo — disse Sir Ector —, aproveite e coma uns franguinhos para manter
a força.
Serviu dois ou três capões ao desafortunado rei, e este sentou-se miseravelmente na ponta da mesa,
tentando engolir uns pedacinhos.

— Vai precisar disso lá pelo final do dia, ouso dizer — disse Sir Grummore, com boa intenção.
— Acha que sim?
— Sei que sim — disse Sir Grummore, e piscou para seu hospedeiro.
Wart notou que Sir Ector e Sir Grummore comiam com apetite exagerado. Achou que ele mesmo
não conseguiria comer mais que uma costeleta e, quanto a Kay, este tinha ficado longe da sala de
desjejum.

Quando terminou o desjejum, e Mestre Twyti foi consultado, a cavalgada da caçada dirigiu-se para

o ponto de encontro. Talvez os cães de caça parecessem — aos olhos de um mestre de caça de hoje
— uma matilha muito heterogênea. Havia uma meia dúzia de alãos brancos e negros, que pareciam
galgos com cabeça de buli terriers ou coisa pior. Esses, que eram os cães de caça especiais para
javalis, estavam com focinheiras por causa de sua ferocidade. Os gaze-hounds,
dos quais havia
dois, caso fossem necessários, na verdade não eram mais que galgos, segundo a terminologia
moderna, enquanto os lymers
eram uma espécie de cruzamento do sabujo e do perdigueiro
encarnado de hoje. Estes últimos estavam com co-leiras e eram conduzidos com cordas. Os
brachets
eram como os beagles, e trotavam ao lado do dono da maneira como os beagles sempre
trotaram, e que é encantadora.
Com os cães de caça iam as pessoas a pé. Merlin, com seus calções de correr, parecia Lord Baden-
Powell, exceto, é claro, que este não tinha barba. Sir Ector estava vestido com roupas de couro
"sensatas", não era considerado esportivo caçar de armadura — e caminhava ao lado de Mestre
Twyti, com aquela expressão de enfado importante que sempre foi usada por mestres caçadores.
Sir Grummore, logo atrás, arfava e perguntava a todos se tinham afiado suas lanças. O Rei
Pellinore ficara atrás com os aldeãos, achando que havia mais segurança onde havia mais gente.
Todos os aldeãos estavam ali, todas as almas masculinas da propriedade, desde Hob, o falcoeiro,
até o velho Wat sem nariz, todos os homens carregando uma lança ou um forcado ou uma foice


presa em um pedaço grosso de pau. Até mesmo algumas das jovens namoradeiras tinham vindo,
com cestas de provisões para os homens. Era realmente uma grande caçada.

Na borda da floresta chegou o último participante. Era um homem alto e distinto, vestido de verde,
e trazia um arco de dois metros.

—Bom dia, Senhor — ele cumprimentou, afavelmente, Sir Ector.

— Ah, sim — disse Sir Ector. — Sim, sim, bom dia, hein? Sim, bom dia.
Sir Ector levou o cavalheiro de verde para um lado e disse num sussurro tão alto que podia ser
escutado por todos.

— Pelo amor de Deus, meu caro amigo, seja cuidadoso. Este é o próprio caçador do Rei, e aqueles
outros dois são o Rei Pellinore e Sir Grummore. E bom você ser um bom sujeito, meu caro amigo,
e não diga nada controverso, está bem, meu velho? Vai ser um bom sujeito?
— Claro que sim — disse o homem, tranqüilizando-o —, mas acho que seria melhor se fôssemos
apresentados.
Sir Ector enrubesceu profundamente e chamou:

— Ah, Grummore, venha até aqui um momento, sim? Quero lhe apresentar um amigo meu, velho
chapa, um chapa chamado Wood, velho chapa. Wood com W, sabe, não com H. Sim, e este é o Rei
Pellinore. Mestre Wood, Rei Pellinore.
— Salve — disse o Rei Pellinore, que realmente não abandonava o hábito de falar assim quando
estava nervoso.
— Como está? — disse Sir Grummore. — Não é parente do Robin Hood, suponho?
— Oh, não, por nada — interrompeu rapidamente Sir Ector. — Dabliu, dois os e de no final, sabe,
como essa coisa com que fazem mobília, sabe, e lanças, e — bem, você sabe — lanças e
mobílias{3}.
— Como está
passando? — disse Robin.
— Salve — disse o Rei Pellinore.
— Bem — disse Sir Grummore -, é engraçado que os dois se vistam de verde.
— Sim, é engraçado, não é? — disse Sir Ector, ansioso. — Ele usa verde como luto por uma tia
que morreu ao cair de uma árvore.
—Desculpe-me, por favor — disse Sir Grummore, agastado por ter tocado num assunto delicado, e
tudo ficou bem.

— Agora, então, Sr. Wood — disse Sir Ector quando se recuperou. — Onde vamos fazer a
primeira tentativa?
Logo que essa questão foi colocada, Mestre Twyti foi envolvido na conversa, e seguiu-se uma
breve confabulação na qual todo tipo de palavras técnicas, como "bostas", foram usadas. Depois


houve uma longa caminhada pela floresta invernal, e a diversão começou.

Wart já não tinha a sensação de pânico que atacara seu estômago quando comia seu desjejum. O
exercício e o vento gelado tinham lhe dado alento, e agora seus olhos brilhavam quase tanto quanto
os cristais de gelo sob a luz branca do sol de inverno, e seu sangue disparava com a excitação da
caçada. Observava o treinador de cães que segurava as correias dos dois sabujos, e viu os cães
puxarem cada vez mais à medida que o covil do javali se aproximava. Observava como, um a um
até chegar nos gaze-hounds
— que não caçam pelo cheiro —, os vários cães de caça ficavam
inquietos e começavam a ganir com desejo. Notou que Robin parara e pegara uma bosta, que
entregou para Mestre Twyti, e então toda a cavalgada fez alto. Tinham chegado ao local perigoso.

Até esse momento a caçada de javali era igual à caçada de filhotes, no sentido de que se procurava
encurralar o animal. O objetivo da caçada era matar o javali o mais rapidamente possível. Wart
assumiu sua posição no círculo ao redor da cova do monstro, dobrou um joelho na neve e apoiou a
base de sua lança no chão, preparado para qualquer emergência. Sentiu o silêncio que caiu sobre o
grupo e viu Mestre Twyti acenar silenciosamente para o tratador soltar os lymers.
Imediatamente,
os dois sabujos mergulharam no refugio cercado pelos caçadores. Os cães corriam em silêncio.

Passaram cinco longos minutos nos quais nada aconteceu. Os corações trovejavam no peito dos que
estavam no círculo, e uma pequena veia ao lado de cada pescoço pulsava em harmonia com cada
coração. As cabeças viravam, rápidas, de um lado para o outro, cada homem avaliando seus
vizinhos, e o sopro da vida corria docemente com o vento norte, e cada um compreendeu como era
bela a vida que, em poucos segundos, uma presa fedorenta poderia arrancar de um ou outro deles,
caso as coisas dessem errado.

O javali não expressou sua fúria com a voz. Não houve confusão no refúgio nem latidos dos
sabujos. Apenas, a uns noventa metros de onde estava Wart, de repente apareceu uma criatura negra
parada na margem da clareira. Nem parecia ser um javali, pelo menos nos primeiros segundos em
que ficou ali parada. Surgira rápido demais para se parecer com alguma coisa. E estava atacando
Sir Grummore antes que Wart reconhecesse o que era.

A coisa negra disparou na neve branca, levantando pequenos flocos. Sir Grummore — também
parecendo negro contra a neve — levantou mais flocos ao dar um salto rápido e virar-se. Um tipo
de grunhido, mas nenhum barulho de queda, chegou claramente trazido pelo vento norte, e o javali
desapareceu. Quando este sumiu, mas não antes, Wart soube algumas coisas acerca dele — coisas
que não teve tempo de notar enquanto o javali estava ali. Lembrou-se da espessa crina de pêlos
duros espetados nas costas afiladas, o vislumbre de uma presa amarelada, as costelas
proeminentes, a cabeça baixa, e a chama vermelha de um olho porcino.

Sir Grummore levantou-se incólume, sacudindo a neve e pondo a culpa em sua lança. Viam-se
algumas gotas de sangue congelando na terra branca. Mestre Twyti levou o trompete aos lábios.
Quando as primeiras e excitantes notas ecoaram pela floresta, os alões foram soltos e todo o grupo
começou a se mover. Os lymers
que tinham levantado o javali — a palavra correta para desentocá-
lo — continuaram a persegui-lo, para recompensá-los pelo trabalho. Os brachets
davam o tom
musical. Os alões galopavam latindo pela neve. Todos começaram a gritar e a correr.


— Eia, eia! — gritavam os aldeões. — Vamos, vamos! Avante, Sir, avante!
— Busca, busca! — gritava ansioso Mestre Twyti. — Vamos, vamos, senhores, dêem espaço para
os cães, por favor.
— Olhe, olhe! — gritou o Rei Pellinore. — Alguém viu para que lado o bicho foi? As as cy avaunt,
cy as avaunt, as cy avauntl
— Agüenta firme, Pellinore! — gritou Sir Ector. — Cuidado com os cães, cuidado com os cães!
Sozinho você não consegue pegá-lo, sabe disso. Il est hault. Il est haulú
Til est ho ecoavam todos. Tilly-ho cantavam as árvores. Tally-ho murmuravam os distantes bancos
de neve, enquanto os galhos pesados, perturbados pelas vibrações, deixavam cair silenciosos e
brilhantes flocos de neve sobre a terra fofa.

Wart se viu correndo junto do Mestre Twyti.

Num certo sentido era como caçar lebres, só que acontecia numa floresta onde às vezes até se
mover era difícil. Tudo dependia da música dos cães de caça e das várias notas que o mestre
caçador entoava para anunciar onde estava e o que fazia. Sem eles, o grupo se perderia em dois
minutos — e mesmo com eles, metade se perdeu em três minutos.

Wart colou-se a Twyti como um carrapicho. Era capaz de se movimentar com tanta rapidez quanto

o caçador porque, apesar de este ter toda uma vida de experiência, Wart era menor e passava mais
facilmente pelos obstáculos e, ademais, tinha recebido lições da Donzela Marian. Notou que Robin
também mantinha o passo, mas logo os resmungos de Sir Ector e os balidos do Rei Pellinore
ficaram para trás. Sir Grummore desistira logo, depois de perder quase todo o fôlego com o ataque
do javali, e ficou bem atrás declarando que sua lança já não devia estar bem afiada. Kay ficou com
ele, para que não se perdesse. Os aldeões a pé logo se extraviaram por não entenderem as notas do
trompete. Merlin tinha rasgado as calças e parou para consertá-las com magia.
O sargento tinha inchado tanto o peito gritando o chamado de caça e dizendo para as pessoas para
que lado deviam ir que perdera por completo o sentido de orientação e chefiava um bando
desconsolado de aldeãos, em fila indiana e passo acelerado, na direção errada. Hob ainda estava
correndo.

— Busca, busca! — arquejava o caçador, dirigindo-se a Wart como se este fosse um sabujo. —
Não tão rápido, mestre, estão se desalinhando.

No momento em que falava, Wart notou que a música dos cães estava mais fraca e queixosa.

— Parem — disse Robin — ou vamos cair em cima dele. A música parou.
— Busca, busca! — gritou Mestre Twyti a plenos pulmões. — Em linha, oh-oh, oh-oh! — Volteou
o talabarte para a frente e, levando o trompete aos lábios, começou a tocar para reunir os cães.
Respondeu uma única nota, de um dos lymers.
— Oh-oh. Arere. Para trás — gritou o caçador.
A nota do lymer cresceu em confiança, falhou e depois elevou-se num ladrar forte.

— Oh-oh para trás! Aqui, ho! Amigo. Escute o valente Beau-mont! Aqui, aqui, espere, espere,
espere.
O lymer foi interrompido pelos latidos em tenor dos brachets. O ruído foi crescendo com o
trovejar sedento de sangue dos alões cobrindo as notas mais baixas.

— Eles cercaram o bicho — disse Twyti rapidamente, e os três humanos começaram novamente a
correr, enquanto o caçador tocava tu-tu-tu-ru-ru em encorajamento.
O terrível javali estava encurralado num aglomerado de arbustos. Encontrara refúgio perto do
tronco de uma árvore derrubada por alguma ventania, numa posição inexpugnável. Estava na
defensiva, com o beiço superior contorcido no rosnado. O sangue do golpe de Sir Grummore
brotava espesso entre as cerdas do lombo e descia pela perna, enquanto a baba da queixada caía na
neve tingida de vermelho e a derretia. Os olhinhos dardejavam em todas as direções. Os cães
estavam ao redor, latindo na sua cara, e Beaumont, com a espinha quebrada, retorcia-se a seus pés.
Não prestava mais atenção alguma ao cão, que já não podia lhe fazer mal. Estava furioso, excitado
e sanguinário.

— Oh-oh! — exclamou o caçador.
Avançou com a lança em riste à frente, e os cães, encorajados pelo mestre, avançaram com ele,
passo a passo.

A cena mudou tão de repente como um castelo de cartas caindo. O javali já não estava encurralado,
mas atacando Mestre Twyti. Quando atacou, os alões se aproximaram, mordendo-o ferozmente no
ombro, pescoço ou perna, de forma que o que apareceu diante do caçador não era um javali, e sim
um amontoado de animais. Ele não ousava usar a lança com medo de atingir os cães. O amontoado
avançou sem freio, como se os cães não contassem para nada. Twyti reverteu a lança, esperando
conter o ataque com o cabo, mas no momento em que fazia isso a batalha desabou em cima dele.
Ele saltou para trás, tropeçou numa raiz e a batalha o soterrou. Wart saltava ao redor, tentando usar
sua lança em desespero, mas não encontrava um lugar onde se atrevesse a enfiá-la. Robin, no
mesmo movimento, jogou de lado sua lança e desembainhou a espada, meteu-se no meio dos
rosnados, e calmamente puxou um alão pela perna. O cão não se soltava, mas havia espaço onde
seu corpo estivera. E ali ele enfiou a espada vagarosamente uma, duas e três vezes. Toda a
superestrutura começou a desabar, se recuperou um pouco, desabou outra vez, e caiu pesadamente
pelo lado direito. A caçada terminara.

Mestre Twyti puxou vagarosamente uma perna debaixo do javali, levantou-se, segurou o joelho
com uma das mãos e o moveu com cuidado em várias direções, assentiu consigo mesmo e esticou
as costas. Depois pegou sua lança e, sem dizer nada, arrastou-se até Beaumont. Ajoelhou-se a seu
lado e colocou a cabeça do cão no colo. Acariciou-a e disse:

— Escutem o Beaumont. Devagarzinho, Beaumont, mon amy. Oyez à Beaumont, o Valente. Busca,
le douce Beaumont, busca, busca.
Beaumont lambeu sua mão, mas não conseguiu sacudir a cauda. O caçador acenou para Robin, que
estava de pé, atrás, e fixou seus olhos nos do cão.


— Bom cão, Beaumont, o Valente, durma agora, meu velho amigo Beaumont, meu bom e velho cão.
A espada de Robin guiou Beaumont para fora deste mundo, para que corresse livre com Orion e
rolasse pelas estrelas.

Por um instante, Wart não gostou de estar olhando Mestre Twyti. Aquele homem estranho e rijo
como couro levantou-se sem dizer nada e chicoteou os cães para que soltassem o corpo do javali,
como estava acostumado a fazer. Colocou o trompete nos lábios e soprou sem tremer as quatro
longas notas do mort. Mas estava tocando as notas por uma razão diferente, e surpreendeu Wart
porque parecia estar chorando.

O toque do trompete fez a maioria dos extraviados chegar no dedo tempo. Hob já estava lá e Sir
Ector chegou em seguida, afastando os galhos com sua lança de javali, cheio de importância e
gritando:

— Muito bem, Twyti. Esplêndida caçada, muito. Assim é que se caça uma besta selvagem, é o que
digo. Quanto pesa?
Os outros foram chegando em grupos, o Rei Pellinore saltando de um lado para o outro e gritando:

— Tally-ho! Tally-ho! Tally-ho! — ignorando que a caçada tinha terminado. Quando lhe
informaram isso, parou e disse, com voz débil. — Tally o quê? — e depois ficou em silêncio.
Até a fila indiana do sargento acabou chegando, ainda em marcha forçada, e parou na clareira
enquanto o sargento lhes explicava com grande satisfação que se não fosse por ele, todos estariam
perdidos. Merlin apareceu segurando os calções pois não conseguira ajeitá-los com sua mágica. Sir
Grummore chegou coxeando com Kay, dizendo que fora uma das melhores caçadas que já vira,
apesar de não ter visto nada, e então a tarefa de "desmanche" do açougueiro pôde ser feita como
deveria.

Aqui houve um pouco de excitação. O Rei Pellinore, que não passara muito bem o dia inteiro,
cometeu o erro fatal de perguntar quando os cães receberiam sua parte em carniça. Ora, como todos
sabem, a carniça é uma recompensa de entranhas etc. que é dada aos cães sobre a pele da besta
morta (sur le quir), e, como todo mundo sabe, um javali morto não é esfolado. É estripado sem que
a pele seja tirada, e já que não a pele não foi tirada, não pode haver carniça. Todos sabemos que os
cães são recompensados com um fouail, ou mistura de intestinos e pão cozidos sobre uma fogueira
e, é claro, o pobre Rei Pellinore usara a palavra errada.

Assim, o Rei Pellinore foi curvado por cima da animal morto, no meio de muitos hurras, e o
monarca, que protestava, recebeu uma boa pranchada com a lâmina da espada de Sir Ector. O Rei,
então, saiu vagando pela floresta murmurando:

— Vocês são um bando de cafajestes mal-educados.
O javali foi esquartejado, os cães recompensados, e os aldeões que estavam por ali de pé,
conversando em grupos, pois se sentassem na neve iam se molhar, comeram as provisões que as
jovens tinham levado em cestos. Um pequeno barril de vinho, providencial-mente enviado por Sir
Ector, foi aberto, e todos puderam se servir. Os pés do javali foram atados, um pau enfiado entre
eles e dois homens levantaram o bicho nos ombros. William Twyti ficou atrás, e cortesmente


menosprezou a presa.

Nesse instante o Rei Pellinore reapareceu. Antes mesmo que o vissem, puderam escutar suas
pisadas nos galhos e os gritos:

— Vejam, vejam! Venham logo. Aconteceu uma coisa terrível! Surgiu dramaticamente na beira da
clareira, no momento em que sacudia um galho cuja carga era muito pesada e despejou quilos de
neve em sua cabeça. O Rei Pellinore nem prestou atenção. Saiu debaixo do monte de neve como se
não tivesse notado nada, ainda gritando:
— Olhem, olhem!
— O que é, Pellinore? — gritou Sir Ector.
— Oh, venham rápido! — gritou o Rei, e virando-se distraído, sumiu novamente na floresta.
— Será que ele está bem, você acha? — inquiriu Sir Ector.
— Temperamento excitável — disse Sir Grummore. — Muito.
— Melhor segui-lo e ver o que está fazendo.
O cortejo afastou-se lentamente na direção do Rei Pellinore, seguindo o rumo errático das pegadas
frescas na neve.

Não estavam preparados para o espetáculo que encontraram. No meio de uma moita de tojo morto
estava sentado o Rei Pellinore, com lágrimas escorrendo pelo rosto. No colo, tinha uma enorme
cabeça de serpente, que ele acariciava. Na outra ponta da cabeça de serpente havia um corpo
comprido e magro, amarelo e com manchas. No final do corpo havia umas coxas de leão que
terminavam nos cascos fendidos de um cervo.

— Pronto, pronto — dizia o Rei. — Eu não ia deixar você de vez. Era só porque queria dormir
numa cama de penas, só um pouquinho. Já estava voltando, honestamente que estava. Oh, por favor
não morra, Besta, e não me deixe sem um pouco do seu excremento.
Quando viu Sir Ector, o Rei assumiu o controle da situação. O desespero lhe deu autoridade.

— Ora vamos, Ector — exclamou. — Não fique aí parado como um bobo. Traga logo para cá
aquele barril de vinho.
Trouxeram o barril e deram um gole generoso para a Besta Gemente.

— Pobre criatura — disse, indignado, o Rei Pellinore. — Definhou, positivamente definhou de
desgosto porque ninguém se interessou mais por ela. Como pude ficar todo esse tempo com Sir
Grummore, sem nunca pensar na minha velha besta, é algo que realmente não sei como aconteceu.
Olhem estas costelas, vejam. Parecem as argolas de um barril. E deitada aí sozinha na neve, quase
sem vontade de viver.Vamos, Besta, veja se pode tomar outro gole disto. Vai lhe fazer bem.
— Esparramando-me num colchão de penas — acrescentou o monarca com remorso, olhando para
Sir Grummore — como... como um rim!
— Mas como... como você encontrou isso? — gaguejou Sir Grummore.

— Desabei em cima. E nada tenho que agradecer a vocês. Correndo como um bando de paspalhões
e batendo uns nos outros com as espadas. Topei com a besta aqui nesta moita de tojo, com neve acobrir-lhe todas as costas e lágrimas nos olhos e ninguém que cuidasse dela nesse mundo enorme. É
o que acontece quando não se leva uma vida regular. Antes, estava tudo bem. Levantávamos na
mesma hora, fazíamos a busca em horas regulares e íamos para a cama às dez e meia. Agora, vejam
só! Está completamente destroçada e será culpa sua se ela morrer. Sua e de sua cama.
— Mas Pellinore! — disse Sir Grummore.
— Cale a boca — respondeu de imediato o Rei. — Não fique aí balindo como um idiota, homem.
Faça alguma coisa. Ache outra vara para que possamos levar a velha Gemente até a casa. Vamos,
Ector, perdeu o juízo? Temos que levá-la para casa e colocá-la diante do fogo da cozinha. Mande
alguém preparar pão e leite. E quanto a você, Twyti, ou seja lá como queira se chamar, pare de
brincar com esse trompete e corra na frente para preparar alguns cobertores aquecidos.
— Quando chegarmos em casa — concluiu o Rei Pellinore —, a primeira coisa que faremos será
lhe dar uma refeição nutritiva, e então, se já estiver bem pela manhã, vou lhe dar umas duas horas
de vantagem e, depois, a viver novamente a velha vida. Que tal isso, Gemente, o quê? Venha cá,
Robin Hood ou seja lá quem você for — pode achar que eu não sei, mas eu sei —, pare de ficar
apoiado nesse arco com esse olhar de pedaço de pau negligente. Mexa-se, homem, e chame esse
sargento cheio de músculos para ajudá-lo a carregar a Besta. Vamos, vamos, levantem devagar.
Vamos, seus engraçadinhos, e cuidado para não tropeçar. Camas de penas e carniças, realmente.
Muita infantilidade. Vamos, avancem, prossigam, passo adiante, marchem! Cabeças tontas é o que
eu digo.
— E quanto a você, Grummore — acrescentou o Rei, mesmo depois de ter concluído —, pode se
enrolar na sua cama e se sufocar por lá.

XVII


— Acho que já é tempo — disse Merlin, olhando-o uma tarde por cima dos óculos — de você ter
outra dose de educação. Isto é, o Tempo passa.
Era uma tarde no começo da primavera e tudo o que se via da janela parecia belo. O manto do
inverno desaparecera, levando consigo Sir Grummore, Mestre Twyti, Rei Pellinore e a Besta
Gemente, esta tendo ressuscitado graças à influência dos bons cuidados e de pão e leite. Saltara
para a neve com todos os sinais de gratidão, para ser seguida, duas horas mais tarde, pelo excitado
Rei, e os observadores da muralha puderam ver como ela confundiu suas pegadas na neve de
maneira muito engenhosa, ao alcançar os limites da floresta. Corria para trás, dava saltos de meio
metro para o lado, apagando as pegadas com a cauda, trepando em ramos horizontais e executando
outros truques com satisfação evidente. Também viram o Rei Pellinore — que obedientemente tinha
ficado com os olhos fechados e contado até dez mil enquanto isso tudo acontecia — ficar muito
confuso quando chegou ao ponto difícil e, finalmente, galopar na direção errada arrastando o cão
atrás de si. Era uma tarde adorável. Pela janela da sala de aula, os lariços da floresta distante já
tinham atingido todo seu verdor resplandecente, a terra faiscava e inchava com milhões de gotas, e
todos os pássaros do mundo voltavam para casa para namorar e cantar. No final da tarde, os
aldeãos iam para suas hortas plantar feijões, e parecia que, com todas essas ocorrências, e com as
lesmas (coincidentemente com os feijões), os brotos, os carneiros e os pássaros, todas as coisas
vivas tinham conspirado para aparecer.

— O que você gostaria de ser? — perguntou Merlin.
Wart olhou pela janela, escutando o canto dobrado dos tordos no sereno.

— Uma vez já fui pássaro, mas apenas na gaiola, e nunca tive oportunidade de voar — disse. —
Ainda que não se deva ter a mesma educação duas vezes, você não acha que eu poderia ser um
pássaro para aprender isso?

Ele fora pego pela mania de pássaros que ataca as pessoas sensíveis na primavera, e que às vezes
leva até a excessos, como fazer criação de pássaros.

— Não vejo nenhuma razão porque não — disse o mágico. — Por que não tentar isso hoje à noite?
— Mas os pássaros dormem de noite.
— É a melhor oportunidade para observá-los sem que saiam voando. Você poderia ir com

Arquimedes esta noite, e ele lhe contaria sobre eles.

— Você iria comigo, Arquimedes?
— Adoraria — disse a coruja. — Estou mesmo querendo dar um passeio.
— Você sabe porque os pássaros cantam, ou como? — perguntou Wart, pensando no tordo. — É
uma linguagem?
— Claro que é uma linguagem. Não é uma grande linguagem como a fala humana, mas é extensa.
— Gilbert White observa, ou vai observar, como você queira colocar — disse Merlin —, que "a
linguagem dos pássaros é muito antiga e, como outras formas antigas de falar, pouco é dito, mas
muito é sugerido". Ele também diz em algum lugar que "as gralhas, na estação de reprodução, às
vezes tentam cantar, na alegria de seus corações, mas sem grande sucesso".
— Gosto das gralhas — disse Wart. — É engraçado, mas acho que são meus pássaros favoritos.
— Por quê? — perguntou Arquimedes.
— Bem, gosto delas. Gosto da sua insolência.
— Pais negligentes, filhos atrevidos e insolentes — citou Merlin, que estava com espírito de
professor.
— É verdade — disse Arquimedes, refletindo — que todos os corvídeos têm um senso de humor
distorcido.
Wart explicou:

— Adoro a maneira como elas gostam de voar. Não voam simplesmente, como os outros pássaros,
mas voam com prazer. É adorável vê-las voar em bando de volta ao ninho, à noite, todas alegres e
mexendo umas com as outras de maneira rude. As vezes viram de costas e desabam, só para
parecer ridículas, ou então porque se esqueceram de que estão voando e começam a se coçar com
força para se livrar das pulgas, sem pensar.
— São pássaros inteligentes, a despeito do humor rasteiro. — disse Arquimedes. — São pássaros
que têm parlamentos, sabe, e um sistema social.
— Quer dizer que têm leis?
— Claro que têm leis. Elas se reúnem no outono, num campo, para debater o assunto.
— Que tipo de leis?
— Ah, bem, leis sobre a defesa da ninhada, casamento e coisas assim. Não é permitido casar fora
da ninhada e, se uma perde o sendo da decência, e traz uma virgem preta de uma comunidade
vizinha, todo mundo se reúne para destruir seu ninho tão logo seja construído. Mandam o
transgressor para os subúrbios, sabe, e é por isso que todo bando de gralhas têm ninhos espalhados,
várias árvores distantes.
— Outra coisa de que gosto nelas é sua disposição — disse Wart. — Podem ser ladras e
brincalhonas, e brigam e maltratam umas às outras e se provocam aos gritos, mas têm a coragem de

atacar os inimigos em chusma. Acho que é preciso coragem para atacar uma águia, mesmo estando
em bando. E mesmo quando estão nisso, fazem palhaçadas.

— São uma chusma — disse Arquimedes, com soberba. — Você disse a palavra certa.
— Bem, pelo menos é uma chusma de pândegos — disse Wart —, e eu gosto delas.
— E qual é o seu pássaro favorito, Archimedes? — Merlin perguntou educadamente, para manter a
paz.
A coruja pensou um pouco sobre o assunto e depois disse:

— Bem, é um pergunta complicada. É um pouco como perguntar qual o seu livro preferido. No
geral, contudo, acho que devo preferir o pombo.
— Para comer?
— Estava deixando de fora esse aspecto — disse a coruja em tom civilizado. — Na verdade, o
pombo é o prato favorito de todos os predadores grandes o suficiente para pegá-los, mas eu
pensava apenas nos hábitos domésticos.
— Descreva-os.
— O pombo é uma espécie de Quaker — disse Arquimedes. — Veste-se de cinza. Filho amoroso,
amante fiel, pai prudente e sabe, como todos os filósofos, que a mão do homem está contra si.
Aprendeu durante séculos a arte de escapar. Nenhum pombo jamais cometeu um ato de agressão ou
se voltou contra seus perseguidores: mas nenhum outro pássaro, da mesma maneira, tem tantas
habilidades escapar. Aprendeu a pular de uma árvore do lado contrário ao homem e a voar tão
baixo para que haja uma sebe entre eles. Nenhum outro pássaro consegue estimar tão bem as
distâncias. Vigilante empoado, oloroso, de penas frouxas — o que faz os cães não gostarem de tê-
los na boca — e protegidos contra o chumbo por essas mesmas penas, os pombos arrumam uns para
os outros com verdadeiro amor, alimentam com
muita solicitude seus filhos habilmente escondidos,
e fogem dos agressores com verdadeira filosofia — uma raça de amantes da paz em permanentes
caravanas em vagões com toldos para fugir dos índios. São individualistas adoráveis que
sobrevivem às forças do massacre apenas com a sabedoria da fuga.
— Sabe que um casal de pombos sempre se empoleira de costas um para o outro, para que possam
vigiar nas duas direções? — acrescentou Arquimedes.
— Sei que nossos pombos domésticos fazem assim — disse Wart. — Acho que a razão por que as
pessoas estão sempre tentando matá-los é que eles são muito gananciosos. O que eu gosto nos
pombos selvagens é como batem as asas, como sobem e fecham as asas e mergulham, em seus vôos
de namoro, e até parecem voar como pica-paus.
— Não parecem muito com os pica-paus — disse Merlin.
— Não, não parecem — admitiu Wart.
— E qual o seu pássaro favorito? — perguntou Arquimedes, considerando que se deveria permitir
ao mestre a ocasião para se manifestar.

Merlin juntou os dedos como Sherlock Holmes e respondeu imediatamente.

— Prefiro o tentilhão. Meu amigo Lineu o chama de coeleb
ou pássaro solteiro. O bando tem o bom
senso de se separar no inverno, ficando todos os machos em um bando e todas as fêmeas em outro.
Assim, pelo menos nos meses de inverno, reina a perfeita paz entre eles.
— A conversa surgiu a partir da questão de se os pássaros podiam falar — observou Arquimedes.
— Outro amigo meu sustenta, ou irá sustentar — disse Merlin imediatamente, na sua voz mais
doutoral —, que a questão da linguagem dos pássaros parte da imitação. Aristóteles, você sabe,
também atribui a tragédia à imitação.
Arquimedes suspirou profundamente e observou em tom profético:

— E melhor mesmo você tirar isso do peito.
— É assim — disse Merlin. — O gavião-peneira, ou seu primo gavião-quiriquiri, mergulha sobre
um rato, e o pobre rato, trespassado pelas garras aguçadas, solta sua agonia em um só grito de
quíiiii!
Da próxima vez que o gavião vê um rato, sua própria alma grita quiii
em imitação. Outro
gavião, talvez sua própria companheira, atende a esse grito, e depois de alguns milhões de anos
todos os gaviões-peneiras chamam uns aos outros com seu grito individual de quii-quíii.
— Você não pode construir toda essa história a partir de um pássaro — disse Wart.
— Nem quero. Os falcões gritam como suas presas. O pato selvagem grasna como os sapos que
come, e os picanços também, como criaturas em desespero. Os melros e os tordos fazem um
estalido como as cascas de caracol que despedaçam. Os vários tentilhões fazem o ruído de
sementes quebrando e o pica-pau imita o bater na madeira que faz para tirar os insetos que come.
— Mas nenhum pássaro canta apenas uma nota!
— Não, claro que não. Os cantos de chamada surgem com a imitação, e depois os vários cantos de
pássaros se desenvolvem subindo e descendo a partir disso.
— Percebo — disse Arquimedes, friamente. — E quanto a mim?
— Bem, você sabe perfeitamente — disse Merlin — que o munsaranho sobre o qual vocês pulam
grita kwiik!
É por isso que os filhotes seus se chamam Kee-wick.
— E os velhos? — perguntou, sarcástico, Arquimedes.
— RUUU,
ruuu
— gritou Merlin, recusando-se a ceder. — É óbvio caro amigo. Depois de seu
primeiro inverno, é assim que faz o vento nas árvores ocas onde preferem dormir.
— Percebo — disse Arquimedes, mais friamente que nunca. — Desta vez, note-se, não se trata de
uma questão de presas.
— Ora, vamos — respondeu Merlin. — Existem outras coisas além daquilo que você come. Até
mesmo os pássaros de vez em quando bebem, por exemplo, ou se banham na água. São as notas
líquidas de um rio que escutamos no cantar de um papo-roxo.
— Parece então — disse Arquimedes — que não se trata apenas do que comemos, mas também do
que bebemos ou escutamos.

— E por que não?
A coruja disse resignadamente:
— Oh, bem.
— Acho a idéia interessante — disse Wart para encorajar seu tutor. — Mas como é que surge uma
linguagem a partir dessas imitações?
— No começo, eles repetem — disse Merlin —, e depois fazem variações. Vocês parecem não
perceber quanto significado reside no tom e na velocidade da voz. Suponha que eu diga "que belo
dia" assim simplesmente. Vocês responderiam, "sim, é mesmo". Mas seu eu dissesse, "que belo
dia" em um tom carinhoso, vocês poderiam me considerar uma pessoa simpática. Mas, de novo, se
eu dissesse "que belo dia", perdendo o fôlego, vocês poderiam procurar ver que bicho me mordeu
e me assustou. Foi assim que os pássaros desenvolveram sua linguagem.
Você se importaria em nos contar, já que sabe tanto sobre o assunto — disse Arquimedes —,
quantas coisas variadas nós pássaros somos capazes de expressar alterando a velocidade e a ênfase
das emissões de nossas notas de chamada?

— Ora, uma quantidade enorme de coisas. Você pode cantar kwiik
num tom carinhoso, se estiver
apaixonado, ou kwiik
com raiva, como desafio ou ódio. Pode cantar numa escala crescente, como
um grito de chamada, se não souber onde está seu parceiro, ou para chamar a atenção deste se
estranhos estiverem por perto do ninho. Ao se aproximar do velho ninho durante o inverno pode
cantar kwiik
apaixonadamente, um reflexo condicionado dos prazeres que já desfrutou lá dentro, e
se eu me aproximar de repente, você pode gritar kwiik-kwiik-kwiik
como um alarme sonoro.
— Para falar sobre reflexos condicionados — falou Arquimedes, azedo —, prefiro olhar para os
ratos.
— E pode. E quando encontrar um, posso afirmar que você vai fazer outro som característico das
corujas, embora nem sempre mencionado nos livros de ornitologia. Refiro-me ao ruído tak
ou tsi,
que os seres humanos chamam de estalar os lábios.
— E o que se supõe que esse som imita?
— Obviamente o ruído dos ossos do rato quebrando-se.
— Você é um professor esperto — disse Arquimedes —, e quanto ao que diz respeito às pobres
corujas, vamos deixar morrer o assunto. Tudo o que posso dizer a partir de minha experiência
pessoal é que a coisa não é bem assim. O chapim pode dizer não apenas que está em perigo, mas
também qual o tipo de perigo. Pode dizer "Cuidado com o gato", ou "Olha lá o falcão", ou
"Cuidado com a coruja marrom" tão claramente como o ABC.
— Não nego isso — disse Merlin. — Só estou falando sobre as origens da linguagem. Suponha que
você tente me dizer qual a canção de algum pássaro que não tenha sido originalmente uma
imitação?
— O bacurau — disse Wart.

— O zumbido das asas das abelhas — respondeu imediatamente seu tutor.
— O rouxinol — gritou Arquimedes, desesperado.
— Ah — disse Merlin, reclinando-se em sua confortável poltrona —, agora devemos imitar o canto
da alma de nossa adorada Proserpina, espreguiçando-se para despertar em sua essência líquida.
— Tiriu — disse Wart, suavemente.
— Piiu — acrescentou, baixinho, a coruja.
— Música! — concluiu o necromante em êxtase, incapaz de sequer começar uma pequena imitação.
— Olá — disse Kay abrindo a porta da sala de aula. — Desculpem o atraso para a aula de
geografia. Estava tentando flechar alguns passarinhos com minha besta. Olhem, flechei um tordo.

XVIII


Wart estava deitado, mas desperto como lhe fora dito que ficasse. Tinha que esperar até Kay
adormecer, e então Arquimedes iria lhe levar a magia de Merlin. Estava deitado debaixo da grande
manta de pele de urso e olhava pelas janelas as estrelas da primavera, já não geladas e metálicas,
mas como se tivessem sido recém-lavadas e inchado com a umidade. Era uma noite adorável, sem
chuva ou nuvens. O céu entre as estrelas era do veludo mais profundo e carregado. Emolduradas
pela grossa janela oeste, Alderbarã e Betelgeuse competiam com Sírio acima do horizonte, a
estrela-cão-de-caça olhava para seu mestre Orion, que ainda não se erguera no horizonte. Pela
janela entrava também a fragrância das flores que desabrochavam, pois as groselhas e cerejas
selvagens, as ameixas e o pilriteiro já tinham florescido, e não menos que cinco rouxinóis
disputavam um concurso de beleza ao alcance do ouvido perto do caramanchão e das árvores que
assomavam.

Wart estava deitado de costas, com a pele de urso meio jogada Para o lado e as mãos cruzadas
atrás da cabeça. Estava bonito demais para que dormisse, e temperado demais para a coberta.
Observava as estrelas numa espécie de transe. Logo já seria verão, quando poderia dormir nas
ameias e observar as estrelas flutuando tão perto do seu rosto como se fossem mariposas — e, pelo
menos na Via Láctea, como se fossem pólen de mariposas. Ao mesmo tempo, estariam tão distantes
que pensamentos inexprimíveis de espaço e eternidade se embaralhariam no seu peito anelante, e
ele se imaginaria caindo cada vez mais para cima entre elas, nunca as alcançando, nunca chegando
ao fim, tudo deixando e perdendo na velocidade tranqüila do espaço.

Dormia a sono solto quando Arquimedes veio chamá-lo.

— Coma isso — disse a coruja, e entregou-lhe um rato morto.
Wart sentia-se tão estranho que pegou a coisa peluda sem protestos e a atirou na boca sem nenhum
pressentimento de que seria desagradável. Assim, não se surpreendeu quando o bocado revelou-se
excelente, com um gosto frutado, como se estivesse comendo um pêssego com a casca, ainda que,
naturalmente, a casca do pêssego não fosse tão saborosa como a do rato.

— Agora é melhor sairmos voando — disse a coruja. — Basta dar um pulo até o peitoril da janela,
para que se acostume antes de decolarmos.
Wart pulou para o peitoril e automaticamente deu um impulso extra com suas asas, tal como quem
salta sacode os braços. Aterrissou no peitoril com um baque, como as corujas costumam fazer, não


conseguiu parar a tempo e tropeçou direto para fora da janela.

"Assim", pensou alegremente consigo mesmo, "é que acabo quebrando meu pescoço".

Era curioso, mas não estava levando a vida seriamente. Percebeu as muralhas do castelo passando
como um raio por ele, e o chão e o fosso como se nadando para cima. Balançou as asas e o chão
afundou novamente, como a água escorrendo por um vazamento. Em um segundo aquela batida das
asas perdeu o efeito, e o chão começou a subir de novo. Bateu novamente as asas. Era estranho
avançar assim, com a terra subindo e descendo debaixo dele, no profundo silêncio de suas asas de
penugem franjada.

— Pelo amor de Deus — ofegou Arquimedes, balançando no escuro a seu lado —, para de voar
como um pica-pau. Qualquer um podia confundi-lo com uma corujinha-buraqueira, se essas
criaturas já tivessem sido importadas. O que você está fazendo é acelerar a velocidade de vôo com
uma batida da asa. Com essa batida você sobe, mas depois perde a velocidade de vôo e começar aentrar em estol. Então, você dá outra batida e reverte a queda, subindo de novo. É uma confusão se
manter ao seu lado.
— Bem — disse Wart, descuidado —, se parar de fazer isso vou me esborrachar de uma vez.
— Idiota — disse a coruja. — Balance as asas lentamente o tempo todo, como eu, em vez de ficar
dando esses pulos com elas.
Wart fez o que lhe foi dito e ficou surpreso ao descobrir que a terra ficara estável e se movia por
baixo dele sem oscilação, numa passada regular. Nem sentia que estava se movendo.

— Assim é melhor.
— Como tudo parece estranho — observou o menino com algum espanto, agora que tinha tempo de
olhar ao redor.
E, realmente, o mundo parecia estranho. De certa forma, a melhor descrição seria dizer que se
parecia com o negativo de uma fotografia, pois ele via um raio além do espectro visível aos olhos
humanos. Uma câmara infravermelha tira fotografias no escuro, quando não podemos ver, e também
tira fotografias à luz do dia. As corujas são assim, portanto não é verdade que só possam ver de
noite. Vêem igualmente bem de dia, só que têm a vantagem de também enxergar bastante bem à
noite. Assim, preferem naturalmente caçar nessas horas, quando as outras criaturas estão mais à sua
mercê. Para Wart, as árvores verdes pareceriam esbranquiçadas à luz do dia, como se estivessem
cobertas com a florescência de maçãs, e agora, à noite, tudo tinha o mesmo tipo diferente de
aparência. Era como voar no lusco-fusco que reduzia tudo a sombras da mesma cor, e, tal como no
lusco-fusco, havia uma quantidade considerável de escuridão.

— Está gostando? — perguntou a coruja.
— Muito. Sabe, quando fui um peixe, havia partes da água que eram mais frias ou quentes que
outras, e agora é a mesma coisa aqui no ar.
— A temperatura — disse Arquimedes — depende da vegetação do fundo. Arvores e ervas
provocam calor acima delas.

— Bem — disse Wart —, posso entender porque os répteis que desistiram de ser peixes decidiram
virar pássaros. Realmente é divertido.
— Você está começando a juntar as partes — notou Arquimedes. — Importa-se se nos sentarmos?
— E como fazer isso?
— É preciso entrar em estol. Isso significa que você deve se levantar até perder velocidade de vôo
e então, quando sentir que começa a cair, senta-se. Nunca reparou como os pássaros voam para
cima para se empoleirar? Não descem direto nos galhos, mas mergulham por baixo e sobem. No
final da subida, param e pousam.
— Mas os pássaros aterrissam também no chão. E os patos selvagens na água? Não podem subir
para sentar lá.
— Bem, é perfeitamente possível aterrissar em superfícies planas, porém é mais difícil. É preciso
deslizar em velocidade de estol o tempo todo e, então, aumentar a resistência ao ar curvando as
asas, abaixando as patas, cauda etc. Já deve ter reparado que poucos pássaros fazem isso com
graça. Observe como um corvo desaba e como o pato selvagem espalha água. Os que têm a asa
como uma concha, como a garça-real e o maçarico, parecem conseguir aterrissar melhor. Na
verdade, nós, corujas, não somos tão ruins nisso.
Para pessoas da província, que apenas conheciam o desmantelado campo de torneios do castelo
de Sir Ector, a cena que viram foi maravilhosa. [...] Em toda a volta da arena havia um inundo
de cores tão deslumbrantes e movimentadas e faiscantes que faziam a pessoa piscar os olhos. As



madeiras da tribuna de honra estavam pintadas de escarlate e branco. Os pavilhões de seda das
pessoas famosas, armados por todo lado, eram azul-celeste, verde, cor de açafrão e
quadriculados. As bandeiras e bandeirolas que flutuavam por todo lado ao vento brusco
agitavam-se com todas as cores do arco-íris...

— E os pássaros de asas compridas como o andorinhão, suponho que sejam os que fazem pior, já
que nem podem levantar de uma superfície plana.
— As razões são diferentes — disse Arquimedes —, mas o fato é verdadeiro. Mas temos que
conversar voando? Começo a ficar cansado.
— Eu também.
— As corujas gostam de pousar a cada cem metros.
Wart imitou Arquimedes disparando para o galho que tinham escolhido. Começou a cair justo
quando estava em cima dele, agarrou o galho com os pés peludos no último momento, balançou
para trás e para a frente duas vezes, e viu que tinha pousado com sucesso. Dobrou as asas.

Enquanto Wart sentava-se quieto admirando a paisagem, seu amigo começou a fazer uma
conferência sobre o vôo dos pássaros. Contou como, apesar de a andorinha ser um voador tão bom
que podia dormir voando a noite inteira, e embora o próprio Wart admirasse a maneira como as
gralhas se divertiam com seus vôos, o verdadeiro aeronauta das camadas mais baixas era o
maçarico. Explicou como os maçaricos se divertiam com acrobacias aéreas, e faziam figuras
espetaculares como mergulhos em parafusos, voltas em queda e espirais ascendentes pela simples
graça da coisa. Eram as únicas aves que tinham prática em deslizar do alto para aterrissar —
exceto ocasionalmente o mais velho, alegre e mais belo de todos os aeronautas conscientes, o
corvo. Wart prestou pouca ou nenhuma atenção à conferência e, em vez disso, acostumava os olhos
com as estranhas tonalidades da luz, e observava Arquimedes pelo canto de um deles. Pois
Arquimedes, enquanto falava, buscava distraidamente seu jantar. Essa busca era uma cena estranha.

O pião que está girando e começa a perder velocidade, começa vagarosamente a fazer círculos com
a extremidade de cima antes de cair. A ponta debaixo do pião continua no mesmo lugar, mas a
ponta de cima faz círculos cada vez maiores quando vai chegando o final. Era isso que Arquimedes
distraidamente fazia. Seus pés permaneciam parados, mas ele movia a parte superior do corpo,
girando e girando, como alguém no cinema tentando ver por detrás de uma mulher gorda, sem ter
certeza de que lado conseguiria a melhor visão. Como ele podia girar quase completamente sua
cabeça em cima dos ombros, pode-se imaginar que valia a pena observar essa palhaçada.

— Que é que você está fazendo? — perguntou Wart.
No momento em que perguntou, Arquimedes desapareceu. Primeiro havia uma coruja falando sobre
os maçaricos, e depois não havia mais coruja. Só, bem abaixo de Wart, escutou-se um baque e uma
mexida nas folhas, quando o torpedo aéreo voou direto no meio de uma moita, sem levar em conta
os obstáculos.


Em um minuto a coruja estava sentada de volta a seu lado no galho, degustando distraidamente um
pardal morto.

— Posso fazer isso? — perguntou Wart, mostrando uma inclinação sanguinária.
— Para falar a verdade — disse Arquimedes, depois de mastigar seu bocado —, não pode. O rato
mágico que o transformou numa coruja é o suficiente para você — que, afinal, passou o dia
comendo como um humano —, e as corujas não matam por prazer. Além disso, espera-se que eu
esteja trazendo você aqui para educá-lo e, logo que terminar meu lanche, é isso que faremos.
— Aonde você vai me levar?
Arquimedes terminou de comer o pardal, limpou delicadamente o bico na folhagem, e virou os
olhos completamente para Wart. Esses olhos grandes e redondos tinham, como expressou um
famoso escritor, uma floração de luz como a floração púrpura em um cacho de uva.

— Agora que você aprendeu a voar — disse —, Merlin quer que experimente os Gansos
Selvagens.
O lugar onde se encontrou era absolutamente liso. No mundo humano raramente vemos superfícies
lisas, pois as árvores e casas e sebes dão um perfil ondulado à paisagem. Mesmo a grama estende a
miríade de suas lâminas. Mas aqui, no ventre da noite, a lama molhada, ilimitada, era tão lisa
quanto um pudim negro. Se fosse areia molhada, ainda assim teria aquelas pequenas marcas de
ondas, como o palato da boca.

Nessa enorme vastidão lisa, vivia um elemento — o vento. Pois o vento era um elemento. Era uma
dimensão, um poder da escuridão. No mundo humano, o vento vem de algum lugar e vai para outro
e, nessa caminhada, passa pelos lugares — árvores ou ruas ou cercas-vivas. Este vento vinha de
lugar nenhum. Horizontal, infinito, sem ruído, exceto por uma ressonância tangível, seu peso
dimensional assombroso se estendia pela lama. Podia-se traçar nele uma linha com uma régua. A
titânica linha cinza era inamovível e sólida. Podia-se pendurar um guarda-chuva ali, e este ficaria
pendurado.

Wart, rosto voltado para esse vento, sentia-se como não criado. Exceto pela solidez molhada sob
seus pés palmípedes, vivia no nada — um nada sólido, como o caos. Suas sensações eram as de um
ponto geométrico, existindo misteriosamente na menor distância entre dois pontos; ou como uma
linha desenhada numa superfície plana que tivesse comprimento, largura, mas nenhuma magnitude.
Nenhuma magnitude! Era a própria essência da magnitude. Era energia, corrente, força, direção,
uma torrente constante do mundo em limbo.

Fronteiras tinham sido colocadas nesse purgatório profano. Longe, ao leste, talvez a uns dois
quilômetros de distância, havia uma inquebrantável muralha de som. Oscilava um pouco, parecendo
se expandir e contrair, mas era sólida. Era ameaçadora, desejosa vitima — pois era o oceano
imenso e implacável.

Cerca de uns três quilômetros a oeste havia três pontos de luz formando um triângulo. Eram as
fracas lamparinas de cabanas de pescadores, que tinham se levantado cedo para pegar a maré nos
canais complicados do pântano de sal. Suas águas às vezes corriam na direção contrária à do


oceano. Essas eram as características completas de seu mundo — o ruído do mar e essas três
pequenas luzes: escuridão, planura, vastidão e umidade; e, no golfo da noite, a corrente do golfo de
vento.

Quando a luz do dia começou a aparecer, o menino descobriu, por premonição, que estava no meio
de uma multidão de pessoas como ele. Estavam pousados na lama, que agora começava a ser
perturbada pelo mar raivoso, baixo, que retornava, ou então já estavam correndo pela água,
despertados por ela, mas fora da perturbação da arrebentação. Os que estavam pousados eram
grande chaleiras, os bicos enfiados debaixo das asas. Os que nadavam, às vezes mergulhavam as
cabeças e as sacudiam. Alguns, caminhando pela lama, levantavam-se e sacudiam vigorosamente as
asas. O silêncio profundo era quebrado pelo tagarelar de uma conversa. Havia cerca de
quatrocentos deles na vizinhança cinzenta — criaturas muito bonitas, os Gansos Selvagens de testa
branca, os quais, uma vez vistos de perto, homem algum jamais esqueceria.

Muito antes de o Sol aparecer, todos já se preparavam para o vôo. Grupos familiares constituídos
no ano anterior iam se reunindo em bandos, e esses bandos por sua vez se uniam a outros,
possivelmente sob o comando de um avô, ou então de algum líder proeminente do bando. Quando
os grupos se completaram, surgia um leve tom de excitação nas falas. Começavam a mover as
cabeças de um lado para o outro, às sacudidelas. Então,,voltando-se para o vento, de repente
estavam todos voando juntos, quatorze ou quarenta de uma vez, com as amplas asas escavando a
escuridão e um grito de triunfo nas gargantas. Depois, giravam, subindo rapidamente, e
desapareciam de vista. Vinte metros acima e já desapareciam na escuridão. As primeiras saídas
não vocalizavam muito. Tendiam a ser taciturnos antes de o Sol nascer, fazendo apenas
observações ocasionais, ou gritando seu aviso de alarme de uma nota só ao perceberem alguma
ameaça. Escutando o aviso, todos subiam verticalmente para os céus.

Wart começou a sentir-se incomodado. Os esquadrões nas sombras ao seu redor, muito próximos a
ele, largando a cada minuto, o contagiavam. Começou a ficar inquieto e a querer seguir o exemplo
deles, mas estava acanhado. Talvez os grupos familiares, pensou, se ressentissem com sua intrusão.
E não queria voar sozinho. Queria se juntar e desfrutar do exercício do vôo matinal, que
evidentemente era um prazer. Havia camaradagem, disciplina livre e joie de vivre.

Quando o ganso que estava a seu lado estendeu as asas e saltou, ele automaticamente fez o mesmo.
Uns oito dos que estavam perto tinham batido os bicos e ele os imitara como se aquilo fosse
contagioso, e agora, com os mesmos oito, se viu asa a asa subindo horizontalmente pelo ar. No
momento em que deixou a terra, o vento tinha desaparecido. Sua agitação e brutalidade sumiram,
como se cortada por uma faca. Wart estava dentro dele, e em paz.

Os oito gansos se estenderam em formação de linha, com espaços regulares entre si, ele no final.
Tomaram o rumo leste, onde haviam estado as luzes fracas e agora, diante deles, a bola do sol
começava a aparecer. Uma explosão de laranja-vermelho rompeu a escuridão do banco de nuvens
para além da terra. O resplendor se espalhou, o pântano salgado tornando-se cada vez mais visível
abaixo. Ele o via como uma charneca ou pântano de características indefinidas que se tornara
marítimo por acidente — suas urzes, ainda parecendo urzes, tendo se associado com algas marinhas
até se tornarem urzes salgadas e encharcadas, com frondes escorregadias.


Os riachos que deviam correr pela charneca eram de água do mar sobre lama azulada. Havia redes
compridas aqui e ali, levantadas em postes, nas quais gansos distraídos podiam se chocar. Esses,
ele agora se dava conta, devem ter sido a origem dos avisos. Dois ou três marrecos pendiam de
uma delas, e bem longe, a leste, um homem que parecia uma mosca laborava em cima da lama, com
diminuta persistência, para encher sua bolsa.

O Sol, quando se levantou, tingiu de chamas o mercúrio dos riachos e a própria lama brilhante. Os
maçaricos, que piavam suas queixas fúnebres desde muito antes de a luz aparecer, saíram voando
do meio das ervas daninhas. Os patos selvagens, que tinham dormido na água, chegavam piando
suas notas duplas, como os silvos de um foguetinho. Os marrecos, penosamente, levantavam vôo da
terra, contra o vento. As narcejas corriam e se acotovelavam como camundongos. Uma nuvem de
pequenas narcejas do norte, mais compactas que os estorninhos, girava no ar com o ruído de um
trem. Aos gritos animados, a guarda negra dos corvos subiu dos pinheiros nas dunas. Pássaros
costeiros de todos os tipos povoavam a linha da maré, enchendo-a de atividade e beleza.

O alvorecer, o alvorecer marinho e a maestria do vôo coordenado tinham beleza tão intensa que o
menino quis cantar. Queria cantar um coro à vida e, já que mil gansos estavam ao seu lado no ar,
não teve que esperar muito. As linhas dessas criaturas, ondulando como fumaça nos céus ao saudar

o nascer do sol, cantavam e riam ao mesmo tempo. Cada esquadrão tinha uma voz diferente, alguns
na pândega, outros triunfantes, outros sentimentais ou alegres.
A abóbada da alvorada se enchia de arautos, e isso é o que cantavam:

Tu, mundo que gira, deslizando sob nossas asas aladas,
Levanta o venerável sol para saudar os favoritos da alvorada.
Veja, em cada peito o escarlate e o vermelhão,
Escuta, de cada garganta o clarim e o carrilhão.
Escuta as selvagens linhas em formações vibrantes,
Trompetes e caçadores celestiais, corcéis da aurora brilhante.
Livre, livre; longe e longe; e belo em asa ondulante,
Chega o ganso de testa branca com seu som cantante.


Wart estava em um campo comum, em plena luz do dia. Seus companheiros de vôo pastavam à sua
volta, arrancando a relva com puxões laterais dos bicos pequenos e flexíveis, inclinando os
pescoços em voltas abruptas, bem diferentes das curvas graciosas do cisne. Sempre, enquanto se
alimentavam, um deles ficava de guarda, o pescoço levantado como se fosse uma cobra. Tinham se
acasalado nos meses de inverno, ou então nos invernos anteriores, assim tinham a tendência de se
alimentar aos pares dentro da família e do esquadrão. A jovem fêmea, sua vizinha na planura de
lama, estava em seu primeiro ano. Mantinha um olhar inteligente em sua direção.

Observando-a cautelosamente, ele notou sua compleição compacta e roliça e um conjunto de sulcos
no pescoço. Esses sulcos, ele verificou com o canto dos olhos, eram o resultado de uma diferença
na plumagem. As penas eram côncavas, o que separava uma das outras, formando uma textura de


cristas que ele achou graciosa.
Naquele instante a jovem gansa deu-lhe um empurrão com o bico. Ela estava de sentinela.


— Agora é a sua vez — disse, abaixou a cabeça sem esperar resposta e, no movimento, começou a
pastar. Para se alimentar, ela saiu de perto dele.
Ele ficou de sentinela. Mas não sabia o que estava vigiando, nem conseguia perceber inimigo
algum, só as moitas de capim e seus companheiros bicando. Mas não estava chateado de ficar de
sentinela para eles.

— O que você está fazendo? — ela perguntou, passando por ele depois de uma meia hora.
— Estou de guarda.
— Então, continue — ela disse com um risinho, ou seria um grasnido? — Você é bobo.
— Por quê?
— Você sabe.
— Honestamente — ele disse. — Não sei. Estou agindo errado? Não compreendo.
— Bique o seguinte. Você já está aí pelo menos o dobro do tempo que lhe toca.
Fez como ela tinha dito, e o ganso adiante dele assumiu o posto, e então ele foi comer ao lado dela.
Eles mordiscavam, observando um ao outro com os olhos redondos.

— Você acha que eu sou estúpido — disse ele timidamente, confessando pela primeira vez a um
animal o segredo de sua verdadeira espécie —, mas isso é porque não sou um ganso. Nasci
humano. Na verdade este é meu primeiro vôo.
Ela ficou levemente surpresa.

— Não é comum — disse. — Os humanos geralmente experimentam os cisnes. Os últimos que
andaram por aqui foram os Filhos de Lir. De qualquer forma, acho que somos todos anseriformes.
— Já ouvi falar dos Filhos de Lir.
— Eles não gostaram. Eram definitivamente nacionalistas e religiosos, sempre circulando ao redor
de uma das capelas na Irlanda. Pode-se dizer que mal notaram os outros gansos.
— Eu estou gostando.
— Achei que sim. Por que lhe mandaram para cá?
— Para minha educação.
Os dois pastaram em silêncio, até que suas próprias palavras o lembraram de algo que queria
perguntar.

— As sentinelas — perguntou. — Estamos em guerra?
Ela não compreendeu a palavra.
— Guerra?

— Estamos combatendo pessoas?
— Combatendo? — ela perguntou em dúvida. — Às vezes, os machos combatem por suas fêmeas ecoisas assim. Mas é claro que não se derrama sangue, é só uma rixa, para saber quem é o melhor. É
isso que você quer dizer?
— Não. Quero dizer combater contra exércitos, contra outros gansos, por exemplo.
Ela estava se divertindo.
— Que ridículo! Você quer dizer um bando de gansos ficar se atracando ao mesmo tempo. Seria
divertido ver.
Seu tom o surpreendeu, pois seu coração, sendo tão jovem, ainda era um coração terno.

— Divertido vê-los se matando?
— Se matarem? Um exército de gansos matando uns aos outros?
Ela começou a compreender a idéia, devagar e cheia de dúvidas, com uma expressão de desgosto
no rosto. Quando compreendeu, saiu de perto. Foi para outra parte do campo em silêncio. Ele a
seguiu, mas ela lhe deu as costas. Dando voltas para captar seu olhar, ficou surpreendido com o
desgosto que viu — como se ele tivesse feito alguma sugestão obscena.

Ele disse, queixoso:

— Desculpe-me. Eu não compreendo.
— Pare de falar no assunto.
— Desculpe-me.
Depois acrescentou, aborrecido:
— Uma pessoa pode perguntar, acho. Parece uma pergunta natural, com as sentinelas.
Mas ela estava realmente zangada.
— Pare com isso de uma vez! Que mente horrível você deve ter! Não tem o direito de dizer essas
coisas. E é claro que existem sentinelas. Aí estão os falcões e as águias, não é? E as raposas e os
arminhos e os humanos com suas redes? Todos são inimigos naturais. Mas que tipo de criatura
pode ser tão baixa a ponto de sair em bandos para assassinar outros de seu próprio sangue?
— As formigas fazem isso — ele disse, obstinadamente. — E eu só estava tentando aprender.
Ela se abrandou, esforçando-se para ser compreensiva. Se pudesse, gostaria de ter uma mente
aberta e, na verdade, tinha tendências literárias.

— Meu nome é Lyo-lyok. É melhor você dizer que se chama Kee-kwa, e então os outros poderão
pensar que veio da Hungria.
— Todos vocês vêm de diferentes lugares?
— Bem, em grupos, é claro. Aqui estão alguns da Sibéria, alguns da Lapônia e vejo um ou dois da
Islândia.

— Mas não brigam entre si pelo pasto?
— Puxa, como você é bobo! — ela disse. — Não existem fronteiras entre os gansos.
— E o que são fronteiras, por favor?
— Linhas imaginárias sobre a Terra, suponho. Mas como se pode ter fronteiras quando se voa?
Essas suas formigas — e também os humanos — acabariam não tendo que deixar de brigar, se
voassem.
— Eu gosto de lutar — disse Wart. — É uma coisa de cavaleiros.
— Porque você é um bebê.

XIX


Havia algo de mágico no tempo e no espaço controlado por Merlin, pois Wart teve a sensação de
ter passado muitos dias e noites entre o povo cinza, naquela única noite de primavera quando
deixara seu corpo dormindo sob a pele de urso.

Ele começou a gostar de Lyo-lyok, embora ela fosse uma garota. Ele sempre lhe fazia perguntas
sobre os gansos. Ela ensinava o que sabia com gentileza e, quanto mais ele aprendia, mais amava
seus bravos, nobres, calmos e inteligentes parentes. Ela contou-lhe como cada Ganso de Testa
Branca era um indivíduo — não governado por leis ou líderes, exceto quando isso acontecia
espontaneamente. Não tinham reis como Uther, nem leis como as duras leis normandas. Não
possuíam coisas em comum. Qualquer ganso que achasse algo bom para comer considerava aquilo
como seu e bicava qualquer um que tentasse roubá-lo. Ao mesmo tempo, nenhum ganso reclamava
nenhum direito territorial em lugar algum do mundo — exceto seu ninho, e este era propriedade
privada. Ela contou-lhe muito sobre as migrações.

— Suponho que o primeiro ganso que fez o vôo da Sibéria até Lincolnshire e voltou — disse ela —
teve ter criado sua família na Sibéria. Então, quando o inverno chegou e era preciso descobrir
comida, deve ter tentado refazer o caminho pela rota que só ele conhecia. Mas foi seguido por sua
família crescente, ano após ano; foi seu piloto e almirante. Quando chegou seu momento de morrer,
obviamente os melhores pilotos eram seus filhos mais velhos que tinham percorrido com ele a rota
mais vezes que os outros. Naturalmente, os filhos mais novos e os recém-emplumados estariam
inseguros quanto ao caminho e, portanto, devem ter ficado agradecidos por ter alguém para seguir.
Talvez, entre os filhos mais velhos, haveria alguns reconhecidos por todos como estúpidos, e
dificilmente a família confiaria neles.

— É assim que se escolhe um almirante — disse ela. — Pode ser que Wink-wink, no outono, venha
até nossa família e diga: "Desculpem-me, mas será que por acaso vocês têm um piloto confiável? O
pobre vovô morreu na época das cerejas, e Tio Onk não é eficiente. Estamos buscando alguém a
quem seguir". E aí nós diremos: "O Tio-avô vai ficar feliz se vocês pegarem carona conosco. Mas,
vejam bem, não nos responsabilizamos se as coisas não forem boas". "Muito obrigado", ele dirá.
"Tenho certeza de que se pode confiar no Tio-avô. Vocês se importam se eu tocar nesse assunto
com os Honks que, fiquei sabendo, estão com a mesma dificuldade?" "De maneira nenhuma".
— E assim — ela explicou — foi como o Tio-avô se tornou um almirante.
— É uma boa maneira.

— Olhe só as divisas dele — ela disse, respeitosamente, e ambos deram uma olhada no imponente
patriarca, cujo peito realmente era cheio de listras negras, tal como as fitas douradas na manga dos
almirantes.
Começou uma excitação crescente no bando. Os jovens gansos flertavam abertamente ou se reuniam
em grupos para discutir seus nilotos. Também faziam brincadeiras, como crianças na expectativa de
uma festa. Um desses jogos consistia em fazer um círculo, enquanto os jovens machos, um depois
do outro, iam até o meio com os pescoços esticados, fingindo assobiar. Quando estavam no meio
do círculo corriam o último pedaço batendo as asas. Mostravam, assim, como eram valentes, e que
almirantes excelentes seriam quando crescessem. Também começou a se espalhar entre eles o
estranho hábito de sacudir os bicos para os lados, que era comum antes do vôo. Os anciãos e
sábios, que conheciam as rotas de migração, também começaram a ficar inquietos. Ficavam atentos
às formações de nuvens, avaliando o vento e sua força, e de onde estava vindo. Os almirantes,
cheios de responsabilidades, desfilavam pelo tombadilho com passadas imponentes.

— Por que estou inquieto? — ele perguntou. — Por que estou com essa sensação no meu sangue?
—Espere e verás — disse ela, misteriosamente. — Amanhã, talvez, ou depois de amanhã...

Quando o dia chegou, havia uma diferença entre o pântano salgado e a lama da margem. O homem
que parecia uma formiga caminhando pacientemente todas as manhãs até suas grandes redes, com as
marés bem gravadas na cabeça — pois um erro ali significava morte certa -, ouviu um clarim
distante no céu. Já não viu milhares nas planícies de lama, e não viu nenhum nos pastos de onde
viera. A seu modo, era um sujeito simpático — pois ficou solenemente parado e tirou o chapéu de
couro da cabeça. Ele fazia isso, religiosamente, todas as primaveras, quando os gansos selvagens o
deixavam, e todos os outonos, quando via o primeiro bando regressar.

Um vapor leva dois ou três dias para cruzar o Mar do Norte — muitas horas passando por cima das
águas viscosas. Mas para os gansos, para os marinheiros do ar, para as cunhas angulares que fazem
retalhos das nuvens, para os cantores dos céus com o vento por trás — uns cento e dez quilômetros
por hora atrás de outros cento e dez — para esses misteriosos geógrafos — a quase cinco
quilômetros acima, dizem, com os cúmulos a seus pés em vez de água — para eles a coisa era
diferente.

As canções que cantavam estavam cheias disso. Algumas eram vulgares, outras eram sagas, outras
até leves. Uma boba que divertia Wart era assim:

Zanzamos pelos céus ao som de clonk
E baixamos sobre os pastos com um plonk
Hank-hank, Hink-bink, Honk-honk.
Baixamos o pescoço, soltando um plink
Como a água pinga na pia com um tlink
Honk-honk, Hank-hank, Hink-hink.
Vamos comer em grupo fazendo hank



Rasgando a relva com um yank
Hink-hink, Honk-honk, Hank-hank.
Mas Hink ou Honk gostamos todos do Plonk,
E Honk ou Hank gostamos todos do Yank
E Hank ou Hink fazemos todos um yink
Para Honk, ou Hank ou Hink!


Uma sentimental era assim:

Selvagem e livre, selvagem e livre.
Tragam meu ganso ãe volta para mim, para mim.


E uma vez, quando passavam por uma ilha rochosa habitada por gansos-bernacas, que pareciam
solteironas com luvas de couro preto, chapéus de cozinheiro cinzas e contas azeviche, todo o
esquadrão disparou, escarnecendo:

Bernaca Br anta se espoja na lama,
Bernaca Branta se espoja na lama,
Bernaca Branta se espoja na lama,
Enquanto voando vamos nós
Glória, glória, vamos lá, querida.
Glória, glória, vamos lá, querida.
Glória, glória, vamos lá, querida.
Para o Pólo Norte voando juntos


Uma das canções mais escandinavas era chamada de "Dádiva da Vida"

Ky-yow respondeu: a dádiva da vida é a saúde.
Pé de pato, Pena lisa, Pescoço flexível,
Olho limpo: Esses têm a riqueza do mundo.
Velho Ank respondeu: A honra é toda nossa.
Desbravador de caminhos, Provedor do povo, Planejador e
Sábio comandante:
Estes ouviram a chamada.
Lyo-lyok o alegre disse: Amor tive por vida.
Penas macias, Passos suaves, Ninho quente e
Caminhar na linha: Esses vivem para sempre.



Aahng era por Apetite: Ah, comer!
Comedor de gororoba, Rasgador de grama,
Espreitador de
Restolho, Enchedor de papo:
Esses batem as asas.
Wink-wink louva a Camaradagem, a livre e justa Fraternidade.
Alinhe-se à popa, Escalonem, Ponta à frente,
Sobre as nuvens: Esses aprendem a Eternidade.
Mas eu escolhi as fortes cadências que ficam no ar.
Música de trompete, Canções de risos, Coração épico,
Imitador do mundo. Esse é Lyow, o cantor.


Às vezes, quando desciam das alturas dos cirros para apanhar melhores ventos, viam-se no meio de
rebanhos de cúmulos imensas torres moldadas com vapor, tão brancas quanto roupa recém-lavada esólidas como merengues. Às vezes, uma dessas florescências do céu, esses salpicos brancos de
neve de um gigantesco Pégaso, se estenderiam diante deles por milhas e milhas. Eles estabeleciam

o curso em direção a elas, observando como ficavam cada vez silenciosa e imperceptivelmente
maiores, um crescimento imóvel — e então, quando estavam quase nelas, quando estavam prestes a
chocar os narizes contra aquela massa aparentemente sólida, o sol obscurecia. Espectros de bruma
subitamente se moviam como serpentes do ar, girando ao redor deles por um segundo. A umidade
cinza os envolvia, e o sol, moedinha de cobre, se esvanecia. As asas próximas às suas próprias
asas sombreavam o nada, até que cada pássaro era um som solitário, uma presença depois da não-
criação. E lá pairavam no nada não mapeado, aparentemente sem velocidade, sem direita nem
esquerda, sem topo nem fundo, até que então, de repente, a moedinha de cobre brilhava e as
serpentes encolhiam. Então, num instante, estavam novamente no mundo adornado de jóias — o mar
abaixo deles como turquesa e todos os belos lugares do paraíso recém-criados, com o orvalho doÉden ainda pairando.
Um dos marcos da migração chegava quando passavam uma flésia sobre o oceano. Havia outros
marcos quando, por exemplo, uma linha de vôo cruzava com uma fila indiana de cisnes que iam ara
Abisco, fazendo um ruído que parecia o latido de cães abafado por um lenço, ou quando
ultrapassavam uma coruja chifrada avançando, intrépida, sozinha —, entre cujas penas quentes da
costa dizia-se, um pequeno filhote pegava carona. Mas a ilha solitária era o melhor.

Era uma cidade de pássaros. Todos chocando, todos discutindo e no entanto, todos amistosos. No
alto do rochedo, onde a turfa curta era encontrada, uma miríade de mergulhões ocupava-se com
suas tocas. Abaixo deles, na Rua do Bico Afiado, os pássaros estavam tão pertos uns dos outros, e
em plataformas tão estreitas, que tinham de ficar de costas para o mar, segurando-se fortemente
com as patas. Na Rua das Alcas, abaixo daquela, as alcas mantinham seus rostos afilados, que
pareciam brinquedos, virados para cima, tal como os tordos quando estão chocando. Mais abaixo
estavam os Cortiços das Gaivotas-de-Bico. E todos os pássaros que, como os humanos, só punham
um ovo cada um, estavam tão apertados que suas cabeças se entrelaçavam — e tinham tão pouco


desse nosso famoso espaço vital que, quando um novo pássaro insistia em pousar na saliência que
já estava lotada, um dos outros tinha que cair fora. Eram como uma multidão incontável de
vendedoras de peixe na maior banca de mercado do mundo, se metendo em brigas particulares,
comendo em sacos de papel, xingando o árbitro, ralhando com seus filhos e se queixando dos
maridos.

— Mexa um pouco para lá, titia — diziam. Ou:
— Saia do caminho, vovó.
— A danada da Flossie foi para lá e se sentou em cima dos pequenos.
— Guarde o caramelo no bolso e assoe o nariz.
— Ora, ora, se não é o tio Albert com a cerveja.
— Tem espaço para uma criança?
— Lá se foi tia Emma. Caiu da plataforma.
— Meu chapéu está no lugar?
— Droga, que confusão!
As espécies se mantinham mais ou menos juntas, mas não brigavam por isso. Aqui e ali, na Rua das
Alcas, via-se às vezes uma gaivota cinza sentada em uma saliência, decidida a manter seus direitos.
Havia talvez uns dez mil deles e o barulho que faziam era ensurdecedor.

Depois vinham os fiordes e ilhas da Noruega. Foi sobre uma dessas ilhas, aliás, que o grande W.

H. Hudson escreveu uma história verdadeira de ganso, que devia fazer as pessoas pensarem. Havia
um fazendeiro na costa, conta ele, cujas ilhas sofriam com as raposas —, então ele colocou uma
armadilha para raposas em uma delas. Quando foi ver a armadilha no dia seguinte, descobriu que
um velho ganso selvagem fora capturado, obviamente um Grande Almirante, por causa da sua
dureza e das muitas divisas. Esse fazendeiro levou o ganso vivo para sua casa, cortou as pontas das
suas asas para que não voasse, amarrou suas pernas e o soltou com seus próprios patos e galinhas
no quintal. Ora, um dos efeitos da praga de raposas era que o fazendeiro tinha de trancar o
galinheiro à noite. Ele costumava juntá-las ao entardecer e, depois, trancava a porta. Depois de um
tempo, começou a notar uma coisa curiosa: as galinhas já não precisavam ser reunidas; ficavam
esperando por ele na choça. Ele observou esse processo uma tarde, e descobriu que o potentado
cativo assumira a responsabilidade de reuni-las, o que descobrira com sua própria inteligência.
Toda noite, na hora de fechar, o sagaz velho almirante convocava seus companheiros domésticos
cuja liderança havia assumido, e prudentemente os reunia, com esforço próprio, no lugar adequado,
mo se tivesse compreendido totalmente a situação. E os gansos selvagens livres, que haviam sido
liderados por ele, nunca mais usaram na outra ilha — que anteriormente era um de seus abrigos —,
onde seu capitão tinha sumido.
Finalmente, para além das ilhas, estava o pouso de destino do primeiro dia de viagem. Oh, o sopro
de delícia e autocongratulação! Eles desabavam dos céus, deslizando de lado, fazendo acrobacias e
até mergulhos giratórios de nariz para baixo. Estavam orgulhosos de si mesmos e de seu piloto,


ansiosos pelos prazeres familiares que os aguardavam.

Percorriam o último trecho planando, com as asas curvadas para baixo. No último momento
cavavam o vento com elas, agitando-as vigorosamente. Depois — bump — estavam no chão.
Mantinham as asas acima da cabeça por um instante e depois as dobravam rápida e graciosamente.
Tinham cruzado o Mar do Norte.

— Bem, Wart — disse Kay com voz exasperada —, você quer ficar com toda a coberta? E por que
está suspirando e resmungando tanto? Também estava roncando.
— Eu não ronco — respondeu Wart indignado.
— Ronca sim.
— Não ronco.
Ronca sim. Buzina que nem um ganso.
— Eu não.
— Sim.
Eu não. E você ronca pior. Não, eu não ronco. Sim, você ronca.
— Como posso roncar pior se você não ronca? Quando terminaram a discussão já estavam
atrasados para o café da manhã. Vestiram-se apressados e correram para a primavera.

XX


Era tempo de colher o feno outra vez, e Merlin passara o ano todo com eles. O vento visitou-os, e a
neve, e a chuva, e o sol outra vez. Os meninos estavam com as pernas mais compridas, mas de resto
tudo era igual.

Seis anos se passaram.

As vezes, Sir Grummore vinha fazer uma visita. Às vezes, o Rei Pellinore era visto galopando
pelas cercanias atrás da Besta, ou com a Besta atrás dele se acontecesse de ficarem muito
atrapalhados. Cully perdeu as listras verticais de sua plumagem do primeiro ano e se tornou mais
cinza, mais soturno, mais louco, e caracterizado por elegantes faixas horizontais onde antes estavam
as listras compridas. Os esmerilhões eram soltos a cada inverno e outros novos apanhados no ano
seguinte. O cabelo de Hob ficou branco. O sargento-de-armas desenvolveu uma barriga e quase
morria de vergonha, mas continuou a gritar Um-Dois, numa voz mais rouca, em toda as ocasiões
possíveis. Ninguém mais pareceu mudar em nada, exceto os meninos.

Cresceram muito. Corriam como potros selvagens, como antes, e iam ver Robin quando queriam, e
tiveram inúmeras aventuras, compridas demais para serem registradas.

A educação extra de Merlin seguia como antes, pois naqueles tempos, mesmo os adultos eram tão
infantis que não viam nada de desinteressante em serem transformados em corujas. Wart foi
transformado em vários animais diferentes. A única diferença era que agora, nas lições de torneio,
Kay e seu companheiro eram concorrentes fortes para o sargento barrigudo e, acidentalmente,
davam-lhe o troco por muitos dos tabefes que haviam recebido antes. Depois de adolescentes,
ganharam mais e mais armas autênticas como presentes nos aniversários, até que no final tinham
armaduras completas e arcos de quase um metro e oitenta de comprimento, que lançavam as flechas
grandes. Não era de bom-tom usar um arco maior do que sua própria altura, pois se considerava
que, fazendo isso, você estaria gastando energia desnecessária, como se usasse uma espingarda de
elefante para atirar em um ovis ammon. Em todo o caso, os homens sensatos tinham o cuidado de
não usar um arco maior do que eles. Era uma forma de bazófia.

Com a passagem dos anos, Kay tornou-se mais difícil. Sempre usava um arco maior do que ele, e
não atirava com precisão. Perdia a cabeça e desafiava quase todo mundo para uma luta e, nos
poucos casos em que realmente chegava a lutar, invariavelmente saía perdendo. Também ficou
sarcástico. Fazia o sargento passar maus momentos, atormentando-o por causa da barriga, e fazia o
mesmo com Wart, por causa do pai e da mãe, quando Sir Ector não estava por perto. Não parecia


querer fazer isso. Era como se não gostasse, mas não pudesse evitar.

Wart continuava a ser estúpido, a gostar de Kay, e a se interessar por pássaros.

Merlin parecia ficar mais jovem a cada ano — o que era nada mais que natural, pois realmente
ficava.

Archimedes se casou e criou várias ninhadas simpáticas de jovens de penas no quarto da torre.

Sir Ector teve ciática. Três árvores foram atingidas por raios. Mestre Twyti vinha todo Natal, sem
alterar um fio de cabelo. Mestre Passelewe lembrou-se de um novo verso sobre o Rei Cole.

Os anos passavam normalmente e a neve da Velha Inglaterra caía como se esperava que caísse —
às vezes com um pássaro de peito vermelho em um canto da pintura, um sino de igreja ou uma
janela iluminada do outro —, e acabou se aproximando o momento de Kay ser iniciado como um
completo cavaleiro. A medida que o dia se aproximava, os dois rapazes se distanciavam — pois
Kay não queria mais se juntar a Wart nos mesmos termos, porque precisaria ter mais honras como
cavaleiro e não poderia dar-se ao luxo de ter intimidade com seu escudeiro. Wart, que teria de ser

o escudeiro, seguia-o desconsolado enquanto lhe era permitido, e depois, sentindo-se
completamente infeliz, ia tentar se divertir sozinho, da melhor maneira que podia.
Ia para a cozinha.

"Bom, agora sou uma Cinderela", disse a si mesmo. "Embora eu tenha recebido, até o presente
momento, e por alguma razão misteriosa, a melhor parte de nossa educação, agora devo pagar por
meus prazeres e por ter visto todos aqueles maravilhosos dragões, feiticeiras, peixes, girafas,
formigas, gansos selvagens e outros iguais, sendo um escudeiro de segunda classe e segurando para
Kay suas lanças extras, enquanto ele faz a ronda de uma ou outra fonte e tem uma justa com todos os
que passam por lá. Não importa, foi bom enquanto durou, e não é tão ruim assim ser Cinderela,
quando você está numa cozinha com um fogão grande o suficiente para assar um boi."

Wart olhou com triste afeição para a cozinha agitada, colorida pelas chamas a ponto de parecer um
inferno.

Naqueles tempos, a educação de qualquer cavalheiro civilizado costumava passar por três etapas,
pajem, escudeiro, cavaleiro e, de qualquer maneira, Wart passara pelas duas primeiras. Era como
ser filho de um cavalheiro moderno que enriqueceu com o comércio, pois então o pai o teria
iniciado de baixo, em sua educação de boas-maneiras. Como pajem, Wart aprendera a pôr a mesa
com três toalhas e um forro, a trazer a carne da cozinha, e a servir Sir Ector ou seus hóspedes com

o joelho dobrado, uma toalha limpa sobre os ombros, uma para cada visitante, e uma para limpar as
bacias. Foram-lhe ensinadas todas as artes nobres do bem servir e, desde quando pode se recordar,
permaneciam-lhe agradavelmente na ponta do nariz os vários aromas da menta — usada para
refrescar a água nos jarros — ou do manjericão, camomila, erva-doce, hissopo e alfazema — que
lhe ensinaram a esfregar nos pisos de junco —, ou de angélica, açafrão, anis e estragão, que eram
usados para temperar os antepastos que ele devia carregar. Portanto, estava acostumado com a
cozinha, sem contar o fato de que todo mundo que vivia no castelo era um amigo que poderia ser
visitado em qualquer ocasião.

Wart sentou-se perto do enorme fogão e olhou a seu redor com prazer. Olhou para os compridos
espetos que, com freqüência, tinha girado quando era menor, sentado atrás de um velho anteparo de
palha ensopada de água, para que ele mesmo não se assasse, e para as conchas e colheres, cujos
cabos podiam ser medidos em metros, com as quais estava acostumado a regar a carne. Olhou, com
água na boca, os preparativos para o jantar — uma cabeça de javali com um limão entre as
mandíbulas e bigodes de amêndoas quebradas, que seria servido com uma fanfarra de trombetas;
um tipo de torta de carne de porco com molho de maçã ácida, creme apimentado, e várias pernas de
pássaros, ou folhas condimentadas saindo do topo para mostrar o que havia dentro — e um mingau
de aspecto absolutamente delicioso. Disse a si mesmo, com um suspiro, "Não é tão ruim assim ser
um servo, afinal".

— Ainda suspirando? — perguntou Merlin, que apareceu vindo de algum lugar. — Como estava
naquele dia em que fomos assistir à justa do Rei Pellinore?
— Ah, não — disse Wart. — Ou melhor, ah, sim, e pela mesma razão. Mas realmente não me
importo. Tenho certeza de que serei um escudeiro melhor do que o velho Kay seria. Olhe o açafrão
naquele mingau. Combina com a luz do fogo nos presuntos defumados.
— É lindo — disse o mago. — Só os tolos querem ser grandes.
— Kay não quer me contar o que acontece quando se é feito cavaleiro — disse Wart. — Diz que é
muito sagrado. O que acontece?
— Só uma grande agitação. Você vai ter que tirar a roupa dele e colocá-lo em uma banheira
enfeitada com vários penduricalhos, e depois dois cavaleiros experientes aparecerão —
provavelmente Sir Ector chamará Sir Grummore e o Rei Pellinore — e os dois se sentarão na beira
da banheira e lhe farão um longo discurso sobre os ideais de cavaleiros como eles. Quando
acabarem, despejarão um pouco da água do banho sobre ele e farão sobre ele o sinal da cruz, e
então você terá que conduzi-lo até uma cama limpa para se secar. Depois, você vai vesti-lo como
um eremita e levá-lo para a capela, e lá ele ficará acordado a noite toda, guardando sua armadura e
dizendo orações. As pessoas dizem que é solitário e terrível essa vigília, mas realmente não é nada
solitária porque o vigário e o homem que cuida das velas e um guarda armado, e provavelmente
você também, como seu escudeiro, terão que sentar com ele ao mesmo tempo. De manhã, você o
conduzirá à cama para ter um bom sono — depois que se confessar e assistir à missa e oferecer
uma vela com uma moeda enfiada o mais próximo possível da chama acesa — e depois, quando
todos repousarem, você o vestirá de novo com as suas melhores roupas para o jantar. Antes do
jantar, você o conduzirá até o salão nobre, com suas esporas e lanças todas prontas, e o Rei
Pellinore colocará sua primeira espora, e Sir Grummore a segunda, e então Sir Ector o cingirá com
sua lança e o beijará e lhe dará uma palmada no ombro, dizendo, "Seja um bom cavaleiro".
— E só isso?
— Não. Vocês vão outra vez à capela, e Kay oferece sua espada ao vigário, e o vigário a devolve
para ele, e depois disso nosso bom cozinheiro o encontra na porta e reclama as esporas como
prêmio e diz, "Guardarei essas esporas para vós, e se em algum momento não vos comportardes
como um verdadeiro cavaleiro deve se comportar, eu as jogarei na sopa".

— Esse é o final?
— Sim, exceto pelo jantar.
— Se eu fosse feito cavaleiro — disse Wart, olhando sonhadoramente para o fogo —, insistiria em
fazer minha vigília sozinho, como Hob faz com seus falcões, e pediria a Deus que me deixasse
enfrentar todo o mal do mundo em minha própria pessoa, assim, se eu vencesse, nenhum mal
restaria, e se perdesse, seria o único a sofrer.
— Seria extremamente pretensioso de sua parte — disse Merlin —, e você seria vencido e sofreria
por isso.
— Não me importaria.
— Não? Espere até acontecer e veja.
— Por que as pessoas, como adultos, não pensam da maneira que eu penso como jovem?
— Ah, céus! Você está me deixando confuso. Por que não espera até crescer para saber o motivo?
— Não acho que isso seja uma resposta, de jeito nenhum — respondeu Wart, com toda a razão.
Merlin torceu as mãos.
— Bem, enfim, suponha que eles não lhe deixem enfrentar todo o mal do mundo?
— Eu poderia pedir — disse Wart.
— Você poderia pedir — repetiu Merlin.
Ele enfiou a ponta de sua barba na boca, olhou tragicamente para o fogo e começou a mastigá-la
ferozmente.


XXI


O dia da cerimônia se aproximava, os convites para o Rei Pellinore e Sir Grummore foram
enviados, e Wart cada vez mais se refugiava na cozinha.

— Vamos, Wart, meu caro rapaz — dizia Sir Ector, com pesar. — Não imaginei que você fosse
ficar assim. Esse mau-humor não combina com você.
— Não estou de mau-humor — disse Wart. — Não me importo com nada e estou muito feliz por
Kay se tornar um cavaleiro. Por favor, não pense que estou chateado.
— Você é um bom rapaz — disse Sir Ector. — Sei que não está realmente chateado, então anime-
se. Bem sabe que Kay, à sua maneira, não é tão mau assim.
— Kay é um ótimo sujeito — disse Wart. — Só não estou feliz porque ele não quer mais ir lançar
os falcões nem fazer qualquer outra coisa comigo.
— Ele é ainda muito jovem — disse Sir Ector. — Isso passa.
— Tenho certeza que sim — respondeu Wart. — É só que ele não quer que eu vá com ele, nesse
momento. E então, claro, eu não irei.
— Mas irei — acrescentou. — Assim que ele me ordenar, farei exatamente o que ele disser.
Sinceramente, acho Kay uma boa pessoa, e não estava de jeito nenhum chateado.
— Tome uma taça desse vinho das Canárias — disse Sir Ector —, e vá ver se o velho Merlin
consegue alegrar um pouco essa cara.
— Sir Ector me deu uma taça de vinho das Canárias — disse Wart — e me mandou ver se você
conseguia me alegrar um pouco.
— Sir Ector é um homem sábio — disse Merlin.
— Bom — disse Wart —, e então?
— A melhor coisa a fazer quando se está triste — respondeu Merlin, começando a fumar e soltar
baforadas — é aprender alguma coisa. Essa é a única coisa que nunca falha. Você pode ficar velho
e trêmulo em sua anatomia, pode passar a noite acordado escutando a desordem de suas veias, pode
sentir saudades de seu único amor, pode ver o mundo ao seu redor ser devastado por lunáticos
malvados ou saber que sua honra foi pisoteada no esgoto das mentes baixas. Só há uma coisa para
isso: aprender. Aprender por que o mundo gira e o que o faz girar. Essa é a única coisa da qual a

mente não pode jamais se cansar, nem se alienar, nem se torturar, nem temer ou descrer, e nunca
sonhar em se arrepender. Aprender é o que lhe resta. Veja a quantidade de coisas que existem para
aprender — ciência pura, a única pureza que existe. Você pode estudar Astronomia no decorrer de
uma vida, História Natural em três, Literatura em seis. E então, depois que tiver exaurido um milhar
de tempos de vida em Biologia e Medicina e Teo-crítica e Geografia e História e Economia — ora,
você pode começar a fazer uma roda de carroça com a madeira apropriada, ou passar cinqüenta
anos aprendendo a começar a vencer seu adversário em esgrima. Depois disso, pode começar outra
vez a Matemática, até chegar a época de aprender a arar a terra.

— Além de todas essas coisas — disse Wart —, o que você me sugere agora?
— Deixe-me ver — considerou o mago. — Tivemos uns curtos seis anos disso, e nesse tempo acho
que terei razão em dizer que você foi várias espécies de animal, vegetal, mineral etc. — muitas
coisas na terra, ar, fogo e água.
— Não sei muito — disse Wart — sobre os animais e a terra.
— Então é melhor você conhecer meu amigo texugo.
— Nunca conheci um texugo.
— Ótimo — disse Merlin. — Além de Archimedes, ele é a criatura mais culta que conheço. Você
gostará dele.
— Por falar nisso — acrescentou o mago, parando no meio do feitiço —, tem uma coisa que devo
lhe dizer. Esta é a última vez que serei capaz de transformá-lo em outra coisa. Toda a magia para
esse tipo de coisa já foi gasta, e esse será o final de sua educação. Quando Kay for armado
cavaleiro, meu trabalho estará terminado. Você, então, terá que partir para ser seu escudeiro no
vasto mundo, e eu irei para outro lugar. Você acha que aprendeu alguma coisa?
— Eu aprendi e fui feliz.
— Então, está bem — disse Merlin. — Tente se lembrar do que aprendeu.
Prosseguiu com o feitiço, apontou sua vara de pau santo para a Ursa Menor que, nesse momento,
começara a brilhar na escuridão ao se pendurar pela cauda na Estrela do Norte, e exclamou,
alegremente:

— Aproveite bem essa última visita. Dê minhas lembranças ao Texugo.
A voz pareceu vir de muito longe e Wart se viu de pé ao lado de um outeiro antigo, parecido com
um gigantesco monte de toupeira, com um buraco preto à sua frente.

"O texugo vive lá dentro", disse a si mesmo, "e eu devo entrar e falar com ele. Mas não vou. Já era
ruim o bastante nunca ser um cavaleiro, e agora meu próprio e querido tutor que encontrei na única
Busca que certamente farei vai ser tirado de mim, e não haverá mais aulas de História Natural.
Muito bem, terei uma última noite de felicidade antes de minha condenação, e como sou um animal
agora, serei um animal mesmo, e pronto."

E assim ele zanzou, ferozmente, pela neve do crepúsculo, pois era inverno.


Quando você estiver se sentindo desesperado, uma boa coisa para ser é um texugo. Em relação aos
ursos, lontras e doninhas, é a coisa mais próxima de um urso que ainda resta na Inglaterra, e sua
pele é tão grossa que não faz diferença se o mordem. Quanto à sua própria mordida, existe algo na
formação de suas mandíbulas que a faz quase impossível de ser deslocada — portanto, por mais
que a coisa que você estiver movendo tente se desvencilhar, não há nenhum motivo para você soltá-
la. Texugos são uma das poucas criaturas que podem mastigar tudo o mais, desde ninhos de vespas
e raízes a coelhinhos.

E aconteceu que um ouriço foi a primeira coisa que apareceu no caminho de Wart.

— Porco-espinho — disse Wart, examinando sua vítima com olhos embaçados, míopes —, vou
mastigar e engolir você.
O ouriço, que escondera seus espertos olhinhos de botão e comprido nariz sensível dentro do corpo
enroscado, e que ornamentara seus ferrões com um arranjo de não muito bom gosto de folhas
mortas, antes de ir dormir durante o inverno em seu ninho de relva, acordou e guinchou do jeito
mais lamentável.

— Quanto mais você guinchar — disse Wart —, mais eu vou mastigar. Isso faz o sangue ferver
dentro de mim.
— Ah, Mistre Tejugão — gritou o ouriço, mantendo-se bem fechadinho. — Bonzinho Mistre
Tejugão, tenhai misererecórdia de um pobre ouricinho e não sejai tão tirârânico. Nossa sina,
mistre, é não ser mastigados e engolidos. Tenhai piedosidade, bondadoso senhor, de um servo
inútil, picadilho de pulgas, que serquer sabe qual das mãos é a direreita e qual é a esquereda.
— Ouriço — exclamou Wart, sem complacência —, abstenha-se de gemer, nem uma vez, nem duas.
— Ai! de minha pobrezeza, de minha querida esponsa e meus filhinhos.
— Aposto que não tem nenhum. Saia já daí, seu covarde. Prepare-se para enfrentar seu destino.
— Senhor Mistre Tejugão — implorou o infeliz —, por favorzinho, não sejai maumau, meu doce
Mistre Tejugão, meu senhorzinho. Compadeçai de um pobre ouricinho. Concedai-lhe o grato
esplendoroso ar da vida a este mais humildinho dos animais, senhor dos senhores, e ele cantará sua
glóriria em doces canções ou lhe mostrará como susugar o leitinho das vacas no orvalhalinho todo
perolado.
— Cantar? — perguntou Wart, muito espantado.
— Ah, sim, cantar — exclamou o ouriço. E às pressas começou a cantar de uma maneira muito
apaziguadora, mas um pouco abafada porque não ousava se desenrolar.
E cantou, muito fúnebre, para dentro do estômago:

Ah, Genevieve
Doce Genevieve,
Seus dias vêm,
Seus dias vão,



Mas à luz da Memória
De tanto tempo atrás.
Os sonhos gentis retornarão,


E também cantou, sem fazer pausa alguma entre as canções, Lar Doce Lar e A Velha Ponte Rústica
do Moinho. Depois, por ter acabado seu repertório, respirou fundo, embora trêmulo, e começou
outra vez com Genevieve. E depois seguiu com Lar Doce Lar e A Velha Ponte Rústica do Moinho.

— Vamos — disse Wart —, pode parar com isso. Eu não vou te comer.
— Clementíssimo Mistre — suspirou humildemente o ouriço. — Bendiremos os santos e o
conserelho de governantes por vós e vossos gentis maxilares, enquanto as pulgas saltararem e os
ouriconhos não trepaparem nas chaminés.
Então, receando que sua breve caída na prosa pudesse endurecer o coração do tirano, lançou-se
sem fôlego à Genevieve pela terceira vez.

— Pelo amor de Deus, pare de cantar — disse Wart. — Desenrola. Não lhe farei nenhum mal.
Vamos, seu ouricinho tolo, me diga onde aprendeu essas canções.
— Desenrola é uma palavra — respondeu, trêmulo, o ouriço, que não se sentia nada impaciente no
momento —, mas enrola é outra. Se é para veres meu narizinho nu, senhor, nesse momentoso
momento, poderias sessentir um comichãozinho em vossos brancos dentes? E tudo é amor e medo
na guerra, pelo que todos sabemos. Vamos, então, cantar outrara vez em vossa honra, gentil Mistre
Tejugão, sobre aquela ponte rústica do moinho?
— Não quero escutá-la outra vez. Você canta muito bem, mas já foi suficiente. Desenrola, seu
idiota, e me diga onde aprendeu a cantar.
— A gente não é um ouriço comum — tremeu a pobre criatura, permanecendo tão firmemente
enrolada como antes. — A gente foi criada um a unzinho, por um gentil-homem muito do bem-
nascido, ele era sim, como a gente teria sido criada no peito da mamãezinha. Ah, não mastigai
nossos órgãos vitais maciozinhos, adororado Mistre Texugão, pois ele era um cavaleiro nato,
certamente, ele era, e criou a gente toda com leitinho de vaca chupado de louça de porcelilana. Ah,
só há pouquinhos ouricinhos tratados com louça de porcelilana, só pouquinhos.
— Não sei sobre o que você está falando.
— Ele era um gentil-homem, era, ele era sim. Do jeito que vou lhe dizendo. Ele pegou a gente
quando a gente era bem pequenininho e nos dava comidinha como não existe mais, não, não. E era
um gentil-homem que nos dava comidinha na salalara dele, como nunca um ouricinho viu antes nem
há de ver. Comidinha na porcelilana, e ai! que foi um dia triste quando ele sumiu por nada, por
caprichinho, foi, pode ter certeza.
— Qual era o nome desse gentil-homem?
— Ele era um gentil-homem, ele era. Não com nome próprio, nada assim de se lembrar, mas era um
gentil-homem, ele era sim, e dava comidinha para a gente em porcelilana.

— Ele se chamava Merlin? — perguntou Wart, curioso.
— Era, era sim o nome esse. Um nome distintoso era, mas a gente não dava conta de enrolar a
língua para dizer assim. Ah, Mirli ele chamava ele mesminho, e dava comidinha pra gente em
porcelilana, como um gentil-homem muito respeitaculoso.
— Ah, vamos, desenrola — exclamou Wart. — Conheço o homem que criou você e acho que vi
você quando era um bebê no algodão em rama no velho chalé dele. Vamos, ouriço, lamento tê-lo
assustado. Somos amigos e, pelos velhos tempos, quero ver seu narizinho cinzento e úmido se
mexer.
— Mexer o nariz é um falar — disse o ouriço, obstinado —, e não mexer esse nariz é outro. Agora,
por favor, vade embora Mistre Texugão e deixai um pobre sujeitinho tirar sua soneca de inverno.
Pensai em besouros e mel, adoroso barão, e que bandos de anjos cantem para seu repouso.
—Tolice — exclamou Wart. — Não lhe farei nenhum mal porque conheço você desde que era
pequeno.

— Ah, esses texugos — disse a pobre coisa para seu estômago — saem zanzando por aí sem
nenhum mal no coração. Que o Senhor vos abençoe, mas sem quererer mordem aqui e ali sem nemse dar conta e, Deus vos abençoe, mas o que pode um ouricinho fazerer? É por causa da pele deles,
é por isso sim, desde novinho ficam morderendo um ao outro e também a mamãezinha deles, e não
sentem nada e então mordem os outros da mesma maneira. Até com meu nobre mestrinho, senhor
Mirli, eles ficavam nos calcanharares dele com seus yik-yik, quando queriam comer, os que elecriava de pequeninos — e santa igreja!, como eles choraravam! Ai de mim! É uma coisa terrível ter
qualquer coisa com os texugos, todo mundo sabe.
— Não olham por onde andam — acrescentou o ouriço, antes que Wart pudesse protestar. — Vão
tropeçando de um lado para o outro como se fosse taperete com seus pezinhos. Passar por eles um
momento é uma sina, porque sem nenhuma intenção má eles zapzip, assim mesmo, por autodefesa
de cego com fome, e então, como você fica?
— O único ponto bonzinho de acertar neles — continuou o ouriço — é no nariz. O calcanhanhar de
Aquiles deles, é sim, como diz nas escrituras deles. Acerte um deles no nariz e bim-bam, e avidinha boa dele vai embora antes de ele poderer nem cheirar. É um belo golpe de mistre, é sim.
— Mas como um pobre ouricinho vai acertarar um no nariz? Não tem com que bater, nem jeito de
segurarar? E então eles vêm onde a gente está e pedem pra gente se desenrolar!
— Está bem, não precisa se desenrolar — disse Wart, resignado. — Lamento ter despertado você,
companheiro, e lamento tê-lo assustado. Acho você um ouriço charmoso, e encontrá-lo me fez ficar
mais contente outra vez. Volte a dormir como estava quando cheguei e eu vou procurar meus
amigos texugos, como me disseram para fazer. Boa noite, ouriço, e boa sorte na neve.
— A noite pode ser boa — murmurou o porco resmungão —, e também, outra vez, pode não ser.
Primeiro é para desenrolar e depois para enrolar. Uma coisa num momento e outra coisa no
seguinte. Ai ai, mundo complicadinho. Mas boa noite, minhas senhoras, é meu lema, venha granizo,
venha neve, e assim continuaremos proximamente.

Com estas palavras, o humilde animal se enrolou ainda mais aconchegado que antes, deu vários
resmungos ásperos, e já estava longe longe, em um mundo de sonho tão mais profundo do que
nossos sonhos humanos, como um sono completo de inverno é muito mais longo do que o sossego
de uma única noite.

"Bom", pensou Wart, "sem dúvida, ele consegue superar seus problemas bem rapidamente.
Engraçado cair no sono de novo tão rápido assim. Aposto que o tempo todo ele não esteve mais do
que semi-acordado, e vai pensar que foi apenas um sonho quando acordar na primavera, como
certamente vai acontecer".

Observou por um momento a bolinha suja de folhas, ervas e pulgas, enrolada firmemente dentro do
seu buraco, depois resmungou e se dirigiu outra vez para o monte do texugo, seguindo suas próprias
pegadas oblongas deixadas na neve.

— Então Merlin o enviou a mim — disse o texugo — para terminar sua educação. Bom, eu só
posso lhe ensinar duas coisas: cavar e amar sua casa. Esses são
os verdadeiros propósitos da
filosofia.
— Você me mostrará sua casa?
— Sem dúvida — disse o texugo —, embora, claro, eu não a use toda. É uma velha construção
irregular e grande demais para um homem só. Suponho que algumas de suas partes podem ter mil
anos. São cerca de quatro famílias que moram nela, aqui e ali, em largura e comprimento, do porão
ao sótão, e às vezes passamos meses sem nos encontrar. Um velho e louco lugar é o que deve
parecer a vocês, gente moderna, mas, enfim, é aconchegante.
Foi caminhando devagar pelos corredores do lugar encantador, rolando de uma perna para outra,
com a estranha cauda larga de texugo, a máscara branca de sua cara, com suas faixas pretas,
parecendo fantasmagórica na escuridão.

— Se quiser lavar as mãos, é no final daquela passagem — disse. Os texugos não são como as
raposas. Têm um sítio especial onde deixam seus ossos usados e refugos, verdadeiras fossas na
terra, e quartos cujas camas reviram com freqüência, para mantê-las limpas. Wart ficou encantado
com o que viu. Admirou sobretudo o Grande Saguão, que era o cômodo central do outeiro — era
difícil saber se deveria pensar nele como um colégio ou como um castelo —, e as várias suítes e
túneis de ligação se irradiavam a partir daí. Estava um pouco coberto de teia de aranha por ser um
tipo de sala comum que não era cuidada por uma família em particular, mas era decididamente
solene. O texugo a chamava de Sala do Acordo. Ao redor das paredes apaineladas havia quadros
antigos de texugos falecidos, famosos em sua época pela erudição ou religiosidade, iluminados de
cima por luzes de pirilampos. Havia cadeiras imponentes com as armas dos texugos gravadas a
ouro nos assentos de marroquim — o couro estava rasgando —, e um retrato do Fundador sobre a
lareira. As cadeiras estavam arrumadas em semicírculo ao redor do fogo, e havia muitos leques de
mognos com os quais todos podiam proteger os rostos do calor das chamas, e um tipo de tabuleiro
em declive por meio do qual os decantadores poderiam ir do meio para a ponta do semicírculo.
Algumas togas pretas estavam penduradas na galeria externa, e tudo era extremamente antigo.
— Estou solteiro no momento — disse o texugo, se desculpando, quando voltaram para seu quarto,

muito bem-arrumado, com papel de parede florido —, por isso, lamento, mas tenho só uma cadeira.
Você terá que se sentar na cama. Sinta-se em casa, meu querido, enquanto faço um pouco de
ponche, e me diga como vão as coisas no mundão lá de fora.

— Ah, vão do mesmo jeito. Merlin está bem, e Kay será armado cavaleiro na próxima semana.
— Uma cerimônia interessante.
— Que braços enormes você tem — comentou Wart, observando-o misturar a bebida com uma
colher. — E também eu, por falar nisso — e olhou para seus próprios músculos arqueados. Ele era
praticamente um tórax firme sustentando um par de antebraços, poderosos como coxas.
— É de cavar — disse a sábia criatura, com complacência. — A toupeira e eu, e suponho que você
teria que se pôr a cavar bastante para competir conosco.
— Encontrei um ouriço lá fora.
— É mesmo? Hoje em dia dizem que ouriços podem transmitir febre de porco e doenças do pé e da
boca.
— Eu o achei muito agradável.
— Eles têm mesmo um tipo de apelo patético — disse o texugo, com tristeza —, mas receio dizer
que, no geral, simplesmente os mastigo. Há algo de irresistível no barulhinho de carne de porco na
boca.
— Os egípcios — acrescentou, e com isso queria dizer os ciganos — também são fãs deles como
comida.
— O meu não queria se desenrolar.
— Você deveria tê-lo jogado na água, e então ele teria lhe mostrado rapidamente as pernocas.
Tome, o ponche está pronto. Sente-se perto do fogo e fique à vontade.
— É ótimo sentar aqui com a neve e o vento lá fora.
— É mesmo. Vamos brindar à boa sorte de Kay como cavaleiro.
— Boa sorte a Kay, então.
— Boa sorte.
— Bem — disse o texugo, abaixando seu copo outra vez com um suspiro. — Diga-me, o que deu
em Merlin para enviá-lo aqui?
— Ele falou em aprendizagem — disse Wart.
— Ah, bom, se é aprendizagem o que lhe traz aqui, você veio ao lugar certo. Mas você não acha um
pouco chato?
— Às vezes acho — disse Wart —, e às vezes não. No fim, posso agüentar uma boa quantidade de
aprendizagem se for sobre História Natural.
— Estou justamente escrevendo um ensaio nesse momento — disse o texugo, tossindo de modo

acanhado para mostrar que estava absolutamente determinado a continuar — que explica por que o
Homem se tornou o rei dos animais. Talvez você queira ouvi-lo?

— É para meu doutorado, sabe — acrescentou apressado, antes que Wart pudesse protestar. Tinha
pouquíssimas chances de ler seus ensaios para alguém, portanto, não se conformaria se deixasse
essa oportunidade escapar.
— Muito obrigado — disse Wart.
— Será bom para você, querido rapaz. É justamente o ideal para coroar uma educação. Estudar os
pássaros e os peixes e os animais: depois, terminar com o Homem. Que afortunada foi sua vinda!
Agora, com os diabos, onde coloquei o manuscrito?
O velho escarafunchou por ali com suas grandes garras até virar um monte de papéis sujos de terra,
uma ponta dos quais fora usada para acender alguma coisa. Então sentou-se em sua poltrona de
couro, que tinha uma depressão funda no meio; pôs seu capelo de veludo com borla; e apareceu
com umas lunetas que equilibrou na ponta do nariz.

— Huum! — fez o texugo.
Imediatamente, ficou paralisado pela timidez, e sentou-se ruborizado com seus papéis, incapaz de
começar.

— Vamos — disse Wart.
— Não está muito bom — ele explicou, com recato. — É só um rascunho, sabe. Ainda tenho que
alterar muita coisa antes de enviá-lo.
— Tenho certeza de que é interessante.
— Ah, não, não é nem um pouco interessante. É só uma coisa esporádica que fiz em uma meia hora
esporádica, só para passar o tempo. De qualquer forma, é assim que começa.
— Huum! —-fez o texugo. A seguir, adotou uma voz impossivelmente alta em falsete e começou a
ler tão rápido quanto podia.
— As pessoas perguntam, com freqüência, como uma questão ociosa, se o processo da evolução
começou com a galinha ou com o ovo. Havia um ovo de onde a primeira galinha surgiu, ou foi uma
galinha que botou o primeiro ovo? Minha tendência é dizer que a primeira coisa criada foi o ovo.
— Quando Deus manufaturou todos os ovos a partir do qual deveriam depois emergir os peixes e
as serpentes e os pássaros e os mamíferos e mesmo os ornitorrincos, ele chamou os embriões à Sua
frente e viu que eram bons.
— Talvez eu deva explicar — acrescentou o texugo, abaixando seus papéis nervosamente e
olhando para Wart por cima deles — que todos os embriões se parecem muito. Eles são o que
você é antes de nascer e, quer você vá ser um sapo ou um pavão ou um leopardo ou um homem,
quando você é um embrião, parece um ser humano particularmente repulsivo e desamparado. Eu
continuo como a seguir:
— Os embriões ficaram diante de Deus, com suas mãos frágeis unidas educadamente sobre seus

estômagos e as cabeças pesadas respeitosamente inclinadas, e Deus lhes falou.

— Ele disse: "Agora, embriões, aqui estão vocês, todos parecendo exatamente iguais, e Nós lhe
daremos a chance de escolher o que vocês querem ser. Quando crescerem, de qualquer maneira,
ficarão maiores, mas Nós temos o prazer de lhes conferir mais uma dádiva. Vocês podem alterar
qualquer parte de si mesmos em qualquer coisa que pensem que lhes será útil mais tarde na vida.
Por exemplo, no presente momento, não podem cavar. Aquele que quiser transformar suas mãos em
um par de pás ou ancinhos pode fazer isso. Ou, para dizer de outra maneira, no momento vocês só
podem usar suas bocas para comer. Aquele que quiser usar a boca como arma agressiva, basta
pedir para mudá-la e será um crocodilo °u um tigre de dentes de sabre. Agora, então, levantem e
escolham suas ferramentas, mas lembrem-se de que crescerão como aquilo que escolheram e
deverão se manter assim".
— Todos os embriões refletiram sobre o assunto, e então, um por um, aproximaram-se do trono
eterno. Eram permitidas duas ou três especializações, assim alguns escolheram usar os braços
como máquinas voadoras e as bocas como armas, ou trituradoras ou perfuradoras ou Colheres,
enquanto outros escolheram usar os corpos como barcos e as mãos como remos. Nós, texugos,
pensamos muito e decidimos pedir três privilégios. Pedimos para transformar nossas peles em
escudos, nossas bocas em armas, e nossos braços em ancinhos. Esses privilégios nos foram dados.
Todos se especializaram de um jeito ou de outro, e alguns de maneiras bem esquisitas. Por
exemplo, um dos lagartos do deserto decidiu trocar todo o corpo por mata-borrão, e um dos sapos
que vivia nas secas antípodas decidiu simplesmente ser uma garrafa-d'água.
— Os pedidos e sua aceitação demoraram dois longos dias — eram o quinto e o sexto, pelo que me
lembro —, e no finalzinho do sexto dia, quase na hora de fechar para o domingo, já tinham passado
todos os embriõezinhos exceto um. Esse embrião era o do Homem.
— "Bom, nosso homenzinho", disse Deus. — "Você esperou até o último momento e teve bastante
tempo para decidir, e Nós temos certeza de que deve ter refletido bem todo esse tempo. O que
poderemos fazer por você?"
— "Por favor, Deus" — disse o embrião — "acredito que O Senhor me fez na forma na qual estou
agora por razões que só o Senhor conhece, e acho que seria indelicado modificá-la. Se puder
escolher, continuarei como estou. Não trocarei nenhuma das partes que o Senhor me deu por outras
ferramentas sem dúvida inferiores, e permanecerei toda minha vida como embrião sem defesa, me
esforçando ao máximo para obter para mim mesmo alguns instrumentos frágeis a partir da madeira,
do ferro e de outros materiais que o Senhor achar conveniente colocar frente a mim. Se eu quiser
barco, tentarei construir um com árvores, e se eu quiser voar, construirei uma carruagem que o faça
por mim. Provavelmente, estou sendo muito tolo ao recusar me aproveitar da gentileza que o
Senhor nos ofereceu, mas me esforcei ao máximo para refletir bem sobre isso, e agora espero que
as fracas decisões deste pequeno inocente conte com o Seu beneplácito".
— "Muito bem", exclamou o criador, deliciado. — "Venham aqui, todos vocês embriões com seus
bicos e não sei mais o quê, para ver Nosso primeiro homem. Ele foi o único, entre todos vocês, que
adivinhou nosso pequeno enigma, e Nós temos o grande prazer de conferir a ele a Ordem de
Domínio sobre as Aves do Ar, e as Feras da Terra, e os Peixes do Mar. Agora, o resto de vocês

pode partir para se amar e se multiplicar, pois é hora de fechar para o final de semana. Quanto a
você, Homem, será nu de ferramenta por toda a sua vida, mas será um usuário de ferramentas.
Parecerá um embrião até que o enterrem, mas todos os outros serão embriões frente a seu poderio.
Eternamente subdesenvolvido, permanecerá sempre, em potência, como Nossa imagem, capaz de
ver algumas das Nossas tristezas e sentir algumas das Nossas alegrias. Em parte, estamos tristes
por você, Homem, mas em parte, esperançosos. Agora, vá e tente fazer o melhor possível. E,
escuta, Homem, antes de partir...

— "Sim?", perguntou Adão, voltando-se para trás.
— "Nós só queremos dizer" — disse Deus, acanhado, torcendo as mãos. — "Bem, Nós só
queremos dizer, Deus lhe abençoe".
— É uma boa história — disse Wart, em dúvida. — Gosto mais dessa do que a de Merlin sobre o
rabino. E é interessante, também.
O texugo ficou todo confuso.

— Não, não, meu rapaz. Você exagera. No máximo, uma parábola menor. Além disso, receio que
seja um pouco otimista.
— Como?
— Bem, é verdade que o homem tem a Ordem de Domínio e é o mais poderoso dos animais — se
com isso se quer dizer o mais terrível —, mas ultimamente eu às vezes duvido se ele é o mais
abençoado.
— Eu não acho que Sir Ector seja muito terrível.
— De qualquer maneira, se Sir Ector fosse passear à beira de um rio, não apenas os pássaros
fugiriam dele e os animais também, mas até os peixes disparariam para o outro lado. Eles não
fazem o mesmo uns com os outros.
— O homem é o rei dos animais.
— Talvez. Ou deveríamos dizer o tirano? E depois, de qualquer maneira, temos que admitir que ele
tem uma quantidade de vícios.
— O Rei Pellinore não tem muitos.
— Ele iria para a guerra se o rei Uther declarasse uma guerra. Você sabe que o Homo sapiens é
quase o único animal que trava guerras?
— As formigas também.
— Não diga "as formigas também" de uma maneira geral, meu caro rapaz. São mais de quatro mil
tipos diferentes de formigas, e de todos esses tipos só consigo me lembrar de uns cinco que são
beligerantes. São cinco formigas, uma térmita que conheço, e o Homem.
— Mas as alcatéias de lobos da Floresta Sauvage atacam nosso rebanhos de ovelhas todo inverno.
— Lobos e ovelhas pertencem a espécies diferentes, meu amigo. A verdadeira guerra é a que
acontece entre bandos da mesma espécie. Das centenas de milhares de espécies, só posso me

lembrar de sete que são beligerantes. Mesmo o Homem tem algumas variedades, como os Esquimós
e os Ciganos e os Lapões e alguns Nômades da Arábia, que não guerreiam, porque não disputam
fronteiras. A verdadeira guerra é mais rara na Natureza do que o canibalismo. Você não acha que
isso é um tanto desastroso?

—Pessoalmente — disse Wart —, eu gostaria de ir para a guerra, se pudesse me tornar um
cavaleiro. Gostaria dos estandartes e das trombetas, das armaduras brilhantes e dos ataques
gloriosos. E ah! gostaria muito de realizar grandes proezas, de ser corajoso e dominar meus
próprios medos. Na guerra, Texugo, você não tem coragem, e resistência, e camaradas a quem
ama?

O sábio animal pensou por um longo tempo, olhando absorto o fogo.

No final, pareceu mudar de assunto.

— De quem você gosta mais — perguntou —, das formigas ou dos gansos selvagens?

XXII


O Rei Pellinore chegou para o importante final de semana em um estado de grande agitação.

— Vocês sabem? quer dizer, já escutaram? — exclamou. — É um segredo, o quê?
— O que é um segredo, o quê? — eles lhe perguntaram.
— Ora, o Rei — exclamou sua majestade. — Vocês sabem sobre o Rei?
— Qual é o problema com o rei? — inquiriu Sir Ector. — Não me diga que ele está vindo caçar
com aqueles seus malditos cães ou algo parecido, é?
— Ele está morto — gritou o Rei Pellinore, tragicamente. — Está morto, o pobre sujeito, e nunca
mais vai poder caçar.
Sir Grummore levantou-se, respeitosamente, e tirou seu boné de ficar em casa.

— O Rei está morto — ele disse. — Longa vida ao Rei. Todos os outros sentiram que também
deveriam levantar-se, e a ama dos rapazes começou a chorar.
— E agora, e agora — ela soluçava. — Sua real majestade morta e acabada, um cavaleiro tão
respeitável. Recortei muitas iluminuras dele feitas à mão, dos Missais Ilustrados, sim, e preguei no
consolo da lareira. Desde o tempo em que estava de fraldas, direto para as Torres do mundo, e
visitando várias regiões como o Príncipe Encantador, não havia uma pintura dele que eu não
recortasse, sim, e lhe dirigia meus últimos pensamentos todas as noites.
— Componha-se, ama — disse Sir Ector.
— É solene, não é? o quê? — disse o Rei Pellinore. — Uther, o Conquistador, 1066 a 1216.
— Um momento solene — concordou Sir Grummore. — O Rei está morto. Longa vida ao Rei.
— Devemos baixar as cortinas — disse Kay, que sempre foi um respeitador das maneiras corretas
— ou abaixar as bandeiras a meio mastro.
— Tem razão — disse Sir Ector. — Que alguém vá avisar o sargento-de-armas.
Obviamente, era tarefa de Wart executar essa ordem, pois era agora o mais jovem nobre presente,
portanto, saiu correndo alegremente para achar o sargento. Logo, os que ficaram no solário
puderam ouvir uma voz gritando: "Agora, Um-Dois, luto especial para sua majestade, abaixem
quando eu disser Dois!", e a seguir, o agitar de todos os estandartes, bandeiras, pendões, flâmulas,


bandeirolas, insígnias, pavilhões e reconhecimentos, enchendo de animação os torreões nevados da
Floresta Sauvage.

— Como você soube? — indagou Sir Ector.
— Eu estava galopando pelas cercanias da floresta atrás da Besta, sabe, quando encontrei um fradesolene de veste cinzenta, e ele me contou. É uma notícia realmente de última hora.
— Pobre velho Pendragon — disse Sir Ector.
— O Rei está morto. Longa vida ao Rei — disse Sir Grummore.
— Está muito bem para você
ficar dizendo isso, meu querido Grummore — exclamou o Rei
Pellinore, com petulância —, mas quem é o Rei que deve ter essa vida tão longa, o quê, segundo
você?
— Bem, seu herdeiro — disse Sir Grummore, um tanto desconcertado.
— Nosso abençoado monarca — disse a ama, lacrimosa — nunca teve herdeiros. Qualquer um que
estuda a família real sabe disso.
— Misericórdia! — exclamou Sir Ector. — Mas com certeza ele deve ter algum parente próximo?
— Exatamente — exclamou o Rei Pellinore, muito excitado. — Essa é a parte excitante, o quê?
Nenhum herdeiro nem parente próximo, e quem vai sucedê-lo no trono, o quê? Era por isso que meu
frade estava todo nervoso, e por isso ele estava perguntando quem seria o sucessor, quem? O quê?
— Você quer dizer que não existe um Rei de Gramarye? — exclamou Sir Grummore, com
indignação.
— Nem a sombra de um — exclamou o Rei Pellinore, todo importante. — E houve sinais e
prodígios de grande portento.
— Acho que isso é um escândalo — disse Sir Grummore. — Só Deus sabe o que acontecerá com
nossa querida e velha terra. Com certeza, por causa dos heréticos e dos comunistas.
— Que tipo de sinais e prodígios? — perguntou Sir Ector.
— Bom, apareceu um tipo de espada em uma pedra, o quê, em uma espécie de igreja. Não dentro
da igreja, se entende o que quero dizer, e não dentro da pedra, mas esse tipo de coisa, o quê, como
se poderia dizer.
— Não entendo o que a igreja tem a ver — disse sir Grummore.
— Está numa bigorna — explicou o rei.
— A igreja?
— Não, a espada.
— Mas pensei que você tivesse dito que a espada estava dentro da pedra.
— Não — disse o Rei Pellinore, — A pedra está fora da igreja.
— Olha aqui, Pellinore — disse Sir Ector. — Descanse um pouco, meu velho, e depois comece

tudo de novo. Tome, beba um pouco deste corno de hidromel e vá com calma.

— A espada — disse o Rei Pellinore — está presa em uma bigorna que está numa pedra. Passa
direto pela bigorna e entra na pedra. A bigorna está grudada na pedra. A pedra está do lado de fora
da igreja. Passa o hidromel.
— Não acho isso muito prodigioso — observou Sir Grummore. — O prodígio é que deixem esse
tipo de coisa acontecer. Mas nunca se sabe hoje em dia, com todos esses agitadores saxões.
— Meu querido companheiro — exclamou Pellinore, ficando outra vez excitado —, não é onde a
pedra está, o quê, que estou tentando dizer, mas o que está escrito nela, o quê, e onde ela está.
— O quê?
— Quê? No punho.
— Ora, vamos, Pellinore — disse Sir Ector. — Fique sentado bem quieto com seu rosto virado
para a parede por um minuto e depois nos diga o que você está querendo dizer. Vá com calma, meu
velho. Não precisa se apressar. Fique sentado quieto, olhando para a parede, isso meu bom
companheiro, e fale o mais devagar que puder.
— Há palavras escritas nessa espada nessa pedra do lado de fora dessa igreja — explicou o Rei
Pellinore, bem humilde —, e essas palavras são as seguintes. Oh, por favor, tentem me escutar,
vocês dois, em vez de ficar me interrompendo o tempo todo por nada, pois isso faz a cabeça de
qualquer mortal se confundir.
— Que palavras são essas? — perguntou Kay.
— Essas palavras dizem assim, pelo que pude entender do que o velho frade de veste cinzenta
falou — disse o rei Pellinore.
— Continue, vamos — disse Kay, pois o Rei tinha feito uma pausa.
— Continue — disse Sir Ector. — O que essas palavras nessa espada nessa bigorna nessa pedra do
lado de fora dessa igreja dizem?
— Com certeza, propaganda comunista — disse Sir Grummore.
O Rei Pellinore fechou bem os olhos, estendeu os braços em ambas as direções e anunciou com
letras maiúsculas:

— AQUELE QUE TIRAR ESTA ESPADA DESTA PEDRA E BIGORNA É POR DIREITO O REI NASCIDO PARA
GOVERNAR TODA A INGLATERRA.
— Quem disse isso? — perguntou Sir Grummore.
— A espada diz isso, como estou falando.
— Bem faladeira essa espada — observou sir Grummore, cético.
— Está escrito nela — exclamou o Rei Pellinore, chateado. — Escrito nela em letras de ouro.
— Então, por que você não a tirou de lá? — perguntou Sir Grummore.

— Mas já lhe disse que eu não estava lá. Tudo isso que estou contando para vocês foi aquele frade
de quem lhes falei quem me contou, como estou lhes contando.
— E essa espada com essa inscrição foi tirada da pedra? — inquiriu Sir Ector.
— Não — sussurrou o Rei Pellinore, dramático. — Aí é que está toda a excitação. Ninguém
consegue de jeito nenhum tirar essa espada, apesar de todos ficarem tentando até para se divertir, e
então tiveram que convocar um torneio para toda a Inglaterra, no Primeiro Dia do Ano, para que o
homem que vier ao torneio e puxar a espada possa ser o Rei de toda a Inglaterra para sempre, o
quê, eu digo.
— Oh, pai — exclamou Kay. — O homem que tirar a tal espada da pedra será o Rei de toda a
Inglaterra. Não podemos ir ao torneio, pai, e tentar uma vez?
— Não me ocorreria essa idéia — disse Sir Ector.
— Até Londres é uma grande distância — disse Sir Grummore, balançando a cabeça.
— Meu pai foi lá uma vez — disse o Rei Pellinore.
— Oh, é claro que podemos ir — disse Kay. — Quando eu for armado cavaleiro, terei que ir a um
torneio em algum lugar, e esse acontece justamente na data certa. Todas as melhores figuras estarão
lá, e poderemos ver os cavaleiros famosos e os grandes reis. Não importa a espada, claro, mas
pense no torneio, provavelmente o maior que jamais houve em Gramarye, e todas as coisas que
poderemos ver e fazer. Meu querido pai, se me ama, deixe-me ir a esse torneio, para que eu tenha a
chance de levar o melhor prêmio de todos, em meu primeiro combate.
— Mas, Kay, eu nunca estive me Londres — disse Sir Ector.
— Mais um motivo para ir. Acredito que alguém que não for a um torneio como esse estará
provando que não tem sangue nobre nas veias. Pense no que as pessoas vão dizer de nós se não
formos e não tentarmos nossa chance com a espada. Dirão que a família de Sir Ector era demasiado
vulgar e sabia que não teria chance.
— Todos sabemos que a família não tem chances — disse Sir Ector —, isto é, quanto a espada.
— Tem gente demais em Londres — observou Sir Grummore, como uma conjetura desconfiada. —
É o que dizem.
Deu um suspiro profundo e virou os olhos arregalados para seu anfitrião.


— E lojas — acrescentou o Rei Pellinore, de repente, também começando a respirar fundo.
— Maldição! — exclamou Sir Ector, batendo o corno de bebida na mesa com tal força que
espirrou. — Vamos todos a Londres, então, e ver o novo Rei!
Todos se levantaram como um só homem.

— Por que eu não seria tão digno quanto meu pai? — exclamou o Rei Pellinore.
—Que os raios me partam! — exclamou Sir Grummore. — Afinal, maldição, é a capital!
— Hurra! — gritou Kay.

— Deus tenha misericórdia — disse a ama.
Nesse momento, Wart chegou com Merlin, e todo mundo estava muito excitado para reparar que, se
ele já não fosse um adulto, estaria prestes a chorar.

— Ah, Wart — exclamou Kay, esquecendo no momento que estava se dirigindo a seu escudeiro,
voltando à familiaridade de sua juventude. — O que você acha? Vamos todos a Londres para um
grande torneio no Primeiro Dia do Ano!
— Vamos?
— Sim, e você vai carregar meu escudo e lanças para as justas, e eu sairei vitorioso e serei um
grande cavaleiro!
— Bom, fico feliz por estarmos indo — disse Wart —, porque Merlin também está de partida.
— Ah, não vamos precisar de Merlin.
— Ele está de partida — repetiu Wart.
— De partida? — perguntou Sir Ector. — Pensei que fôssemos nós que estivéssemos partindo.
— Ele está indo embora da Floresta Sauvage.
— Ora, Merlin, o que é isso? Não estou entendendo nada — disse Sir Ector.
— Vim dizer adeus, Sir Ector — disse o velho mago. — Amanhã meu aluno Kay será armado
cavaleiro, e na próxima semana meu outro aluno partirá como seu escudeiro. Já não tenho mais
utilidade aqui, e chegou minha hora de ir embora.
— Vamos, vamos, não diga isso — disse Sir Ector. — Acho que você é um velho companheiro
muito útil, seja para o que for. Você fica e me ensina, ou vira o bibliotecário ou algo assim. Não se
deixa um velho pai sozinho, depois de suas crianças abandonarem o ninho.
— Nós todos nos encontremos outra vez — disse Merlin. —. Não há motivo para tristeza.
— Não vá — disse Kay.
— Tenho que ir — retrucou o tutor. — Tivemos um bom tempo, enquanto éramos jovens, mas é da
natureza do tempo passar. Existem muitas outras coisas nas outras partes do reino das quais devo
cuidar no momento, e é um momento especialmente ocupado para mim. Vamos, Archimedes, diga
adeus à nossa companhia.
— Adeus — disse Archimedes, com carinho para Wart.
— Adeus — disse Wart, sem olhar para ele, de jeito nenhum.
— Mas você não pode ir — exclamou Sir Ector. — Não sem um mês de aviso prévio.
— Não posso? — retrucou Merlin, assumindo a posição sempre usada por um filósofo que tinha a
intenção de se desmaterializar. Pôs-se na ponta dos pés, enquanto Archimedes segurava firme em
seu ombro, e começou a girar lentamente, como um pião, e cada vez mais e mais rápido até ser
apenas uma mancha de luz esverdeada. Em poucos segundos não havia mais ninguém ali.

— Adeus, Wart — gritaram duas vozes fracas do lado de fora da janela do solário.
— Adeus — disse Wart, pela última vez. E o pobre infeliz saiu rapidamente da sala.

XXIII


A elevação de Kay ao grau de cavaleiro aconteceu em meio a grandes preparativos. Seu banho
suntuoso teve que ser preparado na despensa, entre dois porta-toalhas e uma velha caixa de jogos
selecionados, contendo um tabuleiro de palha já muito gasto para dardos — era chamado de
fléchette
naquele tempo — porque todos os outros quartos estavam cheios de pacotes. A ama
passava o tempo todo fazendo ceroulas novas para todo mundo, partindo do princípio de que o
clima de qualquer lugar fora da Floresta Sauvage seria traiçoeiro ao extremo e, quanto ao sargento,
poliu toda a armadura até quase ficar quebradiça, e afiou o gume das espadas até quase no final.

Finalmente, chegou a hora de partir.

Talvez, se você não viveu na Velha Inglaterra do século XII, ou seja lá quando foi, nem num castelo
remoto nas fronteiras dos Pântanos, achará difícil imaginar as maravilhas daquela viagem.

O caminho, ou trilha, a maior parte do tempo seguia pelos altos espinhaços das serras ou colinas, e
eles podiam olhar, dos dois lados, para os pântanos desolados onde suspiravam os juncos cobertos
de neve, e onde o gelo estalava, e ao pôr-do-sol vermelho, os patos grasnavam alto no ar deinverno. Toda a região era assim. Às vezes, aparecia uma charneca de um lado do espinhaço, e uma
floresta de cem mil acres no outro, com todos os grandes galhos cobertos de branco. Em alguns
momentos, podiam ver um fio de fumaça entre as árvores, ou um ajuntamento bem distante de
construções entre os juncos impenetráveis, e duas vezes passaram por cidades bem respeitáveis,
com várias estalagens das quais se gabar, mas no conjunto era uma Inglaterra não civilizada. Os
melhores caminhos tinham, de cada lado, o mato limpo no cumprimento de um tiro de arco, para
evitar que os viajantes fossem mortos por ladrões escondidos.

Eles dormiam onde podiam, algumas vezes na cabana de algum camponês que tivesse condições de
recebê-los, às vezes no castelo de um cavaleiro irmão que os convidava para descansar um pouco,
às vezes à luz do fogo e pulgas de um galpão pequeno e sujo, com um ramo amarrado em um mastro
do lado de fora — era essa a tabuleta usada pelas estalagens naquele tempo — e uma ou duas vezes
em campo aberto, todos amontoados para se proteger do frio, entre os cavalos pastando. Aonde
quer que fossem e onde quer que dormissem, o vento do leste soprava nos juncos, e os gansos
selvagens voavam alto na luminosidade noturna, grasnando para as estrelas.

Londres estava cheia até a borda. Se Sir Ector não tivesse a sorte de ser o proprietário de uma
pequena terra em Pie Street, onde agora havia uma respeitável estalagem, eles teriam tido
dificuldades para encontrar alojamento. Mas ele era o proprietário, e para falar a verdade, retirava


a maior parte de seus dividendos dessa fonte, portanto conseguiram três camas para os cinco.
Consideraram-se afortunados.

No primeiro dia do torneio, Sir Kay conseguiu colocá-los a caminho das liças pelo menos uma hora
antes que as justas tivessem qualquer chance de começar. Passara a noite acordado, imaginando
como iria vencer os melhores barões da Inglaterra, e não foi capaz de comer seu desjejum. Agora,
ia à frente da cavalgada, com as faces pálidas, e Wart desejou poder fazer alguma coisa para
acalmá-lo.

Para pessoas da província, que apenas conheciam o desmantelado campo de torneios do castelo de
Sir Ector, a cena que viram foi maravilhosa. Era uma enorme cavidade verde na terra, quase tão
grande como a arena de um campo de futebol. Era três metros mais baixa que o terreno ao redor,
com encostas em declive, e a neve havia sido removida dali. Fora mantido quente com palhas, que
tinham sido tiradas esta manhã, e agora a relva cerrada brilhava verde na paisagem branca. Em
toda a volta da arena havia um mundo de cores tão deslumbrantes e movimentadas e faiscantes que
faziam a pessoa piscar os olhos. As madeiras da tribuna de honra estavam pintadas de escarlate e
branco. Os pavilhões de seda das pessoas famosas, armados por todo lado, eram azul-celeste,
verde, cor de açafrão e quadriculados. As bandeiras e bandeirolas que flutuavam por todo lado ao
vento brusco agitavam-se com todas as cores do arco-íris, a esticarem-se e bater nos mastros, e a
linha divisória no meio da arena era também feita de quadrados de tabuleiro em preto e branco. A
maioria dos combatentes e seus acompanhantes ainda não tinham chegado, mas se podia ver a partir
dos poucos que já estavam ali como as pessoas importantes transformariam o cenário em um
amontoado de flores, e como as armaduras brilhariam, e as mangas festonadas dos arautos
dançariam ao vento, quando levassem as cometas de bronze aos lábios para sacudir as nuvens
felpudas do inverno com toques de júbilo e fanfarras.

— Meu Deus! — exclamou Sir Kay. — Esqueci minha espada em casa.
— Não pode combater sem uma espada — disse Sir Grummore. — Completamente irregular.
— Melhor voltar e buscá-la — disse Sir Ector. — Dá tempo.
— Meu escudeiro fará isso — disse Sir Kay. — Que maldito erro para cometer! Vamos, escudeiro,
volte com toda a rapidez à estalagem e traga minha espada. Ganhará um xelim se chegar a tempo.
Wart ficou tão pálido quanto Sir Kay estava, e olhou como se fosse esbofeteá-lo. Então, disse:

— Isso será feito, mestre.
Virou seu vagaroso palafrém contra a corrente dos que chegavam.

"Oferecer dinheiro para mim!", exclamou Wart consigo mesmo. "Baixar os olhos do alto de sua
bela montaria para esse pangaré e me chamar de Escudeiro! Oh, Merlin, dê-me paciência com o
bruto, e não me deixe jogar seu maldito xelim na sua cara!"

Quando chegou à estalagem, ela estava fechada. Todo mundo fora ver o famoso torneio, e todo o
pessoal da casa seguira a multidão. Aqueles eram tempos sem lei e não era seguro deixar sua casa
— ou mesmo nela dormir — a menos que tivesse certeza de que ela estaria inexpugnável. As
venezianas de madeira aparafusadas nas janelas do térreo tinham cinco centímetros de espessura, e


as portas possuíam trancas duplas.

"E agora, o que faço", perguntou-se Wart, "para ganhar meu xelim?".

Olhou, pesaroso, para a pequena estalagem sem abertura e começou a rir.

"Pobre Kay", pensou. "Toda essa coisa do xelim foi só porque ele estava assustado e infeliz, e
agora tem motivos para isso. Bom, ele terá algum tipo de espada, nem que eu tenha que invadir a
Torre de Londres".

"Como é que uma pessoa faz para conseguir uma espada?", ele continuou. "Onde posso roubar
uma? Será que conseguiria tocaiar algum cavaleiro, mesmo estando montado nesse pangaré, e tomar
sua arma pela força? Tem que haver algum ferreiro ou homem de armas numa grande cidade como
esta, cuja loja deveria estar aberta".


— Meu Deus! — exclamou Sir Kay. — Esqueci minha espada. [...]
— Melhor voltar e buscá-la — disse Sir Ector. — Dá tempo.
— Meu escudeiro fará isso — disse Sir Kay. — Que maldito erro para cometer! Vamos,
escudeiro, volte com toda a rapidez à estalagem e traga minha espada. Ganhará um xelim se
chegar a tempo.

Wart ficou pálido e olhou corno se fosse esbofeteá-lo. Disse:

— Isso será feito, mestre.
Virou seu vagaroso palafrém contra a corrente dos que chegavam. "Oferecer dinheiro para
mim? exclamou Wart consigo mesmo. "Baixar os olhos do alto de sua bela montaria para esse
pangaré e me chamar de Escudeiro! Oh, Merlin, dê-me paciência com o bruto, e não me deixe
jogar seu maldito xelim na sua cara!"

Virou sua montaria e saiu a meio galope. No final da rua, havia uma igreja tranqüila, com um tipo
de praça em frente à sua porta. No meio da praça, havia uma grande pedra com uma bigorna, e uma
bela espada novinha estava enfiada na bigorna.

"Ora", pensou Wart, "suponho que isso seja uma espécie de memorial de guerra, mas terá que
servir. Tenho certeza de que ninguém se chateará com Kay por causa de um memorial de guerra, se
souberem de sua situação desesperada".

Amarrou as rédeas em um mourão da cerca, percorreu a passos largos a trilha de cascalho, e
segurou a espada.

— Venha, espada — disse. — Peço sua clemência para lhe tirar por uma causa nobre.
"Isto é extraordinário", pensou Wart. "Sinto-me estranho quando seguro esta espada, e vejo tudo
muito mais claramente. Vejo as lindas gárgulas da igreja e do monastério ao qual ela pertence. Vejo
de que maneira esplêndida os estandartes famosos da nave estão ondulando. Como aquele nobre
teixo levanta as cascas vermelhas de sua madeira para reverenciar Deus. Como a neve está limpa.
Posso sentir o cheiro de algo como matricária e a sarça doce — e será música o que estou
escutando?"

Era música, seja da flauta de Pã ou flautins, e a luz no adro da igreja era tão clara, mas não
estonteante, que se poderia pegar um alfinete a vinte metros de distância.

— Tem alguma coisa neste lugar — disse Wart. — Tem pessoas. Oh, pessoas, o que vocês
querem?
Ninguém respondeu, mas a música era alta e a luz, linda.

— Pessoas — exclamou Wart —, tenho que pegar esta espada. Não é para mim, mas para Kay.
Depois a trago de volta.
Ainda nenhuma resposta, e Wart virou-se outra vez para a bigorna. Viu as letras douradas, que não
leu, e as jóias no pomo do punho, cintilando sob a bela luz.

— Venha, espada — Wart disse.
Segurou o cabo com as duas mãos e puxou contra a pedra. Houve um melodioso acorde de flautins,
mas nada se moveu.
Wart soltou o cabo, quando estava começando a sentir as palmas da mão arderem, e deu um passo



atrás, vendo estrelas.

— Está bem presa — disse.
Ele a segurou outra vez e puxou com toda a força. A música tocou mais forte e a luz ao redor do
adro da igreja brilhou como ametista; mas a espada continuava presa.

— Ah, Merlin — exclamou Wart — ajude-me com esta espada.
Houve uma espécie de barulho agitado e um acorde longo tocou. Ao redor de toda a igreja
apareceram centenas de velhos amigos. Levantaram-se juntos das paredes da igreja, como os
fantasmas de Punch e Judy dos velhos tempos, e havia texugos e rouxinóis e gralhas e lebres e
gansos selvagens e falcões e peixes e cães e unicórnios caprichosos e vespas solitárias e
crocodilos e porcos-espinhos e grifos e os milhares de outros animais que ele conhecera. Eles
assomavam pela parede da igreja, os amigos e ajudantes de Wart, e todos falaram solenemente em
turnos. Alguns tinham saído dos estandartes da igreja, onde estavam pintados em heráldica, outros
das águas e do céu e dos campos ao redor — mas todos, até o menor camundongo, tinham vindo
ajudar por conta do amor. Wart sentiu sua força crescer.

— Trabalhe suas costas — disse um lúcio (ou chuço) saído de um dos estandartes heráldicos —
como você fez uma vez quando eu ia agarrá-lo. Lembre-se de que a força brota da nuca.

— E esses antebraços — perguntou um texugo, com seriedade —, que estão unidos por um tórax?
Vamos, meu querido embrião, encontre a sua ferramenta.
Um esmerilhão, pousado no topo do teixo, exclamou:

— Vamos lá, Capitão Wart, qual é a primeira lei da pata? Acho que uma vez escutei algo parecido
com "nunca soltar?".
— Não trabalhe como um pica-pau teimoso — advertiu com carinho uma coruja amarelo-castanha.
— Mantenha a força equilibrada, meu queridinho, e conseguirá.
— Agora, Wart — disse um ganso de testa branca —, se uma vez você foi capaz de voar pelo
grande Mar do Norte, com certeza é capaz de coordenar alguns pequenos músculos das asas aqui e
ali. Junte sua força com o espírito de sua mente, e ela sairá como manteiga. Vamos, vamos, Homo
sapiens,
pois todos nós, seus humildes amigos, estamos aqui esperando para comemorar.
Wart aproximou-se da grande espada pela terceira vez. Estendeu sua mão direita com suavidade e a
puxou tão gentilmente como se a puxasse de uma bainha.

Houve muitos aplausos, um barulho como o de um realejo que não parava. No meio do barulho,
depois de um longo tempo, ele viu Kay e lhe deu a espada. As pessoas no torneio estavam fazendo
um terrível rebuliço.

— Mas esta não é a minha espada — disse Sir Kay.
— Foi a única que consegui encontrar — respondeu Wart. — A estalagem estava fechada.
— É uma bela espada. Onde você a encontrou?
— Eu a encontrei presa a uma pedra, no adro de uma igreja. Sir Kay, muito nervoso, estava

observando o torneio, esperando sua vez. Não prestou muita atenção ao seu escudeiro.

— É um lugar estranho para achar uma espada.
— Tem razão, e ela estava presa através de uma bigorna.
— O quê? — gritou Sir Kay, virando de repente para ele. — Você disse mesmo que esta espada
estava presa em uma pedra?
— Estava — disse Wart. — Era uma espécie de memorial de guerra.
Sir Kay o encarou, espantado, por vários segundos, abriu a boca, fechou-a outra vez, passou a
língua pelos lábios, então virou as costas e mergulhou na multidão. Estava procurando Sir Ector, e
Wart o seguiu.

— Pai — gritou Sir Kay —, venha aqui um instante.
— Sim, meu rapaz — disse Sir Ector. — Esse pessoal consegue cair de maneira esplêndida. Ora,
qual é o problema, Kay? Você está branco como um lençol.
— Você se lembra daquela espada que o Rei da Inglaterra iria puxar?
— Sim.
— Então, aqui está ela. Eu a tenho. Está em minha mão. Eu a puxei da pedra.
Sir Ector não disse bobagem alguma. Olhou para Kay e olhou para Wart. Depois, olhou para Kay
de novo, durante muito tempo e amorosamente, e disse:

— Vamos de novo para a tal igreja.
— Agora, então, Kay — ele disse, quando chegaram ao adro da igreja. Olhou com gentileza para
seu primogênito, mas direto nos olhos. — Aqui está a pedra, e você está com a espada. Ela o fará o
Rei da Inglaterra. Você é meu filho, do qual me orgulho e sempre me orgulharei, seja o que for que
você faça. Você jura que você a puxou com sua própria força?
Kay olhou para seu pai. Também olhou para Wart e para a espada.

Então, entregou a espada para Wart em completo silêncio. E disse:

— Sou um mentiroso. Foi Wart quem a puxou.
Quanto a Wart, houve um tempo depois disso em que Sir Ector lhe dizia para pôr a espada outra
vez na pedra — o que ele fazia e Sir Ector e Kay tentavam em vão puxá-la. Wart a tirava para eles,
e a colocava de novo na pedra uma ou duas vezes. Depois disso houve um outro momento ainda
mais doloroso.

Ele viu que seu querido protetor estava parecendo muito velho e sem forças, e que estava se
dobrando com dificuldade, para pôr no chão seu joelho com gota.

— Senhor — disse Sir Ector, sem olhar para cima, embora estivesse falando com seu próprio
rapaz.
— Por favor, não faça assim, pai — Wart disse, ajoelhando-se também. — Deixe-me ajudá-lo a se

levantar, Sir Ector, porque assim está me fazendo infeliz.

— Não, não, meu senhor — disse Sir Ector, com algumas velhas lágrimas muito delicadas. —
Nunca fui vosso pai nem de vosso sangue, mas reconheço bem que sois de um sangue mais alto do
que eu poderia pensar.

— Muita gente me falou que o senhor não era meu pai — disse Wart —, mas isso não importa nada.
— Senhor — disse Sir Ector, com humildade —, sereis meu bom e benevolente senhor quando
fordes Rei?
— Não faça assim! — disse Wart.
— Senhor — disse Sir Ector —, não vos pedirei nada a não ser que façais de meu filho, vosso
irmão de criação, Sir Kay, senescal de todas as vossas terras?
Kay também estava se ajoelhando, e isso era mais do que Wart podia suportar.

— Oh, parem — ele exclamou. — Claro que ele pode ser o senescal, se eu tiver que ser esse Rei e,
oh, meu pai, não se ajoelhe assim porque destroça meu coração. Por favor, levante, Sir Ector, e não
faça tudo tão horrível. Oh, meu Deus, meu Deus. Queria nunca ter visto esta maldita espada, afinal.
E Wart também começou a chorar.


XXIV


Talvez devesse ter um capítulo sobre a coroação. Os barões naturalmente fizeram um rebuliço mas,
como Wart estava preparado para continuar colocando a espada na pedra e puxando-a outra vez até

o Juízo Final, e como não havia ninguém mais que pudesse fazer a mesma coisa, no final tiveram
que desistir. Alguns celtas se revoltaram, e foram subjugados mais tarde, mas no geral, o povo da
Inglaterra e os guerrilheiros como Robin ficaram contentes e sossegaram. Estavam cansados da
anarquia que fora a parte deles sob Uther Pendragron: cansados dos suseranos e de gigantes
feudais, dos cavaleiros que faziam o que lhes aprouvesse, da discriminação racial, e da regra da
Força como Direito.
A coroação foi uma cerimônia esplêndida. E ainda mais esplêndido é que ela foi como um dia de
aniversário ou Natal. Todo mundo enviou presentes para Wart, por sua proeza de ter aprendido a
tirar espadas de pedras, e vários burgueses da Cidade de Londres lhe pediram que os ajudassem a
tirar rolhas emperradas de garrafas, a desentupir torneiras que estavam entupidas, e outras
emergências domésticas que não haviam conseguido resolver. O Menino-Cão e Wat se associaram
e lhe enviaram uma mistura para indisposição, contendo quinino e absolutamente sem preço. Lyolyok
enviou-lhe flechas feitas com suas próprias penas. Cavall veio, simplesmente, e lhe deu seu
coração e sua alma. A ama da Floresta Sauvage enviou-lhe uma mistura para tosse, trinta dúzias de
lenços todos marcados, e um par de camisas com peito duplo. O sargento lhe enviou suas medalhas
da Cruzada, para serem preservadas pela nação. Hob passou a noite em agonia, sem poder dormir,
e enviou Cully com peias novinhas de couro branco, anilhas e campainhas de prata. Robin e Marian
fizeram uma expedição que durou seis semanas e enviaram um manto completo feito de peles de
martas dos pinhais. Little John enviou um arco de teixo, de dois metros de comprimento, que ele
próprio não era capaz de manejar. Um ouriço anônimo enviou quatro ou cinco folhas sujas com
pulgas. A Besta Gemente e o Rei Pellinore pensaram juntos e enviaram um pouco do excremento
mais perfeito, embrulhado em folhas verdes da primavera, dentro de um corno dourado com
talabarte de veludo vermelho. Sir Grummore enviou uma grosa de lanças, todas com as armas da
sua velha escola. Os cozinheiros, atendentes, aldeães e guardas do Castelo da Floresta Sauvage,
que receberam uma moeda de ouro cada um e foram enviados para a cerimônia num char-à-banc
puxado por um boi, pago por Sir Ector, trouxeram uma enorme imitação em prata da vaca
Crumbocke, que ganhara o campeonato pela terceira vez, e Ralph Passelewe para cantar no
banquete da coroação. Archimedes enviou seu próprio trineto, para que se empoleirasse no


espaldar do trono do Rei no jantar, e fizesse bagunça no chão. O Lorde Prefeito e os Regedores da
Cidade de Londres fizeram uma subscrição para um espaçoso aquário-gaiola-com-casa-de-bichos
na Torre, no qual todas as criaturas eram deixadas sem alimento um dia por semana para o bem de
seus estômagos — e onde, pela comida fresca, boas acomodações, atenção constante, e todas as
conveniências modernas, os amigos de Wart se recolheram na velhice de suas asas, patas e
barbatanas, para o pôr-do-sol de suas vidas felizes. Os cidadãos de Londres enviaram cinqüenta
milhões de libras para manutenção da casa dos bichos, e as Ladies da Inglaterra confeccionaram
um par de pantufas de veludo preto com as iniciais de Wart bordadas em ouro. Kay enviou seu
próprio troféu do grifo, com afeto sincero. Houve muitos outros presentes de bom gosto, de vários
barões, arcebispos, príncipes, reis tributários de terra de sepultura, corporações, papas, sultões,
comissões reais, conselhos distritais, czares, beis, mahatmas, e assim por diante, mas o melhor
presente de todos foi enviado com todo afeto pelo seu próprio protetor, o velho Sir Ector. Esse
presente era um grande chapéu orelha-de-burro, mais parecido com uma serpente de faraó, cujo
topo se podia acender. Wart acendeu-o e o deixou brilhar. Quando a chama tinha praticamente se
apagado, Merlin estava de pé diante dele, com seu chapéu de mago.

— Então, Wart — disse Merlin —, aqui estamos nós, ou estávamos, outra vez. Como você fica bem
com essa coroa. Não me era permitido contar-lhe antes, ou até então, mas seu pai era, ou será, o rei
Uther Pendragron, e fui eu mesmo, disfarçado de mendigo, quem o levou para o castelo de Sir
Ector, nas suas fraldas douradas. Sei tudo sobre seu nascimento e parentesco e quem lhe deu seu
verdadeiro nome. Sei os sofrimentos que o esperam, e as alegrias, e como já não haverá ninguém
que ousará chamá-lo pelo amigável nome de Wart. No futuro, será seu glorioso destino suportar o
fardo e desfrutar a nobreza de seu próprio título: portanto, agora, eu lhe rogo o privilégio de ser o
primeiríssimo de seus súditos a se dirigir a você como — meu amado soberano, Rei Arthur.
— Você ficará comigo por muito tempo? — perguntou Wart, sem entender muito do que estava se
passando.
— Sim, Wart — disse Merlin. — Ou melhor, como eu deveria dizer (ou terei dito?), Sim, Rei
Arthur.

Personagens deste volume


Os símbolos da partida em "A espada na pedra"


Sir Ector é o padrasto de Arthur e o pai biológico de Kay. Ele tem bom caráter e bom
temperamento, é algo pomposo e vociferante. Embora quase sempre pareça uma caricatura, Sir
Ector demonstra em geral ser menos tolo do que esperamos que venha a ser.

Sir Kay é o irmão adotivo de Arthur e um cavaleiro da Távola Redonda. Mimado quando criança,
Kay continua ruim e egoísta ao crescer -mas, no fundo, conserva uma decência essencial.

O Rei Pellinore é um acréscimo literário original de White ao cast arturiano. É o primeiro
cavaleiro que Arthur vem a encontrar. Um simpático inútil cuja missão na vida é caçar a Besta
Gemente, Pellinore acaba por se tornar um grande cavaleiro depois de seu casamento. Sua herança
de bondade e carinho sobrevive em seus filhos.

Sir Grummore é o confidente e melhor amigo de Sir Ector.

Uther Pendragon é o rei da Inglaterra durante a infância de Arthur -e seu verdadeiro pai. Quando
Pendragon morre, o novo rei é decidido em uma prova pelo qual só Arthur têm condições de
passar: o da espada na pedra.

A Fada Morgana é uma bruxa que Kay e Arthur derrotam temporariamente na Floresta Sauvage.
Ela é a filha do Conde da Cornualha e de Igraine -portanto, meia-irmã de Arthur.

Robin Wood, um personagem resultante dos anacronismos de White em 0 único e eterno rei, é o
Robin Hood da outra lenda famosa e não contemporânea à do rei Arthur. Aqui ele é um rebelde
saxão que vive na floresta e proporciona a Kay e Arthur a grande aventura de combater a Fada
Morgana.


Marian é a mulher de Robin, cuja força e determinação Wart admira intensamente.

Twyti é um javali enviado à Floresta Sauvage pelo rei Uther Pendragon.

Lyo-Lyok é um ganso que ensina a Arthur o sentido da paz e expõe a ele a crueldade da guerra.
Merlin transforma Arthur em um ganso e Lyo-Lyok torna-se seu professor durante o tempo em
transformação.


O Eterno e Futuro Rei 02


A RAINHA DO AR E DAS SOMBRAS



Título original: The queen of air and darkness
1939 by T. H. White


INCIPIT LIBER SECUNDUS


Quando estarei morto e livre
Dos erros cometidos por meu pai?
Quanto tempo, quanto tempo, até a espada e o féretro
Adormecerem a maldição de minha mãe?



I


Havia uma torre redonda com um cata-vento. O cata-vento tinha a forma de um corvo, com uma
flecha no bico para indicar a direção do vento.

No alto da torre havia um quarto circular, curiosamente sem conforto. Tinha correntes de ar. Havia
um cubículo no canto leste com um buraco no piso. Esse buraco controlava as portas exteriores da
torre, das quais havia duas, e por ele as pessoas podiam jogar pedras se estivessem sitiadas.
Infelizmente o vento costumava passar pelo buraco e pelas seteiras sem vidro e subir pela chaminé

— a menos que estivesse ventando do outro lado e, nesse caso, ia para baixo. Era como um túnel
de vento. O segundo inconveniente era o quarto estar cheio de fumaça de turfa, não de seu próprio
lume, mas do lume do quarto de baixo. O complicado sistema de ventilação sugava a fumaça pela
chaminé. As paredes de pedra suavam com a temperatura úmida. A própria mobília era
desconfortável. Consistia apenas de montes de pedras — que eram boas para serem jogadas pelo
buraco — ao lado de algumas bestas genovesas enferrujadas com suas flechas e um monte de turfa
para o fogo que não fora aceso. As quatro crianças não tinham camas. Se o quarto fosse quadrado,
eles poderiam ter uma cama de fechar, mas, do jeito que era, tinham que dormir no chão — onde se
cobriam com palhas e mantas de lã escocesa da melhor maneira que podiam.
Com as mantas, os meninos tinham erguido uma tenda improvisada sobre suas cabeças e debaixo
dela estavam deitados bem juntos, contando uma história. Podiam ouvir a mãe atiçando o fogo no
quarto de baixo, o que as fazia sussurrarem, temendo que ela pudesse escutá-los. Não que tivessem
medo de apanhar se ela subisse até lá. Eles a adoravam completamente e sem críticas, porque o
caráter dela era mais forte do que o deles. Nem tinham sido proibidos de conversar depois de hora
de ir para cama. Era mais como se ela os tivesse criado — talvez por indiferença ou por preguiça
ou mesmo por algum tipo de crueldade possessiva — com uma noção imperfeita do certo e do
errado. Era como se nunca pudessem saber quando estavam sendo bons ou quando estavam sendo
maus.

Eles estavam sussurrando em gaélico. Ou melhor, estavam sussurrando em uma estranha mistura de
gaélico com a antiga língua da Cavalaria — que lhes fora ensinada porque precisariam dela quando
crescessem. Conheciam pouco o inglês. Anos mais tarde, quando se tornassem cavaleiros famosos
na corte do grande rei, falariam inglês perfeitamente — todos eles, exceto Gawaine, que, como
líder do clã, faria questão de manter o sotaque escocês de propósito, para mostrar que não se
envergonhava de sua origem.


Gawaine contava a história porque era o mais velho. Estavam deitados juntos, como estranhas rãs,
magrinhas e misteriosas, os corpos bem-feitos e prontos para se completarem e fortalecerem assim
que lhes fosse dada uma nutrição decente. Tinham cabelos claros. Os de Gawaine eram bem ruivos
e os de Gareth mais claros que a palha. Tinham entre dez e quatorze anos de idade, e Gareth era o
mais novo dos quatro. Gaheris era uma criança apática. Agravaine, que vinha depois de Gawaine,
era o brigão da família — matreiro e inclinado ao choro, temia a dor. Isso porque tinha grande
imaginação e usava a cabeça mais do que os outros.

— Muito tempo atrás, meus heróis — Gawaine contava —, antes de termos nascido ou sermos
sequer pensados, havia uma formosa avó em nosso futuro, chamada Igraine.
— É a Condessa da Cornualha — disse Agravaine.
— Nossa avó é a Condessa da Cornualha — Gawaine concordou — e o cruel rei da Inglaterra se
apaixonou por ela.
— O nome dele era Uther Pendragon — disse Agravaine.
— Quem está contando a história? — Gareth perguntou, chateado. — Cala a boca.
— O Rei Uther Pendragon — continuou Gawaine — mandou chamar o Conde e a Condessa da
Cornualha...
— Nosso avô e nossa avó — disse Gaheris.
— ... e declarou que os dois deveriam ficar com ele em sua casa na Torre de Londres. Então,
quando eles estavam lá dentro com ele, ele pediu para nossa avó se tornar sua mulher e não ficar de
jeito nenhum com o vovô. Mas a casta e formosa Condessa da Cornualha...
— Vovó — disse Gaheris. Gareth exclamou:
— Maldição! Não dá mesmo para nos deixar em paz? Houve uma discussão abafada, pontuada por
chiados, socos e queixas.
— A casta e formosa Condessa da Cornualha — retomou Gawaine — rejeitou as propostas
amorosas do Rei Uther Pendragon e contou a nosso avô o que acontecera. Ela disse: "Acredito que
fomos chamados aqui para que eu fosse desonrada. Portanto, meu esposo, aconselho que partamos
imediatamente, que viajemos a noite toda até chegar a nosso próprio castelo". Assim, eles fugiram
da fortificação do Rei no meio da noite...
— Na escuridão da noite... — corrigiu Gareth.
— ... quando todas as pessoas da casa tinham ido dormir e, então, à luz de uma lanterna furtiva,
selaram seus bravos corcéis saltitantes, de olhos de fogo, pés de vento, simétricos, beiços grandes,
cabeças pequenas e partiram para a Cornualha, tão velozes quanto podiam.
— Foi uma jornada terrível — disse Gaheris.
— Eles mataram os cavalos que cavalgavam — disse Agravaine.
— Isso eles não fizeram — disse Garret. — Vovô e vovó não cavalgariam nenhum cavalo até matá-
los.

— Eles os mataram? — perguntou Gaheris.
— Não, não mataram — disse Gawaine, depois de pensar um pouco. — Mas por pouco.
Continuou a história.
— De manhã, quando o Rei Uther Pendragon soube o que ocorrera, ficou assustadoramente furioso.
— Cruelmente furioso — sugeriu Gareth.
— Assustadoramente furioso — repetiu Gawaine. — O Rei Uther Pendragon ficou
assustadoramente furioso e disse: "Hei de ter a cabeça daquele Conde da Cornualha em uma
bandeja de torta, por meu santuário!". Então, ele enviou uma carta a nosso avô na qual lhe dizia
para se abastecer e se fortificar, pois em quarenta dias ia expulsá-lo do castelo mais forte que
tivesse!
— Ele tinha dois castelos — Gawaine disse, orgulhoso. — Eram o Castelo Tintagil e o Castelo
Terrabil.
— Assim, o Conde da Cornualha levou nossa avó para Tintagil, e ele mesmo foi para Terrabil, e o
Rei Uther Pendragon foi sitiá-lo.
— E lá — Gareth gritou, incapaz de se conter — o rei ergueu muitos pavilhões, e houve uma
grande guerra entre ambas as partes, e muitas pessoas morreram!
— Mil? — sugeriu Gaheris.
— No mínimo duas mil — disse Agravaine. — Nós, gaélicos, não mataríamos menos que duas mil.
Na verdade, provavelmente foi um milhão.
— Então, quando nosso avô e avó venciam os cercos, e parecia que o Rei Uther seria
completamente derrotado, apareceu um mago perverso chamado Merlin...
— Um nigromante — disse Gareth.
— E esse nigromante, nem dá para acreditar, por meio de suas artes infernais conseguiu pôr o
traiçoeiro Uther Pendragon dentro do castelo da vovó. Vovô imediatamente fez uma retirada de
Terrabil, mas foi morto na batalha...
— Traiçoeiramente.

— E a pobre Condessa da Cornualha...
— A casta e formosa Igraine...
— Nossa avó...
— ... foi feita prisioneira pelo desalmado sulista inglês, o desleal Rei do Dragão e depois,
embora ela já tivesse três filhas encantadoras, diga-se o que quiser...
— As três encantadoras Irmãs da Cornualha.
— Tia Elaine.
— Tia Morgana.
— E mamãe.
— E embora já tivesse essas encantadoras filhas, ela foi forçada a se casar com o rei da
Inglaterra — o homem que matou seu esposo!
Em silêncio, eles refletiram sobre a enorme perversidade inglesa, esmagados por seu desfecho. Era
a história favorita da mãe deles, nas raras ocasiões em que se dava ao trabalho de lhes contar
alguma, e eles a sabiam de cor. Finalmente, Agravaine citou um provérbio gaélico, que a mãe
também lhes ensinara:

— Quatro coisas em que um lothiano{4} não pode confiar: chifre de vaca, pata de cavalo, rosnado

de cachorro e risada de inglês — sussurrou.

Os quatro mexeram-se na palha, inquietos, escutando um movimento misterioso no quarto de baixo.

O quarto de baixo dos contadores de história estava iluminado por uma única vela e pela luz cor de
açafrão do lume de turfa. Era um quarto pobre, para ser da realeza mas, pelo menos, tinha uma
cama — a grande cama de quatro colunas e dossel que era usada como trono durante o dia. Um
caldeirão de ferro com três pernas fervia sobre o fogo. A vela estava frente a uma lâmina de bronze
polido, que servia de espelho. Havia dois seres vivos no quarto, uma rainha e um gato. Ambos
tinham cabelos pretos e olhos azuis.

O gato preto deitava-se de lado à luz do fogo como se estivesse morto. Isso porque suas pernas
estavam amarradas juntas, como as de um cervo que vai ser carregado para casa, depois da caçada.
Desistira de tentar se desvencilhar e agora estava deitado, olhando o fogo pela ranhura dos olhos,
com os flancos arfando, curiosamente resignado. Ou então estava exausto — pois os animais sabem
quando se aproximam do fim. Diante da morte, a maioria deles tem uma dignidade recusada aos
seres humanos. Esse gato, com as pequenas chamas dançando em seus olhos oblíquos, talvez
estivesse vendo o desfile de suas oito vidas anteriores, revendo-as com estoicismo animal, para
além da esperança ou medo.

A rainha pegou o gato. Estava tentando um feitiço muito conhecido, para se divertir ou para passar

o tempo de alguma maneira, enquanto os homens estavam longe, na guerra. Tratava-se de um
método de se tornar invisível. Ela não era uma feiticeira séria como sua irmã Morgana Le Fay —
sua cabeça era muito leviana para levar qualquer grande arte a sério, ainda que fosse a negra. Fazia
isso porque as pequenas magias corriam em seu sangue — como acontecia com todas as mulheres
de sua raça.
Na água fervente, o gato teve convulsões horríveis e deu um grito assustador. Seu pêlo molhado
boiava no vapor, reluzindo como o flanco de uma baleia lanceada quando ele tentava pular ou
nadar com os pés atados. Sua boca se abriu de maneira hedionda, mostrando toda a goela rosa e os
dentes brancos de gato, afiados como espinhos. Depois do primeiro berro não foi mais capaz de
articular, apenas arreganhou as mandíbulas. Logo estava morto.

A Rainha Morgause de Lothian e das Órcades sentou-se ao lado do caldeirão e esperou. De vez em
quando, mexia o gato com uma colher de madeira. O fedor da pele fervida começou a encher o
quarto. Um observador teria visto, à luz benévola da turfa, que criatura refinada a rainha parecia
essa noite: os grandes olhos profundos, o cabelo cintilando com brilho negro, o corpo bem-feito e o
vago ar de vigilância ao escutar os sussurros no quarto acima.

Gawaine disse:

— Vingança!
— Eles não haviam feito nenhum mal ao Rei Pendragon.
— Só queriam ser deixados em paz.
Era a injustiça do rapto de sua avó da Cornualha que feria Gareth — a imagem de pessoas fracas e
inocentes vitimadas por uma tirania impossível de resistir. — a velha tirania dos inimigos — que


era sentida como um mal pessoal por todo lavrador das Ilhas. Gareth era um menino generoso.
Odiava a idéia da força contra a fraqueza. Isso fazia seu coração dilatar-se como se fosse sufocar.
Gawaine, por outro lado, tinha raiva porque era um ato cometido contra sua família. Não achava
errado a força abrir seu caminho, mas apenas que era profundamente errado qualquer coisa
acontecer contra o seu próprio clã. Não era nem inteligente nem sensível, mas era leal —
obstinadamente algumas vezes, e até de maneira irritante e estúpida mais tarde na vida. Para ele,
então, era como sempre haveria de ser: que vivam as Órcades, com razão ou sem ela. O terceiro
irmão, Agravaine, ficava emocionado porque era um assunto que se referia a sua mãe. Ele tinha
sentimentos curiosos em relação a ela, os quais guardava para si. Quanto a Gaheris, ele fazia e
sentia o que os outros faziam e sentiam.

O gato se desfez em pedaços. A longa fervura despedaçou sua carne até que nada restasse no
caldeirão exceto uma escuma grossa de pêlo e gordura e pedaços de carne. Por baixo, os ossos
brancos giravam no redemoinho da água, os pesados mais no fundo e as membranas leves
levantando-se graciosamente, como folhas ao vento do outono. A rainha, franzindo levemente o
nariz pelo mau cheiro do denso cozido sem sal, coou o líquido para uma segunda panela. No fundo
do coador de flanela restou um sedimento de gato, uma massa empapada de pêlos emaranhados e
pedaços de carne e ossos finos. Ela soprou no sedimento e começou a revolvê-lo com o cabo da
colher, levantando-o para deixar passar o calor. Logo pôde pegá-lo com os dedos.

A rainha sabia que todo gato preto puro possuía um determinado osso que, se fosse colocado na
boca depois de cozido o gato vivo, era capaz de tornar a pessoa invisível. Mas ninguém sabia
exatamente, mesmo naqueles tempos, qual era esse osso. Por isso a magia tinha que ser feita em
frente a um espelho, para que o osso certo pudesse ser encontrado por experimentação.

— E a pobre Condessa da Cornualha...
— A casta e formosa Igraine...
— Nossa avó...
— ... foi feita prisioneira pelo desalmado sulista inglês, o desleal Rei do Dragão e depois,
embora ela já tivesse três filhas encantadoras, diga-se o que quiser...
— As três encantadoras Irmãs da Cornualha.
— Tia Elaine.
— Tia Morgana.
— E mamãe.
— E embora já tivesse essas encantadoras filhas, ela foi forçada a se casar com o rei da
Inglaterra — o homem que matou seu esposo!
Não que Morgause achasse graça na invisibilidade — na verdade, ela a teria detestado, porque era
linda. Mas os homens estavam fora. Era algo para passar o tempo, um feitiço fácil e bem
conhecido. Além disso, era um pretexto para se demorar frente ao espelho.

A rainha raspou as sobras do gato em dois montes, um deles uma pilha caprichada de ossos


mornos, o outro uma miscelânea informe que exalava um vaporzinho. Depois, escolheu um dos
ossos e o levou até os lábios vermelhos, erguendo o dedo mindinho. Segurou-o entre os dentes e
ficou parada em frente ao bronze polido, olhando-se com indolente prazer. Atirou o osso no fogo e
pegou outro.

Ninguém estava ali para vê-la. Era estranho, nessas circunstâncias, a maneira como ela se virava e
tornava a virar, do espelho até a pilha de ossos, sempre colocando um osso na boca e se olhando
no espelho para ver se desaparecera, logo a seguir jogando o osso fora. Movia-se tão
graciosamente, como se estivesse dançando, como se realmente alguém estivesse observando-a ou
como se fosse suficiente ela mesma se ver.

Por fim, mas antes de ter testado todos os ossos, perdeu o interesse. Atirou os últimos no chão, sem
paciência, e jogou os restos da bagunça pela janela, sem se importar com o lugar onde caíssem. Em
seguida, abafou o fogo, estendeu-se na grande cama com um movimento estranho e lá ficou, na
escuridão, durante um longo tempo sem dormir — seu corpo movendo-se, desgostoso.

— E esta, meus heróis — concluiu Gawaine —, é a razão pela qual nós da Cornualha e dasÓrcades devemos ser contra os reis da Inglaterra, para sempre, e mais ainda contra o clã Mac
Pendragon.
— Foi por isso que nosso pai foi lutar contra esse tal Rei Arthur, seja ele quem for, pois Arthur é
um Pendragon. Nossa mãe falou.
— E nós devemos manter nosso feudo vivo para sempre — disse Agravaine —, porque mamãe é
uma Cornualha. Lady Igraine é nossa avó.
— Devemos vingar nossa família.
— Porque mamãe é a mulher mais bonita do mundo das serranias altas, extensas, importantes e
prazerosamente mutantes.
— E porque nós a amamos.
Realmente, eles a amavam. Talvez todos nós sejamos assim: damos a melhor parte de nossos
corações, sem crítica, àqueles que, em troca, mal pensam em nós.


II


Nas ameias de seu castelo em Camelot, durante um intervalo de paz entre as duas Guerras Gaélicas,

o jovem rei da Inglaterra estava em pé com seu tutor, olhando ao longe as vastidões púrpuras do
entardecer. Uma luz suave inundava a terra abaixo, e o rio vagaroso serpenteava entre a abadia
venerável e o castelo imponente, enquanto a água flamejante ao pôr-do-sol refletia pontas e
torreões e bandeirolas suspensas, imóveis, no ar tranqüilo.
O mundo estendia-se frente aos dois observadores como um brinquedo, pois eles estavam na torre
alta que dominava a cidade. A seus pés, podiam ver a relva que ia até a muralha exterior — era
horrível olhá-la assim de cima — e a pequena figura de um homem, com dois baldes em uma canga,
indo em direção à casa dos animais. Eles podiam ver, mais além da casa da ponte levadiça, para
onde não era tão horrível olhar porque não estava verticalmente abaixo, o guarda da noite
assumindo o posto do sargento. Batiam os calcanhares e faziam continências e apresentavam armas
e trocavam as senhas tão festivamente como repique de sinos — mas para os dois era como se tudo
estivesse sendo feito em silêncio, pois estava muito longe. Pareciam soldadinhos de chumbo, os
pequenos guardas, e não se escutavam suas passadas sobre o gramado luxuriante mordiscado pelas
ovelhas. Mais além, fora dos muros da fortaleza, havia o ruído distante de velhas viúvas
pechinchando, e pirralhos gritando em embates corporais, e alguns bodes soltos por ali, e dois ou
três leprosos com capuzes brancos tocando as campainhas enquanto caminhavam, e o ruge-ruge dos
hábitos das freiras que bondosamente visitavam os pobres, duas a duas, e uma discussão
acontecendo entre alguns senhores interessados em cavalos. Do outro lado do rio, que corria
diretamente por baixo das muralhas do castelo, havia um homem lavrando o campo, com seu arado
amarrado ao rabo do cavalo. O arado de madeira gemia. Perto dele, uma pessoa em silêncio
pescava salmão com minhocas — os rios não eram poluídos naqueles tempos — e, mais além, um
asno dava seu concerto musical ao cair da noite. Todos esses ruídos chegavam muito fracos aos
dois na torre, como se eles estivessem escutando pelo lado contrário de um megafone.

Arthur era um homem jovem, no começo da vida. Tinha belos cabelos, mas um rosto ingênuo, ou de
alguma maneira carente de malícia. Era um rosto aberto, com olhos gentis e uma expressão
confiável ou leal, como a de um bom aprendiz que desfruta o fato de estar vivo e não acredita no
pecado original. Para começar, nunca tinha sido tratado de maneira injusta, portanto, era gentil com
as outras pessoas.

O rei estava vestido com um manto de veludo que pertencera a Uther, o Conquistador, seu pai,


adornado com as barbas dos quatorze reis vencidos nos tempos antigos. Infelizmente, alguns desses
reis tinham barbas vermelhas, outros pretas, alguns grisalhas, e também o comprimento de suas
barbas era desigual. A guarnição parecia uma serpente emplumada. Os bigodes estavam pregados
ao redor dos botões.

Merlin tinha uma barba branca que chegava até a cintura, óculos com aros de chifre e um chapéu
cônico. Ele o usava em homenagem aos servos saxões do país, cujo barrete nacional era ou um tipo
de touca de mergulho, ou o barrete frígio, ou então esse cone de palha.

Os dois falavam de vez em quando, conforme as palavras lhes chegavam, entre os encantos dos
ruídos do entardecer.

— Bem — disse Arthur —, devo reconhecer que é bom ser rei. Foi uma batalha excelente.
— Acha?
— Claro que foi excelente. Lembra-se do jeito que Lot das Órcades correu, quando comecei a usar
Excalibur?
— Primeiro, ele o derrubou.
— Isso não foi nada. Eu ainda não estava usando Excalibur. Assim que desembainhei minha fiel
espada, eles correram como coelhos.
— Virão de novo — disse o mágico —, todos os seis. Os Reis das Órcades, de Carloth, de Gore,
da Escócia, da Torre e os Cem Cavaleiros de fato já começaram a formar a Confederação Gaélica.
Você deve se lembrar que seu direito ao trono não é nada convencional.
— Deixe que venham — respondeu o Rei. — Não me importo. Da próxima vez, eu os vencerei
completamente e então veremos quem é que manda.
O velho enfiou a barba na boca e começou a mastigá-la, como geralmente fazia quando ficava
perturbado. Mordeu um cabelo que ficou preso entre dois dentes. Tentou tirá-lo com a língua,
depois puxou-o com os dedos. Por fim, começou a enrolar a barba em duas pontas.

— Suponho que um dia você aprenderá — ele disse. — Mas Deus sabe que é de cortar o coração,
um trabalho penoso.
— É?
— É? — exclamou Merlin colérico. — É? É? É? Isto é tudo que você consegue dizer. É? É? É?
Como um menino de escola.
— Acabo cortando sua cabeça se não for mais cuidadoso.
— Corte-a. Seria uma boa coisa se o fizesse. Pelo menos eu não teria que continuar sendo seu tutor.
Arthur tirou o cotovelo da ameia e olhou para o velho amigo.
— Qual é o problema, Merlin? — perguntou. — Estou fazendo alguma coisa errada? Se estiver,
lamento muito.
O mago desenrolou sua barba e suspirou.


— Não é tanto o que você está fazendo — ele disse. — É como você está pensando. Se tem uma
coisa que não consigo suportar é estupidez. Sempre digo que a estupidez é o Pecado contra o
Espírito Sagrado.
— Sei que você diz.
— Agora você está sendo sarcástico. O rei o pegou pelo ombro e girou-o:
— Diga — pediu —, o que está errado? Você está de mau humor? Se fiz algo estúpido, me diga.
Não fique irritado.
Isso teve o efeito de deixar o velho nigromante ainda mais enraivecido que antes.

— Dizer a você! — exclamou. — E o que vai acontecer quando não tiver ninguém para lhe dizer?
Você nunca vai pensar por si mesmo? O que vai acontecer quando eu estiver fechado naquele meu
desgraçado túmulo, posso saber?
— Eu não sabia que havia um túmulo nessa história.
— Ah, esqueça o túmulo! Que túmulo? Do que estou falando, afinal?
— Da estupidez — disse Arthur. — Era da estupidez que você estava falando quando começou.
— Exatamente.
— Bem, não é suficiente dizer "exatamente". Você ia dizer algo sobre isso.
— Não sei mais o que ia dizer sobre isso. Você deixa a pessoa tão transtornada com seus issos e
aquilos que, tenho certeza, depois de dois minutos com você, ninguém sabe mais do que estava
falando. Sobre o que começamos a falar?
— Começamos a falar sobre a batalha.
— Agora me lembro — disse Merlin. — Foi justamente aí que começamos.
— Eu disse que tinha sido uma boa batalha.
— Eu me recordo.
— Bem, foi uma boa batalha — ele repetiu, na defensiva. — Foi uma batalha divertida, e eu venci,
e foi boa.
Os olhos do mago velaram-se como os de um abutre, enquanto ele desaparecia dentro de sua mente.
Houve silêncio nas ameias por vários minutos, enquanto um casal de falcões peregrinos, que foram
soltos para procurar comida no campo próximo, voou sobre suas cabeças numa caçada brincalhona,
gritando qui-qui-qui, suas campainhas tocando. Merlin deixou seus olhos outra vez olharem para
fora.

— Foi esperto de sua parte vencer a batalha — ele disse lentamente.
Arthur aprendera que devia ser modesto, mas era demasiado ingênuo para perceber que o abutre ia
atacar.

— Ah, bem. Foi sorte.

— Muito esperto — Merlin repetiu. — Quantos de seus solados de infantaria morreram?
— Não me lembro.
— Não?
— Kay disse...
O rei parou no meio da frase e olhou para ele.
— Bem — disse. — Não foi divertido, então. Eu não havia pensado nisso.
— Calcularam mais de setecentos. Eram todos soldados a pé, evidentemente. Nenhum dos
cavaleiros se machucou, exceto o que quebrou a perna ao cair do cavalo.
Quando viu que Arthur não responderia, o velho continuou com uma voz mais amarga.

— Estava me esquecendo — acrescentou — de que você teve alguns machucados bastante
desagradáveis.
Arthur examinou as unhas.

— Detesto quando você fica pedante. Merlin ficou encantado.
— Este é o espírito da coisa — disse, tomando o braço do rei e sorrindo contente. — É assim que
deve ser. Defenda-se a si mesmo, é o que precisa fazer. Pedir conselho é uma coisa fatal. Além
disso, logo não estarei aqui para lhe aconselhar.
— O que é isso que você fica falando, isso de que não vai estar aqui, e o tal túmulo e coisas assim?
— Não é nada. Dentro de algum tempo, estou destinado a me apaixonar por uma moça chamada
Nimue, e então ela irá aprender meus feitiços e vai me trancar em uma caverna por vários séculos.
É uma das coisas que acontecerão.
— Mas, Merlin, que horrível! Ficar preso em uma caverna por séculos como um sapo num buraco!
Temos que fazer alguma coisa sobre isso.
— Besteira — respondeu o mago. — Sobre o que mesmo eu estava falando?
— Sobre essa moça...
— Eu estava falando sobre conselhos, e como você nunca deve aceitá-los. Bom, vou lhe dar alguns
agora. Eu lhe aconselho a pensar sobre batalhas, e sobre seu reino de Gramarye, e sobre o tipo de
coisas que um rei deve fazer. Você pensará sobre isso?
— Sim. Claro que pensarei. Mas sobre essa moça que aprende os feitiços...
— Veja, este é um problema do povo tanto quanto dos reis. Quando você disse que a batalha tinha
sido divertida, estava pensando como seu pai. Quero que você pense como você mesmo, para que
seja um motivo de honra toda essa educação que tenho lhe dado... mais tarde, quando eu for apenas
um velho preso em um buraco.
— Merlin!
— Ora, ora! Estava brincando para ter sua compaixão. Não importa. Disse isso para causar efeito.

Para falar a verdade, será interessante ter um descanso por alguns séculos e, quanto a Nimue, faz
um bom tempo que estou esperando por ela. Não, não, a coisa importante é essa questão de pensarpor-
você-mesmo e a questão das batalhas. Você já pensou seriamente sobre a situação do seu país,
por exemplo, ou vai passar toda sua vida como Uther Pendragon? Afinal, você é o rei deste lugar.

— Não pensei muito a respeito.
— Não, não pensou. Então, deixa-me pensar um pouco por você. Suponha que pensemos sobre seu
amigo gaélico, Sir Bruce Sans Pitié.
— Aquele sujeito!
— Exatamente. E por que você fala dele assim?
— Ele é um porco. Sai matando donzelas — e, assim que um cavaleiro de verdade aparece para
salvá-las, ele foge a galope o mais rápido que pode. Ele cria cavalos especialmente velozes para
que ninguém possa alcançá-lo e apunhala as pessoas pelas costas. E um saqueador. Eu o mataria
assim que o agarrasse.
— Bem — disse Merlin —, não o acho muito diferente dos outros. O que significa toda essa
Cavalaria, na verdade? Significa ser rico o bastante para ter um castelo e uma armadura, e então,
de posse deles, obrigar o povo saxão a fazer o que ele quer. O único risco que corre é sair um
pouco machucado se acontecer de encontrar outro cavaleiro pela frente. Lembra-se daquele torneio
que você assistiu entre Pellinore e Grummore, quando era menino? E a armadura que faz isso.
Todos os barões podem fatiar as pessoas pobres tanto quanto quiserem, é um dia de trabalho ferir
um ao outro, e o resultado é que este país está devastado. A Força é o Direito, este é o lema. Bruce
Sans Pitié é apenas um exemplo da situação geral. Veja Lot e Nentres e Uriens e todos da quadrilha
gaélica lutando contra você pelo reino. Admito que tirar espadas de pedras não é uma prova legal
de paternidade, mas os reis dos Antigos não estão lutando contra você por causa disso. Rebelaram-
se, embora você seja o soberano feudal, simplesmente porque o trono está inseguro. As
dificuldades da Inglaterra, costumamos dizer, são as oportunidades da Irlanda. Esta é a chance que
eles têm de ajustar as contas raciais, fazer correr um pouco de sangue por esporte e ganhar algum
dinheiro com os resgates. Essa turbulência nada custa a eles mesmos porque estão vestidos com
suas armaduras — e você também parece se divertir com isso. Mas veja como está o país. Veja os
celeiros queimados, as pernas dos mortos boiando nos charcos, os cavalos de barrigas inchadas à
beira dos caminhos, moinhos caindo, dinheiro enterrado e ninguém ousando sair de casa com ouro
ou ornamentos nas roupas. Isso é a Cavalaria, atualmente. Esta é a marca de Uther Pendragon. E
você ainda vem dizer que a batalha foi divertida!
— Eu estava pensando em mim mesmo.
— Eu sei.
— Eu deveria ter pensado nas pessoas que não tinham armaduras.
— Exato.
— A Força não é o Direito, é, Merlin?

— Ahá! — respondeu o mago, abrindo um grande sorriso. — Ahá! Você é um rapaz esperto,
Arthur, mas não vai pegar seu velho tutor assim. Está tentando me atrapalhar me fazendo pensar por
você. Mas não me deixo agarrar. Sou uma raposa muito velha para isso. Você terá de pensar o resto
por si mesmo. Será a Força o Direito — e se não, por que não, dê as razões e faça um plano. Além
disso, o que você vai fazer sobre isso?
— O que... — começou o Rei, mas viu a carranca se formando. — Muito bem — ele disse. —
Pensarei sobre isso.

E começou a pensar, passando a mão pelo lábio superior, onde cresceria o bigode.

Houve um pequeno incidente antes de deixarem a torre. O homem que passara carregando os dois
baldes até onde estavam os animais voltou com os baldes vazios. Passou diretamente abaixo deles,
parecendo minúsculo, em direção à porta da cozinha. Arthur, que estava brincando com uma pedra
solta que tinha deslocado de um dos balestreiros, cansou de pensar e se debruçou com a pedra na
mão.

— Como Curselaine parece pequeno.
— Ele é miúdo.
— O que aconteceria se eu deixasse essa pedra cair na cabeça dele?
Merlin calculou a distância.
— A nove metros e sessenta centímetros por segundo — ele disse —, acho que o mataria.
Quatrocentos g
são suficientes para esmagar seu crânio.
— Nunca matei ninguém desse jeito — disse o rapaz, em tom curioso.
Merlin observava.
— Você é o rei — ele disse. Depois acrescentou:
— Ninguém vai poder lhe dizer nada se você tentar. Arthur ficou parado, debruçado com a pedra
na mão. Depois, sem mover o corpo, seus olhos se enviesaram para encontrar os de seu tutor.
A pedra levou o chapéu de Merlin com um zunido, e o velho saiu correndo atrás dele pelas
escadas, agitando sua vara de pau-santo.

Arthur estava feliz. Como o homem no Éden antes da queda, desfrutava sua inocência e boa sorte.
Em vez de ser um pobre escudeiro, era um rei. Em vez de ser um órfão, era amado por quase todo
mundo exceto os gaélicos, e amava todo mundo em troca.

No que a ele se referia, nunca houvera, até então, algo como uma única partícula de tristeza na
superfície alegre e suave do mundo brilhando como o orvalho.


III


Sir Kay escutara histórias sobre a Rainha das Órcades e estava curioso sobre ela.

— Quem é a Rainha Morgause? — ele perguntou um dia. — Ouvi dizer que é linda. Por que esses
Antigos querem lutar contra nós? E como é seu esposo, o Rei Lot? Qual é seu nome realmente?
Ouvi alguém chamá-lo de rei das Ilhas Exteriores, mas há outros que o chamam de rei de Lothian edas Órcades. Onde fica Lothian? É perto de Hy Brazil{5}? Não posso entender o motivo dessa
revolta. Todo mundo sabe que o rei da Inglaterra é o senhor de todos os feudos. Ouvi dizer que elatem quatro filhos. É verdade que não se dá bem com seu esposo?
Eles voltavam a cavalo de um dia nas montanhas, onde estiveram caçando tetraz com falcões
peregrinos, e Merlin fora com eles pelo prazer da cavalgada. Recentemente, tornara-se vegetariano

— por princípio um adversário de esportes sanguinolentos, embora tenha participado da maioria
deles em sua despreocupada juventude — e mesmo agora, secretamente, adorava ficar apenas
observando os falcões. Os círculos magníficos que formavam enquanto esperavam — pequenas
manchas no céu — e o br-r-r-r que faziam ao ceifar a tetraz, e a maneira como a vítima infeliz,
morta instantaneamente, era jogada de ponta-cabeça na urze — essa era uma tentação à qual ele se
rendia apesar do desagradável reconhecimento de que era um pecado. Consolava-se dizendo que a
tetraz era para a panela. Mas era uma desculpa esfarrapada, pois ele tampouco aceitava carne como
comida.
Arthur, que cavalgava com cautela, como um jovem monarca sensato, afastou os olhos de uma
moita de tojos que poderia esconder uma emboscada naqueles tempos de anarquia, e fixou os olhos
em seu tutor. Com a metade de sua mente tentava adivinhar qual das perguntas de Kay o mago
escolheria responder, mas com a outra metade ainda estava atento às possibilidades bélicas da
paisagem. Sabia que os falcoeiros estavam bem atrás deles — o carregador com os falcões
encapuzados em uma armação quadrada apoiada nos ombros, com um homem armado a cada lado

— e a que distância mais à frente estava o próximo lugar adequado para uma flecha de William
Rufus.
Merlin escolheu a segunda pergunta.

— As guerras nunca são feitas por uma razão — disse. — São guerreadas por dúzias de razões, emuma confusão. É a mesma coisa com as revoltas.
— Mas deve haver uma razão principal — disse Kay.

— Não necessariamente. Arthur observou:
— Devemos seguir em trote, agora. Há um campo plano por três quilômetros depois daqueles tojos,
e então podemos ir a meio galope de novo, para esperar os homens. Os cavalos poderão tomar
fôlego.
O chapéu de Merlin caiu. Eles tiveram que parar para pegá-lo. Depois, puseram os cavalos para
andar tranqüilamente em fila.

— Uma razão — retomou o mago — é a rixa imortal entre Gael e vocês. A Confederação Gaélica é
formada por representantes de uma raça antiga que foi expulsa da Inglaterra por várias raças que
são representadas por vocês. Naturalmente, sempre que possível, eles gostam de atazanar suas
vidas.
— A história racial não depende de nós — disse Kay. — Ninguém sabe que raça é qual. De
qualquer modo, são todos servos.
O velho olhou para ele de um modo que parecia divertido.

— Uma das coisas mais chocantes em um normando — disse — é que ele realmente não sabe nada
sobre coisa alguma exceto sobre si mesmo. E você, Kay, como um fidalgo normando, leva essa
peculiaridade a seu extremo. Pergunto-me se você sequer sabe o que é um gaélico. Algumas
pessoas os chamam de celtas.
— Celta é um tipo de machadinha-de-batalha — Arthur disse, surpreendendo o mago com essa
informação mais do que ele tinha se surpreendido durante várias gerações. Pois era verdade, esse
era um dos significados da palavra, embora Arthur não devesse saber disso.
— Não me refiro a essa espécie de celta. Estou falando sobre o povo. Vamos continuar chamando-
os de gaélicos. Refiro-me aos Antigos que vivem na Bretanha e na Cornualha e em Gales e na
Irlanda e na Escócia. Pictos e tal.
— Pictos? — perguntou Kay. — Acho que escutei falar de pictos. Não eram pictóricos? Pintados
de azul?
— E supostamente fui eu quem cuidei de sua educação! O Rei disse, pensativo:
— Você se importaria de me falar sobre as raças, Merlin? Suponho que devo entender essa
situação, se houver uma segunda guerra.
Desta vez foi Kay quem pareceu surpreso.

— Vai haver uma segunda guerra? — perguntou. — É a primeira vez que escuto falar disso. Pensei
que a revolta tivesse sido esmagada no ano passado.
— Eles formaram uma nova confederação quando voltaram para casa, com cinco novos reis,
portanto agora são onze ao todo. Os novos também pertencem ao sangue antigo. São Clariance do
Norte de Humberland, Idres da Cornualha, Cradelmas do Norte de Gales, Brandegoris de
Stranggore e Anguish da Irlanda. Será uma verdadeira guerra, é o que temo.
— E tudo por causa das raças — disse seu irmão de criação com desgosto. — Mesmo assim, pode

ser divertido.
O rei ignorou-o.

— Vamos — disse a Merlin. — Quero que você me explique. — Mas — acrescentou rapidamente,
quando o mago começou a abrir a boca — nada de muitos detalhes.
Merlin abriu e fechou a boca duas vezes, antes de ser capaz de obedecer a essa restrição.

— Há quase três mil anos — ele disse — este país que você governa pertenceu a uma raça gaélica
que lutava com machadinhas de cobre. Há dois mil anos eles foram escorraçados para o oeste por
outra raça gaélica com espadas de bronze. Há mil anos, houve uma invasão dos teutões, pessoas
que tinham armas de ferro, mas não atingiram toda as Ilhas de Pictos porque os romanos chegaram
no meio e confundiram as coisas. Os romanos foram embora cerca de oitocentos anos atrás, e então
outra invasão teutônica — de um povo chamado principalmente de saxão — expulsou a turma toda
para o oeste, como é o costume. Os saxões estavam começando a se estabelecer quando seu pai, o
Conquistador, chegou com seu bando de normandos, e é onde estamos hoje. Robin Wood era um
partidário saxão.
— Pensei que nosso nome fosse Ilhas Britânicas.
— E é. As pessoas misturam os bês e os pês. Nada como a raça dos teutões para confundir as
consoantes. Na Irlanda, eles ainda falam de um povo chamado Formorianios que, na verdade, eram
os Pomeranios, enquanto...
Arthur interrompeu-o nesse momento crítico.

— Então chegamos a isso — ele disse, — nós, normandos, temos os saxões como servos, enquanto
os saxões antes tinham uma espécie de sub-servos que eram chamados de gaélicos — os Antigos.
Nesse caso, não vejo porque a Confederação Gaélica quer lutar contra mim — como um rei
normando — quando na verdade foram os saxões que os expulsaram, e isso centenas de anos atrás,
de qualquer maneira.
— Você está subestimando a memória gaélica, querido jovem. Eles não distinguem vocês. Os
normandos são uma raça de teutões, como os saxões que seu pai conquistou. Para os antigos
gaélicos, vocês dois são ramos de um mesmo povo estrangeiro, que os expulsou para o norte e
oeste.

— Há quase três mil anos este país que você governa pertenceu a uma raça gaélica que lutava
com machadinhas de cobre. Há dois mil anos eles foram escorraçados para o oeste por outra
raça gaélica com espadas de bronze. Há mil anos, houve uma invasão dos teutões. pessoas que
tinham armas de ferro, mas não atingiram toda as Ilhas de Pictos porque os romanos chegaram
no meio e confundiram as coisas. Os romanos foram embora cerca de oitocentos anos atrás, e
então outra invasão teutônica — de um povo chamado principalmente de saxão — expulsou a
turma toda para o oeste, como é o costume.
Kay disse, sem pestanejar:

— Não agüento mais essas histórias. Afinal, supostamente já somos adultos. Se continuarmos
assim, vamos acabar fazendo ditado.
Arthur sorriu e começou com a voz cantada da qual se recordavam muito bem: Barbara Celarente
Darii Ferioque Prioris, enquanto Kay cantava os quatro versos seguintes em antifonia com ele.

Merlin disse:

— Você pediu.

— E agora já sabemos.
— O principal é que a guerra vai acontecer porque os teutões ou seja á como você os chame
derrotaram os gaélicos tempos atrás.
— Certamente que não — exclamou o mago. — Nunca disse nada semelhante.
Os jovens abriram a boca, estupefatos.
— Eu disse que a guerra acontecerá por várias razões, não por uma. Outra das razões para esta
guerra em particular é porque a
Rainha Morgause é quem veste as calças. Ou talvez eu deva dizer os saiotes escoceses.
Arthur perguntou, com atenção:

— Vamos deixar isso bem claro. Primeiro, você vem e me diz que Lot e o resto tinham se rebelado
porque eles eram gaélicos e nós normandos, mas agora você me diz que isso tem a ver com as
calças da Rainha Morgause. Poderia definir melhor?
— Existe a rixa dos gaélicos com os normandos sobre as quais estivemos falando, mas existem
também outras rixas. Certamente você não se esqueceu que seu pai matou o Conde da Cornualha
antes de você nascer? A Rainha Morgause era uma das filhas desse conde.
— As Encantadoras Irmãs da Cornualha — observou Kay.
— Exato. Vocês mesmos se encontraram com uma delas — a Rainha Morgana Le Fay. Quando
eram amigos de Robin Wood encontraram-na em uma cama de banha de porco. A terceira irmã era
Elaine. Todas as três são feiticeiras de um tipo ou outro, embora Morgana seja a única que leva
seriamente a coisa.
— Se meu pai matou o pai da Rainha das Órcades — disse o Rei —, então eu acho que ela tem uma
boa razão para querer que seu esposo se rebele contra mim.
— Esta é apenas uma razão pessoal. Razões pessoais não são motivos para uma guerra.
— E além disso — o Rei continuou —, se minha raça expulsou a raça gaélica, então eu acho que ossúditos da Rainha das Órcades também têm um bom motivo.
Merlin coçou o queixo no meio da barba, com a mão que segurava as rédeas, e ponderou.

— Uther, seu pranteado pai, era um agressor — disse por fim. — Assim como seus predecessores,
os saxões, que expulsaram os Antigos. Mas se continuarmos a viver voltados para o passado desse
jeito, nunca colocaremos um final nisso. Os Antigos, eles também, foram agressores contra a raça
anterior das machadinhas de cobre, e mesmo o povo das machadinhas foi agressor contra algum
bando mais antigo de esquimós que viviam em grutas. Se você continuar indo para trás, chegará a
Cairn e Abel. Mas a questão é que a conquista dos saxões teve sucesso, como também teve sucesso
a conquista dos normandos contra os saxões. Por mais brutal que tenha sido, seu pai dominou os
desafortunados saxões há muito tempo, e quando um grande número de anos se passa deve-se estar
pronto para aceitar o status quo. Também, eu gostaria de assinalar, a conquista normanda foi um
processo de unir pequenas unidades em grupos maiores — enquanto a revolta atual da

Confederação Gaélica é um processo de desintegração. Eles querem despedaçar o que podemos
chamar de Reino Unido em um monte de pequenos reinos disparatados, cada um por si. E por isso
que não se pode dizer que a razão deles seja uma boa razão.

Ele coçou o queixo outra vez e ficou colérico.

— Jamais tive estômago para esses nacionalistas — exclamou. — O destino do Homem é unir, não
dividir. Se você continua essa divisão, vai acabar como um grupo de macacos em árvores
separadas, atirando castanhas uns nos outros.
— Mesmo assim — disse o rei — parece ter havido bastante provocação. Talvez eu não deva
lutar.
— E se render? — disse Kay, mais divertido que desalentado.
— Eu poderia abdicar.
Eles olharam para Merlin, que se recusou a olhar para eles e continuou sua marcha, olhando direto
para frente, mastigando sua barba.

— Devo renunciar?
— Você é o Rei — disse o velho teimosamente. — Ninguém pode dizer nada se você fizer seja o
que for que fizer.
Mais tarde, ele começou a falar com um tom mais gentil.

— Você sabia — perguntou um tanto melancólico — que eu mesmo fui um dos Antigos? Meu pai
era um demônio, dizem, mas minha mãe era gaélica. O único sangue humano que tenho vem dos
Antigos. No entanto, aqui estou eu denunciando as idéias do nacionalismo, sendo o que os políticos
deles chamariam de um traidor — porque, com esse tipo de xingamento, podem ganhar pontos num
debate de pouco valor. E sabe de outra coisa, Arthur? A vida já é demasiado dura, mesmo sem
territórios e guerras e rixas entre nobres.

IV


O feno estava seguro e os cereais estariam prontos para serem colhidos em uma semana. Eles
estavam sentados à sombra no começo do campo, observando os trabalhadores bronzeados, de
dentes brancos, parecendo fatigados, ocupados ao pôr-do-sol, guardando as gadanhas, afiando as
foices e, no geral, deixando as coisas prontas para o final do ano de cultivo. Havia paz nos campos
que estavam perto do castelo, e nenhuma flecha tinha que ser temida. Enquanto observavam os
ceifeiros, debulhavam com os dedos as cabeças das espigas e mordiam o grão delicioso, testavam

o leite espesso do trigo e a polpa mais seca e menos abundante da aveia. O gosto granulado da
cevada pareceria estranho para eles, pois ainda não tinha sido introduzida em Gramarye.
Merlin continuava explicando.

— Quando eu era jovem — ele dizia — havia a idéia corrente de que era errado lutar em guerras
de qualquer tipo. Uma grande quantidade de pessoas, naquele tempo, declarava que nunca lutaria
por coisa alguma.
— Talvez estivessem certas.
— Não. Há uma razão muito boa para a luta: se um outro homem a começa. Sabe, as guerras são
uma perversidade, talvez a maior perversidade de uma espécie perversa. São tão terríveis que não
deveriam ser permitidas. Quando você tem absoluta certeza de que um outro homem vai começá-la,
então é o momento em que você tem uma espécie de obrigação de pará-lo.
— Mas ambos os lados sempre dizem que foi o outro que começou.
— Claro que dizem, e é uma boa coisa que seja assim. Pelo menos, mostra que os dois lados têm
consciência, dentro de si mesmos, de que a perversidade da guerra está em começá-la.
— Mas as razões — protestou Arthur. — Se um lado estiver fazendo o outro morrer de fome, de
uma maneira ou de outra, com algum tipo de meio econômico pacífico que não seja exatamente uma
guerra, então o lado que está morrendo de fome pode ter que lutar para sair dessa situação, se é que
você entende o que digo.
— Eu entendo o que você acha que quer dizer — disse o mago
— mas está errado. Não há razão para a guerra, nenhuma, e seja qual for a injustiça que sua nação
possa estar cometendo contra a minha
— exceto a guerra — minha nação estaria errada se começasse
a guerra para corrigir isso. Um

assassino, por exemplo, não pode alegar que sua vítima era rica e o estava oprimindo, portanto por
que uma nação poderia? As injustiças devem ser corrigidas pela razão, não pela força.

Kay disse:

— Vamos supor que o Rei Lot das Órcades dispusesse seu exército ao longo de nossa fronteira ao
norte, o que poderia nosso rei fazer a não ser enviar seu próprio exército para ficar ao longo da
mesma fronteira? Então, supondo que os homens de Lot desembainhassem suas espadas, o que
poderíamos fazer exceto desembainhar as nossas? A situação poderia ainda ser mais complicada
que isso. Parece que a agressão é uma coisa difícil sobre a qual se ter certeza.
Merlin estava chateado.

— Só porque você quer que pareça assim — ele disse. — Obviamente, Lot seria o agressor por
ameaçar com sua força. Você sempre pode reconhecer o vilão, se mantiver a mente justa. Como
último recurso, é definitivamente aquele que dá o primeiro golpe.
Kay continuou com seu argumento.

— Vamos dizer que sejam dois homens, em vez de dois exércitos. Eles estão de frente um para o
outro. Desembainham as espadas, fingindo que é por outro motivo, movimentam-se para ficar do
lado fraco um do outro e até fazem ataques simulados com as espadas, fingindo atacar, mas sem
fazê-lo. Você quer dizer que o agressor será aquele que realmente der o primeiro golpe?
— Sim, se não tiver outra coisa para decidir isso. Mas em seu exemplo, obviamente é o homem que
primeiro levou seu exército até a fronteira.
— Essa história do primeiro golpe acaba não significando nada. Suponha que ambos ataquem ao
mesmo tempo, ou suponha que você não possa ver quem atacou primeiro porque são tantos que
estão um frente ao outro.
— Mas quase sempre existe algo mais para definir isso — exclamou o velho. — Use seu bom
senso. Veja a revolta gaélica, por exemplo. Que razão tem o nosso rei para ser o agressor? Ele já é
o soberano feudal. Não é sensato pensar que ele está atacando. As pessoas não atacam o que lhes
pertence.
— Eu com certeza não me sinto como se tivesse começado — disse Arthur. — Na verdade, nem
sabia que começaria até que começou. Suponho que isso se deve ao fato de eu ter sido criado no
campo.
— Qualquer homem de bom senso — continuou seu tutor, ignorando a interrupção —, que mantém a
cabeça no lugar, pode dizer qual lado foi o agressor em noventa guerras em cem. Em primeiro
lugar, ele pode ver qual lado provavelmente se beneficiará com a guerra, e este é um forte motivo
para a suspeita. Pode ver que lado começou a ameaça de força ou foi o primeiro a se armar. E
finalmente, com freqüência, pode apontar quem deu o primeiro golpe.
— Mas suponha que um lado faça a ameaça — continuou Kay — mas o outro lado é quem dá o
primeiro golpe.
— Ora, vá colocar sua cabeça num balde. Não estou dizendo que todas as guerras podem ser

definidas. Desde o princípio do argumento eu disse que há muitas guerras nas quais a agressão é
clara como água, e que nessas guerras é dever dos homens decentes lutar, a qualquer preço, contra

o criminoso. Se você não tiver certeza de que ele é um criminoso — e deve tentar avaliar isso com
cada grama de justiça que puder reunir — então seja um pacifista, seja como for. Recordo-me que
fui um pacifista fervoroso uma vez, na guerra dos Bôeres, quando meu próprio país foi o agressor,
e uma jovem me denunciou na Noite de Mafeking.
— Conte-nos sobre a Noite de Mafeking — pediu Kay. — A gente acaba de cabeça quente com
essas discussões sobre o certo e o errado.
— A Noite de Mafeking... — começou o mago, que estava preparado para contar fosse o que fosse
a quem quer que fosse. Mas o rei o interrompeu.
— Conte-nos sobre Lot — disse. — Quero saber sobre ele, se tiver que enfrentá-lo. Pessoalmente,
estou começando a me interessar pelo certo e o errado.
— O Rei Lot... — começou Merlin no mesmo tom de voz, só para ser interrompido por Kay.
— Não — disse Kay. — Fale sobre a rainha. Ela parece mais interessante.
— A Rainha Morgause...
Arthur assumiu o direito de veto pela primeira vez em sua vida. Merlin, vendo sua sobrancelhalevantada, voltou ao Rei das Órcades, com inesperada humildade.

— O Rei Lot — retomou ele — é simplesmente um membro do seu reino e da realeza fundiária. É
um nada. Você não precisa pensar sobre ele, de nenhuma maneira.
— Por que não?
— Em primeiro lugar, ele é o que costumávamos chamar, em minha juventude, de um Cavaleiro de
Ascendência. Seus súditos são gaélicos e também sua esposa, mas ele mesmo é importado da
Noruega. Sua origem é a mesma que a sua, ele é um membro da classe dominante que conquistou as
Ilhas muito tempo atrás. Isso significa que sua atitude em relação à guerra é a mesma que seu pai
teria tido. Ele não se importa um nabo com as raças, mas vai à guerra da mesma maneira que meus
amigos vitorianos costumavam ir a caça à raposa ou, então, para aproveitar os saques. Além disso,
a mulher manda nele.
— Às vezes — disse o Rei — gostaria que você tivesse nascido virado para frente como as outras
pessoas. O que é isso de vitorianos e Noite de Mafeking...
Merlin ficou indignado.

— A ligação entre as guerras dos normandos e a caça vitoriana à raposa é perfeita. Deixe seu pai e
o Rei Lot fora do assunto por um momento, e veja a literatura. Veja os mitos normandos sobre as
figuras lendárias como os reis angevinos. De Guilherme, o Conquistador, a Henrique III, eles
dedicavam-se às guerras por temporadas. A temporada chegava e lá iam eles se enfrentar em
armaduras esplêndidas que reduziam o risco de ferimentos ao mínimo de um caçador de raposas.
Veja a batalha decisiva de Brenneville, na qual novecentos cavaleiros estavam no campo de
batalha, e apenas três morreram. Veja Henrique II tomando dinheiro emprestado de Stephen, para

pagar suas próprias tropas para lutar contra Stephen.

Veja a etiqueta esportiva, segundo a qual Henrique teve que retirar seu cerco assim que seu inimigo
Louis se juntou aos defensores dentro da fortaleza, porque Louis era seu soberano feudal. Veja o
cerco do monte St. Michel, no qual foi considerado pouco esportivo vencer porque os defensores
ficaram sem água. Veja a batalha de Malmesbury, que foi abandonada por causa do mau tempo.
Essa é a herança que você recebeu, Arthur. Você se tornou o rei de um domínio no qual os
agitadores populares odeiam-se por razões raciais, enquanto a nobreza luta por diversão e nem os
maníacos raciais nem os soberanos param para pensar no bando de soldados comuns, que são os
únicos que realmente ficam feridos. A menos que você consiga fazer o mundo se mexer por razões
melhores do que as do presente, rei, seu reinado será uma série infinita de batalhas mesquinhas, nas
quais os agressores terão ou motivos desprezíveis ou esportivos, e o pobre será o único a morrer.
É por isso que tenho lhe pedido para pensar. É por isso...

— Acho que Dinadan está nos acenando para avisar que o jantar está pronto — disse Kay.

V


A casa de Mãe Morlan nas Ilhas Exteriores era pouco maior que um grande canil — mas era
confortável e cheia de coisas interessantes. Havia duas ferraduras pregadas na porta; cinco estátuas
compradas de peregrinos, rodeadas por rosários usados para intervalos de orações, se a pessoa
gostar de orações; vários feixes de linho-de-fada por cima da caixa de sal; alguns escapulários
enrolados no atiçador de brasas; vinte garrafas de uísque escocês, todas vazias exceto uma; um
monte de palmas secas, relíquia dos Domingos de Ramos dos últimos setenta anos; e uma grande
quantidade de fios de lã para amarrar o rabo da vaca quando ela está parindo. Havia também uma
grande lâmina de foice que a velha senhora esperava usar caso viesse um ladrão — se alguém fosse
tolo o bastante para tentar entrar ali — e, na chaminé, estavam penduradas madeiras de freixo que
seu falecido marido tinha intenção de usar para o mangual, junto com peles de enguia e pedaços de
couro de cavalo. Debaixo da pele de enguia havia uma grande garrafa de água benta e, em frente do
lume de turfa, estava sentado um dos santos irlandeses que viviam na colméia de celas das Ilhas
Exteriores, com um copo da água-da-vida em sua mão. Era um santo relapso, que sucumbira à
heresia pelagiana de Celestius e acreditava que a alma era capaz de se salvar sozinha. Estava
justamente ocupado salvando-a com Mãe Morlan e o uísque.

— Que Deus e Maria estejam convosco, Mãe Morlan — cumprimentou. — Nós viemos para
escutar uma história, sobre qualquer coisa.
— Que Deus e Maria e André estejam convosco também -exclamou a mulher feia e velha. — E
vêm vocês me pedindo uma história qualquer, com sua reverência aqui entre as cinzas!
— Boa noite, São Toirdealbhach, não o vimos por causa da escuridão.
— A benção de Deus para vocês.
— A mesma benção para o senhor também.
— Deve ser sobre assassinos — disse Agravaine. — Sobre assassinos e corvos que arrancam os
olhos com bicadas.
— Não, não — disse Gareth. — Deve ser sobre a moça misteriosa que se casa com um homem
porque ele roubou o cavalo mágico do gigante.
— Glória ao Senhor — comentou São Tbirdealbhach. — É mesmo uma história estranha a que
vocês querem depois de querer qualquer uma.

— Vamos, São Toirdealbhach, conta uma o senhor mesmo.
— Conta sobre a Irlanda.
— Conta sobre a Rainha Maeve, que desejava o touro.
— Ou dance para nós uma jiga.
— Misericórdia para os fedelhos malcriados, pensar em sua santidade dançando uma jiga!
Os quatro representantes das classes superiores sentaram-se onde puderam — havia apenas dois
bancos — e olharam para o santo homem em silêncio receptivo.

— Será uma história com moral, a que vocês querem?
— Não, não. Nada de moral. Gostamos de histórias sobre batalhas. Vamos, São Toirdealbhach, que
tal aquela vez em que o senhor quebrou a cabeça do Bispo?
O santo tomou um grande gole de seu uísque branco e cuspiu no fogo.

— Havia uma vez um rei — começou, e toda a audiência fez um barulho farfalhante com as nádegas
para se acomodar.
— Havia uma vez um rei — disse São Toirdealbhach —, e esse rei, o que vocês acham?, era
chamado de Rei Conor Mac Ness. Era grande como uma baleia e vivia com seus parentes em um
lugar chamado Tara dos Reis. Não demorou muito e esse rei teve que enfrentar os sanguinários
O'Haras e, no conflito, ficou ferido com uma bala mágica. Vocês devem saber que os heróis antigos
gostavam de fazer, eles mesmos, balas com os miolos de seus adversários — que eles enrolavam
nas palmas das mãos em pedaços pequenos, e depois deixavam secando ao sol. Acredito que
depois eles as atiravam com arcabuzes, sabem?, como se fossem fundas ou flechas. Bom, e se era
assim, esse velho rei foi atingido nas têmporas com uma dessas balas, e ela se alojou em um osso
de seu crânio, em um ponto crítico qualquer. "Agora, estou bem-arranjado", disse o Rei, e mandou
chamar os antigos sábios e outros para aconselhá-lo sobre as práticas obstétricas. O primeiro sábio
disse: "Sois um homem morto, Rei Conor. Esta bala está no lóbulo de vosso cérebro. " O mesmo
disseram todos os outros sábios, independentemente da autoridade da pessoa ou credo. "Oh, o quefarei?", exclamou o Rei da Irlanda. "É uma má fortuna evidentemente, quando um homem não pode
lutar um pouco sem chegar ao fim de seus dias. " "Nada de tagarelar agora", disseram os cirurgiões,
"há uma coisa que pode ser feita, e essa exata coisa é se manter longe de qualquer excitação não
natural daqui para frente". "Além disso", disseram os outros, "deveis ficar longe também de toda
excitação natural, ou a bala causará uma ruptura, e a ruptura se transformará num fluxo, e o fluxo em
uma conflagração que causará uma abstrusão absoluta de todas as funções vitais. É sua única
esperança, Rei Conor, ou se deitará peremptoriamente entregue aos vermes para que o comam. "
Bem, por Deus!, era uma situação muito precária, como vocês podem imaginar. Lá estava o pobre
Conor em seu castelo, e não podia nem rir nem lutar nem tomar um pequeno gole de algo destilado,
nem olhar para uma jovem donzela, de qualquer forma, por medo de seu cérebro explodir. A bala
ficou em suas têmporas, meio dentro, meio fora, e a tristeza ficou dentro dele daquele dia em
diante.
— Que lástima esses doutores — disse Mãe Morlan. — Vaias, porque não eram nada espertos.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Gawaine. — Viveu muito tempo no quarto escuro?
— O que aconteceu com ele? Eu ia chegar lá. Um dia houve uma tremenda tempestade e as paredes
do castelo chacoalharam como uma rede, e grande parte do barbacã caiu. Foi a pior tempestade
acontecida naquele lugar em muito tempo, e o Rei Conor saiu correndo no meio das forças da
natureza, procurando conselho. Encontrou um de seus sábios em algum lugar por lá e perguntou a
ele o que poderia ser. Esse era mesmo um homem sábio e respondeu ao Rei Conor. Disse que
naquele dia nosso Salvador fora enforcado em uma árvore pelo povo judeu, e a tempestade
irrompera por causa disso, e falou ao Rei Conor sobre o evangelho de Deus. Então, o que vocês
pensam?, o Rei Conor da Irlanda voltou correndo para seu palácio para pegar sua espada, em fúria
santa, e voltou correndo com ela pela tempestade para defender o Salvador — e foi assim que ele
morreu.
— Ele morreu?
— Sim.
— Nossa!!!
— Que maneira bonita de morrer — disse Gareth. — Não foi uma coisa boa para ele, mas foi
grandiosa.
Agravaine disse:

— Se meus médicos me dissessem para ser cuidadoso, eu nunca perderia meu controle por nada.
Eu pensaria no que aconteceria, fosse como fosse.
— Mas não foi um gesto de fidalgo?
Gawaine começou a mexer nervosamente os dedos.
— Foi tolo — acabou dizendo. — Não fez nenhum bem.
— Mas ele estava tentando fazer o bem.
— Não era nada com sua família — disse Gawaine. — Não sei porque ele ficou tão excitado.
— Claro que era com a família dele. Era com Deus, que é da família de qualquer pessoa. O Rei
Conor saiu para defender o lado da justiça, e deu sua vida por isso.
Agravaine, impaciente, mexeu o traseiro nas cinzas macias e cor de ferrugem da turfa. Achava
Gareth um tolo.

— Conte a história de como os porcos foram feitos — ele pediu, para mudar o assunto.
— Ou aquela sobre o grande Conan que foi transformado em uma cadeira — disse Gawaine. —
Ou, de alguma maneira, ficou pregado nela, e eles não conseguiram tirá-lo de lá. Então, tiveram de
puxá-lo pela força, e aí foi necessário fazer um enxerto em seu traseiro, só que era de pele de
ovelha, e desde então as meias usadas por Fianna eram feitas com a lã que crescia em Conan!

— Não, essa não — disse Gareth. — Vamos deixar de histórias. Vamos sentar, meus heróis, e
conversar com sabedoria sobre assuntos sérios. Vamos falar sobre nosso pai, que está longe
fazendo a guerra.

São Toirdealbhach tomou um grande gole de uísque e cuspiu no fogo.

— A guerra não é grande coisa — ele observou, entregando-se a reminiscências. — Eu mesmo fui
muito a guerras uma época, antes de me tornar um santo. Mas me cansei delas.
Gawaine disse:

— Não entendo como as pessoas podem se cansar de guerras. Tenho certeza de que nunca me
cansarei. Afinal, é a ocupação de um nobre. Quero dizer, seria como ficar cansado de caçar ou dos
falcões.
— A guerra — disse Toirdealbhach — poderia ser uma boa coisa se não tivesse muita gente nela.
Quando tem muita gente lutando, como você sabe por que está lutando? Houve boas guerras na
Velha Irlanda, mas era por causa de uma bula papal ou coisa assim — e cada homem tinha seu
coração envolvido nisso desde o começo.
— Por que você se cansou das guerras?
— Foi o grande número delas acabou com elas, completamente. Quem vai querer matar um mortal
por algo que ele não entende, ou por coisa alguma? Em vez disso, fiquei com os combates de
homem a homem.
— Isso deve ter sido há muito tempo.
— Ah, sim — disse o santo, arrependido. — Aquelas balas de que eu lhes falei antes: os miolos
não eram muito úteis se não fossem tirados em combates de homem a homem. Essa era a virtude
deles.
— Eu me inclino a concordar com Toirdealbhach — disse Gareth. — Afinal, qual é a vantagem de
matar pobres soldados que não sabem de nada? Seria muito melhor se as pessoas que estão com
raiva combatessem uma a outra, elas mesmas, cavaleiro contra cavaleiro.
— Mas não se pode ter nenhuma guerra assim — exclamou Gaheris.
— Seria absurdo — disse Gawaine. — É preciso ter gente, grande quantidade de gente, em uma
guerra.
— Caso contrário, você não pode matá-los — explicou Agravaine.

Foi a pior tempestade acontecida naquele lugar em muito tempo, e o Rei Conor saiu correndo no
meio das forças da natureza, procurando conselho. Encontrou um de seus sábios em algum lugar
por lá e perguntou a ele o que poderia ser. Ele disse que naquele dia nosso Salvador fora
enforcado em uma árvore pelo povo judeu, e a tempestade irrompera por causa disso, e falou ao
Rei Conor sobre o evangelho de Deus. Então o Rei Conor da Irlanda voltou correndo para seu
palácio para pegar sua espada, em fúria santa, e voltou correndo com ela pela tempestade para
defender o Salvador — e foi assim que ele morreu.

O santo serviu-se com outra dose de uísque, cantarolou para si mesmo alguns versos de Água-davida,
boa sorte para você, querida, e dirigiu o olhar para Mãe Morlan. Estava sentindo uma nova
heresia chegar, possivelmente por causa do álcool, e tinha algo a ver com o celibato do clero. Ele
já tinha uma sobre a forma da tonsura, e a comum sobre a data da Páscoa, assim como sua própria
questão pelagiana — mas a atual começava a fazê-lo sentir como se a presença das crianças fosse
desnecessária.

— Guerras — disse, com desgosto. — E como crianças como vocês estão querendo falar disso, me
digam, vocês que não são maiores que pintinhos de galinhas? Já é hora de ir embora, agora, antes

que eu jogue uma praga em vocês.

Santos, como os Antigos sabiam muito bem, eram uma classe de gente que não se devia irritar,
portanto as crianças rapidamente se levantaram.

— É pra já — disseram. — Sua Santidade, sem ofensa, por favor. Nós só queríamos fazer uma
troca de idéias.
— Idéias! — exclamou, pegando seu atiçador de brasas e, num piscar de olhos, eles já estavam do
lado de fora da porta baixa, parados sob os raios do sol na rua de areia, enquanto os anátemas do
santo ou seja lá o que fosse troavam atrás deles, no interior escuro.
Na rua, havia dois asnos roídos pelas traças procurando capim nas fendas de uma parede de pedra.
Suas pernas estavam atadas juntas, de tal modo que só podiam mancar, e seus cascos estavam
cruelmente crescidos, parecendo chifres ou patins retorcidos. Os meninos imediatamente se
dirigiram até eles, uma nova idéia aparecendo bem clara em suas cabeças tão logo viram os
animais. Já não queriam escutar histórias nem discutir questões de guerra. Levariam os asnos para

o pequeno porto atrás das dunas de areias, caso os homens que estavam fora com seus botes
tivessem feito uma pescaria. Os asnos seriam úteis para transportar os peixes.
Gawaine e Gareth revezaram-se com o asno gordo, um deles chicoteando-o enquanto o outro
cavalgava-o em pêlo. De vez em quando, o asno dava um pulo, mas se recusava a trotar. Agravaine
e Gaheris sentaram-se ambos no asno magro, o primeiro montado de costas para frente, de maneira
a ver o traseiro do animal — ao qual chicoteava furiosamente com uma raiz grossa de sargaço.
Batia ao redor do orifício do asno, para doer mais.

Era uma cena estranha a que apresentavam ao chegarem junto ao mar — os meninos magros com
narizes afilados e uma gota de suor na ponta de cada um, os punhos ossudos saindo para fora dos
casacos — os asnos tentando fugir em pequenos círculos, dando um saltinho quando o sargaço batia
nos quadris cinzentos. Era estranho porque estava circunscrito, porque estava concentrado em uma
única intenção. Poderiam ser um sistema solar em si mesmo, sem nada mais no espaço, enquanto
giravam e giravam em direção às dunas e ao capim áspero do estuário. Provavelmente, os planetas
também têm algumas idéias nas cabeças.

A idéia que os meninos tinham era machucar os asnos. Ninguém havia lhes dito que isso era cruel, e
tampouco ninguém dissera nada aos asnos. Dentro do seu mundo, conheciam bem a crueldade para
se surpreenderem. Assim, o pequeno círculo constituía uma unidade — os animais relutantes em se
mover e os meninos decididos a movê-los, as duas partes unidas pelo elo da dor com a qual todos
concordavam sem questionar. A dor em si era uma questão tão natural que desaparecera do quadro,
como se por um processo de cancelamento. Os animais não pareciam sofrer, e as crianças não
pareciam se divertir com o sofrimento deles. A única diferença era que os meninos estavam
violentamente agitados enquanto os asnos estavam tão estáticos quanto lhes era possível.

Nessa cena tipo Éden, e quase antes da lembrança do interior da casa de Mãe Morlan desaparecer
de suas cabeças, apareceu sobre as águas um barco mágico, uma barcaça com velas feitas de um
tecido de seda, mística, maravilhosa, fazendo uma música a seu próprio modo quando sua quilha
sulcava as ondas. Dentro, havia três cavaleiros e um cachorro com enjôo de mar. Seria impossível


imaginar algo menos adequado do que isso à tradição do mundo gaélico.

— Eu digo — disse a voz de um dos cavaleiros na barcaça, enquanto ainda estavam longe —, tem
um castelo, não é, o quê? Eu digo, não é um castelo bonito!
— Pára de fazer o barco jogar, meu caro amigo — disse o segundo —, ou nos fará cair no mar.
O entusiasmo do Rei Pellinore evaporou-se com a repreensão, e ele deixou os meninos petrificados
de espanto ao cair no choro. Eles podiam escutar os soluços, misturado com o bater das ondas e
com a música da barcaça, que se aproximava.

— Oh, mar! — exclamou o Rei Pellinore. — Quisera estar com você, o quê? Quisera estar no
fundo bem fundo, isso eu quisera. Pobre de mim! pobre de mim! pobre de mim!
— Não adianta dizer "pare por mim!", meu velho. A coisa vai parar quando quiser. É uma magia.
— Eu não estava dizendo "pare por mim" — retrucou o Rei. — Estava dizendo "pobre de mim"!
— Bom, ela não vai parar.
— Não me importa se vai parar ou não. Eu disse "pobre de mim"!
— Bom, pára, então.
E a barcaça mágica parou, justo onde os botes geralmente eram puxados para a terra. Os três
cavaleiros saíram, e se podia ver que o terceiro era um homem negro. Era um pagão ou sarraceno
culto, chamado Sir Palomides.

— Que boa atracada, salve! — disse Sir Palomides.
As pessoas vieram de todos os cantos, em silêncio e devagar. Quando estavam perto dos
cavaleiros, andavam lentamente, mas à distância, corriam. Homens, mulheres e crianças se
precipitavam sobre as dunas ou desciam pelas falésias do castelo mas, ao se aproximar,
começavam a andar bem lentamente. A cerca de uns vinte metros, pararam todos. Formaram um
anel, observando os recém-chegados sem dizer nada, como os visitantes ficam olhando os quadros
no museu dos Uffizzi. Estudando-os. Não havia nenhuma pressa, nenhuma necessidade de passar
para o quadro seguinte. Na verdade, não havia outros quadros — nunca houvera, desde que
nasceram, exceto as cenas costumeiras do reino de Lot. O modo como encaravam não era
exatamente ofensivo, nem amigável. Quadros existem para serem absorvidos. Começavam pelos
pés, sobretudo porque os estrangeiros vestiam roupas exóticas de cavaleiros-com-armaduras, e os
olhares avaliavam a textura, a construção, a articulação e o preço provável dos sapatões. Depois
subiam para as joelheiras, as calças e mais para cima. Devem ter levado quase meia hora para
chegar aos rostos, que deveriam ser os últimos a serem examinados.

Os gaélicos cercaram os ingleses de bocas abertas, enquanto as crianças da aldeia gritavam as
notícias ao longe e Mãe Morlan veio correndo de saias arregaçadas e os botes no mar voltaram
para terra com os remos a toda. Os jovens príncipes do reino desceram dos asnos como em transe e
se juntaram ao círculo. O próprio círculo começou a se fechar sobre seu foco, movendo-se tão lenta
e silenciosamente como o ponteiro de minutos de um relógio, exceto pelos gritos reprimidos dos
retardatários que também faziam silêncio tão logo sentiam a mesma influência. O círculo ia se


contraindo porque queria tocar os cavaleiros — não agora, não por cerca de meia hora ou mais,
não antes do exame se completar, talvez nunca. Mas gostariam de poder tocá-los no final, em parte
para ter certeza de que eram reais, em parte para avaliar melhor o preço de suas roupas. E,
enquanto a avaliação continuava, algumas coisas começaram a acontecer. Mãe Morlan e as
mulheres velhas começaram a rezar o rosário, enquanto as jovens mulheres beliscavam umas às
outras e riam; os homens, depois de tirar os bonés em respeito às orações, começaram a trocar
comentários em gaélico como "Olhe o homem preto, Deus se coloque entre nós e o mal", ou "Será
que eles ficam nus para dormir, e como é que tiram essas panelas de ferro?" — e nas mentes tanto
das mulheres quanto dos homens, independentemente da idade e das circunstâncias, começou a
crescer, de maneira quase visível, quase tangível, o enorme e incalculável miasma que é a
principal característica do cérebro gaélico.

São cavaleiros sassenach{6}, eles estavam pensando — podiam dizer isso pelas armaduras — e, se
fossem mesmo, eram cavaleiros do Rei Arthur contra quem o próprio rei deles tinha se revoltado
pela segunda vez. Teriam vindo, com a típica esperteza dos sassenach,
para atacar o Rei Lot por
trás? Teriam vindo como representantes do soberano feudal — o Senhor de Todos — para fazer
uma avaliação para um novo tributo? Seriam membros de uma Quinta Coluna? Ainda mais
complicado que isso — pois certamente nenhum sassenach
seria tão ingênuo para vir vestido de
sassenach
— talvez não fossem, absolutamente, representantes do Rei Arthur? Estariam eles, por
algum propósito quase esperto demais para ser crível, apenas disfarçados deles mesmos? Onde
estava a armadilha? Sempre havia uma em qualquer coisa.

As pessoas do círculo se aproximaram, os queixos caindo ainda mais, os corpos inclinados para
frente e se curvando como se fossem sacos ou espantalhos, os olhos miúdos cintilando em todas as
direções com insondável sutileza, os rostos assumindo uma expressão de estupidez canina até mais
vazia do que na verdade era.

Os cavaleiros juntaram-se para se proteger. Na verdade, eles não sabiam que a Inglaterra estava emguerra com as Órcades. Estavam envolvidos em uma aventura, o que os mantivera afastados dasúltimas notícias. Provavelmente, ninguém nas Órcades lhes contaria.

— Não olhem agora — disse o Rei Pellinore — mas tem algumas pessoas a nossa volta. Vocês
acham que eles são legais?

VI


Em Carlion, tudo estava na maior confusão com os preparativos para a segunda campanha. Merlin
fizera algumas sugestões sobre a maneira de vencê-la mas, como envolvia uma emboscada com
ajuda secreta do exterior, tinham que manter segredo. O exército de Lot que se aproximava
vagarosamente era tão mais numeroso que fora necessário recorrer ao estratagema. A maneira
como se desenrolaria a batalha era um segredo conhecido só por quatro pessoas.

Os cidadãos comuns, que estavam na ignorância da alta política, tinham um monte de coisas a fazer.
Havia chuços para serem afiados, e as pedras de amolar da aldeia rugiam dia e noite; havia
milhares de flechas para serem emplumadas, portanto havia luzes nas casas dos flecheiros a todas
as horas, e os desafortunados gansos dos campos eram perseguidos constantemente pelas
camponesas excitadas atrás de suas penas. Os pavões reais estavam tão nus quando uma vassoura
velha — a maioria dos atiradores gostava de ter o que Chaucer chamou de adornos de pavão,
porque eram mais elegantes — e o cheiro de cola fervente subia para os céus. Os armadores,
executando as armaduras, martelavam sem parar com tilintar musical, trabalhando em turnos
duplos, e os ferreiros colocavam ferraduras nos cavalos de batalha, e as freiras não paravam de
tricotar cachecóis para os soldados ou fazer o tipo de bandagem que chamavam de mechas. O rei
Lot já havia solicitado um rendez-vous
para a batalha, em Bedegraine.

O rei da Inglaterra subiu, com esforço, os duzentos e oito degraus que levavam à torre onde ficava

o quarto de Merlin, e bateu na porta. O mago estava dentro, com Arquimedes sentado no espaldar
de sua cadeira, ocupado em achar a raiz quadrada de menos um. Esquecera-se como se fazia isso.
— Merlin, quero falar com você — disse o Rei, ofegante. Merlin fechou o livro com estrépito,
pulou da cadeira, agarrou sua varinha mágica de pau-santo e correu para Arthur como se estivesse
tentando enxotar uma galinha extraviada.
— Vá embora! — gritou. — O que você está fazendo aqui? O que significa isso? Você não é o rei
da Inglaterra? Vá embora e mande alguém me chamar! Saia do meu quarto! Nunca se viu uma coisa
dessas! Vá embora imediatamente e manda alguém me chamar!
— Mas eu estou aqui.
— Não, não está — retrucou o velho, com engenho. E empurrou o rei para fora da porta, fechando-
a em sua cara.
— Ora! Ora! — disse Arthur, e tristemente desceu a escada de duzentos e oito degraus.

Uma hora mais tarde, Merlin apresentou-se no Salão Real, em resposta a um chamado, levado por
um pajem.

— Assim está melhor — ele disse, e sentou-se confortavelmente em uma arca com tapete.
— Levante-se — disse Arthur, e bateu palmas para um pajem levar embora o assento.
Merlin ficou em pé, fervendo de indignação. O branco dos nós de seus dedos descorou pela força
com que os apertava.

— Em relação a nossa conversa sobre o tema da Cavalaria — começou o Rei com um tom
petulante...
— Não me lembro dessa conversa.
— Não?
— Nunca fui tão insultado em toda a minha vida.
— Mas eu sou o Rei — Arthur disse. — Você não pode se sentar na frente do Rei.
— Bobagem.
Arthur começou a rir mais do que seria adequado, e seu irmão de criação, Sir Kay, e seu velho
protetor, Sir Ector, saíram de trás do trono, onde estavam escondidos. Kay tirou o chapéu de
Merlin e colocou-o em Sir Ector, e Sir Ector disse:

— Bem, abençoada seja minha alma, agora sou um nigromante. Hocus-pocus.
Todo mundo começou a rir, e finalmente Merlin também acabou rindo, e assentos foram trazidos
para que todos pudessem se sentar, e garrafas de vinho foram abertas para que a reunião não
passasse a seco.

— Você está vendo — disse, orgulhoso, o Rei — eu convoquei um conselho.
Houve uma pausa, pois era a primeira vez que Arthur fazia um discurso, e queria fazer o melhor
possível.

— Bem — continuou. — É sobre a Cavalaria. Quero falar sobre isso.
Merlin imediatamente o observou com olhar aguçado. Seus dedos nodosos tremiam no meio das
estrelas e sinais secretos de sua veste, mas ele não ajudaria o orador. Podia-se dizer que esse era
um momento crítico em sua carreira — o momento para o qual vivera de frente para trás por sabe
Deus quantos séculos, e agora teria certeza se tinha ou não vivido em vão.

— Tenho pensado — disse Arthur — sobre a Força e o Direito. Não acho que as coisas tenham de
ser feitas porque você é capaz de fazê-las. Acho que têm de ser feitas quando você deve fazê-las.
Afinal, um centavo é um centavo de qualquer maneira, por mais Força que possa ser exercida, em
qualquer dos lados, para provar que é ou não é. Está claro? Ninguém respondeu.
— Bem, eu estava conversando com Merlin nas ameias um dia, e ele disse que a última batalha que
tivemos — na qual setecentos soldados rasos foram mortos — não era tão divertida quanto achei
que tivesse sido. Certamente, as batalhas não são divertidas quando pensamos sobre elas. Quero

dizer, as pessoas não deviam ser mortas, deviam? É melhor ficarem vivas. Muito bem. Mas o
curioso é que Merlin me ajudou a vencer as batalhas. Na verdade, continua me ajudando, e
esperamos vencer a batalha de Bedegraine juntos, quando ela acontecer.

— Venceremos — disse Sir Ector, que estava a par do segredo.
— Isso me parece inconsistente. Por que ele me ajuda a fazer a guerra, se elas são más?
Ninguém falou nada, e o Rei começou a falar com agitação.
— Só posso pensar — ele disse, começando a se ruborizar — só posso pensar que eu... que nós...
que ele... que ele quer que eu a vença por uma razão.
Ele parou e olhou para Merlin, que virou a cabeça para outro lado.

— A razão é... será?... a razão é que se eu puder ser o senhor de meu reino, vencendo essas
batalhas, eu poderei pará-las depois e então fazer algo sobre a questão da Força. Adivinhei? Estou
certo?
O mago não virou a cabeça, e suas mãos continuaram quietas em seu colo.

— Estou! — exclamou Arthur.
E começou a falar tão rapidamente que mal podia acompanhar a si mesmo.
— Vejam vocês — ele disse. — A Força não é o Direito. Mas há muita Força destruindo esse
mundo e algo tem de ser feito em relação a isso. É como se as pessoas fossem metade horríveis e
metade boas. Talvez elas sejam mais do que metade horríveis, e quando são deixadas por si
mesmas ficam selvagens. Vejam o barão médio que temos hoje, pessoas como Sir Bruce Sans Pitié,
que simplesmente sai galopando por aí com sua roupa de aço, fazendo exatamente o que lheapetece, por esporte. É nossa idéia normanda que as classes superiores tenham o monopólio do
poder, sem respeitar a justiça. Então o lado horrível predomina, e há roubos e estupros e pilhagem
e torturas. As pessoas viram animais.
"Mas, vejam, Merlin está me ajudando a vencer minhas duas batalhas para que eu possa pôr um fim
nisso. Ele quer que eu endireite as coisas.

"Lot, Uriens, Anguish e os outros como eles são o velho mundo, a ordem antiga que querem que
prevaleça para realizar seus desejos particulares. Tenho que vencê-los com suas próprias armas —
eles as forçam sobre mim, porque vivem pela força — e só depois o verdadeiro trabalho começará.
Esta batalha de Bedegraine é a parte preliminar, vocês vêem. É sobre depois
da batalha que Merlin
quer que eu pense."

Arthur parou outra vez para comentários ou encorajamentos, mas o rosto do mago continuava
virado. Apenas Sir Ector, sentado a seu lado, podia ver seus olhos.

— Agora, o que pensei foi isso — disse Arthur. — Por que não se pode fazer a Força trabalhar
pelo Direito? Sei que parece sem sentido mas, quero dizer, não se pode dizer que isso
simplesmente não é possível. A Força está lá, na metade má das pessoas, não podemos esquecer
disso. Não podemos cortá-la, mas deve ser possível direcioná-la, se é que vocês me entendem, de
maneira que seja útil em vez de má.

O público estava interessado. Inclinaram-se para frente para escutar melhor, exceto Merlin.

— Minha idéia é que se pudermos vencer esta batalha que está a nossa frente, e pudermos controlar
bem o país, então criarei uma espécie de Ordem de Cavaleiros. Não punirei os cavaleiros maus,
nem enforcarei Lot, mas tentarei atraí-los para nossa Ordem. Teremos que fazer com que isso seja
uma grande honra, compreendem?, e fazer com que seja uma moda e coisas assim. Todos deverão
querer participar dela. E então farei com que o juramento da Ordem seja que a Força deve ser
usada somente para o Direito. Estão compreendendo? Os cavaleiros da minha Ordem cavalgarão
pelo mundo todo, vestidos de aço e empunhando suas espadas — o que dará vazão à vontade de
lutar, entendem, uma vazão para o que Merlin chama de espírito de caça à raposa, mas terão jurado
atacar apenas em benefício do bem, defender virgens contra Sir Bruce, restaurar o que foi feito de
errado no passado e ajudar o oprimido e assim por diante. Percebem a idéia? Será usar a Força, em
vez de lutar contra ela, e transformar uma coisa má em coisa boa. Isso, Merlin, foi tudo o que pude
pensar a respeito. Pensei o mais que pude e suponho que estou errado, como sempre. Mas eu me
esforcei. Não consigo pensar em coisa melhor. Por favor, diga alguma coisa!
O mago levantou-se tão reto como um pilar, esticou os braços em ambas as direções, olhou para o
teto e disse as primeiras poucas palavras do Nunc Dimittis{7}.


VII


A situação em Dunlothian estava complicada. Quase toda situação tendia a sê-lo quando tinha
ligação com o Rei Pellinore, mesmo no Norte mais distante. Para começar, ele estava apaixonado

— era por isso que chorara na barcaça. Foi o que explicou à Rainha Morgause na primeira
oportunidade — porque estava apaixonado e não mareado.
O que aconteceu foi isso. O rei tinha perseguido a Besta Gemente alguns meses antes, na costa sul
de Gramarye, quando o animal entrou no mar. Ela nadara para longe, sua cabeça de serpente
ondulando na superfície como uma cobra d'água, e o rei fez sinal para um navio que passava como
se fosse para alguma Cruzada. Sir Grummore e Sir Palomides estavam no navio e gentilmente se
dispuseram a mudar seu caminho para ir atrás da Besta. Os três chegaram à costa de Flandres, onde
a Besta desapareceu em uma floresta, e lá, enquanto descansavam em um castelo hospitaleiro,
Pellinore se apaixonou pela filha da Rainha de Flandres. Isso foi bom enquanto durou — pois a
dama de sua escolha era uma criatura despachada, de meia-idade, decidida, que sabia cozinhar,
cavalgar em linha reta e arrumar camas — mas as esperanças de ambas as partes foram desfeitas
logo no começo pela chegada da barcaça mágica. Os três cavaleiros tiveram que entrar nela e
sentaram-se para ver o que acontecia, porque supostamente cavaleiros nunca devem recusar uma
aventura. Mas a barcaça imediatamente se pôs a navegar, por sua própria conta, deixando a filha da
Rainha de Flandres acenando ansiosa seu lencinho de bolso. A Besta Gemente pôs a cabeça para
fora da floresta antes que eles perdessem a terra de vista, parecendo, pelo que puderam ver à
distância, ainda mais surpresa que a dama. Depois disso, eles navegaram até chegarem às Ilhas
Exteriores, e quanto mais longe iam, mais saudoso ficava o rei, o que tornou sua companhia
intolerável. Passava o tempo escrevendo poemas e cartas, que nunca poderiam ser enviadas, ou
falando a seus companheiros sobre a princesa cujo apelido no círculo familiar era Piggy —
Porquinha.

Uma situação como essa poderia ser aceitável na Inglaterra, onde algumas vezes apareciam pessoas
como Pellinore, e até contavam com uma espécie de tolerância por parte de seus companheiros.
Mas em Lothian e Órcades, onde os ingleses eram os tiranos, isso adquiria uma impossibilidade
quase sobrenatural. Nenhum dos ilhéus conseguia entender o que o Rei Pellinore tentava esconder

— ao fingir ser ele mesmo —, e era considerado mais sábio e seguro não mencionar a nenhum dos
cavaleiros visitantes os fatos sobre a guerra contra Arthur. Era melhor esperar até que seus
estratagemas fossem descobertos.

Além disso, havia um problema que perturbava particularmente os meninos. A Rainha Morgause
procurava conquistar os visitantes.


— O que nossa mãe está fazendo com os cavaleiros na montanha? — perguntou Gawaine uma
manhã, quando caminhavam em direção à cela de São Toirdealbhach.
Gaheris respondeu com certa dificuldade, depois de uma longa pausa:

— Eles estão caçando um unicórnio.
— Como se faz isso?
— É preciso uma virgem para atraí-lo.
— Nossa mãe saiu para caçar unicórnios e para servir de virgem para eles — disse Agravaine, que
também sabia dos detalhes.
Sua voz soou estranha ao fazer essa observação. Gareth protestou:

— Não sabia que ela queria um unicórnio. Nunca falou nada sobre isso.
Agravaine o olhou de esguelha, limpou a garganta e citou:
— Meia palavra é suficiente para o bom entendedor.
— Como vocês sabem disso? — perguntou Gawaine.

— Nós escutamos.
Eles sabiam um jeito de escutar pela escada em espiral, nos momentos em que eram excluídos do
interesse da mãe.
Gaheris explicou, com eloqüência pouco comum, pois era um menino taciturno:


— Ela disse a Sir Grummore que essa melancolia amorosa do rei poderia acabar se ele voltasse a
se interessar por seus antigos objetivos. Eles haviam contado que esse rei tinha o hábito de
perseguir uma Besta que se perdeu. Então, a mãe disse que eles deviam caçar unicórnios, e que ela
seria a virgem para eles. Eles ficaram surpresos, eu acho.
Caminharam em silêncio, até Gawaine sugerir, quase como se fosse uma pergunta:


— Ouvi dizer que o rei está apaixonado por uma mulher de Flandres, e que Sir Grummore já é
casado. E que o sarraceno tem a pele negra por dentro.
Ninguém respondeu.


— Foi uma longa caçada — disse Gareth. — Ouvi dizer que não pegaram nada.
— Esses cavaleiros gostam de ficar jogando esse jogo com nossa mãe?
Gaheris explicou pela segunda vez. Embora fosse calado, era bom observador.
— Acho que eles não entenderam nada.
Continuaram caminhando, relutantes em revelar seus pensamentos.
A cela de São Toirdealbhach era como uma colméia de palha fora de moda, exceto que era maior e
feita de pedra. Não tinha janelas, só uma porta, pela qual era preciso passar agachado.


— Sua Santidade — eles gritaram quando chegaram, batendo nas pesadas pedras sem argamassa.
— Sua Santidade, viemos escutar uma história.
Toirdealbhach era uma fonte de nutrição mental para eles — uma espécie de guru, como Merlin
fora para Arthur, e que lhes deu a pouca cultura, a única que jamais teriam. Recorriam a ele como
cachorrinhos famintos, ansiosos por qualquer tipo de comida, quando a mãe os punha para fora de
casa. Ele os ensinara a ler e escrever.


— Ah, vocês — disse o santo, pondo a cabeça para fora da porta. — Que a prosperidade do
Senhor esteja com vocês esta manhã.
— A mesma prosperidade para o senhor.
— Têm alguma novidade?
— Nenhuma — disse Gawaine, suprimindo o unicórnio. São Toirdealbhach soltou um suspiro
profundo.
— Também não tenho nenhuma — disse.
— Poderia nos contar uma história?
— Essas histórias, agora. Não tem nada de bom nelas. Por que eu lhes contaria uma história, eu e

minhas heresias? Faz mais de quarenta anos desde que lutei uma batalha natural, e também nada de
ficar sabendo de nenhuma donzela durante todo esse tempo, então como poderia lhes contar
histórias?

— O que nossa mãe está fazendo com os cavaleiros na montanha?
— perguntou Gawaine uma manhã, quando caminhavam em direção à cela de São
Toirdealbhach. Gaheris respondeu com certa dificuldade, depois de uma longa pausa:
— Eles estão caçando um unicórnio.
— Poderia contar uma história sem donzelas nem batalhas.
— E para que serviria isso, hein? — ele exclamou, com indignação, saindo para a luz do sol.
— Se pensar em lutar em uma batalha — disse Gawaine, sem mencionar as donzelas —, talvez se
sinta melhor.
— Que tristeza! — exclamou Toirdealbhach. — Por que quero ser santo é uma charada! Se eu
pudesse rachar alguém com minha velha clava — e tirou debaixo de sua veste uma arma que
parecia terrível — não seria melhor do que todos os santos da Irlanda?
— Conte-nos sobre a clava.
Eles examinaram o porrete cuidadosamente, enquanto sua santidade lhes contava como um bom
porrete deveria ser feito. Explicou que apenas uma raiz crescida servia, porque os ramos comuns
quebravam logo, sobretudo se fossem de árvores comuns, e como untar o porrete com banha de
porco, e enrolá-lo e enterrá-lo em um monturo para endurecer, e depois poli-lo com grafite e sebo.
Mostrou o buraco por onde se colocava o chumbo, e os cravos na ponta, e os entalhes no punho que
representavam os antigos escalpos. Em seguida, ele a beijou com reverência e recolocou-a sob sua
veste com um suspiro profundo. Estava atuando, e com toda a ênfase.

— Conte-nos a história do braço negro que desceu pela chaminé.
— Ah, meu coração não está nisso — disse o santo. — Não tenho mais coração para nada. Estou
inteiramente enfeitiçado.
— Acho que nós também estamos enfeitiçados — disse Gareth. — Tudo parece dar errado.
— Sucedeu uma coisa parecida uma vez — Toirdealbhach começou — e foi com uma mulher.
Havia um esposo que vivia em Malainn Vig com essa mulher. Havia uma filha que tinham entre
eles. Um dia o homem saiu para cortar madeira no pântano e quando chegou a hora do jantar, essa
mulher mandou a menina levar o jantar para ele. Quando o pai estava sentado comendo seu jantar,
essa menina de repente deu um grito, "Olha, pai, está vendo o grande navio lá longe no horizonte?
Eu posso fazê-lo vir até a praia seguindo o rochedo". "Você não pode fazer isso", disse o pai. "Eu
sou maior que você e não posso. " "Bom, então fique me olhando", disse a menina. E ela foi até a
fonte que estava perto e remexeu a água. O navio aproximou-se do rochedo.
— Ela era uma bruxa — explicou Gaheris.
— Era a mãe que era a bruxa — o santo disse, e continuou a história.

— "Agora", ela falou, "posso fazer o navio bater no rochedo. " "Você não consegue fazer isso",
disse o pai. "Bom, então fique me olhando", disse a menina, e ela pulou na fonte. O navio bateu no
rochedo e se espatifou em mil pedaços. "Quem lhe ensinou a fazer essas coisas?", perguntou o pai.
"Minha mãe. Enquanto você está trabalhando, ela me ensina a fazer coisas em casa, na tina de
madeira. "
— Por que ela pulou na fonte? — perguntou Agravaine. — Ela ficou molhada?
— Silêncio.
— Quando esse homem chegou em casa com sua esposa, arrumou seu cortador de turfa e tomou seu
assento. Então, disse: "O que você andou ensinando para nossa filha? Eu não quero ter uma bruxa
em minha casa e não ficarei mais com você". Então, ele foi embora, e elas nunca mais viram nada
dele. Eu não sei como elas ficaram depois disso.
— Deve ser horrível ter uma mãe que é bruxa — disse Gareth, quando ele terminou.
— Ou uma esposa — disse Gawaine.
— É pior não ter esposa nenhuma — disse o santo, e desapareceu dentro de sua cova com rapidez
repentina, como o homem do relógio meteorológico sueco que se recolhe dentro de um buraco
quando o tempo vai ser bom.
Os meninos sentaram-se ao redor da porta, sem surpresa, esperando alguma coisa acontecer.
Ficaram pensando na questão das fontes, bruxas, unicórnios e no que as mães faziam.

— Tenho uma proposta a fazer, meus heróis — disse Gareth, inesperadamente —, que cacemos um
unicórnio nós mesmos.
Eles o olharam.

— Seria melhor do que não fazer nada. Há uma semana que não vemos nossa mãe.
— Ela se esqueceu de nós — disse Agravaine, amargo.
— Não, ela não fez isso. Você não deve falar assim de nossa mãe.
— É verdade. Nós nem sequer servimos o jantar.
— Isso é porque ela precisa ser hospitaleira com esses cavaleiros.
— Não, não é.
— É por que, então?
— Não vou dizer.
— Se pudermos caçar um unicórnio — disse Gareth — e trouxermos esse unicórnio que ela quer,
talvez elas nos deixe servir o jantar.
Eles refletiram sobre a idéia com um comecinho de esperança.

— São Toirdealbhach — eles gritaram —, venha aqui de novo. Nós queremos caçar um unicórnio.
O santo pôs a cabeça para fora do buraco e os examinou, suspeito.

— O que é um unicórnio? Como eles são? Como a gente pode pegar um deles?
O santo balançou a cabeça solenemente e desapareceu pela segunda vez, para retornar de quatro
poucos momentos depois com um volume grande, a única obra secular que tinha entre seus
pertences. Como a maioria dos santos, ganhava a vida copiando manuscritos e neles desenhando
gravuras.

— Vocês precisam de uma donzela como isca — ele disse.
— Temos um monte de servas — disse Gareth. — Podemos levar qualquer uma das servas ou a
cozinheira.
— Elas não iriam.
— Podemos levar a ajudante de cozinha. Podemos obrigá-la a ir conosco.
— E depois, quando pegarmos o unicórnio que a mãe quer, vamos trazê-lo para casa em triunfo e
dar para ela! Vamos poder servir o jantar todas as noites!
— Ela ficará contente.
— Talvez ficar depois do jantar, seja qual for o evento!
— E Sir Grummore nos fará cavaleiros. Ele dirá: "Jamais se viu um feito tão formidável, por meu
santuário!".
São Toirdealbhach colocou seu precioso livro na grama fora da sua cova. A grama era arenosa,
com caracóis vazios e pequenas conchas amareladas com uma espiral púrpura espalhados por
cima. Ele abriu o livro, que era um bestiário chamado Liber de Natura Quorundam Animalium, e
mostrou que tinha gravuras em todas as páginas.

Os meninos o fizeram ir passando rapidamente o pergaminho, com seu lindo manuscrito gótico,
pulando os encantadores Grifos, Bisões, Crocodilos, Mantícoras, Chaladrius, Cinomulgi, Sereias,
Peridexions, Dragões e Aspidocelones. Para seus olhares ansiosos, o Antílope roçava em vão seus
chifres complicados na árvore do tamarisco, enroscando-se e tornando-se presa fácil para seus
perseguidores; em vão os Bisões emitiam suas flatulências para despistar seus perseguidores. Os
Peridexions, no alto de árvores que os colocavam fora do alcance dos dragões, passaram
despercebidos. A Pantera exalava seu hálito aromático para atrair as presas, mas não lhes
interessou. O Tigre, que poderia ser enganado se uma bola de vidro fosse atirada a seus pés, na
qual, vendo-se a si mesmo refletido, pensava ver seus próprios filhotes; o Leão, que poupava os
homens caídos ou cativos, tinha medo de galos brancos e apagava os próprios rastros com seu rabocomo folhagem; o Íbex, que podia pular de montanhas sem se machucar porque quicava sobre seus
chifres encaracolados; o Yale, que podia mexer os chifres como orelhas; a Ursa que costumava
parir seus filhotes como pedaços de matéria informe que podia lamber na forma que bem quisesse;
a ave Chaladrius que, se olhasse para uma pessoa, sentada no anteparo de sua cama, indicava que
essa pessoa morreria; os Ouriços que colhiam uvas para sua prole, rolando sobre elas e trazendo-
as nas pontas de seus espinhos; mesmo o Aspidocelone, que era uma criatura enorme como a baleia
com sete barbatanas e expressão de ovelha, na qual você podia atracar seu barco por engano se não
prestasse atenção: mesmo o Aspidocelone mal os interessou. Por fim, encontraram o lugar do


Unicórnio, que os gregos chamavam de Rhinoceros.

Parecia que o Unicórnio era tão rápido e manso como o Antílope, e só poderia ser capturado de
uma maneira. Era preciso ter uma donzela como isca, e, quando o Unicórnio a visse sozinha, vinha
imediatamente pousar seu chifre no colo dela. Havia a gravura de uma virgem pouco confiável,
segurando o chifre da pobre criatura com uma mão, enquanto chamava alguns lanceiros com a outra.
Sua expressão de má fé era contrabalançada pela confiança estúpida com que o unicórnio a olhava.

Assim que as instruções foram lidas e a gravura digerida, Gawaine imediatamente se apressou para
buscar a ajudante de cozinha.

— Vamos — ele disse —, você tem de vir conosco até a montanha para pegar um unicórnio.
— Oh, Senhor Gawaine — exclamou a jovem que ele agarrara, cujo nome era Meg.
— Sim, é preciso. Você tem de ser a isca, seja lá como for. Ele virá e colocará a cabeça no seu
colo.
Meg começou a chorar.

— Ora, o que foi, não seja tola!
— Oh, Senhor Gawaine, eu não quero um unicórnio. Tenho sido uma jovem honesta, sim senhor, e
tenho todas essas panelas para lavar, e se Dona Truelove me pegar gazeteando o trabalho, vai me
espancar, Senhor Gawaine, vai sim.
Ele a pegou com firmeza pelas tranças e a puxou para fora.

No vento frio do alto da montanha, eles discutiram a caçada. Pelas tranças, seguravam Meg, que
chorava sem parar, para que não fugisse, e a passavam de um para o outro, se o menino que a
estivesse segurando precisasse de ambas as mãos para gesticular.

— Pois bem — disse Gawaine. — Sou o capitão. Sou o mais velho, portanto sou o capitão.
— A idéia foi minha — disse Gareth.
— A questão é que o livro diz que a isca deve ficar sozinha.
— Ela fugirá.
— Você fugirá, Meg?
— Sim, por favor, Senhor Gawaine.
— Essa não!
— Então, ela tem que ficar amarrada.
— Ai!, Senhor Gaheris, é mesmo vossa vontade, tenho que ser amarrada?
— Cale a boca. Você é só uma menina.
— Não tem nada com que amarrá-la.
— Eu sou o capitão, meus heróis, e ordeno que Gareth vá correndo para casa buscar uma corda.

— Não farei isso.
— Mas você acabará com tudo, se não fizer isso.
— Não sei porque devo ir. Fui eu quem teve a idéia.
— Então, eu ordeno nosso Agravaine a ir.
— Eu não.
— Que vá Gaheris.
— Eu não.
— Meg, sua malvada, não é pra você fugir, escutou bem?
— Sim, Senhor Gawaine. Mas, ai!, Senhor Gawaine!
— Se achássemos uma raiz de urze bem forte, poderíamos amarrar as pontas de suas tranças juntas,
enrolando-as bem.
— Vamos fazer isso.
— Ai, ai!
Depois que amarraram a virgem, os quatro meninos ficaram ao seu redor, discutindo o próximo
passo. Tinham surrupiado do arsenal lanças verdadeiras de caçar javali, portanto estavam
adequadamente armados.

— Essa donzela será minha mãe — disse Agravaine. — Isso era o que mamãe estava fazendo
ontem. E eu vou ser Sir Grummore.
— Eu serei Pellinore.
— Agravaine pode ser Grummore, se quiser, mas a isca tem que ficar sozinha. É isso que o livro
diz.
— Ai!, Senhor Gawaine, ai!, Senhor Gawaine!
— Pare de choramingar. Você vai assustar o unicórnio.
— E agora precisamos sair daqui e nos esconder. Foi por isso que nossa mãe não conseguiu pegá-
lo, porque os cavaleiros ficaram com ela.
— Eu vou ser Finn MacCoul.
— E eu serei Sir Palomides.
— Ai!, Senhor Gawaine, pelo amor de Deus não me deixe sozinha.
— Pare de resmungar — disse Gawaine. — Você é tola. Deveria ficar orgulhosa de ser a isca.
Ontem, nossa mãe foi.
Gareth disse:

— Não se preocupe, Meg, não chore. Nós não deixaremos que ele a machuque.
— Afinal, o pior que ele pode fazer é matar você — disse Agravaine com brutalidade.

Com isso, a menina infeliz começou a chorar mais que nunca.

— Por que você disse isso? — perguntou Gawaine, furioso. — Você sempre tenta amedrontar as
pessoas. Agora, ela está chorando mais que antes.
— Olhe — disse Gareth. — Olhe, Meg. Coitada da Meg, não chore. Eu deixarei você dar uns tiros
com minha catapulta, quando voltarmos para casa.
— Ah, Senhor Gareth!
— Arre, vamos embora. Não podemos ficar nos ocupando com ela.
— Vamos, vamos!
— Ai! Ai!
— Meg — disse Gawaine, fazendo uma careta medonha —, se você não parar de gritar, vou olhar
para você desse jeito.
Imediatamente, ela parou.

— Agora — ele disse —, quando o unicórnio vier, vamos aparecer correndo e matá-lo. Você
entendeu?
— Ele precisa ser morto?
— Sim, ele precisa ser morto.
— Sei.
— Eu não gostaria de machucá-lo — disse Gareth.
— Esse é mesmo o tipo de tolice de que você gostaria — respondeu Agravaine.
— Mas não entendo porque ele deve ser morto.
— Para que possamos levá-lo para casa para nossa mãe, seu cérebro de rã.
— Você não acha que poderíamos pegá-lo — perguntou Gareth — e levá-lo até nossa mãe? Quer
dizer, podemos fazer Meg levá-lo, se ele for manso.
Gawaine e Gaheris concordaram com isso.

— Se ele for manso — disseram — seria melhor levá-lo vivo. Esse é o melhor tipo de Grande
Caçada.
— Poderíamos montá-lo — disse Agravaine. — Poderíamos bater nele com galhos. Poderíamos
bater em Meg, também — acrescentou, como uma reflexão posterior.
Em seguida, eles se esconderam em emboscada e decidiram ficar em silêncio. Não se escutava
nada, exceto o vento suave, as abelhas nas urzes, as cotovias lá no alto e as fungadas distantes de
Meg.

Quando o unicórnio veio, as coisas foram bem diferentes do que haviam imaginado. Para começar,
ele era um animal tão nobre que era como se fosse uma encarnação da própria beleza. Deixava


encantado tudo que estivesse ao alcance da vista.

O unicórnio era branco, com patas de prata e um gracioso chifre de madrepérola. Com graça,
pisava na relva, mal parecendo pressioná-la com seu trote leve como ar, e o vento ondeava sua
longa crina, recentemente penteada. O que tinha de mais glorioso eram os olhos. Havia um leve
sulco azulado de cada lado de seu nariz, subindo até a cavidade ocular, rodeando-a com uma
sombra melancólica. Os olhos, envolvidos por essa sombra triste e bela, eram tão tristonhos,
solitários, meigos e tragicamente nobres, que liquidavam qualquer outra emoção a não ser o amor.

O unicórnio aproximou-se de Meg, a ajudante de cozinha, e inclinou a cabeça a sua frente. Para
fazer isso, arqueou lindamente a nuca, o chifre de madrepérola apontou para o chão a seus pés, e
ele riscou a urze com sua pata de prata como se fizesse uma saudação. Meg esqueceu as lágrimas.
Fez um gesto gentil de reconhecimento e estendeu a mão para o animal.

— Venha, unicórnio — ela disse. — Deita a cabeça em meu colo, se quiser.
O unicórnio soltou um pequeno relincho e bateu outra vez com a pata. Depois, muito
cuidadosamente, dobrou primeiro um joelho e depois o outro, até estar curvado frente a ela. Olhou-
a nessa posição, com seus olhos comovedores e, por fim, deitou a cabeça sobre os joelhos dela.
Roçou sua face magra, lisa, na maciez do vestido dela, olhando-a como se em súplica. O branco de
seus olhos revirou para cima, com uma centelha. Acomodou seu traseiro de maneira recatada e
ficou quieto, olhando para cima. Os olhos brilhavam com confiança, e ele levantou sua parte
dianteira em um gesto com a pata. Era apenas um movimento no ar, que dizia: "Agora, cuida de
mim. Me dê um pouco de amor. Alisa minha crina, por favor?".

Agravaine fez um ruído sufocado no esconderijo e imediatamente saiu correndo em direção ao
unicórnio, com a lança afiada de caçar javali nas mãos. Os outros meninos acocoram-se nos
calcanhares para ver melhor.

Agravaine chegou junto do unicórnio e começou a espetar a lança em seus flancos, na barriga
elegante, nas costelas. Ele gritava enquanto golpeava, e o unicórnio olhava angustiado para Meg.
De repente, deu um salto e se moveu, ainda olhando para ela com reprovação, e Meg pegou seu
chifre com uma das mãos. Ela parecia em transe, incapaz de evitar isso. O unicórnio não parecia
capaz de se livrar do macio aperto da mão dela em seu chifre. O sangue, causado pela lança de
Agravaine, jorrava de sua pelagem branco-azulada.

Gareth começou a correr, com Gawaine bem atrás dele. Gahe-ris veio por último, estupefato e sem
saber o que fazer.

— Não! — gritou Gareth. — Deixa-o em paz. Não! Não! Gawaine chegou quando a lança de
Agravaine entrava em sua quinta costela. O unicórnio estremeceu. Tremia com todo o corpo, e
esticou as pernas traseiras para trás. Elas se esticaram completamente, como se ele estivesse
tentando dar seu maior salto — e então ele palpitou, tremendo na agonia da morte. Durante todo o
tempo seus olhos estavam fixos nos olhos de Meg, e ela ainda olhava para baixo para os dele.
— O que você está fazendo! — gritou Gawaine. — Deixa-o em paz. Não o machuque.
— Oh, unicórnio — sussurrou Meg. Agravaine gritou:

— Esta moça é minha mãe. Ele pôs a cabeça no colo dela. Tinha que morrer.
— Nós combinamos que cuidaríamos dele — gritou Gawaine. — Combinamos que o levaríamos
para casa e poderíamos servir o jantar.
— Pobre unicórnio — disse Meg.
— Olhem — disse Gaheris. — Acho que ele está morto. Gareth ficou de pé enfrentando Agravaine,
que era três anos mais velho e poderia derrubá-lo facilmente.
— Por que você fez isso? — questionou. — Você é um assassino. Ele era um unicórnio lindo. Por
que o matou?
— A cabeça dele estava no colo de nossa mãe.
— Ele não queria fazer nada de mal. Suas patas eram de prata.
— Era um unicórnio, e tinha que ser morto. Eu devia ter matado Meg também.
— Você é um traidor — disse Gawaine. — Poderíamos tê-lo levado para casa, e nos deixariam
servir o jantar.
— De qualquer maneira, agora ele está morto — disse Gaheris. Meg abaixou outra vez a cabeça
sobre as madeixas brancas do unicórnio, e outra vez começou a soluçar.
Gareth começou a coçar a cabeça do unicórnio. Teve que se virar para esconder as lágrimas. Ao
coçá-lo, descobriu como sua penugem era suave e macia. Pôde ver de perto seus olhos, agora
rapidamente se fechando, e isso fez com que sentisse ainda mais fundo a tragédia.

— Bom, de qualquer maneira, agora ele está morto — disse Gaheris pela terceira vez. — É melhor
levá-lo para casa.
— Conseguimos pegar um unicórnio — disse Gawaine, começando a perceber o prodígio daquele
feito.
— Ele era uma fera — disse Agravaine.
— Nós o pegamos! Nós mesmos.
— Sir Grummore não conseguiu pegar nenhum.
— Mas nós conseguimos.
Gawaine tinha esquecido sua pena pelo unicórnio. Começou a dançar aos pulos em volta do corpo,
agitando sua lança e dando gritos terríveis.

— Temos que retirar suas tripas — disse Gaheris — Devemos fazer as coisas adequadamente, e
limpar suas tripas e colocá-lo sobre um pônei e levá-lo para o castelo, como caçadores
profissionais.
— E então ela vai ficar contente!
— Ela vai dizer "Pelos pés do Senhor, meus filhos são de insuperável poder!".
— Vai nos deixar ser como Sir Grummore e o Rei Pellinore. Tudo vai dar certo para nós de agora

em diante.

— Como vamos retirar as tripas?
— Vamos ter que dar um jeito — disse Agravaine Gareth levantou-se e começou a se afastar nas
urzes. Disse:
— Eu não quero ajudar a cortá-lo. Você quer, Meg?
Meg, que estava se sentindo muito mal, não respondeu. Gareth desamarrou seu cabelo — e de
repente ela começou a correr, o mais rápido que podia, para longe da tragédia, em direção ao
castelo. Gareth correu atrás dela.

— Meg, Meg! — ele gritou. — Me espera. Não corre!
Mas Meg continuou a correr, tão rápida quanto um antílope, com seus pés descalços desaparecendo
num piscar de olhos, e Gareth desistiu. Ele se atirou nas urzes e começou a chorar para valer —
sem saber o motivo.

Os três caçadores restantes tiveram problemas para tirar as tripas. Começaram abrindo a pele da
barriga, mas não sabiam como fazer isso corretamente e perfuraram os intestinos. Tudo começou a
ficar horrível, e o antes belo animal ficou estragado e repulsivo. Todos os três amavam o unicórnio
a sua maneira, Agravaine, da maneira mais distorcida e, à medida que se tornavam responsáveis
por estragar sua beleza, começaram a detestá-lo pela culpa que sentiam. Gawaine, particularmente,
começou a odiar o corpo. Odiava-o por estar morto, por ter sido bonito, por fazê-lo se sentir um
animal. Amara-o e ajudara a pegá-lo, e agora já nada havia a fazer exceto dar vazão à vergonha e
ao ódio de si mesmo sobre o cadáver. Retalhava e cortava e sentia também vontade de chorar.

— Nunca conseguiremos levá-lo — ofegavam. — Como vamos carregá-lo até o castelo, mesmo se
conseguirmos retirar as tripas?
— Mas temos que conseguir — disse Gaheris. — Temos que conseguir. Se não conseguirmos, de
que adiantou tudo isso? Temos que levá-lo para casa.
— Não podemos carregá-lo.
— Não temos um pônei.
— Numa caçada, eles põem o animal atravessado sobre um pônei.
— Temos que cortar a cabeça dele — disse Agravaine. — Temos que cortar a cabeça dele, de
alguma maneira, e levá-la. Se levarmos a cabeça, será o suficiente. Poderemos carregá-la todos
juntos.
Portanto, puseram-se a trabalhar, abominando o que estavam fazendo, o horrendo trabalho de cortar
fora aquela cabeça.

Gareth parou de chorar nas urzes. Virou-se de costas e imediatamente olhou direto para o céu. As
nuvens passando majestosamente acima dele, nas alturas sem fim, provocaram-lhe vertigens. Ele
pensou: qual será a distância até aquela nuvem? Um quilômetro? E até aquela outra, acima dela?
Dois quilômetros? E além dela, mais um quilômetro e um quilômetro, e um milhão de milhão de


quilômetros após quilômetros, todos no azul vazio. Talvez se eu caísse da terra agora, se a terra
estivesse de cabeça para baixo, eu seguiria caindo e caindo. Tentaria pegar nas nuvens ao passar
por elas, mas elas não me parariam. Aonde eu chegaria?

Esse pensamento fez Gareth se sentir meio zonzo e, como também se sentia envergonhado por ter
fugido da retirada das tripas, começou a se sentir péssimo. Nessas circunstâncias, a única coisa a
fazer era abandonar o lugar onde estava se sentindo assim, na esperança de deixar o desconforto
atrás de si. Levantou-se e foi procurar os outros.

— Olá — disse Gawaine —, você conseguiu pegá-la?
— Não, ela fugiu para o castelo.
— Espero que ela não conte a ninguém — disse Gaheris. — Tem que ser uma surpresa ou não será
bom para nós.
Os três açougueiros estavam molhados de suor e sangue, e se sentiam absolutamente miseráveis.
Agravaine tinha vomitado duas vezes. No entanto, continuaram o árduo trabalho e Gareth ajudou-
os.

— Não vale a pena parar agora — disse Gawaine. — Pensem em como será bom quando o
levarmos para nossa mãe.
— Provavelmente ela vai subir as escadas para nos dar boa-noite, se pudermos lhe dar o que ela
quer.
— Ela sorrirá e dirá que somos grandes caçadores.
Depois que cortaram a espantosa espinha dorsal, a cabeça era muito pesada para carregar. Eles se
atrapalharam todos, tentando levantá-la. Então Gawaine sugeriu que seria melhor se a puxassem
com uma corda. Não havia nenhuma.

— Poderíamos puxá-la pelo chifre — disse Gareth. — De alguma maneira, podemos arrastar e
puxar assim, enquanto for ladeira abaixo.
Só um de cada vez podia segurar o chifre, assim eles se revezaram para puxar enquanto os outros
empurravam por trás, quando a cabeça ficava presa em uma raiz de urze ou um sulco. Mesmo dessa
maneira, era pesada para eles, e tinham que parar mais ou menos de vinte em vinte metros, para
revezar.

— Quando chegarmos ao castelo — arfava Gawaine — vamos colocá-la em um banco do jardim.
Nossa mãe sempre passa por lá, em seu passeio antes do jantar. Então, ficaremos na frente até ela
se aproximar e, de repente, todos juntos daremos um passo atrás e lá estará a cabeça.
— Ela ficará surpresa — disse Gaheris.
Quando finalmente conseguiram descer a ladeira, havia um novo obstáculo. Descobriram que já não
seria possível puxá-la daquele jeito em terra plana, porque o chifre não dava apoio suficiente.

Nessa emergência, pois já estava chegando a hora do jantar, Gareth voluntariamente correu na
frente para buscar uma corda. A corda foi amarrada em volta do que restava da cabeça, e assim,


por fim, com os olhos arruinados, a carne esmagada e se desprendendo dos ossos, o troféu
enlameado, sangrento, envolvido por urzes foi levado pela etapa final até o jardim. Eles levantaram
a cabeça para colocá-la no banco e arrumaram sua crina da melhor maneira que puderam. Gareth,
particularmente, tentou escorá-la para que desse uma pequena idéia da beleza da qual se lembrava.

A rainha mágica veio pontualmente para seu passeio, conversando com Sir Grummore e seguida
por seus cachorros de estimação: Tray, Blanche e Queridinho. Não reparou em seus quatro filhos
enfileirados frente ao banco. Eles estavam parados respeitosamente em fila, sujos, excitados, os
corações batendo de esperança.

— Agora! — gritou Gawaine, e todos se moveram para o lado. A Rainha Morgause não viu o
unicórnio. Sua cabeça estava ocupada com outras coisas. Seguiu em frente com Sir Grummore.
— Mamãe! — Gawaine gritou, com voz estranha, e correu atrás dela, puxando sua saia.
— Sim, meu branquelo? O que você quer?
— Oh, mamãe. Nós trouxemos um unicórnio para a senhora.
— Como são pretensiosos, Sir Grummore — ela disse. — Bem, meus gansinhos, vocês devem ir
direto para a cozinha e tomar seu leite.
— Mas, mamãe...
— Sim, sim — ela disse em voz baixa. — Depois.
E a rainha seguiu adiante com o intrigado cavaleiro da Floresta Sauvage, rápida e reservada. Não
percebera que as roupas de seus filhos estavam arruinadas: nem sequer ralhou com eles por causa
disso. Quando, mais tarde, à noite, soube a respeito do unicórnio, mandou chicoteá-los como
castigo, pois tinha passado um dia frustrante com os cavaleiros ingleses.


VIII


A planície de Bedegraine era uma floresta de pavilhões. Pareciam tendas de praia fora de moda e
tinham todas as cores do arco-íris. Algumas, inclusive, eram listradas como tendas de praia, mas a
maioria tinha apenas uma cor, amarela, verde e cores assim. Havia emblemas heráldicos pintados
ou gravados dos lados — enormes águias negras com duas cabeças ou dragões alados, ou lanças ou
carvalhos, ou jogos de palavras que se referiam aos nomes dos proprietários. Por exemplo, Sir Kay
tinha uma chave (key)
preta em sua tenda, e Sir Ulbawes, no campo oposto, um par de cotovelos
(elbows)
com mangas fofas. O nome adequado para isso seria manchets.
Havia também
bandeirolas flutuando no topo das tendas e feixes de lanças encostadas umas nas outras. Os barões
mais esportistas tinham escudos ou grandes bacias de cobre do lado de fora da porta de sua tenda, e
tudo que você tinha a fazer era encostar numa delas com a ponta de sua lança para o barão aparecer
feito uma abelha furiosa e lutar com você, quase antes do som ressoante terminar. Sir Dinadin, que
era um homem brincalhão, pendurara um penico do lado de fora da sua tenda. E, então, havia as
pessoas. Em torno e dentro das tendas havia cozinheiros brigando com cachorros que tinham
comido pedaços de carneiro, e pequenos pajens gesticulando insultos nas costas do outro que não
estivesse olhando, e menestréis elegantes com alaúdes tocando canções folclóricas parecidas com
Greensleeves,
e escudeiros com expressões compungidas, tentando vender um para o outro cavalos
esparavões, e homens com realejos tentando ganhar qualquer coisa tocando músicas antigas, e
ciganas dizendo a sorte na batalha, e enormes cavaleiros com as cabeças enroladas em turbantes
desarrumados jogando xadrez, e vivandeiras sentadas nos joelhos de um ou outro, e — como
entretenimento — havia jograis, bufões, acrobatas, harpistas, trovadores, comediantes, menestréis,
prestidigita-dores, ursos dançarinos, dançarinos com ovos, dançarinos em escadas, dançarinos de
bailado, saltimbancos, engolidores de fogo e equilibristas. De certa maneira, era como um dia de
feira. A extraordinária floresta de Sherwood se estendia ao redor da floresta de tendas mais além
do que os olhos podiam ver — e estava cheia de javalis ferozes, cervos, foras-da-lei, dragões e
borboletas raras. Havia também uma emboscada na floresta, mas ninguém devia saber sobre ela.

O Rei Arthur não se preocupava com a batalha prestes a acontecer. Mantinha-se invisível em seu
pavilhão, no centro de toda aquela excitação, e conversava com Sir Ector ou Kay ou Merlin, dia
após dia. Os capitães inferiores estavam deliciados, pensando que seu rei realizava inúmeros
conselhos de guerra, pois bem podiam ver o lampião aceso dentro da tenda de seda até altas horas,
e tinham certeza de que inventavam um esplêndido plano de batalha. Na realidade, a conversa era
sobre outras coisas,


— Haverá muita inveja — disse Kay. — Todos esses cavaleiros de sua Ordem vão dizer que são
os melhores e vão querer se sentar à cabeceira da mesa.
— Então, vamos ter uma mesa redonda, sem cabeceiras.
— Mas, Arthur, você nunca conseguirá sentar cento e cinqüenta cavaleiros ao redor de uma mesa
redonda. Vamos ver...
Merlin, que agora dificilmente interferia na discussão, mas ficava sentado com as mãos dobradas
sobre o estômago, sorrindo, veio em auxílio de Kay.

— Teria que ter cerca de quarenta e cinco metros de diâmetro — ele disse. — Você calcula isso
com 2pr.
— Certo, então. Digamos que tenha quarenta e cinco metros de diâmetro. Pense em todo o espaço
no meio. Seria um oceano de madeira com uma fina borda de humanos em torno. Tampouco se
poderia colocar a comida no meio, porque ninguém conseguiria alcançá-la.
— Então poderíamos ter uma mesa circular — disse Arthur —, e não redonda. Não sei qual a
palavra mais adequada. Quero dizer que podemos ter uma mesa com a forma de um aro de roda de
carroça, e os servos poderiam andar pelo espaço vago, onde estaria o raio da roda. Poderíamos
chamá-los de Cavaleiros da Távola Redonda.
— Nome excelente!
— E o mais importante — continuou o Rei, que quanto mais pensava mais sábio ficava — o mais
importante será atrair os jovens. Os velhos cavaleiros, aqueles contra os quais estamos lutando, em
geral estão velhos demais para aprender. Acho que podemos convencê-los a entrar e mantê-los
lutando da maneira certa, mas estarão inclinados aos velhos hábitos, como Sir Bruce. Grummore e
Pellinore — teremos que contar com eles, claro — mas onde será que eles estão agora? Grummore
e Pellinore estarão bem, porque sempre foram mesmo boa gente. Mas acho que o povo de Lot nuncase sentirá muito à vontade com essa mudança. É por isso que digo que temos que pegá-los jovens.
Devemos criar uma nova geração de cavaleiros para o futuro. Aquele menino Lancelot que veio
com vocês-sabem-quem, por exemplo: precisamos de jovens como ele. Eles serão a verdadeira
Távola.
— A propósito dessa Távola — disse Merlin — não sei porque não deveria lhe dizer que o Rei
Leodegrance tem uma que poderia servir muito bem. Como você vai se casar com a filha dele, pode
persuadi-lo a lhe dar a mesa como presente de casamento.
— Eu vou casar com a filha dele?
— Certamente. Ela se chama Guenevere.
— Olha, Merlin, eu não gosto de saber sobre o futuro e sequer tenho certeza se acredito nessas
coisas...
— Existem algumas coisas que tenho que lhe dizer, quer você acredite nelas ou não — respondeu o
mago. — O problema é que eu tenho a sensação de que estou esquecendo de lhe dizer alguma coisa.
Não me deixe esquecer de lhe avisar sobre Guenevere outra hora.

— Isso confunde qualquer pessoa — disse Arthur, reclamando. — Fico confuso sobre a metade das
questões que quero lhe perguntar. Por exemplo, quem foi minha...
— Você terá de fazer festas especiais para o Pentecostes e coisas assim, — interrompeu Kay —
quando todos os cavaleiros virão para o jantar e contarão o que fizeram. Se tiverem que falar sobre

o que fizeram, isso pode fazê-los querer lutar de acordo com essa nova maneira que você está
propondo. E Merlin poderia escrever seus nomes nos devidos lugares, com magia, e o brasão de
suas armaduras poderia ser gravado nas cadeiras. Seria magnífico!
Essa idéia excitante fez o rei esquecer sua pergunta, e os dois jovens sentaram-se imediatamente
para desenhar os próprios brasões para o mago, para que não houvesse nenhum engano em relação
às cores. Quando estavam no meio dos desenhos, Kay levantou os olhos, com a língua entre os
dentes, e comentou:

— Falando nisso, vocês se lembram daquela discussão que tivemos sobre agressão? Bem, eu
pensei em uma boa razão para começar uma guerra.
Merlin ficou gelado.

— Gostaria de saber qual é.
— Uma boa razão para começar uma guerra é simplesmente ter uma boa razão! Por exemplo, pode
haver um rei que descubra uma nova maneira de viver para os seres humanos — sabe, alguma coisa
que será melhor para eles. Pode até mesmo ser a única maneira de salvá-los da destruição. Bom, se
os seres humanos forem muito perversos ou muito estúpidos para aceitarem essa maneira, ele pode
ter que forçá-los a isso pela espada, no próprio interesse deles.
O mago apertou os punhos, torceu sua veste em vários pontos e começou a se tremer todo.

— Muito interessante — comentou, com voz trêmula. — Muito interessante. Havia um homem
exatamente assim quando eu era jovem, um austríaco que inventou uma nova maneira de vida e se
convenceu de que era quem ia fazer a coisa funcionar. Tentou impor sua reforma pela espada e
mergulhou o mundo civilizado na miséria e no caos. Mas o que esse sujeito tinha esquecido, meu
amigo, era que ele teve um predecessor nesse negócio de reforma, chamado Jesus Cristo. Talvez
possamos supor que Jesus sabia tanto quanto o austríaco sabia sobre isso de salvar as pessoas. Mas
o estranho é que Jesus não transformou seus discípulos em tropas de ataque, nem queimou o
Templo de Jerusalém e nem pôs a culpa em Pôncio Pilatos. Ao contrário, ele deixou claro que o
trabalho do filósofo era tornar as idéias acessíveis
e não
impô-las às pessoas.
Kay ficou pálido, mas manteve-se obstinado.

— Arthur está travando a guerra atual para impor suas idéias ao Rei Lot — disse.

IX


A sugestão da rainha de caçar o unicórnio teve um efeito curioso. Quanto mais perdido de amor se
tornava Pellinore, mais óbvio ficava que algo deveria ser feito. Sir Palomides teve uma inspiração.

— A melancolia real — ele disse — só pode ser desfeita pela Besta Gemente. Este foi o objetivo
da vida inteira do marajá sahib{8}.
Esse seu verdadeiro amigo ouve você dizer isso o tempo todo.
— Pessoalmente — disse Sir Grummore —, acredito que a Besta Gemente está morta. De qualquer
maneira, está em Flandres.
— Então precisamos fingir — disse Sir Palomides. — Precisamos assumir o papel da Besta
Gemente e deixar que ela nos cace.
— Dificilmente poderíamos fingir que somos a Besta Gemente. Mas o sarraceno já levara longe a
idéia.
— Por que não? — perguntou. — Por que não, por Deus? Os comediantes se vestem de animais —
como cervos, bodes ou seja o que for — e dançam ao som de sinos e tambor, com muitos giros e
circunflexões.

— Mas, realmente, Palomides, nós não somos comediantes.
— Mas podemos aprender a ser!
— Comediantes!
Um comediante era como um prestidigitador, um tipo inferior de menestrel, e Sir Grummore não se
entusiasmou nada com a idéia.

— Como poderíamos nos vestir como a Besta Gemente? — perguntou, desanimado. — Ela é um
animal incrivelmente complicado.
— Descreva-a
— Bom, vá lá. Ela tem cabeça de serpente e corpo de leopardo e quadris de leão e patas de veado.
E, espera aí, caramba!, como poderíamos fazer o barulho da barriga dela, como trinta parelhas de
cães de caça em perseguição?
— Esse seu verdadeiro amigo pode ser a barriga — retrucou Sir Palomides —, e fará assim com a
língua.

Ele começou a fazer um barulho de assustar.

— Silêncio! — gritou Sir Grummore. — Vai acordar o castelo.
— Então, estamos de acordo?
— Não, não estamos. Nunca escutei tanta estupidez em toda minha vida. Além disso, ela não faz um
barulho assim. Ela faz um barulho assim.
E Sir Grummore começou a berrar em contralto desafinado, como milhares de gansos selvagens no
brejo.

— Silêncio! Silêncio! — gritou Sir Palomides.
— Não ficarei em silêncio. O barulho que você estava fazendo parecia de porcos.
Os dois naturalistas começaram a piar, grunhir, grasnar, guinchar, cocoricar, mugir, rosnar, fungar,
roncar, latir e miar um para o outro, até ficarem com as faces vermelhas.

— A cabeça — disse Sir Grummore, parando de repente — terá de ser de papelão.
— Ou de lona — disse Sir Palomides. — O povo de pescadores terá lona, certamente.
— Podemos arranjar botas de couro para fazer as patas.
— Podemos pintar manchas no corpo.
— Teremos que ter botões no meio...
— ... onde nos ligaremos um ao outro.
— E você — acrescentou Sir Palomides, generoso — pode ser a parte traseira e fazer os sons.
Todos afirmam que o barulho vem da barriga.
Sir Grummore corou de prazer e disse, com voz rouca, ao estilo normando:

— Bom, obrigado, Palomides. Devo dizer que reconheço que isso é magnificamente decente de sua
parte.
— Que nada!
Durante uma semana, o Rei Pellinore quase não viu seus amigos.
— Vá escrever poemas, Pellinore — eles lhe disseram — ou vá suspirar nos rochedos, seja um
bom companheiro.
De vez em quando, ele vagava sem rumo, gritando: "Flandres — Glandres" ou "Filha — fervilha",
quando lhe ocorria alguma rima, enquanto a sombria rainha o seguia de longe.

Enquanto isso, no quarto de Sir Palomides, onde a porta estava sempre fechada à chave, havia tanto
recorte e costura e pintura e discussão como raras vezes se vira antes.

— Querido companheiro, eu lhe digo que um leopardo tem pintas pretas.
— Castanho-avermelhadas — Sir Palomides teimava.
— Que cor é essa, castanho-avermelhada? E de qualquer maneira, não temos essa cor por aqui.

Olharam-se um para o outro, com o furor de criadores.

— Experimenta a cabeça.
— Pronto, você a rasgou. Eu disse que isso ia acontecer.
— Era de construção frágil.
— Temos que construir outra.
Quando a reconstrução terminou, o pagão afastou-se um pouco para admirá-la.
— Cuidado com as pintas, Palomides. Pronto, você borrou tudo.
— Mil perdões!
— Você tem de olhar por onde anda!
— Bem, quem pôs o pé nas costelas?
No segundo dia houve problemas com o traseiro.
— Essas coxas são grandes demais.
— Não as dobre.
— Tenho que dobrá-las, se vou ser a parte traseira.
— Elas não vão se quebrar.
— Sim, vão.
— Não, não vão.
— Bem, já quebraram.
— Cuidado com meu rabo — disse Sir Grummore, no terceiro dia. — Você está pisando nele.
— Não segure com tanta força, Grummore. Minha nuca está torcida.
— Você não consegue ver?
— Não, não consigo. Minha nuca está torcida.
— Lá se foi meu rabo.
Houve uma pausa enquanto eles se arrumavam.
— Agora, com cuidado dessa vez. Devemos dar os passos em conjunto.
— Você dá as ordens.
— Esquerda! Direita! Esquerda! Direita!
— Acho que meus quadris estão caindo.
— Se você continuar mexendo assim a cintura, vamos nos partir ao meio.
— Bom, não posso segurar minhas coxas a menos que faça isso.
— Lá se vão os botões.

— Malditos botões.
— Esse seu verdadeiro amigo tinha lhe avisado.
Assim, eles tiveram que costurar os botões no quarto dia e começar de novo.
— Posso praticar meu som agora?
— Sim, claro.
— Como ele soa a partir de dentro?
— Esplêndido, Grummore, esplêndido! Só que, de certa maneira, parece estranho, vindo de trás, se
é que você me entende.
— Achei que estava soando abafado.
— Sim, um pouco.
— Talvez pareça bem do lado de fora.
No quinto dia, eles estavam bem adiantados.
— Precisamos praticar um galope. Afinal, não podemos andar o tempo todo, não quando ele estiver
nos caçando.
— Muito bem.
— Quando eu disser "Vá", então vá. Pronto, firme, vá!
— Cuidado, Grummore, você está me dando cabeçadas.
— Cabeçadas?
— Cuidado com a cama.
— O que você disse?
— Oh, céus!
— Não vi a cama, com os infernos! Ai, minha canela!
— Você arrebentou os botões outra vez!
— Malditos botões. Bati meu dedão.
— Bom, sua cabeça verdadeira também está aparecendo.
— Vamos ter que ficar apenas andando.
— Seria mais fácil galopar — disse Sir Grummore, no sexto dia — se tivéssemos alguma música.
Algo como a marchinha Galopar,
sabe.
— Bom, não temos música.
— Não.
— Será que você poderia cantar Galopar,
Palomides, enquanto eu estiver fazendo meu barulho?

— Esse seu verdadeiro amigo poderia, sim, tentar.
— Muito bem, então, lá vamos nós!
— Galopar, galopar, galopar!
— Maldição!
— Vamos ter que começar tudo outra vez — disse Palomides, no final da semana. — Ainda
podemos usar os cascos.
— Não acho que vai doer muito se cairmos lá fora — no musgo, entende?
— E provavelmente não vai rasgar a lona tanto assim.
— Vamos fazê-la com costura dupla.
— Sim.
— Fico contente porque pelo menos os cascos ainda servirão.
— Por Jove, Palomides, está mesmo parecendo um monstro!
— Um esforço esplêndido, desta vez.
— Pena não poder fazer algum fogo sair de sua boca, ou algo assim.
— Correria perigo de combustão.
— Vamos tentar outro galope, Palomides?
— Ah, vamos!
— Empurra a cama para o canto, então.
— Atenção com os botões.
— Se você vir alguma coisa à nossa frente, pare, entende?
— Sim.
— Preste bem atenção, Palomides.
— Certo, Grummore.
— Pronto, então?
— Pronto.
— Lá vamos nós.
— Essa foi uma esplêndida arrancada, Palomides — exclamou o cavaleiro da Floresta Sauvage.
— Um galope nobre.
— Você reparou como eu estava fazendo meu som o tempo todo?
— Não dava para não reparar, Sir Grummore.
— Ora, ora, não me lembro de quando me diverti tanto! Eles ofegaram em triunfo, dentro do seu

monstro.

— Veja como estalo meu rabo, Palomides!
— Encantador, Sir Grummore. Agora, olha como pisco um dos meus olhos.
— Não, não, Palomides. Olha você para meu rabo. Não dá para perder isso, realmente.
— Bom, se eu tenho de olhar você estalar seu rabo, você tem de olhar para minhas piscadelas. Isso
é o justo.
— Mas eu não posso ver nada daqui de dentro.
— Quanto a isso, sir Grummore, esse seu verdadeiro amigo também só pode ver seu apanágio anal.
— Bom, então, vamos dar uma última volta. Vou estalar meu rabo o tempo todo e berrar como
louco. Será um espetáculo terrível.
— E você saberá que esse seu verdadeiro amigo estará piscando um olho ou o outro.
— Você não poderia saltitar um pouco no galope, Palomides, de vez em quando? Um tipo de passo
saltitante, sabe?
— Isso poderia ser efetuado com mais naturalidade pela parte traseira, em solo.
— Você quer dizer que posso fazer isso sozinho?
— Efetivamente.
— Bem, devo dizer que isso é extraordinariamente decente de sua parte, Palomides, me deixar dar
o salto.
— Esse seu verdadeiro amigo confia que você exercerá uma certa quantidade de cuidado no salto,
para evitar, como conseqüência, golpes desconfortáveis no traseiro do quarto dianteiro, certo?
— Como você queira, Palomides.
— A postos!, Sir Grummore.
— Avante!, Sir Palomides.
— Galopar, galopar, galopar, aventura, lá vamos nós!
A rainha reconheceria o impossível. Mesmo no miasma de sua mente gaélica, acabara percebendo
que asnos não cruzam com pítons. Era inútil continuar dramatizando seus encantos e talentos para
atrair esses ridículos cavaleiros — inútil tentar caçá-los com as iscas cruéis do que ela pensava
ser amor. Com súbita reviravolta de sentimentos, descobriu que os odiava. Eram imbecis, como
eram todos os sassenachs,
e ela era uma santa. E com a mudança de postura, ela descobriu, estava
interessada, apenas em seus queridos filhos. Era a melhor mãe do mundo! Seu coração batia por
eles, seu peito maternal intumescia. Quando Gareth, todo nervoso, trouxe urze branca como uma
desculpa por ter sido chicoteado, ela o cobriu de beijos, olhando-se de soslaio no espelho.

Ele se desvencilhou do abraço e secou as lágrimas — em parte desconfortável, em parte em êxtase.
A urze que ele trouxera foi dramaticamente colocada em um copo sem água — ela sentia-se


totalmente doméstica — e ele foi autorizado a sair. Saiu precipitadamente do quarto real com a
notícia do perdão, rodopiando pela escada em espiral como um pião.

Era um castelo diferente daquele por onde o Rei Arthur costumava correr quando menino. Um
normando dificilmente o consideraria como um castelo, exceto pela torre quadrangular. Era mil
anos mais antigo do que qualquer coisa que os normandos conheciam.

Esse castelo, pelo qual o menino corria para levar a seus irmãos a boa nova do amor da mãe,
começara, nas brumas do passado, como aquele estranho símbolo dos Antigos — um forte de
promontório. Empurrados para o mar pelo vulcão da história, eles se abrigaram na última
península. Com o mar literalmente às costas, em uma língua de terra escarpada, construíram sua
única muralha através da raiz da língua. O mar, que era sua maldição, era também seu defensor de
todos os outros lados. Ali, no promontório, os canibais pintados de azul tinham empilhado sua
muralha ciclópica de pedras sem argamassa, com quatro metros de altura e o mesmo de grossura,
com terraços do lado de dentro dos quais podiam arremessar suas pederneiras. Do lado de fora da
muralha, onde tinham cravado milhares de pedras pontiagudas na turfa, cada pedra apontando para
fora em um chevaux de frise{9}, parecendo ouriços petrificados. Atrás disso, e atrás da muralha
enorme, eles se amontoavam em cabanas de madeira, junto com os animais domésticos. Havia
cabeças de inimigos enfiadas em estacas para decoração, e seu rei tinha construído, ele mesmo,
uma câmara subterrânea de tesouro que era também uma passagem subterrânea de fuga. Passava por
baixo da muralha para que, mesmo se o forte fosse sitiado, ele pudesse rastejar até a retaguarda de
seus atacantes. Era uma passagem por onde apenas um homem poderia rastejar de cada vez e fora
construída com uma curva especial, onde ele poderia esperar para bater na cabeça de seu
perseguidor, se esse tentasse passar pelo obstáculo. Os construtores do subterrâneo foram todos
executados pelo próprio rei-sacerdote, para mantê-lo em segredo.

Tudo isso aconteceu no milênio anterior.

Com a permanência dos Antigos, Dunlothian cresceu lentamente. Ali, com a conquista escandinava,
surgiu uma casa grande de madeira; aqui, as pedras originais da muralha protetora tinham sido
retiradas para construir uma torre redonda para os padres. A torre quadrangular, com um estábulo
por baixo das duas câmaras atuais, fora construída por último.

Portanto, foi entre esses destroços desordenados dos séculos que Gareth correu procurando seus
irmãos. Correu entre escoras e adaptações — passando por velhas lápides que celebravam um
Deag filho de um No há muito tempo morto, e depois embutidas, de cabeça para baixo, em alguma
coluna. Estava no topo de uma falésia varrida pelo vento e expurgada até os ossos pelos ares do
Atlântico, sob a qual se abrigava uma pequena vila de pescadores entre as dunas. Era como se
fosse o herdeiro de um panorama que abrangia umas tantas dezenas de quilômetros de vagalhões e
centenas de quilômetros de cúmulos. Ao longo de toda a costa, os santos e estudiosos de Eriu
habitavam iglus de pedras em sagrada horripilância — recitando cinqüenta salmos em suas
colméias e cinqüenta ao ar livre e cinqüenta com os corpos mergulhados na água fria, em sua
aversão pelo brilho do mundo. São Toirdealbhach estava longe de ser um exemplo da sua espécie.

Gareth encontrou seus irmãos na despensa.


A despensa cheirava a aveia, presunto, salmão defumado, bacalhau seco, cebolas, óleo de tubarão,
picles de arenque em tinas de madeira, cânhamo, cereais, penas de galinha, cera de vela, leite — a
manteiga era batida ali às quintas-feiras — madeira de pinho da estação, maçãs, ervas secas, cola
de peixe e verniz usados pelos flecheiros, especiarias de além-mar, rato morto em ratoeira, carnes
de veado, algas marinhas, lascas de madeira, ninhadas de gatinhos, peles das ovelhas da montanha
ainda não vendidas e o cheiro pungente do alcatrão.

Gawaine, Agravaine e Gaheris estavam sentados nas peles de ovelhas, comendo maçãs. Estavam
no meio de uma discussão.

— Não é da nossa conta — dizia Gawaine, teimosamente. Agravaine queixou-se:
— Claro que é da nossa conta. É da nossa conta mais do que da conta de qualquer um, e não é
certo.
— Como ousa dizer que nossa mãe não está certa?
— Não está.
— Está, sim.
— Se você não pode dizer mais nada a não ser se contrapor...
— Para sassenachs,
eles são decentes — disse Gawaine. — Sir Grummore me deixou
experimentar seu elmo a noite passada.
— Isso não tem nada a ver. Gawaine disse:
— Não quero falar sobre isso. É vil falar sobre isso.
— Gawaine, o puro!
Quando Gareth entrou, pôde ver a face de Gawaine, sob seu cavalo ruivo, se incendiar frente a
Agravaine. Era óbvio que estava preste a ter outro de seus ataques de raiva — mas Agravaine era
um daqueles desafortunados intelectuais, demasiado orgulhosos para se render à força bruta. Era do
tipo que é derrubado em uma briga porque não consegue se defender, mas continua a discutir caído
no chão, zombando, "Continua, vamos, me dê mais uns sopapos para mostrar como é esperto".

Gawaine olhou-o ferozmente.

— Cala essa boca!
— Não vou calar.
— Eu farei você se calar.
— Se você fizer ou não fizer, dará no mesmo. Gareth disse:
— Silêncio, Agravaine. Gawaine, deixa-o em paz. Agravaine, se você não se calar, ele vai matá-
lo.
— Eu não me importo se ele me matar. O que eu disse é verdadeiro.
— Cala essa boca.

— Não calarei. Eu disse que devemos redigir uma carta para nosso pai sobre esses cavaleiros.
Devemos contar para ele o que nossa mãe tem feito. Devemos...
Gawaine caiu sobre ele antes que terminasse a frase.

— Sua alma é do diabo! — gritava. — Traidor! Ah, então você faria uma coisa dessas!
Agravaine fizera algo sem precedentes nas questões familiares. Ele era o mais fraco dos dois e
temia a dor. Ao cair, erguera seu punhal contra o irmão.

— Cuidado com a arma dele — gritou Gareth.
Os dois se engalfinharam sobre as peles enroladas de ovelhas.
— Gaheris, agarra a mão dele! Gawaine, deixa-o em paz! Agravaine, solta isso! Agravaine, se não
soltar isso, ele vai matar você. Ah, seu estúpido!
O rosto do menino estava azul e de vez em quando se via o punhal. Gawaine, com as mãos em volta
da garganta de Agravaine, batia ferozmente a cabeça dele no chão. Gareth pegou a camisa de
Gawaine pela nuca e a torceu para fazer com que sufocasse. Gaheris, hesitando em volta deles,
procurava o punhal.

— Solta! — arfou Gawaine. — Solta!
Ele fez um barulho abafado como uma tosse rouca, vindo do fundo do peito, como um jovem leão
rosnando.

Agravaine, cujo pomo de Adão tinha sido machucado, relaxou os músculos e ficou deitado,
tossindo, de olhos fechados. Parecia que ia morrer. Puxaram Gawaine de cima dele e o seguraram,
enquanto ele ainda tentava se desvencilhar para chegar até sua vítima e terminar o trabalho.

Era curioso como, ao entrar em uma dessas fúrias negras, Gawaine parecia não dar valor à vida
humana. Mais tarde, chegaria até a matar mulheres, quando entrava nessa fase — embora se
arrependesse amargamente depois.

Quando a imitação da Besta Gemente ficou pronta, os cavaleiros a levaram e esconderam em uma
caverna aos pés das escarpas, acima da marca da água. Depois, tomaram um pouco de uísque para
celebrar e, quando começou a escurecer, saíram à procura do rei.

Encontraram-no em seu quarto, com uma pena de escrever e uma folha de pergaminho. Não havia
nenhum poema no pergaminho — só um desenho que supostamente seria um coração trespassado
por uma flecha, com dois pês desenhados dentro dele, entrelaçados. O rei estava fungando.

— Perdão, Pellinore — disse Sir Grummore — mas vimos uma coisa nos penhascos.
— Uma coisa ruim?
— Bem, não exatamente...
— Esperava que fosse.
Sir Grummore refletiu sobre a situação e puxou o sarraceno para um lado. Decidiram que era
necessário ter tato.


— Ah, Pellinore — disse Sir Grummore, de uma maneira inocente — o que você está desenhando?
— O que você acha que é?
— Parece um tipo de desenho.
— É isso mesmo — disse o Rei. — Eu gostaria que vocês dois se retirassem. Quer dizer, se
pudessem aceitar a sugestão.
— Seria melhor se você fizesse uma linha aqui — prosseguiu Sir Grummore.
— Onde?
— Aqui, onde está a porquinha.
— Meu caro amigo, não sei sobre o que você está falando.
— Lamento, Pellinore, pensei que você estivesse desenhando sua Piggy de olhos fechados.
Sir Palomides achou que era hora de interferir.
— Sir Grummore observou um fenômeno, por Jove! — ele disse com reserva.
— Um fenômeno?
— Uma coisa — explicou Sir Grummore.
— Que tipo de coisa? — perguntou o Rei, desconfiado.
— Uma coisa de que você vai gostar.
— Tinha quatro pernas — acrescentou o sarraceno.
— Era um animal — perguntou o Rei —, vegetal ou mineral?
— Animal.
— Um porco? — perguntou o Rei, que começava a achar que eles queriam dizer alguma coisa.
— Não, não, Pellinore. Não é um porco. Tire imediatamente os porcos de sua cabeça. Essa coisa
faz um barulho como cães de caça.
— Como sessenta cães de caça — explicou Sir Palomides.
— É uma baleia! — gritou o Rei.
— Não, não, Pellinore. Uma baleia não tem pernas.
— Mas faz um barulho parecido.
— Faz?
— Meu caro amigo, como vou saber? Você deve tentar esclarecer melhor a questão.
— Eu sei, mas qual é a questão, o quê? Parece ser um jogo de bichos.
— Não, não, Pellinore. É uma coisa que vimos e que faz um barulhão de latido de cães de caça.
— Ah, sei — ele suspirou. — Eu gostaria que vocês dois ou fossem embora ou ficassem calados.

Essa coisa de baleia e porcos, e agora essa coisa que faz barulho de latidos, na maior parte do
tempo a pessoa acaba sem saber sobre o que estão falando. Vocês não podem deixar um homem em
paz, para desenhar suas coisinhas e se enforcar tranqüilamente, nem que seja por uma vez? Quero
dizer, não é pedir muito, é? O quê, vocês não acham?

— Pellinore — disse Sir Grummore — você tem que se animar. Nós vimos a Besta Gemente.
— Por quê?
— Por quê?
— Sim, por quê?
— Por que você pergunta por quê? Quero dizer — explicou Sir Grummore —, você poderia
perguntar "Onde?" ou "Quando?" Mas por que "Por quê?"
— Por que não?
— Pellinore, você perdeu todo o sentido de decência? Nós vimos a Besta Gemente, é o que estou
lhe dizendo. Vimos a coisa nos rochedos daqui, bem perto.
— Não é uma coisa. É um animal.
— Meu caro, não importa o que ela é. Nós a vimos.
— Então porque não foram pegá-la?
— Não somos nós que devemos pegá-la, Pellinore. É você. Afinal, ela é o trabalho de sua vida,
não é?
— Ela é estúpida — disse o Rei.
— Talvez seja estúpida, talvez não seja — disse Sir Grummore, em tom ofendido. — A questão é
que ela é a sua magnum opus. Só um Pellinore pode pegá-la. Você nos falou isso várias vezes.
— E qual é o sentido de pegá-la? — perguntou o monarca. — O quê? Afinal, provavelmente ela
está feliz nos rochedos. Não vejo porque vocês estão fazendo todo esse alarde. — E continuou,
saindo pela tangente — Parece espantosamente triste que as pessoas não possam se casar, quando
querem se casar. Quero dizer, o que significa esse animal para mim? Não me casei com ele, casei?
Então, por que devo ficar atrás dele o tempo todo? Não parece lógico.
— Você precisa é de uma boa caçada, Pellinore. Sacudir esse fígado.
Eles tiraram a pena de sua mão e lhe deram vários copos cheios até a borda de uísque, sem se
esquecerem de tomar um ou dois tragos eles também.

— Parece a única coisa a fazer — o Rei disse, de repente. — Afinal, só um Pellinore pode pegar a
Besta.
— Assim é que se fala!
— Mas é que eu fico triste às vezes — ele acrescentou, antes que pudessem pará-lo —, pensando
na filha de Rainha de Flandres. Ela não é bonita, Grummore, mas me compreendia. Dávamos-nos
bem juntos, se é que você me entende. Eu talvez não seja muito esperto e posso me meter em

problemas quando estou sozinho, mas quando eu estava com Piggy ela sempre sabia o que fazer.
Era uma boa companhia também. Não é ruim ter um pouco de companhia quando você está levandosua vida, sobretudo quando tem que caçar a Besta Gemente o tempo todo, o quê? É muito solitário,
na Floresta. Não que a Besta Gemente não seja uma companhia, a sua maneira — pelo menos,
enquanto foi. Só que não dá para conversar com ela sobre as coisas, não como com Piggy. E ela
não sabe cozinhar. Não sei por que estou lhes aborrecendo, rapazes, com toda essa conversa, mas
realmente às vezes a pessoa sente-se quase incapaz de continuar. Não é como se Piggy fosse um
capricho, sabem? Eu realmente a amo, Grummore, de verdade, e se pelo menos ela tivesse
respondido as minhas cartas, teria sido tão bom...

— Pobre velho Pellinore — eles disseram.
— Eu vi sete pegas hoje, Palomides. Estavam voando uma atrás da outra. Uma, para a tristeza —
explicou o Rei. — Duas, para alegria, três, para casamento, e quatro, para um filho. Portanto, sete
deve ser para quatro filhos, não deve, o quê?

— Sim, deve ser — disse Sir Grummore
— Eles se chamariam Aglovale, Percivale e Lamorak, e então haveria um com um nome engraçado
que não me recordo. Agora, tudo isso acabou. No entanto, devo confessar, eu teria gostado de ter
um filho chamado Dornar.
— Olhe, Pellinore, você deve aprender a deixar o passado passar. Assim, só vai conseguir se
desgastar. Em vez disso, por que não ser um bravo cavaleiro e ir atrás de sua Besta?
— Suponho que devo.
— Exatamente. Tira de sua mente essas outras coisas.
— Há dezoito anos tenho caçado a Besta — disse o Rei, pensativo. — Seria uma mudança
conseguir pegá-la. Onde estará minha cadela?
— Ah, Pellinore! Agora, sim, você está falando como deve!
— Quem sabe nosso honorável monarca não quer começar de uma vez?
— O quê? Esta noite, Palomides? No escuro?
Sir Palomides cochichou para Sir Grummore, secretamente;
— Golpeie o ferro enquanto ele está em alta temperatura.
— Entendo o que você quer dizer.
— Não acho que importa — disse o Rei. — Nada importa, realmente.
— Muito bem, então — exclamou Sir Grummore, tomando o controle da situação. — Isso é o que
faremos. Deixaremos nosso velho Pellinore em uma das pontas das falésias, hoje à noite mesmo, e
então nós dois esquadrinharemos o lugar metodicamente em direção a ele. A Besta certamente vai
estar por lá, pois foi vista esta tarde.
— Você não achou inteligente — Grummore perguntou, enquanto se vestiam no escuro — a maneira
como expliquei porque estaríamos aqui, quer dizer, para dirigir o animal?

— Uma inspiração — disse Sir Palomides — Minha cabeça está no lugar certo?
— Meu caro amigo, não posso ver nada.
A voz do sarraceno pareceu desconfortável.
— Essa escuridão — ele disse — parece quase palpável.
— Não importa — disse Sir Grummore. — Ela vai esconder qualquer pequena falha de nosso
disfarce. Talvez a lua apareça mais tarde.
— Graças a Deus a espada dele geralmente está cega.
— Ora, vamos, Palomides, você não deve ficar com o pé atrás. Não sei exatamente o por quê, mas
me sinto perfeitamente esplêndido. Talvez tenham sido todos aqueles tragos. Esta noite vou saltitar
e ladrar como nunca, pode deixar comigo.
— Você está se abotoando com os meus botões, Sir Grummore. São os botões errados.
— Perdão, Palomides.
— Não seria suficiente você agitar seu rabo no ar, em vez de saltitar? Há um certo desconforto
para o quarto dianteiro durante os saltos.
— Vou agitar meu rabo e também vou saltitar — disse Sir Grummore, com firmeza.
— Seja como você quiser.
— Tire sua pata do meu rabo por um momento, Palomides.
— Você poderia carregar seu rabo debaixo do braço na primeira parte da jornada.
— Isso não seria natural.
— Não.
— E agora — acrescentou Sir Palomides, amargo — vai chover. Pensando nisso, quase sempre
chove por aqui.
Esticou o braço moreno para fora da boca da serpente e sentiu as gotas caindo. Elas batiam na lona
como uma saraivada de granizos.

— Meu velho quarto dianteiro — disse Sir Grummore alegremente, pois estava cheio de uísque. —
Para começar, foi você quem teve a idéia de fazer esta expedição. Anime-se, velho mouro. Será
muito pior para Pellinore, esperando a nossa chegada. Afinal, ele não tem um esconderijo de lona
com manchas, onde se abrigar.

— Talvez a chuva pare.
— Claro que vai parar. Este é o começo, velho pagão. Agora, então, prontos?
— Sim.
— Dê o passo, então.
— Esquerda! Direita!

— Não esqueça o Galopar.
— Esquerda! Direita! Galopar! Galopar! Perdão, não estou escutando.
— Eu só estava ladrando.
— Galopar! Galopar!
— Agora, o salto!
— Ah, por favor, Sir Grummore!
— Lamento, Palomides.
— Esse seu verdadeiro amigo vai ter mesmo dificuldade para se sentar.
Sob as escarpas debaixo da chuva, o Rei Pellinore estava completamente parado, olhando
vagamente à sua frente. Sua cadela, presa a uma corda comprida, enrolara-se ao seu redor várias
vezes. Ele estava com sua armadura completa, que enferrujava, e a chuva entrava por cinco lugares.
Entrava por ambos os lados do queixo, pelos dois antebraços, mas o pior lugar era pela viseira.
Ela fora construída a partir do princípio da tromba, pois se acreditava que quanto mais feio fosse o
elmo mais amedrontaria o inimigo. O Rei Pellinore parecia um porco inquisitivo. No entanto,
deixava a chuva entrar por suas narinas e a água descia em um fio corrente que fazia cócegas em
seu peito. O rei estava pensando.

Bem, ele pensava, isso os deixará tranqüilos. Não era nada agradável ficar debaixo dessa chuva e
tudo o mais, mas os queridos companheiros pareciam estar muito interessados nisso. Seria difícil
achar alguém mais gentil que o velho Grum, e Palomides parecia um tipo amigável, embora fosse
um pagão. Se eles queriam ter uma farra como essa, a coisa decente era agradá-los. Além disso, era
bom para a cadela sair um pouco. Era uma pena ela nunca conseguir ficar sem se enrolar, mas,
enfim, não se pode interferir com a natureza. Ele teria que passar toda a manhã seguinte esfregando
sua armadura.

Isso seria algo para fazer, refletiu o Rei, tristemente, o que era melhor que ficar vagando por aí o
tempo todo, com sua eterna tristeza roendo-lhe o coração. E começou outra vez a pensar em Piggy.

A melhor coisa sobre a filha da Rainha de Flandres é que ela não ria dele. Muitas pessoas riem de
você quando você sai atrás de uma Besta Gemente — e nunca consegue pegá-la — mas Piggy não
ria. Pareceu entender imediatamente como aquilo era interessante e fez várias sugestões sensatas
sobre a maneira de emboscá-la. Naturalmente, ele não tinha a presunção de se passar por esperto
ou coisa que o valha, mas era legal ter alguém que não risse dele. Ele estava fazendo o melhor
possível.

E então chegou o terrível dia quando aquela maldita barcaça ancorou na praia. Eles tiveram que
entrar nela, porque cavaleiros nunca devem recusar uma aventura, e a barca imediatamente se pôs a
navegar. Ficaram um tempão acenando adeus para Piggy, e a Besta pôs sua cabeça para fora da
floresta e chapinhou na água atrás deles, parecendo muito perturbada. Mas a barcaça continuou
navegando, e as pequenas figuras na praia foram diminuindo até que mal podia ver o lenço que
Piggy continuava agitando, e então a cadela começou a enjoar.


De todos os portos, ele escreveu para ela. Deu as cartas para os estalajadeiros de todos os lugares,
e eles prometeram que as enviariam. Mas ela jamais enviou uma única sílaba em resposta.

Era porque ele não a merecia, pensou o Rei. Era indeciso e nada esperto e sempre se metia em
confusões. Por que a filha da Rainha de Flandres escreveria para uma pessoa assim, especialmente
depois que ele foi embora e entrou em uma barcaça mágica e desapareceu? Era como se a tivesse
abandonado, e claro que ela teria toda a razão de estar chateada. Enquanto isso, a chuva continuava
caindo, e a água ia escorrendo por dentro da armadura, e agora a cadela começara a espirrar. A
armadura ficaria enferrujada, e tinha uma espécie de corrente de ar entrando por sua nuca onde o
elmo se aparafusava. Estava escuro e horrível. Uma coisa pegajosa começou a gotejar das
escarpas.

— Perdão, Sir Grummore, mas é você que está soprando no meu ouvido?
— Não, não, querido companheiro. Continue, continue. Eu estou apenas fazendo o meu barulho da
melhor maneira que posso.
— Não é ao seu barulho que estou me referindo, Sir Grummore, mas a um tipo de respiração de
natureza rouca.
— Meu querido companheiro, não adianta me perguntar. Tudo que posso escutar daqui é um tipo de
estalo, como um bramido.
— Responda a esse seu verdadeiro amigo se você acha mesmo que a chuva vai parar. E se
importaria se também parássemos?
— Bem, Palomides, se você precisa parar, então precisa. Mas se não fizermos isso logo, vou ter
que costurar tudo de novo. Por que você quer parar?
— Preferia que não estivesse tão escuro.
— Mas você não pode parar só porque está escuro.
— Não. Tem gente que aprecia assim.
— Então, meu rapaz, continue. Esquerda! Direita! Essa é a marcha!
— Escute, Grummore — disse Sir Palomides mais tarde. — Aí está de novo.
— O quê?
— O sopro, Sir Grummore.
— Tem certeza de que não sou eu? — perguntou Sir Grummore.
— Positivo. É uma espécie de sopro de ameaça ou amoroso, parecido com a orca. Sinceramente,
esse pagão gostaria que não estivesse tão escuro.
— Bom. Não se pode ter tudo. Em frente, Palomides, seja um bom companheiro, vá.
Depois de um tempo, Sir Grummore disse com voz sepulcral:
— Caro amigo, você pode parar de ficar me dando cabeçadas o tempo todo.

— Mas eu não estou fazendo isso.
— Bom, o que é então?
— Esse seu verdadeiro amigo não tem possibilidade de lhe dar cabeçadas.
— Mas alguma coisa fica batendo em mim por trás.
— Não é seu rabo?
— Não. Ele está enrolado ao meu lado.
— De qualquer maneira, seria impossível bater em você por trás, porque as patas dianteiras estão
na frente.
— Olhe, outra vez!
— O quê?
— A batida! Definitivamente, é uma agressão, Palomides, estamos sendo atacados.
— Não, não, Sir Grummore. Você está imaginando coisas!
— Palomides, precisamos virar!
— Para quê, Sir Grummore?
— Para ver o que está batendo em mim por trás.
— Esse seu verdadeiro amigo não pode ver nada, Sir Grummore. Está escuro demais.
— Ponha sua mão para fora da boca e veja o que pode sentir.
— Posso sentir uma espécie de coisa redonda.
— Sou eu, Sir Palomides. Sou eu, por trás.
— Sinceras desculpas, Sir Grummore.
— Não foi nada, companheiro, não foi nada. O que mais você pode sentir?
A voz gentil do sarraceno começou a fraquejar.
— Uma coisa fria — ele disse — e... escorregadia.
— Ela move, Palomides?
— Sim, move e... funga.
— Funga?
— Funga.
Nesse momento, a lua apareceu.
— Poderes misericordiosos! — gritou Sir Palomides, com voz alta e trêmula, ao olhar para fora de
sua boca. — Corra, Grummore, corra! Esquerda, direita! Rápido, galope! Galope duplo! Mais
rápido, mais rápido! Mantenha o passo. Ai! meus pobres cascos. Ai! meu Deus! Ai! minha cabeça!

Não adiantava, decidiu o Rei. Provavelmente eles se perderam ou ficaram vagando por aí para se
distraírem. O tempo estava tremendamente úmido, como quase sempre em Lothian, e realmente ele
tinha feito o que podia para acatar o plano dos amigos. Agora, eles estavam sabe-se lá por onde —
até podia-se dizer que não tiveram consideração com ele — e o abandonaram para se enferrujar
com essa miserável cadela. Era lamentável.

Com um movimento decidido, dirigiu-se para a cama, puxando a cadela atrás dele.

No meio de uma fenda, em uma das falésias mais escarpadas, com a maioria dos botões
arrebentados, a falsa Besta discutia com seu estômago.

— Mas, meu prezado cavaleiro, como poderia esse seu verdadeiro amigo prever uma calamidade
dessa natureza?
— Deveria ter pensado — respondeu o estômago, furioso. — Você nos fez vestir a fantasia. A
culpa é sua.
Ao pé da falésia, a Besta Gemente, a própria, em uma atitude sentimental, esperava à luz romântica
do luar por sua cara metade. Atrás dela estava a paisagem do oceano de prata. Em diferentes
pontos da paisagem, várias dúzias de Antigos, inclinados e curvados, examinavam atentamente a
situação, escondidos entre as pedras, montes de areia, montes de conchas, iglus e coisas parecidas

— tentando em vão penetrar nos sutis segredos dos ingleses.

X


Em Bedegraine era a noite da véspera da batalha. Vários bispos abençoavam os exércitos de ambos
os lados, escutavam confissões e rezavam a missa. Os homens de Arthur mantinham-se reverentes
com essas coisas — mas os homens do Rei Lot faziam o maior tumulto — pois este era o costume
em todos os exércitos que iam ser derrotados. Os bispos asseguravam aos dois lados que tinham
certeza da vitória, porque Deus estava com eles, mas os homens do Rei Arthur sabiam que eram
excedidos em número, de três para um, então achavam melhor ficarem mais contritos. Os homens
do Rei Lot, que também sabiam dos números, passaram a noite dançando, bebendo, jogando e
contando histórias picantes. De qualquer maneira, é isso o que dizem as crônicas.

Na tenda do rei da Inglaterra, a última conversa do grupo tinha acabado, e Merlin ficara para trás
para ter uma conversinha. Parecia preocupado.

— Por que você está preocupado, Merlin? Depois de tudo, vamos perder essa batalha?
— Não. Você vencerá essa batalha, isso é certo. Não há problema em lhe contar isso. Você dará o
melhor de si, e lutará com todas as suas forças, e chamará você-sabe-quem no momento certo. Está
na sua natureza vencer a batalha, portanto não tem problema lhe contar isso. Não. E outra coisa que
eu deveria ter lhe contado que agora me preocupa.
— O que é?
— Céus benditos! Por que ficaria preocupado se pudesse me lembrar do que é?
— É sobre a donzela chamada Nimue?
— Não. Não. Não. Não. É um assunto completamente diferente. Era sobre algo... era sobre algo
que não consigo me lembrar.
Depois de um momento, Merlin tirou a barba da boca e começou a contar nos dedos.

— Eu já lhe contei sobre Guenevere, não contei?
— Não acredito nisso.
— Não importa. E já lhe avisei sobre ela e Lancelot.
— Esse aviso — disse o Rei — de qualquer maneira seria vil, quer seja verdadeiro ou falso.
— Então já lhe contei o pedaço sobre Excalibur e sobre como você deve ter cuidado com a bainha.

— Já.
— Já lhe contei sobre seu pai, portanto não pode ser sobre ele, e já lhe dei uma indicação sobre o
tipo de pessoa que ele foi. O que está me confundindo — exclamou o mago, puxando seu cabelo em
tufos — é que não me recordo se é coisa do passado ou do futuro.
— Não se preocupe com isso — disse Arthur — Não gosto mesmo de saber o futuro. Eu preferiria
que você não se preocupasse com isso, porque assim acaba também me deixando preocupado.
— Mas é algo que devo dizer. Algo vital.
— Pare de pensar nisso — sugeriu o Rei — e aí, de repente, vai se lembrar. Você deveria tirar
umas férias. Tem ocupado demais sua mente esses últimos tempos, com todos esses avisos e
preparativos para a batalha.
— Eu tirarei
umas férias — exclamou Merlin. — Assim que essa batalha acabar, irei em uma
caminhada para Humberland do Norte. Tenho um Mestre chamado Bleise que mora lá e talvez
possa me dizer o que estou tentando lembrar. Depois, poderemos observar as aves selvagens. Ele é
um grande observador de aves selvagens.
— Ótimo — disse Arthur. — Tire umas longas férias. Depois, quando voltar, poderemos pensar em
alguma coisa para evitar Nimue.
O velho parou de mexer com os dedos e olhou firme para o rei.

— Você é um cara inocente, Arthur — ele disse. — E também bom, realmente.
— Por quê?
— Você lembra alguma coisa das mágicas que fiz com você quando menino?
— Não. Você fez mágicas comigo? Lembro-me de que me interessava por pássaros e animais. Na
verdade, é por isso que ainda mantenho minha casa dos bichos na Torre. Mas eu passei por
mágicas?
— As pessoas se esquecem — disse Merlin. — E suponho que você também não se lembra das
parábolas que costumava lhe contar quando tentava lhe explicar certas coisas.
— Claro que me lembro. Havia uma sobre um rabino que você me contou quando eu quis levar Kay
para algum lugar. Jamais consegui entender porque a vaca morreu.
— Bom, quero lhe contar outra parábola agora.
— Eu adoraria.
— No Oriente, talvez no mesmo lugar de onde aquele Rabino Jachanan veio, havia um certo homem
que andava no mercado de Damasco quando encontrou a Morte. Notou uma expressão de surpresa
no horrendo semblante do espectro, mas eles passaram um pelo outro sem dizer nada. O homem
ficou amedrontado e foi a um sábio para perguntar o que deveria fazer. O sábio falou que
provavelmente a Morte viera a Damasco para levá-lo na manhã seguinte. O pobre homem ficou
aterrorizado com isso e perguntou como poderia escapar. A única solução que ocorreu aos dois foi
que a vítima deveria viajar a noite toda até Alepo, evitando assim a caveira e seus ossos

sangrentos.

"Então, esse homem seguiu até Alepo — era uma viagem horrível que nunca fora feita antes em uma
única noite — e quando lá chegou foi passear pelo mercado, congratulando-se por ter escapado da
Morte.

"Justo então, a Morte apareceu e bateu em seu ombro. 'Desculpe-me', ela disse, 'mas vim aqui
buscar você'. 'Oh, não!', disse o homem aterrorizado, 'vi você ontem em Damasco'. 'Exatamente',
disse a Morte. 'Foi por isso que fiquei surpresa, pois me tinham dito para encontrar com você hoje,
aqui em Alepo'".

Arthur ponderou sobre essa horrível charada durante alguns momentos, depois disse:

— Então, não adianta tentar escapar de Nimue?
— Mesmo que eu quisesse — disse Merlin — não adiantaria. Há uma coisa sobre o Tempo e o
Espaço que o filósofo Einstein vai descobrir. Algumas pessoas chamam a isso de Destino.
— Mas o que não consigo aceitar é esse negócio do sapo-me-tido-no-buraco.
— Ah, bom — disse Merlin. — As pessoas fazem muita coisa por amor. E depois o sapo não é
necessariamente infeliz em seu buraco, não mais do que você quando está dormindo, por exemplo.
Terei muito tempo para refletir, até que me tirem de lá de novo.
— Então, vão tirar você?
— Vou lhe dizer uma outra coisa, rei, que talvez lhe seja uma surpresa. Isso só acontecerá daqui a
centenas de anos, mas nós dois vamos voltar. Você sabe o que será escrito no seu túmulo? Hic
jacet Arthurus Rex quondam Rexque futurus. Você se recorda do seu latim? Isso significa "rei do
passado e do futuro".
— Eu vou voltar assim como você?
— Alguns dizem que será do vale de Avalon.
O rei pensou sobre isso em silêncio. Havia uma lua cheia no céu e quietude no pavilhão iluminado.
Não se escutavam as sentinelas andando na relva.

— Pergunto-me — ele disse por fim — se eles se lembrarão da nossa Távola.
Merlin não respondeu. Sua cabeça estava apoiada na barba branca e suas mãos entrelaçadas nos
joelhos.

— Que tipo de pessoas serão eles, Merlin? — exclamou o jovem, infeliz.

XI


A Rainha de Lothian recolhera-se a seus aposentos, cortando a comunicação com os hóspedes, e
Pellinore teve seu desjejum sozinho. Depois saiu para caminhar na praia, admirando as gaivotas
que voavam acima dele como penas brancas de escrever cujas cabeças tivessem sido
elegantemente mergulhadas na tinta. Os velhos corvos marinhos estavam parados em pose de
crucifixos nas pedras, secando as asas. Estava triste como de costume, e também, desconfortável,
porque sentia falta de alguma coisa. Mas não sabia o que era. Se pudesse se lembrar, saberia que
era de Palomides e Grummore.

Poucos momentos depois, foi atraído por gritos, e foi investigar.

— Aqui, Pellinore! Oi! Estamos aqui!
— Por quê, Grummore? — ele perguntou com interesse. — O que vocês estão fazendo aí em cima?
— Veja a Besta, cara, veja a Besta!
— Oh, bravo, vocês encontraram a velha Glatisant.
— Meu caro amigo, pelos céus faça alguma coisa. Nós passamos a noite toda aqui.
— Mas por que estão vestidos assim, Grummore? Você está todo cheio de pintas ou algo parecido.
E o que Palomides tem na cabeça?
— Não fique aí perguntando, homem de Deus!
— Mas você está com um tipo de rabo, Grummore. Eu posso ver um rabo pendurado no seu
traseiro.
— Claro que estou com um rabo. Será que você não pode parar de falar e fazer alguma coisa?
Passamos toda a noite nessa maldita fenda e estamos mortos de fadiga. Vamos, Pellinore, mate a
sua Besta de uma vez.
— Ora, vamos! Por que eu deveria querer matá-la?
— Céus benditos, você não está tentando matá-la há dezoito anos? Agora, vamos logo com isso,
Pellinore, seja um bom companheiro e faça alguma coisa. Se você não fizer algo rápido, nós dois
vamos acabar caindo.
— O que não consigo entender — disse o Rei, queixoso — é por que estão nessa fenda. E por que
estão com essa roupa? Parecem estar disfarçados como um tipo de Besta, vocês dois. E, de

qualquer maneira, de onde a Besta surgiu, o quê? Quero dizer, é tudo tão repentino.

— Pellinore, de uma vez por todas, mate a Besta.
— Por quê?
— Porque foi ela que nos perseguiu até esse penhasco.
— Não é comum ela fazer isso — observou o Rei. — Geralmente ela não se interessa por pessoas.
— Palomides acha que ela se apaixonou por nós — disse Sir Grummore com voz rouca.
— Se apaixonou?
— Bom, veja, estamos fantasiados como uma Besta.
— O igual ama seu igual — explicou Sir Palomides, debilmente. Lentamente, o Rei Pellinore
começou a rir, pela primeira vez desde que chegou a Lothian.
— Essa agora! — ele disse — Benza-me Deus! Vocês já ouviram coisa igual? Por que Palomides
acha que ela se apaixonou por ele?
— A Besta — disse Sir Grummore, com dignidade — ficou toda a noite rodeando o penhasco. Ás
vezes, fica se esfregando e ronronando. E às vezes curva seu pescoço ao redor das pedras e nos
olha com certo tipo de olhar.
— Que tipo de olhar, Grummore?
— Meu caro amigo, olha para ela agora.
A Besta Gemente, que não tinha prestado a mínima atenção à chegada de seu mestre, estava olhando
Sir Palomides com a alma em seus olhos. Seu queixo estava pressionado nos pés do penhasco em
arrebatada paixão, e ocasionalmente abanava o rabo. Movia-o lateralmente pela superfície dos
seixos, onde numerosos tufos e folhagens heráldicas faziam um ruído farfalhante, e às vezes
arranhava o penhasco com um pequeno suspiro. Então, sentindo que tinha ido longe demais,
dobrava o gracioso pescoço de serpente e escondia a cabeça por baixo da barriga, espreitando
para cima com o canto de um olho.

— Bom, Grummore, o que você quer que eu faça?
— Queremos sair daqui — disse Sir Grummore.
— Isso eu posso ver — disse o Rei. — Parece uma idéia sensata. Veja bem, eu não entendo
exatamente como a coisa toda começou, o quê, mas isso eu posso entender, com certeza.
— Então, mate-a, Pellinore. Mate a miserável criatura.
— Ah, realmente — disse o Rei. — Quanto a isso, não tenho certeza. Afinal, que mal ela fez? Todo
o mundo entende os amantes. Não vejo porque a pobre Besta deva ser morta só porque está
apaixonada. Quero dizer, eu também estou apaixonado, não estou, o quê? Isso me dá um certo
sentimento de solidariedade.
— Rei Pellinore — disse Sir Palomides, determinado —, a menos que algumas medidas sejam
tomadas bem rapidamente, seus amigos serão instantaneamente martirizados, R. I. P, Requiescat in

Pace.


— Mas, meu caro Palomides, não posso de nenhuma maneira matar a velha Besta, você não
entende? Minha espada é cega.
— Então, bata com a espada na cabeça dela, Pellinore. Dê-lhe um bom golpe na cabeça e talvez ela
tenha uma concussão.
— Isso está muito bem para você, Grummore, velho amigo. Mas suponha que não a atordoe. Ela
pode perder o humor, Grummore, e então o que faço eu? Pessoalmente, não posso entender, de jeito
nenhum, porque vocês querem atacar a criatura. Afinal, ela está apaixonada por vocês, não está, o
quê?
— Seja qual for a razão para o comportamento do animal, a questão é que estamos aqui nesta
situação.
— Então, tudo o que precisam fazer é sair daí.
— Meu caro, vamos descer para sermos atacados?
— Será apenas uma espécie amorosa de ataque — o Rei observou, confiante. — Tipo fazer certos
avanços. Não acredito que ela faça nenhum mal a vocês. Tudo que vocês teriam que fazer seria
caminhar na frente dela até chegar ao castelo, o quê? Na verdade, vocês poderiam talvez encorajá-
la um pouco. Afinal, todo mundo gosta de ter seu afeto retribuído.
— Você está sugerindo — perguntou Sir Grummore, friamente — que devemos flertar com esse seu
réptil?
— Com certeza ficaria mais fácil. Quero dizer, a caminhada até o castelo.
— E como vamos fazer isso, por favor?
— Bom, Palomides poderia enroscar seu pescoço no dela um pouquinho, sabe?, e você poderia
agitar seu rabo. Lamber o nariz dela seria impossível, imagino?
— Esse seu verdadeiro amigo — disse finalmente Sir Palomides, frágil e com aversão — não pode
nem enroscar seu pescoço nem lamber. E neste momento ele está prestes a cair. Adieu.
Com isso, o infeliz pagão soltou as duas mãos da fenda e pareceu que ia mergulhar nas garras do
monstro — mas Sir Grummore o pegou a tempo, e os botões restantes o seguraram em posição.

— Pronto! — disse Sir Grummore. — Veja o que você fez.
— Mas, meu caro amigo...
— Eu não sou seu caro amigo. Você está simplesmente nos abandonando para sermos destruídos.
— Oh, não!
— Sim, está. Impiedosamente! O rei coçou a cabeça.
— Será — ele disse em dúvida — que eu poderia agarrá-la pelo rabo enquanto vocês fogem?
— Então, faça isso. Se você não fizer algo imediatamente, Palomides vai cair, e viraremos

picadinho.

— Pra começar, eu ainda não consigo entender porque vocês se vestiram assim. É um grande
mistério para mim — disse o Rei tristemente. — Entretanto — acrescentou, pegando a Besta pelo
rabo —, vamos, minha velha, venha! Eia, eia! Temos que fazer o melhor que pudermos nessas
circunstâncias. Agora, então, vocês dois, corram por suas vidas. Depressa, Grummore. Não acho
que a Besta esteja contente, pelo que estou sentindo. Ah, sua coisa abominável, obedeça! Corra,
Grummore! Besta desagradável! Pá! Sua chata! Chata! Deixa-os! Rápido, gente, rápido! Fujam!
Não toque! Corram! Ela vai se safar em um minuto! Senta, ouviu? Senta! Ui! Besta horrível!
Malcriada! Mais rápido, Grummore. Senta, senta! Quieta, Besta! Como ousa? Cuidado, homens, ela
está indo! Oh, será possível, será possível? Pronto! Agora ela me mordeu!
Por um triz alcançaram a ponte levadiça, que foi içada atrás deles na hora agá.

— Ufa! — disse Sir Grummore, desabotoando seu disfarce e enxugando a testa.
— Buuuu! — gritaram várias mulheres da aldeia que estavam no castelo entregando ovos. Algumas
pessoas do círculo do castelo sabiam falar uma certa forma de inglês, inclusive São Toirdealbhach
e Mãe Morlan.
— Eia! Que se findou, descartou, acabou a lúgubre fera — disse o homem da ponte levadiça. —
Ai, que pânico no coração deles!

— Perigando nós também — disseram os passantes.
— Sir Palomides, coitado — disseram vários dos Antigos que souberam do apuro que eles
passaram à noite na fenda do penhasco, sem nada falar sobre isso, como era o costume, por medo
de serem culpados de alguma coisa —, vai se despencar de frente e ter um troço.
Viraram-se para examinar o pagão e viram que era como haviam dito. Sir Palomides desmaiara
numa pilha de pedras, sem sequer tirar fora sua cabeça e estava respirando com dificuldades. Eles
a tiraram e jogaram um balde de água em seu rosto. Depois o abanaram com seus aventais.

— Ah, coitado do pobre — disseram com simpatia — O sarraceno! O selvagem de cor escura! Não
volta mais? Dá outro tapinha aqui. Ah, mais salpico d'agüinha.
Sir Palomides reviveu aos poucos, soltando bolhas pelas narinas.

— Onde está esse seu verdadeiro amigo? — perguntou a Grummore.
— Estamos no castelo, meu velho. Conseguimos nos salvar. A Besta ficou lá fora.
Confirmando a declaração de Sir Grummore, veio um rosnado triste através da grade do portão,
como se trinta parelhas de cães de caça estivessem latindo para a lua. Sir Palomides tremeu.

— Devemos olhar lá fora para ver se o Rei Pellinore está vindo.
— Sim, Sir Grummore. Só um segundo para respirar.
— A Besta pode ter feito algum mal a ele.
— Pobre companheiro.

— Como você se sente?
— A indisposição está passando — disse Sir Palomides, com firmeza.
— Não há tempo a perder. Ela pode estar comendo-o nesse momento.
— Em frente, então — disse o pagão, ficando de pé. — Direto para as ameias.
Assim, o grupo todo subiu as escadas estreitas da torre quadrangular.

Abaixo deles, parecendo pequena e de cabeça para baixo desde aquela altura, a Besta Gemente
podia ser vista sentada na ravina que bordeava o castelo daquele lado. Sentava-se em uma pedra
arredondada, com o rabo inflamado, e olhava para cima da ponte levadiça com a cabeça inclinada
para um lado. Sua língua estava pendurada. Não se via Pellinore.

— Comendo-o, ela não está, com certeza — disse Sir Grummore.
— A menos que já o tenha comido.
— Não acho que ela teve tempo de fazer isso, meu velho, de jeito nenhum.
— E teria deixado alguns ossos ou coisa assim. Pelo menos, a armadura.
— Exato.
— O que acha que devemos fazer?
— É desconcertante.
— Acha que devemos fazer uma busca?
— Podemos esperar para ver o que acontece, Palomides, você não acha?
— Não saltar sem olhar antes para onde se está saltando — assentiu Palomides.
Depois de meia hora só olhando, a facção dos Antigos ficou entediada com a falta de diversão.
Desceram correndo as escadas para jogar pedras na Besta Gemente, a partir da muralha. Os dois
cavaleiros ficaram na vigia.

— É uma situação intrigante, esta.
— Realmente é.
— Quero dizer, é preciso conseguir uma solução.
— Exato.
— De um lado a Rainha das Órcades chateada com alguma coisa... não pude deixar de observar
que ela ficou um tanto estranha depois daquele unicórnio... e Pellinore todo desanimado, do outro
lado. E você supostamente apaixonado por La Beale Isoud, não está? E agora esta Besta atrás de
nós dois.
— Uma situação confusa.
— O amor — disse Sir Grummore, desconfortável — é uma paixão realmente muito forte, quando
se pensa sobre isso.

Nesse momento, como se para confirmar a opinião de Sir Grummore, um par de figuras enlaçadas
apareceu caminhando lentamente ao longo do rochedo.

— Grandíssima glória! — exclamou Sir Grummore — Quem são aqueles?
Quando se aproximaram, a identidade deles ficou clara. Um era o Rei Pellinore, e vinha com o
braço envolvendo a cintura de uma senhora forte, de meia-idade, vestida com uma saia de montar.
Tinha um rosto vermelho, meio grosseiro, e carregava um chicotinho de caça na mão livre. Seu
cabelo estava amarrado em um coque.

— Deve ser a filha da Rainha de Flandres!
— Olhem aqui, vocês dois! — gritou o Rei Pellinore, assim que os viu de longe. — Olhem! Vejam!
O que vocês acham, podem adivinhar? Quem haveria de imaginar, o quê? Quem vocês acham que
eu encontrei?
— Ahá! — gritou a gordinha, com voz sorridente, maliciosamente dando-lhe pancadinhas no rosto
com o chicotinho de caça. — Mas quem encontrou quem, hein?
— Sim, sim, eu sei! Não fui eu quem a encontrei, na verdade; foi ela quem me encontrou. O que
vocês acham disso? E vocês sabem o quê? — continuou o Rei, deliciado. — Nenhuma de minhas
cartas poderia ser respondida! Nunca pus nosso endereço no envelope! Não tínhamos nenhum!
Sempre desconfiei que havia alguma coisa errada. Então Piggy montou em seu cavalo, sabem?, e
veio em minha busca por pântanos e florestas! A Besta Gemente a ajudou muito — tem um
excelente olfato — e aquela nossa barcaça mágica deve ter uma ou duas idéias na cabeça, pois
voltou para buscá-los quando viu que eu estava transtornado. Como ela foi gentil! Eles a
encontraram em uma enseada, e aqui estão!
— Mas por que estamos de pé aqui? — gritou o Rei. Ele estava tão excitado que ninguém maistinha tempo de falar nada. — Isto é, quero dizer, por que estamos gritando tanto? É educado, vocês
acham? Vocês dois poderiam descer e nos deixar entrar? O que está errado com essa ponte
levadiça, afinal?
— É a Besta, Pellinore, a Besta! Ela está na ravina.
— O que há de errado com a Besta?
— Ela está sitiando o castelo.
— Ah, sim, agora me lembro — disse o Rei. — Ela me mordeu. E o que vocês acham? — ele
continuou, levantando a mão no ar para mostrar que estava enfaixada. — Piggy a enfaixou para mim
na hora. Ela a amarrou com um pedaço das... bem, vocês sabem.
— Das anáguas — sorriu a filha da Rainha de Flandres.
— Sim, sim, das anáguas dela! O rei se sacudiu com risadinhas.
— Tudo isso está muito bem, Pellinore, tudo isso está muito bem. Mas o que você vai fazer em
relação à Besta?
Sua Majestade estava inebriada de alegria.


— Oh, a Besta! — ele gritou. — É este o problema? Logo dou um jeito nela!
— Agora, então! — ele exclamou, marchando para a beira da ravina e agitando sua espada. —
Vamos, vamos! Vá embora! Xô! Xô!

A Besta Gemente olhou para ele de maneira distraída. Abanou o rabo em um gesto vago de
reconhecimento, depois voltou sua atenção para o portão. As pedras ocasionais que os Antigos
estavam jogado nela, a Besta as pegava e engolia com destreza, daquele jeito exasperante que as
galinhas têm quando se tenta enxotá-las.

— Baixem a ponte! — ordenou o Rei — Eu cuidarei dela! Xô, vamos, xô!
A ponte foi baixada com hesitação. A Besta imediatamente se aproximou, esperançosa.
— Agora, vamos — gritou o Rei. — Você corre para dentro, enquanto eu defendo a retaguarda.
A ponte chegou ao chão e, antes que o tocasse, Piggy já estava correndo por ela. O Rei Pellinore,
menos ágil ou mais distraído por sua doce paixão, colidiu com Piggy no portão. A Besta Gemente
correu atrás deles e derrubou o rei.

— Cuidado! Cuidado! — gritaram todos os guardas, esposas de pescadores, falcoeiros, ferreiros,
flecheiros e todos os demais observadores que desejavam um final feliz e haviam se juntado lá
dentro.
A filha da Rainha de Flandres virou-se como uma tigresa para defender seu filhote.

— Para fora, sua barulhenta sem-vergonha — ela gritou, batendo com seu chicotinho de caça no
nariz da criatura. A Besta Gemente recuou com lágrimas escorrendo dos olhos, e a grade do portão
bateu com estrondo entre eles.
À noite, uma nova crise começou a se desenvolver. Ficou claro que a Glatisant pretendia sitiar o
castelo até que sua companheira aparecesse e, nessas circunstâncias, os Antigos que trouxeram os
ovos para o mercado recusavam-se a sair pelo portão sem uma escolta. No final, os três cavaleiros
do sul tiveram que acompanhá-los até os pés do rochedo, com as espadas em riste.

Na rua da aldeia, São Toirdealbhach esperava para receber o comboio, um Silenus desordeiro,
amparado por quatro meninos. Seu hálito cheirava forte a uísque e ele estava com o ânimo
dilacerado, sacudindo sua clava.

— Nem uma história a mais — gritava. — Não sou eu, afinal, quem vai se casar com a velha Mãe
Morlan, depois de lutar contra Duncan agora mesmo, e nunca nunca mais ser um santo?
— Parabéns! — diziam os meninos pela centésima vez.
— Nós também estamos felizes — acrescentou Gareth. — Podemos servir o jantar todas as noites!
— Glória a Deus! É assim todo dia, pelos céus?
— Sim, e nossa mãe nos leva para passear.
— Bom, então. Louve os jovens e eles virão!
O santo avistou o comboio e começou a berrar como um iroquês.

— Venham, rebeldes!
— Calma, agora — os meninos lhe disseram. — Calma, Sua Santidade. As espadas não são para
serem enfrentadas, de jeito nenhum!
— Por que não seriam? — ele inquiriu, com indignação, e seguiu para beijar o Rei Pellinore e
exalar seu forte hálito sobre ele.
O Rei disse:

— Quero perguntar, você vai realmente se casar? Eu também. Você está nervoso?
Como resposta, o santo homem entrelaçou os braços na nuca do rei e o levou até a taberna de Mãe
Morlan — não inteiramente para satisfação de Pellinore, pois ele queria correr de volta para Piggy

— mas era óbvio que uma despedida de solteiro teria que ser celebrada. Todo o miasma gaélico
dissipara-se como bruma que era — fosse sob a influência do amor ou do uísque ou por sua própria
natureza de bruma — e os três sulistas por fim, independentemente do trauma racial, se viram
aceitos como indivíduos e convidados no caloroso coração do Norte.

XII


A batalha de Bedegraine aconteceu perto de Sorhaute, na floresta de Sherwood, durante o feriado
de Pentecostes. Foi uma batalha decisiva, porque de várias maneiras foi, no século XII, algo
equivalente ao que mais tarde seria chamado de uma Guerra Total.

Os onze reis estavam prontos para enfrentar seu soberano, à maneira normanda — ao estilo de caça
à raposa de Henrique II e seus filhos — por esporte e ganhos e sem intenção verdadeira de ferir
pessoalmente um ao outro. Eles — os reis com os cavaleiros da sua nobreza semelhantes a tanques

— estavam preparados para um esporte arriscado. Era o tipo de risco do qual Jorrocks gostava de
falar. O Rei Lot poderia realmente ter dito, com razão, que a rebelião que comandava contra Arthur
era a cópia de uma caça à raposa sem a culpa, e com apenas vinte e cinco por cento do perigo.
Mas os onze reis precisavam de um ambiente para suas façanhas. Mesmo se os cavaleiros não
quisessem realmente matar-se uns aos outros em grande escala, não havia razão para não matar os
servos. Segundo a avaliação deles, seria mesmo um péssimo dia de esporte se, no final, não
pudessem contar com uma sacola cheia de caça.

Portanto, a guerra, como os senhores rebelados pensavam lutá-la, seria um tipo de batalha dupla, ou
uma guerra dentro de outra guerra. No círculo exterior, havia sessenta mil infantes e soldados
marchando com os Onze, e essas tropas recrutadas, mal armadas, estavam açuladas, por causa da
tragédia do povo gaélico, contra os vinte mil soldados de infantaria do exército sassenach
de
Arthur. Entre os exércitos havia uma séria animosidade racial. Mas era uma animosidade insuflada
de cima — pelos nobres que não estavam sinceramente ansiosos pelo sangue do outro. Tal como
eram, esses exércitos podiam ser comparados a matilhas de cães de caça, cujo enfrentamento um
com o outro era comandado por um Mestre de Cães, que considerava a questão como um jogo
excitante. Se os cães se tornassem incontroláveis, por exemplo, Lot e seus aliados estariam prontos
para passar para o lado dos cavaleiros de Arthur, para sufocar o que, então, considerariam uma
verdadeira rebelião.

Os nobres do círculo interno, de ambos os lados, de certa maneira eram, por tradição, muito mais
amistosos uns com os outros do que com seus próprios homens. Para eles, as multidões de soldados
eram necessárias para a sacola da caça e para propósitos cênicos. Para eles, uma boa guerra tinha
que ter muitos "braços, ombros e cabeças voando pelo campo de batalha e pancadas ressoando à
beira das águas e floresta". Mas os braços, ombros e cabeças seriam dos peões, e os golpes que
ressoariam, sem quebrar muitas costelas, seriam trocados pela nobreza de ferro. Essa era, de


qualquer maneira, a idéia da batalha no comando de Lot. Quando suficientes peões tivessem sido
decapitados e suficientes golpes duros tivessem sido aplicados aos capitães ingleses, Arthur
reconheceria a impossibilidade de continuar resistindo. Ele capitularia. Os termos financeiros da
paz seriam negociados — o que renderia um excelente lucro em resgates — e tudo ficaria mais ou
menos como antes — exceto que a ficção do soberano feudal seria abolida, o que, em todo caso, já
era mesmo uma ficção.

Naturalmente, uma guerra desse tipo seria provavelmente cercada de cerimonial, assim como a
caça à raposa também o é. Começaria com o encontro previamente anunciado, se o tempo
permitisse, e seria conduzida de acordo com os precedentes.

O Rei Arthur tinha uma idéia diferente na cabeça. Para ele, afinal, já não parecia um esporte que
oitenta mil homens humildes fossem jogados uns contra os outros enquanto uma fração desse
número, em carapaças como a couraça dos tanques, manobrava por conta dos resgates. Ele
começara a dar um valor às cabeças, ombros e braços — o valor que lhes dava seu proprietário,
mesmo se o proprietário fosse um servo. Merlin havia lhe ensinado a rejeitar a lógica pela qual os
campos poderiam ser saqueados, os agricultores arruinados, os soldados massacrados, para que ele
próprio não tivesse prejuízos para pagar o resgate, como o Coração de Leão das lendas.

O rei da Inglaterra ordenara que não haveria nenhuma pilhagem em seu tipo de guerra. Seus
cavaleiros deveriam lutar, não contra os peões, mas contra os cavaleiros da Confederação Gaélica.
Que os soldados lutassem entre si, se fosse o caso — já que, fora da questão dos saques, havia de
fato uma verdadeira agressão para eles acertarem, que combatessem entre si o melhor que
pudessem. Mas, quanto aos nobres, deveriam atacar os nobres dos rebeldes como se eles fossem
peões e nada mais. Não deveriam aceitar nenhuma composição, não observar nenhum regra de
dançarinos. Deviam levar a guerra contra seus verdadeiros mandantes — até que eles próprios
estivessem prontos para recuar da guerra, ao serem confrontados com sua face verdadeira.

Depois disso, ele sabia com certeza agora, o destino de sua vida seria lidar com todas as formas
distorcidas de dignidade através da ameaça da sua Força.

Portanto, podemos bem acreditar que os homens do rei estavam realmente recolhidos na noite da
véspera da batalha. Alguma coisa da visão do jovem penetrara em seus capitães e seus soldados.
Alguma coisa do novo ideal da Távola Redonda que nasceria na dor, alguma coisa sobre fazer uma
ação perigosa e odiosa a favor da decência — pois sabiam que a batalha seria travada com sangue
e morte sem recompensas. Não ganhariam nada a não ser a consciência inegociável de terem feito o
que deveriam fazer, apesar do medo — algo que as pessoas perversas degradaram muitas vezes ao
chamar de glória, com excesso de sentimento, mas que era, ainda assim, glória. Essa idéia estava
nos corações dos jovens que se ajoelhavam frente aos bispos representantes de Deus — sabendo
que os números eram três contra um e que seus próprios corpos quentes poderiam estar frios ao
pôr-do-sol.

Arthur começou com uma atrocidade e continuou com outra atrocidade. A primeira foi que não
esperou pela hora que seria de bom-tom. Ele deveria ter enfileirado suas tropas em oposição às de
Lot, assim que tivesse acabado o desjejum, e então, aí pelo meio-dia, quando as filas estivessem
adequadamente em ordem, deveria dar o sinal para começar. Depois de dar o sinal, deveria atacar


com seus cavaleiros os homens da cavalaria de Lot, enquanto os cavaleiros de Lot atacavam os
seus homens da infantaria, e então haveria uma magnífica matança.

Em vez disso, ele atacou de noite. Na escuridão, com um grito de guerra — uma tática deplorável e
nada cavalheiresca — caiu sobre o campo insurgente, com o sangue golpeando-lhe as veias da nuca
e Excalibur dançando em suas mãos. Ele aceitara o três para um. Em cavaleiros, estava em absoluta
inferioridade. Um único Rei dos rebeldes — o rei dos cem cavaleiros — tinha em suas tropas dois
terços do total do número que a Távola Redonda jamais teria. E Arthur não começara a guerra.
Combatia em seu próprio território, a centenas de quilômetros dentro de suas próprias fronteiras,
contra uma agressão que ele não provocara.

As tendas caíram, as tochas se acenderam,


...as espadas se desembainharam e o grito da batalha misturou-se com o lamento da surpresa.
O barulho, a matança e os demônios da morte surgindo das chamas — que cenas já aconteceram


em Sherwood, onde hoje os carvalhos se juntam para formar sua longa sombra!

Foi um começo de mestre, e foi recompensado com o sucesso, os onze reis e seu baronato já
estavam em armaduras — levava tanto tempo para vestir um nobre que, com freqüência, isso era
feito durante a noite. Se não fosse assim, teria sido uma vitória quase sem sangue. Em vez disso, foi
uma iniciativa e a iniciativa se manteve. A cavalaria dos Antigos lutou, corpo a corpo, para abrir
caminho entre o acampamento em ruínas. Conseguiram se unir em um regimento de armaduras —
que ainda era várias vezes maior do que tudo que o rei poderia reunir em armadura contra eles —
mas estavam desprovidos de sua costumeira proteção de peões a pé. Não houve tempo para
organizar os soldados, e os que continuaram junto aos nobres estavam desmoralizados ou sem
lideranças. Arthur destacou seus próprios peões, sob o comando de Merlin, para lutar a batalha de
infantaria que se centrou ao redor do campo, e ele mesmo se arremeteu com sua cavalaria contra os
próprios reis. Ele os pôs para correr e percebeu que deveria mantê-los em fuga. Estavam
furiosamente surpresos pelo que consideravam um ultraje pessoal indigno de cavaleiros — era
ultrajante ser atacado com a firme intenção de homicídio, como se um barão pudesse ser
assassinado como um peão saxão.

A segunda atrocidade do rei foi negligenciar os próprios peões. Essa parte da batalha, a luta racial
que tinha uma certa realidade embora fosse cruel, ele deixou para as próprias raças — para a
infantaria e o comando de Merlin, no campo de luta do qual os cavaleiros já estavam tentando
escapar. Entre as tendas, havia três gaélicos para cada saxão, mas foram surpreendidos e ficaram
em desvantagem. Arthur não lhes desejava nenhum mal em particular — concentrando sua
indignação contra os líderes que haviam seduzido suas cabeças confusas — mas sabia que eles
deveriam ter sua luta. Esperava que fosse vitoriosa no que se refere às suas tropas. Enquanto isso,
sua questão era com os chefes — e, quando o dia amanheceu, a atrocidade de sua conduta tornou-se
evidente.

Pois os onze reis tinham reunido um simulacro de defesa de infantaria, atrás das quais esperavam
os ataques. Ele deveria ter atacado essa defesa de homens aterrorizados, desferindo-lhes uma
destruição completa. Em vez disso, deixou-os de lado. Galopou através da infantaria como se não
fossem seu inimigo de jeito nenhum — sem mesmo se preocupar em golpeá-los — concentrando
seu ataque no próprio centro armado. A infantaria, por sua vez, aceitou a clemência muito
agradecida. Comportaram-se como se não fosse uma honra ter a permissão de morrer por Lothian.
A disciplina, como os generais rebeldes disseram depois, não foi a própria da raça.

Os ataques começaram com o nascer do dia.

Em um festival militar, talvez, ou em alguma reconstituição histórica ao ar-livre, você pode tervisto um ataque de cavalaria. Se for esse o caso, sabe que "visto" não é a palavra correta. É ouvido
— o estrondo, a tremor da terra, o fogo cerrado, o fragor das peças dos cavalos em combate! Sim,
e mesmo então seria apenas em um ataque de cavalaria que você está pensando, e não de cavaleiros
com suas armaduras. Imagine isso agora, com os cavalos duas vezes mais pesados que os elegantes
cavalos de caça de nossos festivais noturnos, com os homens eles também duas vezes mais pesados
devido as armas e escudos. Acrescente a música de címbalo das armaduras ressoando com os


tinidos dos arreios. Transforme os uniformes em espelhos, resplandecendo ao sol, as lanças em
lanças de aço. Agora as lanças se abaixam e se aproximam. A terra treme sob as patas. Atrás entre
os torrões de terra voando, as marcas dos cascos ficam impressas na terra. Não são os homens quedevem ser temidos, nem suas espadas nem mesmo suas lanças, mas os cascos dos cavalos. É o
ímpeto da esmagadora falange de ferro — espalhada pelo campo de batalha, sem saída,
pulverizada, estrondando mais do que tambores ao martelar o chão.

Os cavaleiros da Confederação reagiram ao ultraje como puderam. Enfrentaram e deram o troco.
Mas a novidade da sua situação como alvos da ferocidade apesar de seu status,
e também como
uma grande massa sendo atacada com arrogância por um número menor do que um quarto do seu —
e sendo, além do mais, atacada muitas e muitas vezes — isso teve um efeito no seu moral. Foram
cedendo terreno frente aos ataques, em ordem mas cedendo, e se viram conduzidos até uma clareira
da floresta de Sherwood — uma grande clareira como um estuário de grama com árvores de ambos
os lados.

Durante esta fase da batalha houve uma demonstração de bravura por parte de vários indivíduos. O
Rei Lot obteve êxito pessoal contra Sir Meliot de La Roche e contra Sir Clariance. Foi derrubado
de seu cavalo por Kay e montou outra vez, mas foi ferido no ombro pelo próprio Arthur — que
estava em todo lugar, com a força de sua juventude, superexcitado, triunfante.

Como general, Lot parece ter sido um militar demasiado apegado à disciplina, com um pouco de
covardia. Mas era um tático, apesar de seu formalismo. Por volta do meio-dia, parece ter
reconhecido que estava enfrentando um novo tipo de guerra, que requeria uma nova defesa. Os
demônios da cavalaria de Arthur não estavam preocupados com resgates, isto agora estava bem
claro, e estavam preparados para continuar esmagando suas cabeças contra a muralha da cavalaria
até que ela se rompesse. Decidiu cansá-los. Em um rápido conselho de guerra atrás das linhas de
combate, foi combinado que ele mesmo, com quatro outros reis e metade dos defensores, deveriam
retirar-se ao longo da clareira para preparar sua posição. Os seis reis restantes eram suficientes
para agüentar os ingleses, enquanto os homens de Lot descansavam e se reposicionavam. Então,
quando a posição estivesse preparada, os seis reis da guarda avançada deveriam retirar-se para
trás, deixando Lot na linha da frente enquanto eles, por sua vez, se reposicionavam.

O exército dividiu-se conforme o combinado.

Arthur encarou esse momento de divisão como a oportunidade pela qual esperava. Enviou um
mensageiro a galope até as árvores. Ele tinha feito um pacto de ajuda mútua com dois reis
franceses, chamados Ban e Bors — e esses dois aliados vieram da França com cerca de dez mil
homens, para prestar-lhe auxílio. Os franceses estavam escondidos na floresta, de ambos os lados
da clareira, como reservas. Fora em direção a eles que o Rei Arthur tentara levar o inimigo. O
mensageiro galopou, houve um cintilar de armaduras entre os carvalhos cheio de folhas e a mente
de Lot se deu conta da armadilha. Mas olhou apenas para um lado da clareira, de onde Bors já saía
para cair sobre seus flancos, desconhecendo no momento que Ban estava do outro lado.

Os nervos de Lot começaram a entrar em colapso nessa fase. Estava ferido em um ombro,
enfrentando um inimigo que parecia aceitar a morte de fidalgos como parte da guerra, e agora caíra
numa emboscada.


— Oh, defendei-nos da morte e de horríveis mutilações — contam que ele disse — pois vejo bem
que estamos em grande perigo de morte.
Ele destacou o Rei Carados com um grande esquadrão para enfrentar o Rei Bors, só para descobrir
que um segundo mensageiro fizera surgir o Rei Ban do lado oposto. Ainda tinha a superioridade
numérica, mas seu nervosismo estava agora patente.

— Ah! — ele disse para o Duque de Cambenet — agora estamos derrotados.
Contam até que ele chorou pedindo "compaixão e piedade".

O próprio Carados foi derrubado do cavalo e seu esquadrão destroçado pelo Rei Bors. Os guardas
da linha de frente do seis reis recuavam, devido aos ataques do Rei Arthur. Lot, com a divisão do
Rei Morganore, virou-se para enfrentar o Rei Ban do seu lado.

Com mais uma hora de luz, a rebelião teria terminado naquele dia. Mas o sol se pôs, vindo em
socorro dos Antigos, e não havia lua para continuar a batalha. Arthur suspendeu a perseguição,
julgando com precisão que o inimigo estava desmoralizado e permitindo que seus homens
dormissem no conforto com suas divisões, com poucas mas cuidadosas sentinelas.

Os exércitos exaustos dos inimigos, que tinham jogado dados na noite anterior, agora passaram as
horas de escuridão de novo sem poder dormir, armados em conselhos. Como todos os exércitos das
terras altas que alguma vez marcharam contra Gramarye, eles desconfiavam um dos outros.
Esperavam outro ataque noturno. Estavam desconsolados pelo que tinham sofrido. Dividiram-se
sobre o tema da capitulação ou resistência. Já estava amanhecendo quando o Rei Lot conseguiu
convencê-los de sua tática.

Por ordem sua, o que restava da infantaria deveria se espalhar como um enorme rebanho, para
dispersar e salvar suas pobres pernas como pudessem. Os cavaleiros deveriam se agrupar em uma
única falange e resistir aos ataques, e qualquer homem que tentasse fugir deveria ser morto no
mesmo instante, por covardia.

De manhã, quase antes que se formassem, Arthur caiu sobre eles. Conforme sua própria tática,
enviou somente uma pequena tropa de quarenta lanceiros para começar o trabalho. Esses homens,
uma força selecionada de bravos, recomeçaram as investidas da tarde anterior. Foram em galope
curto, arremeteram-se contra as fileiras, rompendo-as, para depois se reposicionarem e voltarem a
atacar. O regimento atacado recuou frente aos ataques, deprimido, desencorajado, com o espírito
de luta arrasado.

Ao meio-dia, os três reis dos aliados atacaram com força plena, num golpe final. Houve o momento
do entrechoque, com um estrondo como o de um trovão, o espetáculo de lanças quebradas voando
no ar enquanto os cavalos davam patadas ao léu antes de caírem para trás. Houve um grito que
estremeceu a floresta. Depois disso, na turfa esmagada pelos cascos, torrões de terra esmigalhados
e restos de armas ofensivas, houve um silêncio antinatural. Havia pessoas cavalgando sem rumo
pelo caminho. Mas já não havia vestígio organizado dos guerreiros da cavalaria gaélica.

Merlin encontrou-se com o rei, em seu caminho de volta a Sorhaute — um mago um tanto cansado,
e ainda a pé. Estava vestido com a cota de malha sem mangas da infantaria, com a qual insistira em


lutar. Trouxe a notícia de que os clãs dos peões tinham oferecido sua rendição.



XIII


Várias semanas depois, ao luar de setembro, o Rei Pellinore estava sentado no alto da falésia com
sua noiva, olhando o mar. Logo estariam navegando para a Inglaterra, para se casarem. O braço
dele envolvia a cintura dela e a orelha dele estava pressionada sobre o topo da cabeça dela. Não
tinham consciência do mundo ao redor.

— Mas Dornar é um nome tão engraçado — o Rei dizia. — Não consigo imaginar como você
pensou nisso.
— Mas foi você quem pensou, Pellinore.
— Foi?
— Sim. Aglovale, Percivale, Lamorak e Dornar.
— Serão crianças inocentes e belas — disse o Rei, com fervor. — como querubins! O que são
querubins?
Atrás deles, o antigo castelo brilhava contra as estrelas. Houve um fraco ruído de gritos no topo da
Torre Redonda, onde Grummore e Palomides estavam discutindo com a Besta Gemente. Ela ainda
estava apaixonada por sua imitação, e ainda mantinha o castelo em estado de sítio — que só se
rompeu por algumas horas no dia do retorno de Lot com seu exército derrotado. Fora uma surpresapara os nobres ingleses a notícia de que tinham estado em guerra com as Órcades durante todo
aquele tempo, mas era tarde demais para fazer algo a respeito, já que a guerra tinha se acabado.
Agora, todo mundo estava dentro, a ponte levadiça ficava permanentemente levantada e a Glatisant
sentava-se ao luar ao pé da torre, sua cabeça brilhando como prata. Pellinore recusara-se a matá-
la.

Merlin chegou uma tarde, no decurso de sua viagem a pé pelo norte, levando um bornal e com um
par de botas monstruosas. Tinha um aspecto lustroso, alvo e reluzente, como uma enguia se
preparando para a jornada nupcial até o Mar dos Sargaços, pois o tempo de Nimue estava
chegando. Mas estava distraído, incapaz de se lembrar da única coisa que deveria ter dito a seu
discípulo, e ouviu o relato das dificuldades dos dois amigos com um ouvido impaciente.

— Perdoe-nos — eles gritavam do topo da muralha, pois o mago ficara do lado de fora —, mas ésobre a Besta Gemente. A Rainha de Lothian e das Órcades está de muito mau humor por causa
dela.

— Têm certeza que é por causa da Besta?
— Certamente, meu caro amigo. Entenda, ela nos sitiou.
— Nós nos vestimos, respeitável senhor, como um tipo de Besta, nós mesmos, e ela nos viu entrar
no castelo — confessou Sir Palomides, sentindo-se péssimo. — Ah, senhor! Há sinais de uma
afeição ardente. Agora, essa criatura não se afasta porque acredita que sua companheira está aqui
dentro, e é muito inseguro baixar a ponte levadiça.
— É melhor vocês explicarem isso para ela. Fiquem nas ameias e expliquem a confusão.
— O senhor acha que ela compreenderá?
— Afinal, trata-se de um animal mágico. Parece possível — o mago disse.
Mas a explicação foi um fracasso — a Besta olhou para eles como se achasse que eles estivessem
mentindo.

— Por favor, Merlin. Não vá embora ainda.
— Tenho que ir — ele respondeu, distraído. — Tenho que fazer alguma coisa em algum lugar, mas
não consigo me lembrar o que é. Enquanto isso, devo prosseguir em minha caminhada. Devo
encontrar meu mestre Bleise em Humberland do Norte, para que ele possa escrever as crônicas da
batalha, e depois vamos observar um pouco as aves selvagens, e depois — bem, eu não consigo me
lembrar.
— Mas Merlin, a Besta não acreditou!
— Sinto muito. — Sua voz soou vaga e perturbada. — Não posso parar. Lamento. Peça perdão à
Rainha Morgause por mim, por favor, e digam que perguntei sobre sua saúde.
Começou a se preparar para girar nos calcanhares, nas preliminares para desaparecer. Nem toda a
sua caminhada era feita a pé.

— Merlin! Merlin! Espere um pouco!
Ele reapareceu por um momento, dizendo com voz irritada:
— Bom, o que foi?
— A Besta não acredita em nós. O que devemos fazer? Ele franziu a testa.
— Psicanalisem-na — respondeu, por fim, começando a girar.
— Mas, Merlin, espera! Como vamos fazer essa coisa?
— Com o método usual.
— Mas como é? — eles gritaram, em desespero.
Ele desapareceu completamente, mas sua voz permaneceu no ar.
— Descubram quais são os sonhos dela e coisas assim. Expliquem os fatos da vida. Mas nada de
muito Freud.
Depois disso, como um pano de fundo para a felicidade de Pellinore — que se recusava a


preocupar-se com problemas triviais — Grummore e Palomides tentaram fazer o melhor que
podiam.

— Bom, você entende — Sir Grummore estava gritando — quando uma galinha bota um ovo...
Sir Palomides interrompeu para explicar sobre pólens e estames.

Dentro do castelo, no quarto real da torre quadrangular, o Rei Lot e sua consorte estavam deitados
na cama de casal. O rei dormia, exausto pelo esforço de escrever suas memórias da guerra. Não
tinha nenhuma razão particular para estar acordado. Morgause estava com insônia.

No dia seguinte, ela iria a Carlion para o casamento de Pellinore. Iria, como explicara a seu
esposo, como uma mensageira para implorar perdão para ele. Levaria os meninos com ela.

Lot estava furioso com essa viagem e gostaria de proibi-la, mas ela sabia como lidar com isso.

A rainha saiu silenciosamente da cama e foi até sua arca. Desde que o exército voltara, tinham lhe
falado sobre Arthur — sobre sua força, charme, inocência e generosidade. Seu esplendor ficara
óbvio, mesmo através da inveja e suspeitas daqueles que ele havia derrotado. Também falaram de
uma moça chamada Lionore, a filha do Duque de Sanam, com quem o jovem supostamente tinha um
romance. A rainha abriu sua arca na escuridão e se aproximou do raio de luar que entrava pela
janela, segurando alguma coisa em suas mãos. Parecia uma tira.

A tira era uma peça de magia menos cruel do que o gato preto, porém mais macabra. Chamava-se
Peia — devido a corda com que se peavam os animais domésticos — e havia várias delas nas
arcas secretas dos Antigos. Era mais um feitiço e não uma grande magia. Morgause a cortara do
corpo de um soldado que foi trazido para casa por seu esposo, para ser enterrado nas Ilhas
Exteriores.

Era uma tira feita de corpo humano, cortada da silhueta de um homem morto. Quer dizer, o corte
começava no ombro direito, e a faca — deslocando-se cuidadosamente por uma incisão dupla para
fazer uma tira — descia direto pelo braço direito, depois ao redor das pontas de cada dedo como
se seguisse as costuras de uma luva, e subia pelo lado interno do braço até o sovaco. Em seguida,
descia por um lado do corpo, passando pela perna e subindo até sua junção com a outra perna, e
continuando assim até completar o circuito do contorno do cadáver, no ombro onde havia
começado. Era uma tira comprida.

A maneira de usar uma Peia era assim. Você tinha que ir até o homem amado quando ele estivesse
dormindo. Então, tinha que passá-la por sua cabeça, sem despertá-lo, e amarrá-la com um laço. Se
ele acordasse enquanto você estivesse fazendo isso, morreria dentro de um ano. Se não acordasse
até a operação terminada, estaria destinado a se apaixonar por você.

A Rainha Morgause parou por um momento sob o luar, passando a tira entre os dedos.

Os quatro meninos também estavam despertos, mas não estavam em seu quarto. Tinham escutado
nas escadas durante o jantar real, portanto sabiam que iriam para a Inglaterra com a mãe.

Eles estavam na pequena Igreja dos Homens — uma capela tão antiga como a cristandade nas ilhas,
embora tivesse pouco mais do que seis metros quadrados. Fora construída com pedras sem


argamassa, como a grande muralha da fortaleza, e a luz da lua penetrava por sua única janela sem
vidro, iluminando o altar de pedra. A pia de água-benta, na qual o raio do luar incidia, fora
escavada na própria pedra e tinha uma tampa cortada de uma lasca, para combinar.

Os meninos das Órcades estavam ajoelhados no lar de seus ancestrais. Estavam orando para serem
leais a sua amada mãe, serem dignos do feudo da Cornualha como ela lhes ensinara — e para que
nunca se esquecessem da brumosa terra de Lothian onde reinavam seus pais.

Do lado de fora da janela, a lua fina estava parada no céu profundo, como a faca que afia a unha do
dedo para a magia e, contra o céu, o cata-vento do corvo com a flecha no bico apontava a seta para

o sul.

XIV


Felizmente, para Sir Palomides e Sir Grummore, a Besta Gemente compreendeu seu problema, noúltimo momento, antes da cavalgada sair — caso contrário eles teriam que permanecer nas Órcades
e perder o casamento. Mesmo assim, tiveram que ficar despertos a noite toda. Ela só tomou
consciência de maneira repentina.

O inconveniente foi que ela transferiu sua afeição ao bem-sucedido analista — Palomides — como
acontece com freqüência na psicanálise — e agora recusava-se a ter qualquer interesse por seu
antigo senhor. O Rei Pellinore, não sem alguns suspiros pelos bons velhos tempos, foi obrigado a
renunciar a seus direitos sobre ela para o sarraceno. É por isso que, embora Malory diga
claramente que só um Pellinore pode capturá-la, nós sempre a encontraremos sendo perseguida por
Sir Palomides nas partes finais da Morte de Arthur. De qualquer maneira, pouca diferença faz
saber quem poderia pegá-la, porque nunca ninguém o fez.

A longa marcha rumo ao sul, em direção a Carlion, com liteiras balançando e a escolta montada
correndo com as bandeirolas ao vento, foi emocionante para todos. As próprias liteiras eram
interessantes. Consistiam em carretas comuns com um tipo de mastro com bandeiras de cada lado.
Entre os mastros, estava pendurada uma rede, na qual quase não se sentiam os solavancos. Os dois
cavaleiros cavalgavam atrás do transporte real, deliciados por poderem sair do castelo e
comparecer ao matrimônio, depois de tudo. São Toirdealbhach seguia atrás com Mãe Morlan,
porque seria um casamento duplo. A Besta Gemente vinha no final, de olho em Palomides, temendo
ser deixada para trás mais uma vez.

Todos os santos saíram de suas covas para vê-los passar. Dos penhascos, botes, montanhas,
pântanos e montes de conchas, todos os Fomorianos, Fir Bolg, Tuatha de Danaan, Povos Antigos
lhes acenavam sem nenhuma desconfiança. Todos os cervos vermelhos e unicórnios enfileiraram-se
no alto das montanhas para se despedir. As andorinhas-do-mar, com suas caudas bifurcadas,
vieram do estuário, soltando guinchos como se tentassem imitar uma cena de embarque pelo
telégrafo; os trigueirões de peito branco e calandrinas esvoaçavam ao lado deles, de uma moita de
urzes a outra; no ar, as águias, os falcões peregrinos, corvos e gaviões descreviam círculos sobre
eles; a fumaça da turfa os seguia como se ansiosa por se enroscar uma última vez na ponta de suas
narinas; as pedras funerárias e os subterrâneos e fortes alcantilados exibiam sua construção pré-
histórica sob o resplendor da luz do sol; a truta do mar e o salmão levantaram as cabeças reluzentes
para fora da água; os vales estreitos, montanhas e encostas cobertas de urzes da região mais bela do


mundo uniram-se ao coro geral, e a alma do mundo gaélico disse aos meninos na mais sonora de
suas vozes encantadas: "Não se Esqueçam de Nós!".

Se a marcha foi emocionante para os meninos, as glórias metropolitanas de Carlion foram capazes
de lhes tirar a respiração.

Ali, ao redor do castelo do rei, havia ruas — não apenas uma única rua — e castelos de barões
dependentes, e monastérios, capelas, igrejas, catedrais, mercados, casas de mercadores. Havia
centenas de pessoas nas ruas, todas vestidas de azul ou vermelho ou verde ou de outra cor viva,
com cestas de compras nas mãos, ou conduzindo gansos sibilantes à frente, ou se apressando de um
lado para o outro com a libre de um grande senhor. Sinos tocavam, relógios batiam nos
campanários, estandartes flutuavam — até que todo o ar ao redor deles parecia estar vivo.
Cachorros e asnos e palafréns ajaezados e padres e carroças de fazenda — cujas rodas chiavam
como no dia do julgamento — e tendas que vendiam dourados pães de mel, e lojas onde exibiam as
melhores peças de armaduras da última moda. Havia mercadores de seda, especiarias e jóias. As
lojas tinham tabuletas de madeiras com anúncios pintados, como as tabuletas das tavernas que
vemos hoje. Criados se embebedavam na porta das lojas de vinhos, e velhas senhoras
pechinchavam ovos, e ambulantes rústicos carregavam gaiolas de falcões para vender, e havia
regedores imponentes com cordões de ouro, e lavradores de pele bronzeada com quase nenhuma
roupa exceto alguns pedaços de couro, e galgos na correia, e estranhos homens orientais vendendo
papagaios, e damas bonitas andando com passos miúdos e chapéus cônicos com véus esvoaçando
desde o topo, e talvez um pajem em frente a ela carregando um livro de orações, se ela estivesse
indo para a igreja.

Carlion era uma cidade cercada por muralhas, portanto toda essa agitação era cercada por ameias
que pareciam existir desde sempre. A muralha tinha torres a cada duzentos metros e também quatro
grandes portões. Quando a pessoa se aproximava da cidade pela planície, podia ver as torres do
castelo e as agulhas das igrejas brotando da muralha em blocos — como flores crescendo em um
vaso.

O Rei Arthur estava encantado por ver outra vez seus velhos amigos e saber do noivado de
Pellinore. Ele foi o primeiro cavaleiro por quem teve um carinho especial, quando era menino na
Floresta Sauvage, e decidiu dar a seu querido amigo uma festa de casamento de esplendor sem
igual. A Catedral de Carlion foi reservada, e não se poupou trabalho para que todos se divertissem.
A grande missa pontifícia nupcial foi celebrada por tal constelação de cardeais e bispos e núncios
que parecia não haver parte da imensa igreja que não estivesse colorida com roxo e púrpura eincenso e meninos tocando campainhas de prata. Às vezes, um menino se aproximava às pressas de
um bispo e tocava a campainha a sua frente. Outras vezes, um núncio se precipitava sobre um
cardeal e o incensava de cima abaixo. Era como uma batalha de flores. Milhares de candelabros
brilhavam frente aos maravilhosos altares. Em todas as direções, os dedos grossos, habituados,
santos, espalhavam-se como toalhas de mesa, ou seguravam os livros, ou abençoavam um ao outro
cuidadosamente, ou molhavam um ao outro com água-benta, ou reverentemente mostravam Deus ao
povo. A música era celestial, tanto gregoriana quanto ambrosiana, e a igreja estava apinhada.
Havia monges, frades e abades de todas as ordens, em pé com suas sandálias entre cavaleiros cujas


armaduras brilhavam à luz das velas. Havia até um bispo franciscano, vestido de cor cinza, com um
chapéu encarnado. As capas e mitras sacerdotais eram quase todas de tecido de ouro sólido
incrustado de diamantes, e era um tal de colocá-las e tirá-las que toda a catedral farfalhava. Quanto
ao Latim, era falado com tal rapidez que os caibros dos telhados zumbiam com os plurais dos
genitivos — e houve um tal fluxo de admoestações, exortações e bênçãos de prelados que era um
espanto toda a congregação não ter ido imediatamente dali direto para o céu. Até o Papa, que
estava tão convencido quanto qualquer outro que a coisa deveria ter suas regalias, gentilmente
enviara um número de indulgências para todos de quem conseguiu se lembrar.

Depois da cerimônia do matrimônio, aconteceu a festa. O Rei Pellinore e sua rainha — que
estiveram de mãos dadas durante toda a cerimônia prévia, com São Toirdealbhach e Mãe Morlan
atrás deles, completamente aturdidos com as luzes de velas, o incenso e as aspersões — foram
levados para o lugar de honra e servidos pelo próprio Arthur, de joelhos curvados. Pode-se
imaginar como Mãe Morlan estava encantada. Havia torta de pavão, gelatina de enguias, creme
Devonshire, toninha ao caril, salada de frutas gelada e duas mil travessas de acompanhamentos.
Houve discursos, canções, brindes e copos cheios até a borda. Um mensageiro especial veio a toda
velocidade de Humberland do Norte e entregou sua mensagem aos noivos. Dizia: "Os melhores
cumprimentos de Merlin ponto. O presente está debaixo do trono ponto. Carinho para Aglovale,
Percivale, Lamorak, Dornar".

Quando a excitação por causa da mensagem se acalmou e o presente de casamento foi encontrado,
alguns jogos de salão foram imediatamente preparados para os membros jovens da festa. Nesses,
um jovem pajem da criadagem do rei se sobressaía. Era o filho de um aliado de Arthur em
Bedegraine — o Rei Ban de Benwick — e seu nome era Lancelot. Houve abocanhe-a-maçã, jogo
de malha, balancê e uma peça de fantoches chamada Mac e os pastores, que fez todo mundo rir.
São Toirdealbhach desgraçou-se a si mesmo ao atordoar um dos bispos mais gordos com sua clava,
durante uma discussão sobre uma bula papal chamada Laudabiliter. Finalmente, já bem tarde, a
festa terminou depois de uma execução emocionante de Auld Lang Syne. O Rei Pellinore estava se
sentindo indisposto, e a nova Rainha Pellinore o colocou na cama, explicando que ele estava
sobreexcitado.

Bem distante dali, em Humberland do Norte, Merlin pulou da cama. Ele havia saído ao alvorecer
para observar as aves selvagens e voltara ao pôr-do-sol, muito fatigado. Mas de repente, em seu
sono, ele se lembrou — uma coisa tão simples! Era o nome da mãe de Arthur que esquecera de
mencionar em sua confusão! Ali tinha ficado ele, jogando conversa fora sobre Uther Pendragon e a
Távola Redonda e batalhas e Guenevere e espadas embainhadas e coisas passadas e coisas futuras

— mas se esquecera da coisa mais importante de todas.
A mãe de Arthur era Igraine — a mesma Igraine que foi capturada em Tintagil, aquela sobre a qualos meninos das Órcades conversavam na Torre Redonda no começo deste livro. Arthur fora
concebido na noite em que Uther Pendragon irrompeu em seu castelo. Como, naturalmente, Uther
não podia desposá-la até que ela saísse do luto pelo duque, o menino nascera cedo demais. Foi por
isso que Arthur foi levado para longe, para ser criado por Sir Ector. Ninguém sabia para onde ele
fora enviado, exceto Merlin e Uther — e agora Uther estava morto. Nem mesmo Igraine nunca


soube.

Merlin ficou indo e vindo, descalço, pelo chão gelado. Se ao menos girasse imediatamente até
Carlion, antes que fosse tarde demais! Mas o velho estava cansado e confuso com sua visão de trás
para frente, e os sonhos estavam em todos os seus miolos. Pensou que poderia fazer isso de manhã
logo cedo — não sabia ao certo se estava no futuro ou no passado. Estendeu cegamente as mãos
cobertas de veias para a cama, a imagem de Nimue já tecendo a si mesma em seu cérebro
sonolento. Caiu na cama. A barba foi para baixo da coberta, o nariz enfiou-se no travesseiro.
Merlin dormiu.

O Rei Arthur sentou-se no Grande Saguão, que agora estava vazio. Alguns de seus cavaleiros
favoritos estiveram tomando o último drinque com ele, mas agora estava só. Tinha sido um dia
cansativo embora estivesse na plena força de sua juventude, e ele encostou a cabeça contra o
espaldar do trono, pensando nos acontecimentos do matrimônio. Desde que se tornara o rei ao tirar
a espada da pedra, praticamente esteve o tempo todo em combates, e a ansiedade dessas campanhas
tinham amadurecido sua extraordinária figura. Finalmente, tudo indicava que poderia ter paz.
Pensou nas alegrias da paz, em se casar um dia como Merlin profetizara e em ter um lar. Com isso,
pensou em Nimue e depois em alguma mulher bonita. Adormeceu.

Acordou com um sobressalto e viu uma beldade de cabelos negros, olhos azuis à frente dele, com
uma coroa. Os quatro meninos selvagens do norte estavam atrás da mãe, tímidos e desconfiados, e
ela segurava uma tira.

A Rainha Morgause das Ilhas Exteriores estivera distante das festividades de propósito —
escolhera seu momento com o mais extremo cuidado. Era a primeira vez que o jovem rei a via, e
ela sabia que estava com sua melhor aparência.

É impossível explicar como essas coisas acontecem. Talvez à Peia tivesse uma força em si. Talvez
porque a rainha tinha o dobro de sua idade, portanto, o dobro do poder de suas armas. Talvez
porque Arthur sempre foi um homem simples, que facilmente considerava as pessoas pelo valor
que elas mesmas se davam. Talvez porque nunca conhecera sua própria mãe, e assim o papel do
amor de mãe, já que ela estava ali com os filhos atrás, colocou-o entre a espada e a parede.

Seja qual for a explicação, a Rainha do Ar e das Sombras teve um filho com seu meio-irmão nove
meses mais tarde. Chamou-se Mordred. E isto, como Merlin desenhou mais tarde, foi o que o mago
chamou de seu pied-de-grué{10}.


Mesmo se tiver que lê-la duas vezes, como alguma coisa em uma lição de história, saiba que esta
árvore genealógica é uma parte vital da tragédia do Rei Arthur. Foi por isso que Sir Thomas
Malory chamou seu longo livro de Morte de Arthur. Embora nove décimos da história pareça ser
sobre justas de cavaleiros e buscas pelo Santo Graal e coisas desse tipo, a narrativa é um todo etrata das razões pelas quais o jovem fracassou no final. É a tragédia, a completa e aris-totélicatragédia do pecado regressando a casa para repousar. É por isso que devemos prestar atenção na
linhagem de Mordred, filho de Arthur, e lembrar, quando chegar a hora, que o rei dormiu com sua
própria irmã. Ele não sabia que estava fazendo isso, e talvez tenha sido por culpa dela, mas parece
que, nas tragédias, a inocência nunca é suficiente.


Personagens deste volume


A busca de justiça e ordem no reino dos conflitos


Morgause -Meia-irmã de Arthur, irmã de Morgana, filha do Conde da Cornuália e de Igraine, mãede Arthur. Ela é também uma feiticeira, esposa de Lot, e mãe dos irmãos Órcades. Seduz Arthur
com mágica e o produto dessa união é Mordred.

Gawaine -O filho mais velho de Morgause, líder dos irmãos Órcades, cruel, chovinista, algumas
vezes é amigo e em outras, inimigo de Arthur. Tornou-se um dos cavaleiros da Távola Redonda,
voltando-se contra Arthur devido ao seu ódio contra Lancelot. Morreu, devido a um golpe na
cabeça, no fim da história.

Agravaine -Filho de Morgause; vive confuso em relação à sexualidade materna e é violento e
beberrão.

Meg -Cozinheira que os filhos de Morgause empregam na captura de um unicórnio que darão de
presente a sua mãe.

Rei Lot -O rei das Órcades; marido de Morgause e pai de seus filhos, à exceção de Mordred. Ele
não é nada mais que um peão de manobra na luta da mulher pela destruição de Arthur. É
acidentalmente morto em uma justa contra Pellinore, o que desencadeia um ciclo de vingança entre
os filhos de Lot e os filhos de Pellinore.

São Toirdealbhach -Um santo caído que vive próximo aos filhos de Morgause; é um velho dado à
bebida que conta histórias muito divertidas e atua como mentor dos meninos, que são esquecidos
por seus pais.

Mãe Morlan -Mulher de São Toirdealbhach.


Piggy (Rainha de Flandres) -Mulher de Pellinore e mãe de vários cavaleiros da Távola Redonda.

Palomides -Cavaleiro sarraceno que acompanha Pellinore e Grummore às ilhas Órcades. Os três
vivem juntos grandes aventuras, a maior parte delas cômicas e relacionadas à captura da Besta
Gemente. Depois da morte de Pellinore, Palomides toma seu lugar na busca da Besta.

Mordred -Produto da união (para ele, involuntária) de Morgause e Arthur. Morgause o cria
sozinho e em amarga distância de Arthur. Mordred aparece no final deste volume, e será
personagem importante dos próximos.

A Távola Redonda -Arthur concebe a Távola Redonda em A rainha do ar e das sombras como a
manifestação divina de bravura e de justiça. Ao longo da saga, a Távola Redonda é a manifestação
física do senso arturiano de decência e ordem. A mesa dos cavaleiros é projetada para que os
nobres não disputem posições, livres de uma cabeceira que defina quem é o melhor.


O Eterno e Futuro Rei 03


O CAVALEIRO IMPERFEITO



Título original: The III-Made Knight
1940 by T. H. White


INCIPIT LlBER TERTIUS


"Não", disse Sir Lancelot,
"... pois uma vez desonrado, já não há reparação."



I


No Castelo de Benwick, o jovem francês olhava seu rosto refletido na superfície polida de um
bacinete que cintilava à luz do sol com o brilho inflexível do metal. Era praticamente como o
capacete de aço que os soldados ainda usam, e não dava um bom espelho, mas foi o melhor que ele
pôde conseguir. Virava-o para a frente e para trás, esperando ter uma idéia geral de seu rosto a
partir das diferentes distorções que as saliências provocavam. Estava tentando ver como era, e
temia o que poderia descobrir.

O rapaz achava que havia algo errado com ele. Durante toda a sua vida — mesmo quando chegasse
a ser um grande homem, tendo o mundo a seus pés — sentiria essa brecha: algo no fundo de seu
coração do qual tinha consciência, e se envergonhava, mas não conseguia compreender. Nós não
precisamos tentar entender isso. Não temos que nos intrometer em uma região que ele preferia
conservar secreta.

O Arsenal, onde o jovem se encontrava, estava repleto de armas de guerra. Nas últimas duas horas,
ele esteve girando um par de halteres — que chamava de "pesos" — enquanto cantava para si
mesmo uma canção sem palavras e sem melodia. Tinha quinze anos. Acabara de chegar da
Inglaterra, onde seu pai, o Rei Ban de Benwick, ajudou o Rei inglês a sufocar uma rebelião. Você
deve se lembrar que Arthur queria atrair os cavaleiros jovens a fim de treiná-los para a Távola
Redonda, e tinha reparado em Lancelot na festa porque ele ganhara a maioria dos jogos.

Lancelot, balançando com entusiasmo seus halteres e fazendo seu som sem palavra, pensava no Rei
Arthur e todo o seu poder. Estava apaixonado pelo Rei. Era por isso que estava girando seus
halteres. Estava recordando todas as palavras da única conversa que teve com seu herói.

O Rei o chamara quando eles estavam embarcando para a França — depois de ter beijado o Rei
Ban na despedida — e o levou para um canto do navio, a sós. As veias heráldicas da frota de Ban,
os marinheiros no cordame, as torres armadas, os arqueiros e as gaivotas tinham sido o pano de
fundo para a conversa dos dois.

— Lance — o Rei dissera —, venha aqui um instante, por favor.
— Senhor.
— Estive observando você nos jogos da festa.
— Senhor.

— Parece que você venceu a maioria deles. Lancelot apertou os olhos.
— Eu gostaria de ter um monte de pessoas boas nos jogos, para me ajudar em uma idéia que estou
tendo. É para o tempo quando eu for um verdadeiro Rei, e tiver arrumado este reino. Estava
pensando se você se importaria de me ajudar, quando tiver idade suficiente...
O rapaz fez uma espécie de meneio e, de repente, seus olhos se iluminaram ao fitar o interlocutor.

— Tem relação com os cavaleiros — Arthur continuou. — Quero ter uma Ordem de Cavalaria,
como a Ordem da Jarreteira, com o objetivo de lutar contra a Força. Você gostaria de ser um
deles?
— Sim.
O Rei o olhou atentamente, incapaz de decidir se ele estava feliz, amedrontado ou apenas sendo
educado.

— Você entende o que estou dizendo? Lancelot jogou água em sua fervura.
— Na França, nós falamos de Force Majeur, ou Braço Forte — ele explicou. — O homem mais
forte do clã torna-se sua cabeça e faz o que lhe apetece. É por isso que dizemos Força Maior. O
senhor quer pôr um fim no Braço Forte, formando um grupo de cavaleiros que acreditam na justiça
cm vez da Força. Sim, eu gostaria muito de ser um deles. Antes, tenho que crescer. Obrigado.
Agora devo me despedir.
Assim, eles deixaram a Inglaterra — o jovem de pé na frente do navio, recusando-se a olhar para
trás porque não queria mostrar seus sentimentos. Desde a noite da festa de matrimônio, ele havia se
apaixonado por Arthur, e levava para a França consigo, dentro de seu coração, a figura do
magnífico Rei do Norte, na ceia, animado e glorioso por suas guerras.

Por trás dos olhos pretos que perscrutavam intensamente o bacinete estava o sonho que tivera na
noite anterior. Setecentos anos atrás — ou poderia ter sido mil e quinhentos, segundo a maneira de
Merlin contar — as pessoas levavam os sonhos tão a sério como os psicanalistas de hoje, e
Lancelot tivera um muito perturbador. Não perturbador pelo que pudesse significar — pois ele não
tinha a menor idéia de seu significado —, mas porque o havia deixado com uma sensação de perda.
O sonho foi assim.

Lancelot e seu irmão mais jovem, Ector Demaris, estavam sentados em duas cadeiras. Levantaram-
se dessas cadeiras e montaram dois cavalos. Lancelot disse: "Adiante, em busca do que não iremos
encontrar". E assim fizeram. Mas um Homem ou um Poder caiu sobre Lancelot, bateu nele,
despojou-o de suas coisas, vestiu-o com uma vestimenta cheia de nós e o fez montar um jumento em
vez de um cavalo. Então apareceu uma linda fonte, com as águas mais límpidas que jamais vira, e
ele desceu do jumento para beber um pouco daquela água. Sentia que não poderia haver nada mais
maravilhoso no mundo do que beber daquela fonte. Mas assim que inclinou os lábios em direção a
ela, a água baixou. Baixou rapidamente para o fundo da fonte, afundando cada vez mais, de tal
maneira que ele não conseguia alcançá-la. Isso o fez sentir-se desolado, ser abandonado pela água
da fonte.

Arthur e a fonte, os halteres que deviam fazê-lo digno de Arthur e a dor nos braços cansados de


levantá-los — tudo isso estava no fundo da mente do jovem ao inclinar o bacinete de latão para a
frente e para trás entre os dedos, mas havia outro pensamento ainda mais insistente em sua mente.
Era um pensamento sobre o rosto no metal, e sobre o que deveria ter falhado nas profundezas de
seu espírito para fazer um rosto assim. Não era de enganar a si mesmo. Sabia que fosse qual fosse a
maneira como virasse o bacinete, ele lhe mostraria a mesma imagem. Já tinha decidido que, quando
fosse um cavaleiro adulto, daria a si mesmo um nome melancólico. Era o filho mais velho, portanto
estava destinado a ser cavaleiro, mas não se chamaria Sir Lancelot. Chamaria a si mesmo de
Chevalier Mal Fet — Cavaleiro Malfeito, Cavaleiro Imperfeito.

Tanto quanto podia ver — e sentia que deveria haver algum motivo para isso em algum lugar —,
seu rosto era tão feio como o de um monstro do zoológico do Rei. Parecia um macaco africano.


II


Lancelot transformou-se no melhor cavaleiro do Rei Arthur. Foi uma espécie de Bradman{11}, o
campeão das batalhas. Tristão e Lamorack eram, respectivamente, o segundo e o terceiro.

Mas você deve saber que as pessoas só podem ser boas no críquete se treinarem para isso, e que os
torneios eram uma arte, exatamente como o críquete; aliás, lembravam o críquete em muitos
aspectos. Num torneio, havia o pavilhão do marcador de pontos, com um verdadeiro marcador lá
dentro, que apontava os pontos num pergaminho, exatamente como é feito hoje pelo marcador de
críquete. As pessoas, que passeavam pelo campo com suas melhores roupas, da Tribuna Principal à
Tenda dos Comes e Bebes, certamente consideravam as lutas muito parecidas com um jogo. Era
incrivelmente demorado — os turnos de Lancelot com freqüência levavam o dia todo para
terminar, caso ele estivesse enfrentando um bom cavaleiro — e os movimentos davam a sensação
de câmara lenta, por causa do peso das armaduras. Quando o jogo de espadas começava, os
combatentes postavam-se um em frente ao outro no campo verde, como o jogador que bate a bola e

o lançador — com a diferença de que ficavam bem mais próximos —, e talvez Sir Gawaine
começasse seu arremesso com um balanceio de corpo, que Sir Lancelot neutralizaria com um belo
movimento de pernas parecido com outra jogada de críquete, e depois rebateria com um ataque
contra a guarda de Gawaine — que tinha o nome de "finta" — e todo o público ao redor do campo
aplaudiria. No Pavilhão, o Rei Arthur talvez se virasse para Guenevere, comentando que o jogo de
pés do grande cavaleiro fora tão admirável como de costume. Na parte de trás dos elmos, os
cavaleiros colocavam pequenos pedaços de pano para protegei" o metal do calor do sol, como os
lenços que hoje os jogadores de críquete às vezes colocam atrás dos bonés.
O exercício da Cavalaria era uma arte tanto quanto o críquete, e talvez o único aspecto em que
Lancelot não se assemelhava a Bradman era por ser mais gracioso. Não tinha aquele agachar com o
bastão para depois pular e arremessar a bola. Nisso, ele era mais como Wooley{12}. Mas para ser
como Wooley, não bastava simplesmente permanecer sentado quieto e desejar ser igual.

O Arsenal, onde o jovem que mais tarde seria Sir Lancelot estava sentado com seu bacinete, era a
maior dependência do castelo de Benwick. Seria o lugar onde esse rapaz passaria a maior parte de
suas horas despertas nos três anos seguintes.

As dependências do castelo principal — que ele via das janelas — eram pequenas, em sua maioria,
porque não se pode construir com luxo quando se está fazendo uma fortificação. Ao redor da
fortaleza interna, com seus cômodos pequenos, havia uma área espaçosa com um estábulo ou curral,


para onde os rebanhos do castelo eram conduzidos durante um cerco. Estava rodeado por uma
muralha alta cora torres e, do lado interno dessa muralha, foram construídos os grandes espaços
necessários para depósitos, celeiros, casernas e estrebarias. O Arsenal era uma dessas áreas.
Ficava entre as estrebarias para cinqüenta cavalos, e o estábulo das vacas. As melhores armaduras
da família — as que atualmente estavam sendo usadas — eram guardadas em um pequeno cômodo
dentro do próprio castelo, e no Arsenal ficavam apenas as armas das tropas, as partes de reposição
das armaduras da família e os apetrechos necessários para os exercícios de ginástica, prática ou
treinamento físico.

Debaixo do teto de caibros, e o mais próximo possível dele, estava pendurada ou alinhada uma
coleção de pendões e bandeirolas, com o brasão das armas de Ban — France Ancient, Insígnias da
França, como agora são chamadas — que seriam necessários em várias ocasiões. Ao longo da
parede havia lanças de torneio, colocadas horizontalmente em pregos para não empenarem.
Pareciam barras para exercícios de um ginásio. Fm um canto, algumas lanças velhas, já empenadas
ou danificadas de alguma forma, mas que ainda poderiam ser úteis, estavam dispostas em pé. Na
estante de armas, que ia de um canto a outro da segunda parede principal, ficavam os coletes de
malhas para a infantaria, com mitenes, lanças, elmos e espadas de Bordéus. O Rei Ban tinha sorte
de viver em Benwick, pois as espadas de Bordéus eram do local e particularmente boas. Depois,
havia barricas para arneses, nas quais as armaduras eram acondicionadas com feno para
expedições de além-mar — algumas delas ainda estavam cheias da última expedição, e era uma
curiosa mistura. Tio Dap, que cuidava do Arsenal, tinha desempacotado uma dessas barricas para
fazer um inventário de seu conteúdo — e fora embora em desespero ao descobrir cinco quilos de
tâmaras e cinco fôrmas de açúcar. Certamente tratava-se de alguma espécie de açúcar de abelha, a
não ser que fossem fôrmas de açúcar que tinham voltado das Cruzadas. Ele deixara sua lista ao
lado da barrica, e ali estava anotado, entre outros artigos: I sela ornada douro, III paires de luvas, I
vestimenta, I livro de messe, I veste de fora, I paire de brigandinas, I bacia de prata de mijar, X
camisões do meu Senhor, I jaquetina de couro, e I tabuleiro de xadrez. Depois, em um canto
formado pelas barricas, podia-se ver um conjunto de prateleiras que compunha o dispensário das
peças danificadas. Nas prateleiras havia enormes garrafões de azeite de oliva — atualmente, dá-se
preferência a óleos minerais para armaduras, mas no tempo de Lancelot não havia esse refinamento

— ao lado de caixas de areia fina para polimento, sacos de tachas para brigandinas de onze xelins
e oito pences cada vinte milheiros, rebites, anéis avulsos para as cotas de malhas, pedaços de
couro para cortar correias novas e suportes para joelheiras, juntamente com milhares de outras
coisas fascinantes na época, mas agora perdidas para nós. Havia perneiras parecidas com as
tornozeleiras que se vêem hoje nos goleiros, ou como as proteções acolchoadas usadas pelos
jogadores de futebol americano. Em vários cantos, de modo a deixar um espaço livre no meio,
ficava amontoado um conjunto de aparelhos para ginástica como os estafermos e coisas assim,
enquanto a escrivaninha de Tio Dap fora colocada perto da porta. Na escrivaninha havia penas de
escrever, areia mata-borrão, varas para bater em Lancelot quando ele errava e, em indescritível
confusão, apontamentos referentes a quais gibões tinham sido penhorados recentemente — a
penhora era uma grande instituição para as armaduras valiosas — e quais os elmos que haviam
sido restaurados e brilhavam, que braçais necessitavam de reparos, e o que fora pago a quem para
fazer o quê e quando. A maioria das contas estava somada incorretamente.

Três anos pode parecer um longo tempo para um jovem passar em uma única dependência, se ele
só sair de lá para comer, dormir e praticar torneios no campo. E até difícil imaginar um jovem
fazendo isso, a menos que se compreenda, desde o início, que

Lancelot não era nem romântico nem jovial, Tennyson e os pré-rafaelistas teriam dificuldade para
aceitar esse rapaz bastante taciturno e inadequado, feio de rosto, que não revelava a ninguém estar
vivendo de sonhos e orações. Talvez se perguntassem que tipo de ferocidade ele teria contra si
mesmo, capaz de fazê-lo forçar tanto seu próprio corpo tão jovem. Talvez se perguntassem por que
ele era tão estranho.

Para começar, ele teve que passar meses cansativos atacando Tio Dap com uma lança cega sob o
braço. Tio Dap, armado da cabeça aos pés, postava-se sentado em um banco — e Lancelot, com a
lança de ponta rombuda, ficava atacando-o e voltando a atacar, para aprender os melhores locais
onde enfiar a ponta em uma armadura. Em seguida, foram as horas solitárias com os pesos, com
muitas outras horas em campo aberto — antes que lhe fosse sequer permitido tocar em armas
verdadeiras —, quando ele aprendeu várias maneiras de derrubar o adversário, lançando-o ao chão
com a vara ou lança de arremesso, e atirando a barra. Depois disso, após um ano de exercícios,
aconteceu sua promoção para o estafermo de esgrima. Era uma estaca cravada no chão, contra a
quai ele tinha que combater com espada e escudo — como se estivesse lutando boxe com a sombra
ou usando um saco de pancada. Para esse exercício, tinha de usar armas que pesavam duas vezes
mais que a espada e o escudo comuns. Por volta de vinte e sete quilos era considerado um bom
peso para os braços no estafermo de esgrima — de tal maneira que, quando chegasse a hora de usar
as armas normais, ele as controlaria com precisão. Pareceriam leves, em comparação. O estágio
final do treino para o jogo-padrão eram os combates simulados. Nestes, por fim, e depois de todos
os amargos reveses de disciplina, foi-lhe permitido lutar batalhas que eram quase reais, contra seu
irmão e primos. Os combates tinham regras estritas. Poderiam começar com um ataque de lança
rombuda, seguido por sete golpes com a espada de ponta e gume virados, "sem corpo-a-corpo, nem

o agarrar-se um ao outro com as manoplas, sob pena de punição conforme os juizes do momento
avaliarem como requerido". Nesses jogos, não era lícito picar — isto é, dar golpes com a ponta. E
por fim, havia o combate livre. O agora vigoroso jovem podia atacar temerariamente seus
companheiros, com espada e escudo.
Se você já se enfiou em um daqueles escafandros antigos que costumavam ser o padrão da Marinha
Real antes de aparecerem os homens-rãs e o mergulho livre, saberá por que esses mergulhadores se
moviam tão lentamente. Um escafandrista carrega dezoito quilos de chumbo em cada pé e duas
placas de chumbo — pesando mais de vinte quilos cada —, uma nas costas e outra no peito. Isso
além do peso da roupa e do capacete. Exceto quando está no mar, pesa o dobro de um homem. O
ato de passar por cima de uma corda ou um tubo de ar no tombadilho torna-se uma tarefa árdua —
como trepar era uma parede. Se você o empurra pela frente, seu peso atrás tende a prevalecer, e ele
pode cair de costas. A mesma coisa acontece no vice-versa. Mergulhadores treinados tornam-se
peritos em lidar com essas desvantagens, e são capazes de levantar e abaixar os pés de dezoito
quilos na escada do navio com bastante agilidade — mas um amador pode quase se matar com o
mero esforço de um movimento. Lancelot, como o mergulhador, teve que aprender a ser ágil contra
a força da gravidade.


Os cavaleiros de armaduras eram como escafandristas em mais de um aspecto.

Além dos elmos e estorvos e a dificuldade de respirar, deviam se deixar vestir por assistentes
gentis e cuidadosos. Tinham de confiar nesses assistentes para que fizessem sua tarefa
corretamente. Um escafandrista coloca sua vida nas mãos dos marinheiros que o vestem. Esses
jovens, como os pajens e os escudeiros, tratam-no como uma mãe, com grande suavidade e
concentração, e uma espécie de respeito protetor. Sempre se dirigem a ele pelo seu título e não
pelo nome. Dizem: "Sente-se, mergulhador", ou "Agora o pé esquerdo, mergulhador", ou
"Mergulhador Dois, pode me escutar nesse interfone?".

É bom colocar sua vida nas mãos de outra pessoa.

Três anos de dedicação e esforços. Os outros rapazes não se preocupavam tanto, pois tinham outras
coisas para pensar — mas para o jovem feio era tudo que importava em sua vida obscura e mística.
Ele tinha que se aperfeiçoar para Arthur tomo alguém bom nos jogos, e pensar nas teorias da
cavalaria mesmo quando na cama, à noite. Tinha que ensinar a si mesmo a ter uma opinião
fundamentada sobre centenas de pontos polêmicos -— sobre o tamanho adequado das armas, ou
sobre o feitio de um paquife, ou a articulação de uma braceleira, ou se a madeira de cedro era
melhor que a de freixo para as lanças, como Chaucer{13} parece ter acreditado.

Eis um pequeno exemplo dos problemas da cavalaria, sobre os quais ele pensava na juventude.
Houve um cavaleiro chamado Reynaud Le Roi, que tinha uma competição de justa com outro
cavaleiro de nome John de Holland. Reynaud propositadamente prendeu seu elmo de torneio —-o
enorme cilindro acolchoado de palha que às vezes era colocado sobre o capacete propriamente
dito — de maneira que ficasse frouxo. Quando a ponta da lança de John de Holland o atingiu, ele
simplesmente soltou-se. Isso significou que o elmo caiu da cabeça de Reynaud, e não que Reynaud
despencou do cavalo. Um truque eficaz, mas perigoso — toda a cavalaria discutiu longamente
sobre isso, alguns dizendo que não era esportivo, outros que era lícito mas demasiado arriscado, e
outros que era uma boa idéia.

Três anos de disciplina não fizeram Lancelot ter um coração feliz e ser capaz de cantar como uma
cotovia. De uma vida que, na sua idade, devia parecer se estender por pouco mais de uma semana à
frente, ele deu trinta e seis meses à idéia de outro homem porque se apaixonara por ela. Nesse
entretempo, seus sonhos foram seu suporte. Queria ser o melhor cavaleiro do mundo, para que
Arthur também o amasse em troca, e queria uma outra coisa que ainda era possível naqueles
tempos. Ele queria, com sua pureza e excelência, ser capaz de realizar algum milagre simples —
como, por exemplo, curar um cego ou coisa parecida.


III


Havia uma característica nas grandes famílias que se colocaram no centro do destino de Arthur.
Todas as três possuíam um gênio que com elas residia, meio tutor e confidente, e que influenciou o
caráter dos jovens de cada uma delas. No castelo de Sir Ector havia Merlin, que foi a maior
influência na vida de Arthur. Na solitária e distante Lothian, Sir Toirdealbhach, cuja filosofia sobre
as guerras deve ter tido algo a ver com o aguçado espírito de clã de Gawaine e seus irmãos. No
castelo do Rei Ban, um tio de Lancelot, cujo nome era Gwenbors. Na verdade, tratava-se do velho
que já encontramos, conhecido por todos como Tio Dap, mas seu nome de batismo era Gwenbors.
Naqueles tempos, escolhiam-se os nomes dos filhos da mesma maneira como hoje damos os nomes
aos cães de caça e potros. Se você fosse a Rainha Morgause e tivesse quatro filhos, colocaria um G
em todos os seus nomes (Gawaine, Agravaine, Gaheris e Gareth) — e, naturalmente, se acontecesse
de seus irmãos serem chamados de Ban e Bors, você estaria destinado a se chamar Gwenbors.
Ficava mais fácil lembrar quem você era.

Tio Dap era o único da família a levar Lancelot a sério, e este, por sua vez, o único a tratar Tio
Dap com igual deferência. Era fácil não levar o velhote a sério, pois ele era aquele tipo peculiar de
criatura que se torna motivo de troça para os ignorantes — um genuíno mestre. Sua especialidade
de conhecimento era a cavalaria. Não havia uma peça de armadura provada na Europa sobre a qual
Tio Dap não tivesse uma teoria. Enfurecia-se com o novo estilo gótico, com suas arestas e feitio de
ostras e estrias. Considerava ridículo usar a armadura como os entrançados de um aparador
Nelson, pois parecia óbvio que cada sulco estaria propenso a segurar uma ponta. O único objetivo
de uma boa armadura, ele dizia, é rechaçar pontas — e, quando pensava nas pessoas na Alemanha
fazendo seus horríveis sulcos, quase ficava frenético. Não havia nada na Heráldica que ele não
soubesse. Se alguém cometesse qualquer um dos erros mais grosseiros — como sobrepor metal
com metal ou cor com cor —, ele se eletrizava de raiva. Seus compridos bigodes brancos tremiam
nas extremidades como antenas, as pontas de seus dedos se juntavam em gestos da mais veemente
cólera, e balançava os braços e dava pulinhos, mexia as sobrancelhas e parecia chiar. Ninguém
pode ser um mestre sem estar sujeito a esses destemperos, portanto Lancelot raras vezes se
preocupava quando recebia um tapa em um entrevero sobre escudos cortados a bouche ou se erauma boa idéia ou não ter uma correia suplementar no escudo. Às vezes Tio Dap cedia à tentação de
simplesmente bater nele, mas o jovem tampouco se importava com isso. Naqueles tempos, era
assim.

Uma razão para Lancelot não se importar com os arrebata-mentos de Tio Dap era o fato de saber


que o velho poderia lhe ensinar tudo o que ele queria aprender. Tio Dap não era apenas um
eminente escriturário e autoridade em seus próprios assuntos — era também um dos melhores
espadachins da França. Fora por isso, na verdade, que o jovem se colou a ele. A fim de talhar,
aparar e estocar sob a brutal orientação de um gênio — a fim de, em uma investida, agüentar uma
espada pesada com o braço esticado até sentir que se partiria ao meio, só para Tio Dap agarrar a
ponta e esticá-la ainda mais cruelmente.

Desde quando podia se lembrar, o exaltado velhinho sempre estivera ali, a seu lado, com os olhos
de um azul que lembrava o aço, dando seus pulos, estalando os dedos e gritando como se a própria
vida dependesse disso: Doubkz! Dédoubkz! Dêgagez! Un! Vieux!.

Um belo dia do último verão, Lancelot estava sentado no Arsenal com o tio. Na grande sala, uma
grande quantidade de pó dançava através dos raios de sol, pó que eles mesmos haviam levantado
momentos antes, e ao redor das paredes estavam as fileiras de armaduras polidas, e lanças, e elmos
e bacinetes pendurados em cabides de madeira. Havia adagas e armaduras, e várias bandeirolas e
pendões, com os brasões das armas de Ban. Os dois esgrimistas tinham se sentado para descansar
depois de um confronto excitante, e Tio Dap arfava. Lancelot estava agora com dezoito anos. Era
um esgrimista melhor que seu mestre — embora Tio Dap não o admitisse e seu discípulo,
taticamente, fingisse não ser.

Um pajem se aproximou enquanto eles ainda estavam ofegantes, e avisou a Lancelot que sua mãe o
estava chamando.

— Por quê?
O pajem respondeu que um cavaleiro desejava vê-lo, e a Rainha tinha dito que ele deveria vir
imediatamente.

A Rainha Elaine encontrava-se sentada em sua câmara, onde estivera fazendo tapeçaria, e seus dois
hóspedes também haviam se acomodado, um à sua direita, outro à esquerda. Ela não era uma das
Irmãs da Cornualha, que também se chamava Elaine. Esse era um nome popular naquela época e
muitas mulheres na "Morte d'Arthur", chamavam-se assim, especialmente porque algumas das
fontes dos manuscritos haviam se misturado. Os três adultos, sentados à mesa comprida, pareciam
formar uma banca de examinadores na sala escurecida. Um dos visitantes era um cavaleiro mais
velho, de barba branca e chapéu pontudo, e o outro, uma formosa mulher algo atrevida, com tez de
azeitona e sobrancelhas depiladas. Todos os três olharam para Lancelot, e o velho cavalheiro falou
primeiro.

— Hum!
Eles esperaram.
— Você o chamava de Galahad — disse o velho cavalheiro. E acrescentou: — Seu primeiro nome
era Galahad, e agora é Lancelot, depois que foi crismado.
— Como você sabia?
— Não posso evitar — disse Merlin. — É uma das coisas que a pessoa sabe e ponto final. Agora,
deixa-me ver, quais são as outras coisas que eu deveria lhe dizer?

A jovem dama de sobrancelhas depiladas levou a mão à boca e bocejou graciosamente, como um
gato.

— A esperança de seu coração se realizará daqui a trinta anos, e ele será o melhor cavaleiro do
mundo.
— Eu viverei para ver isso? — perguntou a Rainha Elaine. Merlin coçou a cabeça, deu um piparote
com os nós dos dedos no topo do seu chapéu e respondeu:
— Viverá.
— Ótimo — disse a Rainha. — Tudo isso é muito maravilhoso, devo dizer. Você escutou isso,
Lance? Você será o melhor cavaleiro do mundo!
O jovem perguntou:

— Vocês vieram da Corte do Rei Arthur?
— Sim.
— Está tudo bem?
— Sim. Ele lhe enviou seu apreço.
— O Rei está feliz?
— Muito feliz. Guenevere também enviou seu apreço.
— Quem é Guenevere?
— Valha-me senhor! — exclamou o mago. — Você não ficou sabendo? Não, claro que não. Parece
que tenho sinos badalando na cabeça em vez de miolos.
Nesse momento, olhou para a bela dama, como se ela fosse responsável pelos sinos — o que era de
fato. Era Nimue e, finalmente, Merlin havia se apaixonado por ela.

— Guenevere — disse Nimue — é a nova rainha de Arthur. Já estão casados há algum tempo.
— O pai dela é o Rei Leodegrance — explicou Merlin. — Quando se casaram, ele deu de presente
a Arthur uma mesa redonda, com cem cavaleiros. Na mesa há lugar para cento e cinqüenta.
Lancelot disse:

— Oh!
— O Rei pretendia lhe contar — disse Merlin. — Talvez o mensageiro tenha se afogado no
caminho até aqui. Pode ter sido atingido por alguma tempestade. Ele realmente queria lhe contar.
— Oh! — disse o jovem, pela segunda vez.
Merlin começou a falar rapidamente, pois percebeu que a situação era difícil. Pelo rosto do rapaz,
não poderia dizer se Lancelot estava magoado ou se era sempre assim.

— Até agora, ele só conseguiu preencher vinte e nove dos assentos — disse. — Há espaço para
mais vinte e um. Bastante espaço. Os nomes de todos os cavaleiros estão inscritos em ouro nos
assentos.

Houve uma pausa, durante a qual ninguém soube o que dizer. Então Lancelot limpou a garganta.

— Havia um rapaz — ele disse —, quando eu estava na Inglaterra. Seu nome era Gawaine. Ele foi
feito cavaleiro da Távola?
Merlin pareceu culpado e assentiu com a cabeça.

— Foi feito no dia em que Arthur se casou.
— Entendo.
Houve outra longa pausa.
Sentindo que era melhor preencher o silêncio, Merlin disse:
— Esta dama chama-se Nimue. Estou apaixonado por ela. Estamos numa espécie de lua-de-mel, só
que é uma lua-de-mel mágica, e agora devemos partir para a Cornualha. Lamento não poder ter
mais tempo para esta visita.
— Meu querido Merlin — exclamou a Rainha —, mas com certeza vocês pernoitarão aqui?
— Não, não. Obrigado. Agradecemos muito, mas estamos com pressa.
— Pelo menos tomarão alguma coisa antes de partir?
— Não, muito obrigado. É muito gentil de sua parte, mas realmente, devemos partir. Temos de
comparecer a uma magia na Cornualha,
— Uma visita tão breve... — começou a Rainha.
Merlin a interrompeu, levantando-se e tomando a mão de Nimue na sua.
— Agora, adeus — disse com determinação, e, depois de um par de giros, ambos desapareceram.
Seus corpos tinham sumido, mas a voz do mago continuou no ar.
— Pronto, está feito — eles puderam escutá-lo dizer em tom aliviado. — Agora, meu anjo, que tal
aquele lugar da Cornualha sobre o qual lhe falei, aquele com a caverna mágica?
Com passos lentos, Lancelot voltou para o Arsenal, ao encontro de Tio Dap. Parou em frente ao tio
e mordeu os lábios.


— Vou para a Inglaterra — disse.
Tio Dap olhou-o com espanto, mas não disse palavra. — Partirei esta noite.
— Parece muito repentino — falou rio Dap. — Em geral, sua mãe não decide as coisas tão
rapidamente.
— Minha mãe não sabe.
— Você quer dizer que vai fugir?
— Se eu contasse a minha mãe e meu pai, só provocaria um rebuliço — ele respondeu. — E não é
que eu esteja fugindo. Voltarei em algum momento. Mas tenho de ir para a Inglaterra o mais rápido
que puder.

— Você espera que eu não conte a sua mãe?
— Sim.
Tio Dap mordeu as pontas do bigode e torceu as mãos.
— Se eles souberem que eu poderia ter evitado isso, Ban cortará minha cabeça — disse.
— Eles não saberão — disse o rapaz, com indiferença, e saiu para arrumar sua bagagem.
Uma semana mais tarde, Lancelot e Tio Dap estavam sentados em um barco peculiar, no meio do
Canal Inglês. O barco tinha uma espécie de torre em cada ponta. Havia uma outra torre a meio do
único mastro, o que lhe dava a aparência de um pombal. Tinha bandeiras à popa e à proa. Uma
única e alegre vela ostentava uma cruz de Jerusalém, e uma enorme bandeirola flutuava no topo do
mastro. Havia oito remadores, e os dois passageiros estavam enjoados.


IV


O adorador de herói cavalgava em direção a Camelot com o coração amargurado. Era difícil para
ele, com dezoito anos, dar sua vida ao Rei só para ser esquecido; difícil ter passado todas aquelas
horas dolorosas com armas pesadas na poeira do Arsenal tão-somente para ver Sir Gawaine ser
feito cavaleiro primeiro; e, mais duro do que tudo, ter exigido o máximo de seu corpo pelo ideal do
homem mais velho só para descobrir, no final, que uma esposa afetada se intrometera entre eles e
arrebatara seu amor sem nenhum esforço. Lancelot tinha ciúmes de Guenevere e sentia-se
envergonhado por isso.

Tio Dap cavalgava em silêncio atrás do infeliz rapaz. Sabia de uma coisa que o outro ainda estava
muito verde para saber — que havia treinado o melhor cavaleiro da Europa. Como um chapim
excitado que criara um cuco, Tio Dap seguia alvoroçado atrás de seu prodígio. Levava a armadura
de combate, ordenadamente amarrada segundo seu método e artimanhas, pois, de agora em diante,
seria o escudeiro de Lancelot.

Chegaram a uma clareira na floresta, e um pequeno riacho corria pelo meio. Ali havia um vau, com
apenas alguns centímetros de profundidade, onde a corrente do riacho passava retinindo sobre
pedras claras. O sol brilhava na clareira. Alguns pombos selvagens arruinavam sonolentos, e, do
outro lado da água musical, via-se um gigantesco cavaleiro com armadura preta e elmo de torneio
em posição. Sentava-se imóvel sobre um cavalo preto, e seu escudo ainda estava na sacola de lona.
Era impossível ver seu brasão. Assim tão quieto, tão majestoso em seu revestimento de ferro, e
com seu grande elmo fechado sobre a cabeça de tal forma que não possuía um rosto próprio,
irradiava perigo em torno de si. Não se sabia o que ele estava pensando, nem que iniciativa
poderia tomar. Era uma ameaça.

Lancelot parou, e também Tio Dap. O cavaleiro negro atravessou a água rasa montado em seu
cavalo, e puxou as rédeas em frente a eles. Levantou a lança em um gesto de saudação, depois
apontou com ela para um lugar atrás de Lancelot. Poderia estar dizendo para ele voltar para casa,
ou então sinalizando uma boa posição a partir da qual poderiam começar suas investidas. Fosse
qual fosse o caso, Lancelot saudou-o com sua manopla e se virou para ir até o lugar indicado.
Recebeu de Tio Dap uma de suas lanças, puxou seu elmo de torneio para a frente — ele o
pendurara às costas com uma corrente — e colocou o torreão de aço em posição sobre a cabeça.
Amarrou-o. Agora também ele tornara-se um homem sem rosto.

Dos cantos opostos da pequena clareira, os dois cavaleiros encararam-se. Então, embora nenhum


deles até então tivesse dito sequer uma palavra, ajustaram as lanças, esporearam os cavalos, e
começaram a investida. Tio Dap, em segurança atrás de uma árvore próxima, mal conseguia conter
seu contentamento. Sabia o que estava prestes a acontecer ao cavaleiro negro, embora Lancelot não
soubesse, e começou a estalar os dedos.

A primeira vez que você faz alguma coisa, quase sempre é excitante. Voar sozinho em uma
aeronave pela primeira vez costuma ser tão excitante que chega quase a sufocar. Lancelot nunca
antes lutara uma justa para valer — e embora tivesse se arremetido contra centenas de estafermos e
milhares de argolas, nunca, realmente, tomara sua vida nas mãos. No primeiro momento da
investida, pensou consigo mesmo: "Bem, aqui estou eu. Nada pode me ajudar agora". No segundo
momento, começou a agir automaticamente, da mesma maneira como sempre agira com os
estafermos e as argolas.

A ponta de sua lança alcançou o cavaleiro negro por baixo da ombreira, exatamente no lugar certo.
Sua montaria estava em pleno galope, e a do cavaleiro negro, ainda a meio galope. O cavaleiro
negro e seu cavalo viraram rapidamente para o lado atacado, foram juntos para o ar em uma
interessante parábola, e caíram no chão com um estrondo. Enquanto Lancelot continuava
cavalgando para a frente, pôde vê-los se estatelando juntos no chão, a lança quebrada do cavaleiro
entre as pernas do cavalo e uma ferradura cintilante rasgando a lona do escudo caído. Homem e
cavalo se embolaram no solo. Cada um temia o outro e ambos se escoiceavam, no esforço de se
separarem. Então, o cavalo ergueu-se com as patas dianteiras, endireitou o traseiro, e o cavaleiro
sentou-se, levantando uma manopla de aço, como se fosse esfregar a cabeça. Lancelot puxou as
rédeas e se dirigiu a ele.

Em geral, quando um cavaleiro derruba o outro com a lança, o caído costuma enfurecer-se, culpar o
cavalo, e insistir em continuar a luta de pé, com espadas. A desculpa comum era: "O filho de uma
égua pode ter me deixado mal, mas a espada de meu pai jamais o fará".

O cavaleiro negro, entretanto, não procedeu de acordo com o esperado. Evidentemente, era um tipo
de pessoa bem mais jovial que a cor de sua armadura poderia sugerir, pois se sentou ereto,
soprando pelas frestas do elmo e soltando uma exclamação de surpresa e admiração. Então, tirou o
elmo e enxugou a testa. O escudo, cuja cobertura o casco do cavalo rasgara, era dourado,
ostentando um dragão rampante vermelho.

Lancelot jogou sua lança em uma moita, desceu do cavalo rapidamente e se ajoelhou ao lado do
cavaleiro. Todo o amor voltara a seu coração. Era típico de Arthur não perder seu humor, típico
dele sentar-se no chão a emitir sons de admiração quando acabava de ser derrubado em grande
estilo.

— Senhor — disse Lancelot, tirando seu próprio elmo com gesto humilde e inclinando a cabeça à
maneira francesa.
O Rei começou a se pôr de pé com esforço e grande excitação.

— Lancelot! — exclamou. — Ora, é o jovem Lancelot! O filho do Rei de Benwick. Lembro-me de
tê-lo visto quando seu pai veio para a Batalha de Bedegraine. Que queda! Nunca vi nada parecido.
Onde aprendeu esse golpe? Foi esplêndido! Você estava se dirigindo à minha Corte? Como vai o

Rei Ban? Como está sua encantadora mãe? Realmente, meu querido rapaz, isso é magnífico!

Lancelot olhou para o Rei ofegante, que estendia ambas as mãos para que ele o ajudasse a se
levantar, e seu ciúme e amargura desapareceram.

Montaram em seus cavalos e andaram a meio trote lado a lado em direção ao palácio, esquecendo-
se de Tio Dap. Tinham tanto a dizer um ao outro que ambos falaram o tempo todo. Lancelot deu
mensagens inventadas do Rei Ban e da Rainha Elaine, e Arthur contou como Gawaine matara uma
dama. Contou como o Rei Pellinore tinha ficado tão corajoso depois do matrimônio que matara, porengano, em um torneio, o Rei Lot das Órcades, e como a Távola Redonda estava indo tão bem
quanto seria possível, mas muito lentamente, e como, agora que Lancelot chegara, tudo daria certo
antes mesmo que se dessem conta.

Ele foi sagrado cavaleiro no primeiro dia — na verdade isto já poderia ter se dado a qualquer
momento nos últimos dois anos, mas Lancelot havia se recusado a ser sagrado por alguém que não
fosse Arthur — e foi apresentado a Guenevere na mesma noite. Há uma história que diz que o
cabelo dela era amarelo, mas isto não corresponde à verdade. Era tão preto que chegava a
surpreender, e seus olhos azuis, profundos e claros, tinham uma espécie de destemor que também
causava admiração. Ela ficou surpresa com a face torcida do rapaz, mas não se assustou.



Do outro lado da água musical via-se um gigantesco cavaleiro com armadura preta e elmo de
torneio em posição. Sentava-se imóvel sobre um cavalo preto. Assim tão quieto, tão majestoso
em seu revestimento de ferro, e com seu grande elmo fechado sobre a cabeça de tal forma que

não possuía um rosto próprio, irradiava perigo em torno de si.

— Vamos — disse o Rei, juntando as mãos dos dois. — Este é Lancelot, aquele sobre o qual lhe
falei. Será o melhor dos meus cavaleiros. Nunca vi uma queda como a que ele me deu. Quero que
você seja gentil com ele, Gwen. Seu pai é um dos meus velhos amigos.
Lancelot beijou a mão da Rainha friamente.

Não observou nada de especial nela, porque sua mente estava cheia com as imagens anteriores que
criara para si mesmo. Não havia espaço para as imagens do que ela realmente era. Pensava na
Rainha apenas como uma pessoa que o havia roubado, e como os ladrões são pessoas enganadoras,
ardilosas e sem coração, Lancelot achava que ela era assim.

— Como vai? — perguntou-lhe a Rainha. Arthur interrompeu:
— Temos que lhe contar o que aconteceu desde que foi embora. Quantas coisas para contar! Por
onde devemos começar?
— Comece com a Távola — disse Lancelot.
— Oh, meu Deus!
A Rainha riu e logo sorriu para o novo cavaleiro:
— Arthur pensa nela o tempo todo — disse. — Até sonha com ela à noite. Não será capaz de lhe
contar a menos que fale por toda a semana.
— Não está indo mal — disse o Rei. — Não se pode esperar que uma coisa como essa ande bem o
tempo todo. A idéia está aí, e as pessoas estão começando a entendê-la, e essa é a grande coisa.
Tenho certeza de que funcionará.
— E a facção das Órcades?
— No tempo certo, eles entrarão nos eixos.
— É por causa de Gawaine? — perguntou Lancelot. — Qual é o problema com a facção das
Órcades?
O Rei pareceu embaraçado. Disse:

— O verdadeiro problema é Morgause, a mãe deles. Ela os criou com tão pouco amor e segurança,
que eles acham difícil entender a existência de pessoas bondosas. São desconfiados e tímidos. Não
compreendem a idéia como eu gostaria que compreendessem. Três deles estão aqui: Gawaine,
Gaheris e Agravaine. Não é culpa deles.
— Arthur fez sua primeira festa de Pentecostes no ano em que nos casamos — explicou Guenevere
— e mandou que todos fossem em busca de boas aventuras para ver como a idéia funcionava.

Quando voltaram, Gawaine tinha cortado a cabeça de uma mulher, e mesmo o querido e velho
Pellinore não conseguiu salvar uma donzela em perigo. Arthur ficou furioso com isso.

— A culpa não foi de Gawaine — disse o Rei. — Ele é um bom rapaz. Gosto dele. A culpa é
daquela mulher.
— Espero que desde então as coisas tenham corrido melhor...?
— Sim. é um trabalho lento, claro, mas tenho certeza de que posso dizer que as coisas têm corrido
melhor.
— Pellinore arrependeu-se?
Arthur respondeu:
— Sim. Não havia muito do que se arrepender. Foi uma de suas confusões. Mas o problema é que
ele ficou tão valente depois que se casou com a filha da Rainha de Flandres, que se habituou a
justas a sério, e quase sempre vence. Eu lhe contei como ele matou o Rei Lot um dia, quandoestavam treinando. Isso criou uma grande animosidade. Os rapazes das Órcades juraram vingar a
morte do pai, e estão em pé de guerra pelo sangue do velho Pellinore. Estou tendo muita
dificuldade para fazê-los se comportar.
— Lancelot vai ajudá-lo — disse a Rainha. — Será muito bom ter um velho amigo com quem
contar.
— Sim, será ótimo. Agora, Lance, imagino que gostará de ver seu quarto.
Estavam na segunda metade do verão e, em Camelot, os falcoeiros amadores traziam seus falcões
peregrinos para a última etapa de treino. Se você for um falcoeiro inteligente, seu falcão
rapidamente fica pronto para voar. Se não for, está sujeito a cometer erros, e o resultado é que
atrasará o treinamento de seu falcão. Assim, todos os falcoeiros em Camelot estavam tentando
mostrar que eram inteligentes, iniciando seus falcões o mais rápido possível, e se você fosse dar
um passeio, por todas as direções encontraria donos de falcão irascíveis, estendendo suas
avessadas e discutindo com seus assistentes. A falcoaria, como James observara, é uma atiçadora
de paixões extremas. Isso porque os próprios falcões são criaturas temperamentais e contagiam as
pessoas que lidam com eles.

Arthur presenteou Sir Lancelot com um gerifalte semi-engaiolado, para que se divertisse. Era uma
grande honra, pois os gerifaltes supostamente deveriam ser usados apenas pelos reis. De qualquer
maneira, isso é o que nos diz a Abadessa Juliana Berner{14} — talvez incorretamente. A um
imperador, concedia-se uma águia, um rei poderia ter um gerifalte e, depois, havia o peregrino para
um duque, o esmerilhão para uma dama, o açor para um senhor-rural, o gavião para um padre, e o
gavião-pomba para um sacristão. Lancelot ficou feliz com o presente e, imediatamente, entrou na
competição com os outros irritados falcoeiros, que trabalhavam duro e criticavam um o método do
outro, trocando mensagens de veneno açucarado entre si e ficando com os olhos cada vez mais
febris.

O gerifalte que Lancelot ganhou não passara adequadamente por sua troca de penas. Como Hamlet,
era gordo e de pouco fôlego. Sua longa reclusão nas gaiolas, enquanto mudava as penas, deixara-o


em um estado soturno e temperamental. Assim, Lancelot teve que fazê-lo voar com avessada por
vários dias, antes de ter certeza que estava pronto para a isca.

Se você alguma vez já fez um falcão voar com avessada, que é uma corda fina e comprida presa às
argolas do pássaro para que ele não possa fugir, sabe como isso pode ser um aborrecimento.
Atualmente, as pessoas usam um molinete de pesca, que torna mais fácil soltar ou enrolar a linha —
mas na época de Lancelot não havia bons molinetes, e você tinha simplesmente que enrolar a
avessada em um novelo, como um barbante. Isso estava sujeito a dois terríveis pesadelos, o
primeiro era o horror peculiar a todos os novelos — quando eles invariavelmente tornam-se um
emaranhado em vez de novelo. O segundo era que, ao soltar o falcão em um campo que não tivesse
sido cuidadosamente roçado, a corda podia se enrolar em cardos ou tufos de grama, refreando o
falcão e prejudicando o treino. Assim, Lancelot e todos os outros homens coléricos andavam por
Camelot numa atmosfera azedada por nós, competição e falcões emaranhados.

O Rei Arthur pedira a sua esposa que fosse gentil com o rapaz. Ela gostava muito do esposo e tinha
compreendido que se interpusera entre ele e o amigo. Não era tola para tentar se desculpar com
Lancelot por isso, mas tinha simpatizado com o jovem, por si mesmo. Gastou de seu rosto
imperfeito, por mais feio que fosse, e Arthur havia lhe pedido para ser gentil. Faltavam assistentes
em Camelot para os falcoeiros, porque havia gente demais praticando a falcoaria. Assim
Guenevere começou a acompanhar Lancelot para auxiliá-lo com os novelos de corda.

Ele não reparava muito nela. "Aí vem aquela mulher", dizia a si mesmo, ou "Lá vai aquela mulher",
já estava profundamente mergulhado na atmosfera da falcoaria, que só parcialmente era assunto
para mulheres, e raras vezes pensava na Rainha mais do que o necessário. Apesar de sua feiúra,
Lancelot havia crescido encantadoramente cortês, e tinha demasiada consciência de si mesmo para
se permitir ter pensamentos mesquinhos por muito tempo. Seu ciúme fizera-o indiferente à presença
dela. Continuou amestrando seu falcão, agradecendo a ela com cortesia pela ajuda e aceitando-a
polidamente.

Um dia, aconteceu uma complicação particular com um cardo, e ele havia calculado mal a
quantidade de comida que deveria ter lhe dado no dia anterior. O gerifalte estava de péssimo
humor, e Lancelot deixou-se contagiar por esse estado de espírito. Guenevere, que não era
particularmente boa com falcões e não tinha interesse especial por eles, assustou-se com seu cenho
carregado e, porque estava assustada, tornou-se desajeitada. Tentava delicadamente ajudar da
melhor maneira possível, mas sabia que não era muito boa na falcoaria e estava confusa. Com
muito cuidado e gentileza, e com a melhor das intenções, enrolou a corda de maneira
completamente errada. Com um gesto quase rude, Lancelot puxou o deplorável novelo de suas
mãos.

— Está horrível — disse ele, e, com os dedos irritados, começou a desfazer o bem-intencionado
trabalho dela. As sobrancelhas do cavaleiro franziram-se numa carranca horrível.
Por um momento, tudo ficou quieto. Guenevere parou, com o coração ferido, Lancelot, sentindo sua
imobilidade, parou também. O falcão deixou de se debater e as folhas não farfalharam.

O jovem compreendeu, nesse momento, que havia ferido uma pessoa de verdade, de sua mesma


idade. Viu em seus olhos que ela o considerava odioso, e que ele a surpreendera muito
negativamente. Ela tinha sido amável, e ele retribuíra com indelicadeza. E o mais importante é que
ela era realmente uma pessoa. Não era atrevida, nem mentirosa, nem desdenhosa e sem coração.
Era a linda Jenny, capaz de pensar e sentir.



V


As duas primeiras pessoas a notarem que Lancelot e Guenevere estavam se apaixonando um pelo
outro foi Tio Dap e o próprio Rei Arthur. Arthur fora avisado sobre isso por Merlin — que agora
estava bem trancado em sua caverna pela volúvel Nimue — e, inconscientemente, temia-o. Mas,
como ele sempre odiou saber o futuro, tinha conseguido afastar aquilo da cabeça. A reação de Tio
Dap foi pregar um sermão a seu discípulo, enquanto estavam nas gaiolas com o gerifalte castigado.

— Pelos Pés de Deus! — disse Tio Dap, com outras exclamações do gênero. — O que é isso? O
que você está fazendo? Será que o melhor cavaleiro da Europa vai jogar fora tudo que lhe ensinei,
pelos lindos olhos de uma dama? Além do mais, uma dama casada!
— Não sei sobre o que você está falando.
— Não sabe! Não quer saber! Mãe Santíssima! — gritou Tio Dap. — É de Guenevere que estou
falando, ou não é? Glória a Deus para todo o sempre!
Lancelot pegou o velho cavaleiro pelos ombros e o sentou em um banco.

— Olhe, tio — disse com determinação. — Ando querendo falar com você. Já não é hora de voltar
para Benwick?
— Benwick! — exclamou seu tio, como se tivesse sido apunhalado no coração.
— Sim, Benwick. Você não pode continuar fingindo ser meu escudeiro para sempre. Primeiro,
porque você é irmão de dois reis, e segundo, é três vezes mais velho do que eu. Seria contra as leis
das armas.
— Leis das armas! — gritou o velho. — Puuufff!
— Bem, não adianta nada dizer puuufff.
— E eu que ensinei tudo o que você sabe! Eu, voltar para Benwick sem tê-lo visto realmente postoà prova! Pois até agora você ainda sequer usou sua espada na minha presença, não usou Foyeux! Éingratidão, perfídia, traição! É dor de levar ao túmulo! Por minha fé! Pelos céus!
E o transtornado velho explodiu em uma longa torrente de exclamações gaulesas, incluindo Per
Spkndorem Dei, a assim chamada praga de Guilherme, o Conquistador, e a Pasque Dieu, que era a
idéia que o imaginário Rei Luís XI tinha de piada. Inspirado pelo encadeamento real de
pensamento, acrescentou as exclamações de Rufus, Henrique I, John, e Henrique III, que eram,


nessa ordem, Pela Santa Face de Lucas, Pela Morte do Senhor, Pelos Dentes de Deus, e Pela
Cabeça de Deus. O gerifalte, parecendo apreciar a exibição, agitou as penas com entusiasmo, como
uma faxineira sacudindo um pano de pó na janela.

— Bem, se você não quer ir, não vá — disse Lancelot. — Mas por favor não me fale da Rainha.
Não posso evitar se gostamos um do outro, e não há nada de errado em gostar das pessoas, há? Não
é como se a Rainha e eu fôssemos vilões. Quando começa a me fazer sermões sobre ela, você faz
com que pareça que há alguma coisa de errado entre nós. É como se pensasse mal de mim, ou não
acreditas em minha honra. Por favor, não mencione esse assunto outra vez.
Tio Dap revirou os olhos, desalinhou os cabelos, estalou os nós dos dedos, beijou as pontas dos
dedos, e fez outros gestos calculados para expressar seu ponto de vista. Mas não voltou a tocar
naquele caso de amor.

A reação de Arthur ao problema foi complicada. O aviso de Merlin sobre sua esposa e seu melhor
amigo continha em si as sementes de sua própria contradição, pois um amigo dificilmente pode ser
um amigo se também vai se tornar um traidor. Arthur adorava sua Guenevere de pétalas de rosas
por sua irnpetuosidade, e tinha um respeito instintivo por Lancelot, que logo se transformara em
afeição. Isso tornava difícil tanto suspeitar deles como não suspeitar.

A conclusão a que chegou foi que seria melhor resolver o problema levando Lancelot com ele para
a guerra Romana. Isso, de qualquer modo, afastaria o rapaz de Guenevere, e seria agradável ter ao
lado seu discípulo — um excelente soldado —, fosse o aviso de Merlin verdadeiro ou não.

A guerra Romana era uma questão complicada, que estivera fermentando durante anos. Não
precisamos nos preocupar muito com ela. Foi, à sua maneira, a conseqüência lógica de Bedegraine

— a continuação daquela batalha em escala européia. A idéia feudal da guerra para resgates fora
esmagada na Inglaterra, mas não no exterior, e agora os caçadores estrangeiros de resgate estavam
atrás do Rei recém-estabelecido. Um nobre chamado Lucius, que era o Ditador de Roma — e é
estranho pensar que Ditador é exatamente a palavra usada por Malory —, tinha enviado uma
embaixada para pedir tributo a Arthur — era chamado de tributo antes da batalha e de resgate
depois —, à qual o Rei, depois de consultar seu parlamento, respondeu que nenhum tributo era
devido. Assim, o Ditador Lucius declarou a guerra. Ele também enviou mensageiros, como Lars
Porsena a Macaulay, a todas as direções em volta, para reunir aliados. Tinha não menos do que
dezesseis reis marchando com ele de Roma à Alta Germânia, em seu caminho para a batalha com aInglaterra. Tinha aliados de Ambage, Arras, Alexandria, índia, Hermonie, Eufrates, África, Europa
a Grande, Eritréia, Elamic, Arábia, Egito, Damasco, Damiete, Cairo, Capadócia, Tarso, Turquia,
Ponto, Pampoille, Síria e Galácia, além de outros da Grécia, Chipre, Macedônia, Calábria,
Catalunha, Portugal, e muitos milhares de espanhóis.
Durante as primeiras semanas da paixão de Lancelot por Guenevere, chegou o momento de Arthur
atravessar o Canal para encontrar seus inimigos na França — e foi para essa guerra que decidiu
levar com ele o rapaz. Lancelot, nessa época, ainda não era, claro, reconhecido como o principal
cavaleiro da Távola Redonda, ou teria sido levado de qualquer forma. Até esse momento de sua
vida, só havia lutado uma justa com o próprio Arthur, e o comandante reconhecido dos cavaleiros
era Gawaine.


Lancelot ficou zangado por ter sido afastado de Guenevere, porque sentiu que isso implicava falta
de confiança. Alem do mais, sabia que Sir Tristão fora deixado com a esposa do Rei Mark da
Cornualha em ocasião semelhante. Não entendia por que não fora, da mesma maneira, deixado com
Guenevere.

Não é preciso entrar em todos os pormenores da história da campanha Romana, embora tenha
durado vários anos. Foi o tipo comum de guerra, com muitos encontrões e gritos de ambos os lados,
grandes golpes infligidos, muitos homens derrubados, e grandes valentias, proezas e feitos de
armas exibidos todos os dias. Foi uma Bedegraine maior — com a mesma recusa de Arthur a
considerá-la um esporte ou negócio comercial —, embora tivesse seus traços característicos. O
Ruivo Gawaine perdeu a cabeça quando enviado em uma embaixada e matou um homem no meio
das negociações. Sir Lancelot liderou uma batalha terrível na qual seus homens eram menos
numerosos, na proporção de três para um. Ele matou o Rei Lily e três grandes nobres chamados
Alakuke, Herawd e Heringdale. Durante a campanha três famosos gigantes foram abatidos — dois
deles pelo próprio Arthur. Finalmente, na última batalha, Arthur desferiu no Imperador Lucius um
tal golpe na cabeça que Excalibur não se deteve até chegar-lhe ao peito, e se verificou que o Sultão
da Síria, o Rei do Egito e o Rei da Etiópia — um ancestral de Haylé Selassíe —, além de
dezessete outros reis de várias regiões e sessenta senadores de Roma, estavam entre os mortos.
Arthur colocou seus corpos em caixões suntuosos — não por sarcasmo — e os enviou ao Prefeito
de Roma, em lugar do tributo que lhe tora exigido. Isso persuadiu o Prefeito e quase toda a Europa
a aceita-lo como o grande suserano. Os territórios de Placência, Pávia, São Pedro, e o porto de
Tremble, lhe prestaram homenagem. A convenção feudal para a guerra fora efetivamente rompida,
tanto no Continente quanto na Inglaterra.

Durante a campanha de guerra, Arthur tornou-se verdadeiramente amigo de Lancelot e, quando
voltaram para casa, já não acreditava, de jeito nenhum, na profecia de Merlin. Abandonara-a no
fundo de sua mente. Lancelot foi reconhecido como o melhor dos combatentes de todo o exército.
Ambos estavam determinados a não deixar Guenevere se interpor entre eles, e os primeiros anos
transcorreram sem problemas.


VI


A essa altura, que tipo de idéia as pessoas faziam de Sir Lancelot? Talvez só pensassem nele como
um jovem feio e bom nos jogos. No entanto, ele era mais do que isso. Era um cavaleiro com um
respeito medieval pela honra.

Há uma frase que você às vezes encontra, ainda hoje, nos distritos rurais, e resume em boa parte o
que poderia ser dito dele. Como elogio ou cumprimento, os camponeses tia Irlanda dizem: "Fulano
de Tal tem Palavra. Fará o que prometeu".

Lancelot procurava ter Palavra. Considerava-a, como as pessoas do campo ainda consideram, o
mais valioso dos bens.

Mas o curioso era que, por baixo dessa viga-mestra de cumprir o prometido a si mesmo e aos
outros, a sua era uma natureza contraditória que estava longe de ser santa. Sua Palavra era valiosapara si mesmo não apenas porque ele era bom, mas também porque era mau. É uma pessoa má que
precisa ter princípios para refreá-la. Para começar, ele gostava de ferir as pessoas. Era pela
estranha razão de ser cruel que o infeliz nunca matava um homem que pedia misericórdia, nem
cometia uma ação cruel que podia evitar. Uma das razoes pelas quais se apaixonou por Guenevere
foi porque primeiro a magoara. Talvez nunca a tivesse notado como pessoa, se não tivesse visto a
dor nos olhos dela.

As pessoas têm motivos bizarros para tornar-se santos. Um homem, que não fosse atormentado peia
ambição de ser digno, poderia simplesmente ter fugido com a esposa de seu herói e, então, talvez, a
tragédia de Arthur nunca tivesse acontecido. Um sujeito comum, que não passasse metade de sua
vida se torturando para tentar descobrir o que era certo, a fim de conter sua inclinação para o mal,
poderia ter cortado o nó que trouxe a desgraça a todos eles.

Quando os dois amigos chegaram à Inglaterra, vindos da guerra Romana, a frota ancorou em
Sandwich. Era um dia cinzento de setembro, as borboletas azuis e cor de cobre esvoaçavam na
relva de outono, as perdizes gritavam como grilos, as amoras pretas ganhavam cor, e as avelãs
ainda criavam suas castanhas insípidas em berços de rama de algodão. A Rainha Guenevere estava
na praia, esperando-os, e a primeira coisa que Lancelot percebeu, depois que ela beijou o Rei, foi
que aquela mulher seria capaz de se interpor entre eles, afinal. Fez um movimento como se suas
entranhas estivessem se amarrando em nós, cumprimentou a Rainha, e imediatamente foi para a
cama na estalagem mais próxima, onde passou acordado a noite toda. De manhã, pediu licença para


se afastar da Corte.

— Mas você praticamente nem esteve na Corte — disse Arthur. — Por que quer partir tão cedo?
— Tenho de partir.
— Tem de partir? — perguntou o Rei. — O que quer dizer com isso?
Lancelot apertou os punhos até os nós dos dedos aparecerem e disse:
— Quero partir em uma busca. Quero encontrar uma aventura.
— Mas, Lance...
— É para isso que a Távola Redonda existe, não é? — o jovem exclamou. — Os cavaleiros devem
sair em buscas, para lutar contra a Força, não devem? Por que você está tentando me deter? Este é
o ponto principal da idéia.
— Ora, vamos — disse o Rei. — Não precisa se irritar por isso. Se é isso o que deseja, é claro
que pode fazer o que quiser. Só pensei que seria ótimo ter você conosco por algum tempo. Não se
aborreça, Lance. Não sei o que deu em você.
— Volte logo — disse a Rainha.

VII


Este foi o começo das famosas buscas. Elas não foram feitas para conquistar fama, nem por
diversão. Foram uma tentativa de fugir de Guenevere. Foram sua luta para salvar a honra, não para
afirmá-la.

Teremos que descrever uma dessas buscas em detalhes — para mostrar como ele tentava pensar em
outra coisa, e o modo como essa sua famosa honra funcionava. Isso também dará uma imagem da
situação da Inglaterra que forçava o Rei Arthur a trabalhar por sua teoria de justiça. Não que Arthur
fosse um pedante, mas seu país de Gramarye estava em tal estado de anarquia nos primeiros
tempos, que era necessário uma idéia como a da Távola Redonda para que a região sobrevivesse.
As guerras de pessoas como Lot tinham acabado, mas não o baronato insubmisso que vivia como
gângsteres em seus territórios. Barões estavam arrancando dentes de judeus para tomar-lhes o
dinheiro, ou assando os bispos que os contradiziam. Os servos feudais, que pertenciam a senhores
ruins, estavam sendo regados com gordura em fogo lento, ou borrifados com chumbo derretido, ou
empatados, ou abandonados para morrer com os olhos arrancados, ou estavam se arrastando pelos
caminhos nas mãos e nos joelhos porque tinham sido jarretados. Pequenas hostilidades
transformavam-se em destruição dos pobres e fracos, e, se um cavaleiro chegasse a ser derrubado
do cavalo em uma batalha, estaria tão bem aparafusado que só um especialista poderia lhe fazer
algum mal. Philip Augustus da França, por exemplo, foi derrubado e cercado na lendária Batalha de
Bouvines; no entanto, como a infeliz infantaria era completamente incapaz de perfurá-lo, foi salvo
logo depois e continuou a lutar ainda melhor porque se irritara. Mas a história da primeira busca de
Lancelot pode falar, como exemplo, sobre aqueles conturbados tempos da Força.

Havia dois cavaleiros nas fronteiras de Gales chamados Sir Carados e Sir Turquine. Eram de
ascendência celta. Esses dois barões conservadores nunca tinham se rendido a Arthur, e não
acreditavam em nenhuma forma de governo exceto na lei da Força. Possuíam castelos poderosos e
servidores cruéis que, sob a liderança deles, tinham mais oportunidades para maldades do que
teriam em uma sociedade organizada. Eram como águias, prontos para caírem sobre seus
semelhantes mais fracos. Mas é injusto compará-los a águias, pois muitas dessas aves são criaturas
nobres, enquanto Sir Turquine em nenhuma circunstância era nobre. Se vivesse agora é bem
possível que fosse internado em um hospício, e seus amigos certamente insistiriam para que fosse
psicanalisado.

Um dia, quando Sir Lancelot estivera cavalgando havia quase um mês em sua aventura — e todo o


tempo se distanciando mais de onde queria estar, de maneira que cada passo dado por seu cavalo
era um tormento —, surgiu um cavaleira com armadura, cavalgando uma grande égua, com outro
cavaleiro amarrado e jogado de través na sela. O cavaleiro amarrado estava desmaiado. Sangrava
e estava todo sujo de lama, e sua cabeça, que pendia de um lado da égua, tinha os cabelos ruivos. O
cavaleiro montado que o havia capturado homem de estatura enorme, e Lancelot reconheceu-o pelo
brasão como Sir Carados.

— Quem é o seu prisioneiro?
O enorme cavaleiro levantem o escudo do prisioneiro, que estava pendurado atrás, e mostrou que
era dourado, as divisas em vermelha, entre três cardos verdes.

— O que você está fazendo com Sir Gawaine?
— Não é da sua conta — respondeu Sir Carados.
Gawaine deve ter recobrado a consciência quando a égua parou, pois sua voz agora dizia, vindo de
baixo para cima:

— Homem, é mesmo você, Sir Lancelot?
— Ora, vivas, Gawaine. Como vai a coisa?
-— Nunca tão dura — respondeu Sir Gawaine —, a menos que possats me ajudar, pois, caso
contrário, não conheço outro cavaleiro que possa.
Ele estava falando formalmente na Alta Língua da Cavalaria, pois naquele tempo havia dois tipos

de discurso como o alto e o baixo alemão ou o francês normando e o inglês saxão.
Lancelot olhou para Sir Carados e disse em vernáculo:

— Que tal colocar esse sujeito no chão e lutar comigo no lugar dele?
— Você é um tolo —-disse Sir Carados. — Receberá o mesmo tratamento.
Então, os dois puseram Gawaine no chão, ainda amarrado para não fugir, e se prepararam para a
batalha. Sir Carados tinha um escudeiro para lhe passar a lança, mas Sir Lancelot havia insistido
para to Dap ficar em casa. Teria que se bastar sozinho.

O combate foi diferente daquele com Arthur. Para começar, os cavaleiros estavam mais em
igualdade e, no enfrentamento, nenhum deles foi desmontado. Estilhaçaram suas lanças de freixo,
mas ambos se mantiveram montados e os cavalos agüentaram o golpe. Na esgrima que se seguiu,
Lancelot provou que era melhor. Depois de pouco mais de uma hora de combate, conseguiu aplicar
um golpe tal no elmo de Sir Carados que quebrou sua caixa craniana — e, então, enquanto o morto
ainda se balançava na sela, agarrou-o pelo pescoço, puxou-o para baixo das patas do cavalo,
desmontou-se no mesmo instante, e cortou sua cabeça. Libertou Sir Gawaine, que lhe agradeceu
calorosamente, e saiu outra vez cavalgando pelos ermos caminhos da Inglaterra, sem pensar em
Carados outra vez. Deu de encontro com um jovem primo seu, Sir Lionel, e cavalgaram os dois em
busca de erros para corrigir. Mas foi imprudência deles esquecer Sir Carados.

Um dia, quando já haviam cavalgado muito tempo, chegaram a uma floresta em um meio-dia


abafado, e Lancelot estava tão extenuado por sua luta interior por causa da Rainha, e também pelo
calor, que sentiu que precisava parar. Lionel também se sentia sono-lento, portanto decidiram
deitar debaixo de uma macieira perto de uma sebe, depois de amarrar os cavalos nos ramos.
Lancelot imediatamente caiu no sono — mas o zumbido das moscas manteve Sir Lionel acordado e,
enquanto ele assim permanecia, uma cena curiosa começou a se desenrolar perto dali.

Tratava-se de três cavaleiros completamente armados, galopando em fuga, perseguidos por um
único cavaleiro. Os cascos dos cavalos trovejavam batendo no solo e o fazia tremer — motivo
pelo qual era estranho Lancelot não ter acordado -—, até que, uma por uma, o gigantesco
perseguidor alcançou suas vítimas, derrubou-as, e as amarrou como prisioneiras.

Lionel era um rapaz ambicioso. Pensou que poderia roubar um ponto de seu famoso primo.
Levantou-se silenciosamente, endireitou a armadura e partiu para desafiar o vitorioso. Em menos
de um minuto, ele também estava derrubado no chão, tão amarrado que não podia se mover, e, antes
que Lancelot despertasse, todo o préstito tinha desaparecido. O misterioso vencedor das quatro
batalhas era Sir Turquine, irmão do Carados que Lancelot matara recentemente. Tinha o hábito de
levar os prisioneiros para seu sombrio castelo onde lhes tirava todas as roupas e os espancava até
se sentir satisfeito, como se fosse um hobby.

Lancelot ainda estava dormindo quando um novo cortejo se aproximou, saltitante. No meio, havia
um dossel de seda verde apoiado em quatro lanças levadas por quatro cavaleiros magnificamente
trajados. Sob o dossel cavalgavam quatro rainhas de meia-idade em mulas brancas, de aparência
pitoresca. Elas estavam passando pela macieira quando o cavalo de Lancelot soltou um relincho
estridente.

A Rainha Morgana Le Fay, que era a mais velha das quatro — todas bruxas —, parou o cortejo e,
em seu cavalo, aproximou-se de Lancelot. Ele parecia perigoso, deitado ali com armadura
completa de guerra, entre a erva alta.

— É Sir Lancelot!
Nada viaja mais rápido que um escândalo, especialmente entre pessoas sobrenaturais. Assim, as
quatro rainhas sabiam que ele estava apaixonado por Guenevere. Sabiam também que ele já era
reconhecido como o cavaleiro mais forte do mundo. Tinham inveja de Guenevere por causa disso.
Ficaram encantadas com a oportunidade que viam à sua frente. Começaram a discutir entre si sobre
qual delas deveria tê-lo, com sua magia.

— Não precisamos brigar — disse Morgana Le Fay. — Farei um encantamento para que ele durma
por mais seis horas. Quando o tivermos seguro em meu castelo, ele poderá escolher por si mesmo
com quai de nós quer ficar.
Assim foi feito. O campeão adormecido foi levado em seu escudo, carregado por dois cavaleiros,
até o Castelo Chariot. O castelo já não tinha a aparência ilusória de um castelo de contos-de-fadas,
mas um aspecto normal de fortaleza comum. Ele foi colocado profundamente adormecido em um
quarto frio, sem nada, e ali deixado até o encantamento passar.


Quando Lancelot acordou, não soube onde estava. O quarto era escuro e parecia ser feito de pedra,
como uma masmorra, Ficou deitado, imaginando o que aconteceria a seguir. Depois, começou a
pensar na Rainha Guenevere.

O que aconteceu a seguir foi que apareceu uma jovem com seu jantar e lhe perguntou como estava.

— Como está, Sir Lancelot?
— Não sei, bela donzela. Não sei como vim parar aqui, portanto não sei realmente como estou.
— Não precisa ter medo — ela disse. — Se você é um homem tão magnífico, como dizem que é,
talvez eu possa ajudá-lo amanhã de manhã.
— Obrigado. E possa ou não me ajudar, gostaria que você pensasse bem de mim.
E assim a donzela foi embora.

De manhã, houve barulho de ferrolhos e ranger de fechaduras enferrujadas e vários guardas com
cotas de malha entraram na masmorra. Alinharam-se em ambos os lados da porta e as rainhas
mágicas entraram atrás deles, todas vestidas com suas melhores roupas. Cada uma delas fez uma
cortesia majestosa para Sir Lancelot. Ele permaneceu de pé, educadamente, e se inclinou de modo
circunspecto diante de cada rainha. Morgana Le Fay apresentou-as como a Rainha de Gore,
Northgalis, Eastland e das Ilhas Exteriores.

— Quanto a nós — disse Morgana Le Fay —, sabemos quem você é. Você é Sir Lancelot Dulac, e
está tendo um caso de amor com a Rainha Guenevere. E considerado o melhor cavaleiro do mundo,
e é por isso que a mulher gosta de você. Bom, tudo isso acabou agora. Nós quatro rainhas temos
você em nosso poder, e agora você terá de escolher uma de nós para sua amante. Obviamente, não
seria bom se não pudesse escolher por si mesmo, mas terá de ser uma de nós. Qual será? Lancelot
respondeu:
— Como posso responder a isso?
— Terá de responder.
— Em primeiro lugar — de disse —, o que você falou sobre mim e a esposa do Rei da Bretanha
não é verdadeiro. Guenevere é a dama mais fiel no reino de seu senhor. Se eu estivesse livre, ou
tivesse minha armadura, lutaria contra qualquer campeão que vocês quisessem para provar o que
disse. E, em segundo lugar, eu com certeza não terei nenhuma de vocês como amante. Lamento se
parecer uma descortesia, mas é tudo que posso dizer.
— Oh! — disse Morgana Le Fay.
— Sim — disse Lancelot.
— Isto é tudo?
— Sim.
Com gélida dignidade, as quatro rainhas fizeram uma mesura e saíram do quarto. As sentinelas
deram uma elegante meia-volta, suas cotas de malha retinindo no chão de pedra. A luz desapareceu.
A porta bateu, a chave rangeu, e os ferrolhos ressoaram nos encaixes.


Quando a bela donzela voltou com a refeição seguinte, mostrou sinais de querer falar com ele.
Lancelot notou que ela era uma criatura audaciosa, que provavelmente gostava de fazer as coisas a
sua maneira.

— Você disse que talvez pudesse me ajudar?
A jovem olhou-o com desconfiança e respondeu:
— Posso ajudá-lo se você for quem dizem que é. Você é realmente Sir Lancelot?
— Receio que sim.
— Eu o ajudarei, se você me ajudar — ela disse. E então irrompeu em lágrimas.
Enquanto a donzela está chorando, o que fazia de maneira encantadora e determinada, é melhor
explicarmos como eram os torneios que costumavam acontecer em Gramarye nos primeiros tempos.
Um verdadeiro torneio era diferente de uma justa. Em uma justa, os cavaleiros se enfrentavam e
esgrimiam um contra o outro, sozinhos, por um prêmio. Um torneio, porém, era mais como uma luta.
Um grupo de cavaleiros escolhia o lado, e seriam vinte ou trinta de cada lado e então se
precipitavam todos ao mesmo tempo, desordenadamente. Esses combates coletivos eram
considerados importantes — por exemplo, se você tivesse pago sua taxa de campo para o torneio,
com o mesmo bilhete seria admitido para as justas, mas se tivesse pago só a taxa da justa, não lhe
seria permitido lutar no torneio. Estava-se sujeito a ser ferido gravemente nessas confusões. Não
eram de todo más, desde que fossem adequadamente controladas. Infelizmente, nos primeiros
tempos, raramente elas eram controladas.

A Alegre Inglaterra do tempo de Pendragon era um pouco como a Pobre Velha Irlanda de
O'Connell{15}. Havia facções. Os cavaleiros de um condado, ou os habitantes de um distrito, ou os
guardas de um nobre, poderiam chegar a odiar a facção vizinha. Esse ódio poderia se transformar
em hostilidades, e então o rei ou líder de um lugar desafiaria o líder do outro para um torneio — e
as duas facções iriam para o encontro com a firme intenção de fazer mal uma à outra. Era a mesma
coisa nos tempos dos papistas e protestantes, dos Stuart e orangístas, que se enfrentavam com
clavas em punho e morte no coração.

— Por que você está chorando? — perguntou Sir Lancelot.
— Oh, meu Deus — soluçou a donzela. — Aquele horrível Rei de Northgalis desafiou meu pai
para um torneio na próxima terça, e ele está com três cavaleiros do Rei Arthur do seu lado, e meu
pobre pai com certeza vai perder. Temo que fique ferido.
— Entendo. E como se chama seu pai?
— Ele é o Rei Bagdemagus.
Sir Lancelot levantou-se e a beijou polidamente na testa. Compreendeu imediatamente o que ela
esperava dele.

— Muito bem — disse. — Se você me tirar desta prisão, combaterei na facção do Rei Bagdemagus
na próxima terça.

— Ah, muito obrigada — disse a donzela, torcendo o lenço. — Agora tenho que ir ou darão por
minha falta lá em baixo.
Naturalmente, ela não ia ajudar a Rainha mágica de Northgalis a manter Lancelot prisioneiro,
quando o próprio Rei de Northgalis era quem lutaria contra o seu pai.

De manhã, antes que o povo do castelo se levantasse, Lancelot escutou a pesada porta se abrindo
com cuidado. Sentiu uma mão macia na sua, e foi conduzido pela escuridão. Passaram por doze
portas mágicas, até chegarem ao arsenal, e lá estava sua armadura brilhando e pronta. Depois de
colocá-la, foram para os estábulos, e lá estava seu cavalo riscando as pedras do chão com a
ferradura cintilante.

— Lembre-se.
— Claro — ele disse. E cavalgou pela ponte levadiça, rumo à luz da manhã.
Enquanto passavam sorrateiramente pelos corredores do Castelo Chariot, fizeram um plano para
encontrar o Rei Bagdemagus. Lancelot deveria cavalgar até uma abadia de frades carmelitas
próximo dali, e lã se encontraria com a donzela que, é claro, seria obrigada a fugir da Rainha
Morgana por sua traição ao ajudá-lo a escapar. Nessa abadia, esperariam até que o Rei
Bagdemagus pudesse aparecer, e então combinariam como seria õ torneio. Infelizmente, o Castelo
Chariot estava na Floresta Sauvage, e Lancelot perdeu-se no caminho para a abadia. Ele e seu
cavalo vagaram durante todo o dia, chocando-se contra galhos, emaranhando-se nas moitas de
amora silvestre, e perdendo rapidamente o humor. De tardezinha, toparam com um pavilhão de tela
vermelha, sem ninguém por perto.

Ele desceu do cavalo e olhou o pavilhão. Havia algo estranho ali, luxuoso como era no bosque de
gralhas, e sem ninguém à vista.

"É um pavilhão estranho", pensou com tristeza, pois sua mente estava com Guenevere, "mas acho
que de qualquer maneira posso passar a noite aqui. Ou ele está aqui para uma aventura qualquer e,
nesse caso, devo tentar a aventura, ou então os donos foram-se de férias e, nesse caso, não se
incomodarão se eu ficar por uma noite. De qualquer maneira, estou perdido, e não há nada mais que
eu possa fazer."

Desarreou o cavalo e o amarrou. Depois, tirou sua própria armadura e a pendurou com cuidado em
uma árvore perto, com o escudo por cima. Então, comeu um pouco do pão que a donzela lhe dera, e
bebeu água de um regato que corria ao lado do pavilhão, esticou os braços até os cotovelos
estalarem, bocejou, bateu três vezes com o punho nos dentes da frente e foi para a cama. Era uma
cama suntuosa, com uma coberta de tela vermelha para combinar com a tenda. Lancelot se cobriu,
pressionou o nariz contra o travesseiro de seda, beijou-o por Guenevere, e logo dormiu.

Havia luar quando ele acordou, e um homem nu estava sentado perto do seu pé esquerdo, aparando
as unhas.

Lancelot, que acordara de seu sonho de amor com um sobressalto, mexeu-se rapidamente na cama
quando viu o homem. O homem, igualmente surpreso ao sentir o movimento, pulou e agarrou sua
espada. Lancelot pulou para o outro lado da cama e correu para pegar suas armas, que estavam


penduradas na árvore. O homem veio atrás dele, brandindo a espada e tentando acertá-lo por trás.
Lancelot alcançou a árvore com segurança e girou de espada em punho. Eles pareciam estranhos e
terríveis a luz do luar, ambos completamente nus, com as lâminas pontiagudas de aço brilhando sob
a lua cheia.

— Agora — o homem gritou, e dirigiu uma pancada furiosa para as pernas de Lancelot.
No minuto seguinte, sua espada estava no chão e ele apertava a barriga com ambas as mãos,
dobrado em dois c resfolegando. O corte dado por Lancelot era um poço de sangue que parecia
preto ao luar, e era possível ver algumas partes do interior do estômago com sua vida secreta
aberta.

— Não me golpeie —-gritou o homem. — Misericórdia. Não me golpeie de novo. Você me matou.
— Lamento — disse Lancelot. — Você nem esperou eu pegar minha espada.
O homem continuou gemendo:
— Misericórdia! Misericórdia!
Lancelot enfiou a lâmina no chão e foi examinar a ferida.
— Não vou lhe fazer mal — ele disse. — Está tudo certo. Deixe-me ver.
— Você abriu meu fígado — o homem disse, acusador.
— Bem, mesmo que o tenha feito, só posso dizer que sinto muito. Nem sei por que estávamos
lutando. Apóie-se no meu ombro e vou levá-lo até a cama.
Deitou o homem na cama enquanto, estancando o sangramento, descobriu que a ferida não era
mortal, uma linda dama apareceu na abertura da tenda. Haviam acendido uma vela de junco
embebido em sebo, e ela viu em um relance o que acontecera e começou a gritar em alto e bom
som. Precipitou-se para confortar o homem ferido, acusando Lancelot de ser um assassino, e
continuou assim um longo tempo.

— Pare de gritar — disse o homem. — Ele não é um assassino. Apenas cometemos um erro.
— Eu estava deitado — disse Lancelot —, quando ele entrou e se sentou sobre mim, e ficamos os
dois tão espantados que começamos a lutar. Lamento tê-lo ferido.
— Mas era a nossa cama — gemeu a dama, como um dos Três Ursinhos. — O que você estava
fazendo em nossa cama?
— Lamento muito, realmente — ele disse. — Não havia ninguém no pavilhão quando cheguei aqui,
e eu estava perdido e cansado, então pensei que não teria importância se ficasse por uma noite.
— Não tem importância mesmo — o homem disse. — Você é bem-vindo para uma noite de sono, e
acho que a ferida não é grave, afinal. Posso perguntar seu nome?
— Lancelot.
— Céus! — exclamou o homem. — E essa agora, querida, veja com quem estive lutando. Não
admira que tenha levado um belo corte! Estava me perguntando por que minha vida foi poupada tão

facilmente.

Assim, eles insistiram para Lancelot passar a noite e, na manhã seguinte, indicaram-lhe o caminho
certo para a abadia dos frades carmelitas.

Não aconteceu muita coisa como conseqüência desse encontro, exceto que o cavaleiro, cujo nome
era Bellcus, foi introduzido na Távola Redonda por Lancelot tão logo se recuperou. Era o tipo de
cavaleiro generoso que Arthur precisava, e Lancelot tentou compensar o trabalho que lhe causara
conseguindo-lhe um assento à Távola.

Na abadia dos carmelitas a bela donzela esperava, em grande excitação. Temia que ele não
cumprisse a palavra. No entanto, os de seu cavalo mal soaram nas pedras e ela veio voando de seu
quarto na torre para, com grande prazer, lhe dar as boas-vindas.

— Meu pai estará aqui esta noite — disse. — Ah! Estou tão feliz por você ter vindo! Tinha medo
de que esquecesse.
A. boca torcida de Lancelot deu um sorriso forçado frente à palavra que ela escolhera. Depois,
tirou sua armadura, tomou um banho e esperou pelo Rei Bagdemagus.
— E uma vida confusa essa de Gramarye — ele disse consigo mesmo, tentando manter os
pensamentos longe da jovem Rainha.
— As coisas acontecem tão rapidamente. Boa parte do tempo, uma pessoa mal consegue saber onde
está, e há também aquele meu primo que desapareceu debaixo da macieira, o que ainda tem de ser
explicado. E com rainhas mágicas e torneios de facções, pessoas se enfiando em sua cama à noite e
metade da família desaparecendo sem deixar rastro, é difícil manter um rumo.
Então, ele penteou os cabelos, alisou sua roupa e desceu para encontrar o Rei Bagdemagus.

Não é preciso fazer uma longa descrição do torneio. Malory já desincumbiu-se da tarefa. Lancelot
escolheu três cavaleiros recomendados pela jovem donzela para acompanhá-lo, e combinou que
todos os quatro levariam o vergescu. Esse é o escudo branco que os cavaleiros inexperientes
carregam, e Lancelot insistiu nisso porque sabia que três de seus próprios companheiros da Távola
Redonda iam lutar do outro lado. Não queria que o reconhecessem, pois isso poderia causar
animosidades na Corte. Por outro lado, sentiu que era seu dever lutar contra eles por causa da
promessa que fizera à donzela. O Rei de Northgalis, que era o líder do lado oposto, tinha cento e
sessenta cavaleiros em sua facção, e o Rei Bagdemagus, apenas oitenta. Lancelot investiu contra o
primeiro cavaleiro da Távola Redonda e deslocou seu ombro. Investiu contra o segundo com tanta
força que o infeliz foi lançado por cima do rabo do seu cavalo e enterrou seu elmo vários
centímetros no chão. Atingiu o terceiro cavaleiro na cabeça com tanta força que escorreu sangue do
seu nariz, e seu cavalo fugiu com ele. No momento em que ele quebrou a coxa do Rei de Northgalis,
todo mundo pôde ver que, para todos os propósitos, o torneio tinha acabado.

O próximo passo de nosso herói foi partir para saber o que acontecera com Lionel. Pela primeira
vez, estava livre para fazer isso, pois, desde o desaparecimento do primo, ele ou estivera
prisioneiro das malignas rainhas ou tivera que cumprir suas obrigações com a donzela que o
salvara. Antes de sua partida, o Rei Bagdemagus ganhou o prêmio no torneio, e a donzela estava


quase em prantos de tão grata. Todos disseram que seriam amigos para sempre, e que se houvesse
algo que um pudesse fazer pelo outro bastaria que uma mensagem fosse enviada. Então Lancelot
montou em seu cavalo, conseguiu se orientar perguntando a vários camponeses em que lugar estava,
e cavalgou em direção à floresta da macieira onde havia perdido seu primo. Pensou que, fazendo
uma busca completa no lugar onde vira Lionel pela última vez, seria capaz de pegar seu rastro de
novo, embora tivesse passado muito tempo.

Na floresta da macieira, na verdade aos pés da mesma árvore, encontrou uma dama em um palafrém
branco. Supostamente, essa macieira era uma árvore mágica, motivo pelo qual havia todo esse
tráfego por ali.

— Senhora — ele perguntou —, poderia me dizer se há alguma aventura ocorrendo nesta floresta?
— Várias — ela respondeu —, se você for homem suficiente para aceitá-las.
— Eu poderia tentar.
— Você parece um homem forte — disse a dama. — Tem um jeito ousado também, apesar das
orelhas esticadas para fora tão medonhamente. Se quiser, eu o guiarei até onde vive o barão mais
cruel do mundo, mas com certeza ele matará você.
— Não faz mal.
— Só farei isso se você me disser seu nome. Seria assassinato levá-lo, a menos que você seja um
cavaleiro famoso.
— Meu nome é Lancelot.
— Foi o que pensei — disse a dama. — Bem, é uma sorte que seja. Segundo o que as pessoas estão
dizendo de você, provavelmente é o único cavaleiro no mundo que pode derrotar o homem a quem
vou levá-lo. Seu nome é Sir Turquine.
— Ótimo.
— Alguns dizem que ele é louco. Tem sessenta e quatro cavaleiros na prisão, que capturou em
combate homem a homem, e passa o tempo espancando-os com galhos de espinheiros. Se o
capturar, também espancará você completamente nu.
— Parece um homem interessante para enfrentar.
— É uma espécie de campo de concentração.
— E para isso que tenho me preparado — disse Sir Lancelot. — Foi para impedir isso que Arthur
inventou a Távola Redonda.
— Se eu o levar até ele, deve me prometer fazer uma coisa por mim depois, isto é, se vencer.
— Que tipo de coisa? — ele perguntou, cauteloso.
— Não precisa ter medo — disse a dama. — É apenas vencer outro cavaleiro que conheço, que
está afligindo algumas donzelas.
— Isso eu prometo, com prazer.

— Bem — disse a dama. — Deus, só Ele sabe como você se sairá. De qualquer modo, rezarei por
você durante o combate.
Depois que cavalgaram por algum tempo, chegaram a uma passagem parecida com aquela onde ele
havia lutado pela primeira vez com Rei Arthur. Elmos enferrujados e escudos melancólicos
estavam pendurados nas árvores em volta da passagem — eram sessenta e quatro, com suas
curvaturas e divisas, peixes, melros e águias e leões em guarda, com ar de desolação e abandono.
O couro das correias estava verde e bolorento. Parecia unia masmorra de guarda-de-caças.

No meio da clareira, na árvore principal, estava pendurada uma enorme bacia de cobre, triunfando
sobre os elmos batidos. O último escudo debaixo dela era o de Lionel — prata, uma faixa vermelha
descendente marcada com um tipo de selo de filho mais novo.

Lancelot sabia o que deveria fazer com essa bacia, e o fez. Colocou seu elmo em posição, cavalgou
pelas folhas caídas e, com a ponta de sua lança, bateu na bacia até o fundo cair. Então ele e a dama
ficaram emudecidos na floresta que parecia era escandalizado silêncio pelo barulho medonho.

Ninguém apareceu.

— O castelo dele é mais adiante — disse a dama.
Em silêncio, aproximaram-se dos portões do castelo, e por meia hora cavalgaram de um lado para
o outro frente a eles. Lancelot tirou seu elmo e manoplas, franziu o cenho, e roeu as unhas de
ansiedade.

Meia hora depois, um gigantesco cavaleiro veio cavalgando pela floresta. Parecia-se tanto com Sir
Carados — o cavaleiro que ele matara ao salvar Gawaine — que Lancelot ficou espantado. Não
apenas tinha a mesma constituição, como também trazia um cavaleiro atravessado no arção da sela
de sua égua. Ainda mais curioso, as divisas do escudo do cavaleiro carregavam os três cardos e a
divisa, com um cantão vermelho. De fato, o segundo dos grandes cavaleiros tinha capturado
Gaheris — o irmão de Gawaine. Lancelot observou-o com olho crítico.

Talvez não seja inoportuno mencionar que um bom juiz de estilo poderia muitas vezes reconhecer
um cavaleiro com armadura, mesmo se estivesse disfarçado e portando o vergescu. Mais tarde na
vida, lot às vezes teve que lutar disfarçado, caso contrário ninguém lutaria com ele. No entanto,
Arthur e os outros geralmente adivinhavam que era ele por seu jeito de cavalgar. Hoje, as pessoas
podem reconhecer os jogadores de críquete, mesmo quando estão muito distantes para lhes ver o
rosto, e era a mesma coisa naquela época.

Lancelot era um bom juiz de estilo, devido a sua grande prática. Assim que viu Sir Turquine por um
ou dois momentos, observou um leve defeito na sua maneira de sentar. Comentou com a dama que,
a menos que Turquine se assentasse melhor em sua montaria, ele achava que seria capaz de salvar
os prisioneiros. Conforme se verificou logo, Turquine adequou-se melhor à sua sela quando chegou

o momento do enfrentamento, de modo que essa crítica particular resultou em nada — mas ela
esclarece alguma coisa em relação às justas e pode ter valido a pena mencioná-la.
A maneira de cavalgar era tudo. Se um homem tivesse a coragem de se arremessar a pleno galope
no momento do impacto, não raro venceria. A maioria vacilava um pouco c, portanto, não estava


em seu melhor momento. Era por isso que Lancelot constantemente ganhava as justas. Tinha o que
Tio Dap chamava de élan. As vezes, quando estava disfarçado, cavalgava de maneira desajeitada
de propósito, mostrando-se desleixado na sela. Mas no último momento acontecia sempre a
verdadeira arremetida — e assim os espectadores, e muitas vezes seu infeliz; oponente,
exclamariam "Ah, Lancelot!", mesmo antes de a lança chegar a seu destino.

— Ilustre cavaleiro — ele disse —, ponha esse homem ferido no chão e deixe-o descansar um
pouco. Então nós dois poderemos medir nossas forças.
Sir Turquine aproximou-se e disse entre os dentes:

— Se você é um cavaleiro da Távola Redonda, terei grande prazer em derrubá-lo primeiro e
vergastá-lo depois. Posso fazer isso com você e toda a sua Távola juntos.
— Parece uma extravagância.
A seguir, eles se retiraram da maneira usual, colocaram a lança em posição, e se arremeteram ao
mesmo tempo como um trovão. Lancelot, no último momento, observou que estava errado quanto à
maneira de Turquine sentar. No derradeiro relance, percebeu que Turquine era o melhor oponente
que já encontrara, que estava vindo com um ímpeto tão grande quanto o seu próprio, e que sua
pontaria era precisa.

Os cavaleiros avançaram e se atacaram ao mesmo tempo; as lanças encontraram-se no mesmo
momento; os cavalos, travados em plena corrida, empinaram e caíram para trás; as lanças
quebraram-se e foram pelos ares, girando graciosamente sobre si mesmas como o torvelinho de
uma forte explosão; e a dama no palafrém desviou os olhos. Quando voltou a olhar, os dois cavalos
estavam no chão, com as colunas quebradas, e os cavaleiros deitados, imóveis.

Duas horas mais tarde, Lancelot e Turquine ainda estavam lutando com suas espadas.

— Pare — disse Turquine. — Quero conversar com você. Lancelot estacou.
— Quem é você? — perguntou Sir Turquine. — É o melhor cavaleiro com quem já lutei. Nunca vi
um homem com tanto fôlego. Escute, eu tenho sessenta e quatro prisioneiros em meu castelo, e já
matei ou aleijei centenas de outros, mas nenhum era tão bom quanto você. Se quiser a paz e ser meu
amigo, libertarei meus prisioneiros.
— E amável de sua parte.
— Farei isso, se você for qualquer pessoa exceto uma. Se for essa, terei de lutar até matá-lo.
— Quem é essa pessoa?
— Lancelot — disse Sir Turquine. — Se você for Lancelot, jamais me renderei nem serei amigo.
Ele matou meu irmão Carados.
__ Eu sou Lancelot.

Sir Turquine soltou um silvo através do elmo e golpeou com astúcia, antes de o inimigo estar
pronto.

— Ali, sim? — disse Lancelot. — Eu só teria que fingir não ser eu mesmo, e poderia salvar os

prisioneiros. Mas você tentou me matar sem aviso.
Sir Turquine continuou a sibilar.

— Sinto muito por Carados — disse Lancelot. — Ele foi morto numa luta justa e nunca ofereceu
rendição. Nunca o tive à minha mercê. Morreu em pleno combate.
Lutaram por mais duas horas. A espada não foi a única arma usada pelos cavaleiros de armadura.
Às vezes, golpeavam um ao outro com a borda dos escudos; outras, agrediam um ao outro com o
punho das espadas. Toda a relva em volta estava salpicada com o sangue dos dois — manchas
pequenas como as da truta, mas com uma espécie de cauda em cada uma delas, como o girino. Às
vezes, por causa do peso, eles caíam um sobre o outro. Os elmos pesados da cavalaria, com
enchimentos de palha, tinham buracos tão pequenos para respirar que eles sentiam-se sufocar. Seus
escudos pendiam frouxamente, sem protegê-los de modo adequado.

A coisa terminou em um segundo. Nenhum deles falou. Em um momento oportuno, Lancelot largou
sua espada e agarrou Turquine pela tromba do elmo. Eles caíram, e o elmo saiu. Puxaram as adagas
para o corpo-a-corpo, Turquine girou, tremeu, e estava morto.

Mais tarde, quando Gaheris e a dama estavam Lhe dando um pouco de água, Lancelot disse:

— Fossem quais fossem seus erros, ele era valente. Lamento que não tenha se rendido.
— Mas pense nos cavaleiros mutilados e nos espancamentos.
— Ele era da velha escola — disse. — E isso que devemos exterminar, Mas, como combatente, era
um crédito para a velha escola apesar de tudo.
— Era um bruto — disse a dama.
— Fosse o que fosse, gostava do irmão. Olhe, Gaheris, você me empresta seu cavalo? Quero
continuar, e meu cavalo está morto, a pobre criatura. Se me emprestar o seu, você poderia ir em
frente e tirar Lionel e os outros do castelo. Diga a Lionel para voltar à Corte e não fazer bobagens.
Tenho que seguir com essa dama. Você fará isso?
— Certamente, pode ficar com meu cavalo — disse Gaheris. — Você salvou a mim e também a
ele. Você continua salvando os irmãos das Órcades! Da última vez foi Gawaine. E Agravaine estáno castelo neste minuto. É claro que pode ficar com meu cavalo, Lancelot, é claro que sim.

VIII


Lancelot teve várias outras aventuras durante essa primeira busca — que durou um ano —, mas
talvez apenas duas mereçam ser contadas em detalhes. Ambas estão relacionadas com a ética
conservadora da Force Majeur contra a qual o Rei começara sua cruzada. Foi a velha escola, a
atitude do baronato normando, que provocaram as aventuras desse período -— pois poucas pessoas
podem odiar tão amarga e tão hipocritamente quanto uma casta dominante que está sendo
despejada. Os cavaleiros da Távola Redonda foram enviados como uma medida contra a Força
Maior, e os coléricos barões que viviam pela Força se defendiam com a ferocidade do desespero.
Teriam escrito ao The Times para se queixar, se esse jornal existisse. Os melhores deles estavam
convencidas de que Arthur era um novidadeiro e seus cavaleiros, pelos padrões de seus pais, uns
degenerados. Os piores inventavam nomes até mais feios que bolchevique, e permitiam que o lado
brutal de suas naturezas alimentasse enormidades imaginárias que atribuíam aos cavaleiros. A
situação tornou-se divorciada do bom senso, e assim histórias de atrocidades eram aceitas por
pessoas que gostavam de coisas do gênero. Muitos dos barões que Lancelot teve que vencer se
puseram em tai estado contra ele, pelo medo de perder seus poderes antigos, que acreditavam ser
ele um tipo de gás venenoso era forma humana. Combatiam-no com tanta falta de escrúpulos quanto
ódio, como se ele fosse um anticristo, e realmente acreditavam estar defendendo o justo. O assunto
virou uma guerra civil de ideologias.

Um dia em pleno verão, ele estava cavalgando pelo parque de um castelo que lhe parecia estranho.
As árvores cresciam dispersas pela relva — grandes olmos e carvalhos e faias —, e Lancelot
pensava em Guenevere com o coração pesado. Antes de se despedir da dama que o levara até Sir
Turquine — ele cumprira o que lhe havia prometido —, eles tiveram uma conversa sobre
casamento que o perturbara. A dama dissera que ele deveria ter ou uma esposa ou uma amante, e
Lancelot se irritou.

— Não posso impedir que as pessoas digam o que querem dizer — ele falou —, mas as
circunstâncias tornam o casamento impossível para mim, e acho que ter uma amante não é bom.
Discutiram sobre isso durante algum tempo, e depois ele se despediu. Embora tivesse passado por
varias aventuras desde então, agora ainda estava pensando no conselho da dama e se sentindo um
desgraçado.

Houve um som de sinos no ar e, imediatamente, ele olhou para cima.


Um belo falcão peregrino, com sua música tilintando alta e clara ao vento que assobiava, e sua
linha seguindo atrás, batia as asas sobre sua cabeça em direção ao topo de um dos olmos. Estava
irritado. Assim que chegou ao topo do olmo, pousou, olhando ao redor com seus olhos raivosos e
bico ofegante. A linha se enrolou três vezes no ramo mais próximo. Quando percebeu Sir Lancelot
vindo em sua direção, tentou voar outra vez em fúria. A linha travou seu vôo. Ficou pendurado de
cabeça para baixo, batendo as asas. Lancelot assustou-se, temendo que o falcão partisse algumas
penas. Em poucos momentos, no entanto, ele deixou de bater as asas e ficou suspenso de patas para

o ar, girando lentamente, com ar desprezível, indignado e ridículo, mantendo a cabeça levantada
como uma cobra.
— Oh, Sir Lancelot! Sir Lancelot! — gritou uma dama desconhecida, cavalgando em direção a ele
a toda velocidade e tentando torcer as mãos, de maneira evidente, embora segurasse as rédeas. —
Oh, Sir Lancelot! Perdi o meu falcão.
— Veja, lá está ele, no alto daquela árvore — respondeu o cavaleiro.
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! — gritou a dama. — Eu estava apenas tentando levá-o na linha e
ela se rompeu! Meu marido me matará se não conseguir pegá-lo. Ele é tão impetuoso e um falcoeiro
tão competente.
— Mas certamente não vai matá-la.
— Oh, sim! Não terá a intenção, mas vai me matar! É um homem tão impetuoso!
— Talvez eu possa impedi-lo?
— Ah, não! — disse a dama. — Isso não adiantaria nada. Você pode machucá-lo e eu não ia querer
que machucasse meu esposo. Em vez disso, será que você não poderia subir na árvore e pegar o
falcão?
Lancelot olhou para a dama e para a árvore. Depois, deu um suspiro fundo e observou, como nos
informa Malory:

— Bem, minha nobre dama, já que sabe meu nome e recorre a minha condição de cavaleiro para
ajudá-la, farei o que for possível para pegar seu falcão; no entanto, na verdade sou um mau
trepador, e a árvore é muito alta e tem poucos ramos para me ajudar na subida.
Ele passara sua infância aprendendo a ser uni guerreiro. Isso não lhe deu tempo para ir atrás de
ninhos de pássaros, como os outros meninos. O pedido da dama, que não teria sido um problema
para pessoas criadas como Arthur ou Gawaine, realmente era um transtorno para ele.

Desanimado, Lancelot tirou sua armadura, lançando ocasionais olhares enviesados para a horrível
árvore, até estar apenas de camisa e calções. Então, atacou com coragem os primeiros galhos,
enquanto a dama andava de um lado para o outro lá embaixo, falando de falcões e de esposos e de
que tempo lindo estava fazendo.

— Está bem — disse ele, com os olhos cheios de casquinhas de árvore e uma medonha carranca.
— Está bem, está bem.
No topo da árvore, o falcão continuava bastante emaranhado na linha — que estava enrolada em

seu pescoço e asas, como usual —, e o medo que o pássaro deixava transparecer diante de um
possível ataque fez com que Lancelot tivesse de deixá-lo apoiar-se em suas mãos nuas. O falcão as
agarrou com a fúria da histeria, mas, com paciência, o cavaleiro o desembaraçou sem se importar
com os machucados. Os falcoeiros raramente se queixam quando seus falcões causam-lhes
ferimentos. São por demais concentrados.

Quando o falcão estava a salvo dos ramos, Lancelot percebeu que não seria capaz de descer apenas
com unia das mãos. Gritou para a dama, que parecia pequena ao pé da árvore:

— Atenção, vou amarrar a peia dele em um ramo pesado, se conseguir quebrar um, e depois jogá-
lo. Vou escolher um que não seja muito pesado, para que caia devagar. Vou ter de jogá-lo um
pouco para fora, para que não se machuque nos ramos.
— Por favor, tenha cuidado! — gritou a dama.
Depois que Lancelot fez o que disse que ia fazer, começou a descer outra vez com cuidado. Havia
alguns maus pedaços no caminho, onde tinha que confiar apenas no próprio equilíbrio. Estava a
cerca de uns seis metros do chão, quando um cavaleiro gordo, com armadura completa, veio a
pleno galope.

— Aha! Sir Lancelot! — gritou o cavaleiro gordo. — Agora o tenho onde queria.
A dama pegou o falcão e começou a se afastar.
— Senhora! — disse Lancelot, surpreso por todo mundo saber seu nome.
O gordo berrou:
— Deixe-a em paz, seu assassino. Aquela é a minha mulher, exatamente. Ela só fez o que lhe falei
para fazer. Foi um truque. Rá! Rá! Agora peguei você sem sua famosa armadura, e vou matá-lo
como se afoga um gatinho!
— Não é digno de um cavaleiro — disse Lancelot, fazendo uma careta. — Poderia pelo menos me
deixar pegar minha arma e lutar com justiça.
— Deixar que pegue sua arma, seu engraçadinho! O que você acha que eu sou? Não quero nada
dessa bobagem novidadeira. Quando eu pego um homem que come crianças assadas, eu o mato
como verme que ele él
— Mas realmente...
— Desça, vamos, desça! Não posso esperar o dia todo. Desça e tome seu remédio como homem, se
for homem.
— Garanto a você que não asso crianças.
O gordo cavaleiro ficou com as faces completamente vermelhas e gritou:
— Mentiroso! Mentiroso! Demônio! Desça de uma vez. Lancelot sentou-se em um ramo e ficou com
os pés dependurados, roendo as unhas.
— Você quer dizer que perdeu aquele falcão de propósito — ele perguntou —, com sua avessada,
só para poder me matar quando eu estivesse nu?

— Desça!
— Se eu descer, farei todo o possível para matá-lo. — Bufão! — gritou o cavaleiro gordo.
— Bem — disse Lancelot —, a culpa é sua. Não deveria fazer truques sujos. Pela última vez, você
me deixará pegar minhas armas como um cavalheiro?
— É claro que não.
Lancelot quebrou um galho de madeira podre e pulou para o outro lado do cavalo, de maneira que o
animal ficou entre eles. O cavaleiro gordo avançou e tentou cortar a cabeça de seu inimigo,
inclinando-se sobre o cavalo entre os dois. Lancelot aparou o golpe com o galho, e a espada do
cavaleiro se enfiou na madeira. Então, ele tomou a espada de seu dono e cortou sua garganta.

— Vá embora — disse Lancelot para a dama. — Pare de gritar. Seu marido era um tolo e a senhora
é uma chata.. Não lamento tê-lo matado.
Mas lamentava.

A última aventura também estava relacionada com traição e uma dama. O jovem cavalgava
pesaroso pela região dos pântanos — que ainda não haviam sido drenados naquela época, e
constituíam, provavelmente, a parte mais selvagem da Inglaterra. Tratava-se de uma região cheia de
caminhos secretos através do brejo, conhecidos apenas dos saxões dos pântanos conquistados por
Uther Pendragon, e toda a campina cheirando a mar era como um imenso grasnido sob o céu baixo.
Os abetouros ressoavam e as altaformas deslizavam sobre os juncos, e milhões de patos-marrecos
e pato de popas voavam de um lado para outro em várias formações em cunha, parecendo rolhas de
garrafas de champanhe equilibradas em um nimbo de asas. Nos charcos salgados os gansos de
Spitebergen andavam e mordiscavam, com os pescoços curvados à sua maneira peculiar, e os
homens do pântano os perseguiam, furtivos, com redes e outros engenhos. Os homens do pântano
tinham barrigas pintadas e pés palmípedes — pelo menos, essa era a crença corrente no resto da
Inglaterra. Em geral, eles matavam forasteiros.

Enquanto Lancelot estava cavalgando por um caminho estreito que parecia não levar a lugar
nenhum, viu duas pessoas galopando em sua direção, a partir da outra ponta. Eram um cavaleiro e
sua dama. A dama estava na frente, correndo como louca, e o cavaleiro seguia atrás. Sua espada
cintilava contra o céu sem brilho.

— Aqui! Aqui! — gritou Lancelot, indo em direção a eles.
-— Socorro! — gritou a dama. — Oh, salve-me! Ele está tentando cortar minha cabeça.
— Deixe-a em paz! Afaste-se! — gritou o cavaleiro. — Ela é minha esposa e cometeu adultério!
— Jamais! — gritou a dama. — Oh, senhor, salve-me! Ele é cruel, uma besta bruta. Só porque
tenho afeto por meu primo primeiro, ele tem ciúmes, Por que eu não deveria ter afeto por meu
primo primeiro?
— Mulher pecaminosa! — exclamou o cavaleiro, e tentou agarrá-la.
Lancelot meteu-se entre eles e disse:

— Realmente, você não pode perseguir assim uma mulher. Não me interessa de quem é a culpa,
mas não é permitido matar mulheres.
— Desde quando?
— Desde que o Rei Arthur é o rei.
— Ela é minha esposa — disse o cavaleiro. — Ela não tem nada a ver com você. Afaste-se! E é
uma adúltera, seja o que for que diga!
— Oh, não, não sou — disse a dama. — Mas você é um grosseirão. E bebe também.
— Quem me faz beber, hein? E, além disso, beber não é pior do que ser adúltera.
— Calados — disse Lancelot —, todos os dois. Isto é uma chateação. Vou ter de cavalgar entre os
dois até que se acalmem. Suponho que o senhor não quer, cavaleiro, lutar comigo em vez de matar
esta dama?
— Obviamente, não — disse o cavaleiro. — Sei pela sua prata e suas divisas tortas que você é
Lancelot; e não seria tão tolo assim de lutar contra você, especialmente por uma meretriz como
essa. Que diabos isto tem a ver com você?
— Irei embora — disse Lancelot —, assim que você prometer, como cavaleiro, que não matará
mulheres.
— Bem, eu não prometerei.
— Não prometerá — disse a dama. — De qualquer maneira, não manteria a promessa, se
prometesse.
— Tem soldados do pântano a nossa volta — disse o cavaleiro. — Olhe para trás. Estão armados
da cabeça aos pés.
Lancelot refreou seu cavalo e olhou sobre os ombros. No mesmo instante, o cavaleiro se inclinou
sobre o outro lado e cortou a cabeça da dama. Quando Lancelot voltou a olhar, sem ter visto
nenhum soldado, viu a dama sentada a seu lado, sem cabeça. Lentamente, ela começou a escorregar
para o lado, latejando horrivelmente, e caiu na poeira. Havia sangue por todo o cavalo.

Lancelot ficou branco em torno das narinas.

Disse:

— Vou matá-lo por causa disso.
O cavaleiro imediatamente pulou do seu cavalo e se esparramou no chão.
— Não me mate! — pediu. — Misericórdia! Ela era uma adúltera.
Lancelot também desmontou e desembainhou sua espada.
— Levante-se — ele disse. — Levante-se e lute, seu, seu....
O cavaleiro se arrastou no chão em direção a Lancelot, e jogou os braços em volta de suas pernas.
Estando tão perto do vingador, tornava difícil para ele brandir a espada.


— Misericórdia!
Sua abjeção fazia Lancelot sentir-se horrível.
— Levante-se — ele disse. — Levante-se e lute. Olhe, vou tirar minha armadura e lutar só com
minha espada.
Mas "Misericórdia! Misericórdia" era só o que o cavaleiro dizia.

Lancelot começou a tremer, não pelo cavaleiro mas pela crueldade nele mesmo. Levantou sua
espada com aversão e empurrou o homem.

— Olhe para todo esse sangue — ele disse.
— Não me mate — disse o cavaleiro. — Eu me rendo, eu me rendo. Você não pode matar um
homem que está a sua mercê.
Lancelot embainhou a espada e se afastou do cavaleiro, como se estivesse se afastando de sua
própria alma. Sentia em seu coração crueldade e covardia, as coisas que o faziam corajoso e gentil.

— Levante-se — ele disse. — Não vou machucá-lo. Levante-se, vá embora.
O cavaleiro olhou para ele, de quatro como um cachorro, e se levantou, curvando-se com
insegurança. Lancelot foi embora, com náuseas.

Na festa de Pentecostes era costume que os cavaleiros que estavam em busca para a Távola se
reunissem outra vez em Carlion para relatar suas aventuras. Arthur descobrira que eles ficavam
mais animados para lutar à nova maneira do Direito, se tivessem que contar sobre isso depois. A
maioria deles preferia trazer consigo os prisioneiros, como testemunhas de suas histórias. Era
como se algum Inspetor-Geral da Polícia, em um país muito distante da África, enviasse seus
superintendentes para a selva, pedindo que voltassem no Natal seguinte com todos os chefes
selvagens que tivessem conduzido ao bom caminho. Além disso, impressionava aos chefes
selvagens ver a grande Corte, e eles com freqüência voltavam reformados.

O Pentecostes depois da primeira busca de Lancelot foi quase um fiasco. Alguns gigantesandrajosos do Braço Forte, que tinham sido capturados pela facção das Órcades, apareceram e
prestaram sua homenagem, mas a quota de Lancelot foi uma avalanche.

— Vocês são homens de quem?
— De Lancelot.
— E vocês, meus bons camaradas?
— De Lancelot.
Depois de um tempo, toda a mesa começou a gritar as respostas. Arthur perguntava:
— Você é bem-vindo a Carlion, Sir Belleus, e poderia perguntar a qual dos meus cavaleiros você
se rendeu?
— Lancelot — a mesa gritaria em coro.
E Sir Belleus, enrubescendo, sem saber se estavam rindo dele, diria em voz baixa:

— Sim, eu me rendi a Sir Lancelot.
Sir Bedivere veio e confessou como havia cortado a cabeça de sua esposa adúltera. Troasse a
cabeça com ele, e lhe ordenaram que a levasse ao Papa como penitência — ele tomou-se muito
piedoso depois disso. Gawaine aproximou-se com rudeza e contou, em inglês da Escócia, como
fora salvo de Sir Carados. Gaheris, à cabeça de uma delegação de sessenta e quatro cavaleiros
com escudos enferrujados, relatou como foi salvo de Sir Turquine. A filha do Rei Bagdemagus
chegou toda entusiasmada e contou sobre o torneio com o Rei de Northgalis. Além desses, havia
muitas pessoas de aventuras que deixamos de contar — sobretudo cavaleiros que tinham se rendido
a Sir Lancelot quando este estava disfarçado de Sir Kay.

Você deve se lembrar, do primeiro livro, como Kay tinha a tendência de ter a língua um pouco solta
demais e, por causa disso, tornara-se um tanto impopular. Durante a busca, Lancelot fora obrigado
a salvá-lo de três cavaleiros que o estavam perseguindo. Então, certa noite, enquanto Sir Kay
dormia, Lancelot trocou de armadura com ele, de mudo que o homem pudesse voltar para a Corte
sem ser molestado — e, depois disso, os cavaleiros que se lançaram sobre Lancelot achando que
este era Kay tiveram a grande surpresa de suas vidas, enquanto os cavaleiros que encontravam Kay
na armadura de Lancelot deixavam-no passar. Os cavaleiros que se renderam nessa categoria
incluíam Gawaine, Uwaine, Sagramour, Ector de Maris, e outros três. Também veio um cavaleiro
chamado Sir Mellot de Logres, que fora salvo em circunstâncias sobrenaturais.

Todas essas pessoas se entregaram não ao Rei Arthur, mas a Guenevere. Lancelot tinha se mantido
longe por todo um ano, mas havia um limite para sua resistência. Pensando nela o tempo todo e
desejando estar de volta ao seu lado, permitira-se essa única indulgência. Mandou seus cativos
ajoelharem aos pés dela, Esse foi um rumo fatal de ação.


IX


É difícil explicar Guenevere, a menos que seja possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.
Provavelmente não é possível amar duas pessoas da mesma maneira, mas existem diferentes tipos
de amor. A mulher ama os filhos e o esposo ao mesmo tempo — e o homem muitas vezes pode
desejar uma mulher enquanto sente amor por outra. De modo parecido, Guenevere começou a amar

o jovem francês sem perder seu afeto por Arthur. Ela e Lancelot eram quase adolescentes quando
isso começou, e o Rei era oito anos mais velho que eles. Aos vinte e dois, a idade de trinta anos
parece à beira da senilidade. O casamento entre ela e Arthur tinha sido o que se chamava de
casamento "arranjado". Isso quer dizer que foi combinado por um tratado com o Rei Leodegrance,
sem consultá-la. Foi uma união que deu certo, como os casamentos "arranjados" geralmente dão e,
antes de Lancelot aparecer em cena, a jovem adorava seu famoso marido, apesar de ele ser tão
velho. Tinha respeito por ele, além de gratidão, ternura, amor, e um sentimento de proteção. Era
mais do que isso — pode-se dizer que ela sentia tudo exceto a paixão de um romance.
E então os prisioneiros chegaram. Uma ruborizada rainha de pouco mais de vinte verões em seu
trono, e todo o saguão, à luz de vela, cheio com nobres cavaleiros ajoelhados frente a ela.
"Prisioneiro, de quem é você?" "Sou prisioneiro da Rainha, para viver ou morrer, enviado por Sir
Lancelot." "De quem você é?" "Da rainha, pela arma de Lancelot," Sir Lancelot — o nome nos
lábios de todos: o melhor cavaleiro do mundo, acima da média, mesmo acima de Tristão; o cortês,

o misericordioso, o feio, o invencível; e ele os enviou, a todos, para ela. Era como uma festa de
aniversário, com tantos presentes. Era como nos livros de histórias.
Guenevere sentava-se ereta e se inclinava majestosamente para seus prisioneiros. Perdoava a todos
eles. Seus olhos brilhavam mais que sua coroa.

Lancelot veio por último. Houve uma excitação entre os carregadores das tochas e um murmúrio
percorreu o saguão. O tinido de facas, pratos e canecas, o barulho de vozes amigas que um
momento antes soara como um encontro de aves marinhas em St. Kilda, os gritos por mais carneiro
ou uma caneca de hidromel se aquietaram — e borrões de caras brancas se voltaram para a porta.
Ali estava Lancelot, já não com armadura, mas vestido com uma magnífica túnica de veludo,
festonada e cheia de voltas. Hesitou na soleira escura da porta, terrível e amigável, surpreendendo-
se com o silêncio — e as luzes o mostraram. Então os rostos se endireitaram, o encontro de aves


marinhas recomeçou de novo, e Lancelot aproximou-se para beijar a mão do Rei.
Era o momento. Talvez seja melhor nem tentar explicar.

— Ora, Lance — disse Arthur, alegremente —, isto é alguma brincadeira, sem dúvida nenhuma.
Jenny mal pode permanecer sentada tranqüila com todos os seus prisioneiros.
— Eles eram para ela — disse Lancelot. A Rainha e ele não se fitaram. Tinham feito isso com o
clique de dois magnetos se juntando, no momento em que ele passou pela soleira da porta.
— Não posso evitar achar que eram também para mim — disse o Rei. — O resultado é que você
deve ter me presenteado com cerca de três condados.
Lancelot sentiu a urgência de evitar o silêncio. Começou a falar muito rapidamente.

— Três condados não são muito para o Imperador de toda a Europa — disse. — Você fala como se
não tivesse conquistado u Ditador de Roma. Como vão seus domínios?
— Da maneira como vocês os fazem, Lance. De que serve conquistar o Ditador, a menos que você
e os outros façam a parte civiIizatória? De que adianta ser o Imperador da Europa se, em todos os
lugares, estão lutando como doidos?
Guenevere apoiou seu herói no esforço contra o silêncio. Foi a primeira parceria dos dois.

— Arthur querido, você é um homem estranho — ela disse. — Luta o tempo todo, conquista países
e vence batalhas, e depois diz que lutar é uma coisa ruim.
— E é mesmo uma coisa ruim. E a pior coisa do mundo. Oh, Deus, não precisamos explicar isso de
novo!
— Não.
— Como anda a facção das Órcades? — perguntou o jovem, rapidamente. — Como anda sua
famosa civilização? A Força a serviço do Direito? Não se esqueça que fiquei fora o ano todo.
O Rei apoiou a cabeça nas mãos e, entre os cotovelos, olhou para a Távola com ar infeliz. Era um
homem gentil, consciencioso, amante da paz, que fora atormentado na juventude por um tutor de
gênio. Juntos, elaboraram a teoria de que matar pessoas e tiranizá-las era errado. Para acabar com
esse ripo de coisa, inventaram a idéia da Távola — uma idéia vaga como a democracia, ou o
espírito esportivo, ou a ética —, e agora, no esforço para impor um mundo pacífico, Arthur via-se
mergulhado em sangue até os cotovelos. Quando estava bem de saúde, não se queixava muito
porque sabia que o dilema era inevitável, mas, em momentos de fraqueza, era perseguido pela
vergonha e indecisão. Era um dos primeiros nórdicos a inventar uma civilização, ou a desejar fazer
algo diferente do que fizera Atila, o Muno, e a batalha contra o caos às vezes parecia não valer a
pena. Com freqüência, ele pensava que permanecerem vivos teria sido melhor para todos os seus
soldados mortos — mesmo para viverem sob a tirania e a loucura.

— A facção das Órcades vai mal — ele disse. — E também a civilização, exceto pela parte que
você acabou de trazer. Antes de você chegar, eu estava pensando que era o Imperador de nada,
agora sinto como se fosse o Imperador de três condados.

— O que há de errado com a facção das Órcades?
— Oh, Deus, precisamos falar sobre isso quando estamos nos sentindo tão felizes com sua volta?
Suponho que sim.
— É Morgause — disse a Rainha.
— Em parte. Morgause está tendo casos de amor com qualquer um que possa fisgar, agora que Lot
está morto. Como desejaria que o Rei Pellinore não tivesse tido aquele infeliz acidente quando o
matou! Isso está tendo um péssimo efeito em seus filhos!
— O que você quer dizer?
O Rei apoiou-se à mesa e afirmou:
— Gostaria que não tivesse vencido Gawaine, daquela vez que você estava disfarçado de Kay.
Quase desejaria que não tivesse tido tanto sucesso ao salvá-lo e a seus irmãos de Carados e
Turquine.
— Por quê?
— Esta Távola Redonda era uma coisa boa, quando a imaginamos — o velho homem disse
devagar. — Era necessário inventar uma maneira para os homens de luta se expressarem sem fazer
o mal. Não vejo como poderíamos ter feito isso a não ser assim, criando uma moda, como crianças.
Para atraí-los, tínhamos que formar uma gangue, como crianças na escola. Então, a gangue tinha que
fazer um juramento secreto, de que só lutariam por nossa idéia.Você pode chamá-la de civilização.
O que eu queria dizer com civilização, quando a inventei, era simplesmente que as pessoas não
deviam tirar proveito da fraqueza -— não violar donzelas, nem roubar viúvas, nem matar um
homem que estivesse em desvantagem. As pessoas deveriam ter civilidade. Mas tudo virou um
esporte. Merlin sempre disse que o esporte era a maldição do mundo, e é mesmo. Meu esquema não
está dando certo. Todos esses cavaleiros, agora, estão transformando a coisa em fetiche. Estão
transformando-a em competição. Merlin costumava chamar isso de Mania de Jogos. Todo inundo
fofoca, resmunga, insinua e especula sobre quem acabou por derrubar quem, e quem salvou mais
virgens, e quem é o melhor cavaleiro da Távola. Cheguei a fazer uma mesa redonda para evitarexatamente esse ripo de coisa, mas não deu certo. A facção das Órcades é a pior. Suponho que a
sensação de insegurança deles, por causa da mãe, impele-os a se assegurar dos melhores lugares no
topo da lista. Têm que se sobressair, que se exibir para ela. E por isso que eu preferiria que você
não tivesse vencido Gawaine, Ele é um sujeito decente, mas em seu íntimo vai guardar
ressentimento contra você. Você o rebaixou na média das justas; essa é uma parte da constituição
deles que agora se tornou, para meus cavaleiros, mais importante que a própria alma. Se não tivercuidado, você terá a facção das Órcades atrás de seu sangue, tanto quanto atrás do de Pellinore. E
uma posição condenável. As pessoas farão as piores coisas por causa da sua assim chamada honra.
Desejaria jamais ter inventado a honra, nem esporte, nem civilização.
— Que discurso! — disse Lancelot. — Anime-se. A facção não vai me machucar, mesmo se estiver
atrás do meu sangue. Quanto ao seu esquema estar dando errado, isso é bobagem. A Távola
Redonda é a melhor coisa que já aconteceu.

Arthur, cuja cabeça ainda estava entre as mãos, levantou os olhos. Viu que seu amigo e sua esposa
olhavam um para o outro com as enorme pupilas da loucura, então rapidamente voltou a baixar os
olhos para o prato.


X


Tio Dap disse, girando o elmo nas mãos:

— Seu mantêlete está rasgado e torto. Temos que arranjar outro. E uma honra ter o mantelete
rasgado, mas desonroso deixa-lo assim quando há oportunidade de arrumar outro. Esse tipo de
coisa seria uma bazófia.
Estavam conversando em um pequeno quarto com uma janela voltada para o norte, frio e sombrio, e
a claridade azul espalhava-se como óleo congelado sobre o aço.

— Sim.
— Como está Foyeux? Ainda afiada? Você gosta do equilíbrio dela?
Foyeux tinha sido feita por Galand, o maior forjador de espadas da Idade Média.
— Sim.
— Sim! Sim! — exclamou Tio Dap, — Não sabe dizer outra coisa a não ser sim? Pela morte de
minha alma, Lancelot, eu me pergunto se você ficou bobo! Por Deus, o que foi que aconteceu com
você, afinal?
Lancelot estava alisando o penacho que era usado como marca de distinção no elmo que Tio Dap
tinha nas mãos. Era destacável. Pelo cinema e os quadros cômicos, as pessoas meteram na cabeça
que os cavaleiros com armaduras geralmente usavam plumas de avestruz, que balançavam como
moitas de relva ao vento. Não era assim. O penacho de Kay, por exemplo, tinha a forma parecida
com um leque rígido e chato, com as pontas viradas para a frente e para trás. Era cuidadosamente
feito com os olhos das penas de pavão, exatamente como se um leque duro de pavão tivesse se
levantado no comprimento da cabeça. Não era um tufo de penas, e não balançava. Parecia-se mais
com a barbatana adiposa de um peixe, porém vistosa. Lancelot, que não se importava com coisas
vistosas, usava algumas penas de garça-real amarradas com fio de prata, que combinava com a
prata do seu escudo. Estava alisando-as. Agora, jogou-as violentamente a um canto e se levantou.
Começou a andar pelo quarto estreito de maneira brusca.

— Tio Dap — ele disse —, lembra-se que lhe pedi para não falar de uma determinada coisa?

— Lembro.
— Guenevere está apaixonada por mim?
-— Você deveria perguntar a ela — respondeu o tio, com lógica francesa.
— O que devo fazer? — ele perguntou. — O que devo fazer? Se é difícil explicar o amor de
Guenevere por dois homens ao mesmo tempo, é quase impossível explicar o que acontecia com
Lancelot. Pelo menos, seria impossível atualmente, quando todo mundo está livre de superstições e
preconceitos e, para todos nós, basta fazermos o que nos apetece. Por que Lancelot não fazia amor
com Guenevere, ou fugia de uma vez com a esposa de seu herói, como qualquer homem esclarecido
faria hoje?
Uma razão para esse dilema era o fato de ele ser cristão. O mundo moderno está propenso a
esquecer que, no passado remoto, algumas pessoas eram cristas, e no tempo de Lancelot não havia
protestantes — exceto John Scotus Erigena. A Igreja na qual ele foi criado — e é difícil escapar da
criação — proibia-o explicitamente de seduzir a esposa de seu melhor amigo. Outro obstáculo para
que ele fizesse o que gostaria era a própria idéia da cavalaria ou da civilização que Arthur
primeiro inventara e depois introduzira em seu próprio espírito jovem. Talvez um barão cruel, que
acreditasse no Braço Armado, tivesse fugido com Guenevere, mesmo enfrentando os conselhos de
sua Igreja, porque tomar a mulher do próximo era realmente uma forma de Force Majeur. Era uma
questão que vencesse o touro mais forte. Mas Lancelot passara sua infância entre os exercícios para
futuro cavaleiro e os pensamentos sobre a teoria do Rei Arthur. Acreditava tão firmemente como
Arthur, tão firmemente quanto o cristão inocente, que havia uma coisa chamada Direito. Por fim,
havia o impedimento de sua própria natureza. Nas zonas secretas de seu cérebro peculiar, naqueles
emaranhados infelizes e inextricáveis que sentia no mais fundo de si, via-se incapacitado por
alguma coisa que não sabemos explicar. Ele tampouco saberia explicar, e para nós tudo está
demasiado distante. Ele amava Arthur e amava Guenevere e odiava a si mesmo. O melhor
cavaleiro do mundo: todo mundo inveja a auto-estima que ele com certeza devia ter. Mas Lancelot
nunca acreditou que fosse bom ou atraente. Sob a casca grotesca e magnífica, com um rosto como o
de Quasímodo, havia vergonha e auto-aversão, plantadas ali quando ele era pequeno, por algo queagora é tarde demais para rastrear. É tão fatalmente fácil fazer uma criança acreditar que é horrível.

— Parece-me que, em boa medida, isso depende do que a Rainha quer fazer — disse Tio Dap.

XI


Desta vez, Lancelot permaneceu na Corte durante várias semanas, e cada semana tornava sua
partida mais difícil. Além do emaranhado mais ou menos social em que se encontrava, havia uma
confusão pessoal — pois ele dava à castidade um valor mais alto do que é moda em nosso século.
Acreditava, como o homem de Lord Tennyson, que as pessoas só poderiam ter a força de dez se
fossem puras de coração. E como acontecia de sua força ser a força de dez, essa era a explicação
medieval encontrada para isso. Como um corolário para essa crença, ele supunha que caso se
entregasse à Rainha, perderia sua força de dez homens. Assim, por essa razão, como pelas outras,
ele lutava contra ela com a coragem do desespero. Também para Guenevere não era nada
agradável.

Um dia, Tio Dap disse:

— É melhor você partir. Já perdeu quase dez quilos. Se você partir, alguma coisa vai se endireitarou não. É melhor resolver isso logo.
Lancelot disse:

— Não posso partir. Arthur disse:
— Por favor, fique. Guenevere disse:
— Vá.
A segunda busca que ele então empreendeu foi o ponto de virada de sua vida. Havia muita conversa
em Camelot sobre um certo Rei Pelles, que era coxo e vivia no castelo assombrado de Corbin.
Supostamente, ele era ligeiramente louco porque acreditava ser um parente de José de Arimatéia.
Era o ripo de homem que hoje se tornaria um britânico israelita e passaria o resto de sua vida
profetizando o fim do mundo pelas medidas das galerias da Grande Pirâmide. No entanto, o Rei
Pelles era apenas ligeiramente louco, e seu castelo era realmente assombrado. Tinha um quarto
assombrado, com inúmeras portas através das quais, à noite, as coisas passavam e vinham lutar
com você. Arthur achou que valia a pena enviar Lancelot para investigar o lugar.

No caminho para Corbin, Lancelot teve uma aventura estranha, da qual se lembrou durante muitos
anos com terrível aflição. Passaria a considerá-la a última aventura de sua virgindade e acreditaria,


todos os dias dos vinte anos seguintes, que antes que acontecesse ele era um homem de Deus e que,
depois dela, transformou-se em uma fraude.

Nas cercanias do castelo de Corbin, havia uma aldeia que parecia próspera. Tinha ruas
pavimentadas, casas de pedras e pontes antigas. O castelo ficava em uma colina num dos lados do
vale, e havia uma bonita torre quadrada na colina oposta. Todas as pessoas da aldeia estavam na
rua, como se estivessem esperando por ele, e havia uma beleza de sonho no ar, como se uma chuva
de poeira de ouro tivesse vindo do sol. Lancelot sentiu-se estranho. Deveria ter demasiado
oxigênio em seu sangue, pela maneira como tinha consciência de cada pedra em cada muro, e de
todas as cores do vale, e do passo alegre de seu cavalo. O povo da aldeia encantada sabia o seu
nome.

— Bem-vindo, Sir Lancelot Dulac — exclamaram —, a flor entre todos os nossos cavaleiros. Por
vós seremos socorridos do perigo.
Ele refreou seu cavalo e lhes falou.

— Por que vocês me chamaram? — perguntou, pensando em outras coisas. — Como sabem o meu
nome? Qual é o problema?
Eles responderam em coro, falando juntos solenemente e sem dificuldade.

— Oh, nobre cavaleiro — disseram. — Vedes aquela torre na colina? Dentro, encontra-se uma
dama que sofre, que por magia está sendo mantida fervendo em água escaldante há muitos invernos,
e ninguém pode tirá-la de lá exceto o melhor cavaleiro do mundo. Sir Gawaine esteve aqui na
semana passada, mas não conseguiu salvá-la.
— Se Sir Gawaine não conseguiu — ele disse —, tenho certeza que também não conseguirei.
Ele não gostava desse tipo de competição. O perigo de ser o melhor cavaleiro do mundo era que,
se fosse permanentemente testado quanto a isso, acabaria chegando o dia em que falharia em manter

o título.
— Acho que é melhor continuar meu caminho — disse, e deu uma sacudida nas rédeas.
— Não, não — as pessoas disseram, com seriedade. — Sois Sir Lancelot e sabemos disso.
Conseguireis tirar nossa dama da água fervente.
—Tenho que ir.

— Ela está sofrendo.
Lancelot apoiou-se na cernelha do cavalo, levantou a perna direita, passou-a para o outro lado e
estava no chão.

— Digam-me o que devo fazer — disse.
As pessoas formaram um cortejo a sua volta, e o regedor da aldeia tomou-o pela mão. Subiram a
colina até a torre quadrada, em silencio, exceto pelo regedor que explicou a situação enquanto
caminhavam.

— A senhora das nossas terras — disse o regedor — era a donzela mais bonita da região. Então a

Rainha Morgana Le Fay e a Rainha de Northgalis ficaram com inveja e fizeram essa mágica porvingança. É terrível o tanto que ela sofre, e há cinco anos está fervendo. Só o melhor cavaleiro do
mundo poderá salvá-la.

Quando chegaram a entrada da torre, outra coisa estranha aconteceu. Ela estava fortemente
aferrolhada e trancada à moda antiga. A alvenaria da entrada foi construída com cavidades fundas
pelas quais passavam vigas pesadas — pesadas o suficiente para agüentar um aríete. Agora, essas
vigas, por sua própria conta, recuaram c as fechaduras de ferro rodaram seus próprios mecanismos
com um rangido. As portas abriram-se em silêncio.

— Entrai — disse o regedor, e as pessoas ficaram paradas do lado de fora, esperando o que
aconteceria.
No primeiro andar da torre havia uma fornalha que mantinha quente a água encantada. Lancelot não
pôde entrar ali. No segundo andar havia um quarto cheio de vapor, e ele não podia ver nada. Entrou
no quarto, estendendo as mãos à frente, como os cegos fazem, até que escutou um gemido. Uma
clareira no vapor, provocada pela corrente de ar vinda da porta por tanto tempo fechada, mostrou a
dama que gemera. Sentada timidamente na banheira, olhando para ele, havia uma pequena jovem
encantadora, que estava — como escreveu Malory — tão nua quanto uma agulha.

— Oh! — ele exclamou.
A jovem corou, se é que podia corar já que estava fervendo, e disse em voz baixa:
— Por favor, dê-me sua mão.
Ela sabia como desfazer o encantamento.

Lancelot deu-lhe a mão, ela se levantou e saiu da banheira. Todas as pessoas do lado de fora
começaram a dar vivas como se soubessem exatamente o que estava acontecendo. Eles haviam
trazido um vestido e roupa de baixo adequada. As mulheres da aldeia formaram um círculo na
entrada enquanto a donzela rosada se vestia.

— Ah! como é agradável estar vestida! — ela disse.
— Meu coraçãozinho! — exclamou, enquanto chorava de alegria uma velha gorda que, obviamente,
fora sua ama quando ela era pequena.
— Sir Lancelot conseguiu — gritaram os aldeões. — Três vivas para Sir Lancelot!
Quando os vivas acabaram, a jovem fervida aproximou-se e colocou sua mão na dele.
— Obrigada — disse. — Devemos ir à igreja agora, agradecer tanto a Deus como a vós?
— Com certeza, devemos.
Assim eles foram à pequena e desprovida capela da aldeia e agradeceram a Deus por Sua
misericórdia. Ajoelharam-se entre as paredes com afrescos onde alguns santos de aparência
importante com halos azuis postavam-se nas pontas dos pés para evitar distorções, e as pinturas de
cores vivas dos vitrais derramavam-se sobre suas cabeças. Eram da cor azul cobalto, púrpura do
manganês, amarelo do cobre, vermelho, e um verde que também vinha do cobre, lodo o interior do


lugar era um tanque inundado de cor. As orações estavam já pela metade quando Lancelot
compreendeu que lhe fora permitido fazer um milagre, exatamente como sempre desejara.

O Rei Pelles desceu mancando do seu castelo, do outro lado da aldeia, para ver o que era aquela
agitação. Olhou para o escudo de Lancelot, beijou distraidamente a filha fervida, inclinando-se
como uma cegonha obediente para ser beijado na bochecha, e exclamou: — Oh, céus, você é sir
Lancelot! E vejo que conseguiu tirar minha filha daquele tipo de chaleira. Quanta amabilidade! Há
tempos, isso foi profetizado. Eu sou o Rei Pelles, primo próximo de José de Arimatéia, e você,
claro, só pode ser o oitavo grau de Nosso Senhor Jesus Cristo!

— Valha-me Deus!
— Realmente, realmente! — disse o Rei Pelles. — Está tudo escrito aritmeticamente nas pedras de
Stonehenge, e tenho uma espécie de prato sagrado em meu castelo em Carbonek, junto com uma
pomba que voa em várias direções segurando um turíbulo de ouro no bico. De qualquer maneira,
foi extremamente gentil de sua parte tirar minha filha daquela chaleira.
— Papai — disse a moça. — Temos que ser apresentados.
O Rei Pelles balançou a mão como se estivesse tentando afugentar mosquitos-pólvora.
— Elaine — ele disse.
Era outra com o mesmo nome.
— Esta é minha filha Elaine. Muito prazer. E este é Sir Lancelot Dulac. Muito prazer, Tudo escrito
nas pedras.
Lancelot, talvez levemente influenciado por tê-la primeiro conhecido sem roupa, achou que Elaine
era a moça mais bonita que já vira, sem contar Guenevere. Sentiu-se tímido.

— Você deve vir comigo — disse o Rei. — Isto também está nas pedras. Um dia mostrar-lhe o
prato sagrado e tudo isso. Ensinar-lhe aritmética. Belo tempo. Nem todo dia tenho uma filha tirada
da água fervendo. Acho que o jantar deve estar pronto.

É difícil explicar Guenevere, a menos que seja possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.
Provavelmente não é possível amar duas pessoas da mesma maneira, mas existem diferentes
tipos de amor.


XII


Lancelot ficou no castelo de Corbin durante vários dias. Seus quartos assombrados estavam à altura
das expectativas, e não havia mais nada a fazer. Ele experimentava tantos sentimentos em seu peito
por causa de Guenevere — as terríveis angústias do amor sem esperança — que estava exausto
pelo esforço. Não conseguia reunir energia suficiente para ir para outro lado. No começo de seu
amor por eia sentiu tai inquietação que achou que só se permanecesse em movimento e fizesse
novas coisas a cada momento poderia haver alguma esperança de fuga. Agora, seu poder de se
manter ocupado acabara. Sentia que tanto fazia estar em um lugar como em outro, já que estava
apenas esperando para ver se seu coração explodiria ou não. Era muito inocente para ver que se o
melhor cavaleiro do mundo salvasse você de uma chaleira de água fervendo, toda desnuda, você
provavelmente se apaixonaria por ele — se tivesse apenas dezoito anos. Um final de tarde, quando
Pelles tinha sido particularmente cansativo falando de arvores genealógica;; religiosas, e quando o
tormento do coração do jovem Lhe tornara impossível comer adequadamente ou mesmo se sentar
quieto durante o jantar, o mordomo tomou a iniciativa. Ele servia a família havia quarenta anos, era
casado com a ama que acolhera Elaine com lágrimas de alegria e aprovava o amor. Também
entendia de jovens como Lancelot — jovens que poderiam ser estudantes ou pilotos de jato se
vivessem na Inglaterra de hoje. Teria sido um excelente mordomo de colégio.

— Mais vinho, Sir? — perguntou.
— Não, obrigado.
O mordomo inclinou-se polidamente e encheu outro chifre que Lancelot esvaziou sem sequer
lançar-lhe os olhos.

— Uma safra excelente, Sir — disse o mordomo. — Sua Majestade cuida muito bem de sua adega.
O Rei Pelles tinha ido para a biblioteca, calcular algumas prenunciações, e seu hóspede fora
deixado melancolicamente no salão,

— Sim.
Houve um ruído do lado de fora da porta da despensa e o mordomo foi ver o que era enquanto
Lancelot tomava outra dose.

— Este é um belo vinho, Sir — disse o mordomo. — Sua Majestade tem uma grande reserva deste

vinho e minha esposa acaba de trazer uma garrafa nova da adega. Observai a cor, Sir. Tenho
certeza de que é um vinho digno de apreciação.

— Todos os vinhos parecem o mesmo para mim.
— Sois um jovem cavaleiro modesto — disse o mordomo, dando-lhe outro grande chifre. — Se me
é permitido dizer, Sir, acabais de fazer uma piada. Mas é fácil reconhecer um apreciador de vinho
quando se encontra um.
Ele estava aborrecendo Lancelot, que queria ficar a sós com seu sofrimento, e Lancelot percebeu
que estava ficando aborrecido. Por esta razão, automaticamente se perguntou se não fora talvez
descortês com o mordomo, em um momento de distração. Talvez o mordomo realmente gostasse de
vinho, e tivesse seus próprios problemas. Educadamente, bebeu tudo.

— Muito bom — ele disse, para encorajar. — Uma safra esplêndida.
— Fico feliz em escutar que apreciastes, Sir.
— Alguma vez — começou Lancelot, fazendo a pergunta que todo jovem sempre costuma fazer, e
sem perceber que ela nada tinha a ver com a bebida —, alguma vez você já se apaixonou?
O mordomo sorriu discretamente e encheu outra vez o copo até a borda.

Por volta da meia-noite, Lancelot e o mordomo estavam sentados em lados opostos da mesa, ambos
com a face vermelha. Uma infusão temperada estava entre eles — uma mistura de vinho tinto, mel,
especiarias e seja lá o que for que a esposa do mordomo tinha acrescentado.

— Então eu lhe conto — disse Lancelot, olhando de modo feroz como um gorila. — Não contaria a
todo mundo, mas você é um sujeito legal. Um sujeito compreensivo. Um prazer contar tudo. Beba
outro copo,
— Saúde — brindou o mordomo.
— O que devo fazer? — ele exclamou. — O que devo fazer? Ele colocou sua horrível cabeça entre
os braços na mesa e começou a chorar.
—-Coragem! — disse o mordomo. —-Fazei ou morrei! Olhando para a porta da despensa, o
velho bateu na mesa com uma mão e, com a outra, encheu outro copo até a borda.

— Bebei — ele disse.— Bebei muito. Sede um homem, Sir, se me permitis a ousadia. Em um
minuto, tereis boas notícias, isso tereis, e desejareis agarrar o instante inesquecível, como diz o
bardo.
— Bom sujeito — disse Lancelot. — Maldito seria eu se não agarrasse, se pudesse.
— Jack é tão bom quanto seu senhor.
— Com certeza — disse o jovem, piscando o olho de uma maneira que receou parecer abominável.
— Melhor, na verdade, hein, mordomo?
Ele começou a rir como um asno.
— Ah! — disse o mordomo —, e aqui está minha esposa na porta da despensa, trazendo uma

mensagem. Ouso dizer que é para vós, Sir.

— Sobre o que é? — perguntou o mordomo, olhando o jovem que permanecia sentado olhando fixo
para o bilhete.
— Nada — ele disse, jogando o papel sobre a mesa e caminhando sem firmeza para a porta.
O mordomo leu o bilhete.
— Aqui diz que a Rainha Guenevere está no castelo de Case, a oito quilômetros daqui, e quer vos
ver. Diz que o Rei não está com ela. Há alguns beijos.
— E daí?
— Não ousareis ir — disse o mordomo.
— Não ousarei? — gritou Sir Lancelot, e penetrou cambaleando na escuridão, rindo como urna
caricatura, e ordenando que lhe trouxessem seu cavalo.
Na manhã seguinte ele acordou de repente em um quarto estranho. Estava completamente escuro,
com cortinas nas janelas, e a cabeça não lhe doía porque sua constituição era boa. Pulou da cama e
foi até a janela para abrir a cortina. De repente, em um segundo, ficou completamente consciente de
tudo que acontecera na noite anterior — consciente do mordomo e da bebida e da poção de amor
que talvez tenha sido colocada ali, da mensagem de Guenevere, e do corpo escuro, firme, quente e
fresco na cama da qual acabara de sair. Abriu a cortina e encostou sua testa contra a pedra fria da
divisória do caixilho. Sentia-se miserável.


— Jenny —-ele disse, passados minutos que pareceram horas.
Não veio resposta da cama.
Ele se virou e se viu olhando para a moça fervida, Elaine. Ela estava deitava na cama, seus
pequenos braços nus segurando as cobertas de cada lado, com os olhos violetas fixados nos dele.
Lancelot sempre foi um mártir de seus sentimentos, jamais conseguiu disfarçá-los. Quando viu
Elaine, sua cabeça recuou. Então seu rosto feio ganhou uma expressão de sofrimento profundo e

ultrajado, tão elementar e verdadeiro que sua nudez à luz da janela era dignidade. Começou a
tremer.
Elaine não se moveu, apenas o olhou com seus olhos perspicazes, como um rato.
Lancelot dirigiu-se para a arca sobre a quai estava sua espada.


— Vou matá-la.
Ela apenas olhava. Tinha dezoito anos, lastimavelmente pequena na grande cama, e estava com
medo.


— Por que fez isso? — ele exclamou. — O que você fez? Por que me traiu?
— Tinha de fazê-lo.
— Mas foi traição!

Ele não podia acreditar que ela tivesse feito aquilo.

— Foi traição! Você me traiu. — Por quê?
— Você me fez... me tirou... me roubou...
Ele atirou sua espada em um canto e sentou-se na arca. Quando começou a chorar, as linhas
grosseiras do seu rosto contraíram-se de maneira fantástica. A coisa que Elaine roubara dele era o
seu poder. Roubara sua força de dez. Mesmo atualmente, as crianças acreditam em coisas assim, e
acham que só serão capazes de jogar bem na partida de críquete amanhã se forem boas hoje.

Lancelot parou de chorar, e falou com os olhos fixos no chão.

— Quando eu era pequeno — disse — pedia a Deus que me deixasse fazer um milagre. Só virgens
podem fazer milagres. Queria ser o melhor cavaleiro do mundo. Eu era feio e solitário. As pessoas
de sua aldeia disseram que eu era o melhor cavaleiro do mundo, e fiz realmente meu Milagre
quando tirei você da água. Não sabia que seria o primeiro, mas também o último que eu faria.
Elaine disse:
— Oh, Lancelot, você fará muitos outros.
— Nunca. Você roubou meus milagres, Você roubou minha capacidade de ser o melhor cavaleiro,
Elaine, por que você fez isso?
Ela começou a chorar.
Ele levantou-se, enrolou-se em uma toalha, e voltou para a cama.


— Não importa — ele disse. — Foi culpa minha ter ficado bêbado, eu estava me sentindo infeliz e
bebi além da conta. Pergunto a mim mesmo se não foi aquele mordomo que me fez beber. Não foi
muito leal, se foi ele. Não chore, Elaine. Não foi culpa sua.
— Foi, sim. Foi.
— Provavelmente seu pai a forçou a fazer isso para ter o oitavo grau de Nosso Senhor na família.
Ou então foi aquela feiticeira Brise, a esposa do mordomo. Não se sinta mal por causa disso,
Elaine. Já acabou. Olhe, eu lhe darei um beijo.
— Lancelot! — exclamou Elaine. — Foi porque eu amo você. Não lhe dei algo também? Eu era
uma donzela, Lancelot. Não roubei você. Oh, Lancelot, a culpa foi minha. Eu deveria ser morta. Por
que você não me mata com sua espada? Mas foi porque eu o amo, e não pude evitar.
— Pronto, pronto.
— Lancelot, e se eu tiver um filho?
Ele parou de consolá-la e voltou para a janela outra vez, como se estivesse ficando louco.
— Quero ter um filho seu — disse Elaine. — Eu o chamarei Galahad, como seu primeiro nome.
Ela ainda segurava a coberta de cada lado, com seus braços pequenos e nus. Lancelot voltou-se
para ela, em fúria.

— Elaine — ele disse —, se você tiver um filho, o filho é seu. Não é justo me prender pela

piedade. Vou partir imediatamente, e espero nunca mais tornar a vê-la.



XIII


Guenevere estava bordando no quarto sombrio, o que detestava fazer. Era para a capa do escudo de
Arthur, e tinha a divisa do leão rampante. Elaine tinha apenas dezoito anos e é bem fácil explicar os
sentimentos de uma criança — mas Guenevere tinha vinte e dois. Crescera a ponto de ter algo da
natureza de uma pessoa adulta, impressa sobre os sentimentos simples da rainha-menina que uma
vez recebera seu presente de cativos.

Há uma coisa chamada conhecimento do mundo, que as pessoas não possuem até chegarem à meia-
idade. E algo que não pode ser ensinado aos jovens, porque não é lógico e não obedece às leis que
são constantes. Não tem regras. Simplesmente, nos longos anos que levam as mulheres ao meio da
vida, um sentido de equilíbrio se desenvolve. Você não pode ensinar um bebê a andar explicando-
lhe o assunto logicamente — ele tem que aprender a estranha postura para andar pela experiência.
De maneira parecida a essa, não se pode ensinar uma jovem mulher a ter um conhecimento do
mundo. Ela tem de ser deixada com a experiência dos anos. E então, quando ela está começando a
detestar seu corpo usado, de repente descobre que pode tê-lo. Pode continuar a viver — não por
princípio, não por dedução, não por conhecimento do bom e do mau, mas simplesmente por um
sentido peculiar e mutante de equilíbrio que, com freqüência, desafia cada uma dessas coisas. Já
não espera viver procurando a verdade — se é que as mulheres alguma vez esperam isso —, mas
continua daí para a frente sob a orientação de um sétimo sentido. O equilíbrio era o sexto sentido,
que ela adquire quando primeiro aprende a andar, e agora ela tem o sétimo — o conhecimento do
mundo.

A lenta descoberta do sétimo sentido, com o qual tanto homens quanto mulheres dão um jeito de
enfrentar as ondas de um mundo onde existem guerras, adultério, compromisso, medo,
estupidificação e hipocrisia — esta descoberta não é motivo de orgulho. O bebê talvez grite em
triunfo: consigo me equilibrar! Mas o sétimo sentido é percebido sem uma exclamação. Nós apenas
continuamos em frente, com nosso famoso conhecimento do mundo, enfrentando as estranhas ondas
à nossa maneira habitual, petrificada, porque atingimos uma fase de impasse em que não
conseguimos pensar em outra maneira de agir.

E, nessa fase, começamos a esquecer até que houve um tempo quando não tínhamos o sétimo
sentido. Começamos a esquecer, enquanto seguimos firmemente equilibrados, que pode ter existido
um tempo em que fomos corpos jovens ardendo no ímpeto da vida. Dificilmente a lembrança de tai


sentimento pode ser um consolo, e assim ele fica amortecido em nossa mente.

Mas houve um tempo em que cada um de nós estava nu frente ao mundo, confrontando a vida como
um problema sério que íntima e apaixonadamente nos dizia respeito. Houve um tempo em que era
de nosso vital interesse descobrir se existia ou não um Deus. Obviamente, a existência ou não de
uma vida futura é de primeira importância para alguém que vai viver sua vida presente, porque sua
maneira de vivê-la vai depender disso. Houve um tempo em que o Amor Livre versus a Moralidade
Católica era uma questão tão importante para nossos corpos ardentes como uma pistola que fosse
ser disparada em nossas cabeças.

Ainda mais para trás, houve tempos em que nos perguntávamos com toda nossa alma o que era o
mundo, o que era o amor, o que éramos nós.

Todos esses problemas e sentimentos desaparecem quando adquirimos o sétimo sentido. As
pessoas de meia-idade podem, sem dificuldade, se equilibrar entre a crença em Deus e a
desobediência a todos o.s mandamentos. O sétimo sentido, na verdade, aos poucos vai matando
todos os outros e, assim, no final, não há nenhum problema com os mandamentos. Já não podemos
vê-los, nem senti-los, nem ouvi-los. Os corpos que amávamos, as verdades que buscávamos, os
Deuses que questionávamos: ficamos surdos t; cegos para eles agora, segura c automaticamente nos
equilibrando em direção ao túmulo inevitável, sob a proteção de nosso último sentido. "Obrigado,
meu Deus, pelos mais velhos", canta o poeta.

Obrigado, meu Dais, pelos mais velhos
E pela própria velhice, e a doença e o túmulo,
Quando estamos velhos t enfermos, e particularmente no caixão,
Não dá trabalho nenhum nos comportarmos bem.


Guenevere tinha vinte e dois anos ao se sentar com seu bordado e pensar em Lancelot. Não estava
nem nu metade do caminho até seu caixão, nem mesmo doente, e tinha apenas seis sentidos. E
difícil imaginá-la.

Um caos de espírito e corpo — um tempo para chorar ao pôr-do-sol e ao fascínio do luar — uma
confusão e profusão de crenças e esperanças, em Deus, na Verdade, no Amor, e na Eternidade —
uma capacidade de se extasiar com a beleza dos objetos materiais — um coração a doer e a se
dilatar — uma alegria tão alegre e uma tristeza tão triste que oceanos poderiam se estender entre
elas: então como um contrapeso a essas características atraentes, acessos de egoísmo
indecentemente exposto — inquietação ou incapacidade de se tranqüilizar e parar de incomodar os
de meia-idade -— discussões animadas sobre temas abstratos como Beleza, como se tivesse algum
interesse para os de meia-idade — feita de experiência em radiação a quando a verdade deve ser
evitada em deferência aos de meia-idade; efervescência, inconveniências e inadequações em geral
aos padrões estabelecidos pelo sétimo sentido — essas devem ter sido algumas das características
de Guenevere aos vinte e dois, porque são de todo mundo. Mas, por cima de tudo isso, havia os
traços gerais e ainda imprecisos de seu caráter pessoal — traços que a faziam diferente da inocente


Elaine, traços de menos pathos,
talvez, e mais realidade, traços do poder que a tornavam a Jenny
específica que Lancelot amava.

— Oh, Lancelot — ela cantava enquanto bordava o brasão do escudo. —-Oh, Lance, venha logo.
Venha com seu sorriso torto, ou com seu jeito próprio de andar que mostra se está zangado ou
confuso. Volte para me dizer que não importa se amar é ou não pecado. Venha para dizer que é
suficiente que eu seja Jenny e você Lancelot, aconteça o que acontecer seja a quem for.
A coisa impressionante foi que ele veio. Direto depois de Elaine, direto depois de ter sido
roubado, Lancelot veio como uma flecha ao coração do amor. Ele já dormira com Guenevere
enganado, já fora roubado de sua força decuplicada. Aos olhos de Deus, como ele os via, era uma
fraude agora, portanto achou que deveria ser uma fraude completa. Não podendo mais ser o melhor
cavaleiro do mundo, não podendo mais fazer milagres contra a magia, não podendo mais ter
compensações pela feiúra e pelo vazio de sua alma, o jovem correu para sua amada em busca de
consolo. Houve o ruído das ferraduras do seu cavalo batendo nas pedras do calçamento, fez a
Rainha deixar seu bordado para ver se era Arthur voltando de sua caçada — o ressoar das correias
de ferro de seus sapatos do ed^s escadas, fazendo um clinque-clinque como esporas contra a pedra

— e então, antes que tivesse completa certeza do que tinha acontecido, Guenevere estava rindo ou
chorando, infiel a seu marido, como sempre soube que seria.

XIV


Arthur disse:

— Eis aqui uma carta de seu pai, Lance. Ele diz que está sendo atacado pelo Rei Claudas. Prometi
ajudá-lo contra Claudas, se fosse necessário, em troca de sua ajuda em Bedegraine. Terei de ir.
— Compreendo.
— O que você quer fazer?
— Como assim, o que eu quero fazer?
— Bem, você quer vir comigo ou quer ficar aqui?
Lancelot limpou a garganta e disse:
— Eu quero fazer o que você achar melhor.
— Será difícil para você — disse Arthur. — Detesto lhe pedir. — Mas você se importaria se eu
lhe pedisse para ficar?
Lancelot não conseguiu pensar em uma resposta, e o Rei interpretou erroneamente seu silêncio
como desapontamento.

— É claro que você tem o direito de ver seu pai e sua mãe — disse. — Se vai causar-lhe muito
sofrimento, não quero que fique. Provavelmente, poderemos arranjar de outro jeito.
— Por que você quer me deixar na Inglaterra?
— Alguém deve ficar aqui para tomar conta das facções. Vou me sentir mais seguro na França se
souber que deixei um homem forte aqui. Logo, vai haver problemas na Cornualha, entre Tristão eMark, e tem o feudo das Órcades. Você conhece as dificuldades. E também seria bom saber que há
alguém tomando conta de Gwen.
— Talvez — disse Lancelot, escolhendo dolorosamente as palavras — fosse melhor confiar em
outra pessoa.
— Não diga absurdos. Como poderia confiar mais em outra pessoa? Você só tem de pôr essa sua
cara fora do canil para imediatamente fazer todos os ladrões fugirem.

— Não ê uma cara bonita.
— De matador! — exclamou o Rei, carinhosamente, dando palmadas nas costas do amigo. E saiu
para fazer os preparativos para a expedição.
Eles tiveram um ano de alegria, doze meses do estranho paraíso que o salmão conhece nos leitos de
seixos do rio, sob a água límpida como o gim. Por vinte e quatro anos eles foram culpados, mas só
este primeiro ano foi parecido com a felicidade. Ao relembrá-lo, quando velhos, não recordaram
se nesse ano choveu ou ficou gelado o tempo todo. Para eles, as quatros estações foram coloridas
como a extremidade de uma pétala de rosa.

— Eu não entendo — dizia Lancelot — por que você me ama. Você tem certeza que me ama? Não
há algum engano nisso?
— Meu Lance.
— Mas meu rosto — ele dizia. — Sou tão horrível. Agora, acredito que Deus possa amar o mundo,
seja como for, por causa dele mesmo.
Em outros momentos, eles experimentavam um terror que vinha dele. Guenevere não sentia remorso
por si mesma, mas era contagiada pelo do seu amante.

— Não me atrevo a pensar. Não pense. Beije-me, Jenny.
— Por que pensar?
— Não consigo evitar.
— Lance querido!
Depois havia momentos diferentes quando eles discutiam por nada — mas mesmo as discussões
eram aquelas de amantes, e lhes pareciam doces quando se lembravam delas mais tarde.

— Seus dedos dos pés são como porquinhos que vão para o mercado.
— Gostaria que você não dissesse esse tipo de coisa. Não é respeitoso.
— Respeitoso!
— Sim, respeitoso. Por que você não seria respeitoso? Afinal, sou a Rainha.
— Você está me dizendo, seriamente, que devo tratá-la com respeito? Devo me dobrar em um
joelho o tempo todo e beijar sua mão?
— Por que não?
— Eu gostaria que você não fosse tão egoísta. Se tem uma coisa que não suporto é ser tratado como
uma posse.
— Egoísta, realmente!
E a Rainha batia o pé ou então ficava emburrada o dia todo. Mas o perdoava quando ele fazia um
ato de contrição adequado.
Um dia, quando eles estavam na fase de contar um ao outro seus sentimentos mais íntimos, com um


tipo de espanto inocente quando eles coincidiam, Lancelot contou à Rainha seu segredo.

— Jenny, quando era pequeno eu me detestava. Não sei por que. Sentia-me envergonhado. Eu era
um menino muito piedoso.
— Você não é nada piedoso agora — ela disse, rindo. Ainda não se dera conta do que ele estava
lhe contando.
— Um dia meu irmão me pediu para lhe emprestar uma flecha. Eu tinha uma ou duas especialmente
retas, com as quais tinha muito cuidado, e a dele estava um pouco torta. Fingi que tinha perdido
minhas flechas retas e disse a ele que não poderia emprestá-las.
— Mentirosinho!
— Sei que era. Depois disso, senti um terrível remorso por ter lhe dito uma mentira, e pensei que
fora desleal com Deus. Então, rui até um monte de urtigas que havia no fosso c pus nelas meu braço
direito, tomo um castigo. Enrolei a manga e enfiei meu braço ali.
— Coitadinho do meu Lance! Como você deve ter sido inocente!
— Mas, Jenny, elas não me picaram! Tenho certeza que minha lembrança de que elas não me
picaram é real.
— Você quer dizer que houve um milagre?
— Não sei. E difícil ter certeza. Eu era um menino tão sonhador, sempre vivendo em um mundo
inventado onde me considerava o melhor cavaleiro de Arthur. Posso ter imaginado aquilo das
urtigas. Mas acho que recordo o choque que tive quando elas não me picaram.
— Tenho certeza de que foi um milagre — concluiu, decidida, a Rainha.
— Jenny, toda a minha vida eu quis fazer milagres. Queria ser santo. Acho que era ambição ou
orgulho ou alguma outra coisa indigna. Para mim, não era suficiente conquistar o mundo — eu
queria também conquistar o céu. Era tão ganancioso que não bastava ser o cavaleiro mais forte —
tinha que também ser o melhor. Esta é a pior coisa de ficar sonhando acordado. Foi por isso que
tentei ficar longe de você. Eu sabia que, se não fosse puro, jamais poderia fazer milagres. E fiz um
milagre, sim: um milagre maravilhoso. Tirei uma donzela de dentro de um tipo de água fervente,
que estava encantado, e que dali não podia sair. Chamava-se Elaine. Depois, perdi meu poder. E
agora que estamos juntos, nunca mais serei capaz de fazer outros milagres.
Não queria contar toda a verdade sobre Elaine, pois achava que saber que a procurara em segunda
mão a faria sofrer.

—-Por que não?

— Porque estamos em pecado.
— Pessoalmente, nunca fiz um milagre — disse a Rainha, uni tanto friamente. — Portanto, tenho
menos do que me arrepender.
— Mas, Jenny, eu não me arrependo de nada. Você é meu milagre, e eu jogaria fora todos outra vez
por sua causa. Estava apenas tentando lhe contar as coisas que sentia quando era pequeno.

— Bem, não posso dizer que entendo.
— Você não entende o que é querer ser bom nas coisas? Não, eu sei por que você não teria que
querer. Só as pessoas carentes, ou más, ou inferiores têm que ser boas nas coisas. Você sempre foi
tão completa e perfeita, que não precisava imaginar querer ser nada. Mas eu sempre vivi
imaginando, e sofro terrivelmente às vezes, mesmo agora, com você, quando me lembro de que não
poderei mais ser o melhor cavaleiro.
— Então é melhor pararmos, e aí você pode fazer uma boa confissão e voltar a fazer mais milagres.
— Você sabe que não podemos parar.
— A história toda me parece fantasiosa — disse a Rainha. — Não entendo. Parece impraticável e
egoísta.
— Sei que sou egoísta, e não posso evitar. Tento não ser. Mas como posso evitar ser como fui
feito? Ah! será que você não entende o que estou falando? Eu era solitário quando pequeno e me
esforçava muito nos meus exercícios. Costumava me dizer que seria um grande explorador e
atravessaria o deserto dos Corasmos, ou seria um grande rei, como Alexandre ou São Luís, ou um
grande curador; encontraria um bálsamo que curada feridas e o distribuiria de graça; talvez me
tornasse um santo e curaria feridas apenas tocando-as, ou descobriria alguma coisa importante: uma
relíquia da Verdadeira Cruz, ou o Santo Graal, ou algo assim. Esses eram °s meus sonhos, Jenny.
Só estou lhe contando o que eu passava o dia imaginando. É isso o que chamo de milagres, que
agora estão perdidos. Eu lhe dei minhas esperanças, Jenny, como um presente do meu amor.

XV


Aquele ano de felicidade terminou com o retorno de Arthur — e quase imediatamente se
desmoronou em ruínas, mas não por conta do Rei. Na noite seguinte a sua volta ao lar, quando ele
ainda estava contando os detalhes da derrota de Claudas, conforme lhe vinham à memória, houve
um distúrbio na Guarita do Porteiro e Sir Bors foi conduzido ao Grande Saguão na hora do jantar.
Ele era primo de Lancelot, e tinha passado as férias no castelo de Corbin investigando as
assombrações. Tinha novidades para Lancelot, que contou em segredo depois do jantar —
infelizmente, no entanto, ele era misógino e, como a maioria das pessoas desse tipo, possuía a
inclinação feminina para a indiscrição. Também contou a novidade para alguns de seus amigos do
peito. Logo toda a Corte ficou sabendo. A novidade era que Elaine de Corbin tinha dado à luz um
lindo filho, a quem batizara com o nome de Galahad — que era o primeiro nome de Lancelot, como
você deve se lembrar.

— Então foi por isso — disse Guenevere, quando encontrou seu amante a sós —, então foi por isso
que você perdeu seus milagres. Em tudo mentira a história de tê-los dado a mim.
— O que quer dizer?
Guenevere começou a respirar pelo nariz. Sentia como se tivesse dois polegares vermelhos atrás
dos olhos tentando empurrá-los para fora, e não queria encarar o amante. Estava tentando não fazer
uma cena e temia seu coração. Tinha vergonha e ódio do que poderia dizer, mas não podia evitar o
assunto. Era como uma pessoa nadando em mar bravio.

— Você sabe o que quero dizer — disse amargamente, olhando em outra direção.
— Jenny, eu queria lhe contar, mas era difícil demais explicar como tudo aconteceu.
— Posso entender sua dificuldade.
— Não é o que você pensa.
— O que eu penso! — ela exclamou. — Como você sabe o que eu penso? Penso o que todo mundo
pensaria: que você é um sedutor perverso, um grande mentiroso, você e seus milagres. E fui tola o
suficiente para acreditar em você.
Lancelot virava a cabeça a cada uma das estocadas dela, como se estivesse tentando se desviar.


Olhou para o chão, para esconder os olhos. Seus olhos eram arregalados, o que em geral lhe dava
uma expressão de medo ou surpresa.

—-Elaine não significa nada para mim — ele disse.

— Pois deveria significar. Como pode dizer que nada significa para você quando é a mãe de seu
filho? Quando tentou mantê-la cm segredo? Não, não me toque, vá embora.
— Não posso ir embora assim.
— Se você me tocar eu talarei com o Rei.
— Guenevere, eu estava bêbado em Corbin. Então eles me disseram que você estava esperando por
mim em Case e me levaram para um quarto escuro onde estava Elaine. Só voltei a mim na manhã
seguinte.
— Uma mentira grosseira.
— É verdade.
— Uma criança não acreditaria.
— Não posso fazer você acreditar, se não quiser. Eu levantei minha espada para matar Elaine
quando descobri.
— Eu a teria matado.
— Não foi culpa dela.
A Rainha começou a puxar a gola do vestido, como se estivesse muito apertada.
— Você a está defendendo — disse. — Você está apaixonado por ela, e me enganando. Achei isso
o tempo todo.
— Juro que estou dizendo a verdade.
De repente, ela não agüentou mais e começou a chorar.
— Por que não me contou antes? — perguntou. — Por que não me contou que tinha um filho: Por
que mentiu o tempo todo? Ela deve ter sido seu famoso milagre, do qual você estava tão orgulhoso.
Lancelot, que também sofria com emoções violentas, começou a chorar. Passou os braços em volta
dela.


— Eu não sabia que tinha um filho — ele disse. — Eu não queria. Não procurava isso.
— Se você tivesse me contado a verdade, eu teria acreditado.
— Eu queria lhe contar, mas não consegui. Tinha medo de fazê-la sofrer.
— Sofro mais agora.
— Eu sei.
A Rainha secou as lágrimas e olhou para ele, sorrindo como um chuvisco de primavera. Um
instante depois, beijavam-se, sentindo->e como a terra verde refrescada pela chuva. Falaram, mais



uma vez, que entendiam um ao outro — mas a dúvida fora plantada. Agora, no amor deles, que era
mais forte, havia também as sementes do ódio, do temor e confusão crescendo ao mesmo tempo:
pois o amor pode existir com o ódio, cada um devorando o outro, e é isto o que lhe dá um maior
furor.


XVI


No Castelo de Corbin, a jovem Elaine estava se preparando para sua viagem. Queria roubar
Lancelot de Guenevere, uma expedição que todo mundo, exceto ela, sabia ser patética. Não tinha
armas com as quais lutar, e não sabia como enfrentar essa batalha. Era completamente carente de
personalidade. Lancelot não a amava. E ela encontrava-se na posição ainda mais desesperada de
amá-lo. Não possuía nada para contrapor à maturidade da Rainha, exceto sua própria imaturidade e
amor despretensioso, nada exceto o bebê gordinho que estava levando para o pai — um bebê que
para ele era apenas o símbolo de uma artimanha cruel. Era uma expedição como a de um exército
sem armas contra uma fortaleza impenetrável, um exército que, ao mesmo tempo, tinha suas mãos
atadas às costas. Elaine, com uma ingenuidade que só poderia ser explicada pelo faço de que
passara a maior parte de sua vida no isolamento de seu caldeirão mágico, decidira encontrar
Guenevere em seu próprio terreno. Mandara fazer vestidos da máxima suntuosidade e sofisticação

— e com eles, o que só a faria parecer mais estúpida e provinciana, ia a Camelot para travar sua
batalha com a Rainha inglesa.
Se Elaine não fosse Elaine, poderia usar Galahad como arma. Sofrimento e sentido de propriedade,
aplicado corretamente a um caráter como o de Lancelot, poderiam ter conseguido prendê-lo. Mas
Elaine não era sagaz o bastante, não compreendia a tentativa de prender seu herói. Levava Galahad
porque o adorava. Levava-o apenas porque não queria se afastar de seu bebê, e porque queria
mostrá-lo ao pai e, em parte, desejava comparar as feições. Fazia já um ano desde que ela colocara
os olhos no homem para quem seu espírito infantil vivia.

Lancelot, enquanto Elaine estava planejando sua captura, permanecia com a Rainha na Corte. Mas
ele agora já não tinha a paz de espírito temporária que fora capaz de inventar para si mesmo
enquanto o Rei estava fora. Na ausência do Rei, ele fora capaz de mergulhar no minuto presente —
mas Arthur agora estava constantemente a seu lado, como um lembrete de sua traição. Para uma
personalidade medieval como a de Lancelot, com sua fraqueza fatal para amar o mais elevado
quando o defrontava, esta era uma posição de sofrimento. Não suportava ser levado a pensar que
seus sentimentos por Guenevere eram ignóbeis, pois era o sentimento profundo de sua vida — no
entanto, toda circunstância agora conspirava para fazê-lo parecer desprezível. Os apressados
momentos juntos, as portas trancadas e artimanhas vis, as manobras culpadas a que a presença do
esposo forçava os amantes — tudo isto tinha o efeito de manchar o que não tinha desculpa a não ser
se fosse belo. Sobre essa mancha havia a tortura de saber que Arthur era gentil, simples e honesto

— de saber que estava sempre prestes a ferir terrivelmente Arthur, muito embora o amasse.

Depois, havia a dor pela própria Guenevere, a sementinha amarga que eles semearam, ou viram
semear, nos olhos um do outro, por ocasião de sua primeira briga por suspeita. Para ele, era um
sofrimento estar apaixonado por uma mulher ciumenta e desconfiada. Ela dera-lhe um golpe mortal
ao não acreditar imediatamente em sua explicação sobre Elaine. No entanto, era incapaz de deixar
de amá-la. Por fim, havia os elementos tortuosos de seu próprio caráter — seu estranho desejo de
pureza e honra e excelência espiritual. Todas essas coisas, em conjunto com o pavor inconsciente
da chegada de Elaine com seu filho, despedaçaram sua felicidade sem deixar rota de fuga. Raras
vezes se sentava, mas vagava sem destino com movimentos nervosos, apanhando coisas e
colocando-as em qualquer lugar, sem olhá-las, caminhando até a janela e olhando para tora sem
nada ver.

Em Guenevere, o pavor da chegada de Elaine não era inconsciente. Ela soube, desde o primeiro
momento, que a rival viria. Para ela, no entanto, como para todas as mulheres, os medos
adiantavam-se em relação ao horizonte masculino. Os homens muitas vezes acusam as mulheres de
levá-los a ser desleais pelo ciúme sem sentido, antes de ter existido qualquer pensamento de
infidelidade da parte deles. No entanto, a idéia provavelmente estava lá, inconsciente e
indetectável, exceto pelas mulheres. A grande Anna Karenina, por exemplo, forçou Vronsky a
tornar determinada posição pelo ciúme sem causa de uma maníaca — no entanto, aquela posição
era a única solução real para o problema deles, e era a solução inevitável. Sendo capaz de ver
muito mais à frente no futuro do que ele, ela caminhou nessa direção com passo apaixonado,
arruinando o presente porque o futuro estava destinado a ser uma ruína.

Assim acontecia com Guenevere. Provavelmente, não se sentia pressionada pelo problema
imediato de Elaine. Provavelmente, não tinha verdadeiras suspeitas quanto àquele aspecto de
Lancelot. No entanto, com sua presciência, tinha consciência de perdições e sofrimentos que
estavam fora da previsão do seu amado. Não seria acurado dizer que ela estava consciente deles deuma maneira lógica, mas eles estavam presentes no mais profundo de seu ser. É uma pena que a
linguagem seja uma arma tão grosseira a ponto de não podermos dizer que uma mãe estava
"inconsciente" de seu bebê chorando no quarto ao lado — com o significado de que a mãe, de
algum modo, inconscientemente, sabia que ele estava chorando. Os fatos sobre os quais Guenevere
tinha essa subconsciência, nesse sentido, incluíam o conjunto da situação de Arthur-Lancelot,
grande parte da futura tragédia da Corte e a realidade dolorosa de sua própria incapacidade de ter
filhos — que nunca seria remediada.

Ela disse a si mesma que Lancelot a traíra, que era ela a vítima da esperteza de Elaine, que seu
amado com certeza a trairia de novo. Torturava-se com milhares de palavras do mesmo tipo. Mas o
que sentia no fundo de si mesma, nas regiões não mapeadas de seu coração, era uma outra coisa.
Talvez realmente tivesse ciúme, não de Elaine, mas da criança. Talvez fosse o amor de Lancelot
por Arthur que ela temia. Ou talvez fosse o medo da situação como um todo, de sua instabilidade e
do castigo justo inerente a ela. As mulheres sabem, muito melhor do que os homens, que não se
deve zombar das leis de Deus. Têm mais motivo para saber disso.

Seja qual for a explicação para a atitude de Guenevere, seu resultado era sofrer por seu amado.
Tornou-se tão inquieta quanto ele, com menos razão, e muito mais cruelmente.


Os sentimentos de Arthur completavam a infelicidade da Corte. Infelizmente para si próprio, ele
teve uma educação primorosa. Seu mestre tinha lhe ensinado da maneira como um bebê é educado
no útero onde vive a história do homem, de peixe a mamífero — e, como a criança no útero, fora,
ao mesmo tempo, protegido pelo amor. O efeito de uma educação assim foi que ele cresceu sem
nenhuma das habilidades úteis para a vida — sem malícia, vaidade, desconfiança, crueldade, e as
formas comuns de egoísmo. Para ele, o ciúme parecia o mais ignóbil dos vícios. Era tristemente
incapaz de odiar seu melhor amigo ou torturar sua esposa. Recebera demasiado amor e confiança
para ser bom nessas coisas.

Arthur não era uma dessas personalidades interessantes cujas motivações sutis podem ser
dissecadas. Era apenas um homem simples e afetuoso, porque Merlin acreditara que amor e
simplicidade eram coisas valiosas para se possuir.

Agora, tendo diante dos olhos o desenvolvimento de uma situação que sempre foi notoriamente
difícil de resolver — tão difícil que recebeu um rótulo e o nome de Triângulo Eterno, como se
fosse um problema geométrico como o Pons Asinorum{16} de Euclides —, Arthur só podia recuar.
Em geral, são as pessoas confiantes e otimistas que podem se dar ao luxo de recuar. Os mal-
amados e desesperados, por seu pessimismo, são impelidos ao ataque. Arthur era forte e bondoso o
bastante para esperar que, se confiasse em Lancelot e Guenevere, as coisas acabariam se
endireitando. Achava isso melhor do que tentar endireitá-las de uma vez recorrendo a meios como,
por exemplo, cortar as cabeças dos amantes por traição.

Arthur não sabia que Lancelot e Guenevere eram amantes. Ele, na verdade, nunca os vira juntos
nem desenterrara provas de culpa. Nessas circunstâncias, estava na natureza de seu espírito
confiante não os encontrar juntos — em vez de armar uma armadilha para arruinar de vez a
situação. Isto não significa que fosse um marido conivente. Apenas quer dizer que ele esperava
suportar o problema recusando-se a tomar consciência dele. Inconscientemente, é claro, ele sabia
muito bem que eles estavam dormindo juntos — também sabia, inconscientemente, que se
perguntasse a sua esposa, ela o admitiria. As três maiores virtudes dela eram coragem,
generosidade e honestidade. Portanto, ele não podia lhe perguntar.

Tal atitude frente ao problema não tornava mais fácil para o fiei ser feliz. A seu modo, nem
excitado como Guenevere, nem inquieto como Lancelot, ele se manteve reservado. Deslocava-se
como um rato por seu próprio palácio. Nesse ínterim, fez um esforço para desatar o nó.

— Lancelot — disse o Rei ao encontrá-lo uma tarde no jardim das rosas —, ultimamente você anda
com um ar lamentável. Está com algum problema?
Lancelot havia arrancado uma das rosas e apertava suas sépalas. Essas rosas antigas — há pouco
foi confirmado — floriam de tal maneira que as cinco sépalas realmente se alongavam para além
das pétalas, exatamente como são representadas nas rosas heráldicas.

— E alguma coisa — perguntou o Rei, contra toda a esperança — em relação àquela moça que
dizem ter um filho seu?
Se Arthur o tivesse deixado apenas com a primeira pergunta, e um silêncio para respondê-la, talvez
eles tivessem chegado à questão. Mas Arthur tinha medo do que poderia vir do silêncio e, depois


que deu a dica da segunda pergunta, a chance foi perdida.

— Sim — Lancelot respondeu.
— Você não está disposto a se casar com ela, é isso?
— Eu não a amo.
— Bem, você conhece melhor seus problemas.
Lancelot, com um desejo incontrolável de tirar um pouco do sofrimento do seu peito talando sobre
ele — e mesmo assim incapaz de contar a história verdadeira para esse ouvinte em especial —,
começou uma longa história sem nexo sobre Elaine. Começou contando para Arthur meia-verdade:
de que forma fora envergonhado, e como tinha perdido seus milagres. Mas sendo obrigado a fazer
de Elaine a figura central desta confissão, depois de meia hora, sem querer apresentara ao Rei uma
história -— passível de se crer — com a qual Arthur podia se contentar se não quisesse realmente
conhecer a história verdadeira. Essa meia-verdade foi de grande utilidade para o pobre sujeito, que
aprendeu a substituir o verdadeiro problema por ela nos anos posteriores. Nós, pessoas
civilizadas, que em tais circunstâncias imediatamente correríamos para os tribunais de divórcio e
pensões alimentícias e outras formas de atritos, podemos nos dar ao luxo de olhar com educado
desprezo o pusilânime marido enganado Mas Arthur era apenas um selvagem medieval. Não
entenderia nossa civilização e não poderia fazer outra coisa senão tentar ser absolutamente decente
para não se degradar por ciúme.

Guenevere foi a pessoa seguinte a encontrar Lancelot no jardim das rosas. Mostrou-se toda doce e
cheia de bom senso.

— Lance, você ouviu a notícia? Um mensageiro acabou de chegar para dizer que esta moça que o
persegue está vindo para a Corte trazendo o bebê. Ela chegará no começo da noite.
— Eu sabia que ela viria.
— Devemos tratá-la da melhor maneira possível, claro. Pobre criança, suponho que deva estar
infeliz.
— Não é minha culpa se ela está infeliz.
— Não, claro que não é. Mas o mundo faz pessoas infelizes, e devemos ajudá-las quando podemos.
— Jenny, é bonito de sua parte ser tão gentil sobre isso.
Ele virou-se para ela e fez um movimento para segurar sua mão. As palavras dela fizeram-no
esperar que tudo ficaria bem. Mas Jenny retirou sua mão.

— Não, querido — disse. — Não quero que você faça amor comigo até ela ir embora. Quero que
você se sinta completamente livre.
— Livre?
— Ela é a mãe de seu filho, e não é casada. Nós dois nunca poderemos nos casar. Quero que você
se sinta livre para se casar com ela, se quiser, porque esta é a única coisa que pode ser feita.
— Mas, Jenny...

Não, Lance. Temos de ser sensatos. Quero que você fique longe de mim enquanto ela estiver aqui,
para descobrir se pode amá-la, depois de tudo. Isto é o mínimo que posso fazer por você.


XVII


Elaine chegou à barbacã escancarada, e Guenevere a beijou friamente.

— Seja bem-vinda a Camelot — disse. — Cinco mil vezes bem-vinda.
— Obrigada — disse Elaine.
As duas mulheres se olharam com rostos hostis e sorridentes.
— Lancelot ficará feliz em ver você.
— Oh!
— Todo mundo sabe sobre seu filho, querida. Não há nada para esconder. O Rei e eu estamos
muito ansiosos para ver se ele será como seu pai.
— É gentil de sua parte — disse Elaine, desconfortável.
— Quero ser a primeira a vê-lo. Você lhe deu o nome de Galahad, não é? Ele é forte? Já pode ver
as coisas?
— Ele pesa seis quilos e oitocentos — a jovem anunciou com orgulho. — Você pode vê-lo agora,
se quiser.
Guenevere controlou-se com esforço quase imperceptível, e começou a ficar nervosa com as
roupas de Elaine,

— Não, querida, — ela disse. — Não devo ser tão egoísta. Você deve descansar depois da longa
viagem, e certamente o bebê tem que ir para a cama. Posso voltar para vê-lo no final da tarde,
depois que ele tiver dormido. Teremos muito tempo.
Mas ela acabou tendo de ver o bebê.

Quando, depois, Lancelot encontrou a Rainha, sua doçura e bom senso tinham desaparecido. Estava
fria e orgulhosa, e falou como se estivesse em uma reunião.

— Lancelot — disse —, acho que você deve ir ver seu filho. Elaine está sofrendo porque você
ainda não foi vê-lo.
— Você o viu?

— Sim.
— Ele é feio?
— Parece com Elaine.
— Graças a Deus. Irei imediatamente.
A Rainha o chamou de volta.
— Lancelot — ela disse, respirando pelo nariz —, confio que você não fará amor com Elaine sob
meu teto. Se você e eu devemos manter-nos afastados até que isso esteja terminado, é também justo
que você se mantenha longe dela.
— Eu não quero fazer amor com Elaine.
— Você deve dizer isso, é claro. E eu acreditarei em você. Mas se você quebrar sua palavra desta
vez, tudo estará terminado entre nós. Absolutamente terminado.
— Já disse tudo que posso dizer.
— Lancelot, você me enganou uma vez, então como pode ter certeza? Mandei colocar Elaine no
quarto próximo ao meu, e verei se você for lá. Quero que você fique no seu quarto.
— Como quiser.
— Mandarei chamá-lo durante a noite, se puder me afastar de Arthur. Não lhe direi a que horas. Se
você não estiver em seu quarto quando eu mandar chamá-lo, concluirei que está com Elaine.
A jovem chorava em seu quarto, enquanto a Dama Brisen arrumava o berço para o menino.

— Eu o vi nos campos dos arqueiros, e ele também me viu. Mas olhou para o outro lado. Deu uma
desculpa e se afastou. Nem olhou para nosso filho.
— Pronto, pronto — disse a Dama Brisen. — Isso está uma sujeira.
— Eu não deveria ter vindo. Só serviu para me fazer ainda mais infeliz, e a ele também.
— É aquela Rainha.
— Ela é linda, não é?
A Dama respondeu, severa:
— Belo é quem o belo faz.
Elaine começou a soluçar com desamparo. Tinha um aspecto nada atraente, com o nariz vermelho,
como em geral ficam as pessoas que abdicaram de sua dignidade.

— Queria que ele ficasse contente.
Ouviu-se uma batida na porta, e Lancelot entrou — o que a fez secar rapidamente os olhos.
Cumprimentaram-se com constrangimento.

— Estou feliz por você ter vindo a Camelot — ele disse. — Espero que esteja bem.

— Sim, obrigada.
— Como está... o bebê?
— Filho de sua senhoria — disse a Dama Brisen, com ênfase. Ela virou o berço para Lancelot e se
afastou para que ele pudesse olhar.
— Meu filho.
Ficaram imóveis olhando para o recém-nascido, indefeso e semi-adormecido. Eles eram fortes,
como cantou o poeta, e o bebê, fraco — um dia eles seriam fracos, e ele, forte.

— Galahad — disse Elaine, e se inclinou sobre os panos, fazendo os gestos tolos e os sons sem
sentido que as mães adoram fazer quando seus bebês estão começando a prestar atenção. Galahad
fechou o punho e com ele bateu no próprio olho, uma façanha que parece dar prazer às mulheres.
Lancelot observou-os com espanto. "Meu filho", pensou. "É uma parte de mim, no entanto é bonito.
Não parece feio. Os bebês nos surpreendem." Estendeu o indicador direito para Galahad,
colocando-o dentro da palma gorducha de sua mão, e o bebê o agarrou. A mão parecia ter sido
adaptada ao braço por um hábil fabricante de bonecas. Havia uma ruga funda ao redor do pulso.
— Oh, Lancelot! — exclamou Elaine.
Ela tentou se jogar nos braços dele, mas ele afastou-a. Olhou para Brisen por cima do ombro, com
receio e irritação. Emitiu um som extravagante, sem sentido, e saiu apressadamente do quarto.
Elaine, desesperada, afundou-se na cama e desatou a chorar ainda mais do que antes. Brisen, de pé
e rígida, como ficara ao enfrentar o olhar de Lancelot, fitou a porta fechada com expressão
inescrutável.


XVIII


De manhã, ele e Elaine foram chamados ao quarto da Rainha. Ele, por sua parte, foi com um
sentimento de felicidade. Estava pensando em como Guenevere deve ter dito que não estava
passando bem na noite passada, para poder se afastar do quarto do Rei. O amante fora chamado na
escuridão. A mão conivente usual o conduzira pelo dedo, na ponta dos pés, até a cama eleita. No
silêncio que lhes era imposto pela proximidade do quarto de Arthur, mas com ternura apaixonada,
eles fizeram o melhor que puderam para fazer as pazes. Lancelot estava mais feliz hoje do que fora
desde que a história de Elaine começara. Sentia que se pudesse persuadir sua Guenevere a terminar
honestamente com o Rei, para que tudo ficasse às claras, ainda poderia divisar uma possibilidade
honrosa.

Guenevere estava rígida, como se estivesse com febre, e sua face parecia exangue — exceto por um
mancha vermelha de cada lado das narinas. Aparentava ter tido enjôos. Estava sozinha.

— Então — disse a Rainha.
Elaine olhou direto em seus olhos azuis, mas Lancelot parou como se tivesse sido alvejado.
— Então.
Eles ficaram de pé, esperando Guenevere falar ou morrer.
— Aonde você foi a noite passada?
— Eu...
— Não diga nada — gritou a Rainha, levantando a mão para que eles pudessem ver que segurava,
como uma bola, um lencinho que fizera em pedaços. — Traidor! Traidor! Saia do meu castelo com
sua meretriz.
— A noite passada... — disse Lancelot. Sua cabeça estava girando com um desespero que nenhuma
das mulheres notara.
— Não fale comigo. Não minta para mim. Vá!
Elaine disse calmamente:
— Sir Lancelot estava em meu quarto na noite passada. Minha ama Brisen trouxe-o até mim no
escuro.

A Rainha começou a apontar para a porta. Fazia gestos dramáticos com o dedo em direção à porta
e, em seu tremor, seu penteado começou a se desfazer. Parecia medonha.

— Saia! Saia! E você também, sua infame! Como ousa me falar assim em meu castelo? Como ousa
admitir isso para mim! Pegue o homem de seus caprichos e vá embora!
Lancelot estava respirando com dificuldade e olhando para a Rainha com olhar fixo. Talvez
estivesse inconsciente.

— Ele pensou que estivesse com você — disse Elaine, que juntara as mãos e olhava para a Rainha,
passivamente,
— A velha mentira!
— Não é mentira — disse Elaine. — Eu não posso viver sem ele. Brisen me ajudou na farsa.
Guenevere correu até ela com passos cambaleantes. Pretendia dar um tapa na boca de Elaine, mas a
jovem não se moveu. Era como se quisesse que Guenevere a estapeasse.

— Mentirosa! — gritou a Rainha.
Correu de volta para onde estava Lancelot, que havia se sentado em uma arca, fixando o olhar
vazio no chão, com a cabeça entre as mãos. Agarrou-o pelo manto e começou a puxá-lo ou
empurrá-lo para a porta, mas ele não se mexia.

— Então, você contou para ela a história! Por que não podia inventar outra nova? Você poderia ter
inventado algo mais interessante. Suponho que pensou que a velha e batida cantilena serviria?
— Jenny... — ele disse, sem olhar para cima.
A Rainha tentou cuspir-lhe na cara, mas não tinha prática nisso.
— Como ousa me chamar de Jenny? Você ainda está com o fedor dela. Eu sou a Rainha, a Rainha
da Inglaterra! Não sou sua vagabunda!
— Jenny...
— Saia do meu castelo — gritou a Rainha a plenos pulmões. — Nunca mais coloque sua cara aqui
outra vez. Sua cara perversa, feia, animalesca.
Lancelot de repente disse para o chão, em voz alta:

— Galahad!
Depois, tirou as mãos da cabeça e olhou para cima, para que elas pudessem ver a cara à qual a
Rainha se referira. Tinha um ar surpreso, e um dos olhos começara a envesgar. Disse, com mais
calma:

— Jenny.
Mas parecia cego.
A Rainha abriu a boca para dizer alguma coisa, mas nada saiu.
— Arthur — ele disse. Depois, deu um grito agudo e pulou direto da janela, que estava no primeiro

andar. Ouviram-no cair num arbusto, com uma pancada e o quebrar de galhos, e então o viram
afastar-se correndo entre as árvores e arbustos com uma espécie de grito alto e trinado, como os
cães atrás da presa. O alarido se perdeu na distância, e fez-se silêncio no quarto entre as mulheres.

Elaine, agora tão pálida quanto a Rainha estivera, mas ainda se mantendo altiva e de pé, disse:

— Você o enlouqueceu. Com certeza, perdeu o juízo.
Guenevere nada disse.
— Por que você o enlouqueceu? — perguntou Elaine. — Você tem um excelente marido, o maior
na terra. Você é Rainha, com honra, felicidade e um lar. Eu não tenho lar nem esposo, e também
minha honra foi perdida. Por que não quis deixá-lo para mim?
A Rainha permaneceu silenciosa.

— Eu o amava — disse Elaine. — Pari um belo filho para ele, que será o melhor cavaleiro do
mundo.
— Elaine — disse Guenevere —, saia da minha Corte.
— Vou sair.
Guenevere de repente agarrou-a pela saia.
— Não diga a ninguém — disse rapidamente, — Não diga a ninguém o que aconteceu. Ele morrerá,
se você contar.
Elaine puxou sua saia.

— Acha que eu faria isso?
— Mas o que vamos fazer? — exclamou a Rainha. — Ele está louco? Será que vai melhorar? O
que vai acontecer? Será que devemos fazer alguma coisa? O que vamos dizer?
Elaine não queria ficar para conversar com ela. Chegando à porta, no entanto, virou-se com os
lábios tremendo.

— Sim, ele está louco — ela disse. -— Você o conquistou e o derrotou. O que fará com ele agora?
Quando a porta se fechou, Guenevere sentou-se. Deixou cair seu lencinho despedaçado. Depois —
lentamente, profundamente, primitivamente — começou a chorar. Pôs o rosto entre as mãos e
estremeceu de tristeza. (Sir Bors, que não gostava da Rainha, uma vez lhe disse: "Desconfiai de seu
choro, pois só chorais quando já não há remédio".)


XIX


Dois anos mais tarde, o Rei Pelles estava sentado no solário com Sir Bliant. Era uma bela manhã
de inverno com os campos congelados, sem vento, e uma leve neblina que não era suficiente para
confundir os pombos. Sir Bliant, que ali passara a noite, estava vestido de escarlate e pele de
arminho. Seu cavalo e escudeiro estavam no pátio, prontos para levá-lo de volta ao Castelo Bliant,
mas os dois homens estavam tendo uma ligeira refeição antes de sua partida. Sentados com as mãos
abertas ao esplêndido lume de madeira, bebericavam vinho aquecido e temperado com especiarias,
beliscavam tortas e falavam sobre o Selvagem.

— Tenho certeza de que ele já foi um cavaleiro — disse Sir Bliant. — Faz coisas que ninguém,
exceto um cavaleiro faria. Tem uma inclinação natural para as armas.
— Onde ele está agora? — perguntou o Rei Pelles.
— Só Deus sabe. Ele desapareceu uma manhã quando os cães de caça estavam no Castelo Bliant.
Mas tenho certeza de que já foi um cavaleiro.
Tomararn um gole e fitaram as chamas.

— Se você quer saber minha opinião — acrescentou Sir Bliant —, acredito que ele era Sir
Lancelot.
— Bobagem — disse o Rei.
— Era alto e forte.
— Sir Lancelot está morto — disse o Rei. — Que Deus o tenha. Todo mundo sabe disso.
— Não foi provado.
— Se ele fosse Sir Lancelot, você não teria como não perceber. Era o homem mais feio que jamais
vi.
— Eu nunca o vi — disse Sir Bliant.
— Foi provado que Lancelot corria enlouquecido de camisa e calções, até ser ferido por um javali
e morrer num eremitério.
— Quando foi isso?
— No último Natal.

— Foi mais ou menos na época que meu Selvagem fugiu com a caça. A nossa também era uma
caçada de javali.
— Bem — disse o Rei Pelles —, talvez tenham sido uma mesma pessoa. Se foram, é interessante.
Como o seu Selvagem apareceu?
— Foi durante uma aventura de verão, há dois anos. Minha tenda estava montada num campo
agradável, à maneira usual, e eu estava lá dentro, esperando que alguma coisa acontecesse. Eu me
lembro que estava jogando xadrez. Então, houve um barulho horrível do lado de fora, e eu saí da
tenda, e lá estava o lunático nu, chicoteando meu escudo. Meu anão estava sentado no chão,
esfregando o pescoço — o maníaco quase o quebrou — e gritando por socorro. Cheguei até o
sujeito e lhe disse: "Olhe aqui, meu bom homem, você não quer lutar comigo. Vamos, agora ponha
essa espada no chão e seja um bom companheiro". Ele pegara uma das minhas próprias espadas,
sabe, e imediatamente percebi que era louco. Eu disse: "Você não deve andar por aí lutando, meu
rapaz. Estou vendo que precisa é de uma boa noite de sono e de alguma coisa para comer". E,
realmente, ele tinha um aspecto horrível. Parecia alguém que estivera de sentinela por três noites.
Seus olhos escavam completamente vermelhos.
— O que ele disse?
— Apenas disse: "Quanto a isso, não vos aproximai: pois se o fizerdes sabeis bem que vos
matarei".
— Estranho.
— Sun, é estranho, não é? Quero dizer, que ele soubesse a linguagem erudita.
— O que ele fez?
— Bom, eu estava só com meu camisão, e o homem parecia perigoso. Entrei outra vez na tenda e
vesti minha armadura.
O Rei Pelles passou-lhe outro pedaço de torta, que ele aceitou com uma inclinação de cabeça.

— Quando acabei de me armar — prosseguiu, de boca cheia —, saí com outra espada para
desarmar o sujeito. Não pretendia acertá-lo, nem nada assim, mas era um maníaco homicida e não
havia outra maneira de lhe tirar a espada. Avancei para ele como se faz com um cachorro,
estendendo a mão e dizendo: "Vamos, pobrezinho: calma, vamos, bom rapaz". Pensei que seria
fácil.
— E foi?
— No momento em que ele me viu de armadura, e com uma espada, veio direto para cima de mim
como um tigre. Nunca vi um ataque como aquele, tentei defender-me um pouco, e ouso dizer que o
teria matado em autodefesa, se ele tivesse me dado uma chance. Mas quando dei por mim, estava
sentado no chão e meu nariz e orelhas estavam sangrando. Ele me deu uma pancada, sabe, que me
perturbou os miolos.
— Céus! — disse o Rei Pelles.
— O que ele fez a seguir foi atirar longe a espada e entrar rapidamente na tenda. A coitada de

minha mulher estava lá, na cama, sem nenhuma roupa. Mas ele apenas pulou direto na cama com
ela, puxou a coberta, se enrolou e caiu no sono.

— Deve ter sido casado —-disse o Rei Pelles.
— Minha esposa deus uns gritinhos assustados, pulou da cama pelo outro lado, meteu-se
apressadamente em suas vestes e veio correndo até onde eu estava. Eu ainda estava um pouco
zonzo, esparramado lã no chão, e ela pensou que eu estivesse morto. Posso lhe garantir que foi um
belo rebuliço.
— Ele dormiu o tempo todo?
— Dormiu como uma pedra. No final, conseguimos nos controlar. Minha esposa pôs uma das
manoplas debaixo do meu pescoço para estancar o sangramento do nariz, e então discutimos o que
fazer. Meu anão, que é uma pessoinha esplêndida, disse que não deveríamos lhe fazer nenhum mal,
porque ele estava tocado por Deus. Na verdade, foi o anão que suspeitou que ele poderia ser Sir
Lancelot. Naquele ano, comentava-se por todo lado o mistério de Lancelot.
Sir Bliant parou para dar outra mordida.

— No final — continuou —, nós o levamos para o Castelo Bliant em uma liteira puxada por
cavalos, com cama e tudo. Ele nem se mexeu. Quando chegamos lá, amarramos suas mãos e pés
pensando na hora em que ele despertaria. Hoje, lamento tê-lo feito, mas não poderíamos nos
arriscar, em face do que havia ocorrido. Nós o mantivemos em um quarto confortável, com roupas
limpas, e minha esposa lhe dava abundante comida nutritiva para que recuperasse suas forças, mas
achamos melhor mantê-lo sempre algemado. Nós o mantivemos assim por um ano e meio.
— Como ele fugiu?
— Já ia chegar lá. É o creme da história. Uma tarde, eu estava fora, na floresta, para uma busca de
meia hora, quando fui atacado pelas costas por dois cavaleiros.
— Dois cavaleiros? — perguntou o Rei. — Pelas costas?
— Sim. Dois deles, e pelas costas. Eram Sir Bruce Saunce Pite e um amigo dele.
O Rei Pelles deu uma palmada no joelho.
— Esse homem é uma ameaça pública! — exclamou. — Não entendo por que ninguém ainda
acabou com ele.
— O problema é pegar o sujeito. Mas eu estava lhe contando sobre o Selvagem. Sir Bruce e o outro
sujeito me puseram em considerável desvantagem, como qualquer um admitirá, e lamento dizer que
foi obrigado a fugir.
Sir Bliant parou e fixou os olhos no fogo. Depois se animou.

— Bem — disse —, nem todos podemos ser heróis, não é?
— Nem todos — concordou o Rei Pelles.
— Eu estava gravemente ferido — disse Sir Bliant, descobrindo uma justificativa —, e me sentia
como se fosse desmaiar.

— Entendo.
— Os dois foram galopando comigo por todo o caminho até o castelo, um de cada lado, e ficavam
me batendo o tempo todo. Não sei até hoje como saí vivo.
— Estava escrito nas Pedras — disse o Rei.
— Passamos, disparados, pelas seteiras da barbacã, e foi aí que o Selvagem deve ter nos visto. Ele
ficava no quarto da barbacã, sabe? Bem, seja como for, ele nos viu, e descobrimos depois que
quebrou seus grilhões com as mãos nuas. Eram grilhões de ferro, e ele também os tinha nos
tornozelos. Feriu-se horrivelmente ao fazer isso. Então, veio como um furacão passando pelos
portões, com as mãos todas ensangüentadas e as correntes voando atrás; depois, puxou da sela o
aliado de Bruce, tirou-lhe a espada e acertou Bruce na cabeça, de tal maneira que o jogou para fora
do cavalo e ele caiu de nariz estatelado no chão. O segundo cavaleiro tentou acertar o Selvagem
por trás — ele estava absolutamente desarmado —, mas eu cortei fora a mão do sujeito bem no
pulso, no momento em que ele levantava o punhal. Então os dois pegaram os cavalos e fugiram
como puderam. Correram como ensandecidos, posso lhe dizer.
Bem feito para Bruce.

— Meu irmão estava passando aquele ano comigo. Eu lhe perguntei: "Por que diabos deixei esse
bom rapaz acorrentado?". Fiquei envergonhado quando vi suas mãos feridas. "Ele é gentil e bom",
eu disse, "e agora salvou minha vida. Nunca mais vamos acorrentá-lo outra vez, ao contrário, lhe
daremos sua liberdade e faremos tudo que pudermos por ele". Sabe, Pelles, eu gostava daqueleSelvagem. Ele era amável e agradecido, e costumava me chamar de Senhor. É terrível pensar que
pode ter sido o grande Dulac, e nós o mantendo acorrentado e deixando-o me chamar de Senhor
com tanta humildade.
— O que aconteceu no finai?
— Ele ficou tranqüilo durante vários meses. Então, os cães de caça de javalis vieram até o castelo,
e um dos seguidores deixou seu cavalo e sua lança perto de uma árvore. O Selvagem os pegou e foi
embora. Era como se ele se excitasse ao ver atividades de cavaleiros, sabe, como se uma
armadura, ou uma luta, ou uma caçada, mexesse com alguma coisa em sua pobre cabeça. Faziam
com que tivesse vontade de participar.
— Pobre rapaz, — disse o Rei. — Pobre, pobre rapaz! Pode mesmo ter sido Sir Lancelot. Dizem
que ele foi morto por um javali no Natal passado.
— Eu gostaria de conhecer essa história.
— Se seu homem era Lancelot, ele cavalgou direto atrás do javali que estava sendo caçado. Era um
javali famoso que tinha confundido os cães por vários anos, e era por isso que a caçada não estava
sendo feita a pé. Lancelot foi o único homem que chegou junto da presa e o javali matou seu cavalo.
Feriu-o terrivelmente na coxa, rasgando-o até o osso, antes que Lancelot lhe cortasse a cabeça. Ele
o matou perto do eremitério, com um único golpe. O eremita apareceu, mas Lancelot estava tão
furioso com a dor e tudo o mais que atirou sua espada no homem. Escutei isso de um cavaleiro que
realmente esteve lá. Disse que não havia dúvida quanto a

Sir Lancelot — era feio e tudo o mais — e contou que ele e o eremita o carregaram até o eremitério
depois que desmaiou. Disse que ninguém poderia se recuperar daquele ferimento e que, de
qualquer modo, ele o viu morrer. O que lhe deu mais certeza, ele disse, que o Selvagem era um
grande cavaleiro foi que, ao passar pela agonia da morte ao lado do javali morto, chamou o eremita
de "Companheiro". Como você pode ver, ele parece ter sentido um lampejo de sanidade no final.

— Pobre Sir Lancelot — disse Sir Bliant.
— Que Deus seja bom com ele — disse o Rei Pelles. -— Amém.
— Amém — repetiu Sir Bliant, olhando para o lume. Depois, levantou-se e sacudiu os ombros.
— Tenho que ir andando —-disse. — Como está sua filha? Esqueci-me de perguntar.
O Rei Pelles suspirou e também ficou de pé.
— Ela passa seu tempo no convento — respondeu. — Acho que vai receber os votos no próximo
ano. No entanto, vamos poder vê-la no próximo sábado, quando ela virá para uma breve visita.

XX


Depois que Sir Bliant partiu, o Rei Pelles subiu pesadamente as escadas para fazer uni pouco de
genealogia bíblica. Estava intrigado com a história de Lancelot e interessado nisso por causa de
seu neto, Galahad. Todos nós já quase perdemos a cabeça por nossas mulheres e amores, mas o Rei
Pelles sabia que existe um traço inflexível na natureza humana que nos impede de a perdemos
completamente. Achava excêntrico, para dizer o mínimo, Lancelot perder a razão por um
desentendimento de amantes — e queria descobrir, examinando a genealogia de Ban, se havia um
traço de loucura na família que pudesse explicá-lo. Se houvesse, poderia ter passado para Galahad,
Talvez tivessem que mandar o menino para o hospital de Bethlehem, que séculos depois seria
chamado de Bedlam. Já havia problemas suficientes, não precisava de mais esse.

"O pai de Ban" — o Rei disse para si mesmo, limpando os óculos e assoprando o pó de várias
obras de Heráldica, Genealogia, Nigromancia e Matemática Mística — "era o Rei Lancelot de
Benwick, que se casou com a filha do Rei da Irlanda. Por sua vez, o pai do Rei Lancelot era Jonas,
que se casou com a filha de Manuel da Gália. Agora, quem era o pai de Jonas?"

Quando se pensa nisso, a mente de Lancelot realmente pode ter tido um traço frágil. Pode ter sido
esse o segredo que notamos, dez anos atrás, no fundo da mente do rapaz que virava o bacinete para
a frente e para trás, no Arsenal do Castelo de Benwick.

— Nacien — afirmou o Rei Pelles. — Raios partam esse Nacien. Parece que houve dois.
Recuara, depois de Lisais, Hellias Le Grose, Nacien, o Eremita — de quem provavelmente
Lancelot herdara sua tendência visionária —, e Nappus, até o segundo Nacien que, se existiu, teria
derrubado completamente a teoria do Rei de que Lancelot estava apenas a oito graus de Nosso
Senhor. Na verdade, quase todos os eremitas daquele tempo pareciam se chamar Nacien.

— Raios o partam — repetiu o Rei, e olhou pela janela para ver que barulho era aquele do lado de
fora do castelo.
Um Selvagem — parecia ter muitos deles zanzando por aí nesta manhã — estava sendo perseguido
em Corbin pelos aldeãos que, tempos atrás, tinham saído de suas casas para dar as boas-vindas a
Lancelot. Estava nu, magro como um fantasma, e corria com as mãos sobre a cabeça para protegê-
la. Os meninos que corriam em volta atiravam torrões de terra em sua direção. Ele parava de vez
em quando, agarrava um tios meninos e o jogava sobre a sebe. Isso só fez com que os meninos


passassem a atirar pedras. O Rei Pelles podia ver claramente o sangue correndo por seus malares
salientes, o rosto cavado, os olhos acossados, e as sombras azuladas entre suas costelas. Também
podia ver que o homem estava se dirigindo para o castelo.

No pátio, depois que o Rei Pelles desceu quase pulando as escadas, o povo do castelo se reunia
numa verdadeira multidão, em volta do Selvagem, todos admirados. Tinham baixado a grade
levadiça para que os meninos da aldeia não entrassem e estavam dispostos a tratar o fugitivo com
gentileza.

— Olhe as feridas dele — disse um dos escudeiros. — Veja aquela grande cicatriz ali. Talvez
tenha sido um cavaleiro errante antes de ficar louco e, portanto, devemos tratá-lo com cortesia.
O Selvagem estava de pé no meio do círculo, enquanto as mulheres soltavam risinhos e os pajens
apontavam. De cabeça baixa, imóvel e sem falar nada, estava na expectativa do que fariam com ele
a seguir.

— Talvez seja Sir Lancelot.
Com isso, houve uma grande gargalhada.
— Não, é sério. Nunca foi realmente provado que Lancelot morreu.
O Rei Pelles dirigiu-se direto ao Selvagem e examinou seu rosto. Teve que se inclinar de lado para
ver melhor.

— Você é Sir Lancelot? — ele perguntou.
O rosto macilento, sujo, barbudo: seus olhos sequer pestanejaram.
Mas não houve resposta do idiota.
— Ele é surdo e mudo — disse o Rei. — Vamos ficar com ele como bufão. Parece engraçado o
bastante, devo dizer. Alguém lhe arranje algumas roupas — roupas cômicas, entendem? — e o
ponha para dormir no pombal. Dê-lhe um pouco de palha limpa.
O idiota de repente levantou ambas as mãos e deixou escapar um rugido, que fez todos darem um
passo atrás. Os óculos do Rei caíram. Depois, ele baixou as mãos de novo e ficou como se
dormisse, fazendo as pessoas darem risadinhas nervosas.

— É melhor encerrá-lo — disse o Rei, prudentemente. — Primeiro, a segurança. E não lhe
estendam a comida, joguem-na. Cuidados nunca são demais.
Assim, Sir Lancelot foi levado para o pombal, para ser o bufão do Rei Pelles — e lá foi fechado,
alimentado com comida jogada e acomodado em palha limpa.

Quando o sobrinho do Rei, um rapaz chamado Castor, foi sagrado cavaleiro no sábado seguinte —
ocasião em que Elaine voltara à casa para participar da cerimônia —, houve alegria no castelo. O
Rei, que gostava de todo tipo de festas e comemorações, celebrou regiamente o ensejo, oferecendo
uma capa nova a cada homem da propriedade. Lamentavelmente, celebrou-a também fazendo uso
demasiado generoso das adegas presididas pelo esposo da Dama Brisen.

— Saúúúde! -— exclamou o Rei.

— Brindes e vivas! — replicou Sir Castor, que estava se comportando da melhor maneira possível.
— Todos receberam direitiiinho suaaas capas? — gritou o Rei.
— Sim, obrigado, Majestade — responderam os assistentes.
— Têeem certeza diiisso?
— Absoluta certeza, Majestade.
— Muitíssimo beeem, então. Todos encapados, agooora!
E o próprio Rei se enrolou em sua capa com grande entusiasmo. Em ocasiões assim, ele era um
homem diferente.

— Todo mundo quer agradecer a Sua Majestade, de todo o coração, pelo generoso presente.
— Não foooi nada.
— Três vivas para o Rei Pelles.
— Hurra! Hurra! Hurra!
— E caadeêê o boobo? — perguntou o Rei, de repente. — O boobo está com sua capa? Cadêêê o
pobre do booobo?
Com isso, houve um silêncio, pois ninguém se lembrara de dar uma capa para Sir Lancelot.

— Seem caapa? Não gaanhou caapa? — gritou o Rei. — Buusqueem o boobo jáááá!
Trouxeram Sir Lancelot do pombal, por régio favor. Ele ficou parado sob a luz das tochas, com
algumas palhas na barba, uma triste figura com sua roupa de retalhos.

— Poobre boobo — disse o Rei, com tristeza. — Poobre boobo. Venha, pegue a minha.
E apesar de todas as recomendações e advertências em contrário o Rei Pelles se desenrolou de sua
capa suntuosa e a colocou sobre Lancelot.

— Deeixe-o solto — gritou o Rei. — Ooo dia toodo, toodo. Nãoosepoodefeechar
umhomempaaraseempre.
Sir Lancelot, de pé, vestido com a capa Imponente, parecia estranhamente majestoso no salão
nobre. Se pelo menos sua barba estivesse aparada — nossa geração de cara rapada esqueceu a
diferença que o corte de uma barba pode fazer —, se pelo menos não tivesse quase morrido de
fome até ficar como um esqueleto na caverna do pobre eremita depois da caçada do javali, se pelo
menos não tivesse corrido o boato de que ele estava morto, mas, mesmo com tudo isso, uma
espécie de reverente estupefação penetrou no salão. O Rei não notou. Com passos medidos, Sir
Lancelot voltou para seu abrigo no pombal, e os guardas do castelo abriram-lhe alas à medida que
passava.


XXI


Elaine, como sempre, fizera a coisa mais sem graça possível. Guenevere, em circunstâncias
semelhantes, teria conseguido, sem dúvida, ficar pálida e interessante — mas Elaine só tinha
engordado. Caminhava pelo jardim do castelo com suas aias, vestida de roupa branca como uma
noviça, e sua maneira de andar era desajeitada. Galahad, agora com três anos, caminhava a seu
lado, segurando sua mão.

Não era que Elaine fosse ser freira porque estivesse desesperada. Ela não ia passar o resto de sua
vida atuando como uma freira de cinema. Uma mulher pode esquecer boa quantidade de amor em
dois anos — ou, seja como for, pode empurrá-lo para um lado e se acostumar com ele, e
dificilmente se lembrar mais dele do que um homem de negócios pode se lembrar de uma ocasião
quando, por falta de sorte, deixou de fazer um investimento que poderia torná-lo milionário.

Elaine ia deixar seu filho e se tornar uma noiva de Cristo porque percebeu que essa era a única
coisa a fazer. Não era algo dramático, e talvez não fosse muito respeitoso — mas ela sabia que
nunca mais amaria nenhuma pessoa humana quanto amara seu cavaleiro morto. Portanto, estava se
rendendo. Não conseguiria navegar contra o vento por muito tempo.

Não andava triste por Lancelot, nem chorava por ele no travesseiro. Mal pensava nele. O cavaleiro
havia cavado um recanto em seu coração, como faria uma concha roendo sem parar uma pedra. A
feitura desse lugar foi a sua dor. Mas agora a concha estava em segurança na pedra. Estava
abrigada e não escavava mais. Elaine, caminhando pelo jardim com suas aias, pensava apenas na
cerimônia em que Sir Castor fora sagrado cavaleiro, se haveria bolos suficientes para o banquete a
seguir, e que as meias de Galahad precisavam de remendos.

Uma das aias que estava jogando uma espécie de jogo de bola para se manter quente — o mesmo
jogo que Nausica estava jogando quando Ulysses chegou — veio correndo, de uma moita perto da
fonte, para onde estava Elaine. A bola a levara para aquela direção.

— Há um homem — ela sussurrou, quase como se tivesse visto uma cobra cascavel. — Há um
homem dormindo perto da fonte!
Elaine ficou interessada — não porque fosse um homem, nem porque a moça estava assustada, mas
porque era pouco comum alguém dormir ao ar livre em janeiro.


— Silêncio, então — ela disse. — Vamos lá ver.
A noviça rechonchuda com roupas brancas que foi pé ante pé até Lancelot, a jovem desajeitada que
avançava tranqüila em direção a ele, com seu rosto redondo que obstinadamente se recusara a
aceitar os traços nobres do sofrimento, a jovem matrona que acabara de pensar nos remendos das
meias de Galahad — esta pessoa não estava pensando nas suas necessidades nem no quanto era
vulnerável. Ia calma e inocentemente, preocupada com outros assuntos completamente diferentes,
como o coelho descuidado que vai pulando-e-mordiscando pelo caminho de costume. Mas o laço
da armadilha fecha-se de repente.

Elaine reconheceu Lancelot em duas batidas do coração. A primeira foi uma batida que subiu e
vacilou no ponto mais alto. A secunda alcançou-a aí, apanhou o impulso na crista da onda, e ambas
desceram juntas como um cavalo empinado que cai.

Lancelot estava estendido em sua capa de cavaleiro. Sir Bliant, ao observar que as coisas nobres
pareciam despertar alguma coisa no Selvagem, rinha razão. Impelido pela capa, por alguma
estranha recordação da gola de pele e da cor, o pobre tinha ido da mesa do Rei para a fonte. Lá, só
na escuridão, sem um espelho, lavara seu rosto. Esfregara as órbitas dos olhos com os nós dos
dedos ossudos. Com uma rascadeira e um par de tesouras da cavalariça tentara arrumar seu cabelo.

Elaine mandou suas aias embora. Entregou Galahad pela mão a uma delas, e ele foi sem protestar.
Era uma criança misteriosa.

Elaine ajoelhou-se ao lado de Sir Lancelot e o examinou. Não o tocou nem chorou. Fez um gesto
para afagar a mão magra do cavaleiro, mas achou melhor não fazer isso. Sentou-se sobre as pernas.
Então, depois de um longo tempo, ela realmente começou a chorar — mas era por Lancelot, por
seus olhos cansados acalmados pelo sono, e pelas cicatrizes brancas em suas mãos.

— Pai — disse Elaine —, se você não me ajudar agora, ninguém jamais o fará.
— O que foi, minha querida? — perguntou o Rei. — Estou com dor de cabeça.
Elaine não deu atenção à queixa.
— Pai, eu achei Lancelot.
— Quem?
— Sir Lancelot.
— Bobagem — disse o Rei. — Lancelot foi morto por um javali.
— Ele está dormindo no jardim.
O Rei saltou imediatamente do trono.
— Sempre o soube — ele disse. — Só que fui estúpido demais para admitir. É o Selvagem. É
óbvio.
Ele cambaleou um pouco e pôs a mão na cabeça.

— Deixe isso comigo — disse o Rei. — Deixe-me tratar disso. Sei exatamente o que fazer.
Mordomo! Brisen! Onde, diabos, estão todos? Ei! Ei! Ah, aí está você. Agora, mordomo, vá buscar

sua mulher, Dama Brisen, e traga também dois homens em quem possamos confiar. Deixe-me ver.
Chame Humbert e Gurth. Onde você disse que ele estava?

— Dormindo perto da fonte — Elaine respondeu rapidamente. — Certo. Então, avise a todos para
ficarem longe do jardim das rosas. Está escutando, mordomo? Todo mundo deve evitá-lo para não
atrapalhar o caminho por onde o Rei passará. E pegue um lençol. Um lençol forte. Vamos ter de
carregá-lo dentro do lençol, pelas quatro pontas. E arrume o quarto da torre. Diga a Brisen para
arejar as roupas de cama. Melhor arranjar uma cama de penas. Acenda o fogo e vá chamar o
médico. Diga a ele para procurar Loucura no Bartbolomeus Anglicus. Ah, e é melhor mandar
preparar algumas geléias e coisas assim. Durante seu sono pesado, teremos que vesti-lo com
roupas limpas.
Quando voltou a si, na cama limpa, Lancelot gemeu. Abriu os olhos e encarou o Rei Pelles. A
seguir, olhou para Elaine. Continuou fitando-os durante algum tempo e fez movimentos de fala com
os lábios simiescos. Depois, dormiu de novo.

Quando de novo acordou, eles puderam ver que os olhos estavam claros. Mas era evidente que
estava em um estado mental de dar pena. Contava com eles para se salvar.

Da terceira vez que acordou, ele disse:

— Oh, Senhor Jesus, como cheguei aqui?
Eles lhe fizeram as recomendações habituais como descansar por enquanto e não falar até se sentir
mais forte, e coisas assim. O médico acenou com a mão para a Orquestra Real, que imediatamente
começou a tocar Jesu Christes Milde Moder — pois o livro do Dr. Bartholomew recomendava que
os loucos devem ser alegrados com instrumentos. Todos observaram, esperançosamente, para ver o
efeito, mas Lancelot agarrou a mão do Rei e exclamou com angústia:

— Pelo amor de Deus, senhor, diga-me, como cheguei aqui?
Elaine pôs a mão em sua testa e o fez deitar-se.
— Você chegou como um louco — ela disse —, e ninguém sabia quem era. Você teve um colapso.
Lancelot virou os olhos perplexos para ela e sorriu nervosamente.
— Tenho sido um tolo — disse. Mais tarde perguntou:
— Muitas pessoas me viram enquanto estive louco?

XXII


O corpo de Lancelot vingou-se em seu espírito. Durante quinze dias, ele ficou de cama, no quarto
arejado, com dor em todos os ossos, enquanto Elaine permaneceu do lado de fora. Ela o tinha a sua
mercê, e poderia ter ficado a seu lado dia e noite. Mas havia algo em seu coração — ou decência,
ou orgulho, ou generosidade, ou humildade, ou a determinação de não ser uma canibal — que o
poupou. Visitava-o apenas uma vez por dia, e não lhe impunha nada. Certo dia, Lancelot a chamou
quando ela estava saindo. Ele estava sentado, vestindo um roupão, as mãos imóveis no colo.

— Elaine — disse —, acho que eu deveria estar fazendo planos.
Ela esperou pela própria sentença.
— Não posso ficar aqui para sempre — ele disse.
— Você sabe que será bem-vindo pelo tempo que quiser.
— Não posso voltar para a Corte.
Elaine respondeu, hesitante:
— Meu pai lhe dará um castelo, se você quiser, e nós ... poderemos viver lá juntos.
Ele olhou para ela, depois desviou os olhos.
— Ou você poderá ficar com o castelo.
Lancelot tomou-lhe as mãos e disse:
— Elaine, não sei o que dizer. Na verdade, não posso dizer nada.
— Eu sei que você não me ama.
— E acha que seríamos felizes assim?
— Só sei o que me fará infeliz.
— Não quero que você seja infeliz. Mas há diferentes maneiras de sê-lo. Não acha que pode
acabar sendo mais infeliz se vivermos juntos?
— Eu seria a mulher mais feliz do mundo.
— Veja, Elaine, nossa única esperança é falar francamente, mesmo que isso soe terrível. Você sabe
que não a amo, e que amo a Rainha. Foi um acidente o que aconteceu e não pode ser mudado. As

coisas acontecem realmente assim: não tenho o poder de alterá-las. E você me enganou duas vezes.
Se não fosse pelo que fez, eu ainda estaria na Corte. Acha que algum dia teremos alguma chance de
sermos felizes, vivendo juntos dessa maneira?

— Você foi meu homem antes de ser da Rainha — disse Elaine, orgulhosa.
Ele passou uma mão sobre os olhos.
— Você quer ter um esposo nesses termos?
— Tem Galahad — disse Elaine.
Sentaram-se lado a lado, olhando para a lareira. Ela não chorou nem pediu compaixão — e ele
sabia que ela o estava poupando dessas coisas.
Ele disse, com dificuldade:


— Ficarei com você, Elaine, se quiser que eu fique. Não entendo por que você haveria de querer
isso. Gosto de você, gosto muito. Não sei por que, depois do que aconteceu. Não quero que sofra.
Mas, Elaine... não posso me casar com você.
— Não me importo.
— É porque... é porque o casamento é um contrato. Eu... eu sempre me orgulhei da minha Palavra.
E se eu não... se eu não tenho aquele sentimento por você — ora, Elaine, não tenho obrigação
nenhuma de casar com você, quando foi você quem me enganou.
— Nenhuma obrigação.
— Obrigação! — exclamou Lancelot, com o rosto retorcido.
Foi como se jogasse a palavra no fogo da lareira porque tinha gosto ruim.
— Tenho de ter certeza que você entende, e que não a estou enganando. Não me casarei com você
porque não a amo, Não fui eu quem começou isso, e não posso lhe dar minha liberdade: não posso
prometer ficar com você para sempre. Não quero que aceite essas condições, Elaine, elas são
humilhantes. São ditadas pelas circunstâncias. Se eu fosse dizer outra coisa, seria mentira, e as
coisas ficariam piores...
Calou-se e escondeu o rosto nas mãos.


— Eu não entendo — disse. — Estou tentando fazer o melhor que posso.
Elaine respondeu:
— Sob quaisquer condições, você é meu amado e bondoso senhor.
O Rei Pelles lhes deu um castelo que Lancelot já conhecia. O inquilino, Sir Bliant, teve de sair —
o que ele fez ainda mais prontamente quando soube que seria uma cortesia para o Selvagem que lhe
salvara a vida.
— Ele é Sir Lancelot? — perguntou Bliant.
— Não — respondeu o Rei Pelles. — É um cavaleiro francês que chama a si mesmo de Chevalier

Mal Fet, Eu lhe disse que tinha certeza que Sir Lancelot estava morto.

Fora combinado que Lancelot viveria incógnito, porque, se fosse permitido que se espalhasse a
notícia de que ainda estava vivo e morando no Castelo Bliant, isso apenas provocaria um clamor
para que voltasse à Corte.

O Castelo Eliant tinha um fosso tão bem-feito que era praticamente uma ilha. A única maneira de
chegar até ele era de barco, a partir de uma barbacã do lado da terra, e o próprio castelo tinha em
volta uma cerca de ferro mágica, provavelmente um tipo de concertina. Dez cavaleiros foram
designados para servir a Lancelot, e vinte damas para servir Elaine.

Ela estava louca de alegria.

— Nós a chamaremos de Ilha da Alegria — ela disse. — Vamos ser tão felizes lá! E, Lance — ele
se encolheu quando ela o chamou pelo apelido —, eu quero que você cultive seus hobbies. Temos
que ter torneios, e falcoaria, e muitas coisas para fazer. Você deve convidar amigos para
temporadas, para que tenha companhia. Prometo que não terei ciúmes, Lance, e tentarei não viver
grudada em você. Não acha que poderemos ser felizes se formos cuidadosos? Não acha que ilha da
Alegria é um nome encantador?
Lancelot limpou a garganta e disse:

— Sim, é um nome excelente.
— É preciso mandar fazer um novo escudo para você, para que possa ir aos torneios sem ser
reconhecido. Que tipo de brasão gostaria de ter?
— Qualquer um — respondeu Lancelot. — Veremos isso mais tarde.
— Chevalier Mal Fet. Que nome romântico! O que quer dizer?
— Pode significar muitas coisas. Cavaleiro Imperfeito seria um dos significados, ou Cavaleiro que
Foi Feito Errado.
Ele não lhe disse que poderia também significar Cavaleiro Marcado pelo Mal — Cavaleiro
Amaldiçoado.

— Não acho que você seja feio... nem feito errado. Lancelot controlou-se. Sabia que seria muito
injusto ficar com Elaine se fosse se aborrecer, ou fazer a Grande Renúncia — mas, por outro lado,
era inútil tentar fingir.

Elaine chegou a barbacã escancarada, e Guenevere a beijou friamente.

— Seja bem-vinda a Camelot — disse. — Cinco mil vezes bem-vinda.
— Obrigada — disse Elaine.
As duas mulheres se olharam com rostos hostis e sorridentes.
— Lancelot ficará feliz em ver voei
— Oh!
— Todo mundo sabe sobre seu filho, querida. Não há nada para esconder, O Rei e eu estamos
muito ansiosos para ver se ele será como seu pai.
— É gentil de ma parte — disse Elaine, desconfortável
— É porque você é um amor — ele disse. Beijou-a rapidamente e de modo desajeitado, para
encobrir a falsidade da palavra. Mas Elaine percebeu.
— Você poderá cuidar pessoalmente da educação de Galahad — ela disse. — Poderá ensinar-lhe
todos os seus truques, para que ele se torne o melhor cavaleiro do mundo.
Ele a beijou outra vez. Ela dissera "se formos cuidadosos", e estava tentando ser cuidadosa. Sentiu
pena por sua tentativa e gratidão, pela decência de suas intenções. Sentia-se como um homem
distraído fazendo duas coisas ao mesmo tempo, uma delas importante e a outra sem importância.
Sentia uma obrigação em relação à que não era importante. Mas é sempre embaraçoso ser amado. E


não gostava de aceitar a humildade de Elaine em razão da opinião que tinha sobre si mesmo.

Chegou a manhã da mudança para Bliant, e o recém-nomeado cavaleiro, Sir Castor, deteve
Lancelot no saguão. Tinha apenas dezessete anos.

— Sei que você está se chamando de Cavaleiro Imperfeito — disse Sir Castor —, mas acho que
você é Sir Lancelot. É?
Lancelot puxou o garoto pelo braço.

— Sir Castor — disse —, acha que essa é uma pergunta de cavaleiro? Suponha que eu fosse Sir
Lancelot e só estivesse me chamando Chevalier Mal Fet. Você não acha que eu teria algumas
razões para fazer isso, razões que um cavaleiro de linhagem deveria respeitar?
Sir Castor ruborizou-se muito e dobrou um dos joelhos.

— Não contarei a ninguém — ele disse. E não contou.

XXIII


A primavera chegou devagar, o novo casal instalou-se, e Elaine organizou, um torneio para seu
cavaleiro. Como prêmios, haveria uma linda donzela e um gerifalte.

Quinhentos cavaleiros vieram de todas as partes do reino para competir no torneio — mas o
Chevalier Mal Fet derrubou todo mundo que o desafiou, com uma espécie de ferocidade distraída,
e a idéia resultou em fracasso. Os cavaleiros foram embora confusos e assustados. Nem uma única
pessoa foi morta — ele poupava todo inundo, com indiferença, depois de os derrubar no chão —, e
nem uma única palavra proferida, pelo menos pelo Chevalier. Os cavaleiros derrotados,
cambaleando com suas feridas, perderam a sociabilidade que geralmente reinava nas noites de
torneio, imaginando quem seria o cavaleiro taciturno, e conversavam supersticiosamente entre si.
Elaine, sorrindo bravamente até que o último deles se foi, subiu para seu quarto e chorou. Depois,
secou os olhos e foi procurar seu senhor. Ele desaparecera assim que a luta terminou, pois
adquirira o hábito de se isoIar ao pôr-do-sol, todos os dias — ela não sabia onde.

Encontrou-o nas ameias, em um clarão dourado. As sombras dos dois, e a da torre na qual estavam,
e todos os espectros das árvores, como se em chamas, estendiam-se ao longo do parque em largas
riscas cor de anil. Ele estava olhando para os lados de Camelot, com olhos desesperados. Seu novo
escudo, com o brasão da sua nova alcunha, estava encostado à frente. A insígnia era uma mulher
prateada em um campo negro, com um cavaleiro ajoelhado a seus pés.

Em sua simplicidade, Elaine ficara encantada com a homenagem no escudo. Nunca fora muito
perspicaz. Agora percebia, pela primeira vez, que a mulher estava coroada. Ficou parada
impotente, imaginando como agir — mas não havia nada que ela pudesse fazer. Suas armas eram
cegas, ou de metal macio. Só poderia usar paciência e autocontrole, pobres ferramentas quando
comparadas com a dolorosa obsessão do amor que martiriza a raça humana.

Certa manhã, eles estavam sentados em uma encosta verde à beira do lago. Elaine bordava,
enquanto Lancelot observava o filho. Galahad, um menino presumido e calado, entregava-se a uma
brincadeira, só conhecida dele, com suas bonecas — às quais permaneceu ligado muito tempo
depois que a maioria dos meninos as trocaria por soldados. Lancelot tinha esculpido para ele dois
cavaleiros em madeira, os dois com armaduras. Estavam montados em cavalos com rodinhas, dos
quais podiam ser destacados, e seguravam suas lanças em riste. Com cordões amarrados à
plataforma de cada cavalo, dava para puxar os cavaleiros um contra o outro, como se estivessem


em um torneio. Era possível fazer com que um derrubasse o outro da sela. Galahad não lhes dava a
mínima atenção, mas brincava com uma boneca de pano à qual dera o nome de Santinha.

— Gwyneth vai acabar estragando aquele gavião — comentou Lancelot.
Podiam ver uma das damas do castelo vindo em direção a eles com passos apressados e segurando
um gavião no punho. Sua pressa atiçara o gavião, que se debatia continuamente — mas Gwyneth
não lhe prestava atenção, além de lhe dar uma ocasional sacudidela irritada.

— O que aconteceu, Gwyneth?
— Oh, minha senhora, dois cavaleiros estão esperando perto do lago, e disseram que vieram para
uma justa com o Chevalier.
— Diga-lhes para irem embora — disse Lancelot. — Diga que não estou em casa.
— Mas, Sir, o porteiro indicou-lhes o caminho do barco, e eles estão vindo, um de cada vez.
Disseram que não virão juntos, mas o segundo virá se o senhor vencer o primeiro. Ele já está no
barco.
Lancelot levantou-se e limpou o pó dos joelhos.

— Diga-lhe para esperar no campo de torneio — disse. — Estarei lá em vinte minutos.
O campo de torneio era um corredor comprido e arenoso entre as muralhas, com uma torre em cada
ponta. Era a céu aberto e, nas muralhas, havia galerias que davam para ele, como em um campo de
tênis. Elaine e suas damas sentaram-se nessas galerias para assistir, e os dois cavaleiros lutaram
por um longo tempo. A justa estava empatada — cada um derrubara o outro uma vez —, e o
combate de espadas durou duas horas. Ao final desse tempo, o cavaleiro desconhecido gritou:
"Pare!".

Lancelot imediatamente parou, como se fosse um camponês a quem fora dada permissão para ir
jantar. Cravou sua espada no chão, como se tratasse de uma forquilha, e ficou à espera, paciente.
Ele estivera, na verdade, apenas trabalhando com a paciência catada de um peão do campo. Não
havia tentado ferir seu oponente.

—-Quem é você? — perguntou o desconhecido. — Por favor, diga-me o seu nome. Jamais
encontrei um homem como você.

Lancelot de repente levou as duas manoplas até o elmo, como se estivesse tentando cobrir com elas

o rosto já escondido, e disse miseravelmente:
— Sou Sir Lancelot Dulac.
— O quê!?
— Sou Lancelot, Degalis.
Degalis atirou sua espada contra a muralha de pedra com um tinido e começou a correr de volta à
torre perto do fosso. Suas botas de ferro ressoavam pelo pátio. Desatou o elmo e atirou-o fora
enquanto corria. Quando alcançou a grade levadiça da casa da guarda, levou as mãos à boca e
gritou com toda sua força:


— Ector! Ector! É mesmo Lancelot! Venha!
Imediatamente, correu de volta em direção a seu amigo.
— Lancelot! Meu querido, querido companheiro! Eu tinha certeza que era você, eu tinha certeza
que era você!
Começou a se atrapalhar com os nós, tentando tirar fora o elmo de Lancelot com seus dedos
desajeitados. Arrancou as manoplas e também as atirou com estrondo contra a muralha. Mal podia
esperar para ver o rosto de Lancelot. Lancelot ficou quieto, como um bebê cujas roupas estão sendo
tiradas.


— Mas o que você tem feito? Por que está aqui? Temíamos que você estivesse morto.
O elmo saiu e foi se juntar ao resto das coisas descartadas.
— Lancelot!
— Você disse que Ector está com você?
— Sim, é seu irmão Ector. Há dois anos estamos procurando você. Oh, Lancelot, estou tão contente
em vê-lo!
— Entre e descanse um pouco — ele disse.
— Mas o que você fez todo esse tempo? Onde se escondeu? No começo, a Rainha mandou três
cavaleiros procurá-lo. No final havia vinte e três de nós. Deve ter lhe custado uma fortuna.
— Estive andando por aí.
—-Até a facção das Órcades ajudou. Sir Gawaine é um dos que o estão procurando.
A essa altura, Sir Ector tinha chegado de barco — Sir Ector Demaris, não o protetor do Rei Arthur
— e a grade levadiça se levantou para deixá-lo entrar. Ele correu até o Chevalier, como se tivesse
que marcá-lo no futebol.
— Irmão!
Elaine descera das galerias e estava esperando no final do campo de justas. Ela agora deveria dar
as boas-vindas às pessoas que, bem sabia, destroçariam-lhe o coração. Não interferiu nos
cumprimentos, mas os assistiu como uma criança que fora deixada fora do jogo. Ficou de pé, sem
se mexer, reunindo as forças. Todos os seus poderes, todas as guardas avançadas de seu espírito,
estavam sendo chamados para se concentrarem na cidadela do seu coração.


— Esta é Elaine.
Eles viraram-se para ela e se curvaram.
— Sejam bem-vindos ao Castelo Bliant.

XXIV


— Não posso abandonar Elaine — ele disse.
Ector Demaris contestou:
— Por que não? Você não a ama. Não tem obrigação nenhuma com ela. Ficando juntos, você só
está fazendo os dois infelizes.
— Sinto-me em obrigação com ela. Não sei explicar isso, mas é assim.
-— A Rainha está desesperada — disse Degalis. — Ela gastou uma fortuna procurando você.
— Não posso fazer nada.
— Não é bom ficar emburrado — disse Ector. — Estou achando que você está emburrado. Se a
Rainha se arrepende do que fez, seja o que for, você deveria se comportar com generosidade e
perdoá-la.
— Não tenho nada que perdoar à Rainha.
— É exatamente isso o que estou dizendo. Você deve voltar à seguir sua carreira. Nem que seja
porque deve isso a Arthur: não se esqueça que é um de seus cavaleiros jurados. Ele está precisando
muito de você.
— Precisando de mim?
— Tem o problema costumeiro com o clã das Órcades.
— O que eles estão fazendo? Oh, Degalis, você não imagina que bem faz a meu coração escutar
outra vez os velhos nomes. Conte-me todas as fofocas. Kay tem se comportado como um tolo
ultimamente? Dinadan ainda está rindo? Quais são as novidades sobre Tristão e o Rei Mark?
— Se você quer tanto saber das coisas, deve voltar à Corte.
— Já lhe disse que não posso.
— Lancelot, você não está encarando isso com realismo. Acha, seriamente, que pode continuar
aqui incógnito com essa dona e ainda ser você mesmo? Acha que pode vencer quinhentos
cavaleiros em um torneio sem ser reconhecido?

— Assim que escutamos falar do torneio, viemos imediatamente — contou Ector. — Degalis disse:
"Ponho minha mão no fogo se esse não for Lancelot".
— Isso quer dizer que se você insistir em ficar aqui, terá de renunciar completamente às armas —
disse Degalis, — Uma justa a mais e você será reconhecido por todo mundo. Aliás, eu acho que já
foi reconhecido,

— Continuar com Elaine significaria renunciar a tudo. Significaria um retiro absoluto: nada de
buscas, nem torneios, nem honra, nem amor. E é possível que você chegue ao ponto de ter que ficar
dentro de casa o tempo todo. O seu não é um rosto fácil de esquecer, você sabe.
— Seja como for, Elaine é gentil e boa. Quando as pessoas confiam em você e dependem de você,
Ector, não se pode abandoná-las. Nem um cão deve ser tratado assim.
— No entanto, as pessoas não se casam com os cães.
— Maldição, essa moça me ama.
— A Rainha também. Lancelot girou o gorro nas mãos.
— Na última vez que vi a Rainha — de respondeu —, ela me disse para nunca mais chegar perto
dela.
— Mas ela gastou mais de vinte mil libras para procurá-lo! Ele esperou algum tempo e depois
perguntou, com uma voz que parecia rouca:
— Ela está bem?
— Ela está absolutamente infeliz. Ector disse:
— Ela sabe que a culpa foi dela. Chorou bastante, Bors a chamou de tola e ela não discutiu com
ele. Arthur também está infeliz porque a Távola toda está de pernas para o ar.
Lancelot jogou o gorro no chão e se levantou.

— Eu disse a Elaine que não prometeria ficar com ela, e é por isso que tenho de ficar.
— Você a ama? — Degalis perguntou, indo ao fundo da questão.
— Sim, é certo. Ela tem sido boa para mim. Gosto dela. Frente ao olhar dos dois, ele mudou a
palavra.
— Eu a amo — disse, desafiador.
Os cavaleiros ficaram durante uma semana, e Lancelot, escutando avidamente as notícias que
contavam da Távola, ia opondo cada vez menos resistência. Ao jantar, sentada na mesa alta ao lado
de seu senhor, Elaine vivia em uma corrente de conversa sobre pessoas cujos nomes nunca escutara
e sobre acontecimentos que não podia entender. Nada mais havia a fazer a não ser oferecer o
segundo prato, o quai Ector aceitava sem interromper a anedota que estava contando. Eles
inclinavam-se à sua frente, conversavam e riam, e Elaine diligentemente ria também. Todo dia, ao
pôr-do-sol, Lancelot se dirigia para sua pequena torre — ela se afastara nas pontas dos pés naquela
primeira vez que o encontram ali, e ele não sabia que seu refúgio fora descoberto.


— Lancelot — ela disse, uma manhã —-, há um homem esperando no outro lado do fosso, de
cavalo e armadura.
— Um cavaleiro?
— Não. Parece mais um escudeiro.
— Quem será desta vez? Diga ao porteiro que vá buscá-lo,
— O porteiro disse que ele não quer vir. Diz que ficará esperando por Sir Lancelot.
— Vou lá ver.
Elaine deteve-o quando ele descia para o barco.
— Lancelot — ela disse —, o que você quer que eu faça com Galahad, se tiver de ir embora?
— Ir embora? Quem disse que vou embora?
— Ninguém disse, mas quero saber.
— Não sei do que você está falando.
— Quero saber como Galahad deve ser criado.
— Bem, acho que da maneira habitual. Espero que ele aprenda a ser um bom cavaleiro. Mas essa
questão toda é fantasiosa.
— Isto é o que eu queria saber.
No entanto, deteve-o outra vez.
— Lancelot, ainda uma outra coisa. Se você tiver de ir embora, se você tiver de me deixar... um dia
voltará?
— Já lhe disse que não irei embora.
Ela procurava o sentido de suas palavras conforme as pronunciava, como um homem que caminha
lentamente em um pântano, tateando à sua frente à medida que avança.

— Iria me ajudar seguir com Galahad... me ajudaria a continuar vivendo... se eu soubesse que seria
por alguma coisa... se soubesse que um dia... se eu soubesse que você voltaria.
— Elaine, não entendo por que está falando essas coisas.
— Não estou tentando detê-lo, Lance. Talvez seja melhor para você partir. Talvez seja uma coisa
que deva acontecer. Eu só queria saber se o verei outra vez... porque isso é importante para mim.
Ele tomou-lhe as mãos.

— Se partir — ele disse —, voltarei.
O homem do outro lado do fosso era Tio Dap. Estava de pé, cora o antigo cavalo de Lancelot,
agora dois anos mais velho, e com toda a sua armadura habitual bem-arrumada na sela, como se
para uma inspeção, Tudo estava corretamente dobrado e preso no lugar militar adequado. O colete
de malha estava enrolado em uma trouxa apertada. O elmo, espaldeiras e braceleiras brilhavam,


literalmente por semanas de polimento até alcançar aquele verniz ou patina de luz que só
encontramos nas coisas recém-compradas e trazidas da loja antes que se tornem embaçadas pela
limpeza doméstica. Havia um cheiro de sabão de sela, misturado com o inconfundível cheiro
pessoal da armadura — um cheiro tão pessoal quanto o que encontramos nas instalações
profissionais de um campo de golfe e, para uni cavaleiro, igualmente excitante.

Todos os músculos de Lancelot se retesaram na expectativa de sentir outra vez sua própria
armadura, que não via desde que deixou Camelot. Seu dedo indicador sentiu o ponto que o punho
de sua armadura usaria como apoio. O polegar recordou-se do peso exato em gramas que teria de
exercer no lado mais próximo do ponto de apoio. O interior da palma de sua mão desejou
ardentemente agarrar o punho. Todo o seu braço lembrou-se do balanço Foyeux e desejou brandi-la
ao ar.

Tio Dap parecia mais velho, e nada falou. Limitou-se a segurar o freio e entregar-lhe as rédeas,
esperando o cavaleiro montar e cavalgar. Seu olhar severo, intenso como o de um açor, esperava,
com sua acusação. Silenciosamente, estendeu o grande elmo de torneio, com seu familiar penacho
de penas de garça real e fio de prata.

Lancelot tomou o elmo de Tio Dap, com ambas as mãos, e girou-o. Suas mãos sabiam que peso
esperar — exatamente dez quilos e duzentos gramas. Examinou o polimento esplêndido, o
revestimento acolchoado recente e o novo mantelete na parte de trás. Era de tafetá azul, com
numerosas e pequeninas flores-de-lis da antiga França bordadas à mão com fios de ouro. Soube, no
mesmo instante, que mãos haviam feito aquele bordado. Levou o elmo até o nariz e cheirou o
mantelete.

Imediatamente, ela estava lá — não a Guenevere que ele recordava nas ameias, mas a verdadeira
Jenny, em uma postura diferente, com cada pestana de suas pálpebras, cada poro de sua pele, cada
som de sua voz e cada articulação de seu sorriso.

Não olhou para trás enquanto cavalgava se afastando do Castelo Bliant — e Elaine, de pé, na torre
da barbacã, não acenou. Ela o viu se afastar com uma concentração determinada, como alguém que,
ao naufragar, coloca no pequeno bote toda a água doce que é possível. Tinha só mais alguns
segundos para fazer a provisão de Lancelot que teria que lhe durar através dos anos. Haveria
apenas essa provisão, e o filho deles, e muito ouro. Ele a deixara com todo o seu dinheiro, o
suficiente para render mil libras anuais por toda a vida — naqueles tempos, uma quantia e tanto.


XXV


Quinze anos depois de deixar Elaine, Lancelot ainda estava na Corte. As relações do Rei com
Guenevere e seu amante eram iguais às que sempre haviam sido. A grande diferença era que todo
mundo estava mais velho, o cabelo de Lancelot, que já havia se tornado cinza-escuro aos vinte e
seis anos, quando ele voltara da loucura, estava completamente branco. Também o de Arthur estava
prematuramente coberto de neve — mas os lábios dos dois homens continuavam vermelhos em seus
sedosos ninhos de barba. Só Guenevere conseguira manter o negro do corvo em seus cabelos.
Tinha uma figura esplêndida aos quarenta anos.

Outra diferença era que uma nova geração chegara à Corte. Em seu íntimo, os principais
personagens da Távola Redonda conservavam os sentimentos ardentes que sempre tinham nutrido

— mas agora eram figuras em vez de pessoas. Eram cercados por prosélitos mais jovens para quem
Arthur não era o cruzado do futuro, mas o conquistador reconhecido de um passado — para quem
Lancelot era o herói de centenas de vitórias, e Guenevere a amante mística de uma nação. Para
esses jovens, ver Arthur caçando no verde bosque era como ver a própria idéia da Realeza. Não
viam um homem, mas a Inglaterra. Quando Lancelot passava cavalgando, rindo de alguma
brincadeira particular com a Rainha, a comunidade ficava espantada ao ver que ele podia rir.
"Olhe", dizia um para o outro, "ele está rindo, como se fosse uma pessoa vulgar como nós mesmos.
Como é condescendente, corno é magnificamente democrático Sir Lancelot rir como se fosse um
homem comum! Talvez até coma e beba também, ou mesmo durma à noite." Mas, no fundo, a nova
geração tinha absoluta certeza que o grande Dulac não fazia essas coisas.
Na verdade, em vinte e um anos, muita água havia passado sob as pontes de Camelot. Foram os
anos de construção. Quando começaram, foram anos de catapultas rolando e avançando de um
cerco para outro, pelas estradas marcadas de sulcos, para arremessar a destruição por sobre as
muralhas dos castelos — de torres móveis sobre rodas, deslocando-se pesadamente contra
guarnições desleais, para que os arqueiros, atirando desde seus topos, pudessem lançar a morte
para o interior das fortalezas traidoras — de companhias de soldados marchando por entre nuvens
da poeira do verão, picaretas e pás aos ombros para solapar ameadas rebeldes, fazendo com que as
grandes pedras cedessem e caíssem oscilantes. Quando Arthur não conseguia tomar de assalto um
castelo fortemente armado, fazia com que túneis fossem cavados sob partes selecionadas da
muralha. Esses túneis, escorados por vigas de madeira que podiam ser queimadas no momento
adequado, desabavam, arrastando consigo as paredes externas cheias de pedregulhos.


Os primeiros anos foram tempos de batalhas, nas quais aqueles que insistiam em viver pela espada
foram mortos por ela. Foram iluminados por torres inteiras de combatentes queimando, como se
fossem outros muitos Guy Fawkes{17} — pois a grande objeção à torre como fortaleza era a de que
dava uma fornalha de primeira classe — anos vibrando com o som de machadinhas batendo contra
portas à prova de machadinhas, construídas pregando a primeira camada de tábuas horizontalmente
e a segunda no sentido vertical para que a madeira nunca se rachasse ao longo da fibra — anos
ilustrados pelo andar trôpego dos gigantes normandos, com quem se lidava mais convenientemente
cortando-lhes primeiro as pernas para que se pudesse alcançar-lhes a cabeça — e pelas centelhas
das espadas ao redor de elmos ou cotoveleiras, um cintilar que, em casos extremos, era
acompanhado por uma chuva tal de faíscas que faziam os cavaleiros em combate parecerem
perfeitamente incandescentes. Onde quer que se fosse, naqueles primeiros anos, toda paisagem ia
dar em uma coluna de mercenários vindos das fronteiras, marchando, roubando e pilhando; ou em
um cavaleiro da nova ordem trocando golpes com um barão conservador a quem estaria tentando
impedir que matasse algum servo; ou em alguma donzela de cabelos dourados sendo salva de
alguma torre alta por meio de uma escada de couro; ou em sir Bruce Saunce Pité cavalgando a todo
galope com Sir Lancelot, atrás, em sua perseguição; ou em alguns cirurgiões cuidadosamente
examinando as feridas de um combatente desafortunado, e o fazendo engolir cebolas ou alhos para
que, ao cheirar a. fenda, pudessem descobrir se os intestinos tinham sido perfurados ou não. Depois
de examinar as feridas eles as cobriam com a lã gordurosa das tetas das ovelhas, que formava um
curativo de lanolina natural. Aqui estaria Sir Gawaine sentado no peito de seu antagonista,
acabando de liquidá-lo, através das aberturas do seu elmo, com a longa adaga afiada chamada
Misericórdia Divina. Ali estaria um par de cavaleiros que teria se asfixiado dentro dos próprios
elmos no transcorrer da batalha, uma desgraça que acontecia com freqüência naqueles dias de
exercício Alento e respiradouros pequenos. De um lado, haveria uma forca ampla, erguida por
algum principelho antiquado para enforcar os cavaleiros do Rei Arthur e os saxões comuns que
estivessem do lado deles — uma forca talvez, quase tão suntuosa como a que foi construída em
Montfaucon, que podia suportar sessenta corpos pendendo como pesadas flores banais entre seus
dezesseis pilares de pedra. As forcas mais humildes tinham degraus de madeira, como os apoios
para os pés nos postes das linhas telegráficas, para que os executores pudessem subir e descer. Do
outro lado, haveria uma propriedade tão cercada de armadilhas nos arbustos que ninguém ousava
passar por perto. A .sua frente, poderia haver um cavaleiro enlouquecido, preso em uma armadilha
para cervos que, jogando-o ao ar na ponta de um galho resistente acionado por seu mecanismo,
deixara-o pendurado impotente entre o céu e o chão. Atrás, poderia estar acontecendo um feroz
torneio ou luta de facção, com todos os arautos gritando "Laissez les aller" a fileiras de cavalaria
prestes a atacar — um berro que equivalia exatamente ao grito "Aí vão eles!", que ainda se pode
escutar hoje no Grande Prêmio Nacional de corridas de cavalo.

Esperava-se que o Mundo terminasse no ano mil e, na reação que se seguiu ao adiamento, houve
uma explosão de desordem e brutalidade que, por séculos, adoeceu a Europa. Isso teve como
conseqüência a doutrina da Força que era o alvo da Távola. Os senhores ferozes do Braço Forte
tinham assolado os bosques selvagens — só que, é evidente, houve exceções como o bom Sir Ector
da Floresta Sauvage — de tal maneira que John de Salisbury foi obrigado a aconselhar a seus
leitores:


"Se um desses caçadores poderosos e sem piedade passar perto de sua habitação, com toda a
pressa traga toda a comida e bebida que tiver em sua casa, ou que possa prontamente comprar, ou
pedir emprestado a seu vizinho, para que não seja envolvido pela desgraça, ou mesmo acusado de
traição."

Duruy nos conta que crianças eram dependuradas em árvores pelos tendões das coxas. Não era
cena rara ver um homem de armadura assobiando como uma lagosta, e parecendo um pudim, porque
tinham esvaziado um balde de farelo fervendo em sua armadura durante algum cerco. E Chaucer
menciona outros espetáculos ainda mais dramáticos: o sorridente com a faca sob a capa, o caído na
moita com a garganta aberta, ou o cadáver frio com a boca aberta virada para cima. Por toda parte,
havia sangue no aço, fumaça no céu, e poder sem freio — e, na confusão generalizada da época,
Gawaine acabou vendo-se obrigado a matar nosso querido velho -amigo, o Rei Pellinore, em
vingança pela morte de seu próprio pai, o Rei Lot.

Essa era a Inglaterra que Arthur herdou, essas as dores do parto da civilização que ele buscava
inventar. Agora, depois de vinte e um anos de êxito paciente, o país apresentava um quadro
diferente.

Onde antes rondavam cavaleiros negros, todos cheios de fúria, diante de algum vau para cobrar
pedágio de alguém temerário o suficiente para passar por aquele caminho, agora qualquer donzela
poderia deambular pelo campo, mesmo coberta de ouro e ornamentos, sem o mínimo receio de ser
perturbada. Onde antes os horríveis leprosos — eram chamados de Pustulentos — costumavam
errar pelos bosques com trajes brancos, tocando seus lúgubres badalos se quisessem alertar as
pessoas ou pulando em cima delas, sem tocá-los, se não queriam, agora havia hospitais adequados,
administrados pelas ordens religiosas dos cavaleiros para cuidar daqueles que regressavam com
lepra das Cruzadas. Todos os gigantes tiranos estavam mortos, todos os dragões perigosos —
alguns dos quais costumavam aproximar-se com um briiirrr parecido com o ataque do falcão
peregrino — estavam liquidados. Nas estradas por onde antes corriam velozes bandos de
assaltantes com suas bandeirolas a tremular, agora havia alegres grupos de peregrinos contando uns
para os outros piadas sujas no caminho para Canterbury. Clérigos sisudos, em dia de passeio a
Nossa Senhora de Walsingham, passavam cantando Alleluia Duke Carmen, enquanto os menos
sisudos iam trinando a notável canção-de-taberna medieval de sua própria autoria: Meum est
prapositum in taberna mori. Havia abades urbanos, saracoteando por ali em cômicos palafréns,
usando capuzes de peles contrários às regras de sua ordem, e senhores locais com apetrechos da
moda e falcões no punho, e camponeses roliços discutindo com suas esposas sobre os novos
mantos, e grupos alegres indo para a caça sem armadura de nenhum tipo. Alguns iam para feiras tão
grandes como as de Troyes, outros para universidades que rivalizavam com as de Paris, onde havia
vinte mil estudantes de cujas fileiras acabaram saindo sete papas. Nas abadias, todos os monges
ilustravam as letras iniciais de seus manuscritos com tal excesso de fantasia que era de todo
impossível ler a primeira página. Os que não estavam fazendo páginas com adornos religiosos,
passavam o tempo copiando a Historia Francorum de Gregory de Tours, ou a Legenda Áurea, ou
Feu d'Échecs Moralisé, ou o Tratado de Falcoaria — isto é, se não estivessem ocupados com a Ars
Magna do mago Lully ou o Speculum Majus do maior de todos os magos. Nas cozinhas, os


cozinheiros famosos preparavam cardápios que incluíam, apenas para uma refeição: caldo de
testículos, gemada com vinho quente, lampreias em gelatinas, ostras com molhos, enguias em
conserva, truta ao forno, cabeça de porco em mostarda, entranhas de veado, leitões recheados, galo
rápido, ganso em panela de barro, veado com pudim de trigo, galinhas em cerveja, esquilos
assados, maranhos, embutidos de pescoço de capão, tripas, dobradinhas, ervas agridoces, repolhos,
legumes em manteiga, musse de maçã, biscoitos de gengibre, tortas de frutas, manjar-branco,
marmelos em calda, queijos variados. Nos salões de jantar, os nobres mais idosos, que tinham
estragado o paladar com bebidas, apreciavam essas estranhas iguarias da Idade Média — os
sabores fortes da baleia e do porco-marinho. Suas esposas caprichosas colocavam rosas e violetas
nos pratos — cravos assados ainda dão excelente sabor aos pudins de pão-e-manteiga —, enquanto
os escudeiros mostravam sua preferência para os queijos de leite de cabra. Nos quartos das
crianças, todos os meninos moviam céus e terras para convencer suas mães a lhes darem pêras
duras no jantar, cozidas com xarope de mel e vinagre, e servidas com creme batido. Os modos à
mesa também haviam alcançado um grau de civilização muito além até do nosso. Agora, em vez de
pratos feitos com pão, havia travessas com tampas, tigelas perfumadas para lavar os dedos, toalhas
de mesa suntuosas, uma pletora de guardanapos. As próprias salas eram enfeitadas com grinaldas
de flores e elegantes tapeçarias. Os pajens serviam a comida com os movimentos formais de um
balé. Garrafas de vinho eram colocadas nas mesas, mas a cerveja, considerada menos distinta, era
colocada embaixo. Os músicos, com estranhas orquestras de campainhas, cornetas compridas,
harpas, violas, cítaras e órgãos, tocavam enquanto as pessoas comiam. Onde antigamente, antes do
Rei Arthur, o Cavaleiro da Torre Landry fora obrigado a avisar a filha para não entrar sozinha no
seu próprio salão de jantar por receio do que pudesse acontecer nos cantos escuros, agora havia
música e luz. Sob as abóbadas enfumaçadas, onde antes barões imundos roíam ossos com dedos
ensangüentados, agora as pessoas comiam com dedos limpos, lavados nas tigelas de madeira com
sabão de ervas aromáticas. Dos barris nas caves dos mosteiros, os mordomos tiravam cerveja preta
nova e envelhecida, hidromel, porto, vinho tinto, xerez seco, vinho de Hockheim, cerveja clara,
licor de mel, licor de pera, hipocraz e o melhor uísque branco. Nos tribunais, os juizes aplicavam a
nova lei do Rei, em vez da cruel lei de Fort Mayne. Nos chalés, as boas donas de casa faziam pães
quentinhos assados na chapa, capazes de dar água na boca, e punham boa turfa na lareira sem se
importar com as despesas, e, nos campos comuns, criavam gansos gordos suficientes para alimentar
vinte famílias por vinte anos. Os saxões e os normandos começavam a pensar em si mesmos como
ingleses.

Não era de se admirar que os jovens e ambiciosos cavaleiros da Europa viessem aos bandos para a
grande Corte, Não era de se admirar que vissem uni Rei quando olhavam para Arthur, um
conquistador quando olhavam para Lancelot.

Um dos jovens cavaleiros que chegou à Corte naqueles dias foi Gareth. O outro foi Mordred.


XXVI


— Hoje já não vemos muitas flechas estremecerem nos corações das pessoas — observou
Lancelot, uma tarde, nos campos de treinamento de arqueiros.
— Estremecer! — exclamou Arthur. — Que ótima palavra para descrever a vibração da flecha
logo após atingir o alvo!
Lancelot disse:

— Escutei numa balada.
Afastaram-se um pouco e sentaram-se sob um caramanchão, de onde podiam observar os jovens
treinando a pontaria.

— É verdade — disse o Rei, desanimado. — Já não temos muitos dos velhos combates nesses dias
decadentes.
— Decadentes! — protestou seu comandante-chefe. — Por que você está tão desanimado? Pensei
que era isso que você queria!
Arthur mudou de assunto.

— Gareth está indo bem — disse, observando o rapaz. — É engraçado. Ele não pode ser muito
mais novo que você, mas as pescas pensam nele como uma criança.
— Gareth é muito querido.
O Rei pôs a mão no joelho de Lancelot e apertou-o afetuosamente.
— Algumas pessoas podem dizer que você é o querido no que se refere a Gareth — ele disse. —
Tornou-se uma verdadeira lenda como o rapaz chegou anônimo na Corte, a ponto de nem os irmãos

o reconhecerem, e como foi trabalhar na cozinha e ganhou o apelido de Beaumains, mãos belas,
quando Kay quis implicar com ele, e como você foi a única pessoa que o tratou de maneira decente,
até que ele teve sua grande aventura e se tornou um cavaleiro.
— Bem — disse Lancelot, na defensiva —, os irmãos não o viam fazia quinze anos. Não se pode
culpar Gawaine por isso.
— Não estou culpando ninguém. Só estou dizendo que foi gentil de sua parte reparar num pajem da
cozinha, ajudá-lo e acabar por faze-lo cavaleiro. Mas, na verdade, você é sempre gentil com as

pessoas.

— E estranho como eles vêm para cá — continuou o amigo. — Imagino que não podem evitar.
Qualquer rapaz com um pouco de energia dentro de si sente que deve vir para a Corte de Arthur,
mesmo se for para trabalhar na cozinha, porque ela é o centro do novo mundo. Foi por isso que
Gareth fugiu da mãe. Ela não o deixaria vir, por isso ele fugiu e veio incógnito.
— Besteira. Morgause é uma velha má... é tudo que se pode dizer dela. Ela o proibiu de vir para a
Corte porque odeia você, mas ele veio, apesar disso.
— Morgause é minha meia-irmã, e eu a ofendi gravemente. Não pode ser agradável para uma
mulher ver todos os seus filhos partirem para servir ao homem que ela odeia. Até Mordred, seu
caçula.
Lancelot pareceu pouco à vontade. Tinha uma antipatia instintiva por Mordred, e não gostava disso.
Ele não sabia que Arthur era o pai de Mordred — pois esta era uma história que fora abafada nos
primeiros tempos, antes que ele ou Guenevere chegassem à Corte, tal como havia sido o próprio
nascimento de Arthur. Mas Lancelot sentia que havia algo estranho entre o jovem e o Rei.
Antipatizava irracionalmente com Mordred, como um cachorro antipatiza com um gato — e sentia-
se envergonhado por isso, porque tinha como uni dos seus confusos princípios ajudar os jovens
cavaleiros.

— A vinda de Mordred deve tê-la ferido mais que tudo — continuou o Rei. —As mulheres sempre
gostam mais dos filhos caçulas.
— Tanto quanto sei, ela nunca ceve uma afeição particular por nenhum deles. Se ficou magoada
com a vinda deles para a Corte, foi apenas devido ao seu ódio por você. Por que ela o odeia?
— E uma história desagradável. Prefiro não talar disso. Morgause — acrescentou o Rei — é uma
mulher... uma mulher de caráter forte.
Lancelot soltou uma risada um tanto amarga.

— Pela maneira como se comporta, deve ser mesmo — disse. — Escutei dizer que ela agora está
preparando uma armadilha mortal para Lamorak, filho de Pellinore, apesar de ser uma avó.
— Quem lhe contou?
— Toda a Corte comenta.
Arthur levantou-se e deu três passos agitados.
— Deus do céu! — exclamou. — E o pai de Lamorak matou seu esposo! E seu filho matou o pai de
Lamorak! E Lamorak é quase um menor!
Sentou-se e olhou para Lancelot, como se tivesse medo do que ele poderia dizer a seguir.

— De qualquer maneira, é isso que ela anda fazendo. De repente, o Rei disse com veemência:
-— Onde está Gawaine? Onde está Agravaine? Onde está Mordred?
— Devem estar em alguma aventura qualquer.

— Não... não no norte?
— Não sei.
— Onde está Lamorak?
— Acho que ele esta nas Órcades.
— Lancelot, se você conhecesse minha irmã... se tivesse conhecido o clã das Órcades em casa,
Eles são doidos em relação à família. Se Gawaine... se Lamorak,.. ah, meu Deus! Tenha
misericórdia com meus pecados, e os pecados das outras pessoas, e a confusão deste mundo!
Lancelot o olhou, consternado.

— O que você receia?
Arthur levantou-se pela segunda vez, e começou a falar muito rapidamente.
— Receio pela minha Távola. Receio o que pode acontecer. Receio que esteja tudo errado.
— Absurdo.
— Quando comecei a Távola, era para acabar com a anarquia. Era um canal para a força bruta,
para que as pessoas que tivessem que usar a Força fossem convencidas a usá-la de uma maneira
útil. Mas foi tudo um erro. Não, não me interrompa. Foi tudo um erro porque a própria Távola foi
criada com a Força. O Direito deve ser estabelecido pelo Direito; não pode ser estabelecido pela
Force Majeur. Mas é isso que tenho tentado fazer. Agora meus pecados estão voltando para casa
para se recolher. Lancelot, temo ter semeado ventos e ter agora de colher a tempestade.
— Não entendo do que está falando.
— Aí vera Gareth — disse o Rei, de repente outra vez calmo, como se tudo tivesse passado. —
Acho que você entenderá em um minuto.

Enquanto eles estavam conversando, um mensageiro com calças de couro chegou ao campo de
treinamento. O Rei o havia visto pelo canto do olho quando ele rapidamente procurou Gareth e lhe
entregou uma carta. Observara o rapaz lendo a carta uma vez, duas, três vezes, e depois enquanto
falava confusamente com o homem.

Agora, depois de entregar seu arco para o mensageiro sem notar que o fazia, Gareth veio
caminhando lentamente em direção a eles.

— Gareth — disse o Rei.
O jovem ajoelhou-se e tomou a mão do Rei. Segurou-a como se fosse uma tábua ou uma corda
salva-vidas. Olhou para Arthur com olhos parados, mas não chorou.

— Minha mãe está morta — ele disse.
— Quem a matou? — perguntou o Rei, como se esta fosse a pergunta natural.
— Meu irmão Agravaine.
— O quê!? — A exclamação era de Lancelot.

— Meu irmão matou nossa mãe porque a encontrou dormindo com outro homem.
— Cale-se, Lancelot, por favor — disse o Rei. Então, para Gareth: — O que eles fizeram com Sir
Lamorak?
Mas Gareth ainda não terminara a primeira parte da história.

— Agravaine cortou a cabeça de nossa mãe — ele disse. — Como com o unicórnio.
— Unicórnio?
— Por favor, Lancelot.
— Matou nossa mãe e a deixou sangrar.
— Lamento muito.
— Sempre soube que ele faria isso — disse Gareth.
— Tem certeza de que a notícia é verdadeira?
— É verdade. É verdade. Foi Agravaine quem matou o unicórnio.
— Lamorak era o unicórnio? — perguntou o Rei, gentilmente. Ele não sabia do que o sobrinho
estava falando, mas estava ansioso para ajudar. — Lamorak esta morto?
-— Oh, tio! A carta disse que Agravaine encontrou-a nua na cama com Sir Lamorak, e cortou a
cabeça dela. Depois eles foram atrás de Lamorak também.

— Quem são eles?
— Mordred, Agravaine e Gawaine.
— Então, chegamos a isso — disse Sir Lancelot. — Seus três irmãos primeiro mataram Sir
Pellinore, que seria incapaz de matar deliberadamente uma mosca, e o mataram porque ele havia
matado o pai deles em um acidente num torneio... depois mataram a própria mãe na cama, e no final
assassinaram Lamorak, por ter sido seduzido pela mãe deles, três vezes mais velha que ele.
Suponho que o atacaram todos juntos, três contra um?
Gareth apertou a mão do Rei e deixou cair a cabeça.

— Eles o cercaram — ele disse como que paralisado — e Mordred o apunhalou pelas costas.

XXVII


Gawaine e Mordred voltaram direto para Camelot depois de sua incursão entre os Antigos, mas
Agravaine não voltou com eles. Assim que Lamorak morreu, ou melhor, assim que encontraram
tempo para compreender o que havia acontecido, eles tinham discutido. O assassinato da Rainha
Morgause não fora premeditado. Agravaine cometera-o no impulso do momento — em sua paixão
ultrajada, ele disse —, mas eles sabiam, por instinto, que fora por ciúmes. Assim, levantaram a
velha acusação contra ele, de que era apenas uni gordo valentão cujo passatempo mais nobre era
matar pessoas ou mulheres indefesas, e o deixaram, chorando, depois de uma cena furiosa.
Gawaine, que agora recordava toda a sua adoração pela peculiar mãe que tinham — uma adoração
que a rainha-bruxa desejara de cada um de seus filhos —, voltou para a Corte do Rei Arthur em
desolada penitência. Sabia que Arthur estaria furioso pela maneira como mataram o jovem
Lamorak, pois o rapaz era o terceiro melhor cavaleiro da Távola, no entanto, não se sentia
envergonhado por tê-lo matado. No seu entender, Lamorak merecia a morte, como um criminoso,
porque ele e seu pai tinham injuriado o clã das Órcades. Sabia que toda a Corte o olharia de través,
por conta do assassinato de sua mãe, e que ressuscitariam a velha história da mulher a quem ele
mesmo matara, em um acesso de cólera quando era jovem. Mesmo isso não o consternava muito.
Mas sentia-se arrependido e miserável porque sua própria e querida mãe das Órcades morrera —
ele apenas começava a entender como isso tinha acontecido —, porque ofendera o ideal de Arthur
e porque tinha o coração generoso. Esperava que o Rei o enforcasse, ou o exilasse, ou o punisse
severamente. Entrou, envergonhado e carrancudo, no salão real.

Mordred entrou no salão atrás de Gawaine, como se nada tivesse acontecido. Era um cara
magricela, tão louro que parecia quase albino; e seus olhos brilhantes eram tão azuis, de um azul
tão claro em suas profundezas desbotadas, que não se conseguia ver o que se passava neles. Estava
perfeitamente barbeado. Parecia não haver nele nenhuma parte que se pudesse agarrar, nem
cabelos, nem olhos, nem fios de barba. Mesmo a sua cor parecia ter sido apagada. Apenas, no rosto
esquelético, rosado, os olhos brilhantes eram cercados por pés-de-galinha — um lampejo que, se
você quisesse, poderia supor que fosse de humor, ou então de ironia, ou meramente a contração
daquelas pupilas azul-celeste para poder ver longe e em profundidade. Caminhava com o porte
ereto, ao mesmo tempo insinuante e desafiador — um ombro, porém, era mais alto que o outro. Ele
nascera levemente corcunda — um trabalho canhestro da parteira — como Richard III.

Arthur esperava por eles, com Guenevere e Lancelot de cada lado.


O corpulento e ruivo Gawaine dobrou-se, desajeitado, em um joelho. Não olhou para o Rei, e falou
para o chão.

— Perdão.
— Perdão — disse também Mordred, mas ele, ajoelhado ao lado meio-irmão, fitou o Rei entre os
olhos. Tinha uma voz não comprometida, lindamente modulada — suas palavras poderiam
significar o oposto do que diziam.
— Estão perdoados — disse Arthur. — Podem ir.
— Ir? — perguntou Gawaine. Não tinha certeza se estava sendo banido.
— Sim, ir. Podemos nos encontrar no jantar. Mas agora, podem ir. Saiam, por favor.
Gawaine disse, com voz rouca:
— Mitade do qui foi feito foi feito por horrorosa má fortuna.
Desta vez, a voz de Arthur não soou nem cansada nem triste.
— Saiam!
Bateu o pé no chão como um cavalo de guerra, apontando para a porta como se fosse atirá-los por
ela. Seus olhos dardejavam, como uma chama repentina, cinza-esverdeada, de tal maneira que até
Mordred levantou-se rapidamente. Gawaine assustou-se e saiu aos tropeções, confuso, mas o
irmão, curvado, recompôs-se antes de sair. Fez uma vênia de ator, um simulacro suntuoso e vil de
humildade — depois, erguendo-se firme, fitou o Rei nos olhos, sorriu e saiu em seguida.

Arthur sentou-se, trêmulo. Lancelot e Guenevere olharam-se por cima da cabeça do Rei. Gostariam
de perguntar por que ele perdoara seus sobrinhos, ou argumentar que era impossível perdoar
matricidas sem prejudicar a Távola Redonda. Mas nunca tinham visto Arthur em sua fúria real.
Sentiram que ali havia algo que não entendiam, e ficaram em silêncio.

Pouco depois, Arthur disse:

— Estava tentando lhe dizer uma coisa, Lance, antes de isso acontecer.
— Sim.
— Vocês dois sempre me escutaram sobre a minha Távola. Quero que compreendam.
— Faremos o possível.
— Tempos atrás, quando tinha meu Merlin ao lado, ele tentou me ensinar a pensar. Sabia que teria
que acabar partindo, portanto me forçou a pensar por mim mesmo. Nunca deixe ninguém ensiná-lo a
pensar, Lance: é a maldição do mundo.
O Rei continuou sentado, olhando para os dedos, e eles esperaram enquanto os velhos pensamentos
corriam de través pelas mãos de Arthur como caranguejos.

— Merlin aprovou a Távola Redonda — ele disse. — Evidentemente, era uma boa coisa naquele
momento. Deve ter sido um passo. Agora devemos pensar em dar o próximo.

Guenevere disse:

— Não vejo o que possa estar errado com a Távola Redonda, só porque a facção das Órcades
resolveu tornar-se assassina.
— Eu estava explicando para Lance. A idéia de nossa Távola era que o Direito deveria ser a coisa
mais importante, não a Força. Lamentavelmente, tivemos que estabelecer o Direito pela Força, e
não se pode fazer isso.
— Não entendo por que não se pode fazer isso.
— Tentei cavar um canal para a Força, para que ela fluísse de maneira útil. A idéia era que todos
que gostassem de lutar deveriam ser direcionados para que lutassem por justiça, e supus que isso
resolveria o problema. Não resolveu.
— Por que não?
— Simplesmente porque já conseguimos justiça. Conseguimos o que estávamos lutando para
conseguir, e agora ainda temos os combatentes em nossas mãos. Vocês não vêem o que aconteceu?
Já não temos mais coisas pelas quais lutar e, assim, todos os combatentes da Távola estão se
corrompendo. Vejam Gawaine e seus irmãos. Enquanto ainda havia gigantes e dragões e cavaleiros
perversos da velha guarda, podíamos mantê-los ocupados: podíamos mantê-los na ordem. Mas
agora que nossos objetivos foram atingidos, não há mais nada em que possam usar sua força.
Assim, eles a usam em Pellinore e Lamorak e minha irmã... Deus seja misericordioso com eles. O
primeiro sina) da chaga foi quando nossos cavaleiros tornaram-se Maníacos por Jogos, toda aquela
bobagem sobre quem teria a melhor média nos torneios e daí por diante. Este é o segundo sinal,
quando o assassinato outra vez, recomeça. Ê por isso que digo que o querido Merlin haveria de
querer que eu começasse a ter outra idéia agora, se pelo menos ele estivesse aqui para me ajudar.
— É algo como o ócio e o luxo que nos enfraquecem... as cordas ficaram frouxas e desafinadas.
— Não, não é nada disso. É simplesmente porque deixei um açoite com sal nas próprias costas.
Deveria ter liquidado a Força pela raiz, em vez de tentar adaptá-la. Embora eu não saiba como
poderia ter feito isso. Agora a Força está aí, sem ter nada em que se empregar, e por isso está
abrindo caminhos terríveis para si mesma.
— Você deveria puni-la — disse Lancelot. — Quando Sir Bedivere matou sua esposa você o fez
levar a cabeça dela até o Papa. Agora, deveria também mandar Gawaine ao Papa.
O Rei abriu as mãos e, pela primeira vez, levantou os olhos.

— Vou mandar vocês todos ao Papa!
— O quê!?
— Não exatamente ao Papa. Da maneira como o entendo, percebem?, o problema é que esgotamos
os objetivos terrenos para nossa Força, portanto, só nos restam os espirituais. Estive pensando
nisso a noite toda. Se não posso manter meus combatentes longe da crueldade ao confrontarem o
mundo, porque esgotaram o mundo, então tenho que confrontá-los com o espiritual.
Os olhos de Lancelot pareciam em fogo, e ele começou a examinar com atenção o Rei. Ao mesmo


tempo, Guenevere encolheu-se dentro de si mesma. Lançou um olhar rápido a seu amado, um olhar
encoberto, depois deu nova e reservada atenção a seu esposo.

— Se algo não for feito — continuou o Rei —, toda a Távola começará a decair. Não é apenas o
fato de terem recomeçado com as rixas familiares e matança: hã também o atrevimento da velha
imoralidade. Veja o caso de Tristão com a esposa do Rei Mark. As pessoas parecem estar do lado
de Tristão. E difícil falar sobre as coisas morais, mas o que aconteceu é que inventamos um sentido
moral, e esse sentido agora está se corrompendo porque não conseguimos empregá-lo. E quando um
sentido morai começa a se corromper é pior do que quando não se tinha nenhum. Penso que todos
os esforços que se dirigem para um fim puramente terreno, como foi minha famosa Civilização,
contêm em si mesmos os germes de sua própria corrupção.
— Que significa isso de nos mandar ao Papa?
— Eu estava falando metaforicamente. O que quero dizer é que o ideal da Távola Redonda era
secular. Se quisermos salvá-la, temos que transformá-lo em um ideal espiritual. Eu me esqueci de
Deus.
— Lancelot nunca esqueceu — disse a Rainha, com um tom peculiar.
Mas seu amante estava demasiado interessado para reparar em seu tom de voz.
— O que pretende fazer? — perguntou.
— Pensei que poderíamos começar tentando conseguir algo que fosse útil para o espírito, se
entende o que digo. Nós conseguimos as coisas do corpo: paz e prosperidades. Agora, nos falta
trabalho. Se inventarmos outro emprego para o corpo, um emprego secular — a mera construção de
um império ou outra coisa assim —, enfrentaremos o mesmo problema, provavelmente pior, assim
que terminarmos. Mas por que não podemos unir nossa Távola voltando suas energias para o
espírito? Você sabe o que quero dizer com espírito. Se nossa Força fosse canalizada para trabalhar
para Deus, em vez de pelos direitos do homem, isso com certeza deteria a corrupção, e valeria a
pena ser feito.
— Uma Cruzada! — exclamou Lancelot. — Você vai nos mandar salvar o Santo Sepulcro!
— Poderíamos tentar — disse o Rei. -— Não pensei exatamente nisso, mas pode ser uma boa coisa
para se tentar.
— Ou poderíamos procurar relíquias — exclamou o comandante, que estava completamente
excitado. —-Se todos os cavaleiros fossem procurar uma peça da Santa Cruz, talvez nem tivessem
que combater. Quer dizer, se fôssemos em uma Cruzada, ainda deveríamos usar a Força: estaríamos
canalizando a Força para lutar contra os infiéis. Mas se de fato e verdadeiramente uníssemos a
Távola para procurar algo que pertenceu ao próprio Senhor, ora, isso valeria infinitamente a pena.
E, se ficássemos ocupados, talvez não houvesse motivo nenhum para entrar em combate. Se for esse
o caso, não precisamos necessariamente procurar uma coisa só. Ora, se todos os nossos cavaleiros
— cento e cinqüenta homens, todos especialistas em buscas, como detetives —, se todos os nossos
cavaleiros voltassem suas energias para a busca de coisas que pertenceram a Deus, ora, poderemos
encontrar centenas e centenas de coisas que seriam de enorme valor. A Távola Redonda,

positivamente, podia ter sido inventada e treinada só para esse objetivo. Podemos até descobrir
alguns evangelhos novos. Poderíamos fazer coisas que ajudariam a toda a Cristandade! Pense em
cento e cinqüenta homens, todos treinados para essa busca! E não é tarde demais para tentar. A
Santa Cruz foi descoberta em 326, mas o Santo Sudário só foi descoberto em Lirei em 1360!
Podemos encontrar a lança que matou Nosso Senhor!

— Eu estava pensando nisso.
— Devemos procurar especialmente manuscritos.
— Sim.
—-Devemos ir para todo lado, para a Terra Santa, para todo lugar! Seremos como o meu querido
De Joinville!

— Sim.
— Acho que esta é a idéia mais estupenda que você já teve! — disse Sir Lancelot.
— Receio que sim — disse o Rei, e desta vez foi sua voz que soou estranha. — Durante a noite,
pensei que talvez estivesse visando alto demais. Se as pessoas atingem a perfeição, desaparecem,
você sabe. Pode significar o fim da Távola. E se alguém, vamos supor, encontrar Deus?
Mas a mente de Lancelot não era feita para metafísica. Ele não notou a mudança na voz de Arthur.
Começou a cantarolar para si mesmo o grande hino dos Cruzados:

Lignmn cruas, Signtim duas, Seqmtttr exércitos...

— Poderíamos procurar o Santo Graal — exclamou, triunfante. Foi neste momento que chegou um
mensageiro do Rei Pelles.
Pedia a presença de Sir Lancelot para sagrar um jovem cavaleiro em uma abadia. Era um belo
jovem, correto e recatado como uma pomba. Tinha sido educado em um convento. Acreditava-se
que seu nome, disse o mensageiro, fosse Galahad.

A Rainha Guenevere levantou-se e voltou a se sentar. Abriu as mãos e as fechou de novo. Sabia
que Sir Lancelot partiria para encontrar seu filho, tido com outra mulher — mas quase não se
importou com isso.


XXVIII


Se você quiser ler sobre o começo da Busca do Graal, sobre as maravilhas da chegada de Galahad

— Guenevere, numa estranha mistura de curiosidade, inveja e horror, fez uma tentativa fútil de
seduzi-lo — e da última ceia na Corte, quando caiu o trovão, e sobre o raio do sol e a taça coberta
e o delicioso odor se espalhando pelo Grande Salão — se quiser ler sobre tudo isso, terá que
buscar em Malory. Essa maneira de contar a história só pode ser feita uma vez, 0 fato concreto que
importa é que os cavaleiros da Távola Redonda saíram em conjunto, logo depois de Pentecostes,
com o objetivo imediato de descobrir o Santo Graal.
Demorou dois anos para que Lancelot voltasse à Corte -— e foi um período solitário para os que
estavam em casa. Vagarosamente, aqueles cavaleiros que tinham sobrevivido começaram â pingar
de volta em duplas ou trios, homens cansados trazendo notícias de perdas ou rumores de sucessos.
Chegavam mancando em muletas, ou conduzindo cavalos exaustos que não podiam levá-los mais
adiante, ou, como fez um que havia perdido a mão em uma batalha, carregando uma mão com a
outra. Todos esses homens pareciam esgotados e confusos. Seus rostos eram fanáticos, e
balbuciavam em sonhos. Barcos que se moviam pelas próprias forças, altares de prata sobre os
quais se rezavam estranhas missas, lanças que voavam pelo ar, visões de touros e árvores
arrancadas, demônios em velhas tumbas, reis e eremitas que viviam quatrocentos anos — todos
apareciam nos rumores que enchiam o palácio. Uma conta feita por Sir Bedivere mostrou que
metade dos cavaleiros estava desaparecida. Presumiu-se que estivessem mortos. Mas, em todo esse
tempo, Sir Lancelot não voltou.

A primeira testemunha confiável a regressar foi Gawaine, que chegou à Corte com um humor negro,
a cabeça envolta em ataduras. Era o único do clã das Órcades que havia se recusado a aprender
corretamente o inglês e falava com sotaque nortista — quase que próprio dele. Ainda pensava
metade do tempo em gaélico. Desafiava os sulistas, orgulhoso de sua raça.

— Cegueira e Escuridã na Busca — disse Gawaine. — Si jamais houve u'a missa inútil, foi essa.
— O que aconteceu?
Arthur e Guenevere, como boas crianças, sentavam-se com as mãos no colo para escutar as
histórias. Como crianças, estavam alertas c ansiosos, procurando a verdade da melhor maneira que
podiam.

— O qui acontoceu, é isso? Ora, o qui acontoceu foi qui desperdicei dezoito meses, perdi mi égua i

tive quir a pé atrás d'aven-tura, i terminei meio morto com o qui v'cês chamam concussã. Possa
Deus mi livrar para todo s'mpre desse Graal.

— Conte-nos do começo.
— Do com'ço?
Ele ficou surpreso com o interesse do tio.
— Ora, nã há muito qui contar.
— Pois conte de qualquer forma.
— Traga vinho para Sir Gawaine — disse a Rainha. — Sente-se, meu Lorde. Seja bem-vindo.
Fique à vontade e conte a história, se não estiver cansado demais.
— Nã estou cansado, só com dor de cabeça. Posso contar mi história. Obrigado, Senhora, vou
tomar uísque. Vamos ver, por onde com'ço?
O senhor das Órcades sentou-se e tentou se lembrar.

— Quando saímos do castelo de Vagon... Lembram qui chegamos a Vagon todos juntos, no primeir
dia, i nos dispersamos dia seguinte? Quando a gente saiu di lá, tomei o rumo nor'este. Nã fazia
diferença qui c'minho seguir. Lancelot deu u'a informaçã pra todos, no dia antes da gente si separar,
qui o velho Rei Pelles tinha dito u'a vez a ele ter um prato sagrado, em um di seus grandes castelos.
Ele na dava importância a isso, mas contou pra todos di qualquer maneira. Mais da mitade seguiu
àquela direção, mas eu nã mi importei. Pro nor'oeste foi pr'onde segui.
Bebeu uma bela golada.

— O primeir sinal qui achei — disse — foi di Galahad. Oh tipinho presumido i desumano qui é
aqu'le sujeito. Aqu'le rapazinho — continuou Sir Gawaine, tomando outro gole e se entusiasmando
com o relato —, aqu'le rapazinho é, sem dúvida, o maior catamito qu'eu jamais senti o fedor no
mundo, isso é o qui ele é.
— Ele derrubou você? — perguntou o Rei.
— Nã, nã. Isso foi depois. Topei com os rastros dele logo no com'ço. Criado nu'a creche — ele
continuou, furioso — no meio di um bando de gatinhada velha! 'lenho notícias da Busca pissoal
dele, contadas por vários qui o enfrentaram — o santinho viado com coraçã frio di gaviã
presunçoso... Mas é isso, o sujeito é inglês. Seria rachado de alt'a baixo si cruzasse a fronteira com
a Escócia. A menos qui já tenha sido — concluiu, surpreso com a idéia.
— O que Sir Galahad fez de errado?
— Umas coisinhas. O sujeito é vegetariano i abstêmio, i quer qui acreditem qui é virgem. Mas eu
encontrei com Sir Melias... sabem qui Sir Melias está gravemente estropiado? Ele mi contou como
esse seu Galahad si comportou. Sei lá por que Melias simpatizou com o sujeit'nho, i pediu permissã
ao rapaz, pra seguir cam'nho com ele. Nem imagino por qui qui ele fez isso, pois o primeir qui
tentou ir com Galahad foi Uwaine. I Sir Galahad recusou! Sir Uwaine nã era bastante bom pr'ele!
Ora, ora, mas ele condescendeu i deixou qui Melias fosse com ele, i ainda por cima sagrou-o

cavaleiro! Qu'eu mi dane se fosse sagrado por um idiota di d'zoito anos! Quando sagrou Melias,
diss' essas tnismas palavras: "Agora, bom senhor — diz ele — já qui descendeis di reis e rainhas,
cuide bem di sua condiçã di cavaleiro, pois deveis ser um espelho de fidalguia!". O qui vocês
diriam disso? Ora, qu'inglês sulista esnobe. O episódio qui seguiu foi qui os dois seguiram im
busca d'aventura até chegarem a u'a encruzilhada, onde Melias teve vontade di ir pr'isquerda.
Galahad disse: "É melhor na ir por aí, pois acho qu'eu escaparia melhor por essa direção qui
você". Nã havia nenhuma falsa modéstia no belo Galahad, esta vendo? Bem, Melias seguiu p'ra
esquerda... i teve o azar di ser ferido pela loriga nas mãs di um misterioso cavaleiro, como
Gaíahad tinha previsto. Ficou lá pra morrer... a ponta quebrada da lança enfiada na illiarga.
Quando o grande Galahad o encontrou ferido, vejam só o qui o homenzinho diz'r "Bem teria sido
melhor cavalgar pr'outro lado!" Um belo garotinho com essa conversa de eubemquiavisei com um
quase morto! I nem o ajudou!

— O que aconteceu com Sir Melias?
— Disse pra Galahad: "Sir, deixa a morte chegar quando a ela lhi aprouver". I ele mesmo arrancou
a lança. Melias é um bom cavaleiro, i fico alegre im d'zer qui ele ainda está vivo.
Arthur disse:

— Afinal, Galahad é apenas uma criança! São as dores do crescimento, talvez. Não acho que deve
ser julgado por pequenas faltas no relacionamento social.
— Sabiam qu'ele já atacou o próprio pai, i o d'rrubou do cavalo? Sabiam qui fez o pai ajoelhar
diante dele pra lhe pedir perda? Sabiam qui tem pessoas pedindo pra morrer nos braços di
Galahad, i qu'ele deixa isso acontecer, como si fosse u'a mercê?
— Bem, taivez seja uma mercê.
-— Ora, qui diacho! — exclamou Gawaine, e enfiou o nariz na taça.
— Você não está nos contando a sua própria história.
— Mi primeira aventura qui tive, i quase foi só mismo essa, aconteceu no Castelo das Donzelas.
Mas talvez fosse melhor nã contar agora, diante da Rainha.
Arthur replicou, friamente:
-— Minha mulher não é um bebe nem uma imbecil, Sir Gawaine. Todos sabem sobre o costume
daquele castelo.


Educadamente, Guenevere observou:

— Em francês chamam isso de droit de xigneur.
— Mui bem, entã, eu cheguei no Castelo das Donzelas com Uwaine i Sir Gareth. Estava guardado
por sete cavaleiros, ou coisa qu'o valha, qui insistiam no costume. Encontr'mos esses sete do lado
di fora do castelo, todos bem armados, i tivemos u'a boa luta entre nós, i matamos todos. Quando
tudo terminou, ficou bem claro qui Galahad tinha passado por ali antes da gente. Foi ele quem os
derrotou primeir, sem matar nenhum, i estava o tempo todinho lá dentro do castelo. A gente é qui
teve qui fazer o papel di açougueiros, terminando o qui nã devia ser obra nossa,

— Azar.
— Galahad saiu trotando i nã falou conosco, Quiria dizer qui a gente era pecador... i ele
abençoado. I nã me importei com o qu acontoceu depois disso.
— E você continuou viajando com Uwaine e Gareth?
— Nã, nos separamos depois do Castelo das Donzelas. Cavalguei por todas as direçãs até
encontrar uma ermida, com seu religioso
dentro. Conhecem o tipo, o tipinho salvacionista. A primeira demanda dele foi: "Gostaria disaber como esta as coisas entre seu Deus Í você". Perguntei si ele poderia mi dar abrigo naqu'la
noite. Bem, ele era o hospedeiro i padre além do mais, assim qui quando mi pressionou pela
confissão, eu nã pudia recusar. Ele começou a falar bobagens dos sete cavaleiros... disse qui eram
os sete pecados capitais... i mi disse, calmo como a luz do dia, qu'eu nã passava de um assassino di
homens.

— Ele disse — perguntou o Rei, interessado — que era errado matar pessoas por qualquer razão,
especialmente quando se estivesse na Busca do Graal?
— Mi alma pro demo si ele nã disse isso. Pregou qui Galahad tinha expuls'ado os sete cavaleiros
sem matança, i mencionou qui o Santo Graal nã era pra quem tinha derramado sangue.
— E o que mais ele disse?
—-Nã mi lembro. Depois di fazer esse discurso, como eu lhes contava, mi aconselhou a fazer uma
penitência. A menos qui pessoa fizesse u'a confissão completa, i fosse totalmente absolvido, nã
adiantava nada sair procurando pelo Graal, ele disse. O sujeito era pancada. Um cavaleiro errante
está nu'a situaçã qui devia tornar a penitência desnecessária, como eu mostrei a ele, com os
trabalhadores manuais nã fazem jijum na Quaresma. Desmenti o sujeito i parti imediatamente.
Depois disso, encontrei Aglovale i Griftet... I depois, depois? Acho qui cavalguei com eles uns
quatro dias... I entã a gente separou de novo, i a escuridã caia sobre mim si não cavalguei até o dia
di Sã Miguel sem nenhuma outr'aventura! A verdade — acrescentou Gawaine —-é qui nestes
tempos nã si encontram mais aventuras na Inglaterra. O país está liquidado.

— Traga outra bebida para Sir Gawaine.
— Quando o dia di Sã Miguel já tinha passado, encontrei Ector Demarís. I ele tinha tido tanto azar
quant'eu mismo! Trotamos até u'a capela perdida na floresta, i dormimos por lá com u'a boa bebida
no bucho, i cada um teve o mesmo sonho naquela noite. Era sobre uma mã i um braço, cobertos di
samito, segurando u'a brida i u'a vela. U'a disse qui a gente precisava daquilo. Pouco depois,
encontrei um segundo padre qui disse qui a brida era pela continência i a vela era pela fé . Parece
qu'eu i Ector tínhamos pouco disso. Vejam só como m sujeito pode torcer um sonho. Logo depois
veio u'a dose pesada di azar como o qui andava comigo sempre. Chegamos, os dois, i encontramos
mi primo Uwaine, com seu escudo coberto, i nã reconhecemos seu brasão. Ector mi concedeu o
primeir embate com mi primo, mi próprio parente. A espada entrou direto dentro do peito de
Uwaine. Devia ter u'a falha na brigandina dele.
— Uwaine está morto?

— Sim, morto, homem. É a negra sina qui mi acompanhou.
Arthur limpou a garganta.
— Acho que a sina de Uwaine foi pior — disse. — Deus o tenha. Talvez não tivesse sido uma má
idéia ter dado ouvidos àquele padre de antes.
—-Eu nã queria matar! Ele era mi próprio primo das Órcades! E pensar qui aquele pedante sulista,

o diacho do escudo branco, tinha si recusado a cavalgar com ele!
— Você se refere a Galahad? Ele estava usando o vergescu, o escudo branco dos cavaleiros que
ainda não combateram?
— Sim, era Galahad. Mas nã com o vergesai, Ele conseguiu o escudo im algum lugar, i dizia qui
tinha pertencido a José de Arimatéia. A divisa era di prata, com u'a cruz vermelha im forma de T.
A prata a pra significar a brancura das virgens, disseram pra gente, i a cruz vermelha era por conta
do Graal... Deixei mi história de lado.
— Você tinha acabado de matar Uwaine — disse Artur, pacientemente.
— Ector i eu chegamos a mais u'a ermida, i foi lá qui o padre falou da brida do nosso sonho. Esse
padre era vegetariano, vejam só! U'a velha história sobre assassinatos, cada vez mais exaltado, i
pressionou pra qui a gente si arrependesse. A gente se desculpou i trotamos pra longe dali.
— Disse ele que a razão pela qual nenhum de vocês dois tinha sorte se devia a estarem apenas
procurando matar?
— Sim, claro qui disse. Disse qui Lancelot em um homem melhor qui a gente porque raramente
matava seu adversário, i particularmente porqui na fez isso nesta Busca. Disse também qui
muit'outros cavaleiros, o próprio Ector encontrou mais de vinte, estavam no mismo caso qui a gente
por conta di seus pecados. Disse qui matar pessoas era contra a Busca. Mal conversamos com ele i
fomos embora deixando ele falar sozinho.
— E depois?
— Chegamos num castelo, Ector i eu, onde um belo torneio estava acontecendo. A gente si juntou
aos atacantes, i foi u'a ótima batalha, i a gente já ia quase forçando nossa entrada, os ânimos
estavam um pouc'exaltados, quando chegou Galahad. Deus todo poderoso é qui sabe qui mal vento
trouxe esse frangote. Parece qui ele nã aprovava qui cavaleiros lutassem por esporte. Juntou-se do
outro lado i jogou a gente pra fora do castelo, i mi deixou com isto.
Gawaine tocou sua atadura.

— Ector nã queria qui a gente lutasse com ele — explicou. — Sã parentes. Mas eu nã deixei di
lutar por isso, i pouco mi adiantou. Ele mi deu um golpe di tal jeito qui rompeu o elmo, i quebrou a
coifa de ferro, sim, i além do mais, quando o golpe resvalou, matou também mi cavalo. Esse foi mi
fim, por Cristo. Fiquei di cama mais di um mês.
— E então voltou para casa?
— Sim, pra casa.

— Você estava mesmo sem sorte — disse a Rainha.
— Azarado mismo!
Gawaine olhou para a taça vazia uma ou duas vezes. Depois se animou.
— Matei o Rei Bagdemagus — disse. — Acho qui nã ouviram falar disso. Esqueci de contar na mi
história.
Arthur tinha escutado com atenção e refletido sobre seus próprios pensamentos. Depois fez um
movimento de impaciência.

— Vá deitar-se, Gawaine — disse. — Deve estar cansado. Vá para a cama e pense sobre tudo isso.

XXIX


O próximo a regressar foi Sir Lionel, um dos primos de Lancelot. Lancelot tinha um irmão,
chamado Ector, e dois primos, Lionel e Bors. Lionel estava enraivecido, tai como Gawaine, mas o
objeto de seu aborrecimento não era Galahad. Era seu próprio irmão, Bors.

— Moral — disse Lionel — é uma forma de loucura. Mostre-me um homem de moral que insiste
em fazer a coisa certa o tempo todo e mostro um emaranhado do qual nem um anjo conseguiria se
safar.
O Rei e a Rainha estavam sentados lado a lado como de costume para ouvir a história do viajante.
Tinham criado o hábito de levar eles mesmos uma pequena refeição para o Grande Salão, tão logo
regressava um cavaleiro, para que pudessem ouvir as novidades enquanto este comia. A luz caía na
mesa entre eles — vinda de uma janela a com -vitral — de forma que suas mãos se moviam entre
pratos t s que eram rubis, esmeraldas e poços de chamas. Estavam em um mágico de gemas, numa
clareira cujas folhas eram jóias. E Bors se preocupa com a moral?

— Sempre se preocupou, maldito seja — disse Lionel. — Essa história de morai parece que corre
na minha família. Lancelot já é um mal exemplo, para começo de conversa, mas Bors deixa-o no
chinelo. Sabem que Bors só praticou o ato sexual uma única vez?
— Verdade?
— Sim, verdade. E, até agora, no que diz respeito a essa Busca do Santo Graal, parece que ele está
fazendo um curso avançado de dogma católico.
— Quer dizer que está estudando?
Lionel acalmou-se um pouco. No fundo do coração, gostava do irmão, mas tinha passado por uma
experiência que amargurara suas relações. Agora que podia falar sobre isso, e tinha tempo de
repensar o assunto, começou a ver o outro lado da disputa.

— Não — disse. — Não é preciso me levar tão a sério. Bors é um bom sujeito e, se algum dia
houver um santo na família, vai ser ele. Não tem a cabeça muito brilhante, e é um pouco pedante,
mas seus palpites às vezes são ouro puro. Acho que Deus andou testando-o durante esta Busca, mas
não sei se foi aprovado. Eu tentei matá-lo.
— É melhor começar a história desde o início — disse Arthur — ou não vamos entender o que

aconteceu,

— Minha história é nada. Andei de um lado para o outro como Gawaine, sendo chamado de
assassino por alguns eremitas. Vou lhes contar a história de Bors, já que entrei nela. Deus —
começou Lionel — andou testando Bors, suponho. Como se ele fosse ser ordenado padre, e
quisessem ver se era mesmo ortodoxo. Sabem?, acho que o momento em que Gawaine, eu, Ector e
todos os demais saímos da linha certa foi quando não nos confessamos logo no começo. Pois Bors
confessou no primeiro dia, e ainda começou uma penitência. Prometeu não comer nada mais que
pão e água, vestir uma batina e dormir no chão. E, é claro, não iria ter nada a ver com as mulheres,
mas, afinal, só tinha feito isso uma vez. Esse é o problema dele. Bem, a primeira coisa que
aconteceu, quando ele pôs a vida em ordem, foi começar a ter visões. Ele viu o pelicano
alimentando os filhos com o próprio sangue, e um cisne e um corvo, algumas macieiras apodrecidas
e flores. Tudo isso tinha a ver com a teologia, ele me explicou, mas não me lembro de nada. O que
aconteceu em seguida foi uma dama pedir que ele a resgatasse de um cavaleiro chamado Sir
Pridam. Ele resgatou a dama com facilidade e teve a oportunidade de matar Sir Pridam. Prestem
atenção. Depois da nossa batalha, ele me contou essa história e me disse que tinha sido sua
primeira prova. Disse que se sentia como um cavalo de saltos fazendo demonstrações e tendo que
pular um obstáculo cada vez mais alto, e temia que se falhasse em um salto seria mandado de volta
para o estábulo. Se tivesse matado Sir Pridam estaria liquidado. Teria sido posto a comer capim,
tai como aconteceu com Gawaine e todos nós. Disse que ninguém tinha lhe falado nada sobre isso.
Os obstáculos apareciam de repente diante dele, e era como se alguém estivesse olhando, alguém
que não podia ajudar nem dar palpite, mas que simplesmente observava para ver se ele saltava.
Bem, ele não matou Pridam. Só berrou com ele para que se rendesse e bateu na cara dele com a
prancha da espada até que se entregasse. E aquele salto se completou com sucesso. Você acha que
pode haver alguma coisa contra matar pessoas nessa Busca, Rei? Sabe, algum tipo de Não
sobrenatural?
— Acho que você é um homem sensato, Lionel — disse o Rei —, mesmo que tenha tentado matar
seu próprio irmão. Continue a história.
— Bem, a segunda prova foi direto em cima de mim. Foi a razão pela qual tentei matá-lo. Agora
estou arrependido disso. Só agora compreendi e sinto muito. Na ocasião não entendi assim.
— Qual foi a segunda prova?
— Bors e eu sempre gostamos um do outro, como sabem. Esta briguinha não é nada. Sempre
amamos um ao outro à nossa maneira, e Bors cavalgava pela floresta, quando teve que enfrentar
duas coisas. Uma era eu, amarrado nu em uma carroça, com dois cavaleiros cavalgando ao lado e
me açoitando com espinhos. A outra era uma virgem, cavalgando mais que depressa, com um
cavaleiro galopando atrás dela para desfrutar da sua virgindade. Os dois comboios iam em
direções contrárias, e Bors estava sozinho. Pensando agora — remarcou Sir Lionel com pesar —,
tenho muito azar com isso de ser açoitado com espinhos. Uma vez Sir Turquine fez isso comigo.
— E qual foi o lado que Bors escolheu?
— Bors decidiu salvar a donzela. Quando eu finalmente perguntei a ele que diabos ele pensava

quando desertou seu próprio irmão, isso por ocasião do nosso combate, mais tarde, ele explicou
que eu tinha uma tendência para ser um cão sujo, embora ele gostasse de mim, enquanto a donzela
era uma donzela, no final das contas. Então, ele achou que seu dever era com o melhor lado. Foi
por isso que tentei matá-lo. Mas agora — acrescentou Lionel —, posso entender seu ponto de vista.
Percebo que era sua segunda prova, e que deve ter sido uma decisão difícil de tomar.

— Pobre Bors. Espero que não tenha ficado muito pedante por conta disso.
— Ficou humilde. Essas provas pareciam assomar direto na frente do velho cascateiro, e ele
procurava adivinhar por acaso, geralmente pensando que adivinhara errado, e no final ficava
espantado quando descobria que adivinhara certo. Ele se esforçava o tempo todo, fazendo o melhor
que podia.
— Qual foi a terceira prova?
— Elas sempre iam piorando. Na terceira prova, aproximou-se dele um homem vestido como
padre, e lhe disse que uma dama no castelo próximo estava condenada à morte a menos que Bors
fizesse amor com ela. Este suposto padre observou que ele já havia sacrificado a vida de seu
próprio irmão — esse era eu — ao escolher erradamente ajudar a donzela, e que se não pecasse
agora com essa dama, teria uma segunda morte em sua consciência. Eu devia ter mencionado que os
dois cavaleiros me deixaram como morto, e Bors me achou aparentemente morto e levou meu corpoaté uma abadia para ser enterrado. É claro que me recuperei mais tarde. Bem, a dama apareceu no
castelo, tal como declarado pelo falso padre, e confirmou a história. Ela disse que havia uma
mágica que a faria morrer por amor, a menos que meu irmão fosse bom com ela. Bors compreendeu
então que ou cometia um pecado mortal e salvava a dama, ou se recusava a cometê-lo e a deixava
morrer. Mais tarde ele me contou que se lembrou de pedaços do catecismo vulgar e de um sermão
que foi feito quando uma missão passou por Camelot. Decidiu que não era responsável pelas ações
da dama, mas que o era pelas suas próprias. Portanto, recusou-se a servir à dama. Guenevere deu
uma risadinha.
— Mas a coisa não terminou aí. A dama era estonteantemente bela, e subiu até o mais alto torreão
do castelo, com doze belas fidalgas, e disse que se Bors não parasse de ser tão puro, todas
pulariam dali juntas. Disse que as obrigaria a fazerem isso. Disse também que bastava uma noite
com ela — e por que não deixaria de ser divertida? — para as fidalgas serem salvas. Todas as
doze gritavam por Bors, e imploravam sua piedade, chorando desconsoladas. Posso lhes dizer que
meu irmão estava vacilando. As pobres criaturas estavam tão assustadas e belas, e bastava que ele
deixasse de ser obstinado para salvar suas vidas.
— E o que ele fez?
— Deixou que saltassem.
— Que vergonha! — exclamou a Rainha.
— Oh, era apenas uma coleção de demônios, é claro. A torre toda desmoronou e imediatamente
desapareceu, e resulta que eram todos demônios, inclusive o padre.
— Acho que a moral — disse Arthur — é que não se deve cometer pecado mortal, mesmo que doze

vidas dependam disso. Falando dogmaticamente, acho que é correto.

— Não sei de que dogma se trata, mas sei que quase embranqueceu os cabelos do meu irmão.
— Tinha um bom motivo para isso. Qual foi a quarta prova, se é que houve?
— A quarta prova era eu, e foi o último obstáculo. Eu revivi na abadia onde ele tinha me deixado
para ser enterrado e, quando já estava bem, saí cavalgando a procurá-lo. Agora eu sinto muito por
isso; aliás, tenho que lhe pedir perdão por algumas coisas que fiz, mas quando se pensa nisso,
parece que é um pouco exagerado ser deixado pelo próprio irmão para ser açoitado até a morte.
Ora, tendo escapado por pouco e sem compreender na época as coisas que aconteciam com Bors, e
sabendo que, justo antes de perder a consciência, eu o vira me abandonar ao meu destino, bem,
admito que estava com a mente bem amargurada. De fato, estava com desejos assassinos. Encontrei
Bors numa capela na floresta, e fui logo dizendo que iria matá-lo. Eu disse: "Vou executá-lo como
um bandido ou um traidor, pois você é o cavaleiro mais incapaz que jamais saiu de uma casa tão
ilustre". Bors recusou-se a lutar. Eu disse: "Se você não lutar, mato-o aí mesmo". Bors disse que
não podia combater com seu próprio irmão, entre todas as pessoas. Disse que não podia matar nem
pessoas comuns nessa Busca do Graal, como poderia então matar seu irmão? Eu disse: "Pouco me
importa o que lhe é permitido ou não. Se quiser se defender, vou lutar com você; se não, vou matá-
lo de qualquer maneira". Eu estava furioso. Bors simplesmente se ajoelhou e pediu misericórdia.
"Percebo agora — prosseguiu — que para Bors o que fazia estava correto. Ele estava na Busca do
Graal, fazia parte do esquadrão anti-homicida, e eu era seu irmão. Também era corajoso da parte
dele. Mas naquele momento eu não entendia isso. Simplesmente achava que ele escava sendo
obstinado, e o derrubei de ponta-cabeça quando se ajoelhou. E desembainhei a espada para cortar a
cabeça dele".
Lionel sentou-se em silêncio por um instante, olhando o prato diante de si, onde via um poço
brilhante de rubi, provocado pelo vitral, em forma de um ovo.

— Sabe — disse ele —, é muito bonito ficar com essa coisa de moral e dogmas enquanto se está
sozinho, mas o que se deve fazer quando outras pessoas entram na confusão? Acho que para Bors
estava suficientemente claro que devia se ajoelhar e deixar que eu o matasse, mas de repente
apareceu um eremita que saiu correndo da capela, jogou-se por cima do corpo do meu irmão. Disse
que ia evitar a qualquer custo que eu me tornasse um fratricida. Eu matei o eremita.
— Matou um homem indefeso?
— Sinto muitíssimo, Rei, mas é verdade. Não se esqueça de que eu estava com uma raiva
espantosa, e o sujeito me impedia de chegar até Bors, e sei usar bem minhas mãos. Eles queriam me
desconcertar com uma espécie de arma moral, e usei minha própria arma contra isso. Achei que
Bors estava me enfrentando de maneira desleal, e que o eremita o ajudava. Achei que ele estava
contrapondo sua vontade à minha. Se ele quisesse salvar o eremita, tinha que deixar de ser
obstinado, levantar e lutar. Se entendem o que quero dizer, achei que o eremita era problema dele,
não meu. Acho que estava simplesmente enfurecido — admitiu Lionel depois de algum tempo. —
Sabem como é que a pessoa fica. Eu queria lutar e ia fazer isso. Eu tinha dito que o mataria se ele
não lutasse, então iria matá-lo. Sabem como é, é como ficar amuado.

Houve um silêncio desconfortável.

— E melhor eu terminar minha história — ele disse, constrangido.
— Continue.
— Bem, Bors deixou que eu matasse o eremita. Simplesmente ficou no chão e pediu amor. E eu
estava mais enlouquecido que nunca, em parte por causa da vergonha, e levantei a espada para
cortar a cabeça do meu irmão ali mesmo, e então, naquele instante apareceu Sir Colgrevance de
Gore. Ele se meteu entre nós e disse que eu devia ter vergonha de derramar o sangue do meu pai.
Essa foi a última palha, com todo o sangue do eremita espalhado ao meu redor, assim que parti
para cima de Colgrevance. E em minutos o derrotei.
— E o que fez Bors?
— Pobre Bors, Nem quero pensar quais seriam seus sentimentos naquele momento. Lá estava ele
de novo diante do obstáculo, e bastava que o recusasse para salvar outra vida. Ele tinha liquidado
o eremita, aparentemente por conta de sua obstinação, e agora eu ia matar Colgrevance, que tinha
tentado ajudá-lo. Colgrevance soluçava, dizendo: "Levante-se, homem, e me ajude. Por que vai me
deixar morrer por você?".
— Resistência passiva — disse Arthur com muito interesse. — E uma nova arma. Mas parece
difícil de ser usada. Continue, por favor.
— Bem, matei Colgrevance em luta limpa. Sinto muito, mas foi o que fiz. Então voltei para Bors,
para liquidar o assunto, Ele levantou o escudo sobre a cabeça, mas recusou-se a lutar.
— O que aconteceu?
—-Deus chegou — disse, solene, o rapaz. — Ele ficou entre nós, nos estonteou e fez nossos
escudos queimarem.

Houve uma longa pausa enquanto Arthur digeria as primeiras notícias de coisas que ele esperava
ou temia acontecer.

— Sabe — disse Lionel —-, Bors rezou.
— E Deus veio?
— Não sei exatamente o que aconteceu, mas o sol flamejou. Algo aconteceu. De repente paramos
de lutar e começamos a rir. Vi que Bors era um idiota, ele me beijou e fizemos as pazes. Então ele
me contou sua história, tal como relatei, e foi-se em um barco mágico, coberto de samito branco.
Bors vai achar o Graal, se é que alguém vai conseguir isso, e esse é o final de minha história.
Todos permaneceram sentados e silenciosos, achando difícil versar sobre assuntos espirituais, até
que finalmente Sir Lionel falou pela ultima vez.

— Tudo terminou bem para Bors — ele disse, queixoso —, as e o eremita? E Sir Colgrevance? Por
que Deus não os salvou?
— Dogmas são questões difíceis — disse Arthur.
Guenevere disse:

— Não sabemos do passado deles. Morrer não fez mal às suas almas. Morrer assim talvez tenha até
ajudado suas almas. Talvez Deus tenha lhes dado essa boa morte porque era o melhor para os dois.

XXX


A terceira chegada importante foi a de Sir Aglovale, que chegou bem no final da tarde, quando os
rubis tinham deixado a mesa e subido pela parede. Era um jovem com menos de vinte verões, um
rosto fino e nobre e senso de humor. Ainda estava de luto por seu pai, o Rei Pellinore — e o
indicava usando uma tira negra no braço que segurava o escudo. Pelo menos todos pensavam que
era pelo Rei Pellinore. O fato, entretanto, era que também sua mãe morrera desde que o tinham
visto pela última vez. E ele também trazia a notícia da morte de unia irmã -— quase toda a família
Pellinore tivera uma má sorte.

—-Gawaine está por aqui? — perguntou Aglovale. — E por onde andam Mordred e Agravaine?

Deu uma olhada ao redor, como se pudesse realmente encontrá-los no salão. Acima de sua cabeça,
um raio colorido de luz caía sobre uma pequena e primitiva peça de tapeçaria — o quadro de
alguns cavaleiros em cota de malhas, com protetores de nariz nos elmos pintados, perseguindo um
urso.

Arthur respondeu:

— Aglovale, eles estão aqui. Minha felicidade está em suas mãos.
— Entendo.
— Você vai matá-los?
— Vim para matar primeiro Gawaine. Parece estranho, depois da Busca do Santo Graal.
— Aglovale, você tem todo direito de tentar vingar-se do clã das Órcades, e não vou impedi-lo se
tentar. Mas quero que saiba o que está fazendo. Seu pai matou o pai deles e seu irmão dormiu com
a mãe deles. Não, não precisa explicar isso, deixe-me só lembrá-lo dos fatos. Depois, os dasÓrcades mataram seu pai e seu irmão, e os filhos de Gawaine matarão os seus, e assim em diante.
Esta é a lei do Norte. Mas, Aglovale, eu venho tentando estabelecer uma nova lei na Bretanha, pela
qual as pessoas não terão que continuar derramando para sempre sangue jovem. Já pensou quanto
isso é difícil para mim? Existe um ditado que diz que duas coisas erradas não fazem uma certa, e eu
gosto desse ditado. Não o aplique a você mesmo, aplique-o a mim. Eu poderia ter punido o clã dasÓrcades por assassinar seu irmão. Podia ter mandado cortar a. cabeça deles. Você gostaria que eu
tivesse feito isso?
— Sim.

— Talvez eu devesse ter feito isso.
Arthur olhou para suas mãos, como fazia com freqüência quando tinha problemas. Depois disse:
— É uma pena que você não tenha rido a oportunidade de ver o clã das Órcades no lar deles. Não
tinham uma vida familiar feliz como a sua.
Aglovale disse:

— Você acha que agora eu tenho uma vida familiar feliz? Sabe que minha mãe morreu faz alguns
meses? Papai costumava chamá-la de Piggy.
— Aglovale, sinto muito. Não sabíamos.
— As pessoas costumavam rir do meu pai, Rei. Eu sei que ele não era um tipo formidável. Mas
deve ter sido um bom marido, não é verdade?, pois minha mãe morreu de solidão depois que ele sefoi. Minha mãe não era uma pessoa introspectiva, Rei, mas murchou depois que o clã das Órcades
matou meu pai e Lamorak. Agora ela está na mesma tumba.
— Você deve fazer o que acha certo, Aglovale. Sei que você é um verdadeiro Pellinore, e o fará.
Não peço favores para mim. Mas permita que mencione três coisas? A primeira é que seu pai foi o
primeiro cavaleiro pelo qual me encantei; no entanto, não puni Gawaine. A segunda é que todos doclã das Órcades adoravam a mãe deles. Ela fez com que a amassem demasiado, mas só amava a si
mesma. E a terceira coisa — oh, Aglovale, escuta essa — é que o rei só pode trabalhar com suas
melhores ferramentas.
— Receio não ter compreendido o terceiro ponto.
— Você acha — perguntou Arthur — que essas hostilidades são uma boa coisa? Estão contribuindo
para dar mais felicidade às duas famílias?
— Não exatamente.
— Se eu quisesse parar com essas disputas familiares, você acha que adiantaria alguma coisa
apelar para Gawaine e pessoas como ele?
— Percebo.
— Que bem eu faria se executasse toda a família das Órcades? Apenas teríamos três cavaleiros a
menos com que trabalhar. E a vida deles tem sido infeliz, Aglovale. Por isso, entenda, minhas
esperanças repousam em você.
— Tenho que pensar sobre o assunto.
— Pense. Não decida nada às pressas. Nem me leve em consideração. Faça apenas o que achar
justo, porque você é um Pellinore, e por isso sei que tudo terminará bem. Agora me conte sobresuas aventuras com o Graal, e esqueça o clã das Órcades esta noite.
Aglovale suspirou fundo e disse:

— No que me diz respeito, não houve nenhuma aventura do Graal. Mas isto me custou uma irmã.
Talvez também um irmão.

— Sua irmã morreu? Pobre rapaz, pensei que ela estivesse segura em um convento.
— Foi encontrada morta numa espécie de barco.
— Morta em um barco!
— Sim, um barco mágico. Levava uma longa carta nas mãos, toda sobre a Busca do Graal e sobre
meu irmão Percy.
— Estamos perturbando você com estas perguntas?
— Não, quero falar sobre isso. Ainda tenho Domar, e parece que Percy se distinguiu bastante.
— O que Sir Percivale andou fazendo?
— Talvez seja melhor eu lhes contar o que diz a carta, desde o começo. Como sabem — começou
Sir Aglovale —-, Percy era aquele da família que se dava melhor com Papai. Era gentil e humilde,
e um pouco vago. Também era tímido, Quando encontrou Bors nesse barco mágico deles, diz a
carta, sentiu-se envergonhado diante dele. Era ainda um cavaleiro donzel, como Galahad, vocês
sabem. Muitas vezes eu pensava, quando os via juntos, que ele e Papai faziam um bom par. Para
começar, ambos gostavam de animais, e sabiam como lidar com eles. Havia a Besta Gemente de
Papai, e agora, desde que partiu, parecia que Percy andava fazendo amizade sobretudo com leões.
Percy também era benevolente e simples. Um dia, quando estavam tentando tirar uma espada
sagrada de dentro da bainha, quero dizer, os três lá no tal barco sagrado, Percy fez a primeira
tentativa. Não conseguiu — claro, todo esse tipo de coisas estava reservado para Galahad — mas,
quando fracassou, simplesmente olhou orgulhoso em volta e disse: "Por minha fé, agora falhei!".
Mas estou avançando demais na história. A carta conta que a primeira aventura de Percy, depois de
sair de Vagon, foi cavalgar com Sir Lancelot até encontrarem Sir Galahad. Os três fizeram uma
justa, e Galahad derrubou os dois. Então, Percy deixou Lancelot e foi até uma ermida, onde se
confessou. O eremita o aconselhou a seguir Galahad até Goothe ou Carboneck, e jamais lutar contra
ele. A verdade é que Percy estava atacado por uma espécie de veneração de herói para com
Galahad, portanto o conselho lhe caiu muito bem. Assim, cavalgou até Carboneck, onde escutou o
relógio da abadia tocar enquanto ainda estava atravessando a floresta; e foi lá que ele cruzou com o
Rei Eveíake, que tinha cerca de quatrocentos anos de idade. E melhor eu pular esse pedaço do
Evelake, pois não compreendi direito. Acho que o velho não podia morrer até que o Santo Graal
fosse descoberto, ou alguma coisa assim. Mas o Rei Pelles também está envolvido nesse assunto, e
esse pedaço da carta é um tanto difícil de acompanhar. De qualquer forma, Percy teve de combater
oito cavaleiros e vinte soldados, que caíram sobre ele em Carboneck, e foi salvo no último instante
pelo próprio Galahad. Infelizmente seu cavalo foi abatido e Galahad seguiu adiante sem esperar
nem um dia. Sabem — disse Aglovale, fazendo uma pausa —, pode ser muito bom isso de ser
sagrado e invencível, e não tenho nada contra Galahad por ele ser virgem, mas não acham que as
pessoas podiam ser um pouco mais humanas? Não quero ser ferino, mas esse jovenzinho faz meus
pêlos se eriçarem. Por que ele não podia dizer bom dia ou coisa assim, em vez de resgatar o sujeito
e sair cavalgando em silêncio com aquele narizinho branco empinado?
Arthur não fez nenhum comentário, e o jovem prosseguiu sua história.

— Percy tentou alcançar Galahad, seguindo as instruções, e Galahad tinha disparado, assim que o

pobre sujeito simplesmente saiu correndo atrás dele gritando "Espera!". Teve alguns problemas
terríveis tentando conseguir emprestado um cavalo, e finalmente terminou montando um pangaré de
um cavalariço, trotando atrás de Galahad o mais rápido que podia. Então, apareceu um cavaleiro e

o derrubou do pangaré — receio que nossa família não seja realmente do tipo heróico —, e lá
estava ele de novo a pé, e ainda longe de Galahad. Bem, nesse instante apareceu uma dama — mais
tarde descobriram que era uma fada, e não era das boas — e perguntou-lhe com rudeza o que ele
estava tentando fazer. Percy disse: "Não faço nem o bem nem grande mal, e então?". Então a dama
emprestou-lhe um cavalo negro que resultou ser um demônio, que desapareceu em circunstâncias
dramáticas quando Percy, felizmente, se benzeu naquela noite. Então ele se viu numa espécie de
deserto, onde conseguiu fazer amizade com um leão ao salvá-lo de uma serpente. Percy sempre
gostou do que ele chamava de nossos Amigos Irracionais, como eu disse antes. O que aconteceu em
seguida foi o aparecimento de uma deliciosa dama, em uni acampamento completamente equipado,
que convidou Percy para jantar. Ele estava faminto — com essa história toda do deserto e esse tipo
de coisa — e não estava acostumado com vinho, de forma que a testa foi fantástica. Acho que
estava um pouco melindrado com o que tinha acontecido, e acabou rindo muito e ficando excitado,
e pediu à dama — bem, vocês sabem. A dama concordou, e a coisa estava caminhando bem até que
Percy, por sorte, notou a cruz na empunhadura de sua espada, que estava no chão. Ele se benzeu
novamente, e a tenda da dama virou de ponta-cabeça, e lá se foi ela em um navio, rugindo e
gritando, e a água fervendo atrás dela. Percy ficou tão envergonhado e com tão tremenda dor de
cabeça na manhã seguinte que enfiou a espada em sua coxa, como punição. Depois disso, apareceu
o barco sagrado, com Bors dentro dele, e os dois saíram navegando juntos, sabe-se lá para onde o
barco os levaria.
Guenevere disse:

— Se esse barco sagrado se destinava a levar as pessoas até o Graal, posso perfeitamente
compreender por que Bors estava dentro dele. Sabemos que ele tinha passado por várias provas.
Mas por que Sir Percivale? Não quero ser rude, Sir Aglovale, mas seu irmão não parece ter feito
muita coisa.
— Ele preservou sua integridade — disse Arthur. — Estava tão limpo quanto Bors; na verdade, até
mais limpo. Era perfeitamente inocente. Deus já disse algo sobre as criancinhas sofredoras que
chegam até Ele.
— Mas que trapalhada!
Arthur se aborreceu.
— Se supomos que Deus é misericordioso — retrucou —, não vejo a razão pela qual não deva
permitir que pessoas tropecem até o Paraíso, assim como outras simplesmente sobem até lá.
Prossiga com sua carta, Sir Aglovale.
— É nesse momento que minha irmã entra na história. Ela era freira, como sabem, e, quando
cortaram seus cabelos pela primeira vez, teve uma visão que lhe revelou que deveria conservá-los
em uma caixa. Minha irmã era uma mulher instruída, que tinha vocação para os estudos religiosos.
Logo que Percy e Bors entraram no tal barco, chegou ao convento uma nova visão que lhe disse

para fazer certas coisas, A primeira era procurar Sir Galahad. Galahad estava passando a noite em
uma ermida perto de Carboneck, depois de ter derrubado Sir Gawaine, quando minha irmã o
encontrou. Ela o despertou e o fez armar-se, e juntos cavalgaram até o Mar de Collibe onde, mais
além de um castelo fortificado, encontraram o barco sagrado com Bors e Percy esperando. Todos
navegaram juntos até chegarem a uma garganta no mar, entre dois rochedos enormes — e lá os
esperava uma segunda balsa. Houve alguma reticência quanto a entrar no novo barco, pois nele
encontrava-se um pergaminho que alertava as pessoas que não tivessem uma fé perfeita a não
entrar; mas Galahad, como era de se esperar, com sua autoconfiança insuportável foi logo subindo.
Os demais o seguiram e encontraram uma bela cama com uma coroa de seda em cima e uma espada
semidesembainhada. Era a espada do &ei David. Havia também três fusos mágicos, feitos com aárvore do Éden, e duas espadas inferiores, para Percy e Bors. Naturalmente, a espada principal era
para Galahad, O botão do punho da espada era de pedra maravilhosa, e as escamas do punho eram
das costelas de duas bestas chamadas Calidone e Ertanax, a bainha era de pele de serpente, e um
lado da espada era vermelho como o sangue. Mas a cinta era de simples cânhamo. Minha irmã pôs-
se a trabalhar com os fusos, e fez uma nova cinta com seus cabelos, que trouxera na caixa conforme
as instruções. Ela lhes explicou a história da espada, que sabia por seus estudos, e como os fusos
eram feitos de madeira tingida até as veias e, finalmente, ela cingiu a espada em Galahad. Ela era
virgem, e colocou a cinta em um virgem, feita com seus próprios cabelos. Então voltaram ao
primeiro barco e velejaram na direção de Carlisle. A caminho de Carlisle resgataram um velho
cavalheiro que era mantido prisioneiro por alguns homens malvados em um castelo. Mataram
muitos desses homens na luta, e Bors e Percy ficaram preocupados com isso, mas Galahad disse
que era perfeitamente correto matar pessoas que não tinham sido batizadas — e resulta que era o
caso deles. Assim o velho do castelo pediu permissão para morrer nos braços de Galahad, e
Galahad condescendeu nisso. Quando chegaram a Carlisle, havia outro castelo que pertencia a uma
dama leprosa. Os médicos diziam que sua única chance de cura era banhar-se numa bacia cheia
com o sangue de uma virgem pura de linhagem real. Todos os que passavam por ali eram
dessangrados pelas pessoas do castelo, e a descrição correspondia a minha irmã. Os três
cavaleiros combateram o dia inteiro para salvá-la, mas ao anoitecer foi-lhes explicada a razão do
costume, e minha irmã disse: "Melhor um mal que dois". E consentiu em ser dessangrada, a luta
parou e na manhã seguinte fizeram isso. Ela abençoou os cirurgiões, arranjou para que seu corpo
fosse lançado para flutuar no barco sagrado com esta carta nas mãos, e morreu durante a operação.


— Naquela noite dormi às margens do Mortoise e tive um sonho que me ordenava entrar em um
navio.. Quando despertei, o navio estava lá e, quando subia bordo, senti os mais suaves odores e
sensações, e havia comida e, bem, tudo o que se possa imaginar.
Sir Aglovale voltou a ver o Rei antes de ir deitar-se, depois que condolências e exclamações
habituais foram feitas. O salão estava escuro, e as jóias de luz tinham desaparecido.

— A propósito — disse com timidez —, pode solicitar que a facção das Órcades jante comigo
amanhã?
Arthur o olhou de perto, através do Iusco-fusco, e começou a abrir um sorriso enorme. Beijou
Aglovale enquanto uma lagrima escorria para o canto de seu sorriso. E disse:

— Agora tenho outro Pellinore para amar.

XXXI


Ainda não havia notícias do grande Dulac. Este se transformara em um nome mágico que aquecia
todos os corações, particularmente os das mulheres, não importava onde estivesse. Ele mesmo tinha
se transformado em um maestro — era visto agora como antes ele mesmo via o Tio Dap. Se você
aprendeu a voar, ou foi discípulo de um grande músico ou espadachim, basta lembrar-se desse
professor para saber o que o povo de Camelot pensava de Lancelot. Eles morreriam por ele — por
sua maestria. Mas ninguém sabia onde ele estava.

Os sobreviventes continuavam a pingar — Palomides, agora batizado e mortalmente cansado da
Besta Gemente e envelhecido por sua longa e poética rivalidade com Sir Tristão pelo amor de La
Beale Isoud; Sir Grummore Grummursum, agora careca como um ovo, com quase oitenta anos,
afligido pela gota, mas ainda bravamente participando de buscas; Kay, olho vivo e sarcástico; Sir
Dinadarn, fazendo piadas com suas próprias derrotas, apesar de estar tão cansado que mal podia
manter as pálpebras abertas; e até mesmo o velho Sir Ector da Floresta Sauvage, com oitenta e
cinco anos e cambaleando.

Traziam consigo braços quebrados e boatos. Um desses dizia que Galahad, Bors, o outro Ector e
uma freira estiveram presentes em uma missa milagrosa. Esta fora celebrada por um cordeiro,
assistido por um homem, um leão, uma águia e um touro. Depois da missa, o celebrante tinha
passado através do vitral pintado com um cordeiro, sem quebrar o vidro da igreja, significando
assim a Imaculada Conceição. Outro contou como Galahad tinha lidado sem piedade com um
demônio em uma tumba, como tinha esfriado o poço do desejo, e como o castelo da dama leprosa
fora finalmente derrubado.

Essas pessoas, com suas armaduras enferrujadas e escudos rachados, tinham visto Lancelot ali e
acolá. Contaram sobre um homem horroroso arreado, orando em uma cruz à beira da estrada; ou de
um rosto cansado, adormecido sobre seu escudo sob a luz do luar. Contavam também coisas
inacreditáveis — Lancelot derrubado, derrotado, ajoelhado depois de ter sido desmontado.

Arthur fazia perguntas, enviava mensageiros, lembrava-se do seu comandante em suas orações.
Guenevere, num perigoso estado mental, começou a caminhar na borda de um precipício verbal. A
qualquer momento poderia dizer ou fazer algo que a comprometeria ou a seu amante. Mordred e
Agravaine, que estavam entre os primeiros a abandonar a Busca, observavam e esperavam com os


olhos brilhantes. Mantinham-se tão imóveis como, segundo dizem, Lord Burleigh nos conselhos da
Rainha Elizabeth, ou como um gato maneiroso quando observa secretamente a toca do rato -— uma
presença, uma concentração.

Boatos da morte de Lancelot começaram a surgir. Tinha sido morto por um cavaleiro negro num
vau — tinha lutado em justa com seu próprio filho, que lhe quebrara o pescoço — tinha
enlouquecido novamente, depois de ser espancado por seu próprio filho, e cavalgava errático e ao
léu — sua armadura fora roubada por um cavaleiro misterioso, e ele tinha sido devorado por uma
besta — tinha lutado contra duzentos e cinqüenta cavaleiros, fora feito prisioneiro e enforcado
corno um cão. Um bom número acreditava e sussurrava que ele fora assassinado, quando dormia,
pelo clã das Órcades, e tinha sido enterrado sob uma pilha de folhas.

A tênue fila de cavaleiros aparecia espasmodicamente com dois, às vezes três, e depois um de cada
vez, depois com intervalo de dias entre os cavaleiros solitários, A lista dos mortos e
desaparecidos, mantida por Sir Bedivere, começou a se consolidar numa lista dos mortos, já que os
desaparecidos ou regressavam exaustos ou tinham a morte confirmada por relatos verossímeis.
Indícios de óbito começaram a estar presentes nos sussurros sobre Lancelot. Ele era amado por
quase todos. Assim, os que murmuravam não faziam mais que sussurrar sobre sua morte, receosos
de que, se falassem alto sobre o assunto, isso se tornasse verdadeiro. Mas murmuravam sobre sua
bondade e seu rosto notável; sobre tai ou qual golpe que tinha dado em fulano ou sicrano; sobre a
elegância de seu jogo de pernas. Alguns pajens obscuros e ajudantes de cozinha, que se lembravam
vivamente de um sorriso ou de uma gorjeta no Natal, iam dormir com os travesseiros úmidos,
apesar de saberem que não podiam sequer sonhar que o grande comandante recordasse seus nomes.
Kay espantou a todos ao declarar, fungando, que ele mesmo sempre tinha sido um péssimo guarda-
costas e depois saiu rapidamente da sala assoando o nariz. A tensão e a sensação de tragédia
cresciam na Corte.

Lancelot voltou no meio de uma tempestade, molhado e apequenado. Cavalgava uma égua velha e
cansada, que nem mais conseguia trotar. As nuvens negras do outono estavam atrás dele, e as
costelas escavadas da égua ressaltavam embranquecidas sobre o fundo púrpura das nuvens. Uma
magia, uma adivinhação mental, uma intuição deve ter acontecido, pois todas as muralhas e torres
do palácio, e a ponte levadiça do Grande Portão estavam apinhadas de pessoas esperando e
apontando silenciosas, antes mesmo que ele aparecesse. Quando puderam ver sua figura minúscula,
atravessando com dificuldade o campo de caça, o murmúrio subiu entre as pessoas. Era Lancelot
com uma veste escarlate sobre outra branca. Estava salvo. Souberam tudo sobre suas aventuras,
antes mesmo que ele falasse. Arthur corria como louco, ordenando a todos para entrar, deixar
livres as muralhas e dar um tempo ao homem. Quando a figura chegou, não havia ninguém que
pudesse atrapalhá-lo. Apenas o Grande Portão estava aberto e Tio Dap encontrava-se lá,
encurvado e com a cabeça branca, para segurar seu cavalo. Centenas de olhos, esgueirando-se por
trás das cortinas, viram o homem gasto entregar as rédeas ao escudeiro — viram-no de pé com a
cabeça baixa, que ele não levantou — e o viram virar-se, caminhar para seus aposentos e
desaparecer na escuridão da escada da torre.

Duas horas mais tarde, Tio Dap apresentou-se na câmara do Rei. Tinha despido Lancelot e o


colocado na cama. Sob a vestimenta escarlate, disse, havia uma veste branca, e sob esta, um
horrível cilício. Sir Lancelot enviava uma mensagem. Estava muito cansado, e implorava o perdão
do Rei. Ali compareceria no dia seguinte. Enquanto isso, para que não houvesse atraso sobre a
notícia importante, Tio Dap deveria comunicar ao Rei que o Santo Graal fora encontrado. Galahad,
Percivale e Bors o descobriram, e com ele, e com o corpo da irmã de Percivale, tinham chegado a
Sarras na Babilônia. O Graal não podia ser levado a Camelot. No final, Bors regressaria a casa,
mas os outros jamais retornariam.


XXXII


Guenevere exagerou ao se vestir para a ocasião. Maquiou-se, embora não precisasse de
maquiagem, e maquiou-se mal. Estava com quarenta e dois anos.

Quando Lancelot a viu esperando à mesa, com Arthur a seu lado, seu coração explodiu no peito,
deixando que o amor dentro dele corresse por suas veias. Era seu antigo amor por uma garota de
vinte anos, sentada orgulhosa em seu trono com o presente de cativos a seu redor — mas agora a
mesma garota sentava-se em outro ambiente, um ambiente de maquiagem exagerada e sedas
vistosas com as quais tentava desafiar a ruína invencível do destino humano. Ele a viu como o
espírito apaixonado da juventude inocente, agora assediada pelo truque que se prega na juventude
— o truque da traição do corpo, que transforma a carne em ossos. Para ele, seus tolos enfeites não
eram vulgares, e sim tocantes. A garota ainda estava ali, ainda atraente por trás da barricada
quebradiça do rouge. Apresentava seu bravo protesto: não serei vencida. Por trás da coqueteria
desajeitada, das roupas humilhantes, havia o grito humano por ajuda. Os olhos jovens,
desorientados, estavam dizendo: sou eu, aqui dentro — o que fizeram comigo? Não me submeterei.
Uma parte de seu espírito sabia que a maquiagem fazia dela uma boneca desengonçada, e odiava
isso, e tentava segurar seu amante apenas cora os olhos, que diziam: não olhe para nada disso. Olhe
para mim. Ainda estou aqui, nos olhos. Olhe para mim dentro desta prisão e me ajude a sair. Outra
parte dizia: não estou velha, é uma ilusão. Estou belamente maquiada. Veja, tenho os movimentos
da juventude. Desafiarei o imenso exército da idade.

Lancelot viu uma alma solitária, uma criança inocente e condenada, mantendo sua posição
indefensável com as armas desprezíveis da pintura no cabelo e da seda laranja, com o que ela tinha

— com que medos? — pensado em agradá-lo. Viu
O punho apaixonado, pigmeu,
Cerrado e desafiante apontar as nuvens,
O orgulho que triunfaria, o protagonista condenado
Cora força agarrando o fantasmal gigante.


Arthur disse:

— Você já descansou? Como se sente?

— Estamos tão felizes por vê-lo novamente — disse Guenevere —, tão felizes por tê-lo de volta.
Eles, por sua vez, viram um homem cheio de serenidade — o tipo de sábio que Kipling descreveu
em Kim. Viram seu novo Lancelot como um silêncio e percepção. Tinha regressado do cume de seu
espírito.

Lancelot respondeu:

— Agora já estou bem descansado, obrigado. Suponho que queiram saber sobre o Graal.
O Rei disse:
— Receio ter sido muito egoísta. Mantive todos a distância. Vamos copiar tudo e arquivar em
Salisbury. Mas queríamos ser os primeiros a ouvir diretamente de você, Lance, sem interrupções.
— Tem certeza de que não está cansado demais para contar?
Lancelot sorriu e pegou nas mãos deles.
— Não há muito que contar — disse. — Afinal, não fui eu quem encontrou o Graal.
— Sente-se e tome seu desjejum, Pode falar depois de comer. Você está magro demais.
— Gostaria de uma taça de hipocraz ou de licor de pêras?
— Obrigado, mas atualmente não estou bebendo nada — disse. Enquanto ele comia, o Rei e a
Rainha sentaram-se a seu lado e o observaram. Antes de ele mesmo saber que queria sal — quando
seus dedos mal começaram a se dirigir ao saleiro —, eles o estenderam. Lancelot riu dos dois
rostos sérios, que o faziam sentir-se desconfortável, e fingiu aspergir Arthur com seu copo de água,
para fazê-lo sorrir.
— Quer uma relíquia? — perguntou. — Pode ficar com minhas botas, se desejar. Estão bem gastas.
— Lancelot, isso não é coisa com que se brinque. Acredito que você viu o Santo Graal.
— Ainda que o tivesse visto, não é preciso pôr o sal na minha mão.
Mas eles continuaram olhando para ele. Lancelot disse:
— Por favor, compreendam. A Calahad e aos outros foi permitido ver o Graal. Eu não obtive a
permissão. Assim, é errado, e vocês me magoarão, se fizerem alarde por causa disso. Quantos
cavaleiros já voltaram?
-— A metade — disse Arthur. — Ouvimos as histórias deles.

— Suponho então que saibam mais que eu.
— Sabemos apenas que os homicidas e os que não se confessaram foram recusados; e você diz que
Galahad, Bors e Percivale foram aceitos. Contaram-me que Percivale e Galahad eram virgens; e
Bors, apesar de não ser completamente virgem, revelou-se um teólogo de primeira classe. Suponho
que Bors tenha sido aceito por seu dogma, e Percivale por sua inocência. Sei pouca coisa sobre
Galahad, salvo que todo mundo não gosta dele.
— Não gosta dele?

— Queixam-se de que ele é desumano. Lancelot examinou sua taça.
— Ele é desumano — disse, finalmente. — Mas por que seria humano? Os anjos são humanos?
— Não compreendo.
— Você acha que se o Arcanjo Miguel chegasse aqui neste instante iria dizer: "Que belo tempo faz
hoje! Aceita uma dose de uísque?".
— Suponho que não.
— Arthur, não deve achar que sou rude quando digo isso. Você deve se lembrar que estive em
lugares estranhos e desertos, algumas vezes completamente sozinho, outras em um barco só com
Deus e o barulho do mar. Sabe que desde que voltei para junto das pessoas, tenho sentido que estou
ficando louco? Não é o mar, mas as pessoas que me fazem sentir assim. Todas as minhas conquistas
estão desaparecendo, com as pessoas ao meu redor. Mesmo muito das coisas que você e Jenny
dizem me parecem inúteis: ruídos estranhos, vazios. Vocês sabem o que quero dizer. "Como vai?",
"Por favor, sente-se.", "Que belo tempo está fazendo." Para que serve isso? As pessoas falam
demais. Onde eu estive e onde Galahad está, é um desperdício de tempo ter "boas maneiras". As
boas maneiras só são necessárias entre as pessoas para manter em ordem suas relações vazias. As
boas maneiras servem aos homens, vocês sabem, não a Deus. Assim, vocês podem entender como
Galahad pode ter parecido desumano, e sem modos, e coisas assim, para as pessoas que ficam
cochichando e tagarelando em volta dele. Ele estava demasiado distante em seu espírito, vivendo
em ilhas desertas, em silêncio, com a eternidade.
— Entendo.
— Por favor, não me considerem rude quando falo isso. Tento explicar um sentimento. Se vocês
tivessem passado pelo Purgatório de Patrick, saberiam o que quero dizer. As pessoas parecem
ridículas para alguém que sai de lá.
— Entendo perfeitamente. E compreendo também sobre Galahad.
— Ele era uma pessoa realmente adorável. Passei muito tempo em um barco com ele, e sei disso.
Alas isso não quer dizer que estivéssemos sempre oferecendo o melhor lugar do barco um para o
outro.
— São os meus cavaleiros mundanos os que mais o detestam. Entendo. Entretanto, queremos ouvir
sua história, Lance, e não a de Galahad.
— Sim, Lance. Conte-nos o que aconteceu e deixe os anjos de lado.
— Como nunca me foi permitido conhecer muitos anjos — disse Sir Lancelot com um sorriso —, é
o melhor que posso fazer.
— Prossiga.
— Quando deixei Vagon — começou o comandante-chefe —, tinha a idéia sagaz de que o melhor
lugar para começar a Busca seria o castelo do Rei Pelles...
Parou, pois Guenevere tinha se mexido subitamente.


— Não fui para o castelo — disse com gentileza — porque sofri um acidente. Aconteceu algo
comigo que estava além dos meus próprios planos, e depois disso fui para onde me levaram.
— Que acidente foi esse?
— Não foi realmente um acidente. Foi o primeiro golpe de urna correção que sofri, e pela quai sou
agradecido. Sabem, vou falar muito de Deus, e essa é uma palavra que ofende as pessoas profanas,
tal como "maldição" e coisas assim ofendem as pessoas sagradas. O que podemos fazer quanto a
isso?
— Simplesmente assuma que estamos entre pessoas sagradas — disse o Rei — e prossiga com seu
acidente.
— Eu cavalgava com Sir Percivale, quando encontramos meu filho. Ele me desmontou na primeira
justa. Meu filho fez isso.
— Um ataque de surpresa — disse rapidamente Arthur.
— Não, foi uma justa leal.
— Naturalmente você não queria derrotar seu filho.
— Eu queria derrotá-lo. Guenevere disse:
— lodo mundo tem seu dia de azar.
— Enfrentei Galahad com toda a destreza que podia, e ele me fez sofrer a queda mais perfeita.
Realmente — acrescentou Lancelot com um de seus sorrisos abertos —, devo dizer que ele me fez
sofrer a única queda da minha vida. A primeira sensação que me lembro, quando estava jogado no
chão, foi de pura estupefação. Só mais tarde é que isso se transformou em outra coisa.
— O que você fez?
— Estava jogado no chão, e Galahad montado em seu cavalo ao lado sem dizer uma palavra,
quando chegou uma mulher que estava reclusa na ermida perto da qual lutávamos. Ela fez uma
mesura e disse: "Que Deus esteja convosco, melhor cavaleiro do mundo".
Lancelot olhou para a mesa, e fez um gesto de alisar a toalha. Depois limpou a garganta e disse:

— Olhei para ver quem falava comigo. O Rei e a Rainha esperaram. Lancelot limpou de novo a
garganta.
— Estou tentando lhes contar sobre meu espírito, se entendem o que quero dizer, e não sobre
minhas aventuras. Assim, não posso ser modesto sobre isso. Sou um homem mau, eu sei, mas
sempre fui bom nas armas. Era um consolo para minha maldade, às vezes, pensar — saber — que
eu era o melhor cavaleiro do mundo.
— Então?
— Bem, a dama não falava comigo.
Os dois digeriram o assunto em silêncio, observando uni tique que aparecia no canto direito de sua
boca.


— Galahad?
— Sim — disse Sir Lancelot. -— A dama olhava para além de mim, para o meu filho Galahad, que
se afastou a meio galope logo que ela falou. Logo depois a dama também se foi.
— Que coisa horrível de dizer! — exclamou o Rei. — Que ultraje sujo e deliberado! Ela devia ter
sido açoitada.
— Era verdade.
— Mas chegar assim e dizer de propósito diante de você! — exclamou Guenevere. — Além do
mais, depois de uma única queda...
— Ela disse o que Deus tinha lhe mandado dizer. Vejam, ela era uma mulher sagrada. Mas eu não
podia entender isso na ocasião... Hoje estou muito mais santificado -— ele acrescentou, como
desculpa — mas na ocasião, não pude suportar aquilo. Senti como se tivessem arrancado meu
suporte, e sabia que ela tinha dito uma simples verdade. Senti como se ela tivesse partido o último
pedaço do meu coração. Assim, saí cavalgando para longe de Percivale, para ficar a sós comigo
mesmo, como um animal, a sós com minha dor. Percivale fez uma sugestão sobre o que fazer, mas
eu disse apenas: "Faça o que lhe aprouver". Saí cavalgando de cara amarrada, frustrado e derreado
sobre a sela, procurando um lugar onde pudesse estar a sós para despedaçar meu coração.
Finalmente cheguei a uma capela, sentindo como se de novo estivesse enlouquecendo. Percebe,
Arthur, eu tinha demasiados problemas em minha cabeça que eu tentava compensar, pelo menos um
pouco, sendo um guerreiro famoso e, quando isso desapareceu, foi como se não restasse mais nada
de mim.
— Mas tudo está aí. Você ainda é o melhor cavaleiro do mundo.
— O engraçado é que a capela não tinha porta. Não sei se por causa de meus pecados, ou por meu
ressentimento ao ser derrotado, eu não conseguia entrar. Dormi sobre meu escudo do lado de fora,
e sonhei que um cavaleiro vinha e levava meu elmo, minha espada e meu cavalo. Tentava
despertar, mas não conseguia. Todas as minhas coisas de cavaleiro estavam sendo tomadas de mim,
mas eu não podia despertar, porque meu coração estava repleto de pensamentos amargos. Uma voz
disse que eu jamais seria reverenciado novamente, mas simplesmente me rebelei contra essa voz, e
então, quando despertei, as coisas tinham desaparecido. Arthur, se eu não conseguir fazer você
compreender sobre essa noite, jamais compreenderá o resto. Eu tinha passado toda minha infância,
quando podia estar caçando borboletas, aprendendo a ser seu melhor cavaleiro. Mais tarde tornei-
me pecaminoso, mas ainda tinha isso. Dentro de mira, costumava me sentir muito orgulhoso porque
sabia que estava no topo das médias. Era um sentimento baixo, sei disso. Mas não tinha nada mais
do que me orgulhar. Primeiro minha Palavra e meus milagres tinham desaparecido, e, agora,
naquela noite que estou lhes contando, isso também tinha desaparecido. Quando despertei e vi que
minhas armas tinham sido tomadas, caminhei em desespero. Foi repugnante, mas chorei e
amaldiçoei. Esse foi o momento em que começaram a me quebrar.
— Meu pobre Lance.
— Foi a melhor coisa que podia ter me acontecido. Naquela manhã escutei os passarinhos piando,
e isso me alegrou. É engraçado ser confortado por um bando de pássaros. Eu jamais tivera tempo

para inspecionar ninhos de pássaros quando era pequeno. Você saberia que pássaros eram aqueles,
Arthur, mas eu não distingo um do outro. Havia um bem pequeno, que empinava a cauda para o ar e
olhava para mim. Era quase do tamanho da roseta de uma espora.

— Talvez fosse uma cambaxirra.
— Bem, então, que seja uma cambaxirra. Amanhã você me mostra uma? A coisa que esses pássaros
me fizeram entender, pois meu coração negro não podia ver sozinho, foi que se eu tinha de ser
punido, isso se devia à minha própria natureza. O que acontecia aos pássaros estava de acordo com
a natureza dos pássaros. Eles me fizeram ver que o mundo era belo se você fosse belo, e que você
não podia ter, a menos que também desse. E você tinha que dar sem esperar receber de volta.
Então, aceitei a derrota diante de Galahad e o desaparecimento de minha armadura. Nesse bendito
momento fui à procura de um confessor para não permanecer no mal.
— Todos os cavaleiros — disse Arthur — que chegaram até o Graal tiveram o bom senso de
primeiro se confessarem.
— Antes disso eu tinha feito confissões incompletas. Vivi quase toda minha vida em pecado mortal.
Mas desta vez confessei tudo.
— Tudo? — perguntou a Rainha.
— Tudo. Você percebe, Arthur, eu tinha um pecado em minha consciência, toda a minha vida, que
eu achava que não podia contar às pessoas, porque...
— Não precisa nos contar — disse a Rainha —, se isso o incomoda. Afinal, não somos seus
confessores. Basta ter contado ao padre.
— Deixe-a em paz — concordou o Rei. — De qualquer forma, ela teve um belo filho, que parece
que alcançou o Graal.
O Rei estava se referindo a Elaine.

Lancelot olhou para um e outro, repentinamente atormentado, e apertou os punhos. Todos os três
pararam de respirar.

— Confessei, então — ele disse, finalmente, e todos respiraram de novo, mas sua voz estava
carregada. — Recebi uma penitência.
Ele fez uma pausa, ainda em dúvida, como que reconhecendo o momento como uma encruzilhada
em sua vida. Agora era o momento, todos eles sabiam, caso fosse existir um momento assim,
quando deveria expor tudo a seu amigo e rei. No entanto, Guenevere o impediu. Também era um
segredo dela.

— A penitência era usar o cilício de um certo religioso morto que conhecemos — ele finalmente
prosseguiu, derrotado. — Eu não poderia comer carne nem beber vinho, e deveria assistir à missa
todos os dias. Assim, deixei is casa do padre depois de três dias, e cavalguei até uma encruzilhada
perto do local onde havia perdido minhas anuas. O padre tinha me emprestado algumas para eu
prosseguir. Bem, dormi na encruzilhada naquela noite, e tive outro sonho, e na manhã seguinte o
cavaleiro que roubara minhas armas voltou. Tive uma justa com ele e recuperei minha armadura.

Isso não é estranho?

— Suponho que, então, você estava em estado de graça, depois de sua boa confissão, de forma que
podia confiar em sua força.
— Foi também o que eu pensei, mas vocês já verão. Pensei que, já que havia tirado o pecado do
peito, me seria permitido ser outra vez o melhor cavaleiro do mundo. Cavalguei bem feliz, tentando
mesmo cantar um pouco, até chegar a uma bela planície com um castelo e pavilhões e tudo mais, e
lá havia um torneio com quinhentos cavaleiros em preto e branco. Os cavaleiros brancos estavam
vencendo, então pensei em me juntar aos negros. Achei que seria uma grande façanha ajudar o
bando mais fraco, agora que tinha sido perdoado.
Ele parou novamente e fechou os olhos.

— Mas os cavaleiros brancos logo me aprisionaram.
— Quer dizer que foi derrotado novamente?
— Derrotado e desgraçado. Pensei que estivesse ainda mais cheio de pecados que antes. Quando
me soltaram, cavalguei e amaldiçoei tal como havia feito na primeira noite e, quando anoiteceu,
deitei embaixo de uma macieira e chorei até dormir.
— Mas isso é heresia — exclamou a Rainha, que era boa em teologia, como a maioria das
mulheres. — Se você confessou tudo, e fez sua penitência e foi absolvido...
— Tinha feito penitência por um pecado — disse Lancelot. — Mas me esqueci de um outro. À
noite, tive outro sonho, com um velho que chegou e me disse: "Ah, Lancelot de fé ruim e crença
pobre, por que tua vontade volta-se tão facilmente para o pecado mortal?" — Jenny, toda a minha
vida estive em outro pecado, o pior de todos. Foi o orgulho que me fez tentar ser o melhor
cavaleiro do mundo. Foi o orgulho que me fez querer me exibir, ajudando a parte mais fraca no
torneio. Pode chamar isso de vangloria. Só porque eu tinha confessado sobre... sobre a mulher, isso
não me transformava em um homem bom.
— E por isso foi derrotado.
— Sim, fui derrotado. E na manhã seguinte fui a outra ermida para me confessar de novo. Desta vez
fiz um trabalho consciencioso. Foi-me dito que não bastava, na Busca pelo Graal, ser casto e
abster-se de matar pessoas. Tinha de deixar para trás toda jactância e orgulho mundano, pois Deus
não gosta dessas coisas em sua Busca. Tinha de renunciar a toda glória terrena. E renunciei, e fui
absolvido.
— O que aconteceu em seguida?
— Cavalguei até as águas do Mortoise, onde um cavaleiro negro veio disputar uma justa comigo.
Ele também me derrubou.
— Uma terceira derrota!
Guenevere exclamou:
— Mas você tinha sido completamente absolvido dessa vez!

Lancelot colocou suas mãos sobre as dela e sorriu.

— Se um garoto furta doces — disse — e seus pais o punem, ele pode se sentir muito arrependido
e ser um bom menino daí em diante. Mas isso não lhe permite roubar outros doces, não é? Nem que
ele tenha que ganhar doces de presente. Deus não estava me punindo ao deixar o cavaleiro negro
me derrubar, estava apenas retendo o dom especial da vitória que sempre tinha sido poder seu me
outorgar.
— Mas, meu pobre Lance, ter desistido de sua glória e não ganhar nada em troca! Quando era um
pecador sempre foi vitorioso, então por que deve ser derrotado quando está sem pecado? E por que
você sempre é machucado pelas coisas que ama? E o que você fez?
— Ajoelhei-me junto às águas do Mortoise onde ele me derrubara, Jenny, e agradeci a Deus pela
aventura.

XXXIII


Arthur não agüentava mais aquilo.

— É repugnante — exclamou indignado. — Não quero mais ouvir isso. Por que uma pessoa boa,
gentil e estimada deve ser torturada dessa maneira? Faz com que eu me envergonhe por dentro, só
de escutar.
— Calma — disse Sir Lancelot. — Estou muito contente por ter desistido do amor e da glória. E
mais, fui praticamente forçado a fazer isso. Deus não se deu a esse trabalho por Gawaine ou Lionel,
não é?
— Bah! — disse o Rei Arthur, no tom que Gawaine tinha usado antes dele.
Lancelot riu.
— Bem — disse ele —, essa foi uma observação convincente. Mas talvez seja melhor ouvir o fim
da história.
— Naquela noite dormi às margens do Mortoise e tive um sonho que me ordenava entrar em um
navio. Quando despertei, o navio estava lá e, quando subi a bordo, senti os mais suaves odores e
sensações, e havia comida e, bem, tudo o que se possa imaginar. Eu me "satisfiz com todas as
coisas sobre as quais pensava ou desejava". Sei que não posso explicar tudo sobre esse barco,
neste momento, porque, em primeiro lugar, sua imagem está se desvanecendo agora que estou junto
a pessoas. Mas vocês não devem pensar apenas em incenso no barco, ou nas roupas preciosas que
estavam lá. Havia tudo isso, mas não era isso que era adorável. Devem pensar cambem no cheirode alcatrão, e nas cores do mar. Às vezes era bem verde, da cor do vidro grosso, e podia-se ver ofundo. Às vezes, parecia grandes terraços, e os animais marinhos que pairavam no topo sumiam
depois nas concavidades. Quando havia tempestade, as enormes garras das ondas mordiam as ilhas
rochosas. Formavam garras brancas nos rochedos, não quando arrebentavam, e sim quando a águaescorria. À noite, quando estava calmo, podiam-se ver as estrelas refletidas nas areias molhadas.
Havia duas estrelas bem próximas uma da outra. A areia tinha sulcos, como no céu da boca. E
havia o cheiro de algas, o ruído do vento solitário. Havia ilhas com pequenos pássaros que
pareciam coelhos, mas cujos narizes eram como o arco-íris. O inverno era o melhor, porque então
havia gansos nas ilhas — formavam longas linhas que pareciam fumaça e cantavam como cães de
caça nas manhãs frias. Não é preciso ficar indignado com o que Deus fez comigo no começo,
Arthur, pois ele me deu muito mais em troca. Eu disse: "Belo e Doce Pai Jesus Cristo, não posso

descrever minha alegria, pois esta ultrapassa todas as alegrias terrenas que jamais desfrutei". Uma
coisa estranha no barco era que havia uma mulher morta dentro dele. Ela levava uma carta na mão
que relatava como os demais estavam se saindo. Mais estranho ainda era o fato de en não me
assustar por ela estar morta. Seu rosto era tão sereno que me fazia companhia. Sentíamos uma
espécie de comunhão por estarmos juntos no barco e no mar. Não sei como me alimentava, Quando
fez um mês que eu estava no barco com a dama morta, Galahad foi trazido até nós. Ele me abençoou
e deixou que eu beijasse sua espada.

Arthur estava vermelho como um peru.

— Você pediu que ele o abençoasse?
— É claro.
— Bem! — disse Arthur.
— Navegamos por seis meses nesse barco sagrado. Fiquei conhecendo meu filho muito bem nesse
período, e ele parecia se importar comigo. Muitas vezes, me disse as coisas mais corteses.
Tivemos aventuras com animais em ilhas remotas durante todo esse tempo. Havia doninhas do mar
que assobiavam lindamente, e Galahad mostrou-me grous voando ao rés da água, e suas sombras
voando abaixo deles, de ponta-cabeça. Ele me contou que os pescadores chamam o cormorão de
Velha Bruxa Negra, e que os corvos vivem tanto quanto os homens. Subiam guinchando até hem alto
e desciam dando cambalhotas só por brincadeira. Um dia, vimos um par de gralhas: eram lindas! E
as focas! Elas nos acompanhavam seguindo a música do barco, e conversavam como homens. Uma
segunda-feira, chegamos a uma terra de florestas. Um cavaleiro branco cavalgou até a praia e disse
a Galahad que saísse do barco. Eu sabia que ele estava sendo levado para descobrir o Santo Graal,
e fiquei triste por não poder ir também. Lembra-se de quando pequeno, como as crianças escolhiam
os lados para ficar nos jogos e talvez você não fosse escolhido por ninguém? Eu me sentia assim,
mas pior. Pedi a Galahad que orasse por mim. Pedi-lhe que rogasse a Deus que me mantivesse a
seu serviço. Então nos beijamos e nos despedimos.
Guenevere queixou-se:

— Se você estava em estado de graça, não compreendo por que foi deixado para trás.
— É difícil — disse Lancelot.
Ele abriu as mãos e olhou através delas em cima da mesa.
— Talvez minhas intenções fossem más — finalmente disse. — Talvez, dentro de mim,
inconscientemente, fosse possível dizer que meu propósito de me emendar não era sério.
Subitamente a Rainha ficou radiante com o que ouviu.

— Bobagem — ela sussurrou, querendo dizer o contrário, e apertou calorosamente sua mão, que
Lancelot retirou.
— Quando eu rezei para ser mantido — disse ele —-, talvez tenha sido...
— A mim me parece — disse Arthur — que você está se permitindo o luxo de uma consciência
desnecessariamente sensível.

— Talvez. De qualquer forma, não mi escolhido.
Ele sentou-se, observando entre suas mãos o mar balançando, e escutando o som, como de madeira,
dos gansos patolas num rochedo da ilha.

— O barco me levou novamente ao mar — disse, por fim — com um bom vento. Não dormi muito,
e rezei bastante. Pedi que, ainda que não tivesse sido escolhido, me pudesse ser permitido conhecer
alguns resquícios do Santo Graal.
No silêncio que caiu na sala, todos seguiram suas linhas separadas de pensamentos. Os de Arthur
eram sobre o espetáculo lamentável, o de um homem terreno, pecador, mas o melhor de todos,
arrastando-se atrás desses três virgens sobrenaturais; sua labutava, corajosa e inútil.

— É engraçado — disse Lancelot — como as pessoas que não conseguem rezar dizem que as
preces não são atendidas e, no entanto, a maioria das pessoas que consegue rezar diz que é. Meu
barco me levou, lá pela meia-noite, sob forte ventania, até a parte de trás do Castelo de Carboneck.
Estranho, também, que era a esse mesmo lugar que eu me dirigia quando tudo começou. No
momento em que o barco atracou, compreendi que me seria concedido parte do meu desejo. Não
podia conseguir tudo, pois não era Galahad nem Bors. Mas eles foram gentis comigo. Desviaram de
seu caminho para serem gentis. Estava escuro como a morte atrás do castelo. Coloquei minha
armadura e subi. Havia dois leões na entrada das escadas, que tentaram impedir meu acesso.
Saquei a espada para lutar com eles, mas unia mão golpeou meu braço. Foi tolice minha, é claro,
confiar em minha espada, quando podia ter confiado em Deus. Assim, eu me benzi com a mão
golpeada e entrei, e os leões não me atacaram. Todas as portas estavam abertas, menos a última, e
lá me ajoelhei. Quando rezei, a porta se abriu. Arthur, pode não parecer verdade quando eu conto.
Não sei como dizei" com palavras. Atrás da última porta havia uma capela. Eles estavam numa
missa. Oh, Jenny, que bela capela com suas luzes e tudo o mais! Você diria: "As flores e as velas".
Mas não era isso. Talvez não houvesse nenhuma capela, Era, oh, o esplendor, do poder e da glória.
Apossava-se de todos os meus sentidos para me arrastar para dentro, Mas eu não podia entrar,
Arthur e Jenny, havia uma espada me impedindo. Galahad estava lá dentro, com Bors e Percivale.
Havia outros nove cavaleiros, da França, Dinamarca e Irlanda; e a dama do meu barco também
estava !ã. O Graal estava lá, Arthur, sobre uma mesa de prata, e outras coisas! Mas eu estava
proibido de entrar, apesar de todo meu intenso desejo na porta, Não sei quem era o padre. Pode ter
sido José de Arimatéia, pode ter sido... oh, bem! Eu realmente entrei para ajudá-lo, apesar da
espada, porque o que ele carregava era pesado demais para ser carregado. Eu só queria ajudar,
Arthur, e Deus foi minha testemunha. Mas, na última porta, uma exalação como se fosse o jorro de
uma fornalha bateu no meu rosto, e lá eu caí emudecido.

XXXIV


Na câmara escura havia um ir e vir de aias. Latas e baldes chacoalhavam nas escadas, e havia
muito vapor. Quando as aias pisavam nas poças no chão faziam um ruído molhado e da sala ao lado
vinham murmúrios e o ruído secreto da seda.

A Rainha subira os seis degraus que levavam até sua banheira e agora se sentava na tábua dentro
dela, apenas com a cabeça fora d'água. A banheira era como um grande barril de cerveja, e sua
cabeça estava envolta num turbante branco. Estava nua, exceto por um colar de pérolas. Num canto,
havia um espelho — que tinha sido muito caro — e, no outro, uma mesinha servia de apoio para os
óleos e perfumes. Em vez de uma almofada para talco, havia uma bolsa de camurça com giz em pó,
perfumado com óleo de rosas trazido das Cruzadas. Por todo o chão, entre as poças, havia uma
confusão de toalhas de linho para secá-la, e caixas de jóias, brocados, roupas, cintas, mudas, que
tinham vindo de outro quarto para que ela escolhesse. Alguns adornos de cabeça haviam sido
descartados e estavam espalhados em confusão — formas estranhas como Apagadores de velas,
merengues e chifres duplos de vaca. As redes de cabelo, para mantê-los unidos, eram pontilhadas
de pérolas, e os xales eram de seda oriental. Uma das damas de companhia estava de pé diante da
banheira da Rainha, segurando uni manto bordado para sua inspeção. Estava adornado com as
armas de seu marido e de seu pai: o dragão rampante da Inglaterra e os seis encantadores leoncelos
do Rei Leodegrance — que portava leões por conta de seu nome — passando com uma pata
levantada e olhando para trás. Esse manto tinha urna borla pesada de seda, como a corda de um
cortinado, para uni-lo cruzado no peito. A borda de seda era forrada com peles douradas e azuis,
contrapostas entre si.

Guenevere tinha abandonado sua maquiagem pesada e ficava sentada aceitando as roupas que lhe
recomendavam, sem objeções. As damas de companhia tinham um ar feliz. Por mais de um ano
tinham servido a uma Rainha petulante, cruel, contraditória, miserável. Agora, ficava satisfeita com
qualquer coisa, e não as machucava. Todas estavam quase certas de que Lancelot tinha novamente
se tornado seu amante. Esse não era o caso.

Guenevere contemplou os seis leoncelos passando com a pata levantada e olhando para trás —
marchavam com línguas vermelhas e garras, piscando insolentemente por cima dos ombros e
balançando os rabos flamejantes. Ela balançou a cabeça com um olhar contente e meio adormecido,
e a dama de companhia levou o manto de volta para o quarto de vestir com uma reverência. A


Rainha a observou se retirar.

Podia-se presumir que Guenevere era ela mesma uma espécie de leoncela devoradora de homens,
ou que era uma dessas mulheres egoístas que insistiam em mandar em tudo. De fato, isso era o que
ela parecia ser, em uma inspeção superficial. Era bela, sanguinária, de pavio curto, exigente,
impulsiva, possessiva, encantadora — tinha todas as qualidades adequadas para uma devoradora
de homens. Mas a rocha com a qual se batiam todas essas explicações fáceis era que ela não era
promíscua. Não havia ninguém mais em sua vida, exceto Lancelot e Arthur. Jamais devorou outro
que não esses. £ mesmo a eles não devorava no sentido completo da palavra. As pessoas que foram
digeridas por uma leoncela devoradora de homens tendem a se tornar parasitas — a viver apenas
nas entranhas de quem as devorou. Entretanto, Arthur e Lancelot, os dois que ela aparentemente
devorava, tinham vidas cheias e sucessos próprios.

Uma explicação para Guenevere, valha o que valer, é que ela era o que se chama de uma pessoa
"de carne e osso". Não era do tipo que podia ser facilmente enquadrada em um ou outro rótulo,
como "leal" ou "desleal" ou "auto-sacrificada" ou ciumenta. Às vezes era leal e, às vezes, desleal.
Comportava-se como ela mesma. E devia haver algo nesse ser, alguma sinceridade de coração, ou
ela não teria conservado duas pessoas como Arthur e Lancelot. Os parecidos se atraem, dizem — epelo menos temos certeza que seus homens eram generosos. Ela também deve ter sido generosa. É
difícil escrever sobre uma pessoa real.

Ela vivia em tempos de guerra, quando a vida dos jovens era tão curta quanto a dos aviadores do
século XX. Em épocas assim, os moralistas mais velhos ficam contentes em relaxar um pouco suas
regras morais, em troca de serem defendidos. Os pilotos condenados, com sua paixão pela vida e
pelo amor que provavelmente perderão cedo, tocam o coração das jovens mulheres, ou
possivelmente provocam uma bravata corajosa. Generosidade, coragem, honestidade, piedade, a
faculdade de olhar olho no olho a vida curta — e certamente ternura e camaradagem —, essas
qualidades podem explicar por que Guenevere conquistou Lancelot, assim como Arthur. Era
coragem mais que qualquer outra coisa — a coragem de tomar e dar do coração, enquanto havia
tempo. Os poetas estão sempre incitando as mulheres a ter esse tipo de coragem. Ela agarrou seus
botões de rosa enquanto pôde, e o mais surpreendente é que só colheu dois, que sempre manteve, e
que esses dois eram us melhores.

A tragédia central de Guenevere era não ter filhos. Arthur tinha dois filhos ilegítimos, e Lancelot
tinha Galahad. Mas Guenevere — que, dos três, era a que mais deveria ter filhos, e teria sido a
melhor se os tivesse, e quem Deus aparentemente tinha feito para criar crianças adoráveis — era
quem ficara como uma taça vazia, uma praia sem mar. Isso foi o que a quebrou, quando ela chegou
à idade em que seu mar fatalmente secaria. Foi isso que a transformou, por algum tempo, em uma
mulher alucinada, apesar desse tempo ainda estar no futuro. Essa pode ser uma das explicações de
seu duplo amor — talvez amasse Arthur como pai, e Lancelot pelo filho que não pôde ter.

As pessoas ficam facilmente fascinadas com a Távola Redonda e façanhas de armas. Quando lemos
sobre Lancelot em alguma façanha nobre e, depois, voltando para casa, para sua amante, nos
ressentimos com ela por se meter nisso, estragando a aventura. No entanto, Guenevere não podia
sair em Busca do Graal. Não podia desaparecer na floresta da Inglaterra por mais de um ano de


aventuras com uma lança. O papel dela era esperar em casa, ainda que apaixonada, ainda que
verdadeira e ansiosa em seu coração orgulhoso e terno. Para ela não havia diversões, exceto as que
podemos comparar com o jogo de bridge para as damas de hoje. Ela podia caçar com um falcão-
pomba, jogar cabra-cega ou fura-bexiga. Essas eram as diversões disponíveis naquele tempo para
mulheres adultas. Mas os grandes falcões, os cães de caça, heráldica, torneios — tudo isso era para
Lancelot. Para ela, a menos que tivesse vontade de fiar e bordar um pouco, não havia ocupação —
exceto Lancelot.

Assim, podemos imaginar a Rainha como uma mulher privada de seu atributo central. A medida que
se aproximava da idade mais difícil de sua vida, passou a fazer coisas estranhas. Chegou até a ser
suspeita de envenenar um cavaleiro. Tornou-se impopular. Mas impopularidade muitas vezes é uma
homenagem; Guenevere, apesar de ter levado uma vida tempestuosa e finalmente morrer de modo
não resignado — nunca foi uma mulher religiosa, como era Lancelot —, não foi insignificante. Ela
fazia o que as mulheres faziam, realeza ou não, e, naquele momento, dentro da banheira e com os
leoncelos diante dela, estava ocupada fazendo isso.

Quando um homem tinha praticamente visto Deus, por mais humano que fosse, não se podia esperar
que se comportasse imediatamente como amante. Quando esse homem era Lancelot, que de
qualquer forma estava enlouquecido por Deus, é preciso ser ao mesmo tempo sangüínea e cruel
para esperar que se comportasse assim. Mas as mulheres são cruéis dessa forma. Não aceitam
desculpas.

Guenevere sabia que Lancelot voltaria para ela. Sabia disso desde o momento em que ele rezou
para ser "mantido". Esse conhecimento a reviveu como uma flor que recebe água depois de muito
tempo de seca. Tinha abandonado o ruge e as sedas escandalosas que despertaram a piedade dele,
quando regressou. Agora, só lhe restava fazer que o reencontro dos dois acontecesse de forma
suave e completa. Não tinha pressa.

Lancelot, que não sabia que iria trair seu adorado Deus mais uma vez, por causa da Rainha, tinha
ficado feliz com a atitude dela — embora surpreso. Temera uma cena terrível de ciúmes e
recriminação. Tinha se preocupado, pensando se seria capaz de explicar à criança torturada,
prisioneira dos olhos pintados, que não poderia voltar para ela — que tinha uma necessidade mais
doce, apesar de toda dor que lhe causaria. Temera que ela o atacasse, que jogasse suas pobres
armadilhas sobre ele — armadilhas que, por insuficientes, seriam ainda mais lamentavelmente
ilusórias. Ele realmente não sabia como enfrentaria a pena.

Em vez disso, Guenevere havia florescido e abandonado suas pinturas. Não tinha feito avanços,
nem recriminações. Tinha sorrido com alegria genuína. As mulheres, ele se disse com sabedoria,
eram realmente imprevisíveis, Ela fora até mesmo capaz de discutir o assunto com ele, com toda
franqueza, e tinha concordado com o que ele dissera.

Guenevere, sentada na banheira e olhando para os leoncelos sem realmente vê-los, tinha o olhar
adormecido da felicidade secreta enquanto relembrava a conversa. Ela viu o rosto feio, mas
encantador, falando tão seriamente sobre os interesses de seu coração honesto. Ela amava esses
interesses — amava o "velho soldado seguindo tão fielmente seu inocente amor por Deus. Sabia
que estava destinado ao fracasso.


Lancelot pedira, desculpando-se e implorando, para ela não levar a mal, (1) que realmente não
podiam voltar ao hábito antigo depois do Graal; (2) que, se não fosse por esse amor culpado, ele
poderia ter sido admitido junto ao Graal; (3) que de qualquer forma seria perigoso, porque a facçãodas Órcades começava a observá-los com desagrado, particularmente Agravaine e Mordred; e (4)
que isso seria uma grande vergonha para eles mesmos e também para Arthur. Ele enumerou os
pontos cuidadosamente.

Em outros momentos, ele tentava explicar-lhe, com palavras confusas, mas abundantes, sua
descoberta de Deus. Achava que se pudesse converter Guenevere a Deus, isso resolveria o
problema moral. Se ambos pudessem aproximar-se, juntos, de Deus, ele não estaria abandonando a
amante ou sacrificando a felicidade dela pela sua.

A Rainha sorriu plenamente. Ele era um amor. Ela concordava com todas as suas palavras — já
estava até convertida!

Então, ela tirou um braço branco do banho e pegou uma escova de esfregar com cabo de marfim.


XXXV


Com as primeiras emoções do seu regresso, tudo correu bem. As Rainhas podem ver mais longe
que os homens comuns, mas parece haver um limite para sua visão. Era bom esperar com
sentimentos cálidos enquanto Lancelot mantinha a fé em sua divindade, por uma semana ou um mês.
Mas, quando os meses começaram a se tornar um ano, a situação mudou. Talvez ele cedesse no
final — talvez. Mas uma mulher poderia esperar tempo demais pela vitória — e ficar muito velha
para desfrutá-la. Parecia sem sentido continuar esperando pela alegria, quando a alegria estava à
sua porta, e o tempo corria.

Lentamente, Guenevere foi se tomando, não menos florescente, porém mais zangada. Uma
tempestade formava-se em seus amplos seios, à medida que os meses de santidade se somavam.
Santidade? Egoísmo, dizia-se a si mesma — o egoísmo de abandonar outra alma para salvar a sua.
A história de Bors, ao permitir que doze supostas damas se atirassem da torre do castelo em vez de
salvá-las cometendo um pecado mortal, chocara-a no fundo do coração.

Agora Lancelot estava fazendo a mesma coisa. Era bom para ele com seu cavalheirismo e
misticismo e todas as compensações do mundo masculino, fazer a grande renúncia. Mas era preciso
dois para fazer uma renúncia, tal como era necessário dois para fazer amor, ou para brigar. Ela não
era uma peça insensível de sua propriedade, para ser tomada ou abandonada à conveniência dele.
Não se pode desistir de um coração humano como se desiste de beber. A bebida era sua e podia-se
desistir dela, mas a alma da amada não é propriedade sua —, não estava à sua disposição. Ele
tinha um dever a cumprir.

Lancelot percebia isso tão claramente quanto a audaciosa Guenevere e, na medida em que suas
relações pioravam, era difícil manter a calma. Para ele, tratava-se da mesma coisa que acontecera
a Bors, quando o eremita desarmado interferiu. No que lhe dizia respeito, ele tinha todo direito de
submeter-se ao Deus que amava, tal como Bors tinha se submetido a Lionel. Mas quando
Guenevere jogava-se à sua frente, tal como o eremita se colocara na frente de Bors, tinha ele o
direito de sacrificar seu antigo amor como o eremita tinha sido sacrificado? Lancelot, tal como a
Rainha, estava chocado com as soluções de Bors. Os corações desses dois amantes eram
instintivamente demasiado generosos para se enquadrar no dogma. A generosidade é o oitavo
pecado mortal.

A situação estourou uma manhã, quando estavam os dois cantando juntos, a sós, no solário. Um
instrumento musical chamado regai estava na mesa entre eles. Parecia-se com duas bíblias grandes.


Guenevere tinha cantado uma pequena peça composta por Mary, a Francesa, e Lancelot estava
tentando tocar outra, composta pelo corcunda de Arras, quando a Rainha colocou a mão direita em
cima de todas as notas que alcançava, e apertou ambas as bíblias com a esquerda. O regai deu um
chiado sinistro e silenciou.

— Por que você fez isso?
— É melhor você partir —-disse ela. — Vá embora. Comece uma Busca. Não percebe que está me
consumindo?
Lancelot respirou fundo e disse:

— Sim, vejo isso todos os dias.
— Então, é melhor partir. Não, não estou fazendo uma cena. Não quero brigar por isso e não quero
mudar sua mente. Mas acho que seria mais gentil se você partisse.
— Parece que estou ferindo você de propósito.
— Não. Não é culpa sua. Mas eu gostaria que você partisse, Lance, para que eu descansasse. Por
algum tempo. Não precisamos brigar por isso.
— Se você quer que eu vá, claro que irei.
— Sim, eu quero.
— Talvez seja melhor.
— Lance, quero que compreenda que não estou tentando atrair você para algo, nem forçar você. Só
acho que seria bom para nós dois que nos separássemos por um ou dois meses, como amigos. E só
isso.
— Sei que jamais tentaria me enganar, Jenny. E eu também me sinto confuso. Esperava que
compreendesse isso. Compreendesse o que está acontecendo comigo. Seria fácil se estivesse
também naquele barco, ou sentisse o mesmo, você também. Mas eu não posso fazê-la sentir isso,
porque você não estava lá, e por isso é difícil para mim. Eu me sinto como se estivesse
sacrificando você, ou nós, como queira, por outro tipo de amor... E além do mais — ele disse,
virando-se —, não é como se... como se eu não quisesse também meu antigo amor.
Depois de ficar parado em silêncio por um minuto, olhando pela janela com as mãos estranhamente
imóveis, ele acrescentou Com uma voz áspera, sem se virar:

— Se você quiser, começamos novamente.
Quando ele se virou da janela, a sala estava vazia. Depois do jantar, ele foi à porta da Rainha pedir
para vê-la, mas recebeu apenas seu recado dizendo-lhe para fazer o que ela pedira. Arrumou suas
poucas coisas, sem compreender bem o que tinha acontecido, mas sentindo que escapara por pouco
de uma calamidade. Despediu-se de seu velho escudeiro que, de qualquer maneira, estava velho
demais para acompanhá-lo, e partiu de Camelot na manhã seguinte.


XXXVI


Se as damas de companhia da Rainha ficaram satisfeitas com a suposta renovação da intriga na
Corte, outros não. Ou, se ficaram satisfeitos, era uma satisfação cruel e expectante. O tom da Corte
mudou pela quarta vez.

No princípio, houve uma camaradagem juvenil sob a quai Arthur lançara sua grande cruzada.
Depois, a rivalidade entre cavaleiros que se acentuava a cada ano na maior Corte da Europa, até
quase se transformar em brigas e competição vazia. Num terceiro momento, o entusiasmo pelo
Graal queimara os gases maléficos e um curto período de beleza prevalecera. Agora, chegava a
fase mais madura e triste, na qual o entusiasmo já tinha se esgotado, e restava apenas nosso famoso
sétimo sentido para ser praticado. A Corte agora tinha "conhecimento do mundo": tinha os frutos do
sucesso, civilização, savoir-vivre, intrigas, moda, malícia e a porta escancarada do escândalo.

Metade dos cavaleiros tinha morrido — a melhor metade. O que Arthur temera desde o começo da
Grande Busca do Graal tinha acontecido. Se você alcança a perfeição, morre. Nada mais havia
sobrado para Galahad pedir a Deus senão a morte. Os melhores cavaleiros tinham alcançado a
perfeição, deixando os piores ocupando seus lugares. Um fermento de amor tinha ficado, é verdade

— Lancelot, Gareth, Aglovale e alguns velhos cambaleantes como Sir Grummore e Sir Palomides
—-, mas o tom mudara. Vinha agora das raivas mal-humoradas de Gawaine, da afetação de
Mordred e dos sarcasmos de Agravaine. Tristão não dera uma boa contribuição na Cornualha.
Fizeram circular uma capa mágica, que só podia ser usada por uma esposa fiel — ou talvez fosse
um corno mágico do quai apenas uma esposa fiel podia beber, Um escudo falante foi exibido, com
um risinho sarcástico, um escudo cujo brasão era urna alusão aos cornudos. A fidelidade
matrimonial tinha virado "notícia". Os trajes tornaram-se extravagantes. As enormes biqueiras dos
chinelos de Agravaine eram presas por correntes de ouro a ligas abaixo do joelho, e, no caso de
Mordred, as correntes eram presas a um cinto na cintura. As sobrevestes, que originalmente
serviam para cobrir as armaduras, eram agora compridas atrás e curtas na frente. Mal se podia
caminhar, com receio de tropeçar nas próprias barras. As damas eram induzidas a raspar a testa e
não exibir nenhum cabelo, se quisessem estar na moda, enquanto as mangas dos vestidos tinham que
ser atadas para não se arrastarem no chão. Os cavalheiros mostravam as pernas em extensãoigualmente surpreendente. Suas roupas eram multicoloridas. Às vezes uma perna era vermelha e a
outra verde. Por conta da exuberância, não usavam o manto fendido, e o capote parecia
desengonçado. Mordred exibia seus sapatos ridículos com desprezo: eram uma sátira a ele mesmo.
A Corte era moderna.

Portanto, os olhares agora estavam postos em Guenevere — não os olhares da suspeita ou cálida
cumplicidade, mas os olhares amortecidos do cálculo e os olhares frios da sociedade. Os gatos
pérfidos espreitavam na toca do rato.

Mordred e Agravaine consideravam Arthur hipócrita — como todos os homens decentes devem
ser, se você assume que a decência não tem como existir. E consideravam Guenevere uma bárbara,

A Beale Isoud, diziam, tinha corneado o Rei Mark de forma civilizada. Fizera tudo com classe,
publicamente, na moda, com o melhor gosto. Todos puderam esfregar o caso na frente do Rei e se
divertir. Ela vestia-se de um modo perfeito, usando divertidos chapéus que a faziam parecer uma
novilha bêbada. Gastara milhões do dinheiro de Mark comprando línguas de pavão para o jantar.

Guenevere, por outro lado, vestia-se como cigana, recebia como estalajadeira e mantinha seu
amante em segredo. Além do mais, era uma chata. Não tinha senso de estilo. Envelhecia sem graça
e chorava ou fazia cenas como uma mulher de peixeiro. Diziam que mandara Lancelot embora
depois de uma briga terrível, durante a qual o acusou de amar outras mulheres. Diziam que tinha
gritado alto: "Sinto dia após dia que seu amor começa a minguar". Mordred disse, com sua vozinha
equivocadamente musical, que podia compreender uma mulher de peixeiro, mas não a amante do
peixe. O epigrama circulou amplamente.

Arthur, reservado e infeliz com a nova atmosfera que, ao invés de aproximar as pessoas, começava
a afastá-las dele, vagava pelo palácio em roupas comuns, tentando ser polido. A Rainha, mais
agressiva — fora uma moça corajosa, como ele bem se lembrava, com cabelos negros e lábios
vermelhos, sacudindo a cabeça —, resolveu enfrentar a situação, e tentou lidar com isso com
recepções e se esforçando para ser, ela mesma, um modelo da moda. Voltou a usar maquiagem e
adornos que abandonara quando do regresso de Lancelot Começou a se comportar como se
estivesse um pouco louca. Todos os reinados gloriosos tem esses períodos confusos, durante os
quais a Coroa é impopular.

O problema irrompeu subitamente, enquanto Lancelot estava rara. A sensação de perigo, que tinha
pairado no ar desde o Graal, cristalizou-se de repente em um jantar oferecido pela Rainha.

Parece que Gawaine gostava muito de frutas. Preferia sobretudo maçãs e pêras — e a pobre
Rainha, ansiosa por se firmar como anfitriã da moda, teve o cuidado particular de providenciar
belas maçãs quando ofereceu um jantar para vinte e oito cavaleiros, no quai Gawaine devia estarpresente. Ela sabia que a facção da Cornualha e das Órcades sempre fora uma ameaça para as
esperanças de seu marido — e Gawaine agora era o chefe do clã. Esperava que o jantar fosse um
sucesso, que contribuísse para a nova atmosfera, que fosse um jantar sofisticado. Estava tentando
aplacar seus críticos sendo uma anfitriã cortês, como La Beale Isoud.

Infelizmente, outras pessoas conheciam a preferência de Gawaine por maçãs, e a hostilidade contra
os assassinos de Pellinore ainda existia. Arthur tinha conseguido fazer Sir Aglovale desistir da
vingança, é verdade, e a velha disputa parecia ter cessado. Mas havia um cavaleiro chamado Sir
Pinel, que era parente distante dos Pellinore, e considerava a vingança necessária. Sir Pinel
envenenou as maçãs.

O veneno é uma arma ruim. Como acontece com freqüência, nesse caso desandou, e um cavaleiro


irlandês chamado Patrick comeu a maçã destinada a Gawaine.

Pode-se imaginar a situação: os cavaleiros pálidos levantando-se à luz das velas, as tentativas
inúteis de socorro e os olhos inquiridores passando de um para outro com envergonhada suspeita.
Todos conheciam aquele ponto fraco de Gawaine. Sua família nunca tinha sido uma das favoritas
da agora impopular Rainha. Ela própria tinha oferecido o jantar. E Pinel não estava em condições
de explicar nada. Alguém naquela sala assassinara Patrick em vez de Gawaine, e até que o
assassino fosse descoberto todos estariam sob a mesma suspeita. Sir Mador de Ia Porte — mais
pomposo que os demais, ou mais malevolente, ou mais implicante — terminou expressando o que
estava na mente de todos. Ele acusou a Rainha de traição.

Hoje, quando uma questão de justiça é obscura e difícil, cada parte contrata um advogado para
argumentar a seu favor. Naqueles tempos, as classes altas contratavam campeões para lutar por elas
— o que resulta sendo a mesma coisa. Sir Mador decidiu economizar as despesas com um campeão
e lutar pelo seu próprio caso, e insistiu para Guenevere nomear um campeão que a defendesse.
Arthur, cuja filosofia acerca da realeza se baseava toda na justiça em vez do poder, não podia fazer
nada para salvar a esposa. Se Mador exigia uma Corte de Honra, iria tê-la. E Arthur não podia
lutar na disputa de sua esposa, tal como as pessoas casadas hoje não podem testemunhar a favor ou
contra a outra.

Estava armada uma bela confusão. Suspeitas, boatos e recriminações tinham obscurecido o assunto
antes mesmo que este existisse. A contenda dos Pellinore, a velha disputa entre Pendragon e a
Cornualha, a relação com Lancelot e depois a morte súbita de uma pessoa aparentemente sem
envolvimento com nenhum deles — tudo isso se misturou num vapor venenoso que pairou sobre a
Rainha. Se Lancelot estivesse ali, teria lutado por ela como seu campeão. Mas ela o mandara
embora — ninguém sabia para onde, alguns achavam que para seus pais, na França. Talvez, se
soubesse que ele estaria por perto, Sir Mador tivesse engolido sua acusação.

Parece melhor não nos alongarmos muito nos dias que antecederam o julgamento pelas armas —
não descrever a mulher desesperada ajoelhando-se diante de Sir Bors, que jamais gostara dela e
que agora, voltando de sua proeza virginal de alcançar o Graal, gostava ainda menos. Ela implorou
que ele lutasse por ela, caso Sir Lancelot não pudesse ser encontrado. Teve de implorar, a pobre
coitada, porque os sentimentos da Corte tinham chegado a tal ponto que ninguém queria aceitar sua
indicação. A Rainha da Inglaterra não tinha um campeão para defendê-la.

A noite da véspera da batalha foi a pior. Nem ela nem Arthur conseguiram dormir um instante
sequer. Ele acreditava firmemente em sua inocência, mas não podia interferir com a justiça. Ela,
patética e repetidamente assegurando essa inocência, apesar de estar envolvida na confusão trazida
por uma questão alheia, sabia que podia ser queimada na noite seguinte. Juntos observaram a
tragédia e a humilhação de sua Távola, da qual ninguém aparecera para salvá-los; sabiam que a
Rainha era chamada, disfarçadamente, de destruidora de bons cavaleiros. Na amarga escuridão,
Arthur subitamente gritou em desespero: "O que você tem que não conseguiu manter Lancelot a seu
lado?", E assim foi até o amanhecer.


XXXVII


O misógino Sir Bors tinha relutantemente concordado em lutar pela Rainha, caso nenhum outro
pudesse fazê-lo. Explicara que era irregular que o fizesse, pois também estava presente no jantar —
mas, quando foi surpreendido por Arthur com a Rainha ajoelhada a seus pés, tinha ruborizado,
levantado-a e consentido. Depois desapareceu por um ou dois dias, já que o julgamento só
aconteceria dentro de uma quinzena.

Um prado em Westminster foi preparado para o combate. Uma barricada de troncos fortes, como
um curral de cavalos, fora erguida na ampla praça — que não tinha barreira no meio. Para uma
justa comum haveria uma barreira, mas, nesse caso, a luta seria até o final, o que significa que
podia terminar com espadas e a pé, e, por isso, não se pusera a barreira. Um pavilhão foi levantado
para o Rei, de um lado, e outro para o Chefe da Guarda, do lado oposto. As barricadas e os
pavilhões estavam decorados com cortinas. Havia uma entrada acortinada de cada lado, como a
abertura dramática através da qual os personagens do circo entram na arena. Em um canto do
curral, visível para todos, havia uni monte de gravetos com uma estaca de ferro no meio, que não
queimaria nem derreteria. Era para a Rainha, se o julgamento terminasse contra ela. Antes de
Arthur começar a obra de sua vida, o homem que acusasse uma Rainha de qualquer coisa seria
imediatamente executado. Agora, por causa de suas próprias conquistas, tinha que estar preparado
para queimar sua esposa.

Uma nova idéia estava começando a se formar na mente do Rei. Os esforços para abrir um canal
para a Força tinham falhado, mesmo quando se voltara para o espírito, e agora ele estava testando a
maneira de aboli-la. Estava decidido a não mais se submeter à Força — arrancá-la de vez, raiz e
galhos, para estabelecer um padrão inteiramente novo. Ele estava caminhando às apalpadelas para

o Direito como um critério em si — para a Justiça como uma entidade abstrata que não dependesse
do poder. Mais alguns anos e ele estaria inventando a Lei Civil.
Era um dia frio. As cortinas batiam contra os andaimes da barricada e do pavilhão, e os pendões
estavam esticados pelo vento. No canto, o carrasco soprava os dedos, parado perto do braseiro do
qual tiraria o fogo para a grande fogueira. Os arautos do Pavilhão do Chefe da Guarda umedeciam
os lábios ressequidos pelo vento frio, antes de levantar as trombetas para uma fanfarra. Guenevere,
sentada entre guardas sob a custódia do Chefe da Guarda, teve que pedir um xale. As pessoas
notaram que ela estava mais magra. Era o rosto frio da meia-idade, aguardando atento e estóico
entre as faces vermelhas dos soldados.


Naturalmente, foi Lancelot quem a salvou. Bors conseguiu encontrá-lo em uma abadia durante os
dois dias que esteve ausente, e agora ele regressava a tempo de lutar contra Sir Mador pela Rainha.
Ninguém que o conhecesse esperaria outra coisa, tivesse ele sido banido em desgraça ou não —
mas, como se pensava que ele tivesse saído do país, seu regresso teve um toque dramático.

Sir Mador saiu de seu recesso no lado sul da liça e proclamou a acusação enquanto o arauto tocava
a trombeta. Sir Bors veio da saída ao norte parlamentar com o Rei e com o Chefe da Guarda —
unia discussão ou explicação comprida e indistinta que as pessoas não podiam escutar por causa do
vento. Os espectadores ficaram inquietos, imaginando qual seria o problema, e por que o
julgamento pelo combate não prosseguia da forma habituai. Então, depois de várias idas e vindas
entre o pavilhão do Rei e o do Chefe da Guarda e vice-versa, Sir Bors voltou para seu curral.
Houve uma pausa desconfortável, durante a qual um cão negro de nariz chato escapou pela liça e
zanzou por ali fazendo algo que só ele sabia o que era. Um dos soldados do Rei o agarrou e o
amarrou com o laço do seu escudo, façanha pelo qual recebeu um aplauso irônico. Depois houve o
silêncio, só quebrado pelos gritos dos vendedores de nozes e de pão de gengibre,

Lancelot saiu cavalgando da abertura ao norte, marcada com o escudo de Bors — e imediatamente
todos no anfiteatro souberam que era ele, apesar de estar disfarçado. O silêncio foi como se todos
tivessem prendido a respiração ao mesmo tempo.

Ele não tinha voltado por concessão à Rainha, A explicação cruel de que ele "tinha desistido dela"
para salvar sua alma e que agora regressava movido por um sentimento de dramática
magnanimidade não era verdadeira. Era mais complicado.

O problema do cavaleiro desde sua infância — que ele jamais superara completamente — era que,
para ele, Deus era uma pessoa real. Não era uma abstração que o punia se fosse mal ou o
recompensava se fosse bom, mas uma pessoa de verdade, como Guenevere, ou como Arthur, ou
como qualquer outro. E claro que ele sentia que Deus era melhor que Guenevere ou Arthur, mas a
questão era que Deus, para ele, era como uma pessoa. Lancelot tinha uma idéia precisa de como se
parecia, e como se sentia. E de alguma forma estava apaixonado por essa Pessoa.

O Cavaleiro Imperfeito não estava envolvido em um Triângulo

Eterno. Era um Quadrado Eterno, que era tão eterno quanto quadrangular. Não desistira de sua
amante por temer a punição de alguma Coisa Sagrada, mas tinha sido confrontado por duas pessoas
às quais amava. Uma era a Rainha de Arthur e a outra, uma presença muda que celebrara a missa no
Castelo Carboneck. Infelizmente, como muitas vezes acontece nos casos de amor, os dois objetos
de sua afeição eram contraditórios. Era quase como se ele tivesse sido confrontado com a escolha
entre Jane e Janet — e tivesse escolhido Janet, não por recear que ela o punisse se ficasse com
Jane, mas porque sentia, com calor e piedade, que a amava mais. Pode até ter senado que Deus
precisava mais dele que Guenevere. Esse era o problema, um problema emocional em vez de
moral, que o levara ao retiro naquela abadia, onde tinha a esperança de aclarar as coisas.

Ainda assim, não seria completamente verdadeiro dizer que ele não tinha voltado por razões de
magnanimidade. Ele era magnânimo. Era um mestre. Mesmo se a necessidade que Deus tinha dele
fosse maior em tempos normais, era óbvio agora que seu primeiro amor tinha uma necessidade


mais premente. Talvez o homem que tivesse deixado Jane por Janet sentisse um calor suficiente
dentro de si para voltar a Jane, caso esta estivesse em desesperada necessidade, e esse calor podia
ser comparado com piedade, magnanimidade ou generosidade — se não fosse fora de moda e até
mesmo um pouco odioso acreditar nessas emoções hoje. Seja como for, Lancelot, que lutava com
seu amor por Guenevere assim como com seu amor por Deus, voltou para o lado dela tão logo
soube que ela estava em perigo, e, quando viu seu rosto radiante esperando por ele enquanto era
submetida a uma vergonhosa provação, seu coração se revolveu dentro da armadura com uma
emoção lancinante — chame-a de amor ou piedade, como queira.

O coração de Sir Mador de Ia Porte saltou da mesma maneira no mesmo momento — mas era tarde
demais para recuar. Seu rosto ficou vermelho dentro do elmo, o que ninguém podia ver, e sentiu o
calor aumentar sob a rede de palha que protegia seu crânio. Então voltou para seu canto e esporeou

o cavalo.
Há algo de belo na maneira como uma lança quebrada voa pelo ar. Embaixo dela, no chão, há muito
alvoroço. O movimento preguiçoso com que a lança sobe, gira silenciosa e languidamente sobre si
mesma, contrasta com isso. Ela parece superior a considerações terrestres e não dá a impressão de
se mover com rapidez. O movimento rápido — que, neste caso, era o de Sir Mador caindo de
costas e de pés para cima — acontece abaixo da lança, que faz uma pirueta graciosa e cai mais
adiante, quando todos já se esqueceram dela. A lança de Sir Mador desceu de ponta, por algum
fenômeno balístico, caindo bem atrás do soldado que segurava o cão. Quando este se voltou e a viu
ali, enterrada de ponta, como se olhasse por cima de seu ombro, teve um sobressalto.

Sir Lancelot desmontou, para não ter a vantagem do cavalo. Sir Mador levantou-se e começou a
girar selvagemente sua espada na frente do inimigo. Estava superexcitado.

Dois golpes foram suficientes para liquidar Sir Mador. Quando ele caiu da primeira vez, Lancelot
caminhou em sua direção para aceitar sua rendição, mas ele se enraiveceu e atacou de baixo para
cima o homem que o sobrepujava. Era um golpe baixo, pois se dirigia à parte mais inferior da
virilha, precisamente no ponto em que a armadura necessariamente era mais frágil. Quando
Lancelot recuou para deixar Mador levantar-se caso quisesse continuar combatendo, viu-se que o
sangue escorria por suas coxas e pela proteção da perna. Havia algo terrível na maneira paciente
como ele recuou, apesar de ter sido ferido nas pernas. Se ele perdesse a paciência naquele
momento, isso seria facilmente compreendido.

O Campeão da Rainha derrubou Sir Mador com mais força pela segunda vez. Então Sir Mador
arrancou o elmo.

— Está bem — disse. — Desisto. Eu estava errado. Poupe minha vida.
Lancelot teve um belo gesto. A maioria dos cavaleiros ficaria satisfeita ao vencer o embate para a
Rainha, e o assunto terminaria ali. Mas Lancelot tinha uma espécie de consideração metódica pelas
pessoas — era sensível a coisas que elas poderiam estar sentindo, ou poderiam vir a sentir.

— Pouparei sua vida — disse — só se prometer que nada será escrito sobre isto no túmulo de Sir
Patrick. Nada sobre a Rainha.
— Prometo — disse Mador.

Então, quando o desafiante derrotado era carregado por alguns cirurgiões, Lancelot dirigiu-se ao
camarote real. A Rainha tinha sido imediatamente libertada e estava lá com Arthur.

— Tire seu elmo, desconhecido — disse Arthur.
Quando ele o tirou, sentiram-se inundados de amor e compaixão ao ver novamente o rosto
desfigurado e bem conhecido, enquanto ele permanecia diante deles, sangrando bastante.

Arthur desceu do camarote. Fez Guenevere levantar-se, segurou sua mão e a conduziu até a arena.
Curvou-se cortesmente diante de Sir Lancelot, e puxou a mão de Guenevere para que ela fizesse o
mesmo. Fez isso diante de seu povo. Falou de modo antiquado, e disse bem alto:

— Cavalheiro, recebei nossa gratidão pelo grande trabalho que tivestes neste dia por mim e por
minha Rainha.
Guenevere, por trás do rosto sorridente do Rei, soluçava como se seu coração fosse arrebentar.


XXXVIII



Aconteceu então que a acusação sobre a morte de Patrick foi esclarecida no dia seguinte, quando
Nimue chegou com uma explicação clarividente. Merlin, antes de deixar que ela o encerrasse na
caverna, deixara as questões da Bretanha em suas mãos. Ele a fizera prometer — e era só o que
podia fazer — que cuidaria pessoalmente de Arthur, agora que conhecia sua própria magia. Depois
seguiu documente para sua prisão, lançando-lhe um longo e carinhoso olhar. Nimue, apesar de
desmiolada e impontual, era uma boa moça, lá do seu jeito. Apareceu um dia depois, contou como a
maçã tinha sido envenenada, e foi cuidar de suas coisas. Sir Pinel confirmou a declaração ao fugir
na mesma manhã, deixando uma confissão escrita, e todos tiveram que admitir que tinha sido uma
sorte Sir Lancelot estar por perto.

Não foi tão boa a sorte da Rainha. Estava viva e salva, é verdade, mas o inacreditável acontecera.
A despeito das lágrimas, a despeito do jorro de sentimentos que brotara entre eles novamente,
Lancelot persistia em se manter leal ao seu Graal.

Bom para ele — ela exclamava, cada dia mais louca, e as pessoas se condoíam ao vê-la assim.
Bom para ele se enrolar em sua nova delícia. Ele tinha um grande sentimento, sem dúvida, uma
sensação de vigor e clareza e de ânimo para o coração. Talvez seu famoso Deus tivesse lhe dado
algo que ela não podia lhe dar. Talvez ele estivesse mais feliz com Deus, e logo começaria a fazer
milagres a torto e a direito. Mas e ela? Ele não considerava o que ela perdia com Deus. A posição
era exatamente a mesma, gritava ela com ele, como se a tivesse deixado por outra mulher. Lancelot
tinha ficado com o melhor deia e agora, que estava velha e inútil, foi em busca de novos interesses.
Ele se comportava com o egoísmo bestial dos homens, agarrando tudo o que pudesse de um lado e,
quando esse lado se gastava, ia para outro. Era um ladrão sorrateiro. E pensar que ela acreditara
nele! Agora, já não o amava, não deixaria que ele se aproximasse dela nem que implorasse de
joelhos. Na verdade, ela o desprezara mesmo antes da Busca do Graal — sim, desprezara-o, e
estava determinada a se livrar dele. Ele não devia pensar que a estava abandonando. De fato, era o
contrário. Ela é que o estava jogando fora, como um trapo sujo, pois não sentia nada mais que
desprezo por ele. Pela sua pose e cabeça envaidecida, crueldade, infantilidade e presunção. Por
seu deusinho fútil e suas mentirinhas. Para dizer a verdade, e ela não tinha mais interesse em
esconder o fato, havia um jovem cavaleiro da Corte que já era seu amante: e isso desde muito antes
do Graal! Era um jovem muito melhor que Lancelot. O que é que ela iria fazer com uma palha velha
e fedorenta quando tinha um rapaz rosado que a adorava, sim, adorava o chão que ela pisava? Era
melhor que Lancelot voltasse para Elaine, para a mãe de seu famoso filho. Talvez eles pudessem
rezar juntos a noite inteira, um chato ao lado de outra chata. Podiam conversar sobre seu bebê, seu
Galahad, que encontrou aquele abominável Graal, e podiam rir dela se quisessem, sim, podiam rir
dela por ter sido incapaz de ter um filho.

E aí Guenevere começava a rir — mas uma parte dela sempre a olhava de fora e odiava o barulho
que ela fazia — e as lágrimas vinham depois das risadas, e ela chorava com todo o coração.

Um fato estranho foi que Arthur, que decidiu organizar um torneio para comemorar a absolvição da
Rainha, fixou um campo perto de Corbin onde o evento se realizaria. O lugar pode ter sido
Winchester ou Brackley, onde se encontra um dos quatro campos de torneio ingleses que


sobreviveram. Não importa onde fosse — o importante é que Corbin era o castelo onde Elaine,
agora sem filhos, vivia sua meia-idade solitária.

— Suponho que você ira ao torneio? — perguntou orgulhosamente a Rainha. — Suponho que irá
para perto da sua puta?
— Jenny, por que não consegue perdoá-la? Provavelmente, ela está tão feia agora quanto
miserável. Nunca teve muito com que contar — disse Lancelot.
— O generoso Lancelot!
— Se você não quiser que eu vá, não irei — disse ele. — Você sabe que jamais amei outro ser
humano a não ser você.
— Só Arthur — disse a Rainha. — Só Elaine. Só Deus. A menos que haja outros de que eu não
tenha ouvido falar.
Lancelot sacudiu os ombros, uma das coisas mais estúpidas que podem ser feitas quando o outro
quer uma briga.

— Você vai? — perguntou ele.
— Eu, ir? Para ver você cortejar aquele nabo? Certamente não irei e proíbo você de ir também.
— Muito bem — disse ele. — Direi a Arthur que estou enfermo. Posso dizer que meu ferimento
ainda não sarou.
E foi atrás do Rei.

Todo inundo já tinha partido para o torneio, e a Corte estava vazia quando Guenevere mudou de
idéia. Talvez tivesse mantido Lancelot ali para ficar a sós com ele e, ao descobrir que não
adiantava nada ficar sozinha com ele, reverteu sua decisão — mas não sabemos exatamente a razão.

— É melhor você ir — disse ela. — Se eu o mantiver aqui, você vai dizer que é porque sou
ciumenta, e jogar isso na minha cara. Além do mais, pode haver um escândalo se você ficar aqui
comigo. E não quero mais você. Não quero mais ver seu rosto. Leve-o para longe daqui. Vá!
— Jenny — respondeu ele, argumentando. — Não posso ir agora. O escândalo será muito maior se
eu for agora, pois disse que o ferimento me impedia. Vão pensar que tivemos uma briga.
— Deixe que pensem o que quiserem. Só digo*a você que tem de ir, antes que me faça ficar louca.
— Jenny — disse ele.
Ele sentiu seu coração partir-se em dois, e que a loucura que ela antes provocara nele podia voltar.
Talvez também ela tenha notado isso. De qualquer maneira, de repente ela suavizou seus modos.
Despediu-se, quando ele saiu para Corbin, com um beijo apaixonado.

"Prometo que voltarei", ele havia dito, e agora estava cumprindo sua promessa. Era impensável ir
ao torneio sem visitar Elaine. Não apenas lhe prometera que voltaria, como era também o
depositário das últimas mensagens de seu único filho, agora morto ou pelo menos transmudado. O
mais cruel dos homens não poderia deixar de visitá-la com tais mensagens.


Ele se hospedaria em Corbin, contaria a ela sobre Galahad, e lutaria disfarçado no torneio. Podia
explicar a Arthur que tinha alegado o ferimento para chegar de forma inesperada, já que essa era
uma das modas atuais. Esse subterfúgio se reforçaria pelo fato de ele ficar hospedado no Castelo
de Corbin, em vez de no local onde se realizaria o torneio. Isso evitaria qualquer escândalo sobre
unia briga de última hora com a Rainha.

Ficou surpreso ao descobrir, quando cavalgava pela avenida em direção ao fosso, pelo cheval de
frise, que Elaine o esperava nas muralhas, na mesma pose em que a deixara vinte anos atrás. Ela o
encontrou no Grande Portão.

— Eu estava esperando por você.
Agora estava gordinha e baixinha, parecida com a Rainha Vitória, e o recebeu fielmente. Ele
dissera que voltaria e ali estava. Ela não esperara outra coisa.
Com as palavras seguintes, ela apunhalou seu coração.


— Agora você ficará aqui de vez — disse ela, sem que Fosse uma pergunta. Era dessa forma que
entendera a resposta que ele lhe dera quando se separaram tanto tempo atrás.

XXXIX


Se as pessoas quiserem ler sobre o torneio de Corbin, encontrarão em Malory. Ele era uni
apaixonado seguidor de torneios — como um desses velhos cavalheiros que hoje freqüentam o
pavilhão de críquete no Lords — e pode ter tido acesso a alguma antiga revista de críquete, ou
mesmo aos registros de pontos. Ele relata os torneios mais famosos de forma exaustiva, com a
pontuação de cada cavaleiro, e o nome de quem o derrubou ou como o venceu. Mas os relatos dos
velhos jogos de críquete têm a tendência de serem chatos para os que não participaram deles,
portanto o deixaremos sem relato. As únicas coisas que podem ser consideradas maçantes em
Malory são as tabelas de pontos, que ele transcreve duas ou três vezes — e até mesmo essas não
são maçantes para alguém que conheça o estilo dos vários cavaleiros menores. Para nossos
objetivos basta dizer que Lancelot venceu completamente os adversários — sua habilidade
retornara depois do Graal — e que continuaria de espada em punho até o fim, caso o ferimento querecebera de Sir Mador não tivesse aberto novamente. É estranho que ele tenha se desempenhado
tão bem nessa ocasião, já que estava distraído pelo desgosto triplo causado por Guenevere, Deus e
Elaine, mas grandes performances já foram alcançadas por outros em circunstâncias idênticas.
Finalmente, quando já tinha derrubado uns trinta ou quarenta, apesar do velho ferimento (e,
incidentalmente, tinha desmontado Mordred e Agravaine), três cavaleiros partiram para cima dele
ao mesmo tempo, e a lança de um deles rompeu sua defesa, quebrando-se, mas deixando a ponta no
seu flanco.

Lancelot retirou-se do campo enquanto ainda podia ficar montado, e galopou para longe,
balançando na sela, para descobrir um local onde pudesse ficar sozinho. Quando se feria de
verdade tinha esse instinto da solidão. Para ele, havia algo de privado acerca da morte — e se ele
tivesse que morrer, preferia ter a oportunidade de fazer isso por conta própria. Apenas um
cavaleiro o acompanhou — ele estava fraco demais para o repelir — e foi este que o ajudou a tirar
a ponta da lança, e que, quando finalmente desfaleceu, cuidou dele, "colocando-o a favor do vento".
Foi também esse cavaleiro que trouxe a perturbada Elaine para sua cabeceira, depois que o
colocou na cama.

A importância do torneio de Winchester não repousa em nenhum feito de armas em particular, nem
mesmo no feio ferimento de Lancelot — já que ele finalmente se recuperou disso. No que realmente


tocou a vida de nossos quatro amigos está em uma circunstância que ainda está por ser contada.
Pois Lancelot, subitamente enfrentando a convicção sem fundamento da pobre Elaine de que ficaria
com ela para sempre, não conseguiu lhe dizer a verdade. Talvez fosse um homem fraco sobre
vários aspectos — fraco por ter tomado Guenevere de seu melhor amigo, em primeiro lugar; fraco
por ter trocado a amante por Deus; e mais fraco ainda por ter ajudado Elaine, dizendo-lhe que
regressaria. Agora, diante da esperança simples da pobre dama, tinha-lhe faltado coragem para
liquidar com sua ilusão com um golpe definitivo.

Um dos problemas de lidar com Elaine, a despeito de sua simplicidade e ignorância, era ela ter
uma natureza sensível — de fato, mais ainda que a de Guenevere, embora de ela não tivesse o
poder da corajosa e extrovertida Rainha. Ela fora sensível o suficiente para não cobri-lo de boas-
vindas quando ele voltou ao lar depois da longa ausência; não repreendê-lo — e ela jamais pensara
que tinha razões para repreendê-lo. E, acima de tudo, não sufocá-lo com piedade para consigo
mesma. Ela conseguira controlar seu coração enquanto eles esperavam pelo torneio em Corbin,
cuidadosamente ocultando os longos anos durante os quais ansiara por seu senhor, e sua absoluta
solidão agora, depois que o filho se fora. Lancelot sabia muito bem o que ela escondia. Sendo ele
mesmo sensível e inseguro, esqueceu como havia começado essa relação peculiar. E começou a
culpar exclusivamente a si mesmo pelas penas de Elaine.

Assim, quando ela fez seu pequeno pedido, depois de tê-lo poupado de tantas lágrimas e boas-
vindas, que mais podia ele fazer a não ser tentar satisfazê-la? Teria que lhe dizer que sua esperança
inquebrantável era inútil. Mas adiava isso. Sentindo-se como um carrasco que sabe que tem de
matar no dia seguinte, tentava dar-lhe um pouco de alegria no dia de hoje.

— Lance — ela disse antes do torneio, fazendo seu estranho pedido de maneira humilde e infantil
—, agora que estamos juntos, você usará meu sinal no combate?
Agora que estamos juntos! E naquele tom de voz ele via o quadro de vinte anos de abandono,
compreendendo pela primeira vez que durante todo aquele tempo ela tinha acompanhado sua
carreira de cavaleiro, como uma colegial torcendo pelo jogador preferido. A pobre criança
imaginara todos os combates — quase certamente de maneira errada — e nutriu seu coração
faminto com relatos de segunda mão: tentando adivinhar que sinal estaria no lugar de honra em cada
combate. Talvez ela tivesse dito a si mesma, no correr desses vinte anos, que algum dia o grande
campeão lutaria por ela — urna dessas ambições ridículas com as quais almas infelizes se
consolam, à falta de alimentos decentes.

— Eu nunca uso sinais — disse ele, com sinceridade.
Ela não implorou nem se queixou, e tentou realmente esconder seu desapontamento.
— Mas usarei o seu — ele acrescentou imediatamente. — Ficarei orgulhoso disso. E, além do
mais, ajudará em muito meu disfarce. Como todos sabem que não uso prendas, será um ótimo
disfarce se usar uma. Como você foi inteligente ao pensar nisso! E me fará lutar melhor. Qual é sua
prenda?
Era uma manga escarlate bordada com grandes pérolas. Aprende-se a bordar muito bem em vinte
anos.


Uma quinzena depois do torneio de Winchester, enquanto Elaine cuidava de fazer seu herói voltar a
viver, Guenevere tivera uma cena com Sir Bors, na Corte. Odiando mulheres, Bors sempre tivera
com elas cenas instrutivas. Ele dizia o que pensava, elas diziam o que pensavam, e nenhum entendia
nada do outro.

— Ah, Sir Bors — disse a Rainha, que mandara chamá-lo apressadamente logo que ouviu falar da
manga vermelha, já que Bors era um dos amigos mais íntimos de Lancelot. — Ah, Sir Bors, ouviu
contar como Sir Lancelot me traiu da maneira mais falsa?
Bors, notando que a Rainha "estava irada e completamente fora de si", ruborizou-se completamente
e disse com exagerada paciência:

— Se alguém foi traído foi o próprio Lancelot. Foi mortalmente ferido por três cavaleiros de uma
vez.
— E estou feliz — exclamou a Rainha —, feliz em saber disso! Será bom que ele morra. É um
cavaleiro falso e traidor!
Bors sacudiu os ombros e deu as costas, como dizendo que não ia escutar esse tipo de conversa.
Esse dar as costas, enquanto caminhava para a porta, mostrava o que ele pensava das mulheres. A
Rainha correu atrás dele, para retê-lo à força, se necessário. Ela não iria. se privar tão facilmente
de sua cena.

— E por que não posso chama-lo de traidor — gritou ela —, se ele usou a manga vermelha no seu
elmo em Winchester, na grande justa?
Bors, temendo ser fisicamente atacado, disse:

— Sinto muito sobre a manga. Se ele não a tivesse usado como disfarce, talvez as pessoas não
tivessem se atirado em três contra ele.
— Vergonha para ele — exclamou a Rainha. — Levou uma boa surra, de qualquer maneira, a
despeito de todo seu orgulho e bazófia. Foi derrotado numa luta justa.
— Não, não foi não. Foram três contra um, e sua velha ferida também se abriu.
— Vergonha para ele — repetiu a Rainha. — Ouvi Sir Gawaine dizer diante do Rei que era
maravilhoso o quanto ele amava Elaine.
— Não posso impedir Gawaine de dizer o que quiser — retrucou Sir Bors acalorado, desesperado,
patético, furioso e horrorizado. E saiu batendo a porta, esquecendo toda etiqueta.
Em Corbin, Elaine e Lancelot estavam de mãos dadas. Ele sorria debilmente para ela, e disse com
voz tênue:

— Pobre Elaine. Parece que você sempre está me curando de alguma coisa. Parece que nunca me
tem, salvo quando estou só meio vivo.
— Agora eu tenho você para sempre — ela disse, radiante.
— Elaine — disse ele —, temos que conversar.

XL


Quando o Cavaleiro Imperfeito voltou de Corbin, Guenevere ainda estava com raiva. Por alguma
razão, estava determinada a acreditar que Elaine tinha se tornado sua amante novamente,
possivelmente porque esse parecia ser o melhor meio de ferir seu amante. Disse que ele estava
simplesmente fingindo sobre seus sentimentos religiosos — como ficou demonstrado por ter ido
imediatamente encontrar Elaine quando teve a oportunidade. Isso, disse ela, estava no fundo de sua
mente o tempo todo. Ele era uni hipócrita, e hipócrita fraco, além do mais. Tiveram cenas
histéricas, sobre as debilidades e hipocrisias dele, alternando-se com outras cenas mais afetuosas,
necessárias para contrabalançar a idéia de que ela estivera a vida inteira apaixonada por um
hipócrita. Ela começou a parecer mais saudável, até mesmo bonita outra vez, como resultado
dessas brigas. Mas duas rugas apareceram entre seus olhos, e às vezes seus olhos eram
assustadores, brilhando como diamantes. Lancelot começou a ter um olhar de obstinado. Ambos
estavam à deriva.

Elaine já foi explicada, e foi Elaine quem deu, agora, o único grande golpe de sua vida. Ela o fez
sem intenção, ao suicidar-se.

Uma barcaça fúnebre desceu pelo rio até a capital, já que os rios eram as estradas da época, e
atracou ao lado do palácio. Lá estava seu corpo — a perdiz gordinha e desamparada que sempre
fora. Provavelmente, as pessoas se suicidam por fraqueza, e não por força. Os esforços gentis que
ela fizera para guiar as mãos do destino, usando truques fracos como chamariz ou considerações
reticentes para atrair seu senhor, não foram suficientemente fortes para serem reconhecidos pelo
despotismo da vida. Seu filho se fora, assim como seu amante, e não lhe sobrara nada. Até mesmo a
promessa de retorno tinha escapado de sua garra vã. Esta fora por um tempo uma razão para viver,
um corrimão — não um corrimão propriamente suntuoso, mas o suficiente para mantê-la de pé.
Tinha sido capaz de prosseguir. Sem jamais ter sido uma mulher altaneira ou exigente, conseguira
com pouco prosseguir por muito tempo. Mas agora até mesmo aquele pouco desaparecera.

Todos desceram para ver a barcaça. E não foi o lírio virginal de Astolat que viram, e sim uma
mulher de meia-idade cujas mãos, enrijecidas dentro das luvas, agarravam obedientemente um par
de contas. A morte a fizera parecer mais velha e diferente. O rosto duro e cinzento que estava na
barcaça evidentemente não era Elaine — que se fora para outro lugar, ou desaparecera.


Mesmo se Lancelot foi um fraco, ou maníaco por jogos, ou aquele tipo de criatura irritante, uma
pessoa que consistentemente tenta ser decente, ele não parece ter rido uma vida fácil. Com sua
tendência herdada para a loucura, e seu rosto fantástico, a confusão de suas lealdades e padrões
morais, já teria sido suficientemente difícil manter o equilíbrio na vida sem os vários golpes que
recebeu além da conta. Ele podia até mesmo ter suportado os golpes extras se tivesse sido
abençoado com um coração duro. Mas seu coração tora como par para o de Elaine, e agora era
incapaz de suportar o fardo que o coração dela se vira forçado a colocar no chão. Todas as coisas
que poderia ter feito pela pobre criatura, mas que agora era tarde demais para fazer, e todas as
vergonhosas questões sobre responsabilidade que acompanham o irrevogável uniram-se em sua
mente.

— Por que você não foi mais gentil com ela? — exclamou a Rainha. — Por que não pôde dar-lhe
algo com que viver? Podia ter lhe demonstrado alguma bondade e gentileza, que teriam preservado
sua vida.
Guenevere, que ainda não compreendia que Elaine tinha se metido entre os dois mais efetivamente
que nunca, disse isso de maneira bem espontânea, e queria dizer isso mesmo. Estava transtornada
de pena por sua rival na barcaça.


XLI


O novo gênero de vida prosseguiu em Camelot, apesar do suicídio. Ninguém diria que era
especialmente feliz — mas as pessoas se apegam tenazmente à vida, e continuam vivendo. Não que
fosse uma vida que seguisse uma trama. Na maioria das vezes eram apenas eventos — uma coisa
depois da outra —, uma cadeia de acidentes desnecessários. Um acidente ridículo que aconteceu
nessa época vale a pena ser contado, não porque tivesse conseqüências ou antecedentes, mas
porque, de alguma maneira, era o tipo de coisa que acontecia com Lancelot. E ele reagia a isso à
sua própria maneira.

Um dia ele estava deitado de bruços na floresta, sabe-se lá com que pensamentos tristes, quando
uma dama arqueira que estava caçando se aproximou. Não se sabe se era um tipo de dama
masculinizada com bigode e roupa de cavaleiro, ou se era uma dessas desmioladas do mundo do
cinema que praticam o arco-e-flecha porque acham bonito. De qualquer forma, ela viu Lancelot epensou que fosse um coelho. É bem capaz que fosse uma daquelas mulheres masculinizadas porque,
embora fosse engraçadinho disparar em um homem confundindo-o com um coelho, seria muito
incomum que uma estrela de cinema acertasse o alvo. Lancelot, pondo-se num pulo de pé com doze
centímetros de flecha incrustada no traseiro fez exatamente como o coronel Bogey — enterrado no
segundo tee do jogo de golfe. Gritou colérico:

— Dama ou donzela, seja lá quem você for, maldita a hora em que pegou esse arco, pois foi o
diabo que a fez arqueira!
Apesar do ferimento no traseiro, Lancelot participou da justa seguinte — um torneio importante,
devido a várias coisas que aconteceram nele. A verdadeira tensão na Corte — que era aparente
para todos menos para Lancelot, inocente demais para perceber esse tipo de coisa — começou a
ficar clara nas justas de Westminster. Entre outras razões, Arthur começou a marcar sua posição
naquele malfadado triângulo. Fez isso, pobre sujeito, quando subitamente tomou o lado contrário a
Lancelot no meio da grande confusão. Partiu para cima do seu melhor amigo, tentou feri-lo, e
perdeu a calma. Não fez nada contra as regras da cavalaria e, afinal, não machucou Lancelot. Mas a
sensação estranha ficou lá de qualquer forma. Antes e depois ambos eram amigos. Mas naquele
momento de raiva Arthur era o corno e Lancelot, o traidor. Esta foi a explicação aparente — um
reconhecimento inconsciente da relação entre os dois —, mas pode ter rido outra coisa por trás.
Fazia muito tempo que Arthur deixara de ser o feliz Wart, havia muito que seu lar e seu reino
tinham alcançado seu ápice feliz. Talvez ele estivesse cansado da luta, cansado da facção das


Órcades e das novas e estranhas modas, e das dificuldades do amor e da justiça moderna. Pode ter
lutado contra Lancelot na esperança de que este o matasse — não exatamente uma esperança, não
uma tentativa consciente. Esse homem justo e generoso e de coração amável pode ter
inconscientemente adivinhado que a única solução para ele e para as pessoas que amava residia em
sua própria morte — depois da qual Lancelot podia casar-se com a Rainha e ficar em paz com
Deus —, e pode ter dado a Lancelot a oportunidade de matá-lo em uma luta leal, porque ele mesmo
estava exausto. De qualquer forma, nada disso aconteceu. Houve aquele rompante, e depois o amor
entre ambos estava novamente vivo.

Outro acontecimento importante do torneio foi que Lancelot, com inocência idiota, alienou o clãdas Órcades, de vez e definitivamente. Desmontou o clã inteiro, menos Gareth, um depois do outro,
e Mordred e Agravaine foram desmontados duas vezes. Só um santo podia ser tão louco para lhes
salvar as vidas tantas vezes de Torres Dolorosas e coisas assim — mas rematar o fato derrotando-
os à vontade, naquele momento, era a política da ingenuidade, Gawaine, é verdade, foi
suficientemente decente para se recusar a participar de conspirações contra a vida de Lancelot, e
Gaheris era estúpido. Mas, desse dia em diante, era apenas uma questão de tempo, entre o grupo
elegante de Mordred e Agravaine e a segurança do comandante-chefe.


Lancelot venceu completamente os adversários e continuaria de espada em punho ate o fim, caso

o ferimento que recebera de Sir Mador não tivesse aberto novamente. É estranho que ele tenha
se desempenhado tão bem nessa ocasião, já que estava distraído pelo desgosto triplo causado
por Guenevere, Deus e Elaine.

A terceira palha ao vento foi o fato de Gareth lutar ao lado de Lancelot em Westminster. Esses
cruzamentos peculiares de sentimentos foram notados por todos — o Rei contra seu segundo ser, e
Gareth contra seus irmãos. Com tantas correntes agindo, uma tempestade certamente se aproximava.
E ela chegou, caracteristicamente, de um lado que ninguém imaginava.

Havia um cavaleiro londrino chamado Sir Meliagrance, que nunca fora feliz na Corte. Se tivesse
vivido nos tempos mais antigos, quando um homem era julgado como um homem, poderia ter se
saído suficientemente bem. Infelizmente, pertencia a uma geração mais jovem, a das modas de
Mordred, e era julgado pelos novos padrões. Todo mundo sabia que Sir Meliagrance não era
exatamente de primeira categoria. Ele mesmo sabia disso — a primeira categoria tinha sido
inventada por Mordred —, e esse conhecimento não o fazia feliz. Além do mais, Sir Meliagrance
tinha uma razão específica para seu sofrimento e envenenava a sociedade para ele.

Estava desesperada e perdidamente — e sempre tinha estado desde que se lembrava — apaixonado
por Guenevere.

A notícia chegou quando Arthur e Lancelot estavam na quadra de boliche. Tinham adquirido o
hábito de ir, todos os dias, até esse lugar fora de moda para se divertirem com um pouco de
conversa.

Arthur dizia:

— Não, não, Lance. Você realmente nunca compreendeu o pobre Tristão.
— Era um cafajeste — disse, obstinado, Lancelot. Estavam falando no passado porque Tristão
finalmente tinha sido assassinado, quando tocava harpa para La Beale Isoud, por um Rei Mark
totalmente exasperado.
— Mesmo morto — acrescentou o cavaleiro. Mas o Rei sacudiu veementemente a cabeça.
— Não era um cafajeste — disse. — Era um bufão, um grande personagem cômico. Estava sempre
se metendo em situações extraordinárias.
— Um bufão?
— Distraído — disse o Rei. — Essa é a grande desgraça dos cômicos. Veja seus casos amorosos.
— Você se refere a Isoud Mãos-Brancas?
— Acredito realmente que Tristão acabou confundindo completamente essas duas moças. Ele ficou
enlouquecido com La Beale Isoud e depois a esqueceu completamente. Lim dia está metido na cama
com a outra Isoud quando algum movimento o faz se lembrar de algo. Vai percebendo que existem
duas Isouds — não uma — e fica terrivelmente preocupado com isso. Aqui estou eu metido na
cama com Isoud Mãos-Brancas, diz ele, quando o tempo todo estive apaixonado por La Beale
Isoud! Claro que fica perturbado. E depois, ser quase assassinado em seu banheiro pela Rainha da
Irlanda. Havia um tom de alta comédia naquele jovem, e você deve desculpá-lo por ser um
cafajeste.
— En.... — começou Lancelot, mas naquele instante chegou o mensageiro.

Era um garoto pequeno e sem fôlego com um rasgo de flecha no gibão, embaixo do sovaco.
Segurava o rasgão com os dedos e falava rápido.

Era sobre a Rainha, que tinha saído para festejar o começo de maio — era o dia primeiro de maio.
Tinha saído cedo, como era costume, pretendendo estar de volta pelas dez horas, com todas as
prímulas orvalhadas, violetas e botões de pilriteiros e ramos de galhos verdes que era próprio
colher numa manhã assim. Tinha deixado sua guarda atrás — os cavaleiros da Rainha, que usavam

o vergescu, o escudo branco dos cavaleiros virgens como sinal do seu posto — e levara consigo
apenas dez cavaleiros em roupas civis. Todos se vestiam de verde, para celebrar o festival da
primavera. Agravaine estava entre eles — recentemente ele tinha se ligado a Guenevere, para
espioná-la — e Lancelot foi deixado de fora de propósito.
Bem, todos cavalgavam alegremente para casa, tagarelando e cheios de flores e galhos, quando Sir
Meliagrance saltou diante deles, numa emboscada. Essa coisa de não ser da elite o perturbara tanto
que ele decidiu deixar de vez de ser cavalheiro, já que todos o acusavam mesmo de não ser. Ele
sabia que o grupo da Rainha estava desarmado, e que Lancelot não estava entre eles. Tinha levado
um forte grupo de arqueiros e soldados para fazê-la sua cativa.

Houve luta. Os cavaleiros da Rainha a defenderam da melhor maneira possível com espadas e
sabres, até que todos foram feridos, alguns seriamente. Guenevere então se rendeu para lhes salvar
a vida. E fez uma barganha com Sir Meliagrance — cujo coração realmente não estava talhado para
ser bandido: se ela detivesse seus defensores, ele tinha de prometer levar os cavaleiros feridos
junto com ela até seu castelo, e deixá-los dormir em sua antecâmara. Meliagrance, apaixonado por
Guenevere, e vacilando diante de sua própria perversidade, e sabendo que seria inútil forçar sua
amada contra a vontade dela, concordou com os termos. O pobre sujeito realmente não tinha o talhe
para ser um verdadeiro vilão.

Na confusão de conduzir a triste procissão de feridos, deitados de través nas selas de seus cavalos,
a Rainha tinha mantido a cabeça. Convocara o pequeno pajem, que estava num pônei descansado e
rápido, e secretamente lhe deu seu anel, com uma mensagem para Lancelot. Quando ele visse uma
oportunidade, deveria disparar a galope como se fosse para salvar sua vida — e foi isso que ele
fez, com os arqueiros atrás. Ali estava o anel.

No meio da história, Lancelot já estava gritando por sua armadura. Quando terminou, Arthur já
estava de joelhos a seus pés, atando-lhe as grevas da armadura.


XLII


Quando os arqueiros montados voltaram, desanimados, dizendo que não conseguiram acertar o
rapaz, Sir Meliagrance soube o que ia acontecer. Estava perturbado pela angústia não só porque
sabia que vinha agindo de maneira imprudente e perversa, mas também porque estava
verdadeiramente apaixonado pela Rainha. No entanto, ainda dispunha de um trunfo e percebeu que,
depois de ter ido tão longe, era tarde demais para desistir. Lancelot seria forçado a vir em resposta
à mensagem, e era necessário ganhar tempo. O castelo não estava preparado para um cerco — mas,
se pudesse se preparar, havia boas perspectivas de fazer um acordo com os sitiantes, considerando
que a Rainha estava lá dentro. Portanto, Lancelot deveria ser retardado a todo custo, até o castelo
estar em condições de se defender. Ele supunha, corretamente, que Lancelot se precipitaria em
socorro da Rainha, tão logo se armasse. A melhor maneira de detê-lo seria com uma segunda
emboscada, em uma estreita clareira na floresta por onde ele teria de passar — uma clareira tão
estreita que os arqueiros certamente conseguiriam matar seu cavalo, ou talvez trespassar-lhe a
armadura. Desde os Tempos Conturbados, as vegetações rasteiras dos dois lados de todos os
caminhos foram limpas até a distância de um tiro de arco — mas essa clareira, devido a algumas
peculiaridades do terreno, ficara esquecida. E uma flecha bem disparada à distância correta podia
penetrar na melhor das armaduras, como Meliagrance sabia.

Assim, a emboscada foi preparada com grande rapidez, e dentro do castelo armou-se uma tremenda
agitação. Pastores conduziam os animais para dentro da fortaleza — e todos os animais se
extraviavam, ou se misturavam uns com os outros, ou se recusavam a passar pelas grades.
Febrilmente, rapazes sem fôlego transportavam água para as grandes cubas — era um daqueles
castelos mal-equipados, que parecem ter sua origem na Irlanda, cujos pátios não dispunham de
poços. As criadas corriam de um lado para o outro, à beira da histeria, pois Sir Meliagrance, como
muitas pessoas de categoria inferior, estava determinado a hospedar sua Rainha prisioneira de uma
maneira acima de qualquer crítica. Estavam preparando seus aposentos privativos, tirando as
tapeçarias de seu quarto de solteiro para colocar no dela, lustrando a prataria e pedindo aos
vizinhos mais próximos que lhes emprestassem baixelas de ouro. A própria Guenevere, colocada
em uma pequena sala de espera enquanto os aposentos estavam sendo adequadamente preparados
para recebê-la, aumentava a confusão, ordenando ataduras, água quente e padiolas para seus
homens feridos. Sir Meliagrance, correndo para cima e para baixo pelas escadas aos gritos de
"Sim, sim, Senh'ra, num minutim" ou "Marian, Marian, onde, diabos, foram parar os candlabros?"
ou "Murdoch, tir'as ovelhas do solário já já já!", arranjou tempo para encostar a testa contra a


pedra fria de um vão da porta, conter seu coração desnorteado, amaldiçoar seu desatino e
desorganizar ainda mais seus planos já desorganizados.

A Rainha foi a primeira a ter suas coisas em ordem. Tinha apenas que organizar os curativos e,
naturalmente, suas necessidades foram as primeiras a serem atendidas. Estava sentada com suas
damas de companhia junto a uma das janelas do castelo, uma espécie de calmaria no meio do
redemoinho, quando uma das moças gritou que alguma coisa se aproximava pela estrada.

— É uma carroça — disse a Rainha. — Deve ter algo a ver com as provisões do castelo.
— Tem um cavaleiro na carroça — disse a moça —, um cavaleiro de armadura. Acho que alguém
o está Levando para ser enforcado.
Naquele tempo, era considerado uma infâmia ser conduzido em uma carroça.

Mais tarde, elas viram que havia um cavalo atrás da carroça — que estava vindo a pleno galope
—, com as rédeas balançando no meio do pó. Mais tarde ainda, ficaram horrorizadas ao ver que
todas as entranhas do cavalo também balançavam no meio do pó. Estava crivado de flechas, como
um porco-espinho, e trotava com um estranho ar de indiferença. Talvez estivesse traumatizado pelo
choque. Era o cavalo de Lancelot, e Lancelot estava na carroça, batendo no pangaré que a conduzia
com a bainha da sua espada. Como esperado, ele caíra na emboscada, perdera algum tempo
tentando pegar seus atacantes — que, correndo por montes e vales, conseguiram escapar do pesado
homem de ferro a pé — e, depois, se pusera a vencer caminhando o resto do caminho, apesar de
sua armadura. Meliagrance contara com a impossibilidade de tal caminhada, para um homem
vestido com um equipamento que podia pesar tanto quanto ele, mas não contara com a carroça que
Lancelot confiscara. Uma medida da ansiedade do grande homem, em relação à Rainha nessa
ocasião, é que dizem que ele fez o cavalo nadar pelo Tâmisa, no começo da corrida, da Ponte de
Westminster até Lambeth, apesar de saber que, se algo desse errado, sua armadura certamente o
teria feito se afogar.

— Como você se atreve a dizer que era um cavaleiro que ia ser enforcado? — exclamou a Rainha.
— Você é muito abusada. Como se atreve a comparar Lancelot com um criminoso?
A infeliz donzela corou e segurou a língua, enquanto Lancelot podia ser visto jogando as rédeas
para o carroceiro aterrorizado, passando enfurecido pela ponte levadiça e gritando a plenos
pulmões.

Sir Meliagrance ouviu a chegada no momento em que Lancelot irrompia pelo Portão Principal. Um
porteiro aturdido, tomado pela surpresa, tentou fechá-lo na sua cara, mas recebeu um golpe da mão
de ferro na orelha, que o nocauteou de vez. O portão se escancarou, sem defesas. Lancelot estava
em uma de suas raras fúrias, possivelmente devido aos sofrimentos do seu cavalo.

Meliagrance, que estava supervisionando alguns de seus homens de armadura que tiravam os
enfeites de madeira do Grande Salão como precaução contra os fogos gregos, perdeu o sangue-frio.
Disparou pelas escadas dos fundos e já estava se ajoelhando aos pés da Rainha, quando Lancelot
vociferou pela portaria, perguntando por ela.

— O que foi agora? — perguntou Guenevere, fitando aquele homem vulgar mas extraordinário,

estatelado a sua frente, com um olhar bastante curioso, não sem afeição. Afinal, é um cumprimento
ser raptada por amor, especialmente quando tudo acaba bem.

— Me rendo, me rendo! — exclamou Sir Meliagrance. — Oh, eu me rendo a vós, ador'da Rainha.
Salvai-me de Sir Lanc'lot!
Guenevere estava radiantemente bela. Possivelmente pela Festa de Maio, ou pelo cumprimento que

o cavaleiro londrino lhe prestara, ou alguma premonição como as que ocorrem às mulheres antes de
ter uma grande alegria. Seja como for, estava sentindo-se feliz, e não tinha ressentimentos contra
seu captor.
— Muito bem — respondeu, alegre e sábia. — Quanto menos barulho houver em relação a isso,
melhor será para minha reputação. Tentarei acalmar Sir Lancelot.
Sir Meliagrance positivamente assobiou de alívio, tão alto foi seu suspiro.

— Exatamente — ele disse. — É o velho galo de briga... a-ham! a-ham! Peço vosso perdão, com
certeza. E pergunto se vossa graciosa majest'de gostará de passar a noite no Castelo Meliagrance,
depois de acalmar Sir Lanc'tot, pelo bem de vossos cavaleiros f ridos?
— Não sei — falou a Rainha.
— Poderiam partir de manhã -— insistiu Sir Meliagrance — e não se falar mais nisso. Ficaria
parecendo u'a visita normal. Seria possível dizer que foi apenas u'a visita.
— Muito bem — respondeu a Rainha, e desceu ao encontro de Lancelot, enquanto Sir Meliagrance
enxugava a testa.
Ele estava no pátio interno, chamando seu inimigo aos gritos. Quando Guenevere o viu, e ele a ela,
a antiga mensagem elétrica passou entre os olhos dos dois antes que pronunciassem uma palavra.
Foi como se Elaine e toda a Busca pelo Graal nunca tivesse ocorrido. Tanto quanto se podia
perceber, ela aceitava a própria derrota. Ele deve ter visto nos olhos dela que ela se rendia, que
estava preparada a deixar que ele fosse ele mesmo — e amar seu Deus, e fazer o que fosse que lhe
apetecesse — desde que continuasse a ser apenas Lancelot. Estava serena e sã outra vez.
Renunciara à sua loucura possessiva e estava radiante por vê-lo vivo, não importa o que fizesse.
Eram jovens criaturas — os mesmos jovens cujos olhos se encontraram com o quase esquecido
clique de magnetos no enfumaçado Salão de Camelot, tanto tempo atrás. E, ao se render com
sinceridade, vencera a batalha sem querer.

— Que confusão é essa? — perguntou a Rainha.
Havia uma harmonia alegre e divertida entre eles. Estavam apaixonados outra vez.
— É o que também me pergunto.
Depois acrescentou com uma voz mais furiosa, e corando:
— Ele matou meu cavalo,
— Obrigada por ter vindo — disse a Rainha. Sua voz era doce. Era a primeira voz da qual ele se
lembrava. — Obrigada por ter vindo tão rápido e tão bravamente. Mas ele se rendeu, e devemos

perdoá-to.

— Foi infame matar meu pobre cavalo.
— Já resolvemos a questão.
— Se eu soubesse que você iria resolver tudo — ele disse, um tanto ciumento —, não teria quase
me matado para chegar até aqui.
A Rainha tomou sua mão mia. Estava sem a manopla.

— Está lamentando por ter feito tudo tão bem? — ela perguntou.
Ele ficou calado.
— Não me importo com ele — ela disse, corando. — Só achei que seria melhor evitar o escândalo,
— Tanto quanto você, também não quero escândalos.
— Você deve fazer como achar melhor — disse a Rainha. — Combata-o, se quiser. É você quem
decide.
Lancelot fitou-a,

— Senhora — ele disse —, que seja feita vossa vontade, é só o que desejo. Quanto a minha parte,
farei como apreciais.
Ele sempre caía na formalidade da Alta Linguagem quando se comovia.


XLIII


Os cavaleiros feridos estavam deitados em padiolas na antecâmara. O quarto interno, onde
Guenevere dormia, tinha uma janela com barras de ferro. Não tinha vidro.

Lancelot reparara em unia escada no jardim, suficientemente comprida para seu propósito — e,
embora não tivessem combinado nada, a Rainha estava esperando. Quando viu o rosto enrugado na
janela, com o nariz inquisitivo contra as estrelas, ela não pensou que poderia ser uma gárgula ou um
demônio. Ficou imóvel alguns minutos, sentindo o sangue turbulento subir-lhe à nuca, depois
dirigiu-se silenciosamente à janela -— com o silêncio de uma cúmplice.

Ninguém sabe o que disseram um ao outro. Malory conta que "fizeram um ao outro as queixas de
muitas e diversas coisas". Provavelmente concordaram que era impossível amar Arthur e, ao
mesmo tempo, enganá-lo. Provavelmente Lancelot a fez, finalmente, compreender sobre seu Deus, e
ela o fez entender sobre os filhos que não teve. Provavelmente, concordaram plenamente em aceitar
que o amor culpado chegara ao fim.

Mais tarde, Sir Lancelot sussurrou:

— Queria poder entrar. — Eu também adoraria.
— Com todo o coração, minha senhora, gostaria mesmo que eu estivesse aí dentro?
— Sinceramente.
A última barra de ferro, quando ele a quebrou, cortou o músculo de sua mão até o osso.

Mais tarde ainda, os sussurros esmoreceram, e fez-se o silêncio na escuridão do quarto.

A Rainha Guenevere ficou muito tempo na cama, na manhã seguinte. Sir Meliagrance, ansioso por
encerrar todo o caso em segurança, o mais breve possível, inquietava-se na antecâmara, desejando
que ela tivesse partido. Entre outras razões, porque não queria prolongar sua própria tortura, tendo
a Rainha sob seu teto, a quem amava e não podia ter.

E por fim, em parte para apressá-la a partir e em parte pela curiosidade incontrolável de
apaixonado, foi até o quarto para acordá-la — um procedimento que era possível naqueles dias de
hospedagem.

— Perdão — disse Sir Meliagrance —, o que a aflige, Senh'ra, para dormir tanto?
Olhava para sua amada perdida na cama, fingindo não o fazer. O sangue da mão cortada de

Lancelot estava por todos os lençóis.

— Traidora!!! — gritou Sir Meliagrance, de repente. — Traidora! A Senh'ra traiu o Rei Arthur!
Estava fora de si de raiva e ciúmes, considerando-se ele mesmo traído. Uma vez que sua própria
tentativa tinha malogrado, ele presumira que a Rainha era uma mulher pura; e que tinha errado ao
procurar divertir-se com ela. Agora, percebia que durante todo o tempo ela o enganara, apenas
fingindo ser demasiado virtuosa para amá-lo, e, enquanto isso, se divertia com seu cavaleiro
ferido, debaixo de seu próprio nariz. Ele tinha chegado à conclusão de que o sangue viera de um
cavaleiro ferido — se não por que ela insistira para que eles ficassem em sua antecâmara? A mais
feroz inveja misturava-se com a raiva. Ele não vira as barras da janela que tinham sido substituídas
tão cuidadosamente quanto possível.

— Traidora! Traidora! Acuso-a de alta traição!
Os gritos de Sir Meliagrance fizeram os cavaleiros feridos coxearem até a porta, a comoção se
alastrou e aias de quarto e criadas, pajens, moços de estrebaria, um par de camareiros, todos
acorreram, excitados, à cena.

— São todos falsos — gritava Sir Meliagrance —, todos ou um. Um cavaleiro f'rido esteve aqui.
Guenevere disse:
— Isso não é verdade. Eles podem prová-lo.
— É uma mentira — gritaram os cavaleiros. — Escolha um de nós com quem lutar. Nós lutaremos
contra você.
— Não, não vão fazer isso, não — gritou Sir Meliagrance. — Deixem de lado a linguagem
orgulhosa. Um cavaleiro f'rido andou dormindo com sua Maj'stade!
Ele continuava apontando para o sangue, que certamente era uma boa prova, até que Sir Lancelot
chegou passando pelos guardas envergonhados. Ninguém notou que sua mão estava enluvada.

— Qual o assunto? — perguntou Lancelot.
Meliagrance começou a contar novamente para ele, com selvageria, gesticulando, tomado de
excitação por ter alguém para contar tudo de novo. Era um homem enlouquecido pela dor.
Lancelot disse friamente:


— Posso lembrar sua própria conduta com a Rainha?
— Não sei o que quer dizer. Não m'importo. Sei que um cavaleiro esteve no quarto a noite p'ssada.
— Cuidada com o que diz.
Lancelot olhou duro para ele, tentando adverti-lo e fazê-lo voltar ao bom senso. Ambos sabiam que
essa acusação teria que terminar num julgamento por combate, e Lancelot queria deixar claro com
quem ele teria de lutar. Sir Meliagrance acabou percebendo isso. Olhou para Lancelot com uma
dignidade inesperada.

— Seja cuidad'so também, Sir Lanc'lot — disse, com calma. — Sei que é o melhor cav'leiro do

mundo, mas cuid'do com a luta n'uma disputa errada. Afinal, Deus pode disp'rar um golpe a favor
da justiça, Sir Lancelot.

O verdadeiro amor da Rainha mordeu os dentes.

— Deixe isso por conta de Deus — disse. E depois acrescentou, bem ameaçador:
— No que me diz respeito, digo simplesmente que nenhum destes cavaleiros feridos esteve no
quarto da Rainha. K se você quiser lutar por isso, eu lutarei.
No final, Lancelot teve de lutar três vezes pela Rainha: primeira, na boa disputa com Sir Mador;
segunda, nessa troca de palavras equívocas com Sir Meliagrance, e a terceira, numa luta que
também era errada — e cada uma dessas lutas os deixou mais próximos da destruição.

Sir Meliagrance jogou sua luva. Estava tão certo da verdade de sua asserção que tinha se tornado
obstinado, como acontece com as pessoas em discussões violentas. Estava preparado para morrer
em vez de se retratar. Lancelot recolheu a luva — o que mais poderia fazer? Todos começaram a
cuidar da parafernália do desafio, colocando os usuais selos com sinetes, e estabelecendo a data e
coisas assim. Sir Meliagrance se acalmou. Agora que estava envolvido na roda da justiça, teve
tempo de refletir e, como é comum, suas reflexões o levaram para outros caminhos. Era um homem
inconsistente.

—-Sir Lancelot — disse ele —, agora que 'stamos acert'dos no duelo, não fará nada traiçoeiro
comigo até lá?

— Claro que não.
Lancelot olhou para ele com espanto genuíno. Seu coração era como o de Arthur, Por subestimar a
maldade do inundo, estava sempre se metendo em problemas — como, por exemplo, ao derrubar oclã das Órcades em Westminsrer.

— Seremos amigos até a b'talha?
O velho guerreiro sentiu mais uma vez seu já habitual aguilhão de culpa. Lutaria contra esse homem
por ele ter dito praticamente a verdade.

— Sim — disse com entusiasmo —, amigos!
E foi em direção a Meliagrance com um assomo de remorsos.
— Então, por enquanto, ficar'mos em paz — disse Meliagrance com voz agradável. — Sem
truques. Gost'ria de ver meu castelo?
— Claro que sim.
Meliagrance o conduziu por todo o castelo, de sala em sala até que chegaram a uma câmara com
uma armadilha. A tábua deslizou e a armadilha se abriu. Lancelot caiu vinte metros, aterrissando
num monte de palha em um calabouço. Então, Meliagrance mandou esconder um dos cavalos e
voltou até a Rainha para lhe dizer que seu campeão tinha partido na frente. O hábito de partidas
abruptas de Lancelot, bem conhecido, deu um colorido à história. Para Meliagrance, esse pareceu o
melhor meio de se assegurar que Deus não escolheria o lado errado nessa luta — já que


Meliagrance estava também com seus padrões enlameados.



XLIV


O segundo julgamento por combate foi tão sensacional quanto tinha sido o primeiro com Mador.
Lancelot chegou no último momento, com uma margem ainda menor. Tinham esperado por ele,
depois desistido e convencido Sir Lavine a lutar em seu lugar. Sir Lavine já estava cavalgando
para a liça quando o grande homem chegou a pleno galope, num cavalo branco que pertencia a
Meliagrance. Tinha ficado preso no calabouço até aquela manhã — quando a moça que lhe levava
comida finalmente o Libertara, na ausência do senhor, em troca de um beijo. Ele tinha sofrido
alguns escrúpulos complicados por causa desse beijo, mas, no final, decidira que era permissível.

Meliagrance foi derrubado na primeira carga, e se recusou a levantar.

— Eu me rendo — disse ele. — 'Stou derrotado.
— Levante-se, levante-se. Você não lutou nada.
— Não Ievant'rei — disse Sir Meliagrance.
Lancelot estava perplexo diante dele. Devia uma surra a Meliagrance por conta do cavalo e pela
traição da armadilha. Mas sabia que a acusação do sujeito era essencialmente correta, e não
gostava da idéia de matá-lo.

— Mis'icórdia — disse Sir Meliagrance,
Lancelot virou os olhos na direção do pavilhão da Rainha, onde ela estava sentada sob a vigilância
da Guarda Real. Ninguém podia perceber esse olhar inquisidor por causa do grande elmo.

Guenevere o viu, entretanto, ou o sentiu em seu coração. Virou o polegar para baixo, por cima da
amurada do camarote, e secretamente o balançou para baixo várias vezes. Meliagrance, pensou ela,
era perigoso demais para ficar vivo.

Houve um grande silêncio na arena, enquanto todos aguardavam de respiração suspensa,
inclinando-se para a frente e olhando os combatentes como um círculo de abutres cuja presa ainda
não morreu. Todos esperavam o coup de grace, como o povo num anfiteatro romano ou numa praça
de touros espanhola, e todos tinham certeza que Lancelot o daria. Na opinião de todos, as
acusações de Meliagrance tinham sido muito mais sérias que as de Mador — e achavam, como
Guenevere, que ele merecia perecer. Pois naqueles dias o amor era governado por convenções


muito diferentes das nossas. Naqueles dias, o amor era cavalheiresco, adulto, longo, religioso,
quase platônico. Não era um assunto sobre o qual pudessem ser feitas acusações ligeiras. Não era,
como acontece hoje, algo que começava e terminava em um fim de semana prolongado.

Os espectadores viram Lancelot hesitar sobre o homem, e depois ouviram sua voz, abafada pelo
elmo. Fazia uma proposta.

— Vou lhe dar vantagens — dizia ele — se você se levantar e lutar adequadamente, até a morte.
Vou tirar meu elmo e toda a armadura do lado esquerdo do meu corpo, e lutarei sem escudo e com
minha mão esquerda atada às costas. Isso vai ser justo, não é? Você vai se levantar e lutar assim
comigo?
Sir Meliagrance soltou uma espécie de guincho histérico e foi se arrastando na direção do camarote
do Rei, gesticulando violentamente.

— Não s'esqueçam do qu'ele disse -— gritava ele. — Todo mundo 'scutou tudo. Eu aceito esses
termos. Não deix'ele voltar atrás. Sem arm'dura do lado esquerdo, sem escudo nem elmo, e a mão
direita amarrada nas costas. Todo mundo 'scutou! Todo mundo 'scutou!
— Parem e obedeçam! — ordenou o Rei.
Os arautos e soldados desceram até a liça, e Meliagrance foi silenciado. Todos se envergonharam
por ele. Numa quietude desagradável, enquanto ele murmurava e insistia na obediência aos termos,
mãos relutantes desarmaram Sir Lancelot e amarraram sua mão. Sentiam-se como se estivessem
participando da execução de alguém muito querido, já que as vantagens dadas ao oponente eram
enormes. Quando terminaram de amarrar sua mão e entregaram sua espada, deram-lhe palmadinhas

— empurrando-o na direção de Meliagrance e virando o rosto para o outro lado.
Houve um relâmpago na liça de areia, como um salmão pulando na correnteza. Era Lancelot
exibindo seu lado desarmado para atrair o golpe. E, quando o golpe veio, aconteceu um clique de
formas que se transformavam -— o mesmo clique que acontece quando um caleidoscópio altera as
imagens. O golpe que Meliagrance estava dando transformou-se no golpe que Lancelot desferia.

Sir Meliagrance foi arrastado da liça pelos cavalos. Seu elmo e sua cabeça estavam partidos em
dois.


XLV


Bem, esta é a longa história de como o estrangeiro de Benwick roubou o amor da Rainha
Guenevere, como a abandonou por seu Deus e, finalmente, regressou, a despeito do tabu. Ê uma
história de amor dos velhos tempos, quando os adultos amavam fielmente — e não uma história do
presente, na qual adolescentes perseguem os espasmos ignóbeis das telas do cinema. Por um quarto
de século, essas pessoas tinham lutado para alcançar a compreensão mútua, e agora tinham apenas

o pálido outono diante de si. Lancelot dera seu Deus a Guenevere, e ela tinha dado a própria
liberdade dele em troca. Elaine, que jamais fora mais que uma parte acidental da confusão, tinha
alcançado sua própria paz. Arthur, cuja ponta do triângulo era a menos afortunada de um ponto de
vista pessoal, não fora inteiramente infeliz. Merlin não o destinara à felicidade particular. Ele fora
talhado para as alegrias de um rei, para as fortunas de uma nação. Estas, no momento de seu pôrdo-
sol, as duas vitórias sensacionais de Lancelot tinham restaurado. Moda e modernismo, que
apodreciam o coração da Távola, estavam em rota de fuga, e sua grande idéia mais uma vez
marchava em frente. Ele estava inventando a Lei como Poder. Tampouco lhe estavam reservados
remorsos privados. Arthur tinha se mantido distante das dores de Guenevere e Lancelot,
inconscientemente confiando que ambos não o tornassem consciente disso, não por medo ou débil
conivência, mas pelo mais nobre dos motivos. O poder estava nas mãos do Rei. Ele estava na
posição do marido que podia, com uma única ordem, resolver o problema desses triângulos
eternos, recorrendo ao cepo do carrasco ou ao pelourinho. Sua mulher e seu amante tinham estado à
sua mercê — e essa foi a razão, não qualquer motivo covarde, pela qual seu generoso coração tinha
se determinado a permanecer inconsciente.
O outono estava se aproximando, as fofocas estavam silenciadas e a descortesia erradicada. Afacção das Órcades só podia resmungar uma queixa distante e quase subterrânea. No escriptorium
das abadias, e nos castelos dos grandes nobres, os inofensivos escribas rascunhavam Missais e
Tratados de Cavalaria, enquanto os iluministas embelezavam as letras maiúsculas e desenhavam
cuidadosamente brasões de armas. Os ourives e prateiros martelavam, com pequenos martelos, as
folhas de ouro. Torciam fios de ouro e marcheteavam com incrível complexidade os crucifixos dos
bispos. Belas damas mantinham tordos e pardais como animais de estimação, ou se esforçavam ao
máximo para ensinar suas pegas a falar. Donas de casa previdentes enchiam seus armários de
ungüentos como remédios para o mau ar, e poções caseiras chamadas Fios Unguentorum para o


reumatismo, e bolas de almíscar para cheirar. Preparavam-se para a Quaresma comprando tâmaras,
gengibre e arenques, um carregamento por tostões. Falcoeiros de aves grandes e pequenas
abusavam a mais não poder das aves uns dos outros. Nas novas cortes de lei — já que a Force
Majeur tinha acabado — os advogados se atarefavam como abelhas, escrevendo mandados e
citações, embargos e recursos, acordos e contestações, quid pro quo, jus prima noctis, quorum
bonorum, sic et nom, pro et contra, quid júris? Ladrões — é certo — podiam ser enforcados por
roubar bens insignificantes, pois a codificação da Justiça ainda era fraca e confusa, mas a coisa não
era tão ruim quanto se pensa, pois com um tostão se podia comprar dois gansos ou um galão de
vinho ou quarenta e oito pães — o que era sempre uma carga pesada para os ladrões. Nas veredas
dos campos, os simples namorados, que não eram fidalgos, caminhavam ao pôr-do-sol com os
braços nas cinturas uns dos outros, dando a impressão de um X maiúsculo quando vistos por trás.

A Gramarye de Arthur estava em paz, e as alegrias da paz se estendiam diante de Lancelot e
Guenevere. Mas restava uma outra parte do quebra-cabeça.

Deus era o totem de Lancelot. Era a outra pessoa de sua batalha e, agora, Ele escolhera o momento
final para se meter no caminho. O rapaz que olhava no bacinete, e que sonhara com a água do poço
que sempre lhe escapava dos lábios, tinha acalentado a ambição de fazer algum milagre. Por ser o
melhor cavaleiro do mundo, ele conseguiu fazer um tipo de milagre quando resgatou Elaine da água
fervente — antes de ter caído em sua armadilha naquela noite terrível na qual quebrou seu tabu. Por
um quarto de século lembrara-se daquela noite com pesar, e isso esteve com ele durante toda a
Busca do Graal. Antes disso, considerava-se um homem de Deus. Desde então, achava-se uma
fraude. Agora, finalmente chegara o momento em que seria forçado a enfrentar seu destino.

Havia, na Hungria, um cavaleiro chamado Sir Urre, que fora ferido em um torneio sete anos antes.
Lutara com um homem chamado Sir Alphagus, o quai matou depois de receber esses ferimentos —
três deles na cabeça, quatro no corpo e um na mão esquerda. A mãe do falecido Alphagus era uma
feiticeira espanhola, e lançou um encanto sobre Sir Urre da Hungria para que nenhuma das suas
feridas chegasse realmente a se fechar. Elas sangrariam, uma de cada vez, até que o melhor
cavaleiro do mundo cuidasse delas e as curasse com suas próprias mãos.

Há muito, Sir Urre da Hungria era levado de país a país — talvez fosse uma espécie de hemofilia
—, procurando o melhor cavaleiro capaz de ajudá-lo. Finalmente, enfrentara o canal para chegar
àquele país estrangeiro do Norte. Todos tinham lhe dito, em todos os lugares, que sua única chance
era Lancelot, e finalmente ele viera procurá-lo.

Arthur, que sempre pensava o melhor de todos, tinha certeza que Lance seria capaz disso — mas
achou justo que todos os cavaleiros da Távola tivessem a chance de tentar. Podia haver uma
excelência escondida em algum lugar, como já acontecera antes.

A Corte estava em Carslisle na época, para a festa de Pentecostes, e foi arranjado para que todos
se encontrassem no prado da cidade. Sir Urre foi levado para lá em uma liteira e deitado em uma
almofada bordada a ouro, para que se começassem as tentativas de cura. Cento e dez cavaleiros —
quarenta estavam em buscas — perfilaram-se em ordem, com suas melhores roupas, e havia tapetes
estendidos e tendas armadas para que as grandes damas observassem. Arthur amava tanto seu
Lancelot que havia providenciado um cenário esplêndido para que sua maior realização pudesse


ser feita.

Este é o final do livro de Sir Lancelot, e agora o veremos aqui pela última vez. Ele estava
escondido na sala de arreios do castelo, de onde podia observar o campo. Havia muitas rédeas de
couro, penduradas em ordem entre as selas e os brilhantes freios de cavalos. Ele notara que eram
fortes o suficiente para agüentar seu peso. Estava esperando ali, escondido, rezando para que
alguém — talvez Gareth — fosse capaz de fazer rapidamente o milagre. Ou, se não, que se
esquecessem dele, que sua ausência não fosse notada.

Você acha que é fácil ser o melhor cavaleiro do mundo? Pense, então, em como teria que defender

o título. Pense nas provas, provas repetidas sem remorsos, escandalosamente preparadas, que
seriam aplicadas dia após dia — até o último e infalível dia em que você fracassaria. Pense
também que você sabia de uma boa razão para fracassar, que tinha tentado esconder, tentado
pateticamente esconder e passar por cima, durante vinte e cinco anos. Pense que agora você teria
que estar diante da maior e mais honrosa galeria que poderia existir para fazer uma demonstração
pública do seu pecado. Todos esperam seu sucesso, e você fracassará: anunciará a fraude que
praticou por um quarto de século, e todos saberão imediatamente a razão disso — aquela causa da
vergonha que você procurou esconder de sua própria mente, e que, quando se intrometia por conta
própria no silêncio de seu quarto vazio, obrigava-o a mover fisicamente a cabeça como para se
livrar dela. Milagres, que você queria tanto fazer há tanto tempo, só podem ser feitos pelos puros
de coração. O povo lá fora está esperando que você raça esse milagre porque você jogou, fazendo-
o crer que seu coração era puro — e agora, com traição, adultério e assassinato apertando seu
coração como uma mordaça, você terá de ir lá fora para o teste de honra.
Lancelot, na sala de arreios, estava branco como um lençol. Guenevere estava lá fora, ele sabia, e
ela também estava pálida. Ele torceu os dedos e olhou para as rédeas fortes, e rezou da melhor
maneira que pôde.

— Sir Servause Le Breuse! — gritaram os arautos, e Sir Servause se adiantou, um cavaleiro bem
abaixo na lista de competidores. Era um homem tímido, interessado apenas em história natural, e
que jamais lutara com alguém em toda sua vida. Dirigiu-se a Sir Urre, ajoelhou-se e fez o melhor
que podia.
— Sir Ozanna le Cure Hardy!
E por aí prosseguiram, com toda a lista dos cento e dez, cujos belos nomes são declarados por
Malory na ordem adequada, de tal maneira que você quase pode ver o belo corte das cotas de
malha, as pinturas dos brasões e o alegre colorido de cada penacho. Os elmos emplumados faziam
com que parecessem guerreiros índios. As chapas dos seus sapatões de ferro tiniam quando eles
caminhavam, fazendo soar as esporas. Eles se ajoelhavam, Sir Urre estremecia, e não adiantava
nada.

Lancelot não se enforcou com as rédeas. Tinha quebrado seu tabu, enganado seu amigo, voltara
para Guenevere e assassinara Sir Meliagrance em uma luta errada. Agora estava pronto para
receber sua punição. Atravessou a longa avenida de cavaleiros que esperavam ao sol. Com a
própria tentativa de fuga, ele atraíra para si a preeminência de ser o último. Caminhou entre as


fileiras curiosas, feio como sempre, autoconsciente, envergonhado, um veterano pronto para ser
quebrado. Mordred e Agravaine avançaram.

Quando Lancelot estava se ajoelhando diante de Urre, disse para o Rei Arthur:

— Será necessário que eu faça isso, quando todos os demais já falharam?
— É claro que você deve fazer isso. Eu lhe ordeno que faça.
— Já que me ordena, devo fazê-lo, Mas seria presunção tentar depois de todos. Não posso ser
dispensado?
— Você está tomando a coisa pelo fado errado — disse o Rei. — É claro que não é presunção sua
tentar. Se você não conseguir, ninguém conseguirá.
Sir Urre, que já estava muito fraco, levantou-se apoiado no cotovelo.

— Por favor — disse ele. — Vim para que você tentasse.
Lancelot tinha lágrimas nos olhos.
— Oh, Sir Urre — disse ele. — Se eu pudesse ajudá-lo, o faria com a maior vontade. Mas você
não compreende, você não compreende.
— Pelo amor de Deus — disse Sir Urre.
Lancelot olhou para o leste, onde achava que era a morada de Deus, e disse algo mentalmente. Era
mais ou menos assim: "Não quero glória, mas, por favor, pode salvar nossa honestidade? E se
curar este cavaleiro pelo bem do cavaleiro, por favor, faça-o". E depois pediu a Sir Urre que lhe
mostrasse a cabeça.

Guenevere que, como uma águia, observava do seu pavilhão, viu os dois homens se mexendo.
Depois via um movimento nas pessoas próximas, e um murmúrio subindo, depois gritos.
Cavalheiros começaram a jogar as capas para o ar, gritando e apertando as mãos. Arthur estava
gritando as mesmas palavras uma e outra vez, segurando o grosseiro Gawaine pelo ombro e falando
nos seus ouvidos:

— Fechou como se fosse uma caixa! Fechou como se fosse uma caixa!
Alguns cavaleiros mais idosos dançavam batendo seus escudos um contra o outro, como se
estivessem em um jogo, e cutucando as costelas uns dos outros. Muitos dos escudeiros riam como
loucos batendo nas costas uns dos outros. Sir Bors beijou o Rei Anguish da Irlanda, que não gostou
daquilo. Sir Galahad, o príncipe altaneiro, tinha tropeçado na bainha da espada e caído. O
generoso Sir Belleus, que não tinha mágoas por ter tido seu fígado cortado naquela distante noite
junto ao pavilhão de seda vermelha, fazia um barulho terrível soprando uma folha de grama de lado
entre seus dedos. Sir Bedivere, terrivelmente arrependido desde sua visita ao Papa, sacudia alguns
ossos que trouxera como recordação da peregrinação: neles estava escrito em letras rebuscadas
"Um presente de Roma". Sir Bliant, lembrando-se do seu gentil Selvagem, abraçava Sir Castor, que
jamais esquecera a repreensão cavaleira do Chevalier. O gentil e sensível Aglovale, que tinha
perdoado a disputa dos Pellinore, trocava calorosos abraços com o belo Gareth. Mordred e
Agravaine franziam as sobrancelhas. Sir Mador, vermelho como um peru, fazia as pazes com Sir


Pinel, o envenenador, que voltara incógnito. Rei Pelles prometia uma capa nova para todos os que
estavam perto dele. Tio Dap, de cabelos nevados, velho a ponto de ser absolutamente fabuloso,
tentava saltar com sua bengala. As tendas estavam sendo desmontadas, as bandeiras tremulavam.
Os vivas que agora começavam, rodada atrás de rodada, pareciam tiros de canhão ou trovoadas,
rolando sobre as torres de Carlisle. Todo o campo, e todas as pessoas no campo, e todas as torres
do castelo pareciam estar pulando para cima e para baixo como a superfície de um lago sob a
chuva.

No meio de tudo, quase esquecido, seu amante estava ajoelhado, sozinho. Aquela figura solitária e
imóvel sabia um segredo escondido dos demais. O milagre foi lhe ter sido permitido fazer um
milagre. "E para sempre — diz Malory — sir Lancelot chorou, como se fosse uma criança que
acabara de ser castigada."


Personagens Deste volume


Variações em torno da traição e da basca


Lancelot — Leia na seção "Os protagonistas".

Guenevere — Idem.

Elaine — Mãe de Galahad e a moça que, ao enganar Lancelot, consegue seduzi-lo e dormir com
ele. Embora muito jovem, Elaine é astuta e determinada o bastante para fazer tudo o que pode para
ganhar o amor de Lancelot. Com exceção dos dois momentos em que convence Lancelot a ficar com
ela, Elaine é uma mulher infeliz, pois sabe que ele ama Guenevere.

Galahad — Filho de Lancelot e Elaine. É moralmente perfeito e invencível, e o único cavaleiro
sagrado o bastante para encontrar o Santo Graal. Galahad é tão perfeito que muitas vezes se parece
mais com um anjo do que com um ser humano. Talvez por isso, nem todos os cavaleiros do Rei
Arthur simpatizam com ele.

Tio Dap — Instrutor de Lancelot durante sua infância. Embora seja o irmão dos reis, Tio Dap é o
escudeiro de Lancelot quando este torna-se cavaleiro da Távola Redonda.

O Santo Graal — Cálice usado por Jesus Cristo na Última Ceia, e que representa um poder
sobrenatural que mesmo os cavaleiros do Rei Arthur são incapazes de alcançar. Encontrar o Graal
requer, além da bravura de um cavaleiro, pureza da mente e do espírito, o que se mostra quase
contraditório aos ideais da cavalaria. O Santo Graal, portanto, simboliza tudo o que Arthur não
conseguiu conquistar. Essa revelação de que a Inglaterra de Arthur está longe de um estado de
graça também marca o começo do declínio de seu reino.


O Eterno e Futuro Rei 04
A CHAMA AO VENTO



Título original: The Cande in the Wind
1958 by T. H. White


INCIPIT LIBER QUARTUS


Ele pensou um pouco e disse:
Descobri que o Jardim Zoológico é de muita valia para meus
pacientes. Eu deveria receitar para o Sr. Pontifax uma série de visitas
aos grandes mamíferos. Não o deixem pensar que é para fins
medicinais...



I


O passar dos anos não foi amável com Agravaine. Mesmo quando tinha quarenta, ele parecia ter já
sua idade atual, que era cinqüenta e cinco. Raramente estava sóbrio.

Mordred, um frio fiapo de homem, parecia não ter idade. Seus anos eram indefiníveis, tal como a
profundidade de seus olhos azuis e as inflexões de sua voz musical.

Os dois estavam nos claustros do palácio do clã das Órcades em Camelot, observando os falcões
pousados nos seus poleiros ao sol, no pátio verde. Os claustros tinham os vistosos arcos agora na
moda, em cujas arcadas graciosas os falcões pousavam com nobre indiferença — um falcão
peregrino, um açor, uma falcoa e seu macho, e quatro pequenos esmerilhões que tinham passado
presos todo o inverno e, no entanto, tinham sobrevivido. Os poleiros estavam limpos — pois os
esportistas daquela época consideravam que, se você gostasse de praticar esportes sangrentos, era
seu dever esconder os vestígios de bestialidade com escrupulosos cuidados. Todos estavam
belamente ornamentados com couro espanhol escarlate e adereços de ouro. Os caparões dos
falcões eram feitos com trancas de couro de cavalo branco. O peregrino tinha um caparão
totalmente branco como a neve e peias cortadas de autêntico couro de unicórnio, como tributo de
seu status. O peregrino fora trazido diretamente da Islândia, e isso era o mínimo que podiam fazer
por ele. Mordred disse alegremente:

— Por Deus, vamos sair daqui. Este lugar fede.
Quando ele falou, os falcões moveram-se ligeiramente, fazendo suas campainhas tocar como um
murmúrio. As campainhas tinham vindo das índias, sem considerar as despesas, e o par usado pelo
peregrino era feito de prata. Uma enorme coruja-águia, que às vezes era usada como chamariz, mas
que no momento estava pousada num poleiro na sombra do claustro, abriu os olhos quando as
campainhas tocaram. Antes de abri-los, podia ser confundida com uma coruja empalhada, um
desalinhado monte de penas. Mas no momento em que os abria, virava uma criatura de Edgar Allan
Poe. Era difícil olhar direto neles. Eram olhos vermelhos, homicidas, terríveis, parecendo
realmente emitir luz. Eram como rubis cheios de chama. Seu nome era Grão-Duque.

— Não sinto fedor nenhum — disse Agravaine. Farejou suspeitosamente, tentando cheirar. Mas seu
palato tinha desaparecido, tanto para cheiro quanto para gosto, e estava com dor de cabeça.
— Fede a Esporte — disse Mordred, fazendo sinal de aspas —, a Feitos e aos Melhores. Vamos
para o jardim.

Agravaine voltou com teimosia ao assunto que estavam discutindo antes.

— Não adianta fazer barulho por causa disso — disse. — Sabemos o que é certo e o que é errado,
mas ninguém mais sabe. Ninguém escutaria.
— Mas precisam escutar.
Pequenas manchas na íris dos olhos de Mordred queimavam com uma luz turquesa, tão brilhantes
quanto os da coruja. Em vez de ser um sujeito vaidoso com o ombro torto, vestido com roupas
extravagantes, havia se transformado numa Causa. Nesse aspecto, tornou-se tudo o que Arthur não
era — o opositor irreconciliável do inglês. Tornou-se o Gaélico invencível, rebento de raças
desesperadas mais antigas que a de Arthur, e mais sutis. Agora, quando inflamava-se com sua
Causa, a justiça de Arthur parecia bourgeoese e obtusa ao extremo. Parecia não passar de estúpida
complacência, em comparação com a selvageria e a vontade feroz dos Pictos. Seus ancestrais
maternos transpareciam em seu rosto quando tratava Arthur com desprezo — ancestrais cuja
civilização, como a de Mordred, era matriarcal: tinham cavalgado em pêlo, atacado em charretes,
lutado com estratagemas e ornamentado suas horríveis fortalezas com cabeças de inimigos.
Marcharam, cabelos longos e ferozes, como nos conta um escritor antigo, "espada nas mãos, contra
rios transbordantes ou oceano tempestuoso". Eram a raça, hoje representada mais pelo Exército
Republicano Irlandês (IRA) que pelos nacionalistas escoceses, que sempre tinha assassinado os
grandes proprietários rurais e os culpado de serem assassinados — a raça que podia fazer de um
homem como Lynchahaun um herói nacional, por ter arrancado o nariz de uma mulher com uma
dentada, sendo ela uma Gaulesa —, a raça que fora expelida pelo vulcão da história para os
lugares mais longínquos do globo, onde, com um rancoroso sentimento de injustiça e inferioridade,
até hoje proclama sua antiga megalomania. Eram os católicos capazes de imediatamente cair em
cima de qualquer papa ou santo — Adriano, Alexandre ou São Jerônimo — se as políticas dos
santos não se adequassem às suas conveniências: os defensores histericamente suscetíveis, infelizes
e enfraquecidos de uma herança arruinada. Eram a raça cuja rebeldia bárbara, astuta e valorosa
fora escravizada, séculos atrás, pelos povos estrangeiros representados por Arthur. Essa era uma
das barreiras entre o pai e seu filho. Agravaine disse:

— Mordred, quero conversar. Parece que aqui não há onde possamos sentar. Sente-se aí nessa
coisa que eu sento aqui. Ninguém poderá nos escutar.
— Não me importo se escutam ou não. Isso é o que queremos. Deve ser dito alto, e não murmurado
nos claustros.
— No final, os sussurros chegarão lá.
— Não, não chegarão. Isso é o que não vai acontecer. Ele não quer escutar, e enquanto
sussurrarmos, ele pode continuar fingindo que não escuta. Não se é Rei da Inglaterra por todos
esses anos sem saber usar da hipocrisia.
Agravaine estava desconfortável. Seu ódio pelo Rei não era algo real como o de Mordred — na
verdade, tinha poucos sentimentos pessoais contra qualquer um, exceto Lancelot. Sua atitude era
mais de maldade à solta.

— Acho que não adianta se queixar sobre o que aconteceu no passado — disse sombriamente. —


Não podemos esperar que outras pessoas se aliem a nós quando tudo é complicado e aconteceu há
tanto tempo.

— Pode ter acontecido há muito tempo, mas isso não altera o fato de que Arthur é meu pai, e que
me deixou num barco à deriva quando eu era bebê.
— Pode não alterar para você — disse Agravaine —, mas altera para outras pessoas. É uma
confusão tão grande que ninguém se importa. Você não pode esperar que pessoas comuns se
lembrem de avôs e meias-irmãs e coisas desse tipo. De qualquer maneira, atualmente os seres
humanos não saem para a guerra por conta de brigas particulares. E preciso um agravo nacional, —
algo que tenha a ver com política e que esteja prestes a explodir. É preciso usar as ferramentas que
já estão à mão. Esse sujeito, John Bali, por exemplo, que acredita em comunismo: tem milhares de
seguidores que estariam prontos para ajudar em caso de distúrbios por seus próprios objetivos. Ou
então os Saxões. Poderíamos dizer que somos favoráveis ao movimento nacional. E nesse caso,
podemos até juntar todos eles e chamar tudo de comunismo nacional. Mas tem que ser algo amplo e
popular, que todos possam sentir. Tem que ser contra um grande número de pessoas, como os
Judeus ou os Normandos ou os Saxões, para que todos possam ficar zangados. Nós podemos ou ser
líderes dos Antigos, que procuram justiça contra os Saxões; ou dos Saxões contra os Normandos;
ou dos servos contra a sociedade. Queremos uma bandeira, sim, e também um símbolo. Podemos
usar a Suástica. Comunismo, nacionalismo, qualquer coisa assim. Mas como uma queixa particular
contra o velho, é inútil. De qualquer maneira, você ia ter que gastar meia hora só para começar a
explicar isso, mesmo se começasse a gritar do alto dos telhados.
— Posso gritar que minha mãe era irmã dele, e que ele tentou me afogar por causa disso.
— Se você quiser — disse Agravaine.
Antes de a coruja despertar, eles estavam conversando sobre as antigas queixas da família — sobre
a avó, Igraine, que fora maltratada pelo pai de Arthur —, sobre a antiga e desaparecida disputa
entre os gaélicos e os gauleses, que escutaram de sua ama na velha Dunlothian. Eram essas
injustiças que o sangue mais frio de Agravaine reconhecia como demasiado antigas e confusas para
servir de arma contra o Rei. Agora tinham chegado a uma queixa mais recente: o pecado de Arthur
com sua meia-irmã que terminara com uma tentativa de assassinar o bastardo que daí nasceu. Isso
certamente poderia ser uma arma mais forte, mas o problema é que Mordred era ele mesmo o
bastardo. A covardia do irmão mais velho lhe alertara, com sua mente mais esperta, que um filho
dificilmente poderia levantar sua ilegitimidade como bandeira para derrubar o pai. Além disso, o
assunto fora abafado por Arthur há muito tempo. Parecia má política que fosse Mordred o único a
levantá-lo.

Estavam sentados em silêncio, olhando para o chão. Agravaine estava fora de forma, com bolsas
sob os olhos. Mordred, esbelto como sempre, era uma figura elegante, no auge da moda. Os
exageros de sua roupa lhe proporcionavam uma boa camuflagem, sob a qual mal se notava seu
ombro defeituoso. Ele disse:

— Não sou orgulhoso.
Olhou com amargura para seu meio-irmão, colocando mais significado no olhar do que o outro

podia perceber. Dizia com os olhos: "Veja meu aleijão, então. Não tenho razão para ter orgulho do
meu nascimento".

Agravaine levantou-se, impaciente.

— De qualquer forma, tenho que tomar um trago — disse, batendo palmas para chamar o pajem.
Depois passou os dedos que tremiam sobre as pálpebras e ficou parado, entediado, olhando a
coruja com desprazer. Mordred, enquanto esperavam a bebida, observava-o com desprezo.
— Se você remexer na velha sujeira — disse Agravaine, reanimado com o hipocraz — acaba sujo.
Não estamos em Lothian, não se esqueça disso. Estamos na Inglaterra de Arthur, e os ingleses o
amam. Eles ou vão se recusar a acreditar em você ou, se acreditarem, vão pôr a culpa em você, enão nele, porque foi você quem levantou o assunto. É certo que nem um único homem se rebelaria
por isso.
Mordred olhou para ele. Estava odiando-o, como à coruja — condenando-o como covarde. Não
suportava ser frustrado em seu devaneio de vingança, e então descarregava mentalmente seu
despeito em Agravaine, dizendo para si mesmo que o meio-irmão era um bêbado traidor da família.

Agravaine percebeu isso e, já consolado com meia garrafa, riu na cara dele. Deu uma palmadinha
em seu ombro bom, forçando o jovem a encher sua taça.

— Beba — disse ele, rindo entre dentes. Mordred bebeu como um gato sendo envenenado.
— Já ouviu falar — perguntou Agravaine, divertido — de um santo poderoso chamado Lancelot?
Piscou um dos olhos empapuçados, olhando por cima do nariz com benevolência.
— Vá em frente.
— Suponho que já ouviu falar do nosso preux chevalier.
— Claro que conheço Sir Lancelot.
— Acho que não estou errado quando digo que esse puro cavaleiro já nos deu uma ou duas boas
quedas, estou?
— A primeira vez que Lancelot me desmontou — disse Mordred — foi há tanto tempo que mal
consigo me lembrar. Mas isso não quer dizer nada. Um homem pode derrubar você do cavalo com
uma vara, mas isso não quer dizer que seja melhor que você.
Era algo estranho — agora que Lancelot fora metido na conversa — que os sentimentos vividos de
Mordred se transformassem em indiferença. Mas Agravaine, que antes estivera relutante, tornou-se
fluente.

— Precisamente — disse. —E nosso nobre cavaleiro foi amante da Rainha da Inglaterra durante
todo esse tempo.
— Todo mundo sabe que Gwen é amante de Lancelot desde antes do dilúvio, mas o que adianta
isso? O próprio Rei sabe disso. Que eu saiba com certeza, já lhe contaram três vezes. Não vejo o
que podemos fazer a esse respeito.
Agravaine pousou o dedo ao lado do nariz, como um gaiteiro bêbado, e depois o apontou para o


irmão.

— Contaram para ele mas com rodeios — anunciou. — Pessoas lhe enviaram insinuações, como
escudos com brasões com duplo sentido, ou cornos nos quais somente esposas fiéis podiam beber.
Mas ninguém jamais lhe disse isso abertamente, cara a cara. Meliagrance só fez uma acusação
geral, e mesmo isso na época dos julgamentos por combate. Pense no que aconteceria se
denunciássemos Lancelot pessoalmente, sob essas Leis recém-promulgadas, de forma que o Rei
fosse forçado a investigar.
Os olhos de Mordred abriram-se, tal como acontecera com os da coruja.

— Então?
— Acho que não aconteceria nada além de um rompimento. Arthur depende de Lancelot como seucomandante e chefe de suas tropas. É daí que vem seu poder, já que todo mundo sabe que ninguém
pode resistir à força bruta. Mas se pudéssemos arranjar um desentendimento pequeno entre Arthur e
Lancelot por causa da Rainha, o poder deles se dividiria. Então seria o tempo de fazer política.
Então seria o tempo das pessoas descontentes, os Lollardos e Comunistas e Nacionalistas e toda a
plebe. Então, seria o momento da sua famosa vingança.
— Poderíamos quebrá-los, pois estariam divididos.
— Significa ainda mais do que isso.
— Significa que os da Cornualha estariam quites por conta do avô e eu por conta da mãe...
— ... não usando força contra força, mas usando nossos cérebros.
— Significa que eu poderia me vingar do homem que tentou me afogar quando eu era um bebê...
— ... indo primeiro atrás do valentão, e depois sendo um pouco cuidadoso.
— Atrás do nosso famoso Falso Amigo...
— ... Sir Lancelot.
A questão era, e talvez valha a pena recordar tudo pela última vez, que o pai de Arthur tinha
assassinado o Duque da Cornualha.

Tinha matado o sujeito porque queria desfrutar de sua esposa. Na noite do assassinato do Duque,
Arthur foi concebido dentro da infeliz condessa. Tendo nascido cedo demais para as variadas
convenções de luto, casamento e coisas assim, foi secretamente entregue a Sir Ector da Floresta
Sauvage, que o criou. Crescera ignorando quem eram seus pais até que, quando era um jovem de
dezenove primaveras, caíra de amores por Morgause, sem saber que ela era uma de suas meias-
irmãs, filha da Condessa e do Duque assassinado. Essa meia-irmã, já mãe de Gawaine, Agravaine,
Gaheris e Gareth, tinha o dobro da idade do jovem Rei — e teve sucesso em seduzi-lo. O resultado
dessa união foi Mordred, que cresceu só com sua mãe, nas remotas e bárbaras Ilhas Exteriores.
Fora criado só por Morgause porque era muito mais novo que o resto da família. Os outros já
haviam fugido para a corte do Rei — forçados a isso pela ambição, pois era a maior corte do
mundo, ou então para escapar da mãe. Mordred foi deixado para ser dominado por ela, com seu
ressentimento ancestral contra o Rei e seu despeito pessoal, pois, embora ela tivesse conseguido


seduzir o jovem Arthur, este lhe escapara, para se estabelecer com Guenevere como esposa.
Morgause, remoendo no Norte com o único filho que lhe restava, concentrara seus poderes
maternais sobre o jovem aleijado. Ela o amara e o esquecera por turnos, uma carnívora insaciável
que vivia da afeição de seus cães, seus filhos e seus amantes. Finalmente, um dos outros filhos
cortou sua cabeça num acesso de ciúmes, ao descobri-la na cama, aos setenta anos de idade, com
um jovem chamado Sir Lamorak. Mordred, confuso entre os amores e ódios desse lar assustador,
tinha, na época, participado desse assassinato. Agora, na corte do pai que fora suficientemente
gentil para esconder a história de seu nascimento, o desgraçado filho viu-se como irmão
reconhecido de Gawaine, Agravaine, Gaheris e Gareth, viu-se tratado amorosamente pelo Rei-pai
que sua mãe ensinara a odiar com todo coração, viu-se deformado, inteligente, crítico, numa
civilização que era direta demais para permitir a pura crítica intelectual, e se viu, finalmente, como

o herdeiro de uma cultura do Norte que sempre fora antagônica da moral grosseira do Sul.

II


O pajem que trouxera o hipocraz para Sir Agravaine entrou pela porta do claustro. Inclinou-se duas
vezes, com a exagerada cortesia que se esperava dos pajens antes que se tornassem escudeiros a
caminho de se tornarem cavaleiros, e anunciou:

— Sir Gawaine, Sir Gaheris, Sir Gareth.
Os três irmãos o seguiram, excitados pelas recentes façanhas e práticas ao ar livre, e agora o clã
estava completo. Todos eles, exceto Mordred, tinham esposas enfiadas em algum lugar — mas
ninguém jamais as via. Poucos viam os irmãos separados por muito tempo. Havia algo infantil
neles, quando estavam juntos, que na verdade era atraente, em vez do contrário. Talvez todos os
paladinos da história de Arthur tivessem algo de infantil — se considerarmos simplicidade
infantilidade.

Gawaine, que era o chefe da família, entrou primeiro, com um falcão com sua plumagem juvenil no
punho. O tipo corpulento tinha agora alguns fios brancos no meio da cabeleira vermelha. Por sobre
as orelhas eram amarelados, da cor das doninhas, e logo ficariam brancos. Gaheris se parecia com
ele, ou pelo menos era mais parecido com ele que os demais. Só que era uma cópia mais suave,
nem tão ruivo, nem tão forte — nem tão obstinado. Na verdade, era um pouco tolo. Gareth, o mais
jovem dos que eram irmãos de pai e mãe, mantivera os traços de sua juventude. Caminhava com
uma mola nos pés, como se desfrutasse estar vivo.

— Ora! — exclamou da porta a voz rouca de Gawaine. — Já bebendo?
Ele ainda mantinha o sotaque bizarro como desafio ao inglês simples, mas deixara de pensar em
gaélico. Seu inglês tinha melhorado contra sua vontade. Estava ficando velho.

— Saúde, Gawaine, saúde!
Agravaine, que sabia que suas bebidinhas antes do meio-dia eram desaprovadas, perguntou
educadamente:

— Tiveram um bom dia?
— Nã foi tã mau.

— Foi um dia esplêndido — exclamou Gareth. — Iniciamos a falcoa no haut vollay com o
passager{18} de Lancelot, e ela ficou realmente bem treinada. Nunca pensei que conseguisse isso
sem um tratador! Gawaine controlou perfeitamente a ave. Ela emparelhou sem um segundo de
hesitação, como se tivesse sempre voado atrás de uma garça, deu uma bela volta por cima dos
montes de feno perto de Castle Blanc, e voou por cima pelo lado dos peregrinos, no caminho de
Ganis. El…
Gawaine, que notara o bocejo proposital de Mordred, disse:

— Pode poupar seu bafo.
— Foi um belo vôo — Gareth concluiu, desalentado. — E como agarrou sua presa, pensamos que
podíamos lhe dar um nome.
— E que nome escolheram? — perguntaram os dois com condescendência.
— Já que ela vem de Lundy, que começa com L, achamos que seria uma boa idéia dar-lhe um nome
derivado de Lancelot. Pode ser Lancelotta ou algo assim. Vai ser uma falcoa de primeira classe.
Agravaine olhou para Gareth por baixo das sobrancelhas e disse, pausadamente:

— Então é melhor chamá-la de Gwen.
Gawaine voltou do pátio, onde fora deixar a peregrina em seu poleiro.
— Deix'isso pra lá — disse.
— Sinto muito por estar dizendo a verdade.
— Pouco m'mporta a verdade. Só digo assim, feche a matraca.
— Gawaine — disse Mordred para o ar — é tão bom preux chevalier que ninguém pode dizer
maldades na sua frente se não terá problemas. Vejam só, é tão forte que imita o grande Sir Lancelot.
O ruivo voltou-se para ele com dignidade.

— Nã sou tã forte, irmão, e nã mi gabo disso. Só quero qui mi povo seja decente.
— E claro que é decente dormir com a esposa do Rei — disse Agravaine —, mesmo que a família
do Rei tenha esmagado a nossa família e tenha tido um filho com nossa mãe, que depois tentou
afogar.
Gaheris protestou:

— Arthur sempre foi bondoso conosco. Parem de uma vez com essa lamúria.
— Porque nos teme.
— Não vejo como Arthur pode nos temer — disse Gareth — quando tem Lancelot do lado dele.
Todos sabemos que é o melhor cavaleiro do mundo e que pode dominar qualquer um. Não
sabemos, Gawaine?
—-Por mim, nã quero falar disso.

De repente, Mordred se inflamou, irritado com o tom senhorial de Gawaine.


— Muito bem, mas eu sim. Posso ser um cavaleiro fraco nas justas, mas tenho coragem para
defender minha família e meus direitos. Não sou hipócrita. Todos na corte sabem que a Rainha e o
comandante-em-chefe são amantes, e no entanto, supostamente todos nós somos cavaleiros puros,
protetores das damas, e ninguém fala sobre nada a não ser sobre esse Santo Graal. Agravaine e eu
decidimos comparecer diante de toda a corte de Arthur agora e perguntar sobre a Rainha e Lancelot
na cara dele.
— Mordred — exclamou o chefe do clã —, você nã vai fazer nada disso! É um pecado.
— Vai sim — disse Agravaine —, e eu estarei lá com ele. Gareth permaneceu entre a dor e o
espanto.
— Eles estão mesmo querendo fazer isso — protestou. Depois do instante de espanto, Gawaine
tomou a iniciativa e partiu para a ação.
— Agravaine, sou o chefe do clã, i estou lhi proibindo.
— Está me proibindo.
— Sim, proíbo; é coisa di desmiolado fazer isso.
— O honesto Gawaine acha que você é um louco rematado — comentou Mordred.
Desta vez o enorme raivo virou-se para ele como um cavalo empinado.
— Chega! — gritou. — Você acha qui nã lhi darei uma surra porqui é aleijado i quer tirar
vantagem. Mas eu lhi bato, garoto, si você chiar.
Mordred ouviu sua própria voz falando friamente, como se viesse de trás de seus ouvidos.

— Gawaine, você me surpreende. Acabou de produzir uma seqüência de pensamentos.
E depois, quando o gigante avançou na direção dele, a mesma voz disse:
— Vá em frente. Bata em mim. Mostre sua coragem.
— Ah, pára com isso, Mordred — implorou Gareth. — Pode parar com essa provocação um
instante?
— Mordred não iria provocar, como você diz — interveio Agravaine —, se ele não ameaçasse.
Gawaine explodiu como um dos novos canhões da moda. Afastou-se com uma meia volta de
Mordred, como um touro excitado, e gritou para ambos.

— Cos diabo, vocês vã ficar quietos ou dar o fora daqui? Nunca podemos ter paz na família?
Calem a matraca, em nome de Deus, i parem di falar besteiras sobre Sir Lancelot.
— Não é besteira — disse Mordred — e nem vamos parar de falar. E levantou-se.
— Bem, Agravaine — perguntou. — Vamos até o Rei? Alguém mais quer vir?
Gawaine se plantou no caminho.
— Mordred, você nã vai.
— Quem vai me deter?

— Eu.
— Sujeito corajoso — comentou a voz gelada, ainda vindo de algum lugar no ar, e o corcunda
avançou.
Gawaine levantou sua mão vermelha, com cabelos dourados nas costas dos dedos, e o empurrou.
Ao mesmo tempo Agravaine moveu sua própria mão branca, com dedos gordos, para o punho de
sua espada.

— Não se mova, Gawaine. Tenho uma espada.
— Você tinha que ter uma espada — gritou Gareth —, seu diabo!
A vida do irmão mais novo subitamente ajustara-se a um padrão e o reconheceu. A mãe
assassinada, o unicórnio, o homem que agora sacava a espada e uma criança em um depósito
empunhando uma adaga: essas coisas o fizeram gritar.

— Muito bem, Gareth — vociferou Agravaine, branco como um lençol. — Sei o que você quer
dizer, e agora desembainho.
A situação saiu do controle: começaram a agir como bonecos, como se tudo tivesse acontecido
antes — o que era verdade. Gawaine, ao ver a lâmina, entrou numa de suas fúrias cegas. Girou o
corpo afastando-se de Mordred, soltou uma torrente de palavras, desembainhou a faca de caça, que
era a única coisa que portava, e avançou para cima de Agravaine — tudo isso simultaneamente. O
homem gordo, como se tivesse caído na defensiva com o impacto da fúria do irmão, recuou diante
dele, segurando a espada diante de si com as mãos tremendo.

— Sim, você sabe bem o qui ele quer dizer, seu carniceiro — rosnou Gawaine. — Pode sacar a
espada contra su própr'rmão, já qui gosta di matar desarmados. Qui a maldiçã da mortalha caia-lhi
encima! Solte a espada, homem! Solte a espada! O qui quer? Nã basta ter matado nossa mãe?
Maldito, abaixa a espada, ou crie coragem di lutar com ela. Agravaine...
Mordred deslizava por trás dele, com a mão em sua própria adaga. Em um segundo o brilho do aço
relampejou nas sombras, aceso pelos olhos da coruja e, no mesmo instante, Gareth pulou em sua
defesa. Agarrou Mordred pelos punhos, gritando:

— Agora basta! Gaheris, atenção com os outros.
— Agravaine, solte a espada! Gawaine, deixe-o em paz.
— Sai fora, homem! Dou eu mismo u'a liçã nesse cã de caça.
— Agravaine, solte a espada logo ou ele vai matar você. Rápido, homem. Não seja idiota.
Gawaine, deixe-o em paz. Ele fez sem querer. Gawaine! Agravaine!
Mas Agravaine tinha desferido um golpe fraco na direção do chefe da família, que o desviou
facilmente com a faca. Agora, o enorme velho, com as têmporas cor de furão, correra e o agarrara
pela cintura. A espada caiu com estardalhaço no chão enquanto Agravaine desabava em cima da
mesa com hipocraz, e Gawaine por cima dele. A adaga levantou-se, venenosa, para terminar o
serviço — mas Gaheris agarrou-a por trás. Formou-se um cenário de perfeito silêncio,
completamente imóvel. Gareth segurava Mordred. Agravaine, escondendo os olhos com a mão


livre, esquivava-se da faca. E Gaheris mantinha suspenso o braço vingador. Nesse momento
complicado, a porta do claustro abriu-se pela segunda vez, e o pajem cortesão anunciou com a
impassividade de sempre:

— Sua Majestade, o Rei!
Todos relaxaram. Soltaram o que estavam agarrando e se mexeram. Agravaine sentou-se ofegante.
Gawaine afastou-se dele, passando uma mão no rosto.

— Por Deus! — murmurou. — Si eu nã tivesse esses ataques di fúria!
O Rei estava na porta.

Ele entrou, o calmo velho que tinha feito o melhor possível até então. Aparentava mais que sua
idade, que era considerável. Seu olhar real percebeu a situação num piscar de olhos. Caminhou
pelo claustro para gentilmente beijar Mordred, sorrindo para todos.


III


Lancelot e Guenevere estavam sentados à beira da janela do solário. Um observador dos nossos
dias, que conhecesse a lenda arturiana apenas por meio de Tennyson e de pessoas do mesmo tipo,
ficaria surpreso ao observar que os amantes famosos já tinham passado seu apogeu. Nós, que
aprendemos a basear nossa interpretação do amor no romance convencional de rapaz-e-moça de
Romeu e Julieta, ficaríamos admirados se pudéssemos voltar à Idade Média — quando o poeta da
cavalaria podia escrever sobre o homem dizendo que tinha "en ciei un dieu, par terre une déesse".
Os amantes, então, não eram recrutados entre os jovens e adolescentes: eram pessoas
experimentadas, que sabiam o que faziam. Naqueles tempos, as pessoas amavam umas às outras por
toda a vida, sem as conveniências do divórcio ou do psiquiatra. Tinham um Deus no paraíso e uma
deusa na Terra — e já que pessoas que se devotam a deusas devem ter certos cuidados em relação
àquelas a quem se devotarão, não escolhiam seus objetos de devoção somente pelos padrões
efêmeros da aparência, nem as abandonavam levianamente quando a decadência da matéria
começava a se apresentar.

Lancelot e Guenevere sentavam-se à beira da janela da torre, e a Inglaterra de Arthur estendia-se
abaixo deles, sob os suaves raios do pôr-do-sol.

Era a Gramarye da Idade Média, que algumas pessoas se acostumaram a chamar de Idade das
Trevas, e Arthur a fizera o que era. Quando o velho Rei chegara ao trono, ela era uma Inglaterra de
barões armados, de fome e de guerra. Era o país dos julgamentos por ordálio com ferros
incandescentes, da Lei da Inglesidade{19} e da triste canção sem palavras da Morfa-Rhuddlan{20}.
Então, na costa marítima, dentro do alcance de um navio estrangeiro, não havia sobrado nem animal
nem árvore frutífera. Então, nos pântanos e nas vastas florestas, os últimos saxões se defendiam
contra o domínio amargo de Uther, o Conquistador. Então, as palavras "Normando" e "Barão" eram
equivalentes ao moderno vocábulo "Sahib". Então, a cabeça de Llewellyn ap Griffith, com sua
coroa de heras, apodrecia nas estacas da Torre, e você encontraria mendigos na beira das estradas,
homens mutilados que na mão esquerda carregavam sua mão direita, e cães da floresta que trotavam
ao lado deles, também mutilados pela amputação de um dedo da pata — para que não caçassem nas
florestas do senhor. Quando Arthur primeiro chegou, os camponeses estavam acostumados a se
barricar toda noite em suas choças, como se estivessem em um cerco, e rezavam a Deus para ter
paz na escuridão, e o chefe da casa repetia as orações usadas no mar quando se aproxima a
tempestade, e terminava com a súplica "Que o Senhor nos abençoe e ajude", à qual todos


respondiam "Amém". No castelo do barão, nos tempos antigos, podia-se encontrar pobres sendo
estripados — e suas tripas vivas sendo queimadas diante deles —, homens sendo abertos para ver
se tinham engolido ouro, homens amordaçados com pinças dentadas de ferro, homens pendurados
de cabeça para baixo na fumaça, outros em poços com cobras ou com torniquetes de couro em volta
das cabeças, ou enfiados em caixas cheias de pedras para arrebentar seus ossos. Basta examinar a
literatura do período, com suas histórias de famílias mitológicas, como os Plantagenetas, os
Capetos e daí por diante, para ver como era o país. Reis lendários como John estavam acostumados
a enforcar vinte e oito reféns antes do jantar; ou como Philip, eram defendidos por "sargentosmaceiros",
uma espécie de tropa de assalto que protegia seu senhor com maças; ou como Louis,
decapitavam seus inimigos em cadafalsos sob cujo sangue os filhos das vítimas eram obrigados a
permanecer. Isso, de qualquer forma, era o que Ingulf de Croyland costumava nos contar, até que se
descobriu que era um falsificador. Então havia arcebispos, apelidados de "Esfola-vilão", e igrejas
usadas como fortalezas — com trincheiras nas tumbas entre os ossos —, e lista de multas para
assassinos, e corpos de excomungados deixados sem sepultura, e camponeses famintos comendo
grama ou cascas de árvores ou uns aos outros. (Um deles devorou quarenta e oito.) Havia assado
de hereges, por um lado — quarenta e cinco Templários foram queimados num único dia —, e
cabeças de cativos sendo jogadas por catapultas para dentro de castelos sitiados, por outro. Aqui, o
líder de uma revolta camponesa se retorcia nas cadeias, enquanto era coroado com um tripé de
ferro incandescente. Ali, um Papa se queixava por ter sido aprisionado para resgate, enquanto outro
estrebuchava envenenado. Tesouros foram cimentados nos muros dos castelos, em forma de barras
de ouro, e os construtores executados logo em seguida. Crianças brincando nas ruas de Paris tinham
usado o corpo de um policial para se divertir, e outras, com as mulheres e os velhos, tinham
morrido de fome fora das muralhas das cidades sitiadas, embora dentro do círculo dos sitiantes.
Hus e Jerônimo, com a mitra da apostasia sobre suas cabeças, arderam e chiaram nos postes. Os
idiotas jarretados de Jumiàges flutuaram Sena abaixo. Descobriu-se que Giles de Retz tinha nada
menos que uma tonelada de ossos de crianças, calcinados, em seu castelo, depois de havê-las
assassinado à média de duzentas e quarenta por ano durante nove anos. O Duque de Berry perdeu
um reino por causa da impopularidade que ganhou por sentir pena de oitocentos soldados de
infantaria mortos em uma batalha. O jovem conde de St. Pol aprendeu as artes da guerra ganhando
de presente vinte e quatro prisioneiros vivos para assassiná-los de várias formas, como prática.
Luis XI, outro dos reis de ficção, manteve bispos que o aborreciam dentro de jaulas caras. O Duque
Robert foi chamado de "Magnífico" por seus nobres — mas de "Diabo" por seus paroquianos.
Enquanto isso, antes da vinda de Arthur, as pessoas comuns — das quais quatorze foram devoradas
por lobos em uma cidade em apenas uma semana; das quais um terço morreria de Peste Negra;
cujos cadáveres eram acomodados nas covas "como bacon" em camadas; para as quais os refúgios
noturnos com freqüência eram as florestas e pântanos e cavernas; para as quais, em setenta anos,
sabe-se que houve quarenta e oito de fome; essas pessoas tinham recorrido à nobreza feudal,
chamada de "senhores dos céus e da terra", e foram espancadas por bispos que caíam em cima
delas com barras de ferro, por não poderem derramar sangue — tinham gritado alto que Cristo e
seus santos estavam dormindo.

"Pourquoi", os pobres infelizes cantavam em seu sofrimento:


"Pourquoi nous laisserfaire dommage?
Nous sommes hommes comme ils sont."{21}


Essa era a surpreendentemente moderna civilização que Arthur tinha herdado. Mas não era a
civilização que os amantes olhavam.

Agora, tranqüilos ao pôr-do-sol rosa-esverdeado diante deles, estendia-se a fabulosa Alegre
Inglaterra da Idade Média, que já não era tão cheia de trevas. Lancelot e Guenevere estavam
olhando para a Idade dos Indivíduos.

Que época extraordinária foi a da cavalaria! Todos eram essencialmente eles mesmos — e estavam
tumultuadamente ocupados, atendendo aos caprichos da natureza humana. Havia tanto prazer na
paisagem que se estendia diante da janela, tanta variedade de pessoas e coisas inesperadas, que
mal se podia pensar em como começar a descrevê-la.

A Idade Média e das Trevas! O século XIX era muito impudente com seus rótulos. Pois ali, sob a
janela da Gramarye de Arthur, os raios do sol flamejavam em centenas de jóias nos vitrais de
monastérios e conventos, ou dançavam nos pináculos de catedrais e castelos, que seus construtores
verdadeiramente amaram. A arquitetura, nessa idade das trevas deles, era uma paixão tão
iluminadora do coração que os homens davam apelidos amorosos para suas fortalezas. A Joyous
Gard de Lancelot não era uma exceção numa era que nos deixou Beauté, Plaisance ou Malvoisin —

o mau vizinho para seus inimigos —, numa época em que até um imbecil como o imaginário
Richard Coeur de Lion, que sofria de furúnculos, podia chamar sua fortaleza de "Gaillard"{22} e
falar dela como "minha bela filha de um ano". Até mesmo o legendário canalha Guilherme, o
Conquistador, tinha um segundo apelido: o "Grande Construtor". Pense nos próprios vitrais, com
suas cinco cores principais, todas pintadas. Era mais pesado que o nosso, mais grosso e podia ser
encaixado em pedaços menores. Eles os amavam com o mesmo ardor com que amavam seus
castelos, e Villars de Honnecourt, tocado por um exemplar particularmente belo, parou para
desenhá-lo em uma de suas viagens, explicando que "seguia em meu caminho, atendendo a um
chamado para ir à terra da Hungria, quando desenhei este vitral porque me agradou mais que todos
os outros". Imagine o interior dessas velhas igrejas — não os interiores cinzentos e vazios a que
estamos acostumados, mas interiores resplandecentes de cores, revestidos de afrescos em que todas
as figuras estavam na ponta dos pés, ondulando em tapeçarias ou brocados de Bagdá. Imagine
também os interiores dos castelos que eram visíveis da janela de Guenevere. Não eram mais as
sombrias torres do tempo da ascensão de Arthur. Agora estavam cheios de mobília feita por
marceneiros em vez de carpinteiros; agora as paredes sem portas estavam cobertas com os
esplendores de Arras, tapeçarias como as das Justas de Saint Denis, que, apesar de cobrirem mais
de 340 metros quadrados, foram tecidas em menos de três anos, tal o ardor da criação. Se observar
de perto, hoje, as ruínas desses castelos, às vezes poderá perceber os ganchos nos quais se
penduravam essas tapeçarias cintilantes. Lembre-se, também, dos ourives de Lorena, que faziam
oratórios na forma de pequenas igrejas, com naves, estátuas, transeptos e tudo o mais, como
casinhas de boneca. Lembre-se dos esmaltadores de Limoges, e dos trabalhos em champlevé, e dos

entalhadores de marfim alemães, e das granadas incrustadas em vidro fundido. Finalmente, se
quiser imaginar o fermento de artes criativas que existia nessa nossa famosa Idade das Trevas,
deve abandonar a idéia de que a cultura escrita chegou à Europa com a queda de Constantinopla.
Todos os clérigos em todos os países eram homens de cultura naqueles tempos — era sua profissão
ser assim. "Cada letra escrita" — disse um abade medieval — "é um ferimento infligido ao
demônio". A biblioteca de St. Piquier, já no século V, tinha 256 volumes, incluindo Virgílio,
Cícero, Terêncio e Macrobius. Charles V tinha uma biblioteca com não menos que novecentos e
dez volumes, de forma que sua coleção pessoal era tão grande quanto uma coleção de clássicos de
hoje.


Todos na corte sabem que a Rainha e o comandante-em-chefe são amantes, e no entanto
supostamente todos nós somos cavaleiros puros, protetores das damas, e ninguém fala sobre
nada a não ser sobre esse Santo Graal.


Por último, sob a janela, estavam as próprias pessoas — a coruscante mistura de excentricidades
que se reconheciam como possuidoras de coisas chamadas corpos, assim como almas, e que os
preenchiam das maneiras mais surpreendentes. Com o nome de Silvestre II, um famoso mágico
ascendeu ao papado, apesar de ser notório por ter inventado o relógio de pêndulo. Um fabuloso Rei
da França, chamado Robert, que sofreu o infortúnio de ser excomungado, meteu-se em terríveis
problemas com seus arranjos domésticos porque os dois únicos servos que puderam ser
convencidos a cozinhar para ele insistiam em queimar as caçarolas depois das refeições. Um
arcebispo de Canterbury, depois de excomungar todos os cônegos da catedral de S. Paulo ao
mesmo tempo, invadiu o Priorado de S. Bartolomeu e liquidou o subprior no meio da capela — o
que criou tal confusão que suas roupas foram rasgadas, revelando a armadura que usava por baixo,
e ele teve que fugir para Lambeth em um barco. A Condessa de Anjou costumava sumir pela janela
no momento da secreta da missa. Madame Trote de Salerno usava suas orelhas como lenço e
deixava suas sobrancelhas crescerem até abaixo dos ombros, como correntes de prata. Um bispo de
Bath, na época do imaginário Edward I, foi devidamente considerado, depois de muita reflexão,
uma pessoa inadequada para o arcebispado por ter demasiados filhos ilegítimos — não alguns, mas
demasiados. E o próprio bispo mal poderia ser comparado à Condessa de Henneberge, que
subitamente deu à luz a 365 crianças em um único parto.

Era a idade da plenitude, a época de se meter em tudo até o pescoço. Talvez Arthur tenha imposto
essa idéia à Cristandade por causa da riqueza de sua própria educação sob os cuidados de Merlin.

Pois o Rei, ou pelo menos é assim que Malory o interpreta, era o santo padroeiro da cavalaria. Não
era um bretão angustiado saltitando de um lado para o outro num terno de anil do século V — nem
ainda um desses nouveaux riches de Ia Poles que devem ter afligido os últimos anos do próprio
Malory. Arthur era o rei do coração de uma cavalaria que alcançara seu auge talvez duzentos anos
antes que nosso autor antiquário começasse a trabalhar. Era o emblema de tudo que era bom na
Idade Média, e ele mesmo é quem tinha feito essas coisas.

Tal como Malory o descreve, Arthur da Inglaterra era o campeão de uma civilização que é mal
interpretada nos livros de história. O servo da cavalaria não era um escravo sem esperança. Ao
contrário, tinha pelo menos três caminhos legítimos de ascensão, o maior dos quais era a Igreja
Católica. Com o auxílio das políticas de Arthur, essa igreja — ainda a maior das corporações de
livre acesso para os homens cultos da terra — tinha se tornado uma estrada aberta para o escravo
mais baixo. Um camponês saxão foi o Papa Adriano IV, e o filho de um carpinteiro foi Gregório
VIL Nessa desprezada Idade Média deles, uma pessoa podia se tornar o homem mais poderoso do
mundo simplesmente por ter se instruído. E é um erro acreditar que a civilização de Arthur era
fraca em nossa famosa ciência. Os cientistas, apesar de serem chamados de mágicos na época,
inventaram coisas quase tão terríveis quanto as que nós inventamos — salvo que nos acostumamos
às deles pelo uso. Os grandes mágicos, como Albertus Magnus, Frei Bacon e Raymond Lully
conheciam vários segredos que perdemos hoje, e descobriram como resultado secundário aquilo
que ainda parece ser o maior produto da civilização, ou seja, a pólvora. Receberam honras por sua
sabedoria, e Albert, o Grande, foi sagrado bispo. Um deles, chamado Baptista Porta, parece ter
inventado o cinema — apesar de ter a sensibilidade de não desenvolvê-lo.


Quanto aos aviões, no século X, um monge chamado Aethelmaer fazia experiências com eles, e
poderia ter alcançado o sucesso se não fosse um acidente de ajuste na seção da cauda. Ele caiu,
como diz William of Malmesbury, "quod caudam in posterioriparte oblitus fuerat adaptaren{23}

Mesmo nas questões mundanas, a Idade das Trevas não ficava muito atrás de nós. Pelo menos
tinham nomes espirituosos para seus coquetéis mais terríveis, que chamavam de Arrepia o Gorro,
Cachorro Doido, Pai Filho-da-puta, Comida de Anjo, Leite de Dragão, Encosta na Muralha, Passo
Largo e Levanta a Perna.

A visão da janela era deliciosa, apesar de estranha em alguns casos. Onde hoje temos campos
cercados e parques, eles tinham comunidades aldeãs, charnecas, pântanos e florestas enormes.
Sherwood se estendia por centenas de quilômetros, de Nottingham até o meio de York. Quanto aos
negócios que aconteciam na ilha, apicultura, fabricação de espantalhos e aração com bois: para
estes, deve-se olhar o Lutterell Psalter, onde estão belamente desenhados. Naqueles dias, se você
tivesse um interesse em coisas peculiares, talvez tivesse a sorte de ver passar cavalgando por sua
janela um cavaleiro em armadura. Teria prestado atenção na cabeça dele, que era raspada ao redor
das orelhas e atrás; mas no alto o cabelo crescia como o de uma boneca japonesa, de forma que o
crânio parecia um conjunto de duas bolas, uma menor e outra maior, uma em cima da outra. Esse
tufo no alto era excelente para absorver choques por baixo do elmo. O passante seguinte podia ser
um clérigo, talvez num cavalo de passo, e o cabelo deste seria o exato oposto do cavaleiro, já que
seria completamente careca no topo, por causa da tonsura. Quando primeiro comparecera diante do
bispo para ser ordenado clérigo, tinha levado consigo um par de tesouras. Em seguida, se quisesse
ver passar uma pessoa peculiar, poderia ser um cruzado que prometera libertar o sepulcro de Deus.
Era de esperar a cruz em sua sobrecapa, sem dúvida, mas talvez você não esperasse vê-lo tão
deliciado com o assunto a ponto de colocar o mesmo símbolo em todos os lugares possíveis. Como
um escoteiro noviço, cheio de entusiasmo, colocara uma cruz no escudo, na cota, no elmo, na sela e
na brida do cavalo. O sujeito seguinte a passar pela janela podia ser um leigo cisterciense, o qual
você esperaria que fosse um homem educado por causa de suas roupas. Mas não, ele era analfabeto
ex officio. A profissão dele era colar os selos nas bulas papais e, assim, para preservar o Segredo
do Papa, era necessário ter certeza de que ele não poderia ler sequer uma palavra. Depois poderia
passar um saxão barbudo, vestindo uma espécie de barrete frígio, como sinal de desafio e depois
um cavaleiro das Marcas da fronteira do Norte. Este último, como vivia de incursões noturnas,
portaria uma lua e várias estrelas sobre fundo azul em seu casaco. Aqui, podia aparecer uma
fumaça na paisagem, subindo da fornalha de algum alquimista que, muito sensatamente, estaria
tentando transformar chumbo em ouro — uma arte que permanece além da nossa capacidade de
hoje, embora estejamos nos aproximando disso com a fusão atômica. Ali, bem perto das cercanias
de um monastério, você poderia ver uma procissão de monges raivosos marchando descalços em
volta do estabelecimento — mas poderiam estar caminhando contra o sol, em maldição por terem
brigado com o abade. Talvez, se olhasse naquela direção, veria um vinhedo cercado de ossos —
fora descoberto, nos primeiros anos de Arthur, que os ossos fazem uma cerca excelente para
vinhedos, tumbas e até para fortes — e talvez, se olhasse em outra direção, poderia ver a porta de
um castelo que parecia a forca de um guarda-caças. Estaria completamente coberta com cabeças
pregadas de lobos, ursos, cervos e assim por diante. Mais adiante, ali à esquerda, talvez estivesse


havendo um torneio segundo as leis estabelecidas por Geoffrey de Preully, e o diretor do torneio
estaria examinando cuidadosamente os combatentes, como os juizes antes de uma luta de boxe, para
conferir que não estavam colados em suas selas. Os juizes de um torneio judicial entre um certo
Duque de Salisbury e um Bispo de Salisbury, no reino do suposto rei Edward III, descobriram que

o campeão do bispo tinha rezas e encantamentos costurados por toda a veste sob a armadura — o
que era considerado tão ruim quanto um boxeador esconder uma ferradura na luva. Debaixo da
soleira da janela podia estar passando um par de núncios papais com problemas intestinais,
cavalgando de volta a Roma. Um par desses uma vez foi enviado para excomungar Barnabas
Visconti, mas Barnabas simplesmente fez com que comessem a bula — pergaminho, faixas, selo de
chumbo e tudo o mais. Seguindo bem perto deles talvez viesse passando um peregrino profissional,
apoiando-se em um grosso e nodoso cajado e vergado sob o peso de medalhas bentas, relíquias,
conchas, verônicas e coisas parecidas. Ele se autodenominaria um palmeiro e, se fosse muito
viajado, suas relíquias podiam incluir uma pena do anjo Gabriel, alguns dos carvões nos quais São
Lourenço foi assado, um dedo do Espírito Santo, "completo e inteiro como sempre", um "frasco do
suor de S. Miguel quando lutou contra o diabo", um pedacinho "da moita em cima da qual o Senhor
falou com Moisés", uma túnica de S. Pedro, ou um pouco do leite da Virgem Maria preservado em
Walsingham. Depois do palmeiro talvez vagasse por ali uma figura mais sinistra: um desses que
"dormem de dia e andam à noite, comem bem e bebem melhor, mas não possuem nada". Seria um
fora-da-lei, sobre os quais se escreveu:
"Para um bandido esta é a lei, que o agarrem e prendam sem piedade, e o enforquem numa árvore e

o deixem balançar ao vento."
Mas antes de chegar a esse último balanceio ao vento, ele teria vivido uma vida livre. Sua
companheira estaria caminhando resolutamente a seu lado, também com a cabeça a prêmio — cujo
cabelo teria sido raspado antes de ela partir com ele para a floresta e ser conhecida como
proscrita. Ocasionalmente, ela daria uma olhada para trás, alerta ao clamor que indicaria estarem
sendo caçados.

Ali poderia vir um barão fazendo transportar à sua frente, com extremo cuidado, uma torta quente,
pois tinha que levar tal peça ao Rei uma vez ao ano, para que Arthur a cheirasse, como pagamento
de seus deveres feudais. E por ali podia vir outro barão em pleno galope, atrás de um ou outro
dragão e pumba!, cair no chão, enquanto o cavalo trotava para longe. Mas se isso acontecesse, um
de seus ajudantes imediatamente o montaria em seu próprio cavalo — tal como hoje se faz com o
caçador-chefe —, porque essa era a lei feudal. No Norte distante, sob o esmaecer do pôr-do-sol,
poderia se perceber a luz da cabana de alguma bruxa ocupada, não apenas fazendo bonecos de cera
de alguém que ela desaprovava, mas também batizando a imagem — esse era o fator operativo —
antes de lhe enfiar vários alfinetes. Um dos padres amigos dela, aliás, que tivesse se vendido ao
diabo, podia estar pronto para rezar uma Missa de Réquiem contra qualquer um de quem você
quisesse se livrar — e quando chegasse ao "Réquiem aeternum dona ei, Domine{24}", estaria
querendo isso mesmo, apesar de o homem estar vivo. Igualmente distante a Oeste, e no mesmo pôrdo-
sol, você poderia ver Engyerrand de Marigny, que construiu as enormes forcas em Mountfalcon,
ele mesmo apodrecendo e chacoalhando na mesma forca, pois fora considerado culpado de Magia
Negra. Os Duques de Berry e da Bretanha, dois homens honestos, poderiam passar trotando juntos


pela estrada, com couraças de cetim imitando o aço. Esses dois não gostavam de assumir as
vantagens da armadura e, considerando o cetim mais fresco para usar, decidiram ser pessoas
comuns e corajosas. Lancelot podia ter feito o mesmo tipo de coisa. Acima deles, na colina, mas
sem ser visto por eles, poderia estar sentado Jolyjoly Wat, com sua caixa de alcatrão ao lado. Era a
figura mais típica de Gramarye, e seu alcatrão era o anti-séptico para as suas ovelhas. Se lhe
tivessem dito, "Não estrague o navio por meia barrica de alcatrão", ele imediatamente concordaria

— pois fora o inventor do ditado, que mudamos de ovelhas para navios{25}.
Em um ponto mais distante, talvez alguém falido estivesse levando uma vigorosa surra em algum
mercado moscovita — não por conta de má vontade pessoal contra ele, mas na ardente esperança
de que se ele berrasse suficientemente alto, algum parente ou amigo teria pena e pagaria suas
dívidas. Mais ao Sul, na bacia do Mediterrâneo, poderia se ver um marinheiro sendo punido por
jogo, com base numa lei de Richard Coeur de Lion. A punição consistia em ser jogado três vezes na
água, desde cima do mastro mestre, e seus companheiros aclamavam cada barrigada com gritos.
Uma terceira e engenhosa punição possivelmente fora infligida no mercado ali abaixo. Um
mercador de vinhos, cujos produtos eram de má qualidade, poderia ter sido amarrado no
pelourinho e obrigado a beber uma quantidade excessiva do seu próprio licor — e o resto depois
jogado em sua cabeça. Que dor de cabeça na manhã seguinte! Nessa direção, se você tivesse a
mente aberta, poderia se divertir com a insolente Alisoun, que dava risadinhas depois de receber o
beijo incomum que nos conta Chaucer. Naquela, poderiam observar um exasperado Miller e sua
família, tentando consertar a confusão que acontecera na noite anterior com o deslocamento de um
berço, como Reeve conta em sua história. Um escolar que tivera a iniciativa e a boa sorte de matar

o Duque de Salisbury com um dos recém-inventados canhões, poderia estar sendo idolatrado por
seus colegas de academia, no pátio da longínqua escola monástica. Ameixeiras, apenas recém-
introduzidas como as amoreiras de Merlin, podiam estar florescendo sob a luz da lua ao lado do
pátio. Outro garotinho, desta vez um rei de quatro anos de idade na Escócia, poderia estar
tristemente outorgando um Mandato Real à sua babá, autorizando-a a espancá-lo sem ser culpada
de Alta Traição. Um desacreditado exército, que costumava viver da espada como uma quadrilha
treinada, poderia estar implorando seu pão de porta em porta — um bom destino para todos os
exércitos —, e um homem que tivesse pedido santuário naquela distante igreja do Leste, poderia ter
sua perna cortada por ter dado meio passo fora da porta. No mesmo santuário poderia estar uma
bela coleção de falsários, ladrões, assassinos e devedores, todos ocupados forjando ou amolando
suas facas para a saída noturna, aproveitando o calmo retiro da igreja dentro da qual não podiam
ser presos. O pior que podia lhes acontecer, uma vez que tivessem alcançado seu santuário, era o
banimento. Então teriam que caminhar até Dover, sempre ficando no meio da estrada e agarrando
um crucifixo — se o soltassem por um momento, podiam ser atacados —, e uma vez lá, se não
pudessem imediatamente tomar um navio, teriam que diariamente entrar no mar até o pescoço, para
provar que realmente estavam tentando.
Você sabia que nessa Idade das Trevas visível da janela de Guenevere havia tanta decência no
mundo que a Igreja Católica podia impor uma paz a todas as lutas — a chamada Trégua de Deus
—, que durava de quarta-feira à segunda, assim como em todo período do Advento e da Páscoa?
Você acha que eles, com suas Batalhas, Fome, Peste Negra e Servidão, eram menos ilustrados que


nós, com nossas Guerras, Bloqueio, Influenza e Recrutamento? Mesmo que fossem imbecis o
suficiente para acreditar que a Terra era o centro do universo, nós também não acreditamos que o
homem é a flor mais fina da criação? Se um peixe leva milhões de anos para se transformar em
réptil, será que o Homem, nas nossas poucas centenas de anos, modificou-se a ponto de se tornar
irreconhecível?


IV


Desde a janela da torre, Lancelot e Guenevere olhavam o pôr-do-sol da cavalaria. Os perfis
escurecidos destacavam-se em silhueta contra a luz. Lancelot, o velho feio, tinha o perfil de uma
gárgula. Poderia estar olhando, em horrenda meditação, do alto de Notre Dame, construída nessa
época. Mas em sua maturidade, parecia mais nobre que antes. As linhas da feiúra tinham afundado
e se tornado linhas de força. Como o buldogue, que é um dos cães mais malfalados, Lancelot tinha
desenvolvido um rosto no qual as pessoas podiam confiar.

O detalhe tocante é que os dois cantavam. Suas vozes, não mais ricas em tonalidade como as dos
jovens, ainda eram firmes na nota. Se eram débeis, eram puras. Uma apoiava a outra.

"Quando o mês de maio (cantava Lancelot)
Chega e o dia
Embeleza-se de luz
Nada mais temo."
"Quando" (cantou Guenevere)
"Quando termina o dia
E com nostalgia o sol se põe
Deixando a luz esvaecer
Não temo o anoitecer"
"Mas, oh" (cantavam juntos)
"Mas oh, tanto a noite quanto o dia
Do meu coração a alegria
Devem um dia partir, para sempre
Tudo feito, tudo acabado."


Pararam, depois de um inesperado floreio no organilho, e Lancelot disse:

— Sua voz está boa. Receio que a minha esteja enferrujando.
— Você não deve beber licores.
— Que maldade dizer isso! Desde o Graal que sou abstêmio quase total.

— Bem, preferia que você não bebesse nada.
— Então não beberei mais nada, nem água. Vou morrer de sede a seus pés, e Arthur me fará um
funeral esplêndido, e nunca perdoará você por isso.
— Sim, e eu irei para o convento por meus pecados, e lá viverei feliz para sempre. O que vamos
cantar agora?
Lancelot disse:

— Nada. Não quero mais cantar. Venha e sente-se perto de mim, Jenny.
— Você está infeliz com alguma coisa?
— Não. Nunca estive tão feliz em minha vida. E ouso dizer que nunca mais serei tão feliz.
— Por que tão feliz?
— Não sei. Acho que é porque a primavera finalmente chegou, e o verão brilhante está diante de
nós. Seus braços vão ficar bronzeados de novo, levemente queimados aqui em cima, e os
cotovelos, rosados. Não tenho certeza se não gosto mais dos lugares onde você se dobra, como a
parte de dentro de seus cotovelos. Guenevere esquivou-se dos elogios galantes.
— O que será que Arthur anda fazendo?
— Arthur está visitando Gawaine e os seus, e eu estou falando dos seus cotovelos.
— Percebo.
— Jenny, eu estava feliz porque você estava me dando ordens. Essa é a explicação. Você estava me
falando que eu bebo demais. Gosto quando você cuida de mim e me diz o que devo fazer.
— Parece que você precisa disso.
— Eu preciso mesmo — disse. Depois, com um ímpeto que surpreendeu os dois: — Posso vir hoje
à noite?
— Não.
— Por que não?
— Lance, por favor, não pergunte. Você sabe que Arthur está em casa, e é muito perigoso.
— Arthur não se importa.
— Se Arthur nos surpreender — ela disse, sabiamente —, terá que nos matar.
Ele negou isso.
— Arthur sabe tudo sobre nós. Merlin o preveniu com todas as letras, e a Fada Morgana mandou
insinuações muito claras, e depois teve o problema com Sir Meliagrance. Mas ele não quer
confusão. Jamais nos surpreenderia, a menos que o forçassem a isso.
— Lancelot — disse ela, com raiva —, não vou admitir que você fale de Ardiur como se ele fosse
um alcoviteiro.

— Não estou falando dele desse jeito. Foi meu primeiro amigo, e eu o amo.
— Então está falando de mim como se eu fosse pior.
— E agora você está se comportando como se fosse.
— Muito bem, se é isso que você tem a dizer, é melhor se retirar.
— Assim você poderá fazer amor com ele, suponho.
— Lancelot!
— Oh, Jenny! — ele saltou, ágil como sempre, e a abraçou. — Não fique zangada. Sinto muito se
fui indelicado.
— Saia daqui! Deixe-me em paz.
Mas ele continuou segurando-a com força, como alguém que prende um animal selvagem para que
não fuja.

— Não fique zangada. Sinto muito. Você sabe que não foi por querer.
— Você é um animal.
— Não, não sou um animal, nem você. Jenny, vou continuar segurando-a até passar sua raiva. Falei
porque me sinto miserável.
Sua voz abafada e contida retrucou, queixosa:

— Você acabou de dizer que estava feliz.
— Bem, não estou feliz. Estou muito infeliz, e me sinto chateado com o mundo inteiro.
— Você acha que é o único?
— Não, não acho. E sinto muito pelo que disse. Vai me fazer infeliz por ter dito isso. Pronto, por
favor, seja bondosa, e não me faça infeliz por mais tempo.
Ela cedeu. Os anos tinham suavizado suas brigas de antes.

— Então está bem.
Mas seu sorriso e sua concessão o impulsionaram mais.
— Por que não foge comigo, Jenny?
— Por favor, não comece tudo de novo.
— Não posso evitar — disse, desesperado. — Não sei mais o que fazer. Deus, já passamos por
isso em nossas vidas tantas vezes, mas parece que fica pior na primavera. Por que você não vem
comigo para o Joyous Gard e deixa tudo isso para trás?
___Lance, solte-me e seja razoável. Pronto, sente-se e vamos cantar outra música.

— Mas eu não quero cantar.
— E eu não quero ouvir nada disso.

— Se você viesse comigo para o Joyous Gard isso acabaria de uma vez por todas. Fosse como
fosse, poderíamos viver juntos até a velhice, e seríamos felizes, e não teríamos que enganar
ninguém todos os dias, e poderíamos morrer em paz.
— Você disse que Arthur sabe de tudo — disse ela — e que não o estamos enganando em nada.
— Sim, mas isso é diferente. Amo Arthur e não agüento quando o vejo me olhando e sei que ele
sabe. Você sabe, Arthur ama a nós dois.
— Mas Lance, se você o ama tanto, como quer fugir com sua esposa?
— Quero que tudo fique claro — disse, teimoso —, pelo menos no final.
— Bem, eu não quero isso.
— De fato — e agora ele estava novamente furioso —, o que você quer realmente é ter dois
maridos. As mulheres sempre querem tudo.
Ela pacientemente desistiu de brigar.

— Não quero ter dois maridos, e me sinto tão desconfortável quanto você. Mas o que adianta
revelar tudo? Como estamos agora é horrível, mas pelo menos Arthur sabe de tudo dentro de si
mesmo, e nós ainda nos amamos e estamos seguros. Se eu fugisse com você, o resultado seria a
quebra de tudo isso. Arthur teria que declarar guerra a você e cercar Joyous Gard, e então um de
vocês morreria, ou os dois, e centenas de outras pessoas morreriam, e nada ficaria melhor. Além
disso, não quero deixar Arthur. Quando casei com ele, prometi ficar com ele, que sempre foi gentil
comigo, e gosto dele. O mínimo que posso fazer é dar-lhe um lar e ajudá-lo, mesmo que ame você
também. Não vejo de que adianta revelar tudo. Por que deveríamos tornar Arthur publicamente
miserável?
Nenhum dos dois tinha percebido, no lusco-fusco crescente, que o próprio Rei tinha chegado
enquanto ela falava. De perfil para a janela, mal podiam ver o que havia no quarto atrás. Mas ele
entrara. Parou por uma fração de segundo, concentrado em seus pensamentos, que estavam bemlonge, considerando a facção das Órcades ou algum outro problema de Estado. Parou sob a cortina
da porta, a mão pálida com o sinete real brilhando na escuridão enquanto abria a tapeçaria, e então,
sem ficar escutando nem por um momento, deixou a tapeçaria se fechar e desapareceu. Foi buscar
um pajem para o anunciar.

— A única coisa decente... — dizia Lancelot, torcendo as mãos entre os joelhos. — Para mim, a
única coisa decente seria fugir para longe e não voltar jamais. Mas meu cérebro não agüentou isso
quando tentei da outra vez.
— Meu pobre Lance, se não tivéssemos parado de cantar! Agora você vai ficar nervoso de novo e
ter um de seus ataques. Por que não podemos esquecer tudo isso e deixar seu famoso Deus tomar
conta de tudo? Não adianta tentar pensar, ou fazer alguma coisa porque é certo ou errado. Eu não
sei o que é certo ou errado. Mas não podemos confiar em nós mesmos, e fazer o que fazemos, e
esperar pelo melhor?
— Você é sua esposa e eu seu amigo.

— Bem — disse ela —, quem nos fez amar um ao outro?
— Jenny, não sei o que fazer.
— Então não faça nada. Venha até aqui e me dê um beijo gentil, e Deus cuidará de nós dois.
— Minha querida!
Dessa vez o pajem subiu as escadas com o barulho habitual, à maneira dos pajens, trazendo luz ao
mesmo tempo. Arthur tinha pedido que acendesse as velas.

A sala brilhou com as cores ao redor dos amantes, que rapidamente tinham se separado. E começou
a mostrar o esplendor de suas peças quando o rapaz acendeu os pavios. Os prados floridos e os
arbustos cheios de frutos e pássaros da tapeçaria de Arras se espalharam e se agitaram pelas quatro
paredes. A cortina da porta subiu mais uma vez, e o Rei entrou na sala.

Ele parecia velho, mais velho que os dois. Mas era a nobre velhice do respeito próprio. Mesmo
hoje, às vezes se pode encontrar um homem de sessenta anos ou mais que se mantém reto como um
junco, e cujos cabelos são negros. Eles eram desse tipo. Lancelot, agora que podia ser visto
claramente, era um refinamento ereto de humanidade — um fanático pela responsabilidade humana.
Guenevere, e isso podia surpreender quem a conhecera em seus tempos de tormentas, parecia doce
e bela. Quase inspirava a vontade de protegê-la. Mas Arthur era o mais comovedor dos três. Estava
vestido com muita simplicidade, gentil e paciente com suas coisas simples. Muitas vezes, quando a
Rainha estava recepcionando pessoas importantes sob as luzes do Grande Salão, Lancelot o
descobria sentado sozinho numa sala pequena, cerzindo meias. Agora, com suas vestes azuis
caseiras — o azul, que era um corante caro naquela época, estava reservado aos reis, ou aos santos
e anjos nos quadros — ele fez uma pausa na soleira da sala brilhante e sorriu.


— Viva, Lance. Viva, Gwen.
Guenevere, com a respiração ainda agitada, respondeu à saudação.
— Viva, Arthur. Você nos surpreendeu.
— Sinto muito. Acabei de voltar.
— Como estavam os Gawaines? — perguntou Lancelot, no velho tom que nunca conseguia fazer
natural.
— Estavam no meio de uma briga quando cheguei.
— É bem coisa deles! — ambos exclamaram. — O que você fez? Por que estavam brigando?
As perguntas soaram como se fossem assuntos de vida ou morte, captando equivocadamente o
estado de espírito do Rei, devido aos deles mesmos.
O Rei olhou direto diante de si.


— Não perguntei.
— Sem dúvida algum assunto familiar — disse a Rainha.
— Sem dúvida era isso.

— Espero que ninguém tenha se machucado?
— Ninguém se machucou.
— Ainda bem — ela exclamou, notando que seu alívio parecia absurdo — que tudo terminou bem.
— Sim, tudo terminou bem.
Eles viram que seus olhos estavam brilhando. Ele parecia se divertir com a perturbação dos dois, e
a atmosfera era normal.

— Ora — disse o Rei —, precisamos continuar falando sobre os Gawaines? Será que não ganho
um beijo da minha esposa?
— Querido.
Ela trouxe a cabeça dele para perto da sua e o beijou na testa, pensando nele como uma velha coisa
fiel — seu ursinho amigo. Lancelot levantou-se.

— Acho melhor me retirar.
— Não saia, Lance. É ótimo ter você aqui um pouco para nós. Venha. Sente-se perto do fogo e
cante um pouco. Logo poderemos dispensar o fogo.
— É isso mesmo — disse Guenevere. — Imagine, logo será verão.
— Ainda assim, é ótimo sentar ao pé da lareira — no lar.
— É ótimo para você no seu lar — disse Lancelot de maneira esquisita.
— Por quê?
— Eu não tenho lar.
— Não se importe, Lance. Um dia terá. Espere até chegar à minha idade e depois comece a se
preocupar com isso.
— E não é porque toda mulher que você conhece não o tenha caçado por quilômetros — disse a
Rainha.
— E com uma machadinha — acrescentou Arthur.
— E metade delas com propostas de casamento.
— E depois você se queixa de não ter um lar.
Lancelot começou a rir e o último fio de tensão se rompeu.
— E você — perguntou —, casaria com uma mulher que o perseguisse com uma machadinha?
O Rei considerou gravemente a questão antes de responder.
— Não poderia fazer isso — disse afinal — porque já sou casado.
— Com Gwen — disse Lancelot.
Era estranho. Parecia que eles tinham começado a falar com significados que estavam separados
das palavras que usavam. Era como as formigas falando com suas antenas.


— Com a Rainha Guenevere — disse o Rei, contradizendo.
— Ou Jenny? — sugeriu a Rainha.
— Sim — ele concordou, mas só depois de uma longa pausa —, ou Jenny.
O silêncio se tornou mais profundo, até que Lancelot se levantou pela segunda vez.
— Bem, devo ir.
Arthur colocou a mão em seu braço.
— Não, Lance, fique mais um minuto. Quero contar algo a Guenevere esta noite e gostaria que você
também ouvisse. Estamos juntos há muito tempo. Quero lhes confessar tudo sobre um assunto
antigo, pois você também é da família.
Lancelot sentou-se.

— Certo. Agora cada um de vocês me dá uma mão e sentarei entre os dois, assim. Pronto. Minha
Rainha e meu Lance, e nenhum dos dois deve me acusar pelo que lhes vou contar.
Lancelot disse amargamente:

— Nas estamos em posição de acusar ninguém, Rei.
— Não? Bem, não sei o que você quer dizer com isso. Mas quero lhes contar a história de algo que
fiz quando era jovem. Foi antes que me casasse com Gwen, e muito antes que você fosse armado
cavaleiro. Vocês se importam se eu fizer isso?
— Claro que não nos importamos, se você quiser contar.
— Mas não acreditamos que você tenha feito algo errado.
— Na verdade, começou antes de meu nascimento, pois meu pai se apaixonou pela Condessa da
Cornualha e matou o Duque para consegui-la. Ela era minha mãe. Vocês conhecem essa parte da
história.
— Sim.
— Talvez não saibam que nasci num momento inconveniente. Demasiado cedo depois do
casamento do meu pai com minha mãe. Foi por isso que eles me mandaram ainda em cueiros para
ser criado por Sir Ector. Foi Merlin quem me levou.
— E então — disse Lancelot, alegremente — você foi levado de volta à corte quando seu pai
morreu, e puxou a espada mágica da pedra, o que provou que era o legítimo Rei da Inglaterra, e
viveu feliz depois disso, e assim acabou essa história. Não acho que seja uma história ruim.
— Infelizmente, esse não foi o final.
— Como?
— Bem, meus caros, fui afastado da minha mãe no momento em que nasci, e ela nunca soube para
onde fui levado. Nem eu sabia quem era minha mãe. As únicas pessoas que sabiam do nosso
relacionamento eram Uther Pendragon e Merlin. Muitos anos depois, quando eu já era Rei, conheci

a família de minha mãe, ainda sem saber quem eram. Uther estava morto, e Merlin andava tão
atarantado com suas visões que tinha esquecido de me contar, então nos conhecemos como
estranhos. Achei que uma delas era inteligente e bela.

— As famosas irmãs da Cornualha — mencionou friamente a Rainha.
— Sim, querida, as famosas irmãs da Cornualha. O falecido Duque teve três filhas e, é claro,
embora eu não soubesse disso, eram minhas meias-irmãs. Chamavam-se Fada Morgana, Elaine e
Morgause, e eram consideradas as mulheres mais belas da Bretanha.
Esperaram que sua voz calma continuasse, o que logo aconteceu.

— Eu me apaixonei por Morgause — acrescentou — e tivemos um bebê.
Se algum deles sentiu surpresa, ressentimento, comiseração ou inveja, não demonstrou. A única
coisa surpreendente para eles foi o segredo ter sido mantido por tanto tempo. Mas podiam
adivinhar por sua voz que Arthur sofria, e que não queria ser interrompido até que purgasse
completamente seu coração.

Fitaram o fogo em um dos mais longos dos seus silêncios. Depois, Arthur sacudiu os ombros.

— Então, vejam — disse —, sou o pai de Mordred. Gawaine e os demais são meus sobrinhos, mas
ele é meu filho completo.
Lancelot viu em seus olhos que podia falar.

— Não vejo maldade em sua história, mesmo assim. Você não sabia que ela era sua meia-irmã.
Ainda não tinha conhecido Gwen. E sabendo da história dela depois, provavelmente foi culpa de
Morgause. Aquela mulher era um demônio.
— Era minha irmã. E mãe de meu filho.
Guenevere acariciou sua mão.
— Sinto muito.
— Além disso — ele disse —, era uma criatura muito bela.
— Morgause... — começou Lancelot.
— Morgause pagou sua conta ao ter a cabeça cortada, portanto, vamos deixá-la em paz.
— Cortada — disse Lancelot — por um de seus próprios filhos, que a encontrou dormindo com Sir
Lamorak...
— Por favor, Lancelot.
— Sinto muito.
— Ainda não acho que foi um erro seu, Arthur. Afinal, você não sabia que ela era sua irmã.
O Rei soltou um longo suspiro, e começou novamente, ainda mais rouco.
— Ainda não lhes contei — disse — a pior parte do que fiz.
— E o que foi?

— Vejam, eu era jovem, tinha dezenove anos. E Merlin veio, tarde demais, dizer o que tinha
acontecido. Todos me disseram que pecado horrível era aquilo, e como nada além de sofrimento
viria dali, e também um monte de outras coisas sobre como seria Mordred se nascesse.
Assustaram-me com profecias horríveis, e fiz algo que me apavora desde então. Nossa mãe tinha
escondido Morgause logo que soube de tudo.
— O que você fez?
— Deixei que proclamassem que todas as crianças nascidas em uma certa época deveriam ser
colocadas em um grande barco a ser lançado ao mar. Eu queria destruir Mordred para seu próprio
bem, e não sabia onde ele nasceria.
— E fizeram isso?
— Sim, o navio foi lançado, e Mordred estava lá, e naufragou em uma ilha. A maior parte das
pobres crianças se afogou, mas Deus salvou Mordred e o mandou de volta para me envergonhar
depois. Morgause jogou-o contra mim, muito depois de o ter recuperado. Mas para outras pessoas,
ela sempre fingiu que ele era realmente filho de Lot, como Gawaine e os demais. Naturalmente, não
queria falar do assunto com pessoas de fora, e com os irmãos dele também não.
— Bem — disse Guenevere —, se ninguém sabe disso exceto nós e o clã das Órcades, e se
Mordred está são e salvo...
— Não posso esquecer os outros bebês — disse ele miseravelmente. — Sonho com eles.
— Por que não nos contou isso antes?
— Tinha vergonha.
Desta vez Lancelot explodiu.
— Arthur — exclamou —, você não tem nada do que se envergonhar. O que você fez foi-lhe
imposto quando era demasiado jovem para saber o que fazer. Se eu pusesse minhas mãos nos
brutos que assustam crianças com histórias sobre pecado, quebraria o pescoço deles. Qual o bem
que isso faz? Pense em todo esse sofrimento, e por nada! E os pobres bebês!
— Todos afogados.
Sentaram-se novamente, olhando para as chamas, até que Guenevere voltou-se para seu marido.
— Arthur — ela perguntou —, por que você nos contou essa história hoje?
Ele esperou, escolhendo as palavras.
— É porque receio que Mordred tenha ressentimentos contra mim, pobre garoto — e ele tem razão.
— Traição? — perguntou o comandante-em-chefe.
— Bem, não exatamente traição, Lance. Mas acho que ele não está satisfeito.
— Corte logo a cabeça do chorão e liquide o assunto.
— Não, jamais poderia pensar em fazer isso! Você esquece que Mordred é meu filho? Eu gosto
dele. Fiz muito mal ao garoto, e minha família vem ferindo os da Cornualha desde sempre, de uma

ou de outra maneira, não posso aumentar essa maldade. Além disso, sou seu pai. Posso me ver nele.

— Não parece haver muita semelhança.
— Mas há. Mordred é ambicioso e amante da honra, como sempre fui. É só porque tem um corpo
fraco, que fracassou nos nossos esportes, e isso o amargurou, como provavelmente teria me
amargurado se eu não tivesse tido sorte. Ele também é corajoso, de uma forma estranha, e é leal ao
seu povo. Compreendam, sua mãe o colocou contra mim, o que era natural, e, para ele, eu
represento as coisas más. E quase certo que pretenda me matar no final.
— Você está falando sério ao dizer que isso é razão para não matá-lo agora?
O Rei subitamente pareceu surpreso, ou chocado. Ele estivera sentado relaxado entre os dois,
porque estava cansado e infeliz, no entanto, agora levantou-se e encarou seu capitão nos olhos.

— Você deve se lembrar que sou o Rei da Inglaterra. Quando se é rei não se pode sair executando
pessoas por gosto. O rei é a cabeça de seu povo, e deve dar exemplo para todos, e realizar a
vontade deles.
Perdoou a expressão de espanto no rosto de Lancelot e mais uma vez tomou sua mão.

— Você descobrirá — explicou — que quando os reis são tiranos que acreditam na força, o povo
torna-se tirano também. Se eu não me apoiar na lei, não terei lei entre o meu povo. E naturalmente
quero que meu povo tenha a nova lei, porque assim ele será mais próspero e, em conseqüência,
serei mais próspero também.
Eles o observaram, imaginando o que ele queria transmitir. Arthur sustentou o olhar, tentando falar
com os olhos.

— Veja, Lance, tenho que ser absolutamente justo. Não posso me permitir ter mais coisas como
essa dos bebês em minha consciência. A única maneira de me manter afastado do uso da força é
pela justiça. Longe de desejar executar seus inimigos, um verdadeiro rei deve estar pronto para
executar seus amigos.
— E sua esposa? — perguntou Guenevere.
— E sua esposa — ele respondeu com gravidade.
Lancelot se mexeu desconfortavelmente no assento, observando com uma tentativa de humor:
— Espero que você não vá cortar a cabeça da Rainha logo mais. O Rei ainda manteve sua mão na
dele, e o olhou mais uma vez.
— Se Guenevere ou você, Lancelot, se provarem culpados de um crime contra meu reino, terei que
mandar cortar a cabeça de ambos.
— Deus do céu — ela exclamou. — Espero que ninguém vá provar isso!
— Também espero.
— E Mordred? — perguntou Lancelot depois de algum tempo.
— Mordred é um jovem infeliz, e receio que tente qualquer coisa para me fazer sofrer. Se, por

exemplo, ele conseguir alguma maneira de me atingir através de você, meu caro, ou através de
Gwen, tenho certeza de que tentará. Percebem o que quero dizer?

— Percebo.
— Então, se houver algum momento em que qualquer um dos dois possa, bem... possa lhe dar esse
tipo de motivo... terão cuidado comigo, não é? Estou nas mãos de vocês, meus queridos.
— Mas isso parece tão sem sentido...
— Você tem sido gentil com ele — disse Lancelot — desde que chegou aqui. Por que desejaria
ferir...
O Rei cruzou os braços, e parecia estar olhando as chamas por baixo das pálpebras abaixadas.

— Você esquece — disse, gentilmente — que eu nunca consegui ter um filho com Gwen. Quando
eu morrer, Mordred pode ser o Rei da Inglaterra.
— Se ele tentar alguma traição — disse Lancelot, apertando os punhos — eu mesmo o matarei.
Imediatamente, a mão cheia de veias azuis estava segurando seu braço.
— Isso é algo que você não deve jamais fazer, Lance. Seja lá o que Mordred faça, mesmo que tente
contra a minha vida, deve prometer se lembrar que, pelo sangue, ele é uma espécie de herdeiro
obrigatório. Eu fui cruel...
— Arthur — exclamou a Rainha —, você não pode dizer isso. E tão ridículo que me faz sentir
envergonhada.
— Vocês não me acham um homem cruel? — perguntou, surpreso.
— Claro que não.
— Mas eu pensava, depois da história dos bebês...
— Ninguém — afirmou Lancelot com ferocidade — jamais sonharia em ter esse pensamento.
O Rei levantou-se à luz da lareira, parecendo desorientado e satisfeito. Considerava ridículo supor
que não fosse cruel, mas estava agradecido pelo amor deles.

— Bem — disse —, de qualquer forma, não pretendo continuar sendo mau. É dever do Rei evitar
derramamento de sangue se puder, e não provocá-lo.
Olhou mais uma vez para ambos, por baixo das pálpebras.

— Pois então, meus queridos — terminou alegremente —, agora devo ir até o Tribunal de Queixas,
e administrar um pouco de nossa famosa justiça. Você fica aqui com Gwen, Lance, e alegre-a um
pouco depois dessa história terrível. Seja um bom companheiro.

V


Quando Arthur disse que ia administrar um pouco de sua famosa justiça, não queria dizer que ia
realmente presidir um tribunal. Na Idade Média, os reis presidiam pessoalmente os tribunais, até na
época do dito Henry IV, que se supõe ter presidido tanto o Tribunal do Erário quanto o Tribunal do
Rei. Mas àquela hora da noite, já era demasiado tarde para administrar justiça. Arthur ia ler as
petições da manhã seguinte, uma prática que seguia como homem consciencioso. Nesses dias, a Lei
era seu principal interesse, seu esforço final contra a Força.

Na época de Uther Pendragon não existia realmente uma lei digna desse nome, exceto uma espécie
de etiqueta infantil e parcial reservada às classes superiores. Mesmo agora, desde que o Rei
começou a encorajar a Justiça para conter de vez o poder da Força Maior, havia-se que lidar com
três tipos de lei. Ele estava tentando fundir a Lei dos Costumes, a Lei Canônica e a Lei Romana em
um único código, que esperava poder chamar de Código Civil. Essa ocupação, assim como a
leitura das petições da manhã, era o que costumava obrigá-lo a trabalhar todas as noites na solidão
e no silêncio do Salão de Justiça.

O Salão de Justiça estava na outra extremidade do palácio. E não estava vazio como deveria estar.

Embora houvesse cinco pessoas ali, esperando pelo Rei, talvez a primeira coisa que um visitante
moderno notasse fosse o próprio salão. O que surpreendia nele é que as tapeçarias o faziam ficar
quadrado. Já era noite, de forma que as janelas estavam cobertas, e as portas jamais ficavam
descobertas. O resultado é que você se sentiria como se estivesse numa caixa: teria a sensação
estranha de fechamento simétrico que deve ser conhecida pelas borboletas nas garrafas em que
morrem. Como se fosse um quebra-cabeças chinês, você ficaria imaginando como as cinco pessoas
foram introduzidas ali. Por todas as paredes, do chão ao teto, em fila dupla, as histórias de Davi e
Betsabé, Suzana e os anciãos, eram contadas em quadros flexíveis, com cores alegres e fortes. As
coisas esmaecidas que vemos hoje não têm nada a ver com as tapeçarias brilhantes que faziam do
Salão de Justiça uma caixa pintada.

Os cinco homens cintilavam à luz de velas. Havia pouca mobília para distrair os olhos das figuras
deles — apenas uma mesa comprida com pergaminhos espalhados para inspeção do Rei, o trono do
Rei e, no canto, uma mesa de leitura alta, com o respectivo assento. O colorido do lugar estava nas
paredes e nos homens. Cada um deles vestia uma túnica de seda blasonada com a divisa e os três
cardos, e os irmãos mais novos com as marcas de membros mais jovens da família, de modo que
pareciam uma mão com as cartas abertas. Era a família Gawaine e, como de costume, discutiam.


Gawaine disse:

— Pela última vez, Agravaine, vai fechar a matraca? Nã vou mi meter nisso.
— Eu também não — acrescentou Gareth. Gaheris disse:
— Nem eu.
— Si teimar com isso, vã quebrar o clã. Já disse claramente qui nenhum di nós vai ajudar. Vã se
meter em confusa sozinhos.
Mordred esperava com paciência trocista.

— Estou do lado de Agravaine — disse. — Lancelot e minha tia são uma vergonha para todos nós.
Agravaine e eu assumiremos a responsabilidade, se ninguém mais o fizer.
Gareth voltou-se raivoso para ele.

— Vocês estão sempre prontos para se meter em qualquer coisa vergonhosa.
— Obrigado.
Gawaine fez um esforço para ser conciliador. Não era uma pessoa conciliadora, de forma que o
esforço parecia realmente físico, como um terremoto.

— Mordred — disse —, por favor, escute. Seja um bravo rapaz i deixa isso passar. Sou o mais
velho de todos, i posso ver o mal qui virá disso.
— Venha o que vier, irei ao Rei.
— Mas Agravaine, si fizer isso, vai provocar guerra. Nã percebe que Arthur i Lancelot vã ter qui ir
um contra o outro, i metade dos reis da Bretanha vã ficar com Lancelot por conta di sua reputaçã i
isso vai virar u'a guerra civil?
O chefe do clã aproximou-se pesada e desajeitadamente de Agravaine, como se fosse um animal
bem-humorado fazendo um truque, e deu-lhe uma palmadinha com a pata gigantesca.

— Vamos, homem. Esqueça a briga dessa tarde. Todo homem tem sus fúrias mas, afinal, somos
irmãos. Nem imagino como v'cê pode ir contra Sir Lancelot, sabendo o qui ele fez pra nós todo
esse tempo. Si esqueceu qui ele salvou v'cê i Mordred, lá do Sir Turquine? Qui cabeça! Devemos a
ele a vida dos dois. I também mi vida, homem, por causa de Sir Carados na Torre Dolorosa.
— Ele só fez isso por sua própria honra.
Gareth voltou-se para Mordred.
— Entre nós, você pode dizer o que quiser sobre Lancelot e Guenevere porque infelizmente é
verdade, mas não consentirei que faça nenhuma troça. Quando cheguei na corte como pajem da
cozinha, ele foi a única pessoa decente comigo. Não tinha a menor idéia de quem eu era, mas me
dava gorjetas, me animava e me defendia de Kay, e foi ele que me sagrou cavaleiro. Todo mundo
sabe que jamais fez nenhuma maldade na vida.
— Quando eu era um jovem cavaleiro — disse Gawaine —, Deus qui mi perdoe, mas mi metia em
luta erradas i mi deixava levar pela paixã... sim, i matei um cavaleiro depois qui ele si rendeu. I

também matei u'a moça. Mas Lancelot nunca fez mal a quem era mais fraco qui ele.
Gaheris acrescentou:

— Ele protege os jovens cavaleiros e tenta ajudá-los a ganhar as esporas. Não entendo como pode
ter raiva dele.
Mordred sacudiu os ombros, dando um piparote na manga do seu casaco, e fingiu bocejar.


— Quanto a Lancelot — observou —, Agravaine é que está atrás dele. Minha disputa é com o
alegre monarca.
— Lancelot — declarou Agravaine — está acima de sua posição.
— Não está não — disse Gareth. — É o maior homem que conheço.
— Não tenho nenhuma paixão de escolar por ele.
Do outro lado da tapeçaria, uma porta rangeu nas dobradiças. O trinco estalou.
— Paz, Agravaine — insistiu suavemente Gawaine. — Veja o qui vai dizer.
— Não vou me calar.
A mão de Arthur levantou a cortina.
— Por favor, Mordred — sussurrou Gareth. O Rei entrou na sala.
— Afinal, é apenas certo — disse Mordred, levantando a voz para ser ouvido — que nossa Távola
Redonda faça justiça.
Agravaine também, fingindo não notar que alguém tinha chegado, acrescentou sua resposta em voz
alta:


— É tempo que alguém diga a verdade.
— Mordred, fica quieto!
— E nada mais que a verdade! — concluiu o corcunda com uma espécie de triunfo.
Arthur, que viera pisando duro pelos corredores de pedra de seu palácio, com a mente fixa no
trabalho que tinha pela frente, ficou parado na porta sem demonstrar surpresa. Os homens da divisa
e do cardo, voltando-se para ele, viram o velho Rei no seu último minuto de glória. Ficaram um
instante em silêncio e Gareth, com a dor do reconhecimento, o viu como era. Não um herói de
romance, mas um homem simples que tinha feito o melhor possível; não um líder da cavalaria, mas


o pupilo que tentara ser fiel a seu mestre extravagante, o mago, pensando o tempo todo; não Arthur
da Inglaterra, mas um velho cavalheiro solitário que passara metade de sua vida portando a coroa
nas garras do destino.
Gareth ajoelhou-se diante dele.


— Não temos nada com isso.
Gawaine, apoiando-se mais vagarosamente em um joelho, juntou-se a ele no chão.
— Senhor, vim tentando controlar mis irmãos, mas eles nã mi escutam. Nã quero ouvir o qui vã

dizer.
Gaheris foi o último a se ajoelhar.


— Queremos sair antes que falem.
Arthur atravessou o salão e levantou Gawaine gentilmente.
— Claro que pode sair, meu caro, se desejar — disse. — Espero que isso não lhe traga problemas
familiares.
Gawaine voltou-se sombrio para os demais.


— Será um problema — disse, envolvendo-se na velha linguagem da cavalaria como em um manto
— que há de destruir a flor da cavalaria em todo o mundo; um dano causado à nossa nobre
fraternidade. E tudo por causa de dois infelizes cavaleiros.
Quando Gawaine saiu desdenhosamente da sala, empurrando Gareth à sua frente e seguido por
Gaheris, o Rei caminhou para o trono em silêncio, com um gesto de imponência. Tirou duas
almofadas do assento e colocou-as nos degraus.


— Bem, sobrinhos — disse calmamente —, sentem-se e me digam o que quiserem.
— Preferimos ficar em pé.
— Podem ficar à vontade, é claro.
Esse começo não convinha à política de Agravaine. Ele protestou.
— Ora, Mordred, vamos! Nenhum de nós está brigando com o Rei. Ninguém pensa nisso.
— Ficarei de pé.
Agravaine sentou-se humildemente em uma das almofadas.
— Prefere ficar com as duas almofadas?
— Não, obrigado, senhor.
O velho observou e esperou — como um homem que vai ser enforcado submete-se ao carrasco,
mas que não ajudaria com o nó. Observou-os com uma ironia cansada, deixando o trabalho por
conta deles.


— Talvez seja mais sensato — disse Agravaine, com relutância bem estudada — não dizer mais
nada sobre isso.
— Talvez seja.
Mordred atacou a situação com violência.
— Isto é ridículo. Viemos dizer algo a nosso tio e é certo que devemos dizer-lhe.
— É desagradável.
— Neste caso, meus caros rapazes, se preferirem, não falemos mais desse assunto. As noites de
primavera são belas demais para que nos preocupemos com coisas desagradáveis, portanto vocês

não querem sair e fazer as pazes com Gawaine? Podiam pedir-lhe emprestado aquele seu açor
esperto para amanhã. A Rainha estava justamente mencionando como gostaria de ter uma jovem
lebre para o jantar.

Ele lutava por ela, talvez por todos eles. Mordred, olhos brilhantes fixos em seu pai, anunciou sem
preâmbulo:

— Viemos dizer-lhe o que todas as pessoas nesta corte sempre souberam. A Rainha Guenevere é
abertamente amante de Sir Lancelot.
O velho inclinou-se para ajeitar seu manto. Enrolou as pontas nos pés para mantê-los quentes,
levantou-se e olhou os dois no rosto.

— Estão prontos para provar essa acusação?
— Estamos.
— Vocês sabem — perguntou gentilmente — que isso já foi feito antes?
— O contrário é que seria extraordinário.
— A última vez que rumores desse tipo circularam foram provocados por uma pessoa chamada Sir
Meliagrance. Como o assunto não era suscetível de prova de outra maneira, a decisão foi deixada
para um combate pessoal. Sir Meliagrance caluniou a Rainha de traição, e ofereceu lutar por sua
opinião. Felizmente, Sir Lancelot foi gentil o suficiente para defender Sua Majestade. Vocês se
lembram do resultado?
— Lembramos bem.
— Quando finalmente aconteceu ajusta, Sir Meliagrance caiu de costas no chão e insistiu em se
render a Sir Lancelot. Foi impossível fazê-lo se levantar para lutar, até que Lancelot ofereceu tirar
o elmo, o lado direito de sua armadura, e ter uma de suas mãos amarradas às costas. Sir
Meliagrance aceitou a oferta e foi devidamente decapitado.
— Sabemos disso tudo — exclamou o irmão mais novo, impaciente. — O combate pessoal não tem
significado. De qualquer forma, não é boa justiça. São os sicários que ganham.
Arthur suspirou e cruzou as mãos. Continuou com a voz calma que não havia levantado.

— Você ainda é muito jovem, Mordred. Ainda terá que aprender que todas as formas de fazer
justiça são injustas. Se puder sugerir outra forma de resolver assuntos duvidosos, salvo o combate
pessoal, estou pronto para escutá-lo.
— Como Lancelot é mais forte que todos os demais, e sempre defende a Rainha, isso não quer
dizer que a Rainha tenha sempre razão.
— Tenho certeza de que não. Mas veja, os pontos em disputa devem ser resolvidos de alguma
forma depois que são levantados. Se uma acusação não pode ser provada, então ela deve ser
resolvida de outra forma, e quase todas essas formas são injustas para alguém. Não se trata de
desafiar pessoalmente o campeão da Rainha, Mordred. Pode alegar enfermidade e contratar o
homem mais forte que conheça para lutar por você, e a Rainha, é claro, vai procurar o homem mais

forte que conheça para lutar por ela. Seria praticamente a mesma coisa se cada um de vocês
contratasse o melhor argumentador que conhecessem para argumentar a seu favor. Em última
instância, geralmente é a pessoa mais rica que ganha, seja por contratar o argumentador mais
persuasivo ou o melhor combatente, portanto, não adianta fingir que é simplesmente uma questão de
força bruta.

— Não, Agravaine — prosseguiu ele, quando este fez um movimento para falar. — Não me
interrompa agora. Quero deixar claro uma coisa sobre essas decisões por combate pessoal. Até
onde percebo, é um assunto de riqueza: de riqueza, e pura sorte e, é claro, há a vontade de Deus.
Quando as riquezas são iguais, podemos dizer que ganha o lado que tiver mais sorte, como se fosse
uma disputa com moeda. Agora, vocês dois têm certeza, se acusarem a Rainha Guenevere de
traição, de que o lado de vocês terá mais sorte?
Agravaine entrou na conversa com sua imitação de timidez. Tinha bebido com moderação e sua
mão já não tremia.


Mas se isso acontecesse, um de seus ajudantes imediatamente o montaria em seu próprio cavalo
— tal como hoje se faz com o caçador-chefe — porque essa era a lei feudal. No norte distante,
sob o esmaecer do pôr-do-sol, poderia se perceber a luz da cabana de alguma bruxa ocupada...


— Se me desculpar, tio, o que ia dizer é o seguinte. Esperávamos resolver o assunto sem nenhum
combate pessoal.
Arthur imediatamente levantou a cabeça.

— Vocês sabem muito bem que o julgamento por ordálio foi abolido — disse — e, para fazer isso
por purgação, seria impossível achar o número necessário de pares para uma Rainha.
Agravaine sorriu.

— Não conhecemos muito as novas leis — disse suavemente —, mas pensamos que quando uma
afirmação pudesse ser provada num desses seus novos tribunais, não se levantaria o caso decombate pessoal. É claro, podemos estar enganados.
— Julgamento por júri — observou Sir Mordred com insolência —, não é assim que é chamado?
Um tipo de espetáculo de feira.
Agravaine, exultante em sua mente fria, pensou: "Vítima de suas próprias invenções!".
O Rei tamborilou seus dedos no braço do trono. Eles estavam pressionando, atacando pelo flanco e


o faziam recuar. Então disse lentamente:
— Vocês conhecem a lei muito bem.
— Por exemplo, tio, se Lancelot fosse realmente surpreendido na cama de Guenevere, diante de
testemunhas, então não haveria necessidade de combate, não é certo?
— Se me desculpar por dizer isso, Agravaine, prefiro que se refira à sua tia por seu título, pelo
menos diante de mim, mesmo em relação a este assunto.
— Tia Jenny — assinalou Mordred.
— Sim, acredito ter escutado Sir Lancelot chamá-la por esse nome.
— "Tia Jenny!" "Sir Lancelot!" "Se me desculpar por dizer isso!" E eles provavelmente estão se
beijando agora mesmo.
— Ou você fala educadamente, Mordred, ou então se retira de minha sala.
— Tenho certeza de que ele não quer parecer arrogante, tio. É só que está revoltado com a desonra
do bom nome do Rei. Queremos pedir justiça, e Mordred sente muito — bem — por sua Casa. Não
é verdade, Mordred?
— Não me importo nada com minha Casa.
O Rei, cujo rosto ficava cada vez mais pálido, suspirou e manteve sua paciência.
— Bem, Mordred — ele disse —, é melhor não nos perdermos em ninharias. Já não tenho
resistência para grosserias. Você me diz que minha esposa é amante do meu melhor amigo, e
aparentemente quer provar isso por demonstração, então vamos nos restringir a isso. Considero que
sabe as implicações da acusação...

— Não, não sei.
— Tenho certeza de que Agravaine sabe, pelo menos. As implicações são estas. Se você insistir
em provar isso no tribunal, em vez de apelar para uma Corte de Honra, o assunto irá prosseguir de
acordo com as provas civis. Se provar sua acusação, o homem que salvou vocês dois de Sir
Turquine terá a cabeça cortada, e minha esposa, a quem amo muito, terá que ser queimada viva, por
traição. Se você fracassar era provar seu caso, devo lhe avisar que banirei você, Mordred, o que o
privará de qualquer esperança de sucessão, tal como é e, por sua vez, condenarei Agravaine à
fogueira porque, ao fazer a acusação, estaria ele mesmo cometendo traição.
— Todo mundo sabe que podemos provar imediatamente nossa acusação.
— Muito bem, Agravaine: você é um advogado esperto e está determinado a usar a lei. Suponho
que não adiante nada lembrar vocês que existe uma coisa chamada misericórdia?
— O tipo de misericórdia — perguntou Mordred — que colocava bebês à deriva, em barcos?
— Obrigado, Mordred. Estava me esquecendo.
— Não queremos misericórdia — disse Agravaine. — Queremos justiça.
Arthur apoiou os cotovelos nos joelhos e cobriu os olhos com os dedos. Permaneceu curvado por
algum tempo, reunindo as forças do dever e da dignidade, e depois falou com a mão cobrindo a
boca.

— Como vocês pretendem provar?
O homem corpulento era todo polidez.
— Se consentir ficar fora por uma noite, tio, podemos reunir um bando armado e capturar Lancelot
no quarto da Rainha. Você deverá estar fora, ou lá ele não irá.
— Não acho realmente que possa preparar uma armadilha para minha própria esposa. Acho que é
justo dizer que o ônus da prova está com vocês. Sim, acho que isso é justo. Tenho claramente o
direito de me recusar a me tornar ... bem, uma espécie de cúmplice. Não faz parte do meu dever me
ausentar de propósito para ajudá-los. Não, posso perfeitamente me recusar a fazer isso de coração
aberto.
— Mas não pode se recusar para sempre a se ausentar. Não pode passar o resto da vida atado à
Rainha, com o objetivo de manter Lancelot longe dela. E a caçada que estava programada para a
próxima semana? Se não participar dela, estará deliberadamente alterando seus planos para
distorcer a justiça.
— Ninguém consegue distorcer a justiça, Agravaine.
— Então você irá à caçada, tio Arthur, e nós temos permissão para arrombar o quarto da Rainha se
Lancelot estiver lá?
O júbilo em sua voz era tão indecente que até mesmo Mordred ficou enojado. O Rei levantou-se,
apertando a roupa ao seu redor, como se quisesse aquecer-se.

— Nós iremos.

— E não irá avisá-los? — a voz do sujeito se atropelava com a excitação. —Não irá preveni-los
depois de termos feito a acusação? Não seria justo?
— Justo? — ele perguntou.
O Rei olhou-os de uma distância imensa, parecendo pesar a verdade, a justiça, a maldade e os
problemas dos homens.

— Têm a nossa permissão.
Seus olhos voltaram da distância, fixando-se neles como o brilho dos olhos de um falcão.
— Mas se puder lhes dizer uma coisa, Mordred e Agravaine, como pessoa privada, a única
esperança que tenho agora é que Lancelot mate os dois e todas as testemunhas — uma façanha que,
estou orgulhoso em dizer, nunca está além dos poderes de meu Lancelot. E devo acrescentar
também que, como ministro da Justiça, se vocês falharem minimamente em provar essa acusação
monstruosa, vou processá-los sem compaixão, com todo o rigor da lei que vocês mesmos puseram
em movimento.

VI


Lancelot sabia que o Rei fora caçar na Floresta Nova, portanto, tinha certeza de que a Rainha o
mandaria chamar. Estava escuro em seu quarto, exceto por uma vela em frente ao quadro de um
santo, e ele andava de um lado para o outro de roupão. Salvo pelo alegre roupão, e por uma
espécie de turbante na cabeça, estava pronto para a cama, ou seja, estava nu.

Era um quarto sombrio, sem luxos. As paredes eram nuas e não havia nenhum dossel sobre a cama
pequena e dura. As janelas não tinham vidro. Tinham uma espécie de tela de linho oleado esticada
sobre elas. Grandes comandantes muitas vezes têm esses quartos de dormir simples, de campanha

— dizem que o Duque de Wellington costumava dormir numa cama de campanha no Castelo
Walmer —, sem móveis, exceto talvez uma cadeira ou um velho baú. O quarto de Lancelot tinha um
desses, parecido com um caixão com cintas de metal. Fora isso e a cama, nada mais havia para ser
visto — a não ser a enorme espada encostada na parede, com as correias penduradas atrás dela.
Havia um bacinete deixado em cima da arca. Depois de algum tempo, ele o pegou e o aproximou da
vela, e lá ficou com a mesma expressão de espanto que teve o menino tanto tempo atrás — olhando
seu reflexo no aço. Colocou-o de volta e recomeçou a andar.

Quando escutou a batida na porta, pensou que fosse o sinal. Estava pegando a espada e estendendo
a mão para a maçaneta quando a porta abriu sozinha. Gareth entrou.

— Posso entrar?
— Gareth!
Olhou surpreso para ele, e depois disse sem entusiasmo:
— Entre. É bom ver você.
— Lancelot, vim preveni-lo.
Depois de olhar com atenção, o velho abriu um sorriso.
— Santo Deus! — disse. — Espero que não venha me prevenir de algo sério.
— Sim, é sério.
— Bem, entra e fecha a porta.
— Lancelot, é sobre a Rainha. Nem sei como começar.

— Então nem se importe com isso.
Pegou o jovem pelos ombros e começou a levá-lo de volta para a porta.
— Muito obrigado por vir me avisar — ele disse, apertando os ombros —, mas não acho que você
possa me contar nada que eu não saiba.
— Oh, Lancelot, você sabe que eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Não sei o que os outros dirão
quando souberem que estive com você. Mas não podia deixar de vir.
— Qual é o problema?
Ele interrompeu seus movimentos e olhou novamente para o jovem.
— É Agravaine e Mordred. Eles odeiam você. Ou, pelo menos, Agravaine odeia. Tem ciúmes.
Mordred odeia mais Arthur. Tentamos o máximo impedi-los, mas eles foram em frente. Gawaine
diz que não quer ter nada com isso, por nenhum lado, e Gaheris nunca foi muito bom para decidir o
que fazer. Então tive que vir eu mesmo. Tinha que vir, mesmo que seja contra meus próprios irmãos
e o clã, porque devo tudo a você, e não podia deixar que acontecesse.
— Meu pobre Gareth! Em que estado você está!
— Eles foram até o Rei e lhe disseram de frente que você... que você vai para o quarto da Rainha.
Tentamos impedi-los, e não ficamos para ouvir, mas foi isso que contaram.
Lancelot soltou o ombro. Deu duas passadas pelo quarto.


— Não se preocupe com isso — disse, voltando-se para o visitante. — Muitas pessoas disseram
isso antes e não deu em nada. Isso passa.
— Não desta vez. Posso sentir isso dentro de mim.
— Bobagem.
— Não é bobagem, Lancelot. Eles o odeiam. Não vão tentar um combate desta vez, não depois de
Meliagrance. São espertos demais. Vão preparar uma armadilha para você. Vão atacar você por
trás.
Mas o veterano apenas sorriu e lhe deu uma palmadinha.


— Você está imaginando coisas — anunciou. — Vá para casa e para a cama, meu amigo, e esqueça
tudo. Foi gentil de sua parte ter vindo, mas vá para casa, fique tranqüilo e tenha um bom sono. Se o
Rei fosse criar confusão, jamais teria ido à caçada.
Gareth mordeu os dedos, criando ânimo para olhar direto no rosto de Lancelot. Finalmente disse:


— Por favor, não vá ao quarto da Rainha esta noite.
Lancelot ergueu uma de suas extraordinárias sobrancelhas, mas logo a abaixou.
— Por que não?
— Tenho certeza de que é uma armadilha. Tenho certeza de que o Rei saiu esta noite de propósito
para que você vá até lá e então Agravaine possa surpreendê-los.

— Arthur jamais faria uma coisa dessas.
— Ele fez.
— Bobagem. Conheço Arthur desde que você estava em cueiros e ele não faria isso.
— Mas é um risco!
— Se for um risco, vou gostar.
— Por favor!
Desta vez ele pôs a mão na nuca de Gareth e começou a levá-lo de verdade para a porta.
— Ora, meu querido pajem da cozinha, simplesmente escute. Em primeiro lugar, conheço Arthur;
em segundo, conheço Agravaine. Você acha que devo ter medo dele?
— Mas traição...
— Gareth, uma vez, quando eu era jovem, uma dama passou por mim, correndo atrás de um falcão
peregrino que havia se soltado da linha. A parte da linha que se arrastava se enredou em uma
árvore e o falcão ficou preso lá no alto. A dama me convenceu a subir na árvore e pegar seu
pássaro. Nunca fui muito de subir em árvores. Quando cheguei no alto e libertei o falcão, apareceu
o marido da dama com armadura completa e disse que ia cortar minha cabeça. Toda essa história
do falcão era uma armadilha para me fazer tirar a armadura, para que eu ficasse à mercê dele. Eu
estava na árvore só de camisa, sem ao menos uma adaga.
— Sim?
— Bem, eu o derrubei com um galho. E ele era um homem muito melhor que Agravaine, mesmo que
tenhamos ficado um pouco reumáticos desde aqueles belos dias.
— Eu sei que você pode lidar com Agravaine. Mas suponha que ele o ataque com um bando
armado?
— Ela não vai fazer isso.
— Vai sim.
Alguém arranhou a porta, um tamborilar gentil. Um rato podia ter feito o barulho, mas os olhos de
Lancelot ficaram vagos.

— Bem, se ele fizer, terei que lutar contra o bando — disse abruptamente. — Mas é uma situação
imaginária.
— Você não pode deixar de ir esta noite?
Tinham alcançado a porta e o capitão do Rei falou com decisão.
— Olha — disse —, se quer saber, a Rainha mandou me chamar. Não posso recusar uma vez que
fui chamado, não é?
— Então, minha traição aos Antigos será inútil?
— Não inútil. Quem quer que saiba o amará por isso. Mas podemos confiar em Arthur.

— E você irá a despeito de tudo?
— Sim, pajem da cozinha, e vou neste instante. Deus do céu, não faça esse olhar tão trágico. Deixe
por conta deste patife experiente e corra para a cama.
— Isso significa adeus.
— Bobagem, isso quer dizer boa-noite. E, além do mais, a Rainha está esperando.
O velho jogou o manto por cima do ombro, tão facilmente quanto se ainda estivesse no frescor da
juventude. Levantou o trinco e ficou parado na porta, pensando no que tinha esquecido.

— Se eu pudesse deter você!
— Ah!, não pode.
Entrou na escuridão do corredor, tirou o assunto de sua mente e desapareceu. O que ele esqueceu
foi sua espada.


VII


Guenevere esperou Lancelot sob a luz de velas, em seu esplêndido quarto de dormir, escovando
seus cabelos grisalhos. Parecia singularmente adorável, não como uma estrela de cinema, mas
como uma mulher que ganhara uma alma. Cantava consigo mesma. Era um hino — entre todas as
coisas —, o belo Veni, Sante Spiritus, que se supõe ter sido escrito por um papa.

As chamas das velas, levantando-se serenas ao ar noturno, refletiam-se nos lioncelos dourados que
guarneciam o azul profundo do dossel da cama. Os pentes e escovas brilhavam com ornamentos
feitos de massa. Uma grande arca de latão polido tinha santos e anjos esmaltados nos painéis. As
cortinas brocadas brilhavam nas paredes em pregas suaves, e, no assoalho, havia uma tapeçaria
genuína, um luxo exagerado e repreensível. Isso fazia as pessoas se intimidarem quando
caminhavam por cima, já que tapeçarias não eram destinadas aos assoalhos. Arthur costumava
passar de lado.

Guenevere cantava e escovava os cabelos, sua voz baixa combinando com a imobilidade das
chamas, quando a porta se abriu suavemente. O comandante-em-chefe deixou seu manto na arca e
atravessou o quarto para ficar atrás dela. Ela o viu pelo espelho, sem surpresa.

— Posso fazer isso por você?
— Se quiser.
Ele pegou a escova e começou a passá-la pela avalanche de prata com dedos ágeis pela prática,
enquanto a Rainha fechava os olhos. Depois de algum tempo ele falou.

— É como... Nem sei o quê. Não como seda. Parece mais água caindo, só que há algo nubladoneles. As nuvens são feitas de água, não é? É um orvalho tênue, ou o mar no inverno, ou uma
cachoeira, ou um monte de feno na geada? Sim, é um monte de feno, profundo, suave e cheiroso.
— É um aborrecimento — disse ela.
— É o mar em que nasci — ele disse solene. A Rainha abriu os olhos e perguntou:
— Você chegou em segurança?
— Ninguém me viu.

— Arthur disse que voltava amanhã.
— Foi? Olha aqui um cabelo branco.
— Arranque-o.
— Pobre fio de cabelo — disse ele. — É bem fino. Porque seu cabelo é tão bonito, Jenny? Eu teria
que trançar uns seis deles juntos para que ficasse grosso como um dos meus. Devo puxar?
— Sim, puxe.
— Doeu?
— Não.
— E por que não? Quando eu era criança, costumava puxar os cabelos das minhas irmãs, e elas os
meus, e doía furiosamente. Será que perdemos nossas faculdades quando envelhecemos, para não
sentiremos mais nossas dores e alegrias?
— Não — ela explicou. — É porque você puxou só um fio.
Quando se arranca um cacho inteiro, então dói. Olhe.
Ele abaixou a cabeça para que ela a alcançasse, e ela, se esticando para trás com um braço branco,
girou um cacho em seus dedos. E puxou até ele fazer uma careta.

— Sim, ainda dói. Que alívio!
— Era assim que suas irmãs puxavam?
— Sim, mas eu puxava os cabelos delas com muito mais força. Sempre que eu me aproximava de
uma delas, escondiam as trancas com as duas mãos e me olhavam fixamente.
Ela riu.

— Ainda bem que eu não era uma de suas irmãs.
— Oh, mas eu jamais puxaria os seus cabelos. Eles são bonitos demais. Eu ia querer fazer outras
coisas com eles.
— O que você faria?
— Eu teria... bem, acho que me enroscaria dentro deles como um ratinho e iria dormir. É isso que
eu gostaria de fazer agora.
— Não até terminar.
— Jenny — ele perguntou de repente —, você acha que isto vai durar?
— O que quer dizer?
— Gareth veio me ver há pouco. Ele queria me avisar que Arthur tinha saído de propósito para que
se armasse uma armadilha, e que Agravaine e Mordred viriam nos agarrar.
— Arthur jamais faria uma coisa dessas.
— Foi isso que eu disse.

— A menos que fosse obrigado — ela refletiu.
— Não sei como poderiam fazer isso. Ela saiu pela tangente.
— Foi bonito Gareth ir contra os irmãos.
— Sabe, acho que ele é uma das melhores pessoas da corte. Gawaine é decente, mas tem o pavio
curto e não perdoa.
— É leal.
— Sim, Arthur costumava dizer que para alguém que não fosse das Órcades, eles pareceriam
assustadores; mas se você fosse um deles, era um homem de sorte. Eles brigam como gatos, mas
realmente adoram uns aos outros. E um clã.
A tangente da Rainha, de alguma maneira, colocara-a novamente de volta ao círculo.

— Lance — ela perguntou espantada —, você acha que eles podem ter forçado a mão com o Rei?
— Como assim?
— Arthur tem um terrível senso de justiça.
— Sei disso.
— Houve aquela conversa semana passada. Acho que ele tentava nos avisar. Ouça! Você escutou
alguma coisa?
— Não.
— Pensei ter escutado alguém à porta.
— Vou ver.
Ele foi até a porta e a abriu, mas não havia ninguém lá.
— Um falso alarme.
— Então tranque-a.
Ele deslizou a trave de madeira pela porta — uma enorme barra de quinze centímetros de
espessura, que correu por uma ranhura escavada na parede. Voltando para perto do castiçal,
começou a separar os cabelos brilhantes em partes adequadas para começar agilmente a trançá-los.


— É bobagem ficar nervosa — ele observou.
Ela ainda estava especulando, entretanto, e respondeu com uma pergunta.
— Você se lembra de Tristão e Isolda?
— Claro que sim.
— Tristão dormia com a esposa do Rei Mark, e o Rei o assassinou por causa disso.
— Tristão era um estúpido.
— Eu o achava um bom sujeito.

— Isso é o que ele queria que você achasse. Mas era um cavaleiro da Cornualha, como o resto
deles.
— Diziam que era o segundo melhor cavaleiro do mundo. Sir Lancelot, Sir Tristão, Sir Lamorak...
— Isso era falatório.
— Por que você acha que ele era estúpido?
— Bem, é uma longa história. Você não se lembra o que era a cavalaria antes que seu Arthur
começasse a Távola Redonda, então nem sabe com que gênio se casou. Não sabe a diferença que
existe entre Tristão e, bem, Gareth, por exemplo.
— Qual a diferença?
— Nos velhos tempos, era cada cavaleiro por si. Os velhos personagens, gente como Sir Bruce
Saunce Pite, eram piratas. Sabiam que, dentro da armadura, eram invencíveis, e faziam o que
queriam. Era assassinato aberto e lascívia descarada. Quando Arthur chegou ao trono, eles ficaram
furiosos. Você sabe, Arthur acreditava no Certo e no Errado.
— E ainda acredita.
— Felizmente também tinha um caráter tenaz como essa idéia que lhe ocorreu. Levou cinco anos
para conseguir pô-la de pé, mas era a idéia de que as pessoas deviam ser gentis. Eu devo ter sido
um dos primeiros cavaleiros a captar dele a idéia da gentileza, e a captei jovem, e isso passou a
fazer parte de mim. Todo mundo vive dizendo como sou um cavaleiro perfeito e gentil, mas issonão tem nada a ver comigo. É idéia de Arthur. Foi ele quem desejou que a geração mais jovem
fosse assim, como Gareth, e agora virou moda. Isso levou à busca do Graal.
— E por que Tristão era estúpido?
— Bem, ele era. Arthur diz que era um bufão. Vivia na Cornualha, nunca tinha sido educado por
Arthur, mas ouviu falar da moda. Meteu na cabeça uma idéia embaralhada de que os cavaleiros
deviam ser gentis, e ficava sempre correndo para estar na moda, sem realmente entender ou sentir
isso dentro dele. Era uma espécie de imitador. Por dentro, não era nem um pouco gentil. Tratava
mal a mulher, estava sempre provocando o velho Sir Palomides porque era negro, e tratou o Rei
Mark da maneira mais vergonhosa. Os cavaleiros da Cornualha são Antigos e, no fundo, sempre
foram hostis à idéia de Arthur, mesmo que a tenham adotado em parte.
— Como Agravaine.
— Sim. A mãe de Agravaine era da Cornualha. A razão pela qual Agravaine me odeia é que eudefendo a idéia. É engraçado, mas todos os três de nós que as pessoas comuns diziam ser os três
melhores cavaleiros — quero dizer Lamorak, Tristão e eu — foram odiados pelos Antigos. Eles
ficaram felizes quando Tristão foi assassinado por ter copiado a idéia e, é claro, foi a família de
Gawaine que matou Sir Lamorak à traição.
— Eu acho — disse ela — que a razão pela qual Agravaine odeia você é a velha história das uvas
verdes. Não acho que se importe nem um pouco com a idéia mas, por sua natureza, inveja qualquer
um que seja melhor combatente que ele. Detestava Tristão por causa da surra que levou dele a

caminho de Joyous Gard, e ajudou a matar Lamorak porque o rapaz o derrotou nas Justas do
Priorado, e — quantas vezes você o derrubou?

— Nem me lembro.
— Lance, você percebe que as duas outras pessoas que ele odiava estão mortas?
— Todos morrem, cedo ou tarde.
De repente, a Rainha soltou suas trancas do dedo dele. Ela tinha se virado na cadeira e, com uma
mão segurando a trança, olhava-o com os olhos redondos.

— Acredito que é verdade o que Gareth disse! Acredito que estão vindo nos surpreender esta
noite!
Ela pulou da cadeira e começou a empurrá-lo para a porta.

— Vá embora. Vá embora enquanto é tempo.
— Mas, Jenny...
— Não, sem nenhum mais, eu sei que é verdade. Posso sentir isso. Aqui está seu manto. Oh, Lance,
por favor, saia rápido. Eles esfaquearam Sir Lamorak pelas costas.
— Ora, Jenny, não se excite com miragens. É só sua imaginação...
— Não é minha imaginação. Escuta. Escuta.
— Não ouço nada.
— Olha para a porta.
A maçaneta que levantava o trinco da porta, uma peça de ferro batido, moldada como uma
ferradura, movia-se suavemente para a esquerda. Mexia como um caranguejo, incerta.

— O que é que há com a porta?
— Olha a maçaneta!
Ficaram olhando fascinados, enquanto a maçaneta se mexia cegamente, em saltos, uma exploração
cuidadosa, hesitante.

— Oh, Deus — ela sussurrou. — Agora é tarde demais!
A maçaneta voltou para seu lugar e ouviu-se uma batida alta de ferro contra a madeira da porta. Era
uma boa porta de tábuas duplas, uma com o veio correndo verticalmente e a outra na horizontal, e
estava sendo atacada do outro lado com uma manopla. A voz de Agravaine, ecoando na caverna de
seu elmo, gritou:

— Abram a porta em nome do Rei!
— Estamos perdidos — disse ela.
— Cavaleiro traidor — gritou a voz relinchante, enquanto a madeira tremia sob o metal. — Sir
Lancelot, agora o agarramos.

Muitas outras vozes se juntaram à balburdia. Muitas outras armaduras, agora que já não havia
necessidade de precaução, subiam barulhentas pela escada de pedra.

Lancelot resvalou, de forma inconsciente também, para a linguagem da cavalaria.

— Há de existir alguma armadura na câmara — perguntou — com que eu possa cobrir meu corpo?
— Não há nada. Nem mesmo uma espada.
Ele ficou parado, olhando a porta com uma expressão intrigada, séria, e as vozes eram como as de
uma matilha de cães.

— Oh, Lancelot — disse ela —, não há nada com que lutar, e você está quase despido. Eles estão
armados e são muitos. Você vai ser morto e eu serei queimada, e nosso amor chegou a um amargo
fim.
Ele estava irritado por não poder resolver o problema.

— Se pelo menos tivesse minha armadura — disse, com irritação. — É ridículo ser agarrado como
um rato na ratoeira.
Olhou em volta do quarto, maldizendo-se por ter esquecido sua arma.

— Cavaleiro traidor — estrondou a voz —, saia da câmara da Rainha!
Outra voz, musical e controlada, gritou com prazer.
— Fiquem sabendo que temos aqui catorze homens armados, e não podem escapar.
Era Mordred, e as batidas ficavam cada vez mais altas.
— Bem, malditos sejam, então — ele disse. — Não podemos continuar com esse barulho. Tenho
que ir ou acordarão todo o castelo.
Ele voltou-se para a Rainha e a tomou nos braços.

— Jenny, vou chamar você de minha nobilíssima Rainha cristã. Você será forte?
— Meu querido.
— Minha adorada Jenny. Vamos nos beijar. Ouça, você sempre foi minha dama especial, e nunca
falhamos antes. Não se assuste desta vez. Se me matarem, lembre-se de Sir Bors. Todos meus
irmãos e sobrinhos virão para cuidar de você. Envie uma mensagem para Bors ou Demaris e, se for
necessário, eles a resgatarão. Eles a levarão a salvo para Joyous Gard, e lá poderá viver em
minhas próprias terras, como a Rainha que é. Você compreende?
— Se você for morto, não vou querer ser resgatada.
— Vai sim — ele disse com firmeza. — É importante que alguém fique vivo para contar nossa
história de forma decente. Essa é a tarefa difícil que cabe a você. Além disso, quero que reze.
— Não. As orações deverão ser feitas por outra pessoa. Se matarem você, poderão me queimar. E
enfrentarei minha morte com a humildade de uma rainha cristã.
Ele a beijou carinhosamente e a colocou na cadeira.


— Tarde demais para discutir — disse ele. — Sei que você será sempre Jenny seja lá o que
aconteça, e eu devo então ser Lancelot.
Depois, ainda olhando preocupado pelo quarto, acrescentou distraidamente:

— Não me importo que tenham me atacado, mas fizeram mal ao envolver você nisso.
Ela o observou, tentando não chorar.
— Eu daria meu pé para ter uma pequena armadura, ou só uma espada, para que pudesse lhes
deixar uma recordação — ele disse.
— Lance, se me matarem e você for salvo, eu ficarei feliz.
— E eu extremamente infeliz — respondeu, vendo-se subitamente tomado de bom humor. — Bem,
bem, vamos fazer o melhor possível. Que me importam meus velhos ossos, acho que vou me
divertir bastante!
Ele colocou as velas no parapeito da arca de Limoges, de forma uqe estivessem atrás de si quando
ele abrisse a porta. Pegou seu manto negro e o dobrou cuidadosamente em quatro no sentido do
comprimento, depois do que envolveu sua mão e antebraço esquerdo como proteção. Pegou o
escabelo do lado da cama e o balançou na sua mão direita, e deu uma última olhada no quarto.
Todo esse tempo o barulho ficava cada vez mais alto lá fora, e dois homens estavam claramente
tentando arrombar a porta com seus machados de combate, tentativa que estava sendo frustrada
pelos veios cruzados da porta dupla. Ele foi até a porta e levantou a voz, com o que imediatamente
se fez silêncio.

— Leais senhores — disse —, parem com o barulho e a confusão. Abrirei esta porta, e então
poderão fazer comigo o que quiserem.
— Então saia — gritaram confusamente. — Faça isso. Não adianta lutar contra nós. Deixe-nos
entrar na câmara. Salvaremos sua vida se se entregar ao Rei Arthur.
Ele encostou o ombro contra a porta que saltava e silenciosamente empurrou a tranca para a
parede. Depois, ainda mantendo a porta firme com seu ombro — as pessoas do lado de fora tinham
parado com as machadadas, sentindo que algo iria acontecer —, apoiou firmemente o pé direito no
chão, a cerca de meio metro do batente da porta, e deixou-a girar e abrir. Com um salto, a porta
parou ao bater em seu pé, deixando uma abertura estreita de forma que ficou mais entreaberta que
escancarada, e um único cavaleiro com armadura completa se esgueirou pela abertura como se
fosse uma marionete. Lancelot bateu a porta atrás de si, deslizou a tranca, agarrou a espada da
figura pelo punho com sua mão protegida, puxou-o para a frente e deu-lhe uma rasteira, ao mesmo
tempo que lhe dava um tremendo golpe com o escabelo enquanto o cavaleiro caía, e num átimo
estava sentado sobre seu peito — tão ágil como sempre. Tudo foi feito com calma e à vontade,
como se o homem armado é que fosse impotente. Aquela grande torre que entrara no quarto com a
altura e a largura de uma armadura, e que ficava um segundo procurando o adversário pela fenda do
elmo, esse homem dava, agora, a impressão de docilidade — parecia ter entrado e entregue sua
espada para Lancelot e se jogado, ele mesmo, no chão. Agora, o vulto de ferro estava deitado,
obediente como nunca, enquanto o homem descalço enfiava a própria espada do homem deitado


pela abertura de ventilação do elmo. O cavaleiro estremeceu um pouco em protesto enquanto
Lancelot pressionava com ambas as mãos o punho da espada.

Lancelot levantou-se, esfregando as mãos no roupão.

— Sinto ter tido que matá-lo. Abriu o visor e olhou:
— Agravaine das Órcades!
A confusão lá fora tornou-se terrível, com marteladas, machadadas e maldições, enquanto Lancelot
virou-se para a Rainha.

— Ajude-me com a armadura — disse rapidamente.
Ela aproximou-se imediatamente, sem repugnância, e os dois ajoelharam-se ao lado do corpo,
retirando as peças vitais.

— Escute — ele disse, enquanto trabalhavam. — Isto nos dá uma boa chance. Se eu conseguir
expulsá-los, voltarei para buscar você, e iremos os dois para Joyous Gard.
— Não, Lance. Já fizemos mal demais. Se conseguir lutar e sair, deve ficar longe daqui até tudo
acabar. Eu ficarei aqui. Se Arthur me perdoar, e se tudo for abafado, então você volta mais tarde.
Se ele não me perdoar, pode vir me resgatar. Aonde vai esta peça?
— Passe para mim.
— Aqui está a outra.
— Seria muito melhor se viesse — ele pressionou, lutando para entrar na cota de malhas como um
jogador de rúgbi se enfiando no uniforme.
— Não. Se eu for, tudo se romperá para sempre. Se eu ficar, talvez possamos arranjar as coisas. E
você sempre pode me resgatar se for necessário.
— Não gosto de deixar você aqui.
— Se eu for condenada e você me resgatar, prometo que irei com você para Joyous Gard.
— E se não?
— Limpe o elmo com sua capa — disse ela. — Se não, então você poderá voltar mais tarde e tudo
será como antes.
— Muito bem. Pronto. Posso dispensar o resto.
Ele se endireitou, segurando a espada ensangüentada, e olhou para o morto que havia assassinado a
própria mãe.

— O irmão de Gareth — disse pensativamente. — Talvez estivesse bêbado. Que Deus o guarde,
embora pareça absurdo dizer isso.
A velha dama fez com que olhasse as velas.

— Isso significa adeus — ela sussurrou —, por algum tempo.
— Significa adeus.

— Dá-me um beijo? — pediu ela.
Ele beijou sua mão, pois estava armado, sujo de sangue e coberto de metal. Os dois pensaram
simultaneamente nos treze homens lá fora.

— Gostaria que levasse algo meu, Lance, e me deixasse alguma coisa sua. Vamos trocar os anéis.
Um deu o anel ao outro.
— Deus esteja com meu anel — ela disse —, tal como eu estou.
Lancelot voltou-se e foi até a porta. Estavam gritando de fora:
— Saia da câmara da Rainha!
— Traidor do Rei!
— Abra a porta!
Faziam o máximo de barulho que podiam para aumentar o escândalo. Ele ficou de pernas abertas
diante do tumulto, e respondeu-lhes na linguagem da honra.

— Parai o barulho, Sir Mordred, e aceitai meu conselho. Saiam todos para longe da porta desta
câmara, e não façam essa confusão e as ofensas que estão insinuando. E se partirem e não fizerem
mais barulho, amanhã comparecerei diante do Rei. E então se verá quem de vocês, ou então se
todos vocês, me acusarão de traição. E lá vos responderei como deve responder um cavaleiro, que
aqui vim sem nenhuma má intenção, e hei de provar isso lá e mostrar a vocês com minhas próprias
mãos.
— Devias ter vergonha, traidor — gritou a voz de Mordred. — Vamos agarrar-vos apesar da sua
destreza, e vos mataremos se for do nosso agrado.
Outra voz gritou:

— Ficai sabendo que o Rei Arthur nos deu a escolha de vos matar ou deixar-vos vivo.
Lancelot abaixou o visor sobre o rosto sombrio e empurrou a tranca com a ponta da espada. A
sólida madeira, abrindo ruidosamente, mostrou o lintel apinhado de homens armados e agitando
archotes.

— Ah, senhores — disse sombriamente —, é só isso que desejam? Então, cuidem-se.

VIII


O clã de Gawaine esperava no Salão de Justiça, uma semana mais tarde. O salão parecia diferente
à luz do dia, porque as janelas estavam descobertas. Já não era uma caixa, não tinha mais a
suavidade levemente ameaçadora ou enganadora das quatro paredes, não era mais o tipo de
ratoeira de tapetes que tentava o espadim de Hamlet a sair desentocando ratos. A luz da tarde
jorrava pelos caixilhos das janelas, iluminando a tapeçaria de Betsabé, sentada com dois seios
redondos numa banheira nas muralhas de um castelo que parecia ter sido construído com tijolos de
brinquedo — fazendo Davi se sobressair no teto ao lado, com coroa, barba e uma harpa —,
ondulando em cima de uma centena de cavalos, lanças paralelas, elmos e armaduras, que enchiam a
cena da batalha na qual Urias foi morto. O próprio Urias caía de seu cavalo, parecendo um
mergulhador sem experiência, sob a influência de um golpe que um dos cavaleiros inimigos
desfechara na região da sua cintura. A espada estava atravessada no meio de seu corpo, de modo
que o pobre homem parecia cortado em duas peças, e uma quantidade de vermes em vermelhão
brotava da ferida de modo espantoso, os quais se supunha serem suas tripas.

Gawaine estava sentado, deprimido, em um dos bancos laterais, colocado ali para os suplicantes,
com os braços cruzados e a cabeça contra a tapeçaria. Gaheris, empoleirado na mesa comprida,
remexia os laços de um capuz de couro para falcões. Estava tentando modificá-los para que
fechassem com mais firmeza, e como o entrelaçamento desses cordões era bastante complicado,
estava completamente perdido. Gareth estava de pé ao seu lado, doido para pegar o capuz com as
próprias mãos, pois tinha certeza de poder fazer o serviço. Mordred, com o rosto lívido e o braço
numa tipóia, estava encostado no vão de uma das janelas, olhando para fora. Ainda sentia dores.

— Deve passar por baixo da fenda — disse Gareth.
— Eu sei, eu sei. Mas estou tentando passar primeiro este.
— Deixe-me tentar.
— Só um instante. Está passando. Mordred disse, da janela:
— O carrasco está pronto para começar.
— Oh.
— Será uma morte cruel — disse ele. — Estão usando madeira curada, e não vai haver fumaça, ela
vai queimar antes de sufocar.

— É o qui v'cê pensa — observou Gawaine, taciturno.
— Pobre velha — disse Mordred. — Quase dá para sentir pena dela.
Gareth voltou-se furioso para ele.
— Você devia ter pensado nisso antes.
— Agora o laço de cima — disse Gaheris.
— Acredito — continuou Mordred, no que era quase um solilóquio — que nosso Suserano deve
assistir à execução desta janela.
Gareth perdeu completamente a paciência.

— Será que não pode fechar a matraca um minuto? Dá para pensar que você gosta de ver pessoas
sendo queimadas.
Mordred respondeu com desdém.

— Você também, na verdade. Só que não acha bonito dizer isso. Vão queimá-la de camisão.
— Pelo amor de Deus, cale-se!
Gaheris disse, no seu jeito lento:
— Acho que você não precisa se preocupar.
Num instante Mordred estava diante dele.
— O que quer dizer com isso, que ele não precisa se preocupar?
— Com certeza nã precisa si preocupar — disse Gawaine, raivoso. — Acha qui Lancelot nã virá
resgatá-la? Ele nã é nenhum covarde, seja lá o que for.
Mordred pensava rapidamente. Sua pose quieta na janela dera lugar à excitação e ao nervosismo.

— Se ele tentar resgatá-la, haverá luta. O Rei Arthur terá que lutar contra ele.
— O Rei Arthur vai observar daqui.
— Mas isso é monstruoso! — ele explodiu. — Quer dizer que Lancelot vai poder escapar com a
Rainha debaixo dos nossos narizes?
— É exatamente o que vai acontecer.
— Mas ninguém vai ser punido!
— Deus do céu, homem — gritou Gareth. — Você quer ver a mulher queimar?
— Sim, eu quero. Sim, eu quero. Gawaine, você vai ficar sentado aí e deixar isso acontecer depois
que seu próprio irmão foi morto?
— Eu avisei Agravaine.
— Seus covardes! Gareth! Gaheris! Façam com que Gawaine tome alguma atitude! Não podem
deixar isso acontecer. Lancelot assassinou Agravaine, o irmão de vocês.

— Até onde compreendi a história, Mordred, Agravaine foi com outros treze cavaleiros, bem
armados, tentar matar Lancelot quando ele estava só de roupão. O desfecho foi que Agravaine foi
morto, com os outros treze cavaleiros — menos um, que fugiu.
— Eu não fugi.
— Você sobreviveu, Mordred.
— Gawaine, juro que não fugi. Lutei contra ele quanto pude. Mas ele quebrou meu braço e eu não
pude fazer mais nada. Por minha honra, Gawaine, tentei lutar.
Ele estava quase chorando.

— Não sou um covarde.
— Se você não fugiu — perguntou Gaheris —, como é que Lancelot deixou você ir embora depois
de matar todos os outros? Era interesse dele matar todos vocês, para que não houvesse testemunhas.
— Ele quebrou meu braço.
— Sim, mas não matou você.
Com a dor do braço, e com a raiva, o homem começou a chorar como uma criança.
— Seus traidores! É sempre assim. Porque não sou forte, vocês se juntam contra mim. Vocês
defendem os idiotas musculosos e não acreditam no que digo. Agravaine está morto e sendo velado,
e vocês não vão punir ninguém por isso. Traidores, traidores! E vão ser sempre assim!
Ele parou quando o Rei entrou. Arthur, parecendo cansado, caminhou vagarosamente até o trono e
sentou-se ali. Acenou para que eles voltassem a seus lugares. Gawaine desabou no banco de onde
se levantara, enquanto Gareth e Gaheris permaneceram de pé, observando o Rei com olhares de
piedade, e os soluços de Mordred como pano de fundo.

Arthur apertou a testa com a mão.

— Por que Mordred está chorando? — perguntou.
— El'estava tentanto explicar — disse Qawaine — como Lancelot matou treze cavaleiros mas
resolveu, di repente, qui nã mataria nosso Mordred. Parece qui havia algum afeto intre eles.
— Acho que posso explicar. Vejam, dez dias atrás pedi a Sir Lancelot que não matasse meu filho.
Mordred disse amargurado:
— Obrigado por nada.
— Não tem que me agradecer, Mordred. Lancelot é que seria a pessoa certa a quem agradecer.
— Preferia que ele tivesse me matado.
— Estou contente por ele não ter feito isso. Tente ter um pouco de compaixão, meu filho. Lembre-
se de que sou seu pai. Logo não me sobrará mais família, salvo você.
— Queria não ter nascido.
— Eu também, meu pobre rapaz. Mas você nasceu, e agora temos que fazer o melhor possível.

Mordred foi até ele, apressado, com uma espécie de dissimulação acanhada.

— Pai — disse —, sabe que Lancelot pretende vir resgatá-la?
— Estou esperando isso.
— E colocou cavaleiros para detê-lo? Providenciou uma guarda forte?
— A guarda é tão forte quando deve ser, Mordred. Tentei ser justo.
— Pai — disse ele, ansioso —, mande Gawaine e esses dois para reforçá-la. Ele virá com toda
força.
— Bem, Gawaine? — perguntou o Rei.
— 'Brigado, tio. Preferia qui nã pedisse.
— Tenho que perguntar, Gawaine, por justiça para com a guarda que já está lá. Veja, não seria
justo deixar uma guarda fraca se penso que Lancelot está vindo, pois seria traição aos meus
próprios homens. Seria sacrificá-los.
— Quer mi peça ou nã, com todo respeito por Vossa Majestade, nã irei. Avisei aqueles dois desde
o começo qui nã ia mi meter nisso. Nã quero ver a Rainha Guenevere queimada, i posso dizer quiespero que nã seja, i nã vou ajudar nisso. É o qui digo.
— Isso soa como traição.
— Pode ser traição, mas tenho mi afeiçã pela Rainha.
— Eu também tenho afeição por ela, Gawaine. Fui eu quem me casei com ela. Mas quando se
levanta uma questão de justiça pública, os sentimentos das pessoas têm que ser deixados de lado.
— Nã sei deixar mis sentimentos di lado. O Rei voltou-se para os demais.
— Gareth? Gaheris? Vão me fazer o favor de colocar a armadura e reforçar a guarda?
— Tio, por favor, não nos peça isso.
— Não tenho nenhum prazer nisso, Gareth.
— Sei que não tem, mas por favor, não nos force. Lancelot é meu amigo, como poderia lutar contra
ele?
O Rei tocou sua mão.

— Lancelot esperaria que você fosse, meu caro, seja contra quem fosse. Ele também acredita na
justiça.
— Tio, não posso lutar contra ele. Ele me sagrou cavaleiro. Irei se for seu desejo, mas vou sem
armadura. Receio que seja também traição da minha parte.
— Estou pronto para ir de armadura — disse Mordred —, mesmo com o braço quebrado.
Gawaine observou sarcasticamente:
— Será bem seguro pra v'cê, menino. O Rei já fez Lancelot prometer nã machucá-lo.

— Traidor!
— E Gaheris? — perguntou o Rei.
— Vou com Gareth, desarmado.
— Bem, suponho que é o melhor que podemos fazer. Espero ter tentado cumprir meu dever.
Gawaine levantou-se do banco e se arrastou, com simpatia desajeitada, em direção ao Rei.
— Fez mais do qui si podia esperar di u'a pessoa — ele disse, calorosamente, segurando a mão
cheia de veias em sua mãozorra —, i agora tem qui olhar pra frente i esperar o melhor. Deixa mis
irmãos irem desarmados. Ele nã fará mal a eles, si puder ver seus rostos. Eu ficarei com você.
— Então sigam.
— Devo dizer ao carrasco que comece?
— Sim, se é seu dever, Mordred. Entregue a ele meu anel e pegue a sentença com Sir Bedivere.
— Obrigado, pai. Obrigado. Não demoro mais que um minuto. O rosto pálido, queimando de
entusiasmo e, por um momento, com uma gratidão estranhamente genuína, saiu apressado da sala.
Com os olhos acesos e um tique nervoso na boca, seguiu os irmãos, que foram unir-se à guarda. O
velho Rei, deixado para trás com Gawaine, afundou a cabeça nas mãos.
— Ele podia ter feito isso com um pouco mais de decência. Podia ter tentado mostrar que não
estava tão contente.
Gawaine pôs as mãos nos ombros caídos.

— Nã tema, tio — disse. — Tudo vai terminar bem. Lancelot vai resgatá-la a tempo i sem danos.
— Tentei cumprir meu dever.
— Merece toda admiraçã.
— Condenei-a porque a lei mandava condená-la. Fiz o melhor que pude para que a sentença seja
executada.
— Mas nã vai ser. Lancelot virá salvá-la.
— Gawaine, não pense que tento permitir que ela seja salva. Eu sou a Justiça da Inglaterra, e agora
é nosso dever queimá-la até a morte, sem remorso.
— Sim, tio, i todo mundo sabe o tanto qui se esforçou. Mas isso nã altera a verdade, qui no fundo
do nosso coraçã queremos qui eia si salve.
— Oh, Gawaine — ele disse. — Estou casado com ela há tantos anos. O outro virou as costas e foi
até a janela.
— Nã si preocupe. A questã vai si endireitar.
— O que é certo? — gritou o velho, olhando para ele com o rosto do desespero. — O que é
errado? Se Lancelot vier resgatá-la, pode matar esses inocentes que estão na guarda para garantir
que ela seja queimada. Eles confiaram em mim, e tive que colocá-los lá para manter Lancelot

longe, pois essa é a justiça. Se ele a salvar, eles serão mortos. Se eles não forem mortos, ela será
queimada. E arderá até a morte, Gawaine, no meio de chamas horríveis — a minha adorada Gwen.

— Nã pense nisso, tio. Nã vai acontecer. Mas o Rei estava fraquejando.
— Então, por que ele não vem logo? Por que esperar tanto tempo? Gawaine respondeu com calma:
— Ele tem qui esperar até qui ela esteja em campo aberto, na praça, pois de outro jeito teria qui
tomar di assalto o castelo.
— Eu tentei avisá-los, Gawaine. Tentei avisá-los alguns dias antes de eles serem surpreendidos.
Mas é difícil dizer essas coisas em palavras simples, sem ferir os sentimentos das pessoas. E fui
idiota, também. Não quis tomar consciência de tudo. Esperava que se eu não fosse realmente
consciente de tudo, as coisas se acomodariam no final. Você acha que foi culpa minha? Acha que
eu podia tê-los salvo se tivesse feito outra coisa?
— Fez o melhor qui pode.
— Quando eu era jovem fiz algo que não era justo, e daí nasceu a desgraça da minha vida. Você
acha que é possível parar as conseqüências de uma má ação fazendo boas ações depois? Eu não.
Desde então, durante toda a minha vida, tentei abafar o que fiz com boas ações, mas a coisa
continua em círculos crescentes. Não pode parar. Você acha que isso também é conseqüência?
— Nã posso saber.
— Que horrível é esperar assim! — ele gritou. — Deve ser pior para Gwen. Por que não a trazem
de uma vez e liquidam logo o assunto?

Talvez, se olhasse naquela direção, veria um vinhedo cercado de ossos — fora descoberto, nos
primeiros anos de Arthur, que os ossos fazem uma cerca excelente para vinhedos, tumbas e até
para fortes — e talvez, se olhasse em outra direção, poderia ver aporta de um castelo que
parecia a forca de um guarda-caças.

— Farã isso logo.
— Não é culpa dela. Será minha? Deveria ter me recusado a aceitar as provas de Mordred e ter
cancelado o assunto de uma vez? Ou tê-la inocentado? Podia ter deixado de lado minha nova lei?
Devia ter feito isso.
— Podia ter feito.
— Podia agir como desejava.
— Sim.
— Mas então o que aconteceria com a justiça? Quais seriam as conseqüências? Conseqüências,
justiça, más ações, bebês afogados! Toda a noite passada eu podia ver tudo isso em cima de mim.
Gawaine falou baixo, num tom de voz alterado.


— Esqueça tudo isso. Guarda sus forças pras dificuldades qui esta vindo. Vai fazer isso?
O Rei segurou os braços do seu trono.
— Sim.
— Receio qui tem qui vir para a janela. Esta si preparando pra trazer a Rainha.
O velho não fez nenhum movimento, apenas seus dedos apertaram ainda mais a madeira. Sentou-se
olhando fixo diante de si. Depois, esforçou-se para levantar, apoiando o peso nos punhos, e foi
cumprir seu dever. Se não assistisse à execução, ela não seria legal.

— Ela está com um camisão branco.
Os dois ficaram em pé, em silêncio, observando como pessoas que não tivessem sentimentos. A
crise provocava neles uma prostração que forçava a linguagem a um tom de murmúrio.

— Sim.
— O que estão fazendo?
— Nã sei.
— Rezando, suponho.
— Sim, o bispo está na frente. Eles observaram as orações.
— Como parecem estranhos.
— Sã apenas comuns.
— Você acha que eu posso sentar — ele perguntou, como uma criança — agora que já me mostrei?
— Deve ficar.
— Não sei se posso.
— É preciso.
— Mas Gawaine, e se ela olhar para cima?
— Se v'cê nã ficar, nã será conforme a lei.
Lá fora, na praça que se via da janela, pareciam estar cantando um hino. Era impossível distinguir
as palavras ou a melodia. Eles podiam observar os clérigos ocupados cuidando dos detalhes da
morte, e os cavaleiros cintilantes parados imóveis, e as cabeças das pessoas, como cestas de coco,
em volta da parte externa da praça. Não era fácil ver a Rainha. Encontrava-se quase oculta pelo
torvelinho do cerimonial, sendo levada nesta ou naquela direção, alvo da convergência dos
pequenos grupos de oficiais ou de confessores, sendo apresentada ao carrasco, sendo persuadida a
se ajoelhar e a rezar, exortada a se levantar e a discursar, sendo aspergida, recebendo velas para
segurar, sendo perdoada e sendo solicitada a perdoar, pacientemente levada adiante para ser
conduzida para fora da vida com pompa e dignidade. Na verdade, não havia nada de sombrio num
assassinato legal na Idade das Trevas.

O Rei perguntou:


— Consegue ver algum resgate chegando?
— Nã.
— Parece muito tempo.
Abaixo da janela cessou a cantoria, provocando um silêncio aflitivo.
— Quanto tempo mais?
— Uns minutos.
— Vão deixar ela rezar?
— Sim, ela vai rezar.
Subitamente, o velho perguntou:
— Você acha que devemos rezar?
— Si quiser.
— Será que nos ajoelhamos?
— Duvido qu'importe.
— Que oração diremos?
— Nã sei.
— Posso rezar o Pai Nosso? É só do que consigo me lembrar.
— Perfeito.
— Vamos rezar juntos?
— Si quiser.
— Gawaine, acho que devo me ajoelhar.
— Eu fico di pé — disse o senhor das Órcades.
— Agora...
Iam começar a súplica nada profissional quando o toque de clarim soou para além do mercado.
— Silêncio, tio!
A reza parou no meio da frase.
— Há soldados chegando. Cavalos, acho!
Arthur estava de pé, na janela.
— Onde?
— O clarim!
E agora, nítido, agudo, exultante, a música do metal penetrou na própria sala. Sacudindo Gawaine
pelo ombro, o Rei, com a voz tremente, começou a chorar:



— Meu Lancelot! Eu sabia que ele conseguiria!
Gawaine forçou os largos ombros pela janela. Estavam disputando a vista.
— Sim. É Lancelot.
— Olha para ele. Em prata.
— A prata, faixa vermelha!
— O belo cavaleiro!
— Olha só todos eles!
De fato, valia a pena olhar. O mercado era uma avalanche, como uma cena de faroeste. As cestas
de frutas se romperam e os cocos se espalharam. Os cavaleiros da guarda tentavam montar, com um
pé no estribo, saltitando ao lado das montadas, que giravam ao seu redor. Os acólitos derrubavam
os turíbulos. Os padres abriam caminho pelo meio da multidão. O bispo, que queria ficar, estava
sendo empurrado na direção da igreja, enquanto seu báculo vinha atrás como se fosse um
estandarte, carregado por algum cônego fiel. Um dossel, que fora levado com quatro paus para
proteger alguém ou alguma coisa, afundava com os paus espalhados, como um naufrágio no
Atlântico. A correnteza de cavaleiros cintilantes, com armas tilintando e a música de metais,
desaguou na praça, agitando as penas dos elmos como se fossem cabeças de peles-vermelhas, suas
espadas subindo e descendo como um estranho maquinismo. Abandonada pelo grupo de
ministrantes que a ocultara enquanto lhe ofertava a extrema-unção, Guenevere parecia um farol.
Com seu camisão branco, amarrada ao poste, permanecia imóvel no meio do movimento. Flutuava
acima deles. A batalha se desenvolvia a seus pés.

— Que ímpeto e arranque dos cavalos!
— Ninguém jamais arremeteu como ele.
— Oh, pobre guarda!
Arthur torcia as mãos.
— Um homem caiu.
— É Segwarides.
— Qui confusa!
— Suas investidas — declarou o Rei com veemência — sempre foram irresistíveis, sempre. Ah,
que estocada!
— Lá vai Sir Pertilope.
— Não, é Perimonis. O irmão dele.
— Olha só qui belas espadas ao sol. Olha as cores. Bom golpe, Sir Gillimer, bom golpe!
— Não, não! Olha só Lancelot. Olha como ele corta e despedaça. Lá foi Aglovale derrubado. Olha,
ele está indo na direção da Rainha.

— Priamus vai detê-lo!
— Priamus, bobagem! Vamos ganhar, Gawaine, vamos ganhar!
O grandalhão se virou, sorrindo de entusiasmo.
— Nós quem?
— Muito bem, então são "eles", seu cabeçudo. Sir Lancelot, é claro. Lá se foi Sir Priamus.
— Sir Bors caiu.
— Não importa. Dentro de um minuto colocarão Bors noutro cavalo. Lá está ele, indo até a Rainha.
Oh, olha! Está levando um vestido e um manto para ela.
— Sim, é mesmo!
— Meu Lancelot não iria deixar minha Guenevere ser vista de camisão!
— Nã ia mesmo.
— Está vestindo-a.
— Ela está sorrindo.
— Deus abençoe os dois, as criaturas. Mas, oh, os homens a pé!
— Está terminando, pode-se dizer.
— Ele não matará mais que o necessário. Podemos confiar nele para isso?
— Podemos confiar no homem para isso.
— É Damas quem está embaixo do cavalo?
— Sim. Damas sempre usou um penacho vermelho. Acho que está pra bater em retirada. Qui
rapidez!
— Guenevere montou.
A música do clarim invadiu a sala novamente, um toque diferente.
— Estão se retirando. É o toque de retirada. Senhor, senhor, olha só qui confusão!
— Espero que não haja muitos feridos. Pode ver? Devemos ir ajudá-los?
— Muitos devem ter morrido — disse Gawaine.
— Minha fiel guarda.
— Mais de uma dúzia.
— Meus bravos! E é culpa minha!
— Nã acho qui seja culpa di ninguém im particular, a menos qui seja di mi irmão, qui já está morto.
Sim, os últimos esta si juntando. Vejo o vestido branco da Rainha acima da multidã.
— Devo acenar para ela?

— Nã.
— Não seria correto?
— Nã.
— Está bem, suponho que não deva fazer isso. Ainda assim, teria sido gentil fazer algum gesto de
despedida.
Gawaine voltou-se para ele tonto de emoção.

— Tio Arthur — disse —, és um grande homem. Eu vos disse qui tudo ia acabar bem.
— E você também é um grande homem, Gawaine, um homem bom e gentil.
E os dois se beijaram alegremente à moda antiga, em ambas as faces.
— Pronto — disseram. — Pronto.
— E o que é preciso fazer agora?
— É v'cê qui tem qui dizer.
O velho Rei olhou ao redor como se estivesse procurando a coisa que devia fazer. Sua idade e os
indícios de enfermidade tinham sumido dele. Parecia mais ereto. Seu rosto estava rosado. As rugas
ao redor dos olhos estavam brilhando.

— Acho que, para começar, vamos beber um drinque monstruoso.
— Muito bem. Chame o pajem.
— Pajem, pajem! — gritou ele da porta. — Onde diabos v'cê si meteu? Pajem! Aqui, seu verme,
traga-nos alguma bebida. O qui estava fazendo? Vendo su senhora queimar? Ainda bem qui se
frustrou!
O jovem, feliz, soltou um grito e voltou a descer as escadas que tinha subido até a metade.

— I depois da bebida? — perguntou Gawaine.
Arthur voltou-se para Gawaine alegremente, esfregando as mãos.
— Não pensei ainda. Algo irá acontecer. Talvez possamos fazer Lancelot pedir desculpas ou algum
arranjo semelhante — e então ele poderá voltar. Podemos conseguir que ele explique que estava no
quarto da Rainha porque ela o chamou para pagar o feudo de Meliagrance, como o havia
incumbido, pois não queria saber para nada desse pagamento. E então, é claro, ele tinha que salvá-
la, pois sabia que era inocente. Sim, acho que podemos arranjar alguma coisa assim. Mas eles terão
que se comportar direito no futuro.
O entusiasmo de Gawaine tinha se evaporado diante do seu tio. Ele falou devagar, com os olhos no
chão.

— Eu duvido... — começou. O Rei olhou para ele.
— Duvido qui si consiga arranjar isso direito, enquanto Mordred for vivo.
Levantando a tapeçaria da porta com uma mão pálida, a criatura fantasmal em meia-armadura, o

braço desarmado numa tipóia, apareceu na soleira.

— Nunca — disse, com se fosse a deixa perfeita de um amargo drama —, enquanto Mordred for
vivo.
Arthur voltou-se, surpreso. Observou os olhos febris e foi até seu filho em um movimento de
preocupação.


— Ora, Mordred!
— Ora, Arthur.
— Na fale assim com o Rei. Como ousa?
— E você não fale comigo para nada.
A voz sem tom fez o Rei parar no meio do caminho. Depois ele se recompôs.
— Vamos — disse com suavidade. — Foi uma carnificina terrível, sabemos. Vimos da janela. Mas
certamente é melhor que sua tia esteja a salvo, e que as formas da justiça tenham sido satisfeitas...
— Foi uma carnificina terrível.
A voz era a de autômato, mas cheia de significado.
— Os guardas...
— Lixo.
Gawaine estava se virando para seu meio-irmão como se fosse um robô. Todo seu corpo se virou.
— Mordred — ele perguntou num tom incomodado. — Mordred, onde v'cê deixou Sir Gareth?
— Onde deixei os dois?
O homem ruivo começou a exclamar, cuspindo rápido as palavras.
— Nã fique m'mitando — gritou. — Nã fique repetindo qui nem um papagaio. Fale onde eles esta.
— Vá e procure por eles, Gawaine, entre as pessoas na praça.
Arthur começou:
— Gareth e Gaheris...
— Estão no chão da praça do mercado. Foi difícil reconhecê-los, por causa do sangue.
— Eles não estão feridos, não é? Estavam desarmados. Não estão feridos?
— Estão mortos.
— Bobagem, Mordred.
— Bobagem, Gawaine.
— Mas eles estavam sem armadura — protestou o Rei.
— Eles estavam sem armadura. Gawaine disse, com ênfase assustadora:

— Mordred, si estiver mentindo...
— .... o honrado Gawaine assassinará o último do seu sangue.
— Mordred!
— Arthur! — ele respondeu. E encarou-o com um rosto de pedra, uma mistura insana de
malignidade, suavidade e infelicidade.
— Se for verdade, é terrível. Quem poderia querer matar Gareth, ainda mais com ele desarmado?
— Quem?
— Eles nem iam lutar. Iam ficar de lado, porque eu lhes pedira isso. Além do mais, Lancelot é o
melhor amigo de Gareth. O rapaz era amigo da família Ban. Parece impossível. Tem certeza de que
não está cometendo um erro?
A voz de Gawaine encheu a sala de repente.

— Mordred, quem matou mis irmãos?
— Quem, realmente?
Ele correu até o aleijado, levado pela fúria.
— Quem senão Sir Lancelot, meu rude amigo.
— Mentiroso! Tenho qui ver isso.
Saiu da sala aos tropeções, ainda correndo com o mesmo ímpeto com que tinha avançado sobre seu
irmão.

— Mas, Mordred, tem certeza de que estão mortos?
— O topo da cabeça de Gareth foi cortado — ele disse com indiferença —, e ele tinha uma
expressão de surpresa. Gaheris não tinha expressão nenhuma, pois sua cabeça foi partida ao meio.
O Rei estava mais atônito que horrorizado. Com espanto e angústia disse:

— Lance não pode ter feito isso. Ele os conhecia... ele os amava. Eles estavam sem elmos e ele
podia reconhecê-los. Foi ele quem sagrou Gareth cavaleiro. Jamais faria uma coisa dessas.
— Não, é claro.
— Mas você diz que ele fez.
— É o que digo.
— Deve ter sido um engano.
— Deve ter sido um engano.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que o puro e destemido Cavaleiro do Lago, a quem você permitiu que o chifrasse e
fugisse com sua esposa, divertiu-se um pouco antes de partir, assassinando meus dois irmãos,
ambos desarmados e ambos queridos amigos seus.

Arthur sentou-se no banco. O pequeno pajem, voltando com a bebida solicitada, fez a dupla vênia.

— A vossa bebida, senhor.
— Leve isso embora.
— Sir Lucan, o Mordomo, pergunta, senhor, se pode pedir ajuda para trazer alguns homens feridos
para cá, senhor, e se há linho para ataduras por aqui?
— Pergunte a Sir Bedivere.
— Sim, senhor.
— Pajem — gritou quando o jovem saía.
— Senhor?
— Quantas baixas?
— Dizem vinte cavaleiros mortos, senhor. Sir Belliance, o Orgulhoso, Sir Segwarides, Sir Griflet,
Sir Brandiles, Sir Aglovale, Sir Tor, Sir Gauter, Sir Gillimer, os três irmãos de Sir Renold, Sir
Damas, Sir Priamus, Sir Kay, o Estrangeiro, Sir Driant, Sir Lambegus, Sir Hermide, Sir Pertilope.
— E quanto a Gareth e Gaheris?
— Não ouvi falar deles, senhor.
Chorando e ainda correndo, o homem vermelho, parecido com uma montanha, entrou mais uma vez
na sala. Corria para Arthur como uma criança. Soluçava.

— É verdade! É verdade! Descobri um homem qui viu como foi. Pobre Gaheris i o pequeno
Gareth, ele matou os dois, desarmados.
Caiu de joelhos. Enterrou seus cabelos grisalhos no manto do velho Rei.


IX


Num brilhante dia de inverno, seis meses depois, Joyous Gard foi cercado. O sol cintilava nos
ângulos retos sob o vento norte, deixando branco de gelo o lado leste dos sulcos. Fora do castelo,
os estorninhos e maçaricos fuçavam ansiosos a relva endurecida. As árvores desfolhadas pareciam
esqueletos, ou mesmo mapas dos veios do sistema nervoso. O estéreo, se golpeado, soava como
madeira. Tudo tinha a cor do inverno, o desbotado verde do musgo, como uma almofada de veludo
verde deixada por anos ao sol. As árvores desfolhadas, como a almofada, também tinham uma
cobertura de penugem nos troncos. As coníferas portavam todas sua roupagem fúnebre. O gelo
estalava nas poças e, no fosso gélido, erguia-se o próprio Joyous Gard, como um belo quadro sob a
fraca luz do sol.

O castelo de Lancelot não era ameaçador. As antigas torres da época da ascensão de Arthur tinham
sido substituídas por fortalezas joviais, hoje difíceis de imaginar. Não se deve imaginá-lo como as
fortalezas arruinadas que se vêem atualmente, com argamassa desfazendo-se entre as pedras. A
muralha era rebocada. E tinham misturado cromo no reboco para que ficasse ligeiramente dourada.
Os torreões cobertos de ardósia, cônicas à moda francesa, subiam de complicadas muralhas em
centenas de inesperadas espirais. Havia pontezinhas fantásticas, cobertas como a Ponte dos
Suspiros, que davam para a capela de uma outra torre. Havia escadarias externas subindo sabe-se
lá para onde — talvez para o paraíso. Dos postigos subitamente subiam chaminés. Janelas com
vitrais autênticos, bem no alto e fora de perigo, brilhavam onde antes se viam paredes nuas.
Bandeirolas, crucifixos, gárgulas, bicas de água, cata-ventos, pináculos e campanários coroavam os
tetos pontudos — tetos que tinham esse ou aquele feitio, às vezes com telhas vermelhas, às vezes de
pedra musgosa, às vezes de ardósia. O lugar era uma cidade, não apenas um castelo. Era um bolo
confeitado, e não um pão ázimo da velha Dunlothian.

Ao redor do alegre castelo estava o acampamento dos que faziam o cerco. Os reis, naqueles
tempos, levavam as tapeçarias de casa quando saíam em campanha, o que dá uma medida do tipo
de acampamento que armavam. As tendas eram vermelhas, verdes, quadriculadas, listradas.
Algumas eram de seda. Num labirinto de bandeiras e cordas, estacas e lanças compridas, jogadores
de xadrez e vivandeiras, de interiores cobertos de tapeçarias e baixelas de ouro, Arthur da
Inglaterra estabelecera-se para vencer seu amigo pela fome.

Lancelot e Guenevere estavam sentados perto da lareira do saguão. Já não se acendia fogo no meio
da sala, deixando a fumaça escapar como pudesse através das clarabóias. Ali havia uma lareira de


verdade, belamente esculpida com as armas e suportes de Benwick, e a metade de uma árvore ardia
na grelha. Lá fora o gelo deixara o chão escorregadio para os cavalos. Portanto, era um dia de
trégua, ainda que não declarada. Guenevere disse:

— Não consigo imaginar como você pode ter feito isso.
— Nem eu, Jenny. Nem mesmo sei se fiz, só que" todo mundo diz que fiz.
— Você não se lembra de nada?
— Eu estava excitado, acho, e assustado por você. Havia um monte de pessoas brandindo armas, e
cavaleiros tentando me deter. Tinha que abrir caminho.
— Não parece coisa sua.
— Você não acha que fiz de propósito, não é? — ele perguntou, amargurado. — Gareth gostava
mais de mim que dos irmãos. Eu era quase seu padrinho. Oh, vamos deixar isso de lado, pelo amor
de Deus.
— Não importa — ela disse. — Ouso dizer que ele está melhor fora disso tudo, pobre coitado.
Lancelot deu um pontapé no tronco, pensativo, um braço apoiado no consolo da lareira, olhando
para o fulgor das cinzas.

— Ele tinha olhos azuis. Parou, recordando-os no lume.
— Quando veio para a corte, ele não disse os nomes dos pais. Isso porque teve que fugir de casa
para vir, para começar. Havia uma inimizade de anos entre a mãe dele e Arthur, e a velha odiava a
idéia de ele vir. Mas Gareth não pôde evitar. Queria o romance e a aventura dos cavaleiros e a
honra. Então fugiu de casa, e não nos disse quem era. Não pediu para ser sagrado cavaleiro. Para
ele, bastava estar no grande centro até provar sua força.
Arrumou a posição de uma acha que se desgarrara.

— Kay levou-o para trabalhar na cozinha e deu-lhe um apelido: Bela Mãos. Kay sempre foi
implicante. E agora... parece que foi há tanto tempo...
No silêncio — que mantiveram, cada um com um cotovelo no consolo e um pé virado para o lume
—, a cinza leve espalhava-se.

— Eu costumava lhe dar algumas gorjetas, para que comprasse suas coisinhas. Beaumains, o pajem
da cozinha. Por algum motivo qualquer, ele se apegou a mim. Eu o sagrei cavaleiro com minhas
próprias mãos.
Olhou, surpreso, para as mãos, mexendo-as como se nunca os tivesse visto.

— Depois, ele lutou na aventura do Cavaleiro Verde, e descobrimos que era um campeão... O
gentil Gareth — disse, quase com espanto. — Matei-o eu também com as mesmas mãos, porque ele
se recusou a usar sua armadura contra mim. Que criaturas horríveis são os humanos! Se vemos uma
flor quando andamos pelos campos, cortamos sua cabeça com um pau. Foi assim que Gareth
morreu.
Guenevere tomou com angústia a mão culpada.


— Você não podia ter evitado.
— Eu podia ter evitado — ele estava passando por seu tormento religioso habitual. — Foi minha
culpa. Você está certa quando diz que não parece do meu feitio. Foi minha culpa, minha culpa atroz.
Foi porque combati por todo lado na pressa.
— Você tinha que fazer o resgate.
— Sim, mas eu podia ter lutado só com os cavaleiros armados. Em vez disso, fui combatendo para
todo lado e caí sobre os soldados a pé, meio armados, que não tinham nenhuma chance. Eu estava
cap-à-piede eles estavam em cuir-bouillé, só couro e porrete. Mas eu os estraçalhei e Deus nos
castigou. Foi porque me esqueci de meus votos de cavaleiro que Deus me fez matar o pobre Gareth,
e Gaheris também.
— Lance! — ela exclamou, bruscamente.
— Agora estamos nesse tormento infernal — ele continuou, recusando-se a escutar. — Agora tenho
que lutar contra meu próprio Rei; que me sagrou cavaleiro e me ensinou tudo que sei. Como nosso
lutar contra ele? Mesmo Gawaine, como posso lutar contra ele? Matei três dos seus irmãos. Como
posso aumentar isso? Mas Gawaine nunca me dispensará. Agora, nunca me perdoará. Eu não o
culpo. Arthur nos perdoaria, Gwen, mas Gawaine não deixará que ele faça isso. Tenho que ficar
sitiado nesse buraco como um covarde quando ninguém quer lutar, exceto Gawaine, e então eles
saem com suas fanfarras e cantam:
''Cavaleiro traidor Venha aqui fora combater. Ei! Ei! Ei!"

— O que eles cantam não importa. A canção deles não faz de você um covarde.
— E meus próprios homens também estão começando a pensar isso. Bors, Blamore, Bleoberis,
Lionel, o tempo todo eles me pedem para sair e lutar. E se eu sair, o que acontece?
— Até onde eu sei — ela disse —, o que acontece é que você os vence, e depois os deixa partir, e
implora para que eles voltem para suas casas. Todos respeitam sua bondade.
Ele escondeu a cabeça na curva do cotovelo.

— Você sabe o que aconteceu na última batalha? Bors teve uma justa com o próprio Rei, e o
derrubou. Ele pulou de seu cavalo e parou sobre Arthur com sua espada desembainhada. Vi o que
acontecia e galopei como louco. Bors perguntou: Devo pôr um fim a esta guerra? Com tanta dureza,
não, eu gritei, sob pena de perder tua própria cabeça. Então pusemos Arthur de novo em seu cavalo
e eu implorei, implorei de joelhos, para que ele fosse embora. Arthur começou a chorar. Seus
olhos encheram-se de lágrimas, e ele me olhou e nada disse. Parecia muito mais velho. Ele não
quer lutar contra nós, mas é Gawaine. No princípio, Gawaine estava do nosso lado, mas eu matei
seus irmãos com minha maldade.
— Esqueça sua maldade. É o temperamento negro de Gawaine e a astúcia de Mordred.
— Se fosse só Gawaine — ele lamentou —, ainda haveria uma esperança de paz. Dentro de si, eleé decente. É um homem bom. Mas Mordred sempre está lá, insinuando coisas e fazendo-o se sentir
miserável. E há todo esse ódio entre os gaélicos e os gauleses, e essa Nova Ordem de Mordred.

Não consigo ver o final.
A Rainha sugeriu, pela centésima vez:


— Você acha que adiantaria alguma coisa se eu voltasse para Arthur e me pusesse à sua mercê?
— Nós oferecemos isso e eles recusaram. Portanto, não adianta insistir. No final, eles acabariam
queimando você.
Ela afastou-se da lareira e caminhou para o grande vão da janela. Embaixo, do lado de fora, os
trabalhos do cerco se espalhavam. Alguns minúsculos soldados, no acampamento inimigo, jogavam
alegremente "A raposa e os gansos" num pequeno lago gelado. A gargalhada deles soava nítida,
separada pela distância das quedas que a provocava.

— Em todas as guerras — ela disse —, os soldados da infantaria que não são cavaleiros morrem,
mas ninguém repara.
— O tempo todo.
Sem se virar, ela continuou:
— Acho que vou voltar, querido, e enfrentar o risco. Mesmo se eu for queimada, isso seria melhor
do que ter tanto desgosto.
Ele a seguiu até a janela.

— Jenny, eu iria com você, se servisse de alguma coisa. Poderíamos ir juntos, e deixá-los cortar
nossas cabeças, se tivesse alguma esperança de com isso parar essa guerra. Mas todos
enlouqueceram. Mesmo se nos entregássemos, Bors, Ector e o resto continuariam com a rixa, se
fôssemos mortos. Há uma centena de outras rixas em andamento, por aqueles que matamos no
mercado e nas escadas, e por coisas de mais de meio século do passado de Arthur. Em breve não
serei mais capaz de detê-los, mesmo se as coisas continuarem como estão. Hebes le Renoumes,
Villiers, o Valente, Urre da Hungria: eles começariam a me vingar e tudo ficaria pior. Urre está
terrivelmente grato.
— A civilização parece ter ficado insana — ela disse.
— Sim, e parece que fomos nós que a fizemos assim. Bors, Lionel e Gawaine feridos, e todo
mundo bramindo por sangue. Eu tenho que sair com meus cavaleiros e fingir que estou pretendendo
atacar, e talvez Arthur seja instigado contra mim, ou talvez venha Gawaine, e então terei que me
cobrir com meu escudo e me defender, mas sem revidar. Os homens percebem e dizem que, ao não
me esforçar, estou prolongando a guerra, o que torna tudo pior para eles.
— O que é verdade.
— Claro que é verdade. Mas a alternativa é matar Arthur e Gawaine, e como posso fazer isso? Se
pelo menos Arthur pegasse você e fosse embora, seria melhor do que como está agora.
Vinte anos antes, ela poderia ter tido um ataque com sugestão tão pouco hábil. Era um sinal de seu
outono o fato de agora ter achado graça.

— Jenny, é uma coisa terrível de ser dita, mas é verdade.

— Claro que é verdade.
— Parece que estamos tratando você como uma boneca.
— Todo somos bonecos.
Ele encostou a cabeça na pedra fria do vão da janela, até que eia tomou sua mão.
— Não pense sobre isso. Apenas permaneça no castelo e seja paciente. Talvez Deus tome conta de
nós.
— Você já disse isso antes.
— Sim, uma semana antes de nos apanharem.
— Mesmo se Deus não o fizer — ele disse, amargo —, poderíamos recorrer ao Papa.
— O Papa!
Ele levantou os olhos.
— O que você quer dizer?
— Ora, Lance, o que você disse... E se o Papa enviasse bulas para os dois lados, dizendo que nos
excomungaria se não entrássemos em um acordo? Se apelássemos para as leis papais? Bors e os
outros teriam que aceitar. Certamente...
Ele a olhou com atenção, enquanto ela escolhia as palavras.


— Ele poderia nomear o Bispo de Rochester para administrar os termos da paz...
— Mas que termos?
Ela, no entanto, agarrara a idéia e estava em fogo.
— Lance, nós dois teríamos de aceitá-los, fossem quais fossem. Mesmo se eles significassem... se
fossem ruins para nós mas levassem a paz para o povo. E nossos cavaleiros não teriam desculpas
para continuar a rixa, porque eles teriam que obedecer à Igreja...
Ele não conseguia encontrar as palavras.


— Será?
Ela virou-se para ele com uma expressão de serenidade e alívio — a expressão eficaz e sem
dramas que as mulheres assumem quando têm de amamentar, ou realizar outro trabalho de
competência qualquer. Ele não sabia como reagir.


— Podemos enviar uma mensagem amanhã — ela disse.
— Jenny!
Ele não podia suportar que ela admitisse ser passada de um para outro, já não mais jovem, ou que
tivesse que perdê-la, ou que não tivesse que perdê-la. Entre as vidas dos homens e o amor deles e
seus velhos totens, nada lhe restou senão a vergonha. Ela entendeu e o ajudou também com isso.
Beijou-o com ternura. Lá fora, o coro diário estava começando:



"Cavaleiro traidor Venha aqui fora combater. Ei! Ei! Ei!"

— Vamos — ela disse, passando a mão em seus cabelos brancos. — Não os escute. Meu Lancelot
deve permanecer no castelo, e haverá um final feliz.

X


— Então, Sua Santidade fez as pazes para eles — concluiu Mordred, furioso.
— Sim.
Estavam no Salão de Justiça, Gawaine e ele, esperando as últimas etapas da negociação. Ambos
vestiam-se de preto — com a estranha diferença que Mordred estava resplandecente, uma espécie
de Hamlet, enquanto Gawaine parecia mais um coveiro. Mordred começara a se vestir com essa
dramática simplicidade desde a época que se tornara líder do partido popular. Seus objetivos eram
uma espécie de nacionalismo, com autonomia gaélica, e também um massacre dos judeus, para
vingar um santo mítico chamado Hugh de Lincoln. Já eram milhares, espalhados pelo país, levando

o emblema de um punho escarlate empunhando um chicote, e que se autodenominavam Surradores.
Já o mais velho, que só usava o uniforme para agradar o irmão, tinha apenas um negrume
despretensioso, o autêntico, desesperado, preto do luto.
— Imagine só — prosseguiu Mordred. — Se não fosse o Papa, jamais teríamos essa bela procissão
com todo mundo carregando ramos de oliveira e os inocentes amantes vestidos de branco.
— Foi u'a boa procissã.
A mente de Gawaine não se movia com facilidade pelos caminhos da ironia, por isso aceitava
como simples declaração o que era zombaria.

— Foi muito bem encenada.
O irmão mais velho moveu-se desconfortável, como se quisesse mudar de posição, mas voltou a
ficar do jeito que estava antes.
Disse com dúvida, quase como se fosse uma pergunta ou um apelo:


— Lancelot diz im sua carta qui matou nosso Gareth por engano. Disse qui nã o viu.
— É bem típico de Lancelot se lançar contra homens desarmados sem olhar para ver quem eles
são. Sempre foi famoso por fazer isso.
Dessa vez, a ironia foi tão forte que até Gawaine a entendeu.

— Eu digo que nã parece provável.
— Provável? Claro que não parece. Não foi a maneira padrão de Lancelot. Ele era opreux
chevalier que sempre poupa as pessoas, que nunca mata alguém mais fraco que ele. Essa foi a bela

vereda da popularidade de Lancelot. Você acha que, de repente, ele ia abandonar sua pose e
começar a matar descuidadamente homens desarmados?

Com um patético esforço para ser justo, Gawaine disse:

— Parece qui nã havia ninhuma razã para qui ele os matasse.
— Razão? Gareth era nosso irmão! Ele o matou como represália, como vingança porque foi nossa
família que o pegou com a Rainha.
Com mais cuidado, acrescentou:

— Foi porque Arthur gosta de você e ele tinha ciúme de sua influência. Ele planejou, tudo
cuidadosamente, para enfraquecer o clã das Órcades.
— Ele enfraqueceu a si mismo.
— Além disso, tinha ciúmes de Gareth. Tinha medo que nosso irmão invadisse seus domínios.
Nosso Gareth o imitava, o que não convinha zopreux chevalier. Não se pode ter dois cavaleiros
sem máculas.
O Salão de Justiça fora preparado para a pompa final. Parecia despido só com os dois homens ali.
Estavam sentados de maneira curiosa, um atrás do outro nos degraus do trono, o que significava que
não olhavam no rosto um do outro. Mordred olhava para as costas de Gawaine, e Gawaine para o
chão. Ele disse com um pequeno estremecimento:

— Gareth era o melhor di nós.
Se tivesse se voltado rapidamente, teria ficado surpreso com a intensidade com que era observado.
O rosto do mais jovem estava em desacordo com a harmonia de sua voz. Quem olhasse atentamente
poderia ter observado que, nos últimos seis meses, o comportamento de Mordred tornara-se ainda
mais estranho.

— Um companheiro querido — disse —, e assassinado justo pelo homem em que depositara sua fé.
— O que vai mi ensinar a nunca confiar num do Sul. Mordred alterou o pronome com uma ênfase
imperceptível.
— Sim, vai nos ensinar.
O velho tirano girou seu corpo. Agarrou a mão branca como se quisesse apertá-la falou com
perturbação.

— Eu costumava pensar qui era maldade di Agravaine -de Agravaine i sua. Achava qui os dois
tinham um preconceito mui grande contra Sir Lancelot. Mi envergonho.
— O sangue é mais denso que a água.
— É isso, Mordred. O camarada pode fazer barulho sobre ideais, sobre o certo i o errado i tudo
isso... mas no final tudo acaba e com su próprio povo. Mi lembro de quando Gareth ia roubar o
pomar do padre, perto do rochedo...
Calou-se aos poucos, Mordred o incitou.


— Seu cabelo era quase branco quando era menino, de tão louro.
— Kay o chamava di Belas Mãs.
— Isso era para ser um insulto.
— Sim, mas era verdade. Tinha mãs delicadas.
— E agora ele está em seu túmulo.
Gawaine corou até as sobrancelhas, suas veias latejando nas têmporas.
— Deus amaldiçoe todos eles! Eu nã aceito essa paz. Nã vou perdoá-los. Por qui motivo Rei
Arthur quer botar panos quentes? O qui tem o Papa a ver com isso? Foi mi irmã qui foi massacrado,
nã deles, i por Deus Todo-Poderoso, terei mi vingança!
— Lancelot vai escorregar por nossos dedos. É um homem oleoso demais para segurar.
— Nã vai escorregar. Desta vez vamos agarrá-lo. Os da Cornualha já perdoaram demais.
Mordred mudou de degrau.
— Você já pensou no que a Távola fez com a Cornualha e as Órcades? O pai de Arthur matou
nosso avô. Arthur seduziu nossa mãe. E Lancelot matou três dos nossos irmãos, além de Florence e
Lovel. No entanto, aqui estamos nós, vendendo nossa honra para reconciliar os dois Ingleses. Não
parece covardia?
— Nã, nã é covardia. O Papa pode forçar o Rei a aceitar su Rainha, mas na bula nã tem ninhuma
palavra sobre Sir Lancelot. Demos proteçã para trazer a mulher, i também o deixaremos ir. Mas
depois disso...
— Por que devemos deixá-lo escapar, mesmo agora?
— Pelo motivo di qui tem salvo-conduto. Ora essa, homem Mordred, somos homens sagrados
cavaleiros!
— Não devemos nos rebaixar com manobras sujas, mesmo se nossos inimigos as usarem.
— Sim, justamente. Deixamos o javali ter espaço pra correr, i depois o perseguimos até a morte.
Arthur está fraquejando: fará a vontade nossa.
— É triste — disse Sir Mordred -como o pobre parece ter perdido o ânimo desde que todo esse
negócio começou.
— Sim, é triste. Mas ele bem sabe a diferença entre o qui é certo i o qui é errado.
— É uma mudança para ele.
— Quer dizer, fraquejar im su autoridade.
— Rápida dedução.
Seus sarcasmos eram tão inúteis quanto caçoar de um cego.
— Ele nã pode tê-la sempre. Pra começar, nunca deveria ter ficado do lado daquele traidor.

— Nem se casado com Gwen.
— Sim, o erro está com eles. Nã fomos nós qui começamos a briga.
— Realmente, não fomos.
— O Rei deve defender a justiça. Mesmo si Sua Santidade o obrigar a levar a mulher pra su cama,
nós temos o direito nosso im relaçã a Lancelot. Homem, ele fez u'a grande traiçã quando levou a
Rainha, i também quando matou os da família nossa.
— Temos todo o direito.
O grandão tomou outra vez a mão do outro, a mão pálida dentro da mão calejada do coveiro. Disse
com dificuldade:

— Seria mui ruim estar só.
— Tivemos a mesma mãe, Gawaine.
— Sim!
— E ela também era a mãe de Gareth...
— Aí vem o Rei.
O cortejo da reconciliação chegara às etapas finais. As trombetas soavam no pátio, enquanto os
dignitários da Igreja e do Estado começavam a subir a escada. Os cortesãos, bispos, arautos,
pajens, juizes e espectadores conversam enquanto se aproximavam. A forma cônica da tapeçaria,
antes um vaso vazio, começou a florir com eles. Floriu com damas de rostos lisos e toucados que
pareciam crescentes, ou cones, ou o espantoso penteado usado pela Duquesa em "Alice no País das
Maravilhas". Com corpetes brilhantes que terminavam abaixo das axilas, saias longas e mangas
bufantes, em camelino de Trípoli, tafetá ou roseta, as delicadas criaturas inundavam seus lugares
com um aroma de mirra e mel -com o qual haviam escovado os dentes. Os acompanhantes —
jovens escudeiros na última moda, muitos deles usando o emblema dos Surradores de Mordred —
vinham andando com passinhos miúdos com seus sapatos de biqueira longa, com os quais era
impossível subir escadas. No começo dos degraus, eles os tiravam, e os pajens os levavam até o
final da escada. A impressão dada pelos rapazes era a de pernas metidas em meias longas -foi
inclusive considerado necessário decretar uma lei sobre questões suntuosas, insistindo para que
suas jaquetas fossem compridas o bastante para cobrir-lhe as nádegas. Depois, havia os
conselheiros mais respeitáveis, com chapéus extraordinários, alguns dos quais eram como
abafadores de bule, outros como turbantes, outros como asas de pássaros, e outros ainda como
regalo. Suas vestes eram plissadas e acolchoadas, com colarinhos altos engomados, dragonas e
cintos cravados de jóias. Havia cléricos com pequenos solidéus simples para aquecer suas
tonsuras, vestidos em roupas sóbrias que contrastavam com as dos laicos. Havia um cardeal
visitante com o glorioso capelo de borda que ainda adorna o papel de carta do Wolsey's College de
Oxford. Havia peles de todos os tipos, inclusive um belo arranjo de lã de ovelha branca e preta, em
losangos contrastantes. Os que conversavam faziam barulho como estorninhos.

Essa era a primeira parte da cerimônia. A segunda começou com os anúncios mais próximos das


trombetas. Então chegaram vários cistercienses, secretários, diáconos e outros religiosos, todos
levando tinta feita com casca de espinheiro negro fervida, pergaminho areia, bulas, penas e um tipo
de canivete que os escribas costumavam levar na mão esquerda quando estavam escrevendo.
Também levavam varas de contas e as atas da última reunião.

A terceira parte era o Bispo de Rochester, que fora designado núncio. Veio com toda a pompa de
um núncio, embora tivesse deixado o dossel no começo da escada. Era um senhor de cabelos
sedosos, com sua capa de asperges e báculo, alva e anel — cortês, sacerdotal, conhecedor do
poder espiritual.

Por fim, as trombetas chegaram à porta e a Inglaterra entrou. Com arminho pesado cobrindo seus
ombros e o braço esquerdo, uma faixa mais estreita ao longo do direito, o manto de veludo azul e a
coroa esmagadora, pleno de majestade e amparado, quase literalmente, pelos oficiais do
cerimonial, o Rei foi conduzido até o trono no estrado, seu dossel dourado com bordados de
dragões rampantes e vermelhos — e ali, a multidão agora se abrindo, via-se Gawaine e Mordred
vindo se juntar a ele. Arthur afundou-se onde foi colocado. O núncio consagrado também se sentou,
em um trono oposto, coberto de branco e ouro. O murmúrio aquietou.

— Estamos prontos para começar?
A voz sacerdotal de Rochester aliviou a tensão:
— A Igreja está pronta.
— Também o Estado.
Ouviu-se o resmungo da voz de Gawaine, vagamente ofensivo.
— Há alguma coisa qui deveríamos acertar antes da chegada deles?
— Tudo está bem resolvido.
Rochester voltou os olhos para o Senhor das Órcades.
— Estamos gratos a Sir Gawaine.
— São bem-vindos.
— Nesse caso — disse o Rei — e suponho que devemos avisar Sir Lancelot que o Tribunal está
pronto para recebê-lo.
— Homem Bedivere, mande trazer os prisioneiros. Podia-se observar que Gawaine tinha assumido
o hábito de falar pelo trono, e que Arthur o deixava fazê-lo. O núncio, no entanto, foi menos
submisso.
— Um momento, Sir Gawaine. Devo assinalar que a Igreja não considera essas pessoas
prisioneiras. A missão de Sua Santidade, a qual represento, é de pacificação, não de vingança.
— A Igreja pode considerar os prisioneiros como quiser. Aqui estamos para fazer o qui a Igreja
quer, mas o faremos à nossa própria i bruta maneira. Traga os prisioneiros.
— Sir Gawaine...

— Tocai para Sua Majestade. O Tribunal está aberto.
No meio da música como a de uma cerimônia ruim, e da música que respondeu do lado de fora, as
cabeças viraram-se para a porta.

Houve um sussurro de sedas e peles. Abriu-se uma ala com o arrastar de pés. No arco da porta,
agora aberta, Lancelot e Guenevere esperavam pelo sinal para entrar.

Havia algo de patético na magnificência dos dois, como se estivessem vestidos a rigor para um
baile a fantasia mas não de maneira completamente apropriada. Estavam de roupa branca,
entretecida de ouro, e a Rainha, não mais jovem nem graciosa, levava desajeitada seu ramo de
oliveira. Vieram com timidez pela ala, como atores bem-intencionados que tentam dar o melhor de
si, mas que não são bons atores. Ajoelharam-se em frente ao trono.


— Meu mais poderoso Rei.
O movimento de simpatia foi captado por Mordred.
— Encantador!
Lancelot olhou para o mais velho dos irmãos.
— Sir Gawaine.
O senhor das Órcades virou-lhe as costas. Ele voltou-se para a Igreja.
— Meu senhor de Rochester.
— Seja bem-vindo, filho.
— Eu trouxe a Rainha Guenevere por ordem do Rei e do Papa.
Houve um silêncio constrangido, no qual ninguém ousou ajudá-lo a continuar seu discurso.
— É meu dever, portanto, uma vez que ninguém responde, afirmar a inocência da Rainha da
Inglaterra.
— Mentiroso!
— Venho para garantir, com minha pessoa, que a Rainha é leal, fiel, verdadeira e sincera em
relação ao Rei Arthur, e isso eu sustentarei contra qualquer desafio, exceto apenas se for do Rei ou
de Sir Gawaine. É meu dever para com a Rainha fazer esse oferecimento.
— O Santo Padre nos ordena aceitar seu oferecimento, Lancelot. O clima dramático que estava
crescendo na sala foi quebrado pela segunda vez pela facção das Órcades.
— Vergonha por sus palavras orgulhosas — gritou Gawaine. — Quanto à Rainha, deixe qui ela si
curve i seja perdoada. Mas vós, falso cavaleiro traiçoeiro, qui motivo tinhas para matar mi irmão,
qui vos amava mais do qui todos de mi família?
Os dois grandes homens tinham passado para a alta linguagem, adequada para o lugar e a paixão.


— Deus sabe que de nada adianta eu oferecer minhas desculpas, Sir Gawaine. Preferiria antes ter
matado meu sobrinho, Sir Bors. Mas não os vi, Gawaine, e paguei por isso!

— Foi feito como injúria a mi e às Órcades!
— Faz-me arrepender até o mais fundo do coração — ele disse — que pensais assim, meu senhor
Sir Gawaine, pois sei que enquanto fores contra mim, nunca terei o beneplácito do Rei.
— Palavras verdadeiras, homem Lancelot. Viestes sob salvo-conduto i proteçã para trazer a
Rainha, mas partireis para longe como assassino qui sois.
— Se sou assassino, Deus me perdoe, meu senhor. Mas nunca matei por traição.
Ele pretendia protestar sua inocência, mas foi interpretado como querendo dizer outra coisa.
Apertando seu punhal com uma das mãos, Gawaine exclamou:

— Percebo o que queres dizer. Queres dizer que Sir Lamorak... O Bispo de Rochester levantou sua
luva.
— Gawaine, não podemos deixar essa discussão para outro momento? O assunto imediato é
devolver a Rainha. Sem dúvida Sir Lancelot gostaria de dar uma explicação sobre o problema,
para que a Igreja possa se justificar em sua reconciliação.
— Agradecido, meu senhor.
Gawaine lançou-lhe um olhar furioso, mas a voz cansada do Rei ordenou que os trabalhos
prosseguissem. Estes avançavam de modo desajeitado, com uma série de interrupções.

— Fostes apanhado com a Rainha.
— Senhor, fui chamado ao quarto de minha senhora vossa Rainha, não sei dizer por qual motivo;
mas tão logo ultrapassei a porta da câmara, imediatamente Sir Agravaine e Sir Mordred bateram,
chamando-me de traidor e desleal cavaleiro.
— Chamaram-vos assim justamente.
— Meu senhor Sir Gawaine, em sua altercação, eles provaram por si mesmos não estarem do lado
da justiça. Falo pela Rainha, não por minha própria causa.
— Ora, ora, Sir Lancelot.
O cavaleiro imperfeito voltou-se para seu mais antigo amigo, a primeira pessoa que ele amou com
todo seu ser. Abandonou a língua da cavalaria, passando para a linguagem comum.

— Não podemos ser perdoados? Não podemos ser amigos outra vez? Voltamos em penitência,
Arthur, quando não precisávamos voltar de jeito nenhum. Não se lembra dos velhos tempos, quando
lutamos juntos e éramos amigos? Toda essa crueldade poderia ser removida pela boa-vontade de
Sir Gawaine, se você nos concedesse sua clemência.
— O Rei concede justiça — disse o homem vermelho. — Tivestes clemência com mis irmãos?
— Fui clemente com todos vós, Sir Gawaine. Ouso dizer que posso falar sem jactância quando
digo que muitos nesta sala me devem sua liberdade, se não sua vida. Lutei pela Rainha em causas
de outros, então por que não posso lutar em minha própria causa? Também lutei por vós, Sir
Gawaine, e vos salvei de uma morte ignóbil.

— E no entanto, agora — disse Mordred —, só restam dois das Órcades.
Gawaine atirou a cabeça para trás.
— O Rei pode fazer como desejar. Mi decisã foi tomada seis meses atrás, quando encontrei Gareth
banhado im seu sangue — e desarmado.
— Prouvera Deus que ele estivesse armado, pois então poderia ter me enfrentado. Poderia ter me
matado e evitado nossa desgraça.
— Nobre discurso.
De repente, e apaixonadamente, o velho companheiro gritou para quem quisesse ouvir:
— Por que acreditaria que eu queria matá-los? Eu mesmo armei Gareth cavaleiro. Eu o amava. No
momento que soube que ele estava morto, sabia que você nunca me perdoaria. Sabia que
significava o fim da esperança. Era contra meu interesse matar Sir Gareth.
Mordred murmurou:


— Era contra nosso coração.
Lancelot tentou um último esforço de persuasão.
— Gawaine, perdoe-me. Meu próprio coração sangra pelo que fiz. Sei quanto estás sofrendo,
porque também eu estou sofrendo. Não concederás a paz a nosso país se eu fizer uma penitência?
Não me forces a lutar por minha vida, mas deixai-me fazer uma peregrinação pela alma de Gareth.
Começarei em Sandwich, só com minha camisa, e andarei descalço até Garlisle, e farei doações
para que rezem uma missa por ele a cada quinze quilômetros.
— O sangue de Gareth — disse Mordred — não é para ser pago com doações para missa, nós
achamos... por mais que isso possa agradar ao Bispo de Rochester.
A paciência do velho cavaleiro explodiu.


— Fique de boca calada!
Gawaine inflamou-se de imediato.
— Mantenha os modos, mi covarde maníaco, ou eu o apunhalo aqui mismo, aos pés do Rei.
— Será preciso mais...
Outra vez, o Núncio interveio:
— Sir Lancelot, por favor. Que alguns de nós mantenham a devida calma e compostura, a qualquer
custo. Gawaine, sentai-vos. Foi oferecida uma penitência pelo sangue de Gareth para que por meio
dela a guerra possa chegar a seu fim. Dai-nos sua resposta.
Com um momento de silêncio e expectativa, o gigante de cabelos cor de areia levantou a voz:


— Eu escutei a falaçã di Sir Lancelot i sus grandes oferecimentos, mas ele assassinou mis irmãos.
Isso nunca poderei perdoar, sendo a principal di todas su traiçã a Sir Gareth. Si é da vontade di mi
tio, Rei Arthur, entrar im acordo com ele, entã o Rei perderá mis serviços i o di todos os gaélicos.

Por mais qui si converse sobre isso, nós sabemos a verdade. O homem é um traidor conhecido, do
Rei i di mi mismo.

— Não há ninguém vivo, Gawaine, que me chamou de traidor. Já expliquei sobre a Rainha.
— Já passamos essa questã. Nã estou insinuando sobre a mulher, já qui é mais correto nã fazer
isso. Falo do qui su próprio julgamento deve ser.
— Se for o julgamento do Rei, eu o aceitarei.
— O Rei i eu já tínhamos acordado, antes di chegares.
Insistiu em voltar para ajudar o Rei e, na batalha do desembarque, tentou combater.
Infelizmente, recebeu uma pancada de clava na fenda antiga e morreu poucas horas depois.

— Arthur...
— Dirigi-vos ao Rei por seu título.

— Senhor, isso é verdade?
O velho, no entanto, apenas inclinou a cabeça.
— Pelo menos deixem-me ouvi-lo da boca do Rei!
Mordred disse:
— Fala, pai.
Ele balançou a cabeça como um urso açulado. Moveu-a com o movimento pesado de um urso, mas
sem deixar de olhar o chão.

— Fala.
— Lancelot — ouviu-se ele dizer —, você sabe como a verdade encontra-se entre nós. Minha
Távola está destruída, meus cavaleiros ou partiram ou morreram. Nunca imaginei uma briga com
você, Lance, nem sua comigo.
— Mas isso não pode terminar?
— Gawaine diz... — ele começou, debilmente.
— Gawaine!
— Justiça...
Gawaine pôs-se de pé, manhoso, corpulento e violento.
— Mi Rei, mi senhor i mi tio. É vontade desse Tribunal qui eu pronuncie a sentença contra esse
desleal traidor?
O silêncio tornou-se absoluto.

— Saibam todos, portanto, qui esta é a palavra do Rei. A Rainha pode voltar para ele com su
liberdade como era, i nã correrá perigo algum por nada qui foi suposto antes deste dia. Esta é a
vontade do Papa. Mas vós, Sir Lancelot, vós deveis partir banido desse reino, dentro di quinze
dias, declarado traidor; i, por Deus, depois desse prazo, havemos de segui-lo i derrubar sobre suas
orelhas a fortaleza mais poderosa da França.
— Gawaine — ele pediu, dolorosamente —, não me siga. Eu aceitarei esse banimento. Viverei em
meus castelos na França. Mas não me siga, Gawaine. Não continue essa guerra eternamente.
— Deixai isso com vossos superiores. Esses castelos são do Rei.
— Se você me seguir, Gawaine, não me desafie: não deixe Arthur vir contra mim. Não posso lutar
contra meus amigos. Gawaine, pelo amor de Deus, não nos faça combater.
— Deixa de falaçã, homem. Entregue a Rainha i retire su pessoa rapidamente deste Tribunal.
Lancelot recompôs-se com uma espécie de cuidado final. Desviou os olhos da Inglaterra para seu
algoz. Virou-se lentamente para a Rainha, que nada falara. Viu seu ridículo ramo de oliveira, sua
falta de jeito e roupas tolas. Com a cabeça erguida, elevou a tragédia deles à nobreza e à
gravidade.


— Bem, senhora, parece que devemos nos separar.
Ele tomou-lhe a mão, conduziu-a para o meio da sala, transformando-a na dama de suas
lembranças. Algo em seu aperto de mão, em seu andar, na amplitude de sua voz, fez com que ela
florescesse de novo — era a última cumplicidade deles — como a Rosa da Inglaterra. Elevou-a ao
píncaro da conquista que haviam esquecido. Tão imponente como numa dança, a gárgula levou-a
até o centro. Ali, equilibrando-a ruborizada, a pedra mestra do reino, ele terminou. Era a última vez
que Sir Lancelot, Rei Arthur e a Rainha Guenevere ficariam juntos.

— Meu Rei e meus velhos amigos, uma palavra antes de ir. Minha sentença é deixar esta
fraternidade, à qual servi toda a minha vida. É deixar vosso país e ser perseguido com guerra. Aqui
estou, então, pela última vez, como o campeão da Rainha. Aqui estou para lhe afirmar, senhora e
dama, na presença de todo este Tribunal, que se qualquer perigo a ameaçar no futuro, então um
pobre braço virá da França para defendê-la — e que todos disso se lembrem.
Deliberadamente, beijou-lhe os dedos e voltou-se rigidamente, e começou a percorrer com passos
lentos e em silêncio o longo comprimento da sala. Seu futuro se fechava ao seu redor à medida que
seguia em frente.

Quinze dias até Dover era o prazo estipulado para qualquer criminoso que tivesse recebido
santuário. Ele teria que percorrer o caminho à maneira dos criminosos: sem cinto, descalço, de
cabeça descoberta e só com seu camisão, como se estivesse pendurado em uma forca. Teria que
andar pelo meio da estrada segurando uma pequena cruz na mão, que era o símbolo do asilo, seu
santuário. Provavelmente Gawaine ou seus homens estariam seguindo-o furtivamente caso ele, por
algum momento, deixasse seu talismã de lado. Ainda assim, em camisa ou cota de malha, ele era o
velho Comandante. Caminharia firmemente, sem pressa, olhando direto à sua frente. Ao passar pela
soleira da porta, já tinha a expressão de resistência. As pessoas no Salão da Justiça sentiram-se
incomodadas quando o velho soldado saiu, e muitos olharam de lado os chicotes encarnados, com
um pavor secreto.


XI


Guenevere encontrava-se nos aposentos da Rainha, no Castelo de Carlisle. A cama enorme fora
arranjada como um sofá. Parecia tão arrumada e retangular sob o dossel, que a pessoa podia se
sentir intimidada para sentar. Havia uma lareira com um pequeno bule aquecendo ao lado, uma
cadeira alta e a mesa de leitura. Havia também um livro a ser lido, talvez o Galeotto que Dante
menciona. Custara o mesmo preço de noventa bois mas, como Guenevere já o lera sete vezes, já
não emocionava tanto. Uma recente queda de neve jogava para cima, dentro do quarto, a luz do
final da tarde, que brilhava no teto mais do que no piso, alterando as sombras habituais. Elas eram
azuis, e nos lugares errados. A grande dama costurava, sentada um tanto formalmente na cadeira
alta com o livro ao lado, e uma das suas damas de companhia, sentada nos degraus da cama,
também costurava.

Guenevere costurava, com a mente meio vazia de uma costureira, a outra metade de seus
pensamentos girando sem rumo entre suas preocupações. Desejava não estar em Carlisle. Era
demasiado perto do Norte — que era a região de Mordred —, demasiado longe das seguranças da
civilização. Por exemplo, ela gostaria de estar em Londres — talvez na Torre. Em vez de para essa
monótona extensão de neve, ela gostaria de estar olhando pelas janelas da Torre para a alegria e a
agitação da metrópole: para a Ponte de Londres, com as casas cambaleando em cima,
constantemente prestes a cair dentro do rio. Recordava-se dela como uma ponte de grande
personalidade, também com as casas e as cabeças dos rebeldes nas estacas e o lugar onde Sir
David lutou uma justa completa com Lord Welles. Os porões das casas ficavam dentro dos pilares
da ponte, e tinha também sua própria capela, e uma torre para defendê-la. Era um tipo perfeito de
cidade de brinquedo, com donas de casa pondo as cabeças para fora das janelas, ou baixando
baldes para dentro do rio com cordas compridas, ou jogando fora a água suja, ou pendurando a
roupa, ou gritando com os filhos quando a ponte levadiça estava para ser levantada.

A propósito, seria muito bom simplesmente estar na própria Torre. Aqui, em Carlisle, tudo era
silencioso como a morte. Mas lá, na Torre do Conquistador, um constante ir e vir de londrinos
estaria animando o gelo. Mesmo o zoológico de Arthur, que agora ele mantinha na Torre, estaria
proporcionando um confortável fundo de barulho e cheiros. A última adição fora um elefante
adulto, presente do Rei da França, e especialmente desenhado para os arquivos pelo infatigável
farejador de novidades, Mathew Paris.

Quando Guenevere chegou ao elefante, descansou a costura e começou a esfregar os dedos. Eles


estavam adormecidos. Já não se descongelavam tão rapidamente como antes.

— Agnes, você colocou as migalhas do lado de fora para os pássaros?
— Sim, madame. O tordo estava animado hoje. Soltou um belo de um trinado contra um dos melros
que estava demasiado glutão.
— Pobres criaturas. De qualquer forma, suponho que, em poucas semanas, todos estarão cantando.
— Parece que faz tanto tempo desde que todo mundo partiu — disse Agnes. — A corte agora está
como os pássaros: silenciosa e sem alma.
— Eles voltarão, sem dúvida.
— Sim, madame.
A Rainha pegou outra vez a agulha e empurrou-a cuidadosamente através do tecido.
— Dizem que Lancelot tem sido valente.
— Lancelot sempre foi um cavaleiro valente, madame.
— A última carta diz que Gawaine teve um duelo com ele. Ele deve ter sofrido muito por ter de
lutar com Gawaine.
Agnes disse com ênfase:

— Não consigo entender porque o Rei fica com Sir Gawaine contra seu melhor amigo. Qualquer
um pode ver que é só por teimosia. E ainda arrasar a terra da França só para fazer mal a Sir
Lancelot, e matar tanta gente e dizer essas coisas que os Surradores dizem. Não fará bem a ninguém
continuar assim. Por que eles não podem deixar o passado ser passado, eu me pergunto.
— Acho que o Rei fica com Sir Gawaine porque está tentando ser justo. Acha que o clã dasÓrcades tem o direito de pedir justiça pela morte de Gareth — e suponho que realmente tenha.
Além disso, se o Rei não se unisse a Sir Gawaine, não teria mais ninguém. Ele tinha mais orgulho
da Távola Redonda do que de qualquer outra coisa, e agora ela está se desfazendo e ele quer
conservar alguém.
— Combater Sir Lancelot é uma maneira ruim de conservar a Mesa unida — disse Agnes.
— Sir Gawaine tem seu direito à justiça. Pelos menos, dizem que ele tem. E o Rei tampouco é livre
para escolher. Foi arrastado pelas pessoas — pelos homens que querem fazer conquistas na França
e exigiram isso, ou que estão enjoados da longa paz que ele conseguiu manter, ou que estão
ansiosos por promoções militares e mortes em troca daqueles que morreram na Praça do Mercado.
Há os jovens cavaleiros do partido de Mordred, que acreditam em nacionalismo e que foram
ensinados a pensar que meu esposo é um velho antiquado, e há os parentes dos que estavam na lutanas escadas, e há o clã das Órcades, que não esquece seus antigos ódios. A guerra é como um fogo,
Agnes. Um homem a começa mas ela se espalha por todo lado. Não é só por uma única coisa.
— Ah, esses assuntos elevados do poder, madame, estão além de nossa compreensão, pobres
mulheres. Mas fale, o que dizia a carta?
Guenevere ficou em silêncio por algum tempo, olhando a carta sem vê-la, enquanto seus


pensamentos refletiam sobre os problemas do esposo. Depois disse lentamente:

— O rei gosta tanto de Lancelot que é forçado a ser injusto com ele por medo de parecer injusto
com outras pessoas.
— Sim, Madame.
— Aqui diz... — continuou a Rainha, reparando com um sobressalto na carta que estivera olhando
— aqui diz que Sir Gawaine cavalgava todos os dias em frente ao castelo, gritando que Lancelot
era covarde e traidor. Os cavaleiros de Lancelot ficaram furiosos e saíram, um por um, para duelar
com ele, mas ele os derrubou a todos, e feriu gravemente alguns. Quase matou Bors e Lionel, até
que finalmente Sir Lancelot teve que ir, ele mesmo. As pessoas de dentro do castelo o obrigaram.
Ele disse a Sir Gawaine que fora obrigado, como uma fera acuada.
— E o que disse Sir Gawaine?
— Sir Gawaine respondeu: "Parai de tagarelar e saia; vamos sossegar nossos corações".
— E sossegaram?
— Sim, tiveram um duelo na frente do castelo. Todos prometeram não interferir, e eles começaram
às nove horas da manhã. Você sabe como Sir Gawaine sempre luta melhor de manhã. Foi por isso
que começaram tão cedo.
— Misericórdia para Sir Lancelot! Ter que enfrentá-lo com a força de três! Pois ouvi dizer que os
Antigos têm o sangue das fadas dentro deles, através do cabelo vermelho, sabia, madame?, e isso
dá ao chefe do clã, antes do meio-dia, a força de três pessoas, porque o sol luta com ele!
— Deve ter sido terrível, Agnes. Mas Sir Lancelot é demasiado orgulhoso para não lhe dar essa
vantagem.
— Fico surpresa por ele não ter morrido.
— Quase morreu. Mas se protegeu com o escudo e esquivou-se todo o tempo, lentamente, e recuou.
Diz a carta que ele recebeu muitos golpes horríveis, mas conseguiu se defender até o meio-dia.
Então, claro, quando a força mágica enfraqueceu, Lancelot conseguiu tomar a ofensiva e terminou
dando um golpe na cabeça de Sir Gawaine que o deixou prostrado. Não conseguiu mais se levantar.
— Ai! de Sir Gawaine!
— Sim, ele poderia tê-lo matado bem ali.
— Mas não matou.
— Não. Lancelot recuou e baixou a espada. Gawaine implorou que o matasse. Estava mais furioso
que nunca e gritava: "Por que parais? Vamos, matai-me e acabai com essa carnificina. Eu não me
renderei. Matai-me de uma vez, pois só farei voltar a combater-vos se me deixardes vivo". Ele
estava chorando.
— Podemos ter certeza de que Sir Lancelot se recusou a golpear um cavaleiro ferido — disse
Agnes, sabiamente.
— Podemos.

— Ele sempre foi um cavaleiro bom e gentil, embora não exatamente o que se pode chamar de uma
beleza.
— Era o comandante de todos.
Ficaram em silêncio, reservadas nos seus sentimentos, e recomeçaram a costurar. Depois, a Rainha
disse:

— A luz está ruim, Agnes. Não está na hora de acender os juncos?
— Certamente, madame. Eu estava mesmo pensando nisso.
Ela começou a acendê-los no fogo, resmungando sobre o lugar atrasado e desprovido, os selvagens
nortistas que não tinham velas, enquanto Guenevere cantarolava baixinho, distraída. Era o dueto
que costumava cantar com Lancelot e, quando o reconheceu, parou imediatamente.

— Pronto, senhora. Os dias parecem mais compridos.
— Sim, logo chegará a primavera.
Sentada e costurando à luz fumarenta, Agnes retomou suas perguntas onde tinha parado.
— E o que disse o Rei sobre o assunto?
— Chorou quando viu como Gawaine fora poupado. Isso o fez recordar-se de outras coisas, e ele
sentiu-se tão infeliz que adoeceu.
— Será que ele teve o que chamam de depressão nervosa, madame?
— Sim, Agnes. Ele ficou doente de tristeza, e Gawaine teve concussão, então os dois passaram mal
juntos. Mas os cavaleiros continuaram o cerco.
— Bom, não é uma carta muito alegre, não é, madame?
—Não, não é.
— Lembro que uma vez recebi uma carta... mas é isso, eles dizem que as notícias ruins viajam mais
depressa.
— Tudo são cartas, agora... agora que a corte está vazia e o mundo dividido, e que não ficou
ninguém a não ser Lorde Protetor.
— Ah, e esse Sir Mordred: não consigo suportar os gostos dele. Por que ele sai por aí fazendo
tantos discursos para as pessoas, e fica agitando seu chapéu para fazê-los dar vivas? Por que ele
não pode se vestir com roupas mais alegres, em vez de ficar zanzando por aí com aquele preto,
como se fosse o Santo Dia do Juízo Final? Ele tirou isso do pobre Sir Gawaine, ouso dizer.
— O uniforme supostamente é o luto por Gareth.
— Aquele lá nunca se importou com Sir Gareth. Não acredito que se importe com ninguém.
— Ele se importava com a mãe, Agnes.
— E ela teve a garganta cortada por não ter sido melhor do que devia. São um povinho esquisito,
todos eles.

— A Rainha Morgause deve ter sido uma pessoa estranha — disse Guenevere, com cuidado. — É
de conhecimento de todos, agora que Mordred foi feito Lorde Protetor, portanto, não faz mal falar
sobre isso. Mas ela deve ter sido uma mulher poderosa para ter atraído nosso Rei quando já era
mãe de quatro meninos. Ora, ela atraiu Lamorak quando já era avó. Devia ter uma influência
terrível sobre os filhos, para que um deles se sentisse tão furioso com ela a ponto de matá-la.
Estava por volta dos setenta anos. Acho que ela devorou Mordred como uma aranha, Agnes.
— Houve uma época que eles costumavam falar que as irmãs da Cornualha eram feiticeiras. Claro,
a pior delas era Morgana le Fay. Mas essa Morgause não ficava muito atrás.
— Faz com que a gente sinta pena de Mordred.
— Guarda a pena para si mesma, madame, pois não receberá nenhuma dele.
— Ele tem sido educado desde que assumiu o cargo.
— Sim, tem sido. Mas são os quietos que fazem as maldades. Guenevere refletiu sobre isso,
segurando o tecido sob a luz.
Perguntou com alguma ansiedade:

— Você não acha que Sir Mordred pretende fazer algo errado, acha, Agnes?
— Ele é do mal.
— Ele não faria nada errado justo quando o Rei o deixou para cuidar do país e de nós?
— Esse seu Rei, madame, se me perdoa a liberdade, está completamente fora da minha
compreensão. Primeiro, vai lutar contra seu melhor amigo porque Sir Gawaine o manda fazer isso
e, depois, deixa o seu maior inimigo como Lorde Protetor. Por que ele insiste em agir tão
cegamente?
— Mordred nunca foi contra as leis.
— Isso é porque ele é demasiado esperto.
— O Rei disse que Mordred teria que ser o herdeiro do trono, e não se pode ter o Rei e o herdeiro
fora do país em um mesmo momento, portanto, era natural que fosse deixado como Protetor. Foi
apenas justo.
— Esse tipo de justiça, madame, nunca traz nada de bom. Elas continuaram costurando.
Agnes acrescentou:
— Se isso é verdade, o Rei deveria ter ficado e deixado Sir Mordred ir.
— Eu gostaria que ele tivesse feito isso. Mais tarde ela explicou:
— Acho que o Rei quis ficar com Sir Gawaine para o caso de poder servir de moderador entre
eles.
Elas costuravam com desconforto, as agulhas passando pelo tecido escuro como o raio comprido
das estrelas cadentes.


— Você tem medo de Sir Mordred, Agnes?
— Sim, madame, tenho.
— Eu também. Nos últimos tempos, caminha por aí tão silenciosamente e... olha para as pessoas de
maneira estranha. E depois tem todos esses discursos sobre os gaélicos e os saxões e os judeus, e
todos os gritos e histeria. Semana passada, eu o escutei rir sozinho. Foi horrível.
— Ele é dissimulado. Talvez esteja nos escutando agora.
— Agnes!
Guenevere deixou sua agulha cair, como se tivesse recebido um golpe.
— Ah, vamos, madame: não me leve a sério. Eu estava brincando. Mas a Rainha continuou gelada.
— Vá até a porta. Eu acho que você está certa.
— Ah, madame, não posso fazer isso.
— Abra-a de uma vez, Agnes.
— Madame, imagina se ele estiver lá!
Ela foi contagiada pelo sentimento. A luz impotente dos juncos não era suficiente. Ele podia estar
dentro do próprio quarto, em algum canto escuro. Ela levantou-se de um salto, como uma perdiz
quando o falcão se aproxima, e puxou a saia. Para as duas mulheres, o castelo de repente estava
demasiado escuro, demasiado vazio, demasiado solitário, demasiado ao Norte, demasiado cheio de
noite e inverno.


— Se você abrir a porta, ele irá embora.
— Mas devemos lhe dar tempo para ir embora.
Lutavam com suas vozes, sentindo-se como se estivessem sob uma asa negra.
— Aproxime-se, então, e fale alto, antes de abrir.
— Madame, o que devo dizer?
— Diga, "Devo abrir a porta?" Então eu responderei: "Sim, acho que já é hora de ir para cama."
— Acho que já é hora de ir para a cama.
— Vá.
— Muito bem, madame. Posso começar?
— Comece, sim, logo!
— Não sei se vou dar conta.
— Oh, Agnes, por favor, rápido!
— Muito bem, madame. Acho que vou dar conta, sim. Olhando para a porta como se ela pudesse
atacá-la, Agnes falou com sua voz mais alta:
— Eu estou indo abrir a porta!

— É hora de ir para a cama! Nada aconteceu.
— Agora, abra — disse a Rainha.
Ela levantou a tranca e abriu rapidamente a porta, e lá estava Mordred, sorrindo na soleira.
— Boa-noite, Agnes.
— Oh, senhor!
Com uma mão sobre o peito, a infeliz mulher fez-lhe uma rápida cortesia, e passou por ele correndo
em direção às escadas. Ele afastou-se para um lado, educadamente. Quando ela desapareceu, ele
entrou no quarto, suntuoso no seu veludo negro, com um diamante frio brilhando à luz dos juncos no
emblema escarlate. Qualquer pessoa que não o tivesse visto nos últimos dois meses teria
percebido, imediatamente, que ele estava louco — mas sua razão se perdeu tão gradualmente que
quem vivia com ele não pudera notar. Seu cãozinho preto seguia-o, com os olhos brilhantes e o
rabo encaracolado.

— Nossa Agnes parece estar muito nervosa — ele disse. — Boa noite, Guenevere.
— Boa noite, Mordred.
— Um pouquinho de bordado? Pensei que vocês estivessem tricotando meias para os soldados.
— O que veio fazer aqui?
— Só uma visitinha noturna. Desculpe a entrada dramática.
— Você sempre espera à soleira das portas?
— A pessoa tem que entrar pelas portas de alguma forma, senhora. E mais adequado do que entrar
pela janela — embora, acredito, algumas pessoas tenham ficado conhecidas por fazer isso.
— Entendo. Quer sentar?
Ele sentou-se com gestos elaborados, e o cãozinho logo saltou para seu colo. De certa forma, era
trágico observá-lo pois era como sua mãe. Atuava, e havia deixado de ser real.

Tragédias foram escritas onde louras fatais traíram seus amantes, levando-os à ruína; onde
Cressidas, Cleópatras, Dalilas, e algumas vezes filhas travessas, como Jéssíca, causaram a
desgraça de seus amantes ou pais: mas não são elas o coração da tragédia. São sacudidelas na alma
do homem. Que importa se Antony caiu sobre sua espada? Só ele morreu. E o desejo pela mãe, não
pela amante, que apodrece o espírito. E isso que condena o caráter trágico à sua caminhada demorte. É Jocasta, não Julieta, quem habita na câmara interior. É Gertrude, não a tola Ofélia, quem
leva Hamlet à sua loucura. O coração da tragédia não está em tomar ou roubar. Qualquer moça
cabecinha-de-vento pode roubar um coração. Mas está no ato de dar, de pôr, de acrescentar, de
sufocar sem travesseiros. Desdêmona, roubada de vida ou honra, não é nada para um Mordred,
roubado de si mesmo — sua alma roubada, reprimida, secada, enquanto a mãe-personagem vive
triunfante, supérflua e com amor sufocante devotado a ele, aparentemente inocente de má-intenção.
Mordred foi o único filho das Qrcades que nunca se casou. Ele, enquanto seus irmãos fugiam para a
Inglaterra, foi o que ficou sozinho com ela por vinte e quatro anos — sua despensa viva. Agora que


ela estava morta, ele tornara-se seu túmulo. Ela existia nele como uma vampira. Quando ele se
mexia, quando assoava seu nariz, ele o fazia com os movimentos dela. Quando atuava, tornava-se
tão irreal quanto ela fora, pretendendo ser uma virgem para o unicórnio. Ele chapinhava na mesma
magia cruel. Começara até a ter cães para pôr no colo, como ela — embora sempre tenha odiado os
dela com o mesmo ciúme amargo com que odiara seus amantes.

— Parece que sinto uma frieza no ar esta noite?
— Em fevereiro faz frio.
— Estava me referindo à delicadeza de nossa relação pessoal.
— O Protetor, que meu esposo nomeou, deve ser bem recebido pela Rainha.
— Mas não o bastardo do esposo, suponho?
Ela abaixou sua agulha e olhou-o de frente.
— Não entendo porque veio assim, e não sei o que você quer. Ela não desejava ser hostil, mas ele
a estava forçando. Ela nunca tivera medo de ninguém.
— Eu estava pensando em ter uma conversa sobre a situação política, apenas uma conversinha.
Ela percebeu que eles estavam diante de uma crise de algum tipo, e isso a enfraqueceu. Estava
muito velha, agora, para lidar com homens loucos, embora ainda não suspeitasse de sua sanidade.
Só a ironia incômoda de seu tom de voz a fazia sentir-se, ela também, irreal — fazia-a incapaz de
simplesmente dizer suas próprias palavras. Mas não se renderia.

— Ficarei feliz em saber o que você quer dizer.
— Isso é extremamente generoso de sua parte... Jenny.
Era monstruoso. Ele a estava transformando em uma de suas fantasias, não estava de jeito nenhum
se dirigindo a uma pessoa de carne e osso.
Indignada, ela respondeu:


— Poderia ser gentil o suficiente para se dirigir a mim pelo meu título, Mordred?
— Mas certamente. Peço perdão se invadi a seara de Lancelot. O sarcasmo agiu como um tônico.
Elevou sua estatura à da dama real que ela era, ao porte altivo de uma majestade cujos dedos
reumáticos cintilavam de anéis, de alguém que dominara o mundo com sucesso por cinqüenta anos.
— Acredito que lhe seria muito difícil fazer isso — ela disse, imediatamente.
— Ah! Mas receio que estava pedindo por isso! Você sempre foi um pouco impetuosa... Rainha
Jenny.
— Sir Mordred, se você não pode agir como um cavalheiro, eu me retiro.
— E para onde iria?
— Para qualquer lugar: qualquer lugar onde uma mulher com idade suficiente para ser sua mãe
estaria a salvo desse tipo de extravagância.

— A questão — ele observou, como se refletisse — é: onde você estaria a salvo? O plano parece
destinado ao fracasso, em última instância, quando se considera que todos se foram para a França e
que eu sou o governante do reino. Claro, você poderia ir para a França... se conseguisse chegar lá.
Ela entendeu, ou começou a entender.

— Não sei o que você quer dizer.
— Então deve tentar adivinhar.
— Se você puder me dar licença — ela disse, levantando-se —, gostaria de chamar minha dama.
— Chame-a, como queira. Mas eu teria que mandá-la embora.
— Agnes só aceita ordens minhas.
— Duvido. Vamos experimentar.
— Mordred, quer se retirar?
— Não, Jenny — ele disse. — Quero ficar. Mas se você se sentar com calma por um minuto e
escutar, prometo me comportar como um perfeito cavalheiro — como um de seus preux chevaliers,
de fato.
— Você não me dá opções.
— Pouquíssimas.
— O que você quer? — ela perguntou e se sentou, entrelaçando as mãos no colo. Estava
acostumada a uma vida de perigos.
— Ora, vamos — ele disse, com grande bom humor, completamente ensandecido, desfrutando seu
jogo de gato e rato. —Não devemos nos precipitar dessa maneira sem graça. Devemos nos pôr à
vontade antes de começar nossa conversa, ou então ela parecerá forçada.
— Estou escutando.
— Não, não. Você deve me chamar de Mordy, ou de algum apelido carinhoso. Então parecerá mais
natural quando eu lhe chamar de Jenny. Tudo caminhará de maneira muito mais agradável.
Ela não respondeu.

— Guenevere, você tem idéia da sua posição?
— Minha posição é a de Rainha da Inglaterra, assim como a sua é a de Protetor.
— Enquanto Arthur e Lancelot estão combatendo um ao outro na França.
— Exatamente.
— Suponha que eu lhe diga — ele perguntou, alisando o cãozinho — que recebi uma carta esta
manhã? Que Arthur e Lancelot estão mortos?
— Eu não acreditaria em você.
— Mataram-se um ao outro em combate.

— Não é verdade — ela respondeu, calmamente.
— Realmente, não é. Como você adivinhou?
— Se não era verdade, foi cruel dizer isso. Por que você disse?
— Grande quantidade de pessoas teria acreditado, Jenny. Espero que uma grande quantidade
acredite.
— Por que acreditariam? — ela perguntou, antes de entender seu objetivo. Então parou, prendendo
a respiração. Pela primeira vez começou a sentir medo: mas era por Arthur.
— Você não pode querer dizer que...
— Oh, mas eu posso — ele exclamou, com alegria —, e vou fazer. O que você acha que acontecerá
se eu anunciar a morte do pobre Arthur?
— Mas Mordred, você não pode fazer uma coisa dessas! Eles estão vivos... Você deve tudo... O
Rei fez de você seu representante... Seu juramento... Não seria verdade! Arthur sempre o tratou com
escrupulosa justiça.
Ele respondeu com os olhos frios:

— Nunca pedi para ser tratado com justiça. É algo que ele faz com o povo para se divertir.
— Mas ele é seu pai!
— Quanto a isso, tampouco pedi para nascer. Suponho que ele fez também para se divertir.
— Entendo.
Ela sentou-se, torcendo a costura nas mãos, tentando pensar.
— Por que você odeia meu esposo? — perguntou, quase em dúvida.
— Não o odeio. Desprezo-o.
— Quando tudo aconteceu — ela explicou com gentileza —, ele não sabia que sua mãe era irmã
dele.
— E suponho que ele não sabia que eu era seu filho, quando nos enxotou no barco?
— Ele mal tinha dezenove anos, Mordred. Eles o atemorizaram com profecias, e ele fez o que o
mandaram fazer.
— Minha mãe era uma mulher honesta até encontrar Rei Arthur. Tinha um lar feliz com Lot das
Órcades, e lhe deu quatro filhos valentes. O que aconteceu depois?
— Mas a Rainha Morgause tinha o dobro da idade dele. Ela deve ter...
Ele a fez parar, levantando a mão.
— Você está falando de minha mãe.
— Sinto muito, Mordred, mas realmente...
— Eu amava minha mãe.

— Mordred...
— O Rei Arthur aproximou-se de uma mulher que era fiel a seu esposo. Quando a deixou, era uma
mulher desonrada. Terminou seus dias em uma cama desnuda com Sir Lamorak, morta com justiça
por um de seus próprios filhos.
— Mordred, não adianta dizer nada se você não quiser ver... se você não consegue acreditar que
Arthur é bom e está arrependido e em dificuldades. Ele gosta de você. Ele estava me contando
como amava você justo um ou dois dias antes que esse tormento começasse...
— Ele pode ficar com o amor dele.
— Ele tem sido tão justo — ela protestou.
— O nobre e justo Rei! Sim, é fácil ser justo depois que tudo acaba. Essa é a parte divertida.
Justiça! Ele pode ficar com isso também.
Tentando falar com firmeza, ela disse:

— Se proclamar a si mesmo rei, eles virão da França para combater contra você. Então teremos
duas guerras em vez de uma, e ela será travada na Inglaterra. Toda a fraternidade será destruída.
Ele sorriu de pura satisfação.

— Parece inacreditável — ela disse, espetando o bordado. Não havia nada que pudesse fazer. Por
um momento, passou pela sua cabeça que se ela se humilhasse diante dele, se se ajoelhasse em seus
velhos joelhos endurecidos para pedir clemência, ele poderia talvez se apaziguar. Mas era evidente
que seria inútil. Ele estava fixo em sua rota, como uma bola correndo por um sulco habitual.
Mesmo sua conversa era, por assim dizer, a parte falada de sua atuação. Terminaria segundo o
roteiro.
— Mordred — ela disse, impotente —, tenha piedade do povo do país, se não tiver nenhuma de
Arthur nem de mim.
Ele tirou o cãozinho do colo e se levantou, sorrindo para ela com louca satisfação. Endireitou-se,
olhando-a, mas sem realmente a ver.

— É claro que terei piedade de você — ele disse —, já que não terei de Arthur.
— O que você quer dizer?
— Eu estava pensando em um padrão, Jenny, um simples padrão.
Ela o olhou sem falar.
— Sim. Meu pai cometeu incesto com minha mãe. Você não acha que seria um padrão, Jenny, se eu
respondesse me casando com a esposa do meu pai?

XII


Estava escuro na tenda de Gawaine, exceto por um braseiro achatado que iluminava fracamente a
partir de baixo. A tenda era pobre e gasta, comparada com os pavilhões esplêndidos dos cavaleirosingleses. Sobre a cama dura havia algumas mantas com o padrão xadrez das Órcades, e os únicos
ornamentos eram uma pesada garrafa de água benta que ele estava tomando como remédio, com a
etiqueta "Optimus egrorum, medicus fit Thomans bonorum", e um molho de urzes murchas amarrado
no mourão da tenda. Eram os seus deuses domésticos.

Gawaine estava esticado, deitado de bruços, nas mantas. Estava chorando, lenta e
desesperadamente, enquanto Arthur, sentado ao lado dele, afagava sua mão. Era porque o ferimento

o enfraquecera, do contrário não estaria chorando. O velho Rei tentava acalmá-lo.
— Não se aflija por isso, Gawaine — ele disse. — Você fez o melhor que podia.
— Foi a segunda vez qui ele mi poupou, a segunda im um mês.
— Lancelot sempre foi forte. Os anos parecem não tocá-lo.
— Por qui ele nã mi mata, entã? Implorei qui mi fizesse esse favor. Falei qui si mi deixasse para
ser emendado, eu ia lutar com ele de novo quando fosse remendado. I por Deus! — acrescentou,
com lágrimas — como mi cabeça dói!
Arthur explicou, com um suspiro:

— É porque os dois golpes pegaram no mesmo lugar. Foi má sorte.
— Faz o corpo si sentir envergonhado.
— Não pense nisso, então. Fique deitado tranqüilo, ou você terá febre de novo e não poderá lutar
por muito tempo. E então, o que faríamos? Ficaríamos completamente perdidos sem nosso Gawaine
para comandar uma batalha para nós.
— Sou só um espantalho, Arthur — ele disse. — Sou um valentã de más intençãs, e nã consigo
derrotar Lancelot.
— As pessoas que dizem que não boas sempre são as que prestam. Vamos mudar de assunto e falar
de coisas agradáveis. A Inglaterra, por exemplo.
— Nunca veremos di novo a Inglaterra.
— Bobagem! Vamos ver a Inglaterra na primavera. Ora, já é quase primavera. Os flocos de neve já

terão desaparecido há séculos, e ouso dizer que Guenevere já terá um pouco de açafrão. Ela é boa
em jardinagem.

— Guenevere foi gentil comigo.
— Minha Gwen é gentil com todo mundo — disse o velho, orgulhoso. — Imagino o que estará
fazendo agora. Indo para cama, suponho. Ou talvez esteja acordada até tarde, tendo uma conversa
com seu irmão. Seria ótimo pensar que eles estão falando de nós nesse momento, talvez falando de
coisas admiráveis sobre as proezas de Gawaine; ou talvez Gwen esteja dizendo que gostaria que
seu velho voltasse para casa.
Gawaine mexeu-se inquieto na cama.

— Tenho a intençã de voltar pra casa — murmurou. — Si Lancelot odeia o clã das Órcades, como
Mordred diz, por qui poupou su chefe? Pode mesmo ser qui ele tenha matado Gareth por má sorte.
— Tenho certeza de que foi má sorte. Se você me ajudar a pôr um fim na guerra, vamos poderterminar logo com isso. É por sua justiça que estamos lutando agora, você sabe. Eu e os outros que
queremos lutar teremos que acabar nos curvando a isso. Se você quiser pôr um fim nisso, ninguém
ficará mais feliz do que eu.
— Sei, mas mi fiz um juramento de lutar com ele até a morte.
— E você teve duas boas tentativas.
— I levei uma surra completa nas duas vezes — disse, com amargura. — Lancelot podia ter
terminado a guerra duas vezes. Nã, ia parecer covardia si eu mi rendesse.
— Os mais valentes são os que não se importam de parecerem covardes. Lembre-se de como
Lancelot se escondeu em Joyous Gard durantes meses, enquanto cantávamos hinos do lado de fora.
— Nã posso esquecer o rosto di nosso Gareth.
— Foi triste para todos nós.
Gawaine estava tentando pensar, um esforço que a falta de prática tornava difícil. Nesse escuro
anoitecer, era duas vezes mais difícil, por causa de sua cabeça. Desde a época que Galahad lhe deu
uma concussão, na busca do Graal, ele ficou sujeito a dores de cabeça, e agora, por um curioso
acidente, Lancelot lhe dera dois golpes, em duelos diferentes, no mesmo lugar.

— Por qui deveria desistir? — ele perguntou. — Só porqui ele mi derrotou? Seria como fugir dele
si desistisse agora. Si pudesse derrubá-lo im um tercer encontro, talvez. I poupar o chefe... ficaria
empatado.
— Os campos — disse o Rei, pensativo —, logo estarão cobertos de ranúnculos amarelos e de
margaridas. Seria ótimo conquistar a paz.
— E verdade, i a caça com falcã na primavera.
A figura agitou-se na cama escura, com um movimento de recordação, mas imobilizou-se quando a
dor lhe trespassou o crânio.


— Misericórdia, mi cabeça lateja di dor.
— Você quer que eu apanhe uma atadura úmida para colocar aí, ou uma taça de leite?
— Nã. Deixa assim. Nã vai adiantar.
— Pobre Gawaine. Espero que nada tenha se quebrado aí dentro.
— A coisa qui está quebrada é mi espírito. Vamos mudar di conversa.
O Rei disse, em dúvida:
— Não devo falar muito. Acho que devo sair e deixar você dormir.
— Nã, fique. Nã mi deixe só. Fico aborrecido si estou só comigo.
— O médico disse...
— Pro inferno c'o o médico. Fique mais um pouco. Pegue mi mã. Fale da Inglaterra.
— Amanhã deve chegar um correio e então poderemos saber como está a Inglaterra. Teremos as
últimas notícias, e haverá uma carta do jovem Mordred, e talvez minha Gwen me escreva.
— As cartas di Modred sã alegria fria, di certa forma. Arthur apressou-se a defendê-lo.
— É só porque ele tem uma vida infeliz. Você pode acreditar que dentro dele tem um fogo
permanente de amor. Gwen dizia que todo o calor dele era para a mãe.
— Ele amava nossa mãe.
— Talvez estivesse apaixonado por ela.
— Isso explicaria a razã de sus ciúmes.
Gawaine ficou surpreso com essa descoberta, que pela primeira vez lhe ocorria.
— Talvez tenha sido por isso que ele deixou Sir Agravaine matá-la, quando ela teve aquele caso
com Lamorak... Pobre rapaz, tem sido maltratado pelo mundo.
— Ele é o único de mis irmãos qui mi restou.
— Eu sei. O episódio com Lancelot foi um trágico acidente.
O senhor de Lothian mexeu febrilmente na atadura.
— Mas nã pode ter sido acidente. Eu podia ter mis dúvidas si eles estivessem usando elmos, mas
eles estavam sem proteçã. Ele devia saber disso.
— Já conversamos sobre isso várias vezes.
— Sim, nã adianta.
O velho perguntou com trágico recato:
— Você não acha que poderia chegar a perdoá-lo, Gawaine, seja o que for que tenha acontecido?
Não estou pretendendo me furtar ao dever, mas se a justiça pudesse ser combinada com a
clemência...

— Vou combiná-la quando ele estiver sob mi mercê, nã antes.
— Bom, é você quem deve dizer. Aí vem o médico para me dizer que fiquei tempo demais. Entre,
doutor, entre.
Mas foi o Bispo de Rochester quem entrou alvoroçado, carregando alguns pacotes e uma lanterna
de ferro.

— É você, Rochester. Achamos que era o doutor.
— Boa noite, senhor. E boa noite para Sir Gawaine.
— Boa noite.
— Como está a cabeça hoje?
— Melhor, obrigado, mi senhor.
— Ótimo, essa é uma excelente notícia. E eu — ele acrescentou com malícia — também trouxe uma
boa notícia. O correio chegou cedo!
— Cartas!
— Aqui está uma bem longa — e ele entregou uma carta para o Rei.
— Tem alguma pra mim?
— Nada, receio que não, esta semana. Terá melhor sorte da próxima vez.
Arthur aproximou a carta da lanterna e quebrou o selo.
— Perdão se a leio.
— Claro. Não podemos fazer cerimônia com as notícias da Inglaterra. Meu Deus, nunca pensei que
um dia na vida me tornaria um romeiro, Sir Gawaine, e ficaria andando de um lado para outro em
terras estrangeiras....
A tagarelice do bispo extinguiu-se. Arthur ficou imóvel. Não ficou nem vermelho nem pálido; nem
deixou cair a carta, nem olhou fixo à sua frente. Lia em silêncio. Mas Rochester parou de falar, e
Gawaine ergueu-se em um cotovelo. Observaram-no ler, boquiabertos.

— Senhor...
— Nada — ele disse, afastando-os com a mão. — Perdão. As notícias...
— Espero...
— Deixe-me terminar, por favor. Converse com Sir Gawaine. Gawaine perguntou:
— São más notícias... Posso ver?
— Não, por favor, um minuto.
— Mordred?
— Não. Não é nada. O doutor disse... Meu senhor, eu gostaria de lhe falar lá fora.
Gawaine começou a se sentar na cama.

— Tenho qui saber.
— Não há nada para se preocupar. Fique deitado. Nós voltaremos.
— Si você sair sem mi contar, eu vou atrás.
— Não é nada. Fará mal à sua cabeça.
— O qui é?
— Nada. É só que...
— Sim?
— Bem, Gawaine — ele disse, sucumbindo de repente —, parece que Mordred proclamou-se a si
mesmo Rei da Inglaterra, sob a sua Nova Ordem.
— Mordred!
— Ele disse a seus Surradores que estamos mortos, entende — Arthur explicou, como se fosse uma
espécie de problema —, e...
— Mordred disse que estamos mortos?
— Ele disse que estamos mortos, e...
Mas não conseguiu achar as palavras.
— E o quê?
— Ele vai se casar com Gwen.
Houve um silêncio de morte, enquanto a mão do bispo procurava vagamente a cruz em seu peito e
Gawaine agitava-se entre as roupas da cama. Depois, os dois falaram ao mesmo tempo.

— Lorde Protetor...
— Nã pode ser verdade. Deve ser brincadeira. Mi irmão nã faria uma coisa dessas.
— Desgraçadamente, é verdade — disse o Rei, com paciência. — Esta carta é de Guenevere. Só
Deus sabe como ela conseguiu enviá-la.
— A idade da Rainha...
— Depois da proclamação, ele pediu-a em casamento. Ela não tinha ninguém a quem recorrer. A
Rainha aceitou o pedido.
— Aceitou Mordred!
Gawaine conseguiu um jeito de colocar as pernas para fora da cama.
— Tio, mi dê esta carta.
Tomou-a da mão inerte, que a entregou automaticamente, e começou a ler, inclinando a folha para a
luz. Arthur continuou a explicar.

— A Rainha aceitou a proposta de Mordred e pediu autorização para ir a Londres preparar o

enxoval. Quando estava em Londres com os poucos que permaneceram fiéis, ela entrou subitamente
na Torre e fechou os portões. Graças a Deus é uma fortaleza poderosa. Agora, eles a estão sitiando
na Torre de Londres e Mordred está usando armas de fogo.

Rochester perguntou, desnorteado:

— Armas de fogo?
— Ele está usando canhões.
Era demais para o entendimento do velho padre.
— É inacreditável! — ele disse. — Dizer que estamos mortos e casar com a Rainha! E depois usar
canhões...
— Agora que as armas de fogo chegaram — disse Arthur —, a Távola acabou. Devemos apressar-
nos de volta para casa.
— Usar canhões contra homens! Devemos partir imediatamente em socorro, meu senhor. Gawaine
pode ficar aqui...
Mas o Senhor das Órcades já estava fora da cama.

— Gawaine, o que está fazendo? Volte imediatamente para a cama.
— Vou com vocês.
— Gawaine, deite-se. Rochester, ajude-me com ele.
— Mi último irmão quebrou seu juramentado di fidelidade.
— Gawaine...
— I Lancelot... Oh Deus, mi cabeça!
Ele oscilou sob a luz tênue, segurando a atadura com ambas as mãos, enquanto sua sombra se movia
grotescamente em torno do mourão da tenda.


XIII


Anguish da Irlanda uma vez sonhou com um vento que derrubaria todos os seus castelos e cidades

— e este parecia conspirar para isso. Estava soprando ao redor do Castelo de Benwick com todos
os registros de um órgão. O barulho que fazia soava como grosseiros feixes de seda sendo puxados
através das árvores; como nós puxamos o cabelo com o pente; como montes de areia fina
escorrendo por uma pá; como gigantescos panos de linho sendo torcidos; como tambores em uma
batalha distante; como uma interminável serpente desviando-se entre a vegetação rasteira do mundo
das árvores e das casas; como velhos suspirando, mulheres gemendo e lobos correndo. Assobiava,
zumbia, latejava, ribombava entre as chaminés. Sobretudo, soava como uma criatura viva: um ser
monstruoso, elementar, lamentando sua danação. Era o vento de Dante, carregando amores e
guindastes perdidos: Satã sem sabá, labutando e causando tumulto.
No mar ocidental, atormentava sua placidez, levantando das águas seu corpo e carregando-o como
espuma. Na terra seca fazia as árvores vergarem-se à sua frente. Os espinheiros retorcidos, que
cresceram com tronco duplo, gemiam, batendo um tronco contra o outro com gritos e lamentos. Nos
ramos das árvores que açoitavam e estalavam, os pássaros voltavam-se de cabeça contra o vento, o
corpo na horizontal, as garras afiadas transformadas em âncoras. Os falcões peregrinos sentavam-
se estoicamente nos rochedos, os pêlos de suas suíças raiadas pela chuva e as penas molhadas
eriçadas nas cabeças. Os gansos selvagens, batendo as asas no crepúsculo, rumo a seu repouso,
dificilmente conseguiam fazer um metro por minuto contra o vento em torrentes, seus gritos
desencontrados soando de frente para trás, de tal forma que eles tinham que já ter passado para que
se pudesse ouvi-los, embora só estivessem a poucos metros de altura. Os patos selvagens e os
marrecos, voando alto com o vendaval por trás, desapareciam antes de chegar.

Por baixo das portas do castelo, as rajadas penetrantes torturavam os tapetes de junco do chão.
Ululavam nos poços das escadas em caracol, chacoalhavam as janelas de madeira, gemiam
estridentes pelas seteiras, agitavam as tapeçarias geladas em ondulações igualmente geladas,
procuravam a medula dos ossos. As torres de pedra arrepiavam-se sob elas, tremendo
materialmente como as cordas baixas dos instrumentos musicais. Pedaços de cimento voavam para
longe e se despedaçavam com ruídos desconexos.

Bors e Bleoberis estavam acocorados ao lado do lume vivo, ao qual o vento, sem trégua, parecia
ter dado a propriedade de lançar luz sem calor. O próprio fogo parecia congelado, como se fosse
pintado. O espírito de ambos estava perturbado pelo flagelo do tempo.


— Mas por que eles partiram com tanta pressa? — perguntou Bors, em tom de queixa. — Nunca
antes ouvi falar de um cerco sendo levantado assim. Eles se foram da noite para o dia. Partiram
como se tivessem sido levados pelo vento.
— Devem ter recibo más notícias. Alguma coisa de mau deve ter acontecido na Inglaterra.
— Pode ser.
— Se eles decidiram perdoar Lancelot, teriam enviado uma mensagem.
— Realmente parece estranho, fazerem-se à vela tão imediatamente, sem dizer nada.
— Você acha que pode ter acontecido uma revolta na Cornualha, ou em Gales, ou na Irlanda?
— Sempre há os Antigos — concordou Bleoberis, entorpecido.
— Não acho que tenha sido uma revolta. Acho que o Rei adoeceu e teve que ser levado
rapidamente para casa. Ou Gawaine pode ter caído doente. Será que aquele golpe que Lancelot lhe
deu, da segunda vez, penetrou sua caixa craniana?
— Pode ser.
Bors atiçou o fogo.
— Partirem assim, sem dizer uma palavra!
— Por que Lancelot não faz alguma coisa?
— O que poderia fazer?
— Não sei.
— O Rei o desterrou.
— Sim.
— Portanto, não há nada a fazer.
— Mesmo assim — disse Bleoberis —, eu queria que ele fizesse alguma coisa.
Uma porta abriu-se com estrondo no fundo das escadas do torreão. As tapeçarias giraram, os
juncos ergueram-se, o fogo jorrou fumaça, e a voz de Lancelot, com o vento, gritou:

— Bors! Bleoberis! Demaris!
— Aqui!
— Onde!
— Aqui em cima!
Quando a porta distante fechou, o silêncio voltou à sala. Os
tapetes de junco se acomodaram de novo, e os pés de Lancelot soaram claramente nos degraus de
pedra, onde antes fora difícil ouvir seus gritos. Entrou apressado, segurando uma carta.

— Bors. Bleoberis. Estava procurando vocês. Os dois cavaleiros levantaram-se.

— Chegou uma carta da Inglaterra. Os mensageiros foram atirados à costa cerca de cinco
quilômetros acima. Teremos que partir imediatamente.
— Para a Inglaterra?
— Sim, sim. Para a Inglaterra, claro. Encarreguei Leonel de organizar o transporte e quero que
você, Bors, cuide da forragem. Teremos que esperar até que o vendaval passe.
— Por que estamos indo? — perguntou Bors.
— Quais são as notícias?
— Notícias? — ele disse, vagamente. — Não há tempo para isso. Eu lhes contarei no barco. Tome,
leiam a carta.
Ele deu a carta para Bors e saiu antes que eles pudessem fazer mais perguntas.

— Ora, ora!!
— Leia o que ela diz.
— Nem sei de quem é.
— Talvez a própria carta o diga.
Lancelot reapareceu antes que a pesquisa deles tivesse passado da data.
— Bleoberis — ele disse —, eu me esqueci. Quero que você cuide dos cavalos. Vamos, me dê a
carta. Se vocês dois começarem a soletrá-la vão demorar a noite toda.
— O que ela diz?
— A maior parte das notícias veio com o mensageiro. Parece que Mordred se revoltou contra
Arthur, proclamou-se a si mesmo Líder da Inglaterra e pediu a mão de Guenevere.
— Mas ela já é casada — protestou Bleoberis.

Então, a cabeça de Llewellyn de Griffith, com sua coroa de heras, apodrecia nas estacas da
Torre, e você encontraria mendigos na beira das estradas, homens mutilados que na mão
esquerda carregavam sua mão direita, e cães da floresta que trotavam ao lado deles, também
mutilados pela amputação de um dedo da pata — para que não caçassem nas florestasdo senhor.

— Foi por isso que levantaram o cerco. Então, ao que parece,
Mordred reuniu um exército em Kent para se opor ao desembarque do Rei. Ele tinha anunciado que
Arthur estava morto. Está mantendo a Rainha cercada na Torre de Londres, e usando canhões.

— Canhões!
— Ele foi ao encontro de Arthur em Dover e travou uma batalha para evitar o desembarque. Foi um
combate difícil, metade no mar, metade na terra, mas o Rei venceu. Conseguiu desembarcar.
— Quem escreveu a carta? Lancelot de repente sentou-se.
— Foi Gawaine, o pobre Gawaine. Ele está morto.
— Morto!
— Como pôde escrever... — começou Bleoberis.
— É uma carta terrível. Gawaine era um homem bom. Todos vocês que me obrigaram a combatê-
lo, vocês não viram o coração que ele tinha dentro do peito.
— Leia a carta — sugeriu Bors, impaciente.

— Parece que um corte que lhe dei na cabeça foi grave. Ele não devia ter feito a viagem. Mas
estava se sentindo só e miserável, e tinha sido traído. Seu irmão mais jovem se tornou um traidor.
Insistiu em voltar para ajudar o Rei e, na batalha do desembarque, tentou combater. Infelizmente,
recebeu uma pancada de clava na ferida antiga e morreu poucas horas depois.
— Não vejo porque você deveria se perturbar com isso.
— Escutem o que está escrito.
Lancelot levou a carta até a janela e caiu em silêncio, examinando o escrito. Havia algo de tocante
nela, a caligrafia sendo tão diferente do seu autor. Dificilmente Gawaine seria o tipo de pessoa que
poderia ser considerado um escritor. Na verdade, pareceria mais natural se ele fosse analfabeto,
como a maioria dos outros. No entanto, aqui, em vez do trespassado gótico então em uso, estava a
encantadora e minúscula gaélica antiga, tão perfeita, redonda e pequena como quando ele a
aprendera com algum antigo santo de Dunlothian. Ele escrevera tão pouco desde então que a arte
retivera sua beleza. Era a caligrafia de uma velha donzela, ou de um rapaz fora de moda, sentado
com os pés presos nas pernas de um banco e a língua de fora, escrevendo com todo cuidado.
Conservara essa exatidão inocente, essas hastes antiquadas e elegantes, no sofrimento e na paixão
até a velhice. Era como se um fulgurante rapaz tivesse saído da armadura negra: um pequeno garoto
com o nariz pingando, os pés nus de dedos sujos, uma raiz de sargaço no maço fino de cenouras que
eram seus dedos.

Dedicado a Sir Lancelot, a flor de todos os nobres cavaleiros de que ouvi
falar ou conheci em meus dias: eu, Sir Gawaine, filho do Rei Lot das
Órcades, filho da irmã do nobre Rei Arthur, a quem aqui envio minhas
saudações.

E é do meu desejo que todo o mundo testemunhe que eu, Sir Gawaine,
Cavaleiro da Távola Redonda, procurei minha morte em vossas mãos — e
não através de vosso querer, mas sendo esse o meu próprio desejo. E
portanto eu vos rogo, Sir Lancelot, que retorne uma vez mais a este reino
e visite minha tumba, e faça mais ou menos alguma oração por minh'alma.

E neste mesmo dia que vos escrevo essa missiva, fui ferido de morte na
mesma ferida que recebi de vossas mãos, Sir Lancelot, pois por um homem
mais nobre não poderia eu ser morto.
Da mesma maneira, Sir Lancelot, por todo o amor que sempre existiu
entre nós....

Lancelot parou de ler e jogou a carta na mesa.

— Chega! — ele disse. — Não posso continuar. Ele me pede para ir com toda rapidez, para ajudar
o Rei contra seu irmão: seu último parente. Gawaine amava a família, Bors, e no final ficou sem

ninguém. No entanto, me escreveu para me perdoar. E até diz que a culpa foi dele. Deus sabe como
ele foi um bom e verdadeiro irmão.

— O que devemos fazer em relação ao Rei?
— Devemos chegar à Inglaterra o mais rápido que pudermos. Mordred retirou-se para Canterbury,
onde está travando uma nova batalha. Pode ter terminado, a essa altura. Essa mensagem chegou
atrasada por causa da tempestade. Tudo depende da nossa rapidez.
Bleoberis disse:

— Vou cuidar dos cavalos. Quando partimos?
— Amanhã. Esta noite. Agora. Quando o vento amainar. Apresse-se.
— Certo.
— E você, Bors, a forragem.
— Sim.
Lancelot seguiu Bleoberis até as escadas, mas virou-se na porta.
— A Rainha sitiada — disse. — Temos que libertá-la.
— Sim.
Bors, deixado a sós com o vento, pegou a carta com curiosidade. Inclinou-a à luz fraca, admirando
o z parecendo um g, o b encaracolado, e o t curvo como a lâmina de um arado. Cada pequena linha
era o sulco que ela abria, macio como a terra recém-lavrada. Mas o sulco vagava para o final. Ele
a virou, observando a assinatura marrom. Soletrou a conclusão — fazendo movimentos de fala com
a boca, enquanto os tapetes batiam, a fumaça soprava e o vento gemia.
E neste dia minha carta foi escrita, apenas duas horas e meia antes de minha morte,
escrita com minha própria mão e assim subscrita com parte do sangue do meu coração.

Gawaine das Órcades

Ele soletrou o nome duas vezes e deu um tapinha nos dentes. Gawaine.

— Suponho que no Norte eles pronunciariam Cuchullain — ele disse em voz alta, em dúvida. —
Nunca se sabe com essas línguas antigas.

Depois, pousou a carta, aproximou-se da lúgubre janela e começou a cantarolar uma canção
chamada Bruma, bruma na montanha, cujos versos se perderam para nós nas vagas do tempo.
Talvez fossem como os modernos, que dizem que

"O sangue ainda é forte, o coração é da Alta Escócia


E nós, nos sonhos, contemplamos as Hébridas."



XIV


O mesmo vento de tristeza soprava ao redor do pavilhão do Rei em Salisbury. Dentro, havia uma
calma silenciosa, depois do tumulto ao ar livre. Era um interior suntuoso, em parte por conta das
tapeçarias reais — lá estava Urias, ainda no momento da bissecção —, do diva mergulhado em
peles e das velas cintilantes. Era mais uma tenda de grandes dimensões do que uma tenda de
campanha. A cota de malha do Rei reluzia fracamente num cabide ao fundo. Um falcão mal-
educado, que tinha o vício de gritar, permanecia encapuzado e imóvel em um poleiro, como o de
um papagaio, meditando sobre algum pesadelo ancestral. Um galgo, branco como marfim, estendido
sobre as quatro patas, o rabo curvado como uma foice ossuda, observava o velho homem com os
olhos mansos da compaixão. Um magnífico tabuleiro de xadrez esmaltado, com peças de jaspe e
cristal, encontrava-se na posição de xeque-mate, ao lado da cama. Havia papéis por todo canto.
Eles cobriam a escrivaninha do secretário, a mesa de leitura, os bancos; documentos enfadonhos de
governo, mesmo assim bravamente examinados; jurídicos, ainda a serem codificados; do
comissariado, do armamento e ordens do dia. Um grande registro encontrava-se aberto na anotação
de um criminoso infeliz, William atte Lane, que fora condenado à forca, suspendatur, por
pilhagem. A margem, com a letra elegante do secretário, estava o lacônico epitáfio "susp.",
adequado ao tom de tragédia. Sobre a mesa de leitura havia pilhas infindáveis de petições e
memoriais, todos trazendo a decisão real e assinatura. Naqueles com os quais o Rei concordava,
ele escrevera laboriosamente "Le roy le veult". As petições rejeitadas estavam marcadas com a
desculpa cortês sempre usada pela realeza: "Le roy s'advisera". A mesa de leitura e seu assento
eram feitos de uma única peça, e ali se encontrava, prostrado, o próprio Rei. Sua cabeça estava
pousada em meio aos papéis, espalhando-os. Parecia estar morto — e quase estava.

Arthur estava esgotado. Ficara desfeito com as duas batalhas que já travara: a de Dover, a outra em
Barham Down. Sua esposa era uma prisioneira. Seu amigo mais antigo estava banido. Seu filho
tentava matá-lo. Gawaine estava enterrado. Sua Távola fora destruída. Seu país estava em guerra.
No entanto, ele poderia, de alguma maneira, ter enfrentado tudo isso se o credo de seu coração não
tivesse sido destroçado. Muito tempo atrás, quando seu espírito era o de um jovem esperto
chamado Wart, muito tempo atrás ele fora ensinado por um ancião benevolente, que torcia sua
barba branca. Fora ensinado por Merlin a acreditar que o homem era aperfeiçoável: que era, no
todo, mais decente do que animalesco; que valia a pena tentar ser bom; que não existia uma coisa
como o pecado original. Ele foi forjado como uma arma para ajudar o homem, na suposição de que
os homens eram bons. Foi forjado por aquele velho mestre iludido em uma espécie de Pasteur, ou


Curie, ou o determinado descobridor da insulina. A missão para a qual foi destinado era contra a
Força, a doença mental da humanidade. Sua Távola, sua idéia da Cavalaria, seu Santo Graal, sua
devoção à Justiça: esses foram passos progressivos no esforço para o qual ele foi criado. Era como
um cientista que, em toda a sua vida, buscara a raiz do câncer. Deveria — se tivesse chegado ao
fim — fazer os homens mais felizes. Mas toda a estrutura dependia da primeira premissa: que o
homem era decente.

Olhando para sua vida passada, tinha a impressão de ter estado todo o tempo lutando para construir
um dique contra uma inundação que, sempre que a checava, tinha irrompido em um novo lugar,
fazendo com que começasse todo o seu trabalho de novo. Era a inundação da Force Majeur.
Durante os primeiros tempos antes de seu casamento, ele tentara combater a força com a força —
em suas batalhas contra a confederação gaélica —, só para descobrir que dois errados não fazem
um certo. Mas conseguira esmagar com sucesso o sonho feudal de guerra. Em seguida, com sua
Távola Redonda, tentou utilizar a Tirania em formas menores, para que seu poder pudesse servir a
fins úteis. Enviou homens poderosos para socorrer os oprimidos e corrigir o que era mau — para
liquidar o poder individual dos barões, da mesma maneira que ele havia liquidado o poder dos
Reis. Eles assim fizeram, até que, com o decorrer do tempo, os fins foram conseguidos, mas a força
continuou em suas mãos, indisciplinada. Por isso ele teve que procurar um novo canal, e os enviou
a serviço de Deus na procura do Santo Graal. Isso também redundou em fracasso, pois quem
chegou ao fim da busca, atingiu a perfeição e se perdeu para o mundo, enquanto os que falharam,
logo regressaram, sem terem se tornado melhores. Por fim, ele procurou fazer um mapa da força,
como era, para subjugá-la por meio das leis. Tentou codificar os maus usos do poder pelos
indivíduos, a fim de poder impor-lhe limites pela justiça impessoal do Estado. Estava preparado
para sacrificar sua esposa e seu melhor amigo à impessoalidade da Justiça. E então, mesmo quando
a força do indivíduo parecia subjugada, o Princípio da Força levantou-se às suas costas em uma
outra forma: a forma da força coletiva, da ferocidade de grupo, de numerosos exércitos insensíveis
às leis individuais. Ele subjugara a força das unidades só para vê-la sendo assumida pelas
pluralidades. Conquistou o assassinato para enfrentar a guerra. Para isso não havia Leis.

As guerras dos primeiros tempos, aquelas contra Lot e o Ditador de Roma, foram batalhas para
derrubar a convenção feudal de encarar a guerra como uma caçada à raposa ou um jogo de resgate.
Para derrubá-la, ele introduziu a idéia da guerra total. Em sua velhice, essa mesma guerra total
voltara para empoleirar-se como ódio total, como a mais moderna das hostilidades.

Agora, com a fronte pousada nos papéis e os olhos fechados, o Rei estava tentando não
compreender. Pois se existia uma coisa como o pecado original, se o homem fosse, no todo, um
vilão, se a bíblia tivesse razão ao dizer que o coração dos homens era acima de tudo falso e
desesperadamente mau, então o propósito de toda a sua vida tinha sido em vão. A Cavalaria e a
Justiça tornavam-se ilusões infantis, se o tronco no qual tentara enxertá-las fosse o Surrador, fosse

o Homoferox em vez do Homo sapiens.
Atrás desse pensamento havia um pior, que ele não ousava abordar. Talvez o homem não fosse bom
nem ruim, fosse apenas uma máquina em um universo insensato — sua coragem não mais que uma
reação ao perigo, como o salto automático sob a picada de um alfinete. Talvez não houvesse


virtudes, a menos que saltar sob a picada de um alfinete fosse uma virtude, e a humanidade apenas
um asno mecânico conduzido pela férrea cenoura do amor pelo moinho insensato da reprodução.
Talvez a Força fosse uma lei da Natureza, necessária para manter aptos os sobreviventes. Talvez
ele próprio...

Já não podia continuar, porém. Sentia como se houvesse algo atrofiado entre seus olhos, ali onde a
base do nariz penetra no crânio. Não conseguia dormir. Tinha pesadelos. Amanhã seria a batalha
final. Enquanto isso, havia todos esses papéis para ler e assinar. Mas ele não conseguia nem lê-los
nem assiná-los. Não conseguia levantar sua cabeça do meio deles.

Por que os homens combatiam?

O velho rei sempre fora um pensador escrupuloso, nunca um inspirado. Agora seu cérebro exausto
deslizava entre seus círculos habituais: os passos fatigados, como os do burro no moinho, ao redor
do qual ele labutara muitas milhares de vezes em vão.

Eram chefes perversos que conduziam populações inocentes para a carnificina, ou eram populações
perversas que escolhiam os líderes de acordo com seus próprios corações? Considerando a coisa
de frente, parecia improvável que um Líder pudesse forçar um milhão de ingleses contra a sua
vontade. Se, por exemplo, Mordred quisesse fazer os ingleses usar saias, ou ficar de cabeça para
baixo, eles certamente não teriam tomado seu partido — por mais inteligentes, persuasivos,
ilusórios ou mesmo terríveis que fossem seus estímulos. Um líder certamente seria forçado a
oferecer alguma coisa que atraísse aqueles a quem comandava? Poderia dar o empurrão que faria
desmoronar a construção, mas com certeza a construção já estaria vacilando por si mesma antes de
cair? Se isso fosse verdade, então as guerras não eram calamidades para as quais gentis inocentes
eram conduzidos por homens maus. Eram movimentos nacionais, mais profundos, mais sutis em sua
origem. E, na verdade, não lhe parecia que nem ele nem Mordred tivessem conduzido o país ao
sofrimento. Se era tão fácil conduzir um país em várias direções, como se ele fosse um porco em
uma corda, por que falhara em conduzi-lo segundo as regras da Cavalaria, da Justiça e da Paz?
Tinha tentado.

Então, novamente — este era o segundo círculo, parecia o Inferno —, se nem ele nem Mordred
realmente desencadearam a desgraça, o que a causara? Em geral, como começa uma guerra? Pois
toda a guerra parecia perfeitamente enraizada em seus antecedentes. Mordred remontava a
Morgause, Morgause a Uther Pendragon, Uther a seus ancestrais. Parecia como se, desde sempre,
Caim tivesse matado Abel, apoderando-se de seu país, depois do que os homens de Abel
procuraram conquistar seu patrimônio outra vez. Os homens continuaram, através dos tempos,
vingando o erro com o erro, a morte com a morte. Ninguém ficou melhor por isso, pois ambos os
lados sempre sofrem, e estão todos enredados. A guerra atual poderia ser atribuída a Mordred ou a
si mesmo. Mas também se devia a milhões de Surradores, a Lancelot, Guenevere, Gawaine, todo
mundo. Aqueles que viveram pela espada eram forçados a morrer por ela. Era como se tudo
levasse à dor, enquanto o homem se recusasse a esquecer o passado. Os erros de Uther e de Caim
eram erros que só poderiam ser remediados pela bênção do esquecimento.

Irmãs, mães, avós: tudo se enraizava no passado! Qualquer tipo de ação praticada em uma geração
pode ter incalculáveis conseqüências na outra, de tal maneira que um mero espirro era uma


pedrinha jogada em um lago onde seus círculos podiam alcançar as mais longínquas margens.
Parecia que a única esperança era não agir em nenhuma circunstância, não desembainhar espadas
perante nada, manter-se quieto, como uma pedrinha não atirada. Mas isso seria odioso.

O que era Certo, o que era Errado? O que diferenciava o Fazer do Não Fazer? Se pudesse voltar no
tempo, pensou o Rei, eu me enterraria em um monastério, por receio de um Fazer que levasse ao
infortúnio.

A bênção do perdão: esse era o primeiro ponto essencial. Se tudo que alguém fizesse, ou que seu
pai tivesse feito, era uma seqüência interminável de Fazeres condenados a abrir caminho com
sangue, então o passado deveria ser obliterado para que se pudesse fazer um novo começo. O
homem deveria estar pronto para dizer: Sim, desde Caim houve injustiças, mas só podemos
remediar a desgraça se aceitarmos o status quo. Terras foram roubadas, homens assassinados,
nações humilhadas. Vamos começar tudo de novo sem lembranças, em vez de viver ao mesmo
tempo para a frente e para trás. Não podemos construir o futuro vingando o passado. Vamos nos
sentar como irmãos e aceitar a Paz de Deus.

Desgraçadamente, os homens dizem isso a cada guerra sucessiva. Sempre dizem que a do momento
deve ser a última, e a partir de então será o paraíso. Sempre estão prestes a reconstruir um mundo
como nunca jamais se viu. Quando o momento chega, no entanto, eles são demasiados estúpidos.
São como crianças gritando que construiriam uma nova casa, mas quando chega o momento de
construir, não têm a capacidade prática. Não sabem como escolher os materiais adequados.

Os pensamentos do velho Rei prosseguiam com esforço. Não o levavam a lugar nenhum: voltavam-
se sobre si mesmos e percorriam o mesmo trajeto duas vezes: mas ele estava tão acostumado com
eles que não conseguia pará-los. Entrou em outro círculo.

Talvez a grande causa da guerra fosse a posse, como tinha dito John Bali, o comunista. "Os
assuntos noon andom bem na Imgraterra", ele afirmara, "e non aandaram até que todaas as cooisas
se-jom da comunidade, e que non existom aldeãas nem fidallgos". Talvez sejam travadas porque as
pessoas dizem meu reino, minha esposa, meu amante, minhas propriedades. Isto era o que ele,
Lancelot e todos eles sempre conservaram no fundo dos seus pensamentos. Talvez, enquanto as
pessoas tentassem possuir coisas separadamente umas das outras, mesmo a honra e as almas, para
sempre haveria guerras. O lobo faminto sempre atacaria a rena gorda, o pobre roubaria o
banqueiro, os servos fariam revoluções contra as classes altas, e a nação sem dinheiro combateria
a rica. Talvez as guerras ocorram apenas entre os que têm e os que não têm. Em oposição a isso,
era-se obrigado a colocar o fato de que ninguém conseguia definir o estado de "ter". Um cavaleiro
com uma armadura de prata imediatamente alegaria ser uma pessoa que não tem, se encontrasse um
cavaleiro com uma armadura de ouro.

Mas ele pensou, assuma por um momento que o "ter", não importa como for definido, possa ser o
nó do problema.

Eu tenho, e Mordred não tem. Em contrapartida, ele argumenta consigo mesmo: não é justo colocar
assim, como se Mordred e eu fôssemos os causadores da tempestade, pois na verdade, nós nadasomos exceto figuras de proa de forças complexas que parecem estar sob algum tipo de impulso. É


como se houvesse um impulso na estrutura da sociedade. Mordred, agora, está sendo impulsionados
de maneira quase impotente, por uma quantidade de pessoas quase impossível de contar: pessoas
que acreditam em John Bali, que espera ganhar poder sobre seus companheiros declarando que
todos os homens são iguais, ou pessoas que vêem em qualquer sublevação uma oportunidade de
aumentar seu próprio poder. Parece vir por baixo. Os homens de Bali e de Mordred são os
cachorros de baixo querendo se levantar, ou cavaleiros que não eram líderes na Távola Redonda e,
portanto, a odeiam, ou o pobre que deseja ser rico, ou o que não tem poder procurando ganhar
poder. E meus homens, para quem não sou mais que um estandarte ou um talismã, são os cavaleiros
líderes — os ricos defendendo suas propriedades, os que têm poder e não querem deixá-loescapar. É um encontro de força dos que Têm e dos que Não Têm, uma batalha insana de corpos de
homens, não de chefes. Mas deixemos isso de lado. Admitamos a vaga idéia de que a guerra se
deve ao "ter" em geral. Nesse caso, o correto seria se recusar a ter fosse o que fosse. Esse, como
Rochester já tinha assinalado, era o conselho de Deus. O homem rico já fora ameaçado com o olho
da agulha, e houve também os mercadores. Era por isso que a Igreja não podia interferir muito nos
tristes negócios do mundo, como Rochester dizia, porque as nações, as classes e os indivíduos
sempre estavam gritando "Meu, meu", onde a Igreja tinha instruções para dizer "Nosso".

Se isso fosse verdade, então a questão não seria apenas dividir as propriedades, como tal. Seria a
questão de dividir tudo — mesmo pensamentos, sentimentos, vidas. Deus havia dito a seu povo que
teria de deixar de viver como indivíduos. Que teriam de entrar na corrente da vida, como uma gota
mergulhando em um rio. Deus havia dito que só os homens que tivessem renunciado a seus eus
ciumentos, às suas individualidades fúteis de felicidades e tristezas, é que poderiam morrer em paz
e entrar no círculo. Aquele que queria salvar sua vida seria pedido que a perdesse.

No entanto, na velha cabeça branca, havia algo que não podia aceitar a perspectiva divina.
Obviamente, você poderia curar um câncer no útero começando por não ter útero. Remédios
radicais e drásticos poderiam cortar qualquer coisa — e a vida com o corte. Conselhos ideais, que
ninguém estava preparado para seguir, não eram realmente conselhos. Aconselhar o Céu na Terra
era inútil.

Outro círculo conhecido se desenrolou à sua frente. Talvez a guerra se devesse ao medo: o medo de
confiar. A menos que houvesse verdade, e a menos que as pessoas dissessem a verdade, sempre
haveria perigo em tudo que estivesse fora do indivíduo. Você diz a verdade a si mesmo, mas não
tem garantias em relação a seu vizinho. Essa incerteza pode acabar fazendo do vizinho uma ameaça.
Essa, de qualquer forma, teria sido a explicação de Lancelot para a guerra. Ele costumava dizer
que a posse mais vital do homem era a sua Palavra. Pobre Lance, ele teve que quebrar sua própria
palavra: de qualquer maneira, raros homens tiveram uma palavra tão boa.

Talvez as guerras acontecessem porque as nações não confiavam na Palavra. Assustavam-se e por
isso combatiam. As nações eram como as pessoas: tinham sentimentos de inferioridade, ou de
superioridade, ou de vingança, ou de medo. Era correto personalizar as nações.

Suspeita e medo; posse e cobiça; ressentimento pelo erro ancestral; tudo isso parecia fazer parte.
No entanto, não eram parte da solução. Ele não conseguia ver a solução real. Estava demasiado
velho, cansado e miserável para pensar de maneira construtiva. Era apenas um homem que tivera


boas intenções, que fora estimulado a seguir aquele rumo de pensamentos por um nigromante
excêntrico com um fraco pela humanidade. A Justiça fora sua última tentativa — não fazer nada que
não fosse justo. Mas isso terminou em fracasso. Fazer qualquer coisa tornara-se excessivamente
difícil. Ele estava acabado. Arthur provou que não estava completamente acabado levantando sua
cabeça. Havia algo invencível em seu coração, uma tintura de grandeza na simplicidade. Sentou-se
ereto e alcançou a sineta de ferro.

— Pajem — ele disse, quando o rapazinho entrou apressado, esfregando os olhos.
— Meu senhor.
O Rei olhou-o. Mesmo em seu ponto extremo, ele era capaz de reparar nos outros, especialmente se
fossem jovens ou decentes. Quando confortara o destroçado Gawaine em sua tenda, era ele quem
mais precisava de conforto.

— Meu pobre rapaz — disse ele. —Você devia estar dormindo. Observou o jovem com uma
atenção tensa, afilada. Havia muito tempo que não via a inocência e a segurança da juventude.
— Olhe — disse —, pode levar este bilhete ao bispo? Se ele estiver dormindo, não o acorde.
— Sim, meu senhor.
— Obrigado.
Quando a criatura movimentou-se para sair, ele a chamou de volta.
— Ah, pajem?
— Meu senhor?
— Qual é o seu nome?
— Tom, meu senhor — ele respondeu, com polidez.
— Onde você vive?
— Perto de Warwick, meu senhor.
— Perto de Warwick.
O velho parecia estar tentando imaginar o lugar, como se fosse o Paraíso Terrestre, ou um país
descrito por Mandeville.

— Em um lugar chamado Newbold Reve ll. É bonito.
— Quantos anos você tem?
— Farei treze em novembro, meu senhor.
— E eu o fiz ficar acordado a noite toda.
— Não, meu senhor. Eu dormi bastante em uma das selas.
— Tom de Newbold Revell — ele disse, admirado. — Parece que envolvemos muita gente. Diga-
me, Tom, o que pretende fazer amanhã?

— Lutarei, senhor. Tenho um arco bom.
— E você matará pessoas com esse arco?
— Sim, meu senhor. Muitas, espero.
— E se elas matarem você?
— Então vou estar morto, meu senhor.
— Entendo.
— Devo levar a carta agora?
— Não. Espere um minuto. Quero falar com alguém, só que minha cabeça está atrapalhada.
— Devo buscar uma taça de vinho?
— Não, Tom. Sente-se e tente escutar. Tire esse jogo de xadrez do banco. Você consegue entender
as coisas que são ditas?
— Sim, meu senhor. Sou bom para entender.
— Você entenderia se eu lhe pedisse para não lutar amanhã?
— Eu queria lutar — ele disse, com coragem.
— Todo mundo quer lutar, Tom, mas ninguém sabe por quê. Suponha que eu lhe peça para não
lutar, como um favor especial ao Rei? Você faria isso?
— Eu faria o que me fosse ordenado.
— Então, escute. Sente-se por um minuto que vou lhe contar uma história. Sou um homem muito
velho, Tom, e você é jovem. Quando for um velho, será capaz de contar o que vou lhe contar esta
noite, e quero que o faça. Compreende esse desejo?
— Sim, senhor. Acho que sim.
— Conte as coisas assim. Uma vez havia um rei, chamado Rei Arthur. Esse sou eu. Quando chegou
ao trono da Inglaterra, ele viu que todos os reis e barões estavam lutando uns contra os outros,
como loucos, e como eles podiam se dar ao luxo de combater com armaduras caras, não havia
praticamente nada que os impedisse de fazer o que lhes apetecesse. Eles fizeram muitas coisas
ruins, porque viviam pela força. Então esse Rei teve uma idéia, e a idéia era que a força deveria
ser usada, se tivesse de o ser, em nome da justiça, não em seu próprio nome. Compreenda bem isto,
meu jovem. Ele achava que se pudesse fazer seus barões lutarem pela verdade, para ajudar os
fracos e para endireitar o erro, então sua luta talvez não fosse tão ruim como era antes. Então ele
reuniu todas as pessoas verdadeiras e decentes que conhecia, e as vestiu com armaduras, e as
sagrou cavaleiros, e lhes ensinou a sua idéia, e as sentou ao redor de uma Távola Redonda. Nos
tempos felizes, eles eram cento e cinqüenta e o Rei Arthur amava sua Távola de todo coração.
Sentia mais orgulho dela do que de sua própria e querida esposa e, por muitos anos, seus
cavaleiros andaram de um lado a outro matando ogros, salvando donzelas, resgatando prisioneiros
pobres e tentando endireitar o mundo. Essa era a idéia do Rei.

— Acho que era uma idéia boa, meu senhor.
— Era, e não era. Deus sabe.
— O que aconteceu com o Rei no final? — perguntou o rapaz, quando a história parecia ter
terminado.
— Por alguma razão, as idéias deram errado. A Távola se dividiu em facções, uma guerra sem
trégua começou, e todos morreram.
O rapaz interrompeu, confiante.

— Não — disse —, não todos. O Rei venceu. Nós venceremos. Arthur sorriu vagamente e balançou
a cabeça. Não admitiria nada a não ser a verdade.
— Todo mundo morreu — ele repetiu —, exceto um certo pajem. — Eu sei do que estou falando.
Os outros já haviam fugido para a corte do Rei — forçados a isso pela ambição, pois era a



maior corte do mundo, ou então para escapar da mãe. Mordred foi deixado para ser dominado
por ela, com seu ressentimento ancestral contra o Rei e seu despeito pessoal.

— Meu senhor?
— Esse pajem chamava-se Tom de Newbold Revell, perto de Warwick, e o velho Rei despachou-o
antes da batalha, sob pena da mais amarga desgraça. Entenda, o Rei queria que alguém
sobrevivesse para se lembrar de sua famosa idéia. Ele queria com todas as suas forças que Tom
voltasse para Newbold Revell, onde poderia crescer e se tornar um homem, e viver sua vida na paz
dos campos de Warwickshire — e queria que ele contasse a todos que o escutassem essa idéia
antiga, que ambos uma vez acharam que era boa. Você acha que pode fazer isso, Thomas, para
agradar o Rei? O rapaz disse, com os olhos puros da verdade absoluta:
— Eu faço qualquer coisa pelo Rei Arthur.
— Você é um bravo companheiro. Agora, escute, homem. Não se deixe confundir pelas pessoas das
lendas. Fui eu quem lhe contou qual era a minha idéia. Sou eu quem está lhe ordenando que sele
imediatamente seu cavalo, parta para Warwickshire e não combata com seu arco amanhã. Você
compreende tudo isso?
— Sim, Rei Arthur.
— Prometa-me que terá cuidado com sua pessoa daqui em diante. Tente lembrar que você é um tipo
de navio que transportará a idéia quando as coisas correrem mal, e que toda a esperança depende
de que você viva.
— Prometo.
— Parece egoísta de minha parte usá-lo para isso.
— É uma honra para seu pobre pajem, meu bom senhor.
— Thomas, minha idéia sobre aqueles cavaleiros foi uma espécie de chama, como esta aqui. Eu a
carreguei durante muitos anos com uma mão para protegê-la contra o vento. Muitas vezes ela quase
se apagou. Estou lhe passando essa chama agora — promete não deixá-la se apagar?
— Ela continuará a arder.
— Bravo Tom. O portador da luz. Quantos anos me disse que tinha?
— Quase treze.
— Sessenta anos a mais, talvez. Metade de um século.
— Eu a passarei às outras pessoas, Rei. Aos ingleses.
— Dirá aos outros, em Warwickshire: Vejam todos que maravilhosa chama ele carregava?
— Sim, Senhor, isto eu farei.
— Então está feito: agora, Tom, é preciso que partas imediata e rapidamente. Levarás o melhor
filho de égua que encontrares e seguirás até Warwickshire, jovem, sem se desviar para nada?

— Seguirei rápido, companheiro, para que a chama arda.
— Bravo Tom, então, Deus vos abençoe. Não vos esqueça do nosso Bispo de Rochester antes de
partires.
O jovem ajoelhou-se para beijar a mão do seu senhor — cujo manto, segundo Malory, parecia
absurdamente novo.

— Meu senhor da Inglaterra — ele disse.
Arthur o levantou gentilmente, para beijá-lo no ombro.
— Sir Thomas de Warwick — disse, e o rapaz partiu.
A tenda amarelo-castanha e magnífica estava vazia. O vento gemia e as velas pingavam. Esperando
o Bispo, o velho Rei sentara-se à sua mesa de leitura. No momento, sua cabeça caíra para a frente,
sobre os papéis. Os olhos do galgo, captando a luz das velas ao olhar para ele, brilhavam como
espectros, duas taças ambarinas de luz selvagem. Os canhões de Mordred, que ele manteria em
atividade durante a escuridão até a batalha da manhã, começaram a cair com ruído surdo e golpear
lá fora. O Rei, exaurido pelo seu último esforço, entregou-se à tristeza. Mesmo quando a mão de
seu visitante levantou a aba da tenda, lágrimas silenciosas escorriam por seu nariz e caíam no
pergaminho com um tique-taque regular, como um relógio antigo. Virou sua cabeça para o lado, não
querendo ser visto, incapaz de fazer melhor. A aba caiu, enquanto a estranha figura de capa e
chapéu entrava suavemente.
— Merlin?
Mas não havia ninguém ali: sonhara com ele em um breve cochilo de velhice.

Merlin?

Recomeçou a pensar, mas agora com a mesma clareza de sempre. Recordava-se do velho
nigromante que o educara — que o educara com animais. Havia, ele recordava, algo como meio
milhão de diferentes espécies de animais, das quais o homem era apenas uma. Claro que o homem
era um animal — ele não era um vegetal nem um mineral, era? E Merlin o ensinou acerca dos
animais de maneira que a espécie única pudesse aprender observando os problemas das outras
milhares de espécies. Lembrava-se das formigas beligerantes, que reivindicavam fronteiras, e dos
gansos pacíficos, que não faziam isso. Lembrava-se das lições do texugo. Lembrava-se de Lyo-lyok
e da ilha que viram em sua migração, onde todos aqueles mergulhões, tordas-mergulhadoras, alcas
e gaivotas viviam juntos em paz, conservando seus próprios tipos de civilização sem guerras —
porque não reivindicavam fronteiras. Via o problema diante dele claro como um mapa. A coisa
fantástica sobre a guerra era que ela era travada por causa de nada — literalmente nada. As
fronteiras eram linhas imaginárias. Não havia nenhuma linha divisória visível entre a Escócia e a
Inglaterra, embora Flodden e Bannockburn tivessem lutado por causa disso. A causa era a geografia

— geografia política. Nada mais. As nações não precisavam ter o mesmo tipo de civilização, nem
o mesmo tipo de líder, não mais que os mergulhões e as alcas. Podiam conservar suas próprias
civilizações, como os esquimós e os hotentotes, se concedessem umas às outras liberdade de
comércio, de passagem e de acesso ao mundo. Países teriam que se tornar condados — mas

condados que conservariam sua própria cultura e leis locais. As linhas imaginárias na superfície da
Terra só precisavam não ser imaginadas. As aves voadoras, pela própria natureza, as ignoravam.
Como as fronteiras tinham parecido estúpidas para Lyo-lyok, e assim pareceriam aos Homens se
eles pudessem aprender a voar.

O velho Rei sentiu-se revigorado, lúcido e quase pronto para começar tudo de novo.

Chegaria o dia — havia de chegar o dia — em que ele voltaria a Gramarye com uma nova Távola
Redonda que não teria cantos — como o mundo não tinha —, uma mesa sem fronteiras entre os
povos que ali se sentariam para festejar. A esperança de fazer uma mesa assim dependeria da
cultura. Se os povos pudessem ser convencidos a ler e a escrever, não apenas a comer e a fazer
amor, ainda havia uma chance de que pudessem chegar à razão.

Era demasiado tarde, agora, para outro esforço. Nesse momento seu destino era morrer ou, como
diziam alguns, ser levado para Avilion, onde poderia esperar por dias melhores. A partir daquele
momento, Lancelot e Guenevere estavam destinados a pegar a tonsura e o véu, enquanto Mordred
deveria morrer. A sorte deste ou daquele homem era menos que uma gota, embora cintilante, no
grande movimento azul do mar iluminado pelo sol.

Os canhões de seu adversário estavam estrondando na manhã esfarrapada quando a Majestade da
Inglaterra se levantou para enfrentar o futuro com o coração tranqüilo.


Personagens deste volume


A revelação do terrível segredo que poderá destruir Arthur


Lancelot — Leia na seção "Os protagonistas". Guenevere -Idem.

Mordred — cavaleiro da Távola Redonda, é filho bastardo do Rei Arthur e sua meia-irmã, a
terrível Morgause. Foi abandonado pelo pai, com outros bebês, em um barco a deriva para ser
destruído. Agora, cego pelo ódio, planeja vingar-se destruindo o que é mais caro ao Rei: sua
esposa Guenevere e seu fiel amigo Lancelot.

Agravaine — também cavaleiro da Távola Redonda, é meio-irmão de Mordred. Beberrão, nutre
profunda animosidade por Lancelot, por isso decide ajudar o irmão a destruir o Rei Arthur.

Gawaine, Gaheris e Gareth — são todos cavaleiros da Távola Redonda e nutrem profundo
respeito e admiração pelo Rei Arthur, bem como por Lancelot e pela Rainha Guenevere. Gawaine é
líder do clã de que fazem parte, as Órcades. Como irmãos de Agravaine e meio-irmãos de
Mordred, tentam de todas as formas dissuadir os dois do terrível plano de vingança.


O Eterno e Futuro Rei 05
O LIVRO DE MERLIN



Título original: The Book of Merlyn
1977 by T. H. White


.
INCIPIT LIBER QUINTOS


Ele pensou um pouco e disse:
Descobri que o Jardim Zoológico é de muita valia para meus
pacientes. Vou receitar para o Sr. Pontifax uma série de visitas aos
grandes mamíferos. Não o deixem, pensar que é para fins
medicinais…


Introdução


O Livro de Merlin


O Rei Arthur da Inglaterra está, agora, em sua tenda de campanha, à véspera da batalha. No campo,
amanhã, ele enfrentará Mordred, o filho bastardo, e seu exército de jovens Surradores tipo nazistas.

Seu reinado vinha sendo dolorosamente longo, e ele estava curvado pela idade, tristeza e fracasso.
Depois de uma juventude feliz no castelo de Sir Ector, na Floresta Sauvage, onde o mago Merlin o
apresentara às ideologias políticas encontradas no reino animal, transformando-o temporariamente
em vários bichos, Arthur foi colocado no trono pelo destino, levado por seu sentido de justiça e
harmonia a criar o "mundo civilizado" e a famosa Távola Redonda, a estimular a Busca do Santo
Graal no esforço de evitar que homens matassem homens.

Um destino mais negro, porém, impôs que, sem saber, ele gerasse um filho ilegítimo em sua própria
meia-irmã e jogasse sua esposa Guenevere e Lancelot, seu melhor cavaleiro, nos braços um do
outro, provocando assim rivalidade, engano e inveja entre os cavaleiros.

Isso veio ocasionar a ruína do velho Rei. Suas conquistas a favor do Poder da Justiça e da paz na
terra foram esquecidas. Como esquecida também foi sua própria angústia de ter tentado o melhor
de si e fracassado. A Busca não conduziu a lugar nenhum, a Távola Redonda foi dispersada. Agora
Mordred e seus Surradores estavam sitiando Guenevere na Torre de Londres e Lancelot estava
exilado na França, ambos vítimas da obsessão de Mordred de conquistar o trono de Arthur.

Portanto, Arthur agora está só, cumprindo seus deveres reais ao examinar, distraído, os papéis do
dia, sentindo suas perdas e sua dor. Um movimento na porta de sua tenda o faz levantar os olhos


I


Não era o Bispo de Rochester.

O rei virou a cabeça, tirando os olhos do visitante, indiferente quanto à sua identidade. As lágrimas
que corriam soltas por suas faces, lenta e penosamente, o fariam sentir vergonha se fosse visto: no
entanto, estava por demais derrotado para esconde-las. Desviou-se teimosamente da luz, incapaz de
fazer mais do que isso. Tinha chegado ao estágio em que já não valia a pena esconder o infortúnio
de um velho.

Merlin sentou-se a seu lado e lhe tomou a mão gasta, o que fez as lágrimas correrem mais rápidas.
O mago deu palmadinhas na mão do Rei, segurando-a, calmo, com o polegar em suas veias azuis,
esperando a vida reviver.

— Merlin? — perguntou o Rei.
Não parecia surpreso.
— Você é um sonho? — perguntou. — A noite passada sonhei que Gawaine vinha me ver, em
companhia de lindas damas. Ele disse que a elas fora permitido vir porque ele as salvara quando
ainda era vivo, e elas vinham avisar que amanhã todos estaríamos mortos. Então, tive outro sonho,
que estava sentado em um trono atado no topo de uma roda, e a roda girou, e fui jogado em um poço
de serpentes.
— A roda fez seu giro completo: eu estou aqui.
— Você é um sonho ruim? — ele perguntou. — Se for, não me atormente.
Merlin ainda segurava a mão. Afagou-a ao longo das veias, tentando fazê-las desaparecer dentro da
carne. Acalmou a pele escamosa e lhe injetou vida com misteriosa concentração, encorajando-a a
se recuperar. Tentou fazer o corpo ficar flexível sob as pontas de seus dedos, ajudando o sangue a
correr, colocando viço e maciez nas juntas intumescidas, mas sem falar.

— Você é um sonho bom — disse o Rei. — Espero que continue sonhando.
— Absolutamente, não sou um sonho. Eu sou o homem de quem você se lembrou.
— Oh, Merlin, tem sido tanta desgraça desde que você foi embora! Tudo que você ajudou a fazer
deu errado. Todo o seu ensinamento foi um engano. Nada valeu a pena. Você e eu seremos
esquecidos, como pessoas que nunca existiram.

— Esquecidos? — perguntou o mago. Ele sorriu à luz da vela, olhando em volta da tenda como se
para se certificar das peles, das cotas de malha faiscantes e das tapeçarias e velinos.
— Houve um rei — ele disse — sobre quem Nennius escreveu, e Geoffrey de Monmouth. Dizem
que o Arquidiácono de Oxford também, e mesmo aquele tolo delicioso, Gerald, o Galés. Brut,
Layamon e todo o resto: que bando de mentiras todos eles inventaram para contar! Alguns disseram
que ele era um Britânico pintado de azul, outros que usava malha de corrente para se adequar às
idéias dos romanceiros normandos. Alguns desajeitados alemães o colocaram competindo com
seus aborrecidos Siegfrieds. Outros fizeram dele medalha, como seu amigo Thomas de Hutton
Coniers, e outros ainda, sobretudo um elisabetano romântico chamado Hughes, reconheceram seu
extraordinário problema de amor. Depois teve um poeta cego que tentou justificar os desígnios de
Deus para o homem, e contrapôs Arthur a Adão, perguntando-se qual foi o mais importante dos
dois. Ao mesmo tempo vieram mestres da música como Purcell, e mais tarde alguns titãs como os
românticos, sonhando com nosso Rei interminavelmente. Vieram homens que o vestiram com
armaduras e lauréis, e os que fizeram todos os seus amigos se erguerem sobre ruínas, emaranhados
nas sarças, ou então desfalecidos, com a névoa suave beijando-lhes os lábios. Também houve o
senhor de Victoria. Até as pessoas mais inesperadas tiveram a ver com ele, pessoas como Aubrey
Beardsley, que ilustrou sua história. Depois de um tempo, teve o pobre velho White, que achou que
representávamos as idéias da cavalaria. Ele disse que nossa importância assentava-se em nossa
decência, em nossa resistência à mente sangrenta do homem. Que anacrônico ele foi, meu caro!
Imagine começar com Guilherme, o Conquistador, e terminar com a Guerra das Rosas... E ainda
houve as pessoas que transformaram a Morte d'Arthur em ondas místicas como as de rádio, e
outros, em um hemisfério não descoberto, que chegaram a alegar que Arthur e Merlin eram seus
próprios pais naturais em retratos que se mexiam. A Questão Britânica! Certamente seremos
esquecidos, Arthur, se mil e quinhentos anos, e ainda outros mil, forem a medida do esquecimento.
— Quem é esse Wight?
— Um sujeito — respondeu, distraído, o mago. — Agora escute, por favor, enquanto recito um
poema de Kipling? — E o velho cavalheiro passou a entoar com paixão o famoso parágrafo de
Pook's Hill "Vi Sir Huon e uma tropa de sua gente zarpando do Castelo de Tintagel, rumo a HyBrazil{
26}, na ponta de uma ventania do sudoeste, com a espuma passando por cima do castelo de
proa, e os Cavalos da Colina tremendo de pavor. Mar adentro iam eles numa calmaria, guinchando
como gaivotas, e de volta eram lançados umas boas cinco milhas terra adentro antes de poderem se
virar para o vento favorável... Era Mágica — Mágica tão negra quanto a que Merlin podia fazer, e
o mar todo era de fogo verde e espuma branca com sereias cantando. E os Cavalos da Colina
abriam caminho de uma onda para outra sob os brilhos dos relâmpagos! Assim é que era nos velhos
tempos!".
— Há descrição sua — acrescentou, quando terminou o parágrafo. — Há prosa. Não estranha que
Dan tenha gritado "Esplêndido!" no final. E tudo foi escrito sobre nós e sobre nossos amigos.
— Mas, Mestre, eu não entendo.
O mago levantou-se, olhando para seu antigo aluno todo perplexo. Enroscou a barba em vários
caminhos de rato, pôs as pontas na boca, torceu os bigodes e estalou as juntas dos dedos. Estava


assustado com o que tinha feito ao Rei, sentindo-se como se estivesse tentando reviver, com
respiração boca-a-boca, um homem afogado já quase perdido. Mas não estava envergonhado.
Quando você é um cientista deve pressionar sem remorso, seguindo a única coisa de alguma
importância, a Verdade.

Mais tarde ele chamou, com calma, como se chamasse alguém que dormia:

— Wart?
Não teve resposta.
— Rei?
A resposta amarga foi: "Le roy s'advisera{27}".
Pior do que ele temia. Sentou-se, pegou a mão flácida e começou a animá-lo.
— Uma tentativa a mais — disse. — Ainda não acabamos.
— Para que tentar?
— É uma coisa que as pessoas fazem.
— Então, são tolas.
O velho cavalheiro respondeu com franqueza:
— As pessoas são tolas, e também perversas. Isso é que torna interessante tentar melhorá-las.
Sua vítima abriu os olhos, mas fechou-os outra vez, abatido.
— O que você estava pensando antes que eu chegasse, Rei, era verdade. Quero dizer, sobre o
Homo ferox. Mas os falcões também são ferae naturae: é por isso que são interessantes.
Os olhos permaneceram fechados.


— O que você estava pensando sobre... sobre as pessoas como máquinas: isso não era verdade.
Ou, se é verdade, não tem importância. Pois se somos todos máquinas, nós mesmos, então não tem
ninguém com quem se importar.
— Entendo.
Curiosamente, ele de fato entendeu. Também seus olhos se abriram e permaneceram abertos.
— Você se lembra do anjo na Bíblia que estava pronto para poupar cidades inteiras desde que um
único homem justo fosse encontrado? Havia um? Isso se aplica ao Homo ferox, Arthur, mesmo
agora.
Os olhos começaram a observar atentamente a visão à sua frente.


— Você tem seguido meus conselhos muito literalmente, Rei. Não acreditar no pecado original não
significa que se deva acreditar na virtude original. Só significa que não se deve acreditar que as
pessoas são completamente perversas. Perversas, sim, e mesmo muito perversas, mas não
completamente. Senão, concordo, não haveria motivo para tentar.
Com um de seus sorrisos encantadores, Arthur disse:



— Este é um sonho bom. Espero que seja longo.
Seu mestre pegou os óculos, limpou-os, colocou-os no nariz e examinou cuidadosamente o velho.
Houve um sinal de satisfação por trás das lentes.

— Se você não tivesse vivido isso, não saberia — disse. — E preciso viver o próprio
conhecimento. Como você se sente?
— Bastante bem. E você?
— Muito bem.
Eles apertaram-se as mãos, como se tivessem acabado de se conhecer.
— Você vai ficar?
— Na verdade, eu mal vou estar aqui — o nigromante respondeu, agora soprando furiosamente
pelo nariz para esconder seu júbilo, ou talvez para esconder seu arrependimento. — Vim lhe trazer
um convite.
Ele dobrou seu lenço e recolocou-o dentro de seu chapéu.

— Algum camundongo? — perguntou o Rei, com um débil brilho nos olhos. A pele de seu rosto
crispou-se, ou se esticou, por uma fração de segundo, de maneira que se podia ver por baixo dela,
talvez no osso, a fisionomia sardenta, atrevida, de um menino que uma vez ficou encantado com
Archimedes. Com condescendência, Merlin tirou seu chapéu pontudo.
— Um — respondeu. — Acho que era um camundongo, mas estava um pouco atrofiado. E aqui,
estou vendo, está o sapo que peguei no verão. Durante a seca, passaram por cima dele, pobre
criatura. Uma silhueta perfeita.
Ele examinou-o, complacente, antes de voltar a colocá-lo no lugar, depois cruzou as pernas e
examinou sua companhia da mesma maneira, procurando agradá-lo.

— O convite — disse. — Estávamos esperando que você nos fizesse uma visita. Sua batalha pode
cuidar de si mesma até amanhã, não pode?
— Nada importa em um sonho.
Isso pareceu chatear o mago, pois ele exclamou, um pouco aborrecido:
— Gostaria que você parasse com os sonhos! Deve levar as outras pessoas em consideração.
— Tudo bem.
— O convite, então. É para visitar minha caverna, onde a jovem Nimue me colocou. Você se
lembra dela? Tem alguns amigos lá, esperando para revê-lo.
— Seria maravilhoso.
— Sua batalha já está preparada, acredito, e de qualquer forma você não dormiria muito. Essa
visita talvez alegre seu coração.
— Nada está preparado — disse o Rei. — Mas os sonhos se preparam por si mesmos.

Com isso, o velho cavalheiro pulou de sua cadeira, apertando a testa como se tivesse levado um
tiro ali, e levantou sua varinha de pau-santo para o céu.

— Poderes Misericordiosos! Sonhos de novo!
Com um gesto majestoso, ele tirou seu chapéu cônico, olhou de maneira penetrante para a figura de
barba à sua frente, que parecia tão velho quanto ele, e deu uma batida em sua testa com sua própria
varinha, como um ponto de exclamação. Sentou-se, então, meio atordoado por ter calculado mal a
ênfase.

O velho Rei observou-o com a mente acesa. Agora que estava sonhando de maneira tão vivida com

o amigo havia tanto tempo perdido, começou a perceber por que Merlin sempre tinha bancado o
palhaço de propósito. Era uma maneira de ajudar a pessoa a aprender de um modo alegre.
Começou a sentir a maior das afeições, também misturada com admiração reverente, pela coragem
antiga de seu tutor: que continuava acreditando e tentando com indômita excentricidade, apesar dos
séculos de experiência. Começou a se alegrar ao pensar que a benevolência e o valor poderiam
persistir. Com a alegria em seu coração, ele sorriu, fechou os olhos e caiu no sono para valer.

II


Quando abriu os olhos, ainda estava escuro. Merlin estava lá, coçando pensativo as orelhas do
galgo e resmungando. Antes, ele já salvara o pupilo dos seus tormentos sendo bravo, quando era um
jovem rapaz chamado Wart, mas sabia que, agora, o pobre velho à sua frente já sofrerá demasiado
para o truque funcionar de novo. A segunda melhor coisa a fazer era distrair a atenção do Rei, ele
deve ter pensado, porque, assim que os olhos dele se abriram, se pôs a trabalhar de uma maneira
que todos os magos entendem. Eles estão acostumados a impingir algo a alguém sob a ilusão da
tagarelice.

— Bem — ele disse. — Sonhos. Precisamos acabar com isso de uma vez por todas. Fora a
enlouquecedora indignidade de ser chamado de um sonho; pessoalmente, porque confunde você e
confunde também as outras pessoas. E quanto aos leitores cultos? E é degradante para nós mesmos.
Quando eu era um mestre-escola de terceira classe, no século vinte — ou foi no dezenove —, todos
os rapazes que encontrei escreviam seus trabalhos para mim terminando da seguinte maneira:
Então, ele acordou. Podia-se dizer que o Sonho era a única convenção literária dessas degradadas
salas de aula. E isso que vamos ser? Nós somos a Questão Britânica, lembre-se. E quanto à crítica
ao onirismo, eu pergunto? O que os psicólogos vão fazer com isso? A matéria de que os sonhos são
feitos são asneiras e absurdos, em minha opinião.
— Sim — disse o Rei, dócil.
— Dou a impressão de ser um sonho?
— Sim.
Merlin pareceu ofegar de irritação, depois pôs a barba toda dentro da boca de uma só vez. Então,
assoou o nariz e se afastou para um canto, onde ficou de pé, com o rosto virado para a lona, e
começou um solilóquio indignado.

— Quanta perseguição e escárnio — declarou. — Como um nigromante pode provar que não é uma
visão quando acusado de tal baixeza? Um fantasma pode provar que está sendo beliscado: mas um
sonho, por nossa Real Senhora, não. Pois, veja bem, você pode sonhar com um beliscão. No
entanto, sim! Existe o remédio assinalado, no qual o sonhador belisca a própria perna. Arthur —
ele disse, girando-se como um pião —, tenha a delicadeza de se beliscar.
— Sim.

— Agora, isso prova que você está acordado?
— Tenho minhas dúvidas.
A visão examinou-o com tristeza.
— Eu receava que não funcionasse — concordou; e retornou a seu canto, onde começou a recitar
algumas passagens complicadas de Burton, Jung, Hipócrates e Sir Thomas Browne.
Depois de cinco minutos, bateu no punho com a palma da outra mão e voltou para a luz da vela,
inspirado pela cama de Cleópatra.

— Escute — Merlin anunciou. — Alguma vez você sonhou com um cheiro?
— Sonhar com um cheiro?
— Não precisa repetir.
— Eu mal posso...
— Vamos, vamos. Você já sonhou com uma paisagem, não? E com um sentimento: todo mundo já
sonhou com um sentimento. Você pode até ter sonhado com um gosto. Lembro-me de que uma vez,
quando esqueci de comer por quinze dias, sonhei com um pudim de chocolate que nitidamente
degustei, mas desapareceu. A questão é: alguma vez você sonhou com um cheiro?
— Acho que não, nunca sonhei.
— Tenha certeza. Não fique me olhando como um idiota, meu prezado, mas responda à questão que
está sendo tratada. Você alguma vez já sonhou com o seu nariz?
— Nunca. Não consigo me lembrar de ter sonhado com um cheiro.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Então cheire isto! — gritou o nigromante, tirando da cabeça o seu chapéu e colocando-o debaixo
do nariz de Arthur, com sua carga de camundongos, sapos e alguns camarões para a pesca de
salmão que ele havia esquecido.
— Arghh!
— Então, eu sou um sonho?
— Não cheira como um.
— Então, bem...
— Merlin — disse o Rei. — Não faz nenhuma diferença você ser ou não um sonho, contanto que
esteja aqui. Sente-se e tenha um pouco de paciência, se puder. Diga-me a razão de sua visita. Fale.
Diga que veio nos salvar desta guerra.
O velho cavalheiro tinha resolvido a questão da respiração boca-a-boca da melhor maneira que
conseguira; agora, sentou-se confortavelmente e embarcou na questão colocada.

— Não — disse. — Ninguém pode ser salvo de nada, a menos que eles mesmos se salvem. É inútil

fazer coisas para as pessoas — na verdade, com freqüência é muito perigoso fazer qualquer tipo de
coisa — e a única coisa que vale a pena fazer pela raça humana é aumentar o seu estoque de idéias.
Assim, se você tornar disponível um estoque maior, as pessoas terão a liberdade de usá-las para
ajudarem a si mesmas. Dessa maneira, os meios de aprimoramento são oferecidos, para serem
aceitos ou rejeitados, livremente, e há uma tênue esperança de progresso no decorrer do milênio.
Esse é o ofício do filósofo, abrir novas idéias. Não é seu ofício impô-las às pessoas.

— Você não tinha me dito isso antes.
— Como não?
— Durante toda a minha vida você me encorajou a fazer coisas... os Cavaleiros da Távola Redonda
que você me fez inventar, o que foi isso senão um esforço para salvar as pessoas e conseguir que as
coisas fossem feitas?
— Eram apenas idéias — disse o filósofo, com firmeza —, idéias rudimentares. As ações pelas
quais você foi passando com dificuldades eram idéias, canhestras, claro, mas tinham que ser
estabelecidas como um fundamento antes que pudéssemos começar a pensar seriamente. Você tem
ensinado os homens a pensar com a ação. Agora é tempo de pensar com nossas cabeças.
— Então minha Távola não foi um fracasso... Mestre?
— Certamente não. Foi um experimento. Experimentos levam a novos experimentos, e é por isso
que vim aqui para levá-lo até nossa toca.
— Estou pronto — ele disse, admirado de ver que estava se sentindo feliz.
— O Comitê descobriu que houve algumas lacunas em sua educação, duas delas, e foi determinado
que deveriam ser corrigidas antes de concluir a etapa ativa da Idéia.
— Que comitê é esse? Soa como se eles estivessem fazendo um relatório.
— E fizemos isso. Você os encontrará a todos na caverna. Mas agora, perdoe-me que o mencione,
há uma questão que precisamos resolver antes de partir.
Aqui, Merlin examinou seus dedos dos pés com um olhar duvidoso, hesitando em continuar.

— Os cérebros dos homens — ele explicou por fim — parecem se petrificar à medida que
envelhecem. A superfície torna-se gasta, como couro usado, e já não guarda as impressões. Você
chegou a perceber isso?
— Sinto uma rigidez na cabeça.
— Mas as crianças têm cérebros flexíveis e moldáveis — continuou o mago, aliviado, como se
estivesse falando sobre sanduíches de caviar. — Podem guardar impressões antes que você termine
de dizer Jack Robinson. Aprender uma língua quando você é jovem, por exemplo, pode literalmente
ser considerado uma brincadeira de criança, mas depois da meia-idade a pessoa acha que é um
diabo.
— Ouvi as pessoas comentarem isso.
— O que o comitê sugeriu foi que, se você tem que aprender essas coisas sobre as quais estamos

falando, deve — aham —, você deve ser um menino. Eles me forneceram um medicamento
patenteado que faz isso. Entenda: você tem que se tornar Wart outra vez.

— Não se eu tiver que levar minha vida de novo — retrucou o velho Rei, com tranqüilidade.
Eles olharam um para o outro como imagem e objeto em um espelho, os cantos externos dos olhos
puxados para baixo com as pálpebras encapuzadas da idade.

— Seria só por uma noite.
— O Elixir da Vida?
— Exatamente. Pense nas pessoas que tentaram fazer isso.
— Se um dia eu encontrasse uma coisa assim, eu a atiraria longe.
— Espero que você não esteja sendo tolo em relação às crianças — disse Merlin, olhando-o de
maneira vaga. — Temos o grande privilégio de voltar a nascer outra vez, como crianças.
Ultimamente, os adultos têm desenvolvido um hábito desagradável, eu reparei, de se auto-
consolarem pela degradação, alegando que as crianças são infantis. Confio que estamos livres
disso, certo?
— Todo mundo sabe que as crianças são mais inteligentes que seus pais.
— Você e eu sabemos disso, mas as pessoas que vão ler este livro não.
— Nossos leitores dessa época têm exatamente três idéias em seus magníficos miolos — continuou
o nigromante com voz soturna. — A primeira é que a espécie humana é superior às outras. A
segunda, que o século vinte é superior aos outros séculos. E, terceiro, que os adultos humanos do
século vinte são superiores aos jovens. Essa ilusão toda pode ser rotulada de Progresso, e qualquer
pessoa que questione isso é chamada de pueril, reacionária ou escapista. A Marcha do Homem,
Deus os proteja.
Ele refletiu sobre esses fatos por um momento, depois acrescentou:

— E um quarto pedaço da armadilha científica na qual cairão regozija-se com o nome de
antropomorfismo. Mesmo as crianças são consideradas tão superiores aos animais que não se deve
mencionar as duas criaturas no mesmo tom de voz. Se você começa a considerar homens como
animais, eles giram a coisa do outro lado e dizem que você está considerando os animais como
homens, um pecado que eles julgam ser pior do que bigamia. Imagine um cientista sendo apenas um
animal, eles dizem! Uma heresia, ou puro palavrório!
— Quem são esses leitores?
— Os leitores do livro.
— Que livro?
— O livro em que estamos.
— Nós estamos em um livro?
— É melhor começarmos os trabalhos — disse Merlin, rapidamente.

Ele pegou sua varinha, enrolou as mangas e encarou seu paciente com o olhar duro.

— Você concorda? — perguntou. Mas o velho Rei o interrompeu.
— Não — disse, com uma espécie de defesa firme. — Ganhei meu corpo e mente com muitos anos
de trabalho. Seria indigno mudá-los. Não sou demasiado orgulhoso para me tornar criança, Merlin,
mas demasiado velho. Se fosse o meu corpo que devesse se tornar jovem, seria inadequado manter
uma mente velha dentro dele. Por outro lado, se você tivesse que mudar os dois, o trabalho de ter
vivido todos esses anos seria vão. Não há nada a fazer, Mestre. Devemos manter a etapa da vida na
qual o Senhor quis nos chamar.
O mago abaixou a varinha.

— Mas seu cérebro — ele se queixou. — É como uma esponja fossilizada. E você não gostaria de
ser jovem, sair dando saltos e sentir seus joelhos outra vez? As pessoas jovens são felizes, não
são? Nós pensamos nisso como um prazer.
— Seria com certeza um prazer, e obrigado por pensar nisso. Mas a vida não foi inventada para a
felicidade, é o que acredito. Ela foi feita para outra coisa.
Merlin mascou a ponta de sua varinha enquanto pensava.

— Você está certo — disse no final. — Eu estava contra a proposta desde o início. Mas algo deve
ser feito para amaciar seu intelecto, apesar de tudo, ou você nunca compreenderá a nova idéia.
Suponho que você não faça objeção a uma massagem cerebral, se é que consigo fazê-la. Tenho que
pegar minhas baterias galvânicas, meus extravermelhos e subvioletas; meu giz francês e minhas
pitadas disso e daquilo; um toque de adrenalina e uma pitada de alho. Você conhece esse tipo de
coisa?
— Não, mas se acha que está certo...
Ele estendeu a mão para o éter, com um gesto bem lembrado, e o equipamento começou a se
materializar obedientemente: tudo misturado como era usual.


III


O tratamento foi desagradável. Era como ter o cabelo escovado vigorosamente do jeito errado, ou
como ter o tornozelo torcido flexionado por aquele aflitivo tipo de massagista que exorta a pessoa
a relaxar. O Rei apertou as mãos nos braços da cadeira, fechou os olhos, trincou os dentes e suou.
Quando os abriu pela segunda vez aquela noite, estava em um mundo diferente.

— Por Deus! — ele exclamou, pulando da cadeira. Ao sair da cadeira, não colocou seu peso sobre
os pulsos, como um velho, mas sobre as palmas das mãos e as falanges. — Veja os olhos
encovados do cachorro! As velas estão refletidas no fundo, não na frente, como se estivessem no
fundo de um copo. Como nunca reparei nisso antes? E olhe isto: tem um buraco no banho de
Bathseba, que precisa de cerzido. Que entrada é esta no livro de registros? Susp.{28}? Quem
cometeu a deslealdade de nos levar a enforcar pessoas? Ninguém merece ser enforcado. Merlin,
por que não há reflexo nos seus olhos quando coloco as velas entre nós? Por que nunca pensei
sobre isso? A luz que vem de uma raposa é vermelha, verde de um gato, amarela de um cavalo, cor
de açafrão de um cachorro... E olhe aquele bico do falcão: tem um dente como um serrote. Açores e
gaviões não têm dentes. Deve ser uma peculiaridade de falco. Que coisa extraordinária é uma
tenda! A metade dela tenta puxá-la para cima, e a outra metade tenta puxá-la para o chão! Ex nihilo
res fit{29} E veja essas peças de jogo de xadrez! Um cheque-mate, é verdade! Ora, vamos ter que
tentar outra manobra!
Imagine um ferrolho enferrujado na porta do jardim, que foi colocado de maneira errada, ou a porta
se vergou em suas dobradiças depois que foi colocada, e durante anos esse ferrolho nunca fechou
de maneira eficiente: a não ser que se batesse nele ou levantasse a porta um pouco, para fazê-lo se
encaixar com esforço. Imagine então que o velho ferrolho é desparafusado, lixado com esmeril,
banhado em parafina, polido com areia fina, generosamente azeitado, e recolocado por um
trabalhador habilidoso com tanta maestria que ele fecha e desfecha com a pressão de um dedo —
com a pressão de uma pena —, quase como se você pudesse soprá-lo para abrir ou fechar. Você
pode imaginar os sentimentos desse ferrolho? São os mesmos sentimentos de glória das pessoas
convalescentes, depois de uma febre. Ele esperaria ansiosamente que o fechassem, desejando
ardentemente sentir o arroubo de seu movimento delicado e bem-sucedido.

Pois a felicidade é tão-só um subproduto, como a luz é um subproduto da corrente elétrica
atravessando os fios. Se a corrente não puder fluir de maneira eficiente, a luz não chega. É por isso
que ninguém encontra a felicidade, se a procura por si mesma. Mas o homem deve procurar ser


como o ferrolho que funciona; como a corrida desimpedida da eletricidade; como o convalescente
cujos olhos, há muito frustrados em suas órbitas pela dor de cabeça e pela febre, de tal modo era
intensa a dor de movê-los, agora cintilam de um lado para o outro, com a desenvoltura de peixes
limpos em água clara. Os olhos estão funcionando, a corrente está funcionando, o ferrolho está
funcionando. Assim a luz resplandece. Isto é felicidade: funcionar bem.

— Espere — disse Merlin. — Afinal, não temos que pegar nenhum trem.
— Nenhum trem?
— Perdão. É uma citação que um amigo meu costumava empregar em relação ao progresso humano.
De qualquer maneira, como você parece estar se sentindo melhor, vamos partir para a caverna
agora?
— Imediatamente.
Sem mais delongas, levantaram a aba da porta da tenda e partiram, deixando o galgo adormecido
vigiando o solitário falcão encapuzado. Escutando a aba da porta ser levantada, o pássaro cego deu
um grito rouco por atenção.

Foi uma caminhada revigorante para os dois. O vento impetuoso e a velocidade dos seus passos
puxavam suas barbas para a esquerda ou para a direita sobre os ombros; assim, eles não o
encaravam exatamente de frente, o que dava uma sensação de apertão na raiz dos cabelos, como se
estivessem enroscados para fazer permanente. Percorreram velozmente a campina de Salisbury, o
monumento provocador de pensamentos de Stonehenge, onde Merlin, ao passar, gritou uma
saudação aos velhos deuses que Arthur não era capaz de ver: a Crom, Bell e outros. Giraram em
Wiltshire, transpuseram Dorset e se apressaram passando por Devon, tão rápidos como uma lâmina
cortando o queijo. As campinas, colinas, florestas, charnecas e outeiros ficavam para trás. Os rios
cintilantes ficavam para trás como os raios da roda que gira. Na Cornualha, pararam ao lado de um
outeiro antigo, parecido com um gigantesco monte de toupeira, com um buraco escuro à sua frente.

— Vamos entrar.
— Já estive nesse lugar antes — disse o Rei, paralisado como em uma espécie de catalepsia.
— Sim.
— Quando?
— Diga você mesmo.
Ele tateou às apalpadelas, procurou em sua mente, sentindo que a revelação estava em seu coração.
Mas...

— Não — ele disse —, não consigo lembrar.
— Entre e veja.
Eles desceram pelo labirinto dos corredores, passando pelas curvas que levavam aos quartos de
dormir, ao sítio dos refugos, aos depósitos e ao lugar aonde você vai quando quer lavar as mãos.
Por fim, o Rei parou, com seus dedos no fecho de uma porta no final de um corredor, e anunciou:


— Eu sei onde estou. Merlin observou.
— E a toca do texugo.
— Sim.
— Merlin, seu canalha! Passei metade de minha vida lamentando por você porque achei que
estivesse fechado como um sapo num buraco, mas todo esse tempo você estava sentado na Sala do
Acordo, debatendo com o texugo!
— Abra a porta e veja.
Ele abriu. Era a sala bem lembrada. Ali estavam os quadros dos texugos falecidos, famosos por sua
erudição ou religiosidade; ali estavam as luzes de pirilampos e os leques de mogno e o tabuleiro
em declive para circular os decantadores. Ali estavam as togas pretas antiquadas e as cadeiras de
couro gravado. Mas, melhor do que tudo, ali estavam seus amigos de juventude — o absurdo
comitê.

Todos se levantaram timidamente para saudá-lo. Sentiam-se confusos em seus sentimentos humildes
porque, por um lado, estavam também esperando ansiosamente pela surpresa e, por outro, nunca
tinham se encontrado com verdadeiros reis antes — portanto receavam que ele pudesse estar
diferente. No entanto, estavam determinados a fazer as coisas com elegância. Tinham combinado
que a coisa apropriada seria levantaram-se e talvez se curvarem e sorrirem um pouco. Houve
consultas solenes entre eles sobre se deviam se dirigir ao Rei como "Sua Majestade" ou como
"Senhor", sobre se deveriam beijar-lhe a mão, sobre se ele estaria muito mudado e até, pobres
almas, se ele ainda se lembraria deles!

Estavam todos em um círculo em frente à lareira: o texugo pondo-se com esforço e timidamente em
pé enquanto uma avalanche perfeita de manuscritos caía de seu colo até o guarda-fogo da lareira; T.
natrix se desenrolando e deixando entrever sua língua negra, com a qual se mostrava disposto a
beijar a mão real, se necessário; Archimedes bamboleando-se para cima e para baixo de prazer e
expectativa, meio que abrindo suas asas e fazendo-as esvoaçar, como um pequeno pássaro, pedindo
para ser alimentado; Balin parecendo pela primeira vez vencido na vida, porque tinha medo de ter
sido esquecido; Cavall, tão agoniado pelo fulgor de seus sentimentos que teve de se retirar para um
canto, com náuseas; a cabra, que fizera a saudação do imperador em um lance de antevisão muito
antes; o ouriço, de pé, leal e ereto, no fundo da roda, onde fora obrigado a se sentar distante dos
outros por causa de suas pulgas, mas cheio de patriotismo e ansiedade para, se possível, ser
notado. Mesmo o enorme lúcio empalhado, que era uma novidade sobre o consolo da lareira
abaixo do Fundador, parecia observá-lo com olhar suplicante.

— Oh, meu povo! — exclamou o Rei.
Então todos se ruborizaram bastante, e arrastaram os pés, e disseram que ele por favor desculpasse
a humildade da casa, ou Seja

Bem-vinda Sua Majestade, ou Nós pensamos em colocar uma bandeira mas ela se perdeu, ou Seus
pés reais estão confortáveis?, ou Aí vem o escudeiro, ou Oh, é tão maravilhoso revê-lo depois de
tantos anos! O ouriço saudou, tenso: Governe a Britânia!


No momento seguinte, um Arthur rejuvenescido estava apertando as mãos de todos eles, beijando-
os e dando batidas em suas costas, até que as lágrimas encheram os olhos de cada um.

— Nós não sabíamos... — fungou o texugo.
— Nós receamos que tivesse nos esquecido...
— Devemos tratá-lo de Sua Majestade ou de Senhor?
Com sensibilidade, ele respondeu às perguntas por seu merecimento.
— É Sua Majestade para um imperador, mas para um rei comum é Senhor.
Assim, a partir desse momento pensaram nele como Wart, sem tratar mais do assunto.
Quando a excitação passou um pouco, Merlin fechou a porta e começou a controlar a situação.
— Muito bem — disse. — Temos muitas tarefas a cumprir e muito pouco tempo para isso. Aqui
está você, Rei: eis a sua cadeira à cabeceira do círculo, porque é nosso líder, é quem faz o trabalho
pesado e sofre as dores. E você, ouriço, é sua vez de ser Ganymede, portanto, por favor, busque
logo o vinho Madeira e rápido. Sirva um bom copo para todos, e então começaremos a reunião.
O ouriço serviu primeiro a Arthur, e o fez com reverência, com o joelho dobrado, segurando o
copo com o dedo. Depois, enquanto ele passava por todo o círculo, o antigo Wart teve tempo para
olhar em volta.

A Sala do Acordo mudara desde sua última visita, uma mudança que aludia fortemente à
personalidade de seu tutor. Pois ali, em todas as cadeiras sobressalentes e no chão e nas mesas,
abertas em passagens significativas, havia milhares de livros de todos os tipos, cada um deles
esquecido desde que fora deixado aberto para referência futura, e todos cobertos com uma fina
camada de poeira. Ali estava Thierry e Pinnow e Gibbone e Sigismondi e Duruy e Prescott e
Parkman e Juserand e Dalton e Tácito e Smith e Trevelyan e Heródoto e Dean Millman e
MacAllister e Geoffrey de Monmouth e Wells e Clausewitz e Giraldus Cambrensis — inclusive os
volumes perdidos sobre a Inglaterra e a Escócia — e Guerra e paz de Tolstói e a Comic History of
England e a Saxon Chronide e o Four Masters. Ali estavam o Vertebrate Zoology de Beer, o Essays
on the Evolution de Elliott-Smith, o Senses oflnsects de Eltringham, Vulgar Enrors de Browne,
Aldrovandus, Matthew Paris, um Bestiário por fisiologistas, Frazer em edição completa, e até Zeus
por A. B. Cook. Havia enciclopédias, diagramas do corpo humano e outros corpos, livros de
referência como Witherby, sobre todo tipo de pássaros e animais, dicionários, tábuas de
logaritmos, e toda a série do D.N.B. Na parede, uma compilação feita com a escrita à mão de
Merlin, que mostrava, em colunas paralelas, uma conformidade das histórias das raças humanas nos
últimos dez mil anos. Os Assírios, Sumários, Mongóis, Astecas etc, cada um em tinta diferente, e o
ano a.C. ou d.C. estava escrito em uma linha vertical à esquerda das colunas, de maneira que
parecia um gráfico. Depois, em outra parede, que era até mais interessante, havia um verdadeiro
gráfico que mostrava a ascensão e queda de várias raças de animais nos últimos milhares de
milhões de anos. Quando uma raça se tornava extinta, sua linha se encontrava com a assíntota
horizontal e desaparecia. Uma das últimas a fazer isso era a do alce irlandês. Um mapa, feito por
diversão, mostrava a posição dos ninhos das aves locais na primavera anterior. Em um canto da


sala, distante da lareira, havia uma mesa de trabalho com um microscópio sob cujas lentes estava
uma peça delicada para microdissecação, o sistema nervoso de uma formiga. Na mesma mesa,
viam-se caveiras de homens, macacos, peixes e gansos selvagens, também dissecados, com o
objetivo de mostrar a relação entre o neocórtex e o corpo estriado. Em outro canto havia um tipo de
laboratório, onde, em confusão indescritível, se encontravam retortas, tubos de testes, centrífugas,
culturas de germes, biqueiras e garrafas rotuladas Pituitária, Adrenalina, Cera de Móvel, Mistura
de Ventricatchellum, ou Gin De Kuyper's. Este último tinha uma inscrição feita a lápis no rótulo que
dizia: O nível desta garrafa está MARCADO. Por fim, havia depósitos contendo espécimes vivos
de louva-deus, gafanhotos e outros insetos, e os resíduos no chão continham ruínas das loucuras
passageiras do mágico. Continham malhos de croqué, agulhas de tricô, sobras de pastéis,
ferramentas para cortar linóleo, pipas, bumerangues, colas, caixas de charutos, instrumentos de
sopro feitos em casa, livros de receitas culinárias, um berrante, um telescópio, uma lata de graxa de
sapateiro e um baú com tampa com a marca Fortnum and Mason's no fundo.



Na sua juventude, Arthur foi apresentado pelo mago Merlin às ideologias políticas encontradas
no reino animal, transformando-se temporariamente em vários bichos.

O velho Rei soltou um suspiro de contentamento e se esqueceu do mundo real.

— Agora, texugo — disse Merlin, que estava eriçado de importância e autoridade —, dê-me a
minuta da última reunião.
— Não fizemos nenhuma. Faltou tinta.
— Não importa. Dê-me as notas sobre a Grande Insolência Vitoriana.
— Usamos para acender a lareira.
— Com a breca! Então passe as Profecias.
— Aqui estão — disse o texugo, com orgulho, e se abaixou para juntar a avalanche de papéis que
caíra sobre o guarda-fogo da lareira quando ele se levantou. — Já estavam prontas — ele explicou
— a propósito.
Elas estavam pegando fogo, no entanto, e, quando ele soprou para salvá-las das chamas e as
entregou ao mago, descobriu-se que todas as páginas tinham se queimado pela metade.

— Realmente, isto é um vexame! O que você fez com as Teses sobre o Homem e a Dissertação
Referente à Força?
— Estavam nas minhas mãos um momento atrás.
E o pobre texugo, que supostamente era o secretário do comitê, mas não muito bom, começou a
esquadrinhar miopemente ao redor, entre os bumerangues, com um ar muito envergonhado e
preocupado.

Archimedes disse:

— Talvez seja mais fácil continuar sem os papéis, Mestre, só falando.
Merlin lançou-lhe um olhar frio.
— Só temos que explicar — sugeriu T. natrix. Merlin também lhe lançou outro olhar frio.
— E o que vamos ter que fazer no final — disse Balin —, de qualquer forma.
Merlin desistiu dos olhares frios e ficou mal-humorado.

Cavall, que se aproximara sem ser visto, colocou-se sorrateiramente no colo do Rei com um olhar
suplicante, e não foi impedido. A cabra olhou fixo para o fogo, com seus olhos de gema. O texugo
sentou-se outra vez com expressão culpada, e o ouriço, sentado empertigado em seu canto afastado
dos outros, com as mãos cruzadas no colo, deu um incentivo inesperado.

— Conta pr'ele — disse.
Todos o olharam surpresos, mas ele não ia desistir. Sabia por que as pessoas se afastavam quando
ele chegava perto delas, mas um bravo tem direitos, afinal.


— Conta pr'ele — repetiu. O Rei disse:
— Eu apreciaria muito se vocês realmente me contassem. No momento, não entendo nada, exceto
que fui trazido aqui para preencher algumas lacunas dessa extraordinária educação. Vocês
poderiam me explicar do começo?
— O problema — disse Archimedes — é que é difícil decidir qual é o começo.
— Falem sobre o comitê, então. Por que vocês formaram um comitê e o que aconteceu?
— Pode-se dizer que somos o Comitê sobre a Força no Homem. Temos tentado entender o seu
enigma.
— É uma Comissão Real — explicou o texugo, orgulhoso. — Pensou-se que uma mistura de
animais seria capaz de aconselhar diferentes departamentos...
Aqui, Merlin não pôde mais se conter. Mesmo mal-humorado, era impossível se segurar quando se
tratava de falar.

— Permitam-me — ele disse. — Eu sei exatamente onde começar, e agora o farei. Todos devem
escutar.
— Meu querido Wart — continuou, depois que o ouriço disse "Escutem-escutem" e, como uma
reflexão posterior, "Ordem-ordem" — para começar, devo lhe pedir que dirija seus pensamentos
para o momento em que comecei suas lições como seu tutor. Recorda-se?
— Foi com animais.
— Exatamente. E lhe ocorreu por acaso que isso não foi por diversão?
— Bem, era divertido...
— Mas por que, é o que estamos lhe perguntando, com animais?
— Suponho que você deveria me dizer.
O mago cruzou os joelhos, dobrou os braços e franziu a testa com importância.
— No mundo, existem duzentas e cinqüenta mil espécies diferentes de animais — ele disse —, sem
contar os vegetais vivos, e desses não menos que dois mil e oitocentos e cinqüenta são mamíferos
como o homem. Todos eles têm uma ou outra forma de política — foi o único erro que meu velho
amigo Aristóteles cometeu quando definiu o homem como o Animal Político — e, no entanto o
próprio homem, essa pobre ficção entre duzentas e quarenta e nove mil e novecentas e noventa e
nove outras, fica dizendo bobagens sobre sua trágica trilha política, sem nunca levantar os olhos
para um quarto de milhões de exemplos que o rodeiam. O que faz tudo ainda mais extraordinário é
que o homem é um recém-chegado entre os outros, e quase todos já resolveram seus problemas de
uma maneira ou de outra, muitos milhares de anos antes de o homem ser criado.
Houve um murmúrio de admiração vindo do comitê, e a serpente acrescentou gentilmente:

— Foi por isso que ele tentou lhe dar uma idéia da natureza, Rei, porque se esperava que o senhor,
quando estivesse enfrentando o enigma, olharia ao seu redor.

— A política de todos os animais — disse o texugo — trata do controle da Força.
— Mas eu não vejo... — ele começou, só para ser interrompido.
— Certamente você não vê — disse Merlin. — Você ia dizer que os animais não têm política.
Aceite meu conselho e pense duas vezes.
— Eles têm?
— É claro que têm, e algumas são muito eficientes. Algumas são comunistas ou fascistas, como
muitas das formigas; outras são anarquistas, como a do ganso. Algumas são socialistas, como a das
abelhas, e, na verdade, entre as três mil famílias das próprias formigas, existem outras formas de
ideologia além do fascismo. Nem todas são feitoras-de-escravos ou guerreiras. Existem as
financistas, como a dos esquilos, ou a dos ursos que hibernam em sua gordura. Qualquer ninho ou
toca ou zona de alimentação é uma forma de propriedade individual, e como você acha que os
corvos, coelhos, peixinhos de água doce e todas as outras criaturas gregárias dão um jeito de viver
juntas se não encararem as questões da Democracia e do Poder?
Evidentemente, era um tópico já bem discutido, pois o texugo interrompeu antes que o Rei pudesse
retrucar.

— Você nunca nos deu nem nos dará — ele disse — um exemplo de capitalismo no mundo natural.
Merlin parecia infeliz.
— E já que você não pode nos dar um exemplo — acrescentou —, isso apenas demonstra que o
capitalismo é antinatural.
O texugo, talvez deva ser mencionado, estava inclinado a ser russo em seu ponto de vista. Ele e
outros animais tinham discutido tanto com o mago nos últimos séculos que todos tinham acabado
adotando termos sumamente mágicos para se manifestar, falando de bolcheviques e nazistas com
tanta desenvoltura como se eles fossem pouco mais dos que os Lollardos e os Surradores da
história contemporânea.

Merlin, que era um sólido conservador — o que o fazia na verdade um progressista quando se
considera que ele vivia de trás para a frente —, defendeu-se debilmente.

— O parasitismo é um comportamento antigo e respeitável da natureza, desde o cuco à pulga.
— Não estamos falando de parasitismo. Estamos falando de capitalismo, que já foi definido com
exatidão. Você pode me dar um único exemplo, além dos homens, de uma espécie cujos indivíduos
exploram o valor do trabalho de indivíduos da mesma espécie? Nem as pulgas exploram as pulgas.
Merlin disse:

— Existem alguns macacos que, quando em cativeiro, têm que ser atentamente observados pelos
seus guardadores. Caso contrário, os indivíduos dominantes privarão seus companheiros de
comida, até mesmo obrigando-os a regurgitá-la, e os companheiros morrerão de fome.
— Parece um exemplo duvidoso.
Merlin dobrou as mãos e pareceu mais infeliz que nunca. Finalmente ele espremeu sua coragem ao

máximo, deu um suspiro profundo e encarou a verdade.

— É um exemplo duvidoso — concordo. — Acho impossível mencionar um exemplo de
verdadeiro capitalismo na natureza.
Tão logo ele disse isso, suas mãos se desdobraram como um raio, e o punho de uma bateu como um
relâmpago na palma da outra.

— Achei! — ele gritou. — Eu sabia que estava certo sobre o capitalismo. Nós estamos procurando
do jeito errado.
— Em geral é o que acontece.
— A especialização principal de uma espécie é quase sempre antinatural para as outras espécies.
Só porque não tem exemplos de capital na natureza, isso não significa que o capital é antinatural
para o homem, no sentido de ser errado. Vocês poderiam também dizer que é errado para uma
girafa comer os topos das árvores, porque não existem outros antílopes com pescoços tão
compridos quanto o dela, ou que é errado para os primeiros anfíbios rastejarem para fora da água,
porque não havia outros exemplos de anfíbios na época. O capitalismo é uma especialidade do
homem, assim como o seu cérebro. Não existem outros exemplos na natureza de uma criatura cora o
cérebro como o do homem. Isso não significa que é antinatural para o homem ter um cérebro. Ao
contrário, significa que ele tem que seguir adiante com ele. E da mesma maneira com o capitalismo.
Ele é, como o cérebro, uma especialidade, uma jóia da coroa! Agora que penso nisso, o
capitalismo pode ser na verdade uma conseqüência da posse de um cérebro desenvolvido. Senão,
como o nosso único outro exemplo de capitalismo — aquele dos macacos que mencionei — ocorre
entre os antropóides cujos cérebros são aparentados com os dos humanos? Sim, sim, eu sabia que o
tempo todo estava certo em meu postulado. Eu sabia que havia uma razão sensata para os russos de
minha juventude mudarem suas idéias. O fato de ser único não significa que é errado: ao contrário,
significa que está certo. Certo para o homem, claro, não para os outros animais. Significa que...
— Você percebe — perguntou Archimedes — que sua audiência não entendeu uma única palavra
do que você está dizendo há vários minutos?
Merlin parou abruptamente e olhou para seu aluno, que estava seguindo a conversa com os olhos
mais do que qualquer outra coisa, olhando de um rosto para o outro.

— Desculpe.
O Rei falou distraído, quase como se estivesse falando consigo mesmo.
— Eu tenho sido estúpido? — ele perguntou devagar. — Estúpido por não ter reparado nos
animais?
— Estúpido! — gritou o mago, outra vez triunfante, pois ele estava intensamente deliciado com sua
descoberta sobre o capital. — Pelo menos tem uma migalha de verdade num par de lábios
humanos! Nunc dimittis{30}
E imediatamente pulou sobre seu cavalo de pau para galopar em todas as direções.

— O atrevimento da raça humana é algo para derrubar você no chão — ele exclamou. — Comece

com o impensável universo; afunile para o minúsculo Sol dentro dele; passe para o satélite do Sol
que temos o prazer de chamar de Terra; dê uma olhada nas miríades de algas, ou seja lá como for
que essas coisas são chamadas, do mar, e nos incontáveis micróbios, indo ao revés para a
infinidade negativa que nos habita. Dê uma passada de olhos naquele quarto de milhão de outras
espécies que mencionei, e na expansão incomensurável dos tempos através dos quais elas viveram.
Então olhe para o homem, um novo-rico cujos olhos, falando do ponto de vista da natureza, abrem
pouco mais do que os de um filhote. Aí está ele, uma... uma figura grotesca. — Ele estava ficando
tão excitado que não tinha tempo de pensar nos epítetos adequados. — Aí está ele, apelidando a si
mesmo de Homo sapiens, francamente, proclamando-se a si mesmo o senhor da criação, como
aquele jumento do Napoleão que se coroou a si mesmo! Aí está ele, condescendente com os outros
animais: condescendente até mesmo, que Deus proteja minha alma e meu corpo, com seus
ancestrais! E a Grande Insolência Vitoriana, a espantosa, inefável presunção do século dezenove.
Veja esses romances históricos de Scott, nos quais os humanos sendo eles mesmos, porque vivem
um par de séculos atrás, são colocados falando como se imitassem comida requentada! O homem, o
orgulhoso homem, aqui está no século vinte, complacentemente acreditando que a raça "progrediu"
no curso de miseráveis mil anos, e se ocupando em explodir seus irmãos em pedaços. Quando
aprenderão que leva um milhão de anos para um pássaro modificar uma única de suas penas
primárias? Aí está ele, o destruidor estúpido, fingindo que tudo ficou diferente porque ele fez um
motor de combustão interna. Aí está ele, desde Darwin, porque ouviu falar que existe uma coisa
chamada evolução. Desconsiderando completamente que a evolução acontece em ciclos de milhões
de anos, ele acha que evoluiu desde a Idade Média. Talvez o motor de combustão tenha evoluído,
mas não ele. Veja-o esnobando seus próprios progenitores, sem falar nos outros tipos de
mamíferos, naquele insuportável Ianque de Connecticut na Corte do Rei Arthur. A pura,
insuportável insolência disso! E fazendo Deus à sua própria imagem! Acredite, as assim chamadas
raças primitivas que adoravam os animais como deuses não eram tão malucas como as pessoas
escolheram fingir que são. Pelo menos eram humildes. Por que Deus não poderia ter vindo à terra
como uma minhoca? Existem muitíssimo mais minhocas do que homens, e elas fazem muitas coisas
muito melhor. E de que estamos tratando, afinal? Onde está essa superioridade maravilhosa que faz

o século vinte superior à Idade Média, e a Idade Média superior às raças primitivas e aos animais
do campo? O homem c assim tão particularmente bom em dominar sua Força e sua Ferocidade e
sua Propriedade? O que ele faz? Ele massacra os membros de sua própria espécie como um
canibal! Você sabe que foi calculado que, entre 1100 e 1900, os ingleses estiveram em guerra por
quatrocentos e dezenove anos e os franceses por trezentos e setenta e três? Você sabe que Lapouge
concluiu que dezenove milhões de homens são mortos na Europa a cada século, de maneira que a
quantidade de sangue derramado daria para alimentar uma fonte de sangue com setecentos litros por
hora desde o começo da história? E deixe-me lhe dizer uma coisa, caro senhor. A guerra, na
própria Natureza sem contar o homem, é tão rara que nem se pode dizer que existe. Em todas
aquelas duzentas e cinqüenta mil espécies, só existe cerca de uma dúzia que guerreia. Se a Natureza
alguma vez se desse ao trabalho de olhar para o homem, a pequena atrocidade, ela ficaria
completamente fora de si.
"E finalmente — concluiu o mago, já a meio galope —, deixando a sua moral de lado, será que essa
criatura odiosa é importante ao menos em um sentido físico? Será que a Natureza neutra seria


obrigada a notá-lo, mais do que ao gafanhoto ou ao inseto do coral, por causa das mudanças que ele
realizou na superfície da Terra?


IV


O Rei respondeu educadamente, atordoado com tal quantidade de declamação.

— Certamente que sim. Certamente não somos importantes pelo que fizemos?
— Como? — demandou furiosamente o tutor.
— Bom, é preciso reconhecer. Veja os edifícios que construímos sobre a terra, as cidades, e os
campos aráveis...
— A Grande Barreira de Corais — observou Archimedes, olhando para o teto — é uma construção
de mil e seiscentos quilômetros de comprimento, e foi inteiramente construída por insetos.
— Mas é apenas um recife...
Merlin jogou o chapéu no chão, do seu jeito habitual.
— Será que você nunca vai aprender a pensar impessoalmente? — perguntou. — O inseto do coral
teria o mesmo direito de lhe responder que Londres é apenas uma cidade... Mesmo assim, se todas
as cidades do mundo fossem emendadas umas com as outras...
Archimedes disse:

— Se você começar a somar todas as cidades do mundo, eu começo a emendar todos os atóis e
ilhas de coral. Depois pesamos tudo cuidadosamente e comparamos uns com outros, e veremos o
que tivermos que ver.
— Talvez os insetos do coral sejam mais importantes que os homens então, mas esta é apenas uma
espécie...
A cabra assinalou astutamente:

— Em algum lugar por aí o comitê tem uma nota sobre o castor, acho, na qual se informa que ele
construiu mares e continentes inteiros...
— Os pássaros — começou Balin com estudada indiferença —, ao carregar as sementes das
árvores no seu cocô, reconhecidamente construíram florestas enormes...
— Os coelhos — interrompeu o texugo — povoaram a Austrylia da noite pro dia...
— E os foraminíferos, cujos corpos são de fato os componentes dos rochedos brancos de Dover...

— Os gafanhotos... Merlin levantou a mão.
— Conte-lhe sobre a humilde minhoca — disse com majestade. Então os animais recitaram em
uníssono:
— O naturalista Darwin assinalou que em cada acre de campo existem cerca de vinte e cinco mil
minhocas, e que só na Inglaterra estas revolvem trezentos e vinte milhões de toneladas de solo por
ano, e que são encontradas em quase todas as regiões do mundo. Em trinta anos elas alterarão toda
a camada da superfície da terra. "A terra sem as minhocas", disse o imortal Gilbert White, "logo
ficaria fria, dura como uma rocha, sem fermentação e, por conseguinte, estéril."

V


— A mim, me parece — disse o Rei, feliz, pois esses grandes assuntos pareciam levá-lo para longe
de Mordred e Lancelot, para longe do lugar onde, como colocam no Rei Lear, a humanidade
necessariamente cai sobre si mesma como os monstros das profundidades, até o mundo pacífico
onde as pessoas pensam, conversam e amam umas às outras sem sofrer por isso. — A mim, me
parece, se o que vocês dizem é verdadeiro, que faria bem aos meus companheiros humanos se
rebaixarem um pouco. Se eles pudessem aprender a ver a si mesmos como uma das espécies de
mamífero, poderiam achar essa novidade estimulante. Digam-me a que conclusões o comitê chegou,
pois tenho certeza de que andaram discutindo o assunto sobre o animal humano.
— Tivemos muita dificuldade com o nome.
— Que nome?
— Homo sapiens — explicou a cobra. — Ficou evidente que sapiens era um adjetivo inadequado,
mas a dificuldade foi achar outro.
Archimedes disse:

— Você se lembra de uma vez quando Merlin explicou a razão do tentilhão ser chamado
coeleb{31}? Um bom adjetivo para uma espécie tem que ser adequado a alguma de suas
peculiaridades como aquela.
— A primeira sugestão — disse Merlin — foi naturalmente ferox, já que o homem é o mais feroz
dos animais.
— E curioso você mencionar ferox. Pensava nessa palavra uma hora atrás. Mas você está
exagerando, é claro, quando diz que o homem é mais feroz que um tigre.
— Estou?
— Sempre achei que os homens fossem, em geral, decentes...
Merlin tirou os óculos, suspirou fundo, poliu suas lentes, colocou-os novamente e examinou seu
discípulo com curiosidade, como se a qualquer momento começassem a crescer nele umas orelhas
pontudas, macias e peludas.

— Tente se lembrar da última vez que você saiu para dar uma volta — sugeriu ele, suavemente.
— Uma volta?

— Sim, um passeio pelas trilhas rurais inglesas. Lá vai o Homo sapiens, despreocupado, na fresca
da tarde. Imagine a cena. Lá está um melro cantando nos ramos. Será que fica em silêncio e voa
para longe com uma maldição? Nem pensar. Canta ainda mais alto e se empoleira no ombro dele. E
por ali vai um coelho mascando a relva fresca. Será que dispara aterrorizado para dentro da sua
toca? De jeito nenhum. Vai dando pulinhos na direção dele. Por lá passeiam o arganaz, a cobra-
coral, a raposa, o ouriço e o texugo. Será que se escondem, ou aceitam a presença dele?
— Ora — gritou de repente o velhote, inflamado com uma indignação antiga e peculiar —, não há
um humilde animal na Inglaterra que não fuja da sombra do homem, como uma alma queimada foge
do purgatório. Nem um mamífero, nem um peixe, nem um pássaro. Estenda a caminhada até a
margem de um rio e veja como os peixes disparam para longe. É preciso muita coisa, pode
acreditar, para ser temido por todos os elementos que existem.
— E não pense — acrescentou rapidamente, pousando a mão no joelho de Arthur — nem imagine
que eles fogem da presença uns dos outros. Se uma raposa passasse na trilha talvez o coelho
disparasse, mas o pássaro na árvore e o resto dos animais aceitariam sua presença. Se um gavião
voasse por ali, talvez o melro se escondesse, mas a raposa e os demais permitiriam sua chegada.
Só o homem, só o principal sócio da Sociedade da Invenção da Crueldade para com os Animais,
apenas ele, é temido por todas as coisas vivas.
— Mas esses animais não são exatamente o que você chamaria de selvagens. Um tigre, por
exemplo...
Merlin levantou de novo a mão, interrompendo-o.

— Vamos caminhar na profundeza das selvas — disse ele —, se você quiser. Não há um tigre,
nenhuma cobra, nenhum elefante da selva africana que não fuja do homem. Alguns tigres
enlouquecidos com dor de dente podem atacá-lo, e a cobra, se acuada, lutará em autodefesa. Mas
se um homem sadio encontra um tigre sadio numa trilha da selva, é o tigre que dará a volta. Os
únicos animais que não fogem do homem são os que nunca o viram, as focas, os pingüins, os dodôs
ou baleias dos mares árticos, e esses, como conseqüência, são imediatamente levados à beira da
extinção. Até as poucas criaturas que fazem do homem sua presa, o mosquito ou a mosca parasita,
mesmo esses ficam apavorados com seu hospedeiro, e tomam muito cuidado para ficar longe do
alcance de seus dedos.
— Homo ferox — continuou Merlin, sacudindo a cabeça —, essa raridade da natureza, um animal
que mata por prazer! Não há uma única besta nesta sala que não rejeite matar, salvo para se
alimentar. O homem finge indignação diante do picanço, que mantém uma pequena despensa de
caramujos etc, enfiados em espinhos. No entanto, a sua bem estocada despensa está rodeada de
criaturas encantadoras como os bois que mugem, e as ovelhas de rosto sensível e inteligente, que
são mantidos apenas para serem abatidos nas portas da maturidade e devorados por seus pastores
carnívoros, cujos dentes nem são projetados para serem de carnívoros. Você deveria ler a Carta de
Lamb para Southey, sobre assar toupeiras vivas, e as brincadeiras com besouros e gatos dentro de
bexigas, e as de retalhar arraias e xarrocos, esses "mansos infligidores de dores intoleráveis".
Homo ferox, o Inventor da Crueldade Contra os Animais, que cria faisões a custo enorme tão-
somente para matá-los, que se dá ao trabalho de treinar outros animais para matar, que queima ratos

vivos para que seus guinchos intimidem os outros, como vi em Eriu; que forçadamente degenera o
fígado dos gansos domésticos para produzir uma comida deliciosa para si; que serra os chifres
nascentes dos gados por conta da conveniência de transportá-los; que cega pintassilgos com uma
agulha para fazê-los cantar; que ferve lagostas e camarões vivos, apesar de escutar os pios
desesperados; que ataca os de sua própria espécie na guerra e mata dezenove milhões a cada cem
anos; que assassina publicamente seus semelhantes quando os julga criminosos; e que inventou uma
maneira de torturar suas próprias crianças com vara, ou as exporta para campos de concentração
chamados Escolas, onde a tortura pode ser aplicada por procuração... Sim, você está certo ao
perguntar se o homem pode ser adequadamente descrito como ferox, pois certamente a palavra, em
seu sentido natural de vida selvagem entre animais decentes, jamais deveria ser aplicada a tal
criatura.

— Deus do céu — disse o Rei. — Você gosta de exagerar. Mas o velho mágico não estava para se
acalmar.
— A razão — disse — pela qual tivemos dúvidas sobre usar ferox foi porque Archimedes sugeriu
que stultus{32} era mais adequado.
— Stultus? Pensei que fôssemos inteligentes.
— Em uma das miseráveis guerras quando eu era um jovem — disse o mágico, respirando fundo
—, achou-se necessário fazer que o povo da Inglaterra recebesse um conjunto de cartões impressos
que lhe permitisse comprar comida. Esses cartões tinham que ser preenchidos à mão, antes de a
comida ser comprada. Cada indivíduo tinha que escrever um número numa parte do cartão, seu
nome em outra parte e o nome do vendedor de comida numa terceira parte. Tinha que cumprir essas
três façanhas intelectuais — um número e dois nomes — ou então não podia receber comida e
morreria de fome. Sua vida dependia da operação. No fim se descobriu que dois terços da
população era incapaz de cumprir a seqüência sem erros. E essas pessoas — nos diz a Igreja
Católica — são dotadas de alma imortal!
— Tem certeza sobre esses fatos? — perguntou o texugo, em dúvida.
O velho fez a gentileza de enrubescer.
— Não anotei — disse —, mas, se não nos detalhes, em essência são verdadeiros. Lembro
claramente, por exemplo, que uma mulher foi descoberta na fila para comprar alpiste, nessa mesma
guerra, e que, interrogada, revelou não possuir nenhum passarinho.
Arthur objetou.

— Isso não prova muito, mesmo se fossem incapazes de escrever essas três coisas corretamente. Se
fossem qualquer outro animal, seriam completamente incapazes de escrever.
— A resposta direta para isso — respondeu o filósofo — é que nenhum ser humano pode furar uma
bolota com o nariz.
— Não compreendo.
— Bem, o inseto chamado Balaninus elephas é capaz de furar bolotas da maneira que mencionei,

mas não pode escrever. O homem pode escrever, mas não pode furar bolotas. Essas são suas
especializações. A diferença importante, entretanto, é que enquanto o Balaninus fura seus buracoscom a maior eficiência, o homem, como já mostrei, não escreve com eficiência nenhuma. É por isso
que eu digo que, espécie por espécie, o homem é mais ineficiente, mais stultus, que seus colegas
animais. Realmente, nenhum observador sensível poderia esperar o contrário. O homem está há tão
pouco tempo no globo que não se pode esperar que tenha muita maestria.

O Rei descobriu que estava começando a ficar deprimido.

— Vocês pensaram em muitos outros nomes?
— Houve uma terceira sugestão, feita pelo texugo.
Com isso o feliz texugo arrastou satisfeito os pés, olhou de esguelha a companhia pelo canto dos
óculos e examinou as unhas compridas.

— Impoliticus — disse Merlin. — Homo impoliticus. Você se lembra que Aristóteles nos definiu
como animais políticos. O texugo sugeriu que examinássemos isso e, depois que examinamos sua
política, impoliticus nos pareceu ser a única palavra usável.
— Prossiga, por favor.
— Descobrimos que as idéias políticas do Homo ferox eram de dois tipos: ou os problemas
podiam ser resolvidos pela força, ou podiam ser resolvidos pela argumentação. Os homens-
formigas do futuro, que acreditam na força, acham que podem determinar se duas vezes dois é
quatro derrubando as pessoas que não concordam. Os democratas, que deverão acreditar na
argumentação, acham que todos os homens têm direito a ter uma opinião, porque todos nascem
iguais: "Sou um homem tão bom quanto você" é a primeira exclamação instintiva do homem que
não o é.
— Se não se pode confiar nem na força nem no argumento — disse o Rei —, não vejo o que possa
ser feito.
— Nem força, nem argumento, nem opinião — disse Merlin com a maior sinceridade — são
pensamentos. Um argumento é apenas uma exibição de força mental, uma espécie de esgrima com
pontos para obter uma vitória, não a verdade. As opiniões são os becos sem saída dos homens
preguiçosos ou estúpidos, que são incapazes de pensar. Se um verdadeiro político alguma vez
refletir realmente sobre nosso tema sem paixão, até o Homo stultus será compelido a aceitar suas
descobertas no final. A opinião jamais pode se comparar à verdade. Na atualidade, entretanto, o
Homo impoliticus se contenta ou em argumentar com opiniões ou em lutar com os punhos, em vez
de esperar descobrir a verdade com a sua cabeça. Vai demorar um milhão de anos antes que a
massa dos homens possa ser chamada de animais políticos.
— Então o que somos nós, agora?
— Descobrimos que hoje em dia a raça humana politicamente se divide em um sábio, nove patifes
e noventa idiotas entre cada cem. Isto é, por um observador otimista. Os nove patifes se reúnem sob
a bandeira do maior patife entre eles, e se tornam "políticos"; o sábio se afasta, pois sabe que está
irremediavelmente em minoria, e se devota à poesia, matemática ou filosofia. Enquanto isso, os

noventa idiotas se arrastam atrás das bandeiras dos nove vilões, conforme a sua escolha, pelos
labirintos da cavilação, da malícia e da guerra. E agradável comandar, observa Sancho Pança, até
mesmo um rebanho de ovelhas, e é por isso que os políticos levantam suas bandeiras. Para as
ovelhas também é mais ou menos a mesma coisa, seja qual for a bandeira. Se for uma democracia,
os nove patifes viram membros do parlamento; se for fascismo, se transformam em líderes
partidários; se for comunismo, se tornam comissários. Nada será diferente, salvo o nome. Os
idiotas continuam idiotas, os patifes ainda lideram e o resultado ainda é exploração. Quanto ao
sábio, seu destino é o mesmo seja qual for a ideologia. Na democracia ele vai morrer de fome num
sótão, sob o fascismo vai parar num campo de concentração e sob o comunismo será liquidado.
Esta é uma constatação otimista, mas, no todo, científica, dos hábitos do Homo impoliticus.

O Rei disse amargamente:

— Bem, sinto muito. Suponho que o melhor é eu ir embora e me afogar. Sou insolente,
insignificante, feroz, estúpido e não político. Dificilmente parece valer a pena continuar.
Mas dessa vez os animais ficaram preocupados. Levantaram-se todos e o rodearam, o abanaram e
lhe ofereceram uma bebida.

— Não — disseram. — Realmente, não queremos ser rudes. Honestamente, tentávamos ajudar.
Pronto, não se ofenda. Temos certeza de que deve haver muitos homens que são sapiens e nem um
pouco ferozes. Nós estávamos lhe dizendo essas coisas como uma espécie de alicerce, de forma
que ficasse mais fácil para você, mais tarde, resolver o dilema. Vamos, tome uma taça de Madeira
e não pense mais nisso. Na verdade, achamos o homem a criatura mais maravilhosa, na verdade o
melhor de todos.
E se voltaram para Merlin, dizendo zangados:

— Olhe só o que você fez! É o resultado de todo seu falatório! O pobre Rei sente-se absolutamente
miserável, e tudo isso porque você perdeu a mão e exagerou, e fala como uma matraca.
Merlin apenas respondeu:

— Até mesmo a definição grega de Anthropos, Aquele que Olha para Cima, não é precisa. Depois
da adolescência o homem raramente olha para cima de sua própria altura.

VI


O novo Arthur, dobradiça azeitada, foi adulado até ficar outra vez de bom humor, mas
imediatamente cometeu a asneira de abrir o assunto de novo.

— Certamente — disse — os afetos dos homens, seu amor e heroísmo e paciência: essas são
coisas respeitáveis?
Seu tutor não ficou embaraçado com o carão que tinha tomado. Aceitou o desafio com prazer.

— Você supõe que os outros animais — perguntou — não têm amor ou heroísmo ou paciência ou, o
que é mais importante, nenhuma afeição cooperativa? A vida amorosa dos corvos, o heroísmo de
um bando de doninhas, a paciência dos passarinhos cuidando dos filhotes, o amor cooperativo das
abelhas... Todas essas coisas se mostram muito mais aperfeiçoadas em todos os aspectos na
natureza do que jamais se mostraram no homem.
— Mas certamente — perguntou o Rei — o homem deve ter algum traço respeitável, não?
Com isso o mágico cedeu.
— Sou inclinado a pensar — disse — que pode haver um. Este, insignificante e infantil quanto
possa parecer, eu menciono a despeito de todas as elucubrações daquele sujeito Chalmers-
Mitchell. Refiro-me à relação entre o homem e seus animais domésticos. Em alguns lares existem
cães inúteis como guardas ou caçadores, e gatos que se recusam a caçar ratos, mas que são tratados
por seus companheiros humanos com uma espécie de afeição viçaria, a despeito da inutilidade e até
mesmo dos problemas que causam. Não posso deixar de pensar que qualquer troca de amor, que
seja platônica e não dada em troca de outros benefícios, certamente é admirável. Uma vez conheci
um asno, que vivia no mesmo campo que um cavalo do mesmo sexo. Os dois eram profundamente
ligados, apesar de ninguém poder dizer que um deles proporcionasse algum benefício material ao
outro. Essa relação existe, me parece, numa extensão bem respeitável entre o Homo ferox e seus
cães, em alguns casos. Mas também existe entre as formigas, portanto não podemos colocar muita
ênfase nisso.
A cabra observou à socapa:

— Parasitas.
Com isso, Cavall saltou do colo de seu mestre, e ele e o novo Rei caminharam pisando duro na
direção da cabra. Cavall pela primeira e última vez em sua longa vida falou com voz humana, em


uníssono com seu mestre. Sua voz soava como a de um teutão falando através de um trompete.

— Você disse parasitas? — perguntaram. — Basta dizer isso mais uma vez, por favor, para darmos
uns cascudos em você.
A cabra observou-os com afeição divertida, mas recusou-se a provocar confusão.

— Se vocês me derem uns cascudos — disse —, vão machucar os nós dos dedos. Além do mais,
retiro tudo.
Os dois se sentaram novamente, enquanto o Rei se congratulava por ter algo de bom em seu
coração. Cavall evidentemente achava a mesma coisa, pois lambeu seu nariz.

— O que eu não consigo compreender — disse Arthur — é por que se dão ao trabalho de refletir
sobre o homem e seus problemas, ou reunir um comitê para isso, se a única coisa respeitável nele é
a maneira como trata alguns animais domésticos. Por que não deixar que ele se extinga de uma vez
sem maiores confusões?
Isso colocou um problema para o comitê. Eles ficaram sentados pensando sobre o assunto,
segurando os leques de mogno entre seus rostos e a lareira, e observando as chamas invertidas no
marrom esfumaçado do Madeira.

— É porque nós o amamos, Rei — finalmente disse Archimedes. Foi o cumprimento mais
maravilhoso que ele jamais recebera.
— E porque a criatura é jovem — disse a cabra. — Criaturas jovens e desamparadas fazem
instintivamente que se queira ajudá-las.
— Porque ajudar é uma boa coisa, de qualquer jeito — disse T. natrix.
— Há alguma coisa importante na humanidade — disse Balin. — Só que agora não consigo
descrevê-la.
Merlin disse:

— Ê porque é bom consertar as coisas, jogar com as possibilidades.
O ouriço deu a melhor das razões, que era simples:
— E pruque que não?
Depois ficaram em silêncio, meditando com as chamas.
— Talvez eu tenha pintado um quadro sombrio dos humanos disse Merlin ambiguamente —, não
totalmente negro, mas podia ter um tom mais claro. Foi porque queria que você compreendesse o
assunto observando os animais. Não queria que pensasse que o homem era demasiado superior
para fazer isso. No decurso da longa experiência com a raça humana, aprendi que jamais se pode
fazer com que compreendam algo, a menos que se esfregue na cara deles. Vocês querem que eu
descubra alguma coisa, aprendendo com os animais.
— Sim. Finalmente estamos chegando ao objetivo de sua visita. Existem duas criaturas que esqueci
de lhe mostrar quando você era pequeno e, a menos que os visite agora, não poderemos avançar.

— Farei o que você quiser.
— São a Formiga e o Ganso Selvagem. Queremos que os conheça esta noite. É claro que vai ser
apenas uma espécie de formiga, dentre centenas delas, mas é um tipo que queremos que conheça.
— Muito bem — disse o Rei. — Estou pronto e desejoso.
— Você está com o encantamento da Sangüínea, meu texugo? O infeliz animal imediatamente
começou a remexer em sua cadeira, procurando entre as costuras, levantando os cantos dos tapetes,
e virando papeletas cobertas com a letra de Merlin por todos os lados.
A primeira papeleta tinha como título Mais Insolência sob Victoria. Dizia: "O Dr. John de
Gaddesden, médico da corte de Edward II, alegou ter curado a varíola do filho do rei enrolando o
paciente com pano vermelho, colocando cortinas vermelhas nas janelas e cuidando que tudo que
havia no quarto fosse vermelho. Isso provocou uma alegre risada vitoriana às expensas da
simplicidade medieval, até que o Dr. Niels Finsen de Copenhagen descobriu no século vinte que o
vermelho e a luz infra-vermelha realmente afetam as pústulas da varíola, ajudando mesmo na cura
da doença".

A papeleta seguinte informava brevemente: "Meia rosa nobre em qualquer caminho do Moleiro
Dourado".

A terceira, que tinha um forte perfume de Quelques Fleurs e não era escrita com a letra de Merlin,
dizia: "Monumento da Rainha Philippa em Charing Cross, sete e meia, debaixo do pináculo da
torre". Havia muitos beijos na parte de baixo e, nas costas, algumas anotações para um poema a ser
dirigido à remetente. Essas estavam na letra de Merlin e diziam: Hurra? Xuxu? Chop-suey? O
poema propriamente dito, que começava

Xuxu
Nimue


estava apagado.

Outra papeleta estava intitulada: "Outras raças, Condescendência Vitoriana para com, assim como
para com Ancestrais Próprios, Animais etc". Dizia: "O coronel Wood-Martin, antiquário,
escrevendo em 1895, observa com uma risadinha que 'uma das raças mais depravadas, a dos
atualmente extintos tasmanianos, acreditava que as pedras, especialmente certos tipos de cristais de
quartzo, podiam ser usadas por médiuns, ou como meios de comunicação... com pessoas vivas à
distância! Alguns anos depois dessa nota, o telégrafo sem fio foi importado para o hemisfério
ocidental. Prefiro conjeturar que esses povos depravados estavam um milhão de anos adiante do
coronel, no mesmo viciado caminho, e que foram extintos por escutarem constantemente música
dançante nos seus rádios de cristal".

— Aqui está — disse o texugo. — Acho que é esta. Entregou uma papeleta na qual estava escrito:
"Fórmica est exemplo magni laboris{33} Dativo do Propósito".

Viu-se que não era.

Finalmente todos foram ordenados a se levantarem, procurarem em suas cadeiras, nos bolsos etc. O
ouriço, apresentando um fragmento rasgado e coberto de lama seca e folhas esmagadas, sobre o
qual estivera sentado, perguntou:

— Sé qué isso?
Depois de limpo, desamassado e desempoeirado, descobriu-se que dizia: Dragguls uoht, Tna eht ot
og, e Merlin disse que era o que precisava.

Assim um par de formigueiros foi retirado da despensa, onde ficavam apoiados em pires com água.
Foram colocados na mesa no meio da sala, enquanto os animais sentavam-se para observar, já que
se podia ver dentro dos formigueiros através de placas de vidro coloridas de vermelho. Arthur foi
sentado à mesa ao lado do maior formigueiro, o pentagrama invertido foi desenhado, e Merlin
pronunciou solenemente o encantamento.


VII


Ele achou estranho visitar outra vez os animais na sua idade.

Talvez, pensou consigo mesmo, envergonhado, esteja sonhando com minha segunda infância, talvez
tenha sucumbido à caduquice.

Mas isso o fez lembrar-se vividamente de sua primeira infância, os tempos felizes nadando nos
fossos ou voando com Archimedes, e compreendeu que tinha perdido algo desde aqueles dias. Era
algo que agora ele pensava como a capacidade de se maravilhar. Naquela época, seus prazeres
tinham sido indiscriminados. Sua atenção, ou seu sentimento de beleza, ou seja lá como deveria ser
chamado, era fortemente atraído para ninharias. Talvez, enquanto Archimedes estava discursando
sobre o vôo dos pássaros, ele mesmo estivesse perdido na admiração pela forma como o pêlo do
rato se movia nas garras da coruja. Ou o grande Sr. M. poderia estar discursando sobre Ditadura,
enquanto ele, o tempo todo, só via seus grandes dentes, e meditava sobre eles num êxtase de
experiência.

Isso, essa faculdade de se maravilhar, tinha-o abandonado, por mais que Merlin tenha massageado
seu cérebro. Foi trocada pela capacidade de discernimento, ele supunha. Agora ele teria escutado
Archimedes ou o Sr. M. Não teria prestado atenção na pele cinzenta ou nos dentes amarelados. Não
se sentia orgulhoso com a mudança.

O velho bocejou — pois formigas, sim, bocejam, e também se esticam, tal como os seres humanos,
depois de tirar uma soneca — e depois se preparou para o assunto era pauta. Ele não sentia prazer
em ser uma formiga, como teria se tivesse sido transportado para virar uma nos velhos tempos, mas
só pensou consigo mesmo: bem, é uma tarefa que tenho de cumprir. Como começar?

Os formigueiros eram feitos espalhando-se terra numa fina camada, cerca de um centímetro de
espessura, em pequenas mesas como tamboretes. Então, em cima de cada camada de terra,
colocava-se um vidro, com um pano por cima, para proporcionar escuridão para as creches. Ao
remover o pano, podiam-se ver os abrigos subterrâneos como se tivesse um corte transversal.
Podia-se ver a câmara circular onde as pupas eram cuidadas como se fosse uma estufa com teto de
vidro.

Os verdadeiros formigueiros estavam apenas na ponta do tamborete, com o vidro cobrindo menos
do que a metade. Na frente havia esplanadas simples de terra, abertas ao céu, e na outra ponta de
cada tamborete estavam as ampulhetas onde se deixava o melado para comida. Não havia


comunicação entre os dois formigueiros. Os tamboretes estavam separados, lado a lado, mas sem
se tocarem, com as pernas dentro dos pires.

E claro que não parecia assim naquela época. O lugar onde ele se encontrava parecia um grande
campo de pedregulhos, com uma fortaleza achatada numa ponta — entre as placas de vidro.
Penetrava-se na fortaleza por túneis na rocha e, em cima da entrada de cada túnel, havia um letreiro
onde estava escrito:

TUDO O QUE NÃO É PROIBIDO É OBRIGATÓRIO PELA NOVA ORDEM

Ele leu o aviso com desagrado, apesar de não entender seu significado. Pensou consigo mesmo:
Vou explorar um pouco, antes de entrar. Por alguma razão o aviso provocou nele uma relutância em
avançar, fazendo o túnel tosco parecer sinistro.

Balançou cuidadosamente suas antenas, considerando o aviso, familiarizando-se com seus novos
sentidos, plantando firmemente os pés no mundo dos insetos, como para se agarrar nele. Limpou as
antenas com as patas dianteiras, alisando-as e torcendo-as de tal maneira que parecia um vilão
vitoriano retorcendo os bigodes. Então, tomou consciência de algo que estivera aguardando ser
percebido — que havia um ruído articulado em sua cabeça. Ou era um ruído ou um cheiro
complicado, e a maneira mais fácil de explicar era dizer que parecia uma transmissão de rádio.
Chegava através das antenas, como música.

A música tinha um ritmo monótono como um pulsar, e as palavras que a acompanhavam eram sobre
junho-punho-cunho, ou mamã-mamã-mamã, ou aqui-ali, ou lá-dá-cá. No começo, ele estava
gostando, principalmente das que falavam de amor-flor-calor, até descobrir que não variavam.
Depois de uma ou duas horas, isso o fez ficar enjoado.

Havia também uma voz em sua cabeça, durante as pausas da música, que parecia estar dando
ordens. Dizia: "Todos os que têm dois dias de idade devem se mover para a Ala Oeste", ou
"Número 210397/WD deve se apresentar ao esquadrão de sopa, em substituição ao número
333105/WD que caiu do formigueiro". Era uma voz frutada, mas de alguma forma parecia
impessoal — como se seu encanto fosse o resultado de uma longa prática, como um truque de circo.
Era sem tom.

O Rei, ou talvez devêssemos dizer a formiga, afastou-se da fortaleza logo que se sentiu preparado
para zanzar por ali. Inquieto, começou explorando o deserto de pedregulhos, relutando era visitar o
lugar de onde vinham as ordens, e também chateado com a visão estreita. Descobriu pequenos
caminhos entre os pedregulhos, trilhas esparsas e ao mesmo tempo sem sentido e propositais, que
levavam ao depósito de melado e também a várias outras direções que ele não conseguia
compreender. Uma dessas trilhas terminava num torrão com uma cavidade natural por baixo. Na
cavidade — mais uma vez com a estranha aparência de propósito sem sentido — descobriu duas
formigas mortas. Estavam deitadas e arrumadas, mas ao mesmo tempo desarrumadas, como se uma
pessoa muito arrumada as tivesse levado até ah, e depois esquecido a razão quando lá chegou.
Estavam dobradas, e não pareciam nem alegres nem tristes por estarem mortas. Estavam lá, como


um par de cadeiras.
Enquanto observava os cadáveres, uma formiga viva desceu pela trilha carregando uma terceira.
A formiga disse:


— Salve, Sangüínea!
O Rei respondeu — Salve! — com educação.

Em um ponto, sobre o qual nada sabia, ele tinha sorte. Merlin se lembrara de lhe dar o cheiro
adequado para esse formigueiro — pois, se cheirasse a qualquer outro formigueiro, teria sido
morto imediatamente. Se a Senhorita Cavell fosse uma formiga, teria que escrever em sua estátua:
CHEIRAR NÃO É SUFICIENTE,

A nova formiga colocou o cadáver distraidamente no chão e começou a arrastar os outros dois em
várias direções. Parecia não saber onde colocá-los. Ou melhor, sabia que uma certa arrumação
devia ser feita, mas não conseguia imaginar como seria. Era como um homem com uma xícara de
chá numa mão e um sanduíche na outra querendo acender um cigarro com um fósforo. Mas quando o
homem pensaria em deixar a xícara e o sanduíche — antes de pegar o cigarro e o fósforo —, essa
formiga deixaria o sanduíche e pegaria o fósforo, depois deixaria o fósforo no chão para pegar o
cigarro, depois colocaria o cigarro no chão e levantaria o sanduíche, depois abaixaria a xícara e
levantaria o cigarro, até finalmente abaixar o sanduíche e pegar o fósforo. A formiga tendia a
depender de uma série de acidentes até alcançar seu objetivo. Era paciente e não pensava. Depois
de ter colocado as três formigas mortas em várias posições, estas finalmente ficaram alinhadas
embaixo do torrão, e isso era o que ela tinha que fazer.

O Rei observou esses arranjos primeiro com surpresa, depois com aflição e, finalmente, com
desagrado. Queria perguntar como era possível não pensar nas coisas com antecedência — esse
sentimento incômodo que as pessoas têm ao ver um serviço ser mal executado. Mais tarde começou
a desejar poder fazer várias perguntas, tais como "Você gosta de cuidar dos mortos?" ou "Você é
um escravo?" ou mesmo "Você é feliz?".

A coisa extraordinária é que ele não podia fazer essas perguntas. Para poder fazê-las, teria que
traduzi-las para a língua das formigas através das antenas — e descobria agora, com uma sensação
de impotência, que não existiam palavras para o que queria dizer. Não havia palavras para
felicidade, liberdade, gostar, assim como não havia palavras para seus opostos. Sentia-se como um
mudo tentando gritar "Incêndio!". O mais próximo que conseguia chegar até mesmo de Certo e
Errado era dizer Feito e Não-Feito.

A formiga terminou de mexer com os cadáveres e voltou para a trilha, deixando-os jogados ao
acaso. Então viu que Arthur estava no caminho, e parou, mexendo suas antenas em direção a ele,
como um tanque. Com o rosto mudo e ameaçador como se fosse um elmo, seu aspecto peludo e
coisas parecidas com esporas nas juntas das pernas, talvez se parecesse mais com um cavaleiro de
armadura ou com um cavalo de armadura, ou uma combinação dos dois: um centauro peludo de
armadura.

A formiga disse novamente:


— Salve, Sangüínea!
— Salve.
— O que você está fazendo?
O Rei respondeu com a verdade, mas não sabiamente:
— Não estou fazendo nada.
A formiga ficou desconcertada com isso durante vários segundos, como você ficaria se Einstein lhe
contasse suas últimas idéias sobre o espaço. Em seguida, estendeu os doze segmentos de sua antena
e falou por cima dele para o azul.

Disse:

— 105978/UDC contatando do quadrado cinco. Tem uma formiga maluca aqui no quadrado cinco.
Câmbio.
A palavra que usou para maluca foi Não-Feita. Mais tarde, ele descobriria que havia apenas duas
qualificações na linguagem, Feito e Não-Feito, que se aplicavam a todas as questões de avaliação.
Se as sementes que os coletores achavam eram doces, eram sementes Feitas. Se alguém as tivesse
temperado com um pó venenoso, seriam sementes Não-Feitas, e assim por diante. Mesmo os
punhos, as mamas, as flores etc. ficavam completamente descritos, nas transmissões, quando se
declaravam que eram Feitos.

A transmissão parou um momento e a voz frutada disse:

— G.H.Q. respondendo a 105978/UDC. Qual é o número dela? Câmbio.
A formiga perguntou:
— Qual o seu número?
— Não sei.
Quando essa notícia foi transmitida para o quartel-general, veio uma mensagem dizendo para
perguntar se ele podia fazer um relatório sobre si mesmo. A formiga perguntou ao Rei. Usou as
mesmas palavras que a transmissão usara, e na mesma voz. Isso o fez sentir desconfortável e com
raiva, duas emoções das quais não gostava.

— Sim — disse com sarcasmo, pois era óbvio que a criatura não percebia o sarcasmo —, caí de
ponta-cabeça e não me lembro de nada.
— 105978/UDC relatando. Formiga Não-Feita esqueceu de tudo porque caiu do formigueiro.
Câmbio.
— G.H.Q. respondendo a 105978/UDC. Formiga Não-Feita é o número 42436/WD, que caiu do
formigueiro hoje de manhã quando trabalhava no esquadrão da papa. Se for competente para
continuar com seus deveres — era mais fácil dizer "Se for competente para continuar com seus
deveres" na linguagem das formigas, pois era simplesmente Feito, como tudo o mais era Não-Feito.
Mas chega de questões de linguagem. — Se for competente para continuar com seus deveres,
instrua 42436/WD para voltar ao esquadrão da papa, dispensando 210021/WD, que foi enviado

para substituí-lo. Câmbio.



A noite passada sonhei que Gawaine vinha me ver, em companhia de lindas damas. Ele disse que
a elas fora permitido vir porque ele as salvara quando ainda era vivo e elas vinham avisar que
amanhã todos estaríamos mortos.

— Você compreende? — perguntou a formiga.
Parece que, mesmo se quisesse, ele não podia ter dado melhor explicação do que dizer que tinha
caído de ponta-cabeça, pois as formigas de vez em quando caem mesmo, e Merlin, se as notasse, as
colocaria de volta com a ponta do lápis.

— Sim.
A arrumadora de cadáveres não prestou mais atenção nele e se arrastou pela trilha atrás de outra
formiga morta, ou qualquer outra coisa que precisasse ser removida.

Arthur foi pelo caminho oposto, para unir-se ao esquadrão da papa. Memorizou seu próprio número
e o número da unidade que teria de substituir.


VIII


O esquadrão da papa estava postado diante de uma das câmaras externas da fortaleza como se fosse
um círculo de adoradores. Ele se uniu ao círculo, anunciando que 210021/WD devia voltar para o
formigueiro central. Depois começou a se empanturrar com a papa doce, como os demais. Faziam a
papa raspando as sementes que os outros tinham coletado, mastigando as migalhas até que estas se
transformavam numa espécie de papa ou sopa, e depois engolindo-a para armazená-la em seu
próprio papo. No início, a coisa lhe pareceu deliciosa, e começou a comer com vontade, mas
depois de poucos segundos perdeu a graça. Não conseguia compreender por quê. Mastigava e
engolia rapidamente, imitando o resto do esquadrão, mas era como se comessem um banquete de
nada, ou como um jantar no palco, representado. De certa forma, era -orno um pesadelo, no qual se
continuava a comer enormes quantidades de gororoba sem ser capaz de parar.

Uma procissão que ia e vinha circulava em torno da pilha de sementes. As formigas, depois de
encherem o papo até a borda, caminhavam de volta para a fortaleza, substituídas por uma procissão
de formigas vazias que vinham da mesma direção. Nunca apareciam formigas novas na procissão,
apenas aquela mesma dúzia indo e voltando, como fariam durante toda a vida.

De repente, ele compreendeu que o que comia não ia para seu estômago. Uma pequena porção
daquilo penetrara em seu ser privado no começo, mas agora o volume principal estava sendo
armazenado numa espécie de estômago superior, ou papo, de onde podia ser removido. Ocorreu-
lhe então que, quando entrasse na corrente que voltava, teria que vomitar a provisão em um balde
ou coisa parecida.

O esquadrão da papa conversava entre si enquanto trabalhava. No começo, achou que isso era um
bom sinal, e ficou atento para ouvir o que pudesse.

— Oh, escute só — disse um deles. — Nuss ouviduss chega de novuss a canção mamã-mamãmamã.
Eu achuss essa canção mamã-mamã-mamã adorávelss (Feita). É tão classudass (Feita).
Outra observação:

— Eu achuss que nossa amada Líder é maravilhosa, concor-dass? Dizem que ela foi picada maiss
de trezentass vezess na última guerra, e recebeuss a Cruzzz de Valor das formigasss.
— Que sorte termuss nasciduss na raça da Sangüínea, concor-dass? Não seria horrorosuss ser uma
dessasss imundas Formicae fuscael

— Que coisa terrívelss essa históriass sobre 310099/WD! Eu achuss que é claruss que ela foiss
imediatamente executada, por ordem direta de nossa amada Líder.
— Oh, escute só! Aí vem de novuss aquela canção mamã-mamã-mamã. Eu achuss...
Dirigiu-se com o papo cheio para o formigueiro, deixando de dar outra volta. Elas não tinham
novidades, nenhum escândalo, nada sobre o que conversar. Ali não aconteciam novidades. Mesmo
as observações sobre a execução eram feitas em fórmulas, e só variavam quanto ao número de
registro da criminosa. Quando terminavam com a mamã-mamã-mamã, voltavam para a Amada
Líder, e depois para as imundas fuscae
e para a última execução. E assim iam em círculo. Mesmo
as amadas, maravilhosas e coisas assim eram todas Feitas, e as horríveis eram Não-Feitas.

Ele se viu no saguão da fortaleza, onde centenas e centenas de formigas estavam lambendo ou se
alimentando nas creches, carregando larvas para várias alas para conseguir uma temperatura
estável, e abrindo e fechando as passagens de ventilação. No meio, a Líder sentava-se
complacentemente, pondo ovos, ouvindo as transmissões, dando instruções ou ordenando
execuções, rodeada por um mar de adulação. (Mais tarde ele aprendeu com Merlin que o método
de sucessão entre essas Líderes variava de acordo com as diferentes espécies de formiga. Nas
Bothriomyrmex, por exemplo, a ambiciosa fundadora de uma Nova Ordem invadiria um
formigueiro de Tapinoma e pularia nas costas da antiga tirana. Ali, disfarçada pelo cheiro da
invadida, lentamente cortava-lhe a cabeça, até ela mesma adquirir o direito à Liderança.)

Não havia nenhum balde para depositar a papa, afinal. Quando alguém queria uma refeição, o
parava, fazia com que abrisse a boca, e se alimentava direto dali. Não o tratavam como pessoa e,
realmente, eram mesmo impessoais. Ele era um garçom-robô do qual os comedores-robôs se
alimentavam. Nem mesmo seu estômago era seu.

Mas não precisamos entrar em muitos detalhes sobre as formigas — não é um assunto agradável.
Ele continuou a viver entre elas, adaptando-se a seus hábitos, observando-as de forma a
compreender o mais que pudesse, mas incapaz de fazer perguntas. Isso não apenas porque a
linguagem delas não dispunha das palavras que interessavam aos humanos — seria impossível
perguntar-lhes se acreditavam na Vida, na Liberdade e na Busca da Felicidade —, mas também
porque era perigoso fazer perguntas. A vida não era questionável: era dirigida. Ele rastejava do
formigueiro para as sementes e depois de volta, exclamava que a canção da mama era adorável,
abria o papo para regurgitar, e tentava compreender o mais que pudesse.

Ele tinha chegado ao estágio de gritar quando a enorme mão baixou das nuvens, segurando uma
palha. Colocou a palha entre os dois formigueiros, que antes estavam separados, de forma que
agora havia uma ponte entre eles. E depois se retirou.


IX


Mais tarde, uma formiga negra zanzou pela nova ponte: uma das desprezíveis fuscae, raça humilde
que só luta em autodefesa. Foi descoberta por um dos coletores e assassinada.

As transmissões mudaram depois que essa notícia foi divulgada — ou melhor, mudaram depois que
espiãs descobriram que o formigueiro fusca também tinha seu depósito de sementes.

Mamã-mamã-mamã foi substituída por Terra das Formigas, Terra das Formigas acima de tudo, e a
corrente de ordens foi interrompida para dar lugar a palestras sobre guerra, patriotismo ou sobre a
situação econômica. A voz frutada disse que sua pátria amada estava sendo cercada por uma horda
de imundas fuscae, no que o coro irradiado cantava:

Quando o sangue de fusca jorrar das picadas,
Então tudo estará bem...


Também explicava que a Formiga-Antepassada ordenara em sua sabedoria inescrutável que as
formigas negras deviam sempre ser escravas das formigas vermelhas. Atualmente, sua amada pátria
não tinha escravos, uma situação lamentável que tinha de ser remediada para a raça eleita não
perecer. Uma terceira declaração dizia que a propriedade nacional das Sangüíneas estava
ameaçada: seus alimentos iam ser roubados, seus animais domésticos, os besouros, seriam
seqüestrados e seu estômago comunal, esvaziado. O Rei escutou com atenção duas dessas
transmissões, para que pudesse se lembrar bem depois.

A primeira estava arranjada da seguinte maneira:

A. Somos tão numerosos que estamos famintos.
B. Portanto, devemos encorajar famílias ainda maiores para que sejamos mais
numerosos e mais famintos.
C. Quando formos tão numerosos e famintos como devemos ser, obviamente teremos
o direito de tomar os estoques de sementes dos outros. Além do mais, teremos,
então, um exército numeroso e faminto.

Só depois que esse exercício de lógica foi posto em prática, e a produção dos viveiros triplicada

— ambos os formigueiros, nesse ínterim, recebendo de Merlin papa suficiente para todas suas
necessidades, pois temos que admitir que nações famintas nunca parecem estar tão famintas que não
possam arranjar meios para adquirir armamentos muito mais caros que as outras —, é que o
segundo tipo de conferência começou.
Era assim que esta se desenrolava:

A. Somos mais numerosos que eles, portanto temos direito à sua papa.
B. Eles são mais numerosos que nós, portanto estão perversamente tentando roubar
nossa papa.
C. Somos uma raça poderosa e temos o direito natural de subjugar esses fracotes.
D. Eles são uma raça poderosa e, contra a natureza, estão tentando subjugar nossa
raça indefesa.
E. Temos que atacá-los como autodefesa.
F. Eles vão nos atacar para se defenderem.
G. Se não atacarmos hoje, eles nos atacarão amanhã.
H. De qualquer forma, não estamos, de maneira alguma, atacando-os. Estamos lhes
oferecendo benefícios incalculáveis.
Depois desse segundo tipo de palestra começaram os serviços religiosos. Estes vinham —
descobriu ele — de um passado tão fabuloso e antigo que dificilmente se poderia datá-lo, um
passado no qual as formigas ainda não tinham adotado o socialismo. Vinham de uma época em que
as formigas eram como os homens, e alguns desses serviços eram impressionantes.

O salmo de um deles — começando, se relevarmos a diferença de linguagens, com as palavras bem
conhecidas, "A Terra e tudo que há nela é da Espada, até onde alcançam os bombardeiros e o que
lá bombardeiam" — termina com a conclusão terrível: "Explodi vossas cabeças, O vós, Portões, e
sejam explodidas vós, Portas Eternas, para que o Rei da Glória possa entrar. E quem é o Rei da
Glória? Também o Senhor dos Fantasmas, Ele é o Rei da Glória".

***

Uma característica estranha é que as formigas comuns não se emocionavam com as canções, nem se
interessavam pelas palestras. Aceitavam tudo isso como fatos naturais. Para elas, eram rituais,
como as canções da mama ou as conversas sobre a Amada Líder. Não percebiam essas coisas
como boas ou más, excitantes, racionais ou terríveis. Não se importavam nadinha com elas, mas as
aceitavam como Feitas.

Bem, chegou o momento da guerra de escravização. Os preparativos estavam prontos, os soldados
treinados ao máximo, as muralhas do formigueiro tinham slogans patrióticos pintados, como


"Ferrões ou papa?" ou "Consagro-me a vós, meu Cheiro", e o Rei estava desesperado. Achava que
jamais tinha estado entre essas criaturas horríveis, a menos que fosse na época em que vivera entre
os homens, e estava começando a ficar doente de desgosto. As vozes que repetiam dentro de sua
cabeça, e que não podia desligar, a falta de privacidade, quando alguns comiam do seu estômago e
outros cantavam dentro do seu cérebro, o terrível vazio que substituía o sentimento, a privação de
todos salvo dois valores, a monotonia total mais do que a maldade: tudo isso matou a alegria de
viver que tinha sido o dom de Merlin no começo da noite. Ele se sentia tão miserável quanto estava
quando o mago o encontrou chorando sobre seus papéis, e agora, quando finalmente o Exército
Vermelho marchava para a guerra, ele subitamente deu a volta no meio da ponte de palha, como um
louco, pronto a impedir a passagem delas com sua própria vida.


X


— Deus do céu — disse Merlin, que enxugava as gotas de suor da testa com um lenço —, você
realmente tem o dom de se meter em confusão. Esse foi um momento difícil.
Os animais o examinaram, ansiosos, para ver se havia algum osso quebrado.

— Você está bem?
— Perfeitamente.
Descobriram que ele estava furiosamente zangado. Suas mãos tremiam de raiva.
— As brutas! — exclamou. — As brutas!
— Elas não são atraentes.
— Não me importaria se elas tivessem sido maldosas — ele desabafou —, se quisessem ser
maldosas. Não me importaria se tivessem escolhido a maldade, por alguma razão, ou para se
divertir. Mas elas não sabem, elas não escolheram. Elas... elas... não existiam!
— Sente-se — disse o texugo — e descanse um pouco.
— Criaturas horríveis! Era como se eu falasse com minerais que não pudessem se mexer, como
estátuas falantes ou máquinas. Se você dissesse alguma coisa adequada para o mecanismo, então
funcionava: se não, não funcionava, ficava parado, em branco, sem expressão. Oh, Merlin, que
horrível! Eram zumbis. Quando morreram? Será que alguma vez tiveram sentimento? Agora não têm
nenhum. São como aquela porta do conto de fadas, que abria quando se dizia Sésamo. Acho que só
conhecem meia dúzia de palavras, ou coleção de palavras. Um homem que as conhecesse poderia
fazer com que elas executassem tudo aquilo, e então... Então seria preciso começar de novo! De
novo e de novo! Era como estar no inferno. Só que nenhuma delas sabia que estava ah. Nenhuma
delas sabia nada. Será que existe algo mais terrível que o movimento perpétuo, do que fazer e fazer
e fazer sem razão, sem consciência, sem mudança, sem fim?
— As formigas são o Moto Perpétuo — disse Merlin. — Suponho. Nunca pensei nisso.
— A coisa mais aflitiva sobre elas era que pareciam seres humanos; não humanos, mas como
humanos, uma cópia ruim.
— Não há nada surpreendente nisso. No passado infinito, as formigas adotaram a linha política
com a qual o homem flerta agora. Elas a aperfeiçoaram trinta milhões de anos atrás, de forma que

nenhum desenvolvimento posterior foi possível, e, desde então, elas estacionaram. A evolução
parou nas formigas há uns trinta milhões de anos antes do nascimento de Cristo. Elas são o perfeito
estado comunista.

Aqui Merlin levantou devotamente os olhos para os céus e assinalou:

— Meu velho amigo Marx pode ter sido um economista de primeira classe, mas, Deus do céu, era
uma tristeza quando se metia com a História natural.
O texugo, que sempre via o lado melhor de todo mundo, mesmo de Karl Marx, cuja arrumação de
seus materiais, dito seja, era quase tão transparente quanto o do texugo, disse:

— Mas isso certamente não é justo com o comunismo de hoje.
Eu diria que as formigas são mais parecidas com os fascistas de Mordred do que com os
comunistas de John Bali...

— Um é uma etapa do outro. Na perfeição, são a mesma coisa.
— Mas num mundo realmente comunista...
— Dê um pouco de vinho ao Rei — disse Merlin. — Ouriço, que diabos você está pensando?
O ouriço disparou para buscar o decantador, e o trouxe com uma taça. Enfiou o nariz úmido pela
orelha do Rei, respirando pesado com um hálito que cheirava a cebolas, e sussurrou roucamente:

— A gente tatava olhando, totodo mundo. Foi foi. O shenhor ia dar uma surrinha nelas, nas
bandidinhas. Bestinhazinhas infernais.
E balançou repetidamente a cabeça, derramando o Madeira e fazendo movimentos de boxeador no
ar com o decantador numa mão e a taça na outra.

— Bravo bravo pra sua "mágica estade", é o que nós vamamos dizer. Deix'ele pega elas, é isso, pra
acabar com a dureza. Isso era o que a gente quereria, nisso a gente é bambambã, só que ninguém
deixa.
O texugo não queria aceitar a derrota de seu argumento. Começou de novo, com paciência, logo que

o Rei foi servido.
— As formigas guerreiam — disse ele —, então não podem ser comunistas. No verdadeiro mundo
comunista não haveria guerra porque o mundo seria uma união. Você não pode esquecer que o
comunismo não será alcançado de verdade até que todas as nações do mundo sejam comunísticas, e
fundidas numa só União de repúblicas socialistas soviéticas. Ora, os formigueiros não estão
fundidos uns com os outros numa união, portanto não são inteiramente comunísticos, e é por isso
que lutam.
— Eles não estão unidos — disse Merlin, mal-humorado — apenas por causa de seu tamanho
minúsculo, comparado com a grandeza do mundo, e dos obstáculos naturais como os rios e coisas
assim, que torna impossível a comunicação entre os animais do tamanho das formigas e com aquele
número de dedos. Ainda assim, se quiser, concordarei que elas são Surradores perfeitos,
impedidas de se transformarem em perfeitos Loüardos por razões físicas e geográficas.

— Portanto você deve retirar a crítica que fez a Karl Marx.
— Retirar minha crítica?! — exclamou o filósofo.
— Sim, pois Marx na verdade resolveu o quebra-cabeça do rei sobre a guerra, com sua União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
A cara de Merlin ficou azul, ele mordeu e arrancou um bom pedaço de sua barba, puxou tufos de
cabelo e os jogou ao ar, orou fervorosamente por orientação, sentou ao lado do texugo e, segurando
sua mão, olhou implorante por trás dos óculos.

— Mas você não percebe — perguntou pateticamente — que a união de qualquer coisa resolve o
problema da guerra? Não pode haver guerra numa união, porque é preciso haver uma divisão antes
que ela comece. Não haveria guerra se o mundo consistisse numa união de bistecas de carneiro.
Mas isso não quer dizer que todos devemos correr e nos transformarmos em bistecas de carneiro.
— De fato — disse o texugo, depois de ponderar por algum tempo —, você não está definindo as
formigas como fascistas ou comunistas porque lutam em guerras, mas porque...
— Estou é amontoando as três seitas juntas por causa da sua premissa básica que é, em última
instância, negar os direitos do indivíduo.
— Percebo.
— A teoria delas é totalitária: homens ou formigas existem pelo bem do Estado ou do mundo, e não
o contrário.
— E por que você disse que Marx era ruim em história natural?
— O caráter do meu velho amigo Karl — disse severo o mago — está fora do escopo deste comitê.
Por favor, lembre-se de que nossa pauta não é o comunismo, mas o problema do assassinato
organizado. E é tão-somente na medida em que o comunismo é parte da guerra que nos
preocupamos com ele. Com essa observação respondo da seguinte maneira à sua pergunta: Marx
era um naturalista ruim porque cometeu o erro grosseiro de superestimar o crânio humano emprimeiro lugar, porque jamais considerou os gansos, e porque subscreveu à Falácia da Égalité, que
é contra a natureza. Os seres humanos não são mais iguais em seus méritos e habilidades do que são
iguais no rosto ou na estatura. Da mesma maneira, você poderia insistir que todas as pessoas do
mundo deveriam usar botas do mesmo número. Essa idéia ridícula da igualdade foi adotada pelas
formigas há mais de trinta milhões de anos e, ao acreditar nisso durante todo esse tempo,
conseguiram transformá-la em verdade. Agora vejam só a confusão em que estão metidas.
— Liberdade, Igualdade e Fraternidade.... — começou o texugo.
— Liberdade, Brutalidade e Obscenidade — contrapôs de imediato o mago. — Você devia tentar
viver em algumas das revoluções que usam esse lema. Primeiro eles o proclamam; depois
anunciam que os aristocratas devem ser liquidados, pelo bem da moral, para que se possa purgar o
partido ou aparar a comuna ou tornar o mundo seguro para a democracia; e depois estupram e
assassinam todos em quem conseguem pôr as mãos, mais com tristeza do que com raiva, ou os
crucificam, ou os torturam de maneiras que não quero nem mencionar. Você devia ter

experimentado a Guerra Civil Espanhola. Sim, essa é a igualdade do homem. Assassine quem seja
melhor que você e logo todos seremos bem iguais. Todos igualmente mortos.


XI


T. Natrix falou de repente.
— Vocês, humanos — disse —, não têm idéia dessa eternidade sobre a qual falam infantilidades,
com suas almas e purgatórios e coisas assim. Se algum de vocês realmente acreditasse na
Eternidade, ou mesmo em grandes períodos de Tempo, pensariam duas vezes sobre igualdade. Não
posso imaginar nada mais apavorante que uma Eternidade cheia de homens iguais. A única coisa
que tornou a vida suportável no longo passado foi a diversidade de criaturas na superfície do
globo. Se todos fôssemos iguais, todos uma única espécie de criatura, já teríamos implorado pela
eutanásia há muito tempo. Felizmente, na natureza não existe uma coisa chamada igualdade de
habilidades, méritos, oportunidades ou recompensas. Todas as espécies de animais que ainda estão
vivas — deixemos de lado coisas como as formigas — são intensamente individualistas, graças
sejam dadas a Deus. De outra maneira, morreríamos de aborrecimento, ou nos transformaríamos em
autômatos. Mesmo os esgana-gatas, que, numa primeira inspeção, parecem muito uns com os outros;
mesmo entre eles há gênios e idiotas, todos competindo pelos bocados de comida, e são os gênios
que a conseguem. Havia um homem que alimentava seus esgana-gatas colocando um jarro de vidro
dentro do aquário, com a comida lá dentro. Alguns deles descobriam o caminho depois de duas ou
três tentativas e se lembravam disso, enquanto outros, tanto quanto eu saiba ou me importe, ainda
estão tentando. Se não fosse assim, seria terrível contemplar a Eternidade, porque estaria
desprovida de diferenças e, portanto, de mudanças.
— Nada disso está em questão. Supõe-se que estejamos discutindo a guerra.
— Muito bem.
— Rei — perguntou o mago —, já pode enfrentar os gansos ou precisa descansar? É impossível —
ele acrescentou entre parênteses — considerar o assunto razoavelmente enquanto não dispuser de
todos os fatos.

O velho disse:

— Acho que preciso descansar. Já não sou mais tão jovem, a despeito de sua massagem, e vocês
têm insistido para que eu aprenda muitas coisas em pouco tempo. Podem me dar uns minutinhos?
— Certamente. As noites são longas. Ouriço, molhe este lenço com vinagre e o coloque na cabeça

dele. Pronto, coloque os pés numa cadeira e feche os olhos. Agora todo mundo deve ficar quieto e
lhe dar espaço.

Assim os animais ficaram quietos como camundongos, cutucando um ao outro quando tossiam, e o
Rei, com olhos fechados e uma sensação de gratidão, mergulhava em seus próprios pensamentos.

Eles estavam pressionando muito. Era difícil aprender tudo numa noite só, e ele era apenas humano,
assim como idoso.

Talvez, afinal, a atormentada pessoa que tinha sido trazida da tenda em Salisbury não devesse
nunca ter sido a escolha de Merlin.

Tinha sido uma criança comum, apesar de amorosa, e estava longe de ser um gênio. Talvez, afinal,
toda a nossa longa história tenha sido sobre um cavalheiro idoso e confuso, que estaria melhor em
Cranford ou no campo de golfe do texugo, cuidando do críquete da aldeia ou da apresentação do
coral.

Havia algo sobre o que ele queria pensar. Seu rosto, com os olhos empapuçados, há muito deixara
de ser como o de um garoto. Parecia cansado, e era o Rei: isso fazia os outros o olharem com
seriedade, com medo e pena.

Eles eram bons e gentis, ele sabia. Eram pessoas cujo respeito ele valorizava. Mas o problema
deles não era o problema humano. Estava bom para eles, que já tinham resolvido suas questões
sociais antes mesmo de o homem aparecer na Terra, agora deliberarem sabiamente em seu feliz
Colégio da Vida. Aquela benevolência, com vinho e lareira e a confiança de um em relação aos
demais, era mais fácil para eles do que lhe era seu triste trabalho de instrumento deles.

Com os olhos fechados, o velho Rei deslizou de volta ao mundo real de onde tinha vindo, a esposa
raptada, seu melhor amigo banido, seus sobrinhos assassinados, seu filho em seu pescoço. O pior
era o impessoal: que todos seus semelhantes estivessem nisso. Era realmente verdade que o homem
era feroz, como os animais tinham dito. Eles podiam dizer isso abstratamente, até mesmo com um
certo júbilo dialético, mas para ele era o concreto: ele é que tinha que viver no meio dos
brutamontes de carne e osso. Ele mesmo era um deles, cruel e bobo como eles, e ligado a eles por
esse estranho continuo da consciência humana. Era um inglês, e a Inglaterra estava em guerra. Por
mais que a odiasse, ou desejasse interrompê-la, ela estava imbricada no real mas intangível mar de
sentimentos ingleses que não podia controlar. Ir contra isso, lutar contra o mar, era mais do que
seria capaz de enfrentar novamente.

E ele tinha trabalhado toda sua vida. Sabia que não era um homem esperto. Guiado pela
consciência daquele velho cientista que tinha amarrado sua alma na juventude, atormentado e
consumido, sobrecarregado como Sinbad, roubado de si mesmo e exigido impiedosamente pelo
trabalho abstrato, ele labutara por Gramarye desde antes que pudesse se lembrar. Nem sequer
compreendera completamente o que estava fazendo, besta de carga seguindo a trilha. E sempre,
agora ele sabia, Merlin estava por trás dele — aquele velho e impiedoso crente — e o homem na
frente: feroz, estúpido, não político.

Eles queriam, agora percebia, que ele voltasse ao trabalho: fazer tudo pior, e mais. Justo quando
ele tinha desistido, justo quando estava chorando e derrotado, justo quando o velho boi tinha


desabado no sulco, eles tinham vindo outra vez para levantá-lo. Tinham vindo para ensinar mais
uma lição, e mandar que prosseguisse.

Mas ele jamais tivera uma felicidade própria, nunca tivera a si mesmo: nunca desde que era um
menino na Floresta Sauvage. Não foi justo terem roubado tudo dele. Eles o tinham feito como o
pintassilgo dourado cego do qual falavam, que tinha que cantar para o homem até arrebentar o
coração, mas sempre cego.

Ele sentia, agora que o tinham tornado mais novo, a intensa beleza do mundo que lhe negaram. Ele
queria ter alguma vida; deitar na terra e sentir seu cheiro. Olhar para o céu como anthropos, e se
perder nas nuvens. De repente soube que ninguém, vivendo no mais remoto e estéril penhasco do
oceano, podia se queixar da paisagem maçante enquanto pudesse levantar os olhos. No céu havia
uma paisagem nova a cada minuto, e em cada poça dos rochedos marinhos, um novo mundo. Ele
queria tempo livre para viver. Não queria ser mandado de volta para puxar, de olhos baixos, o
enfadonho jugo. Ainda não era realmente velho, mesmo agora. Talvez fosse capaz de viver mais
uns dez anos — mas anos ao sol, anos sem cargas, anos com os pássaros cantando como ainda
cantavam, sem dúvida, embora tivesse deixado de notá-lo até que os animais o fizessem se lembrar.

Por que teria que voltar ao Homo ferox, provavelmente para ser morto por aqueles que tentava
ajudar, e se não, com certeza, exercer seu ofício até o fim da vida, quando podia abdicar do
trabalho? Podia sair agora, direto do outeiro, e jamais ser visto. Os monges da Tebaida, os santos
primitivos na Skellig Michael: essas pessoas afortunadas tinham escapado do homem, para uma
natureza rodeada de paz. E era isso que ele queria, descobriu, mais que qualquer outra coisa —
apenas Paz. Mais cedo naquela noite ele desejara a morte, e estava pronto a aceitá-la; mas agora
eles tinham deixado que vislumbrasse a vida, a velha felicidade e as coisas que ele amava. Eles
tinham revivido, cruelmente, sua meninice. Ele queria ser deixado só, não ter deveres como um
menino, retirar-se talvez para um claustro, ter tranqüilidade para seu próprio e velho coração.

Mas eles o despertaram com palavras, suas armas cruéis e brilhantes.

— Agora vamos, Rei. Temos que ver os gansos, antes que a noite termine.
— Está se sentindo melhor?
— Alguém viu a poção mágica?
— Você parece cansado.
— Toma um gole de vinho antes de ir.

XII


O lugar onde ele estava agora era absolutamente liso. No mundo humano raramente vemos
superfícies lisas, pois as árvores e casas e sebes dão um perfil ondulado à paisagem. Mesmo a
grama estende a miríade de suas lâminas. Mas aqui, no ventre da noite, a lama molhada, ilimitada,
era tão lisa quanto um pudim negro. Se fosse areia molhada, mesmo isso, teria aquelas pequenas
marcas de ondas, como o palato da boca.

Nessa enorme vastidão lisa, vivia um elemento — o vento. Pois o vento era um elemento. Era uma
dimensão, um poder da escuridão. No mundo humano, o vento vem de algum lugar e vai para outro
e, nessa caminhada, passa por lugares — árvores ou ruas ou cercas-vivas. Este vento vinha de
nenhum lugar. Passava pela planura de nenhum lugar, até nenhum outro. Horizontal, sem ruído,
exceto por uma ressonância tangível, seu peso dimensional assombroso que se estendia pela lama.
Podia ter sido traçado com uma régua. Sua titânica linha cinzenta era inamovível e sólida. Você
podia pendurar nele um guarda-chuva, e ele ali ficaria pendurado.

O Rei, rosto voltado para esse vento, sentia-se como não criado. Exceto pela solidez molhada sob
seus pés palmípedes, vivia no nada — um nada sólido, como o caos. Suas sensações eram as de um
ponto geométrico, existindo misteriosamente na menor distância entre dois pontos; ou as de uma
linha desenhada numa superfície plana que tivesse comprimento, largura, mas nenhuma magnitude.
Nenhuma magnitude! Era a própria essência da magnitude. Era energia, corrente, força, direção,
uma torrente do mundo sem vibração mas constante, no limbo.

Fronteiras tinham sido colocadas nesse purgatório profano. Longe ao leste, talvez a uns dois
quilômetros de distância, havia uma inquebrantável parede de som. Ela oscilava um pouco,
parecendo se expandir e se contrair, mas era sólida. Era ameaçadora, desejosa de vítima: pois era

o imenso, o implacável oceano.
Cerca de três quilômetros a oeste havia três pontos de luz formando um triângulo. Eram as fracas
lamparinas das cabanas de pescadores, que tinham se levantado cedo para pegar a maré nos canais
complicados do pântano de sal. Suas águas às vezes corriam na direção contrária à do oceano.
Essas eram as características completas de seu mundo — o ruído do mar e essas três pequenas
luzes; escuridão, planura, vastidão e umidade; e, no golfo da noite, a corrente do golfo.

Quando a luz do dia começou a aparecer, ele descobriu, por premonição, que estava de pé no meio


de uma multidão de indivíduos como ele. Estavam pousados na lama, que agora começava a ser
perturbada pelo mar raivoso, baixo, que retornava, ou então já estavam correndo na água,
despertados por ela, mas fora da perturbação da arrebentação. Os que estavam pousados eram
grandes chaleiras, os bicos enfiados debaixo das asas. Os que nadavam, às vezes mergulhavam as
cabeças e as sacudiam. Alguns, despertando na lama, levantavam-se e sacudiam vigorosamente as
asas. O silêncio profundo era quebrado pelo tagarelar de uma conversa. Havia cerca de
quatrocentos deles na vizinhança cinzenta — criaturas muito bonitas, os Gansos Selvagens de testa
branca, os quais, uma vez vistos de perto, homem algum jamais esquece.

Muito antes de o Sol aparecer, todos já estavam se preparando para o vôo. Grupos familiares
constituídos no ano anterior iam se reunindo em bandos, e esses bandos por sua vez se uniam a
outros, possivelmente sob o comando de um avô, ou de um líder proeminente do bando. Quando os
grupos se completavam, surgia um leve tom de excitação nas falas. Começavam a mover as cabeças
de um lado para o outro, às sacudidelas. Então, voltando-se para o vento, de repente estavam todos
voando juntos, catorze ou quarenta de uma vez, com as amplas asas escavando a escuridão e um
grito de triunfo nas gargantas. Depois giravam, subindo rapidamente, e desapareciam de vista.
Vinte metros acima e já desapareciam na escuridão. As primeiras saídas não vocalizavam muito.
Tendiam a ser taciturnos antes de o Sol nascer, fazendo apenas observações ocasionais, ou gritando
seu aviso de alarme de uma nota só ao perceberem alguma ameaça. Escutando o aviso, todos
subiam verticalmente para o céu.

Ele começou a se sentir incomodado. Os esquadrões nas sombras ao seu redor, muito próximos a
ele, largando a cada minuto, o contagiavam. Começou a ficar inquieto e a querer seguir o exemplo
deles, mas estava acanhado. Talvez os grupos familiares, pensou, se ressentissem com sua intrusão.
E não queria voar sozinho. Queria se juntar e desfrutar do exercício do vôo matinal, que
evidentemente era um prazer. Havia camaradagem, disciplina livre e joie de vivre.

Quando o ganso que estava a seu lado estendeu as asas e saltou, ele automaticamente fez o mesmo.
Uns oito dos que estavam perto tinham batido os bicos e ele os imitara como se aquilo fosse
contagioso, e agora, com os mesmos oito, se viu asa a asa subindo horizontalmente pelo ar. No
momento em que deixou a terra, o vento tinha desaparecido. Sua agitação e brutalidade sumiram,
como se cortadas por uma faca. Ele estava dentro dele, e em paz.

Os oito gansos estenderam sua formação de linha, com espaços regulares entre si, ele no final.
Tomaram o rumo leste, onde estavam as luzes fracas e agora, diante deles, a bola do Sol começava
a aparecer. Uma explosão de laranja-vermelho rompeu a escuridão do banco de nuvens para além
da terra. O resplendor se espalhou, o pântano salgado tornando-se cada vez mais visível abaixo.
Ele o via como uma charneca ou pântano de características indefinidas que se tornara marítimo por
acidente — suas urzes, ainda parecendo urzes, tendo se associado com algas marinhas até se
tornarem urzes salgadas e encharcadas, com frondes escorregadias. Os riachos que deviam correr
pela charneca eram de água do mar sobre lama azulada. Havia redes compridas aqui e ali,
levantadas em postes, nas quais gansos distraídos podiam se chocar. Esses, ele agora se dava
conta, devem ter sido a origem dos avisos. Dois ou três marrecos pendiam de uma delas, e bem
longe, a leste, um homem, que parecia uma mosca, laborava em cima da lama, com diminuta


persistência, para encher sua bolsa.

O Sol, quando se levantou, tingiu de chamas o mercúrio dos riachos e a própria lama brilhante. Os
maçaricos, que piavam suas queixas fúnebres desde muito antes de a luz aparecer, saíram voando
do meio das ervas daninhas. Os patos selvagens, que tinham dormido na água, chegavam piando
suas notas duplas, como os silvos de um foguetinho. Os marrecos, penosamente, levantavam vôo da
terra, contra o vento. As narcejas corriam e se acotovelavam como camundongos. Uma nuvem de
pequenas narcejas do norte, mais compactas que os estorninhos, giravam no ar com o ruído de um
trem. Aos gritos animados, a guarda negra dos corvos subiu dos pinheiros das dunas. Pássaros
costeiros de todos os tipos povoavam a linha da maré, enchendo-a de atividade e beleza.

O alvorecer, o alvorecer marinho e a maestria do vôo coordenado tinham beleza tão intensa que ele
quis cantar. Todos os pesares de seus pensamentos sobre o homem, os miseráveis desejos de paz
que o tinham assediado nos últimos tempos na Sala do Acordo, todos saíram dele naquele momento
na glória de suas asas. Queria cantar um coro à vida e, já que mil gansos estavam a seu lado no ar,
não teve que esperar muito. As linhas dessas criaturas, ondulantes como a fumaça nos céus ao
saudar o nascer do Sol, cantavam e riam ao mesmo tempo. Cada esquadrão tinha uma voz diferente,
alguns na pândega, outros triunfantes, outros sentimentais ou alegres. A abóbada da alvorada se
enchia de arautos, e isso é o que cantavam:

Tu, mundo que giras, deslizando sob nossas asas aladas,
Levanta o venerável Sol para saudar os favoritos da alvorada.
Veja, em cada peito, o escarlate e o vermelhão,
Escuta, de cada garganta, o clarim e o carrilhão.
Escuta as selvagens linhas em formações vibrantes,
Trompetes e caçadores celestiais, corcéis da aurora brilhante.
Livre, livre; longe e longe; e belo em asa ondulante,
Chega o ganso de testa branca com seu som cantante.



XIII


Ele se viu em um campo comum, em plena luz do dia. Seus companheiros de vôo pastavam à sua
volta, arrancando a relva com puxões laterais dos bicos pequenos e flexíveis, inclinando os
pescoços em voltas abruptas, bem diferentes das curvas graciosas do cisne. Sempre, enquanto se
alimentavam, um deles ficava de guarda, o pescoço levantado como se fosse uma cobra. Haviam se
acasalado nos meses de inverno, ou então nos invernos anteriores, assim tinham a tendência de se
alimentar aos pares dentro da família e do esquadrão. A jovem fêmea, sua vizinha na planura de
lama, estava em seu primeiro ano. Mantinha um olhar inteligente em sua direção.

O velho que tinha se lembrado de sua juventude, observando-a secretamente, não pôde evitar achá-
la bela. Até mesmo sentiu ternura por seu peito penugento; por sua compleição compacta e roliça e
o conjunto de sulcos no pescoço. Esses sulcos, ele verificou com os cantos dos olhos, eram o
resultado de uma diferença na plumagem. As penas eram côncavas, o que separava umas das outras,
formando uma textura de cristas que ele achou graciosa.

Naquele instante a jovem gansa lhe deu um empurrão com o bico. Ela estava de sentinela.

— Agora é a sua vez — disse, abaixou a cabeça sem esperar resposta e, no movimento, começou a
pastar. Para se alimentar, ela saiu de perto dele.
Ele ficou de sentinela. Mas não sabia o que estava vigiando, nem conseguia perceber inimigo
algum, só as moitas de capim e seus companheiros bicando. Mas não estava chateado de ficar de
sentinela para eles. Surpreendeu-se ao constatar que não lhe aborrecia aparentar masculinidade,
caso a dama o estivesse observando. Era ainda muito inocente, depois de todos seus anos, para
saber que ela certamente estaria fazendo isso.

— O que você está fazendo? — ela perguntou, passando por ele depois de uma meia hora.
— Estou de guarda.
— Então, continue — ela disse com um risinho, ou seria um grasnido? — Você é bobo.
— Por quê?
— Você sabe.
— Honestamente — ele disse — não sei. Estou agindo errado? Não compreendo.

— Bique o seguinte. Você já está aí pelo menos o dobro do tempo que lhe toca.
Fez como ela tinha dito, e o ganso adiante dele assumiu o posto, e então ele foi comer ao lado dela.
Eles mordiscavam, observando um ao outro com os olhos redondos.

— Você acha que eu sou estúpido — disse ele timidamente, confessando pela primeira vez a um
animal o segredo de sua verdadeira espécie —, mas isso é porque não sou um ganso. Nasci
humano. Na verdade este é o meu primeiro vôo com o povo cinza.
Ela ficou levemente surpresa.

— Não é comum — disse. — Os humanos geralmente experimentam os cisnes. Os últimos que
andaram por aqui foram os Filhos de Lir. De qualquer forma, acho que todos somos anseriformes.
— Já ouvi falar dos Filhos de Lir.
— Eles não gostaram. Eram definitivamente nacionalistas e religiosos, sempre circulando ao redor
de uma das capelas na Irlanda. Pode-se dizer que mal notaram os outros gansos.
— Eu estou gostando.
— Achei que sim. Por que o mandaram para cá?
— Para minha educação.
Os dois pastaram em silêncio, até que suas próprias palavras o lembraram de algo que queria
perguntar.

— As sentinelas — perguntou. — Estamos em guerra? Ela não compreendeu a palavra.
— Guerra?
— Estamos combatendo pessoas?
— Combatendo? — ela perguntou em dúvida. — As vezes, os machos combatem por suas fêmeas e
coisas assim. Mas é claro que não se derrama sangue, é só uma rixa, para saber quem é o melhor. E
isso que você quer dizer?
— Não. Quero dizer combater contra exércitos, contra outros gansos, por exemplo.
Ela estava se divertindo.
— Que ridículo! Você quer dizer um bando de gansos ficar se atracando ao mesmo tempo. Seria
divertido ver.
Seu tom o surpreendeu.

— Divertido vê-los se matando?
— Se matando? Um exército de gansos matando uns aos outros?
Ela começou a compreender a idéia, devagar e cheia de dúvidas, com uma expressão de desgosto
no rosto. Quando compreendeu, saiu de perto. Foi para outra parte do campo em silêncio. Ele a
seguiu, mas ela lhe deu as costas. Dando voltas para captar seu olhar, ficou surpreendido com o
desgosto que viu — como se ele tivesse feito alguma sugestão obscena. Ele disse, queixoso:


— Desculpe-me, você não compreende.
— Pare de falar sobre o assunto.
— Desculpe-me.
Depois acrescentou, aborrecido:
— Uma pessoa pode perguntar, acho. Parece uma pergunta natural sobre as sentinelas.
Mas ela estava realmente zangada, quase às lágrimas.
— Pare com isso de uma vez! Que mente horrível você deve ter! Não tem o direito de dizer essas
coisas. E claro que existem sentinelas. Aí estão os falcões e as águias, não é? E as raposas e os
arminhos e os humanos com suas redes? Todos são inimigos naturais. Mas que tipo de criatura
pode ser tão baixa a ponto de sair em bandos para assassinar outros de seu próprio sangue?
Ele pensou: é uma pena que não existam grandes animais predadores dos homens. Se houvesse
dragões e pássaros rocas em número suficiente, talvez a humanidade voltasse seu poder contra eles.
Infelizmente os predadores dos homens eram os micróbios, que são pequenos demais para serem
considerados.

Depois, alto, ele disse:

— Estava tentando aprender.
Ela se abrandou, esforçando-se para ser compreensiva. Se pudesse, gostaria de ter uma mente
aberta e, na verdade, tinha tendências literárias.

— Você tem um longo caminho pela frente.
— Então você precisa me ensinar. Tem que me contar sobre o povo dos gansos, para que eu
desenvolva minha mente.
Ela ficou em dúvida, depois do choque que ele lhe dera, mas seu coração não tinha malícia. Como
todos os gansos, ela era tão gentil que podia perdoar facilmente. Logo ficaram amigos.


O homem, o orgulhoso homem, esta aqui no século vinte, complacentetnente acreditando que a
raça "progrediu" no curso de miseráveis mil avôs, e se ocupando de explodir seus irmãos em
pedaços.

— O que você gostaria de saber depois?
Ele descobriu, nos dias seguintes, pois passaram muito tempo juntos, que Lyó-lyok era uma pessoa
encantadora. Ela lhe disse seu nome logo no começo, e tinha lhe aconselhado que escolhesse um
para si. Eles tinham escolhido Kee-kwa, um título prestigioso tirado dos raros gansos de peito
vermelho que conhecera na Sibéria. Depois disso, quando já se tratavam pelo nome, ela se
empenhou com afinco na sua educação.

A mente de Lyó-lyok não se dedicava somente ao flerte. Ela assumia um interesse racional pelo
amplo mundo, da maneira prudente que a caracterizava e, apesar de ficar intrigada pelas perguntas
dele, aprendeu a não se chocar com elas. A maior parte dessas perguntas estava baseada na sua
experiência com as formigas, e por isso é que a intrigavam.

Ele queria saber sobre nacionalismo, sobre os controles estatais, liberdade individual, propriedade
e coisas assim: as coisas cuja importância tinham sido mencionadas na Sala do Acordo, ou que ele
tinha notado no formigueiro. Como a maior parte dessas coisas tinha que primeiro ser explicada a
ela, antes que ela pudesse se explicar, eram tópicos interessantes para conversar a respeito. Eles
conversavam amigavelmente, e, na medida em que sua educação prosperava, o velho surpreso


começou a sentir uma espécie de humildade profunda e mesmo afeição pelos gansos — muito
parecidos com os sentimentos que Gulliver deve ter sentido entre os cavalos.

Não, ela lhe explicava: não havia controles estatais entre as pessoas cinzas. Eles não tinham posses
comunitárias, nem reclamavam qualquer parte do mundo. O adorável globo, pensavam, não podia
pertencer a ninguém, senão a si mesmo, e todos os gansos tinham acesso às suas matérias-primas.
Tampouco havia disciplina estatal imposta aos pássaros individualmente. A história de como uma
formiga ao regressar podia ser condenada à morte se não vomitasse um pouco de comida quando
solicitada simplesmente a revoltou. Entre os gansos, disse ela, todos comiam o tanto que pudessem
agüentar e, se avançassem no território de um indivíduo que tivesse descoberto um trecho suculento
de grama, este adequadamente os bicaria. E sim, disse ela, eles tinham propriedade privada além
da comida — um casal voltava sempre para o mesmo ninho, ano após ano, ainda que tivessem
viajado milhares de quilômetros entre uma e outra ocasião. O ninho era particular, assim como a
vida familiar. Os gansos, ela explicou, não eram promíscuos em suas relações amorosas, salvo na
adolescência, o que, ela acreditava, era como deveria ser. Quando eles se casavam, casavam para

o resto de suas vidas. A política deles, pelo menos na medida em que tinham alguma, era patriarcal
ou individualista, baseada na livre escolha. E é claro que jamais faziam guerra.
Ele lhe perguntou sobre o sistema deles de liderança. Era óbvio que certos gansos eram aceitos
como líderes — geralmente eram cavalheiros veneráveis cujos peitos eram muito listrados — e
que esses líderes voavam na frente da formação. Lembrando das rainhas formigas que, como os
Bórgias, assassinavam umas às outras pelos postos mais altos, ele perguntou como os capitães dos
gansos eram eleitos.

Eles não eram eleitos, disse ela, pelo menos de maneira formal. Eles simplesmente se tornavam
capitães.

Quando ele a pressionou mais sobre o assunto, ela disparou uma longa fala sobre migração. Foi
assim que ela colocou:

— Suponho que o primeiro ganso que voou da Sibéria até o Lincolnshire e voltou para lá — disse
ela — deve ter criado sua família na Sibéria. Então, quando o inverno chegou e foi necessário
encontrar mais comida, deve ter tentado refazer o caminho pela rota que só ele conhecia. Deve ter
sido seguido por sua família crescente, ano após ano; foi seu piloto e almirante. Quando chegou seu
momento de morrer, obviamente os melhores pilotos eram seus filhos mais velhos que tinham
percorrido a rota com ele mais vezes do que os outros. Naturalmente os filhos mais novos e os
recém-emplumados estariam inseguros quanto ao caminho e, portanto, devem ter ficado
agradecidos por ter alguém para seguir. Talvez, entre os filhos mais velhos, houvesse alguns
reconhecidos por todos como estúpidos, e a família dificilmente confiaria neles.
"É assim que se escolhe um almirante — disse ela. — Pode ser que Wink-wink no outono venha até
nossa família e diga: "Desculpem-me, mas será que por acaso vocês têm um piloto confiável? O
pobre vovô morreu na época das cerejas, e o Tio Onk não é eficiente. Estamos procurando alguém
a quem seguir". E aí nós diremos: "O Tio-avô vai ficar feliz se vocês pegarem carona conosco.
Mas, vejam bem, não nos responsabilizamos se as coisas não forem boas". "Muito obrigado", ele
dirá. "Tenho certeza de que podemos confiar no Tio-avô. Vocês se importam se eu tocar nesse


assunto com os Honks, que, fiquei sabendo, estão com a mesma dificuldade?". "De maneira
nenhuma."

"E assim — explicou ela — foi como o Tio-avô se tornou um almirante".

— É uma boa maneira.
— Olha só as divisas dele — ela disse, com respeito, e ambos deram uma olhada no imponente
patriarca, cujo peito realmente era cheio de listras negras, tal como as fitas douradas na manga dos
almirantes.
Em outra ocasião ele perguntou sobre as alegrias e ambições dos gansos. Ele contou, se
desculpando, que entre os seres humanos uma vida sem ações espetaculares, ou mesmo sem guerra,
tenderia a ser vista como tediosa.

— Os humanos — ele disse — fazem para si mesmos grandes quantidades de ornamentos, riquezas,
luxos e prazeres e assim por diante. Isso lhes dá um objetivo na vida. Também se considera que
leva à guerra. Mas receio que caso se vissem reduzidos a um mínimo de posses, com o que vocês
gansos ficam satisfeitos, eles ficariam infelizes.
— Com certeza ficariam. Os cérebros deles são formados de maneira diferente dos nossos. Se você
tentasse fazer os humanos viverem exatamente como os gansos, seriam tão infelizes quanto seriam
os gansos se você tentasse fazê-los viver como os humanos. Isso não quer dizer que uns não possam
aprender um pouco com os outros.
— Começo a achar que os gansos não podem aprender muito conosco.
— Nós estamos há milhões de anos na Terra mais que vocês, pobres criaturas, portanto vocês não
podem ser considerados culpados.
— Mas me conte sobre seus prazeres, suas ambições ou objetivos, seja lá como vocês chamem —
pediu ele. — Certamente são muito limitados?

Ela riu com isso.

— Nosso principal objetivo na vida é estarmos vivos — ela respondeu, divertida. — Acho que
vocês humanos devem ter se esquecido disso. Nossos prazeres, entretanto, se forem comparados
com ornamentos e riquezas, não são tão aborrecidos quanto parecem. Temos uma canção sobre
eles, chamada Dádiva da vida.
— Cante-a.
— Farei isso, num minuto. Mas devo dizer, antes de começar, que sempre me pareceu uma pena
que uma grande dádiva tenha sido deixada de fora. Supõe-se que as pessoas na canção estão
cantando sobre as alegrias dos gansos, e ninguém menciona viajar. Acho isso uma bobagem.
Viajamos mil vezes mais que os humanos, e vemos tantas coisas interessantes, e temos mudanças
deliciosas e novidades o tempo todo, que não compreendo como o poeta pode ter se esquecido
disso. Ora, minha avó foi até Micklegarth; tive um tio que foi até Burma, e um tio-bisavô dizia que
tinha visitado Cuba.
Como o Rei sabia que Micklegarth era o nome escandinavo para Constantinopla, mas mal tinha


escutado T. natrix falar de Burma e Cuba ainda não tinha sido inventada, ficou realmente
impressionado.

— Deve ser uma maravilha viajar — disse ele.
Ele pensou nas adoráveis asas, e nas canções de vôo, e no mundo se derramando, sempre novo e
novo enquanto eles voavam.

— Esta é a canção — disse ela sem mais preâmbulos, e começou a cantá-la graciosamente no tom
de um ganso selvagem.
A Dádiva da Vida


Ky-yow respondeu: a dádiva da vida é a saúde.
Pé de pato, Pena lisa, Pescoço flexível, Olho limpo:
Esses têm a riqueza do mundo.
Velho Ank respondeu: a honra é toda nossa.
Desbravador de caminhos, Provedor do povo, Planejador e Sábio comandante:
Estes ouviram a chamada.
Lyó-lyok, a alegre, disse: Amor tive por vida.
Penas macias, Passos suaves, Ninho quente e Caminhar na linha:
Esses vivem para sempre.
Aahng-ung era por Apetite. Ah, ele disse:
Comer! Comedor de gororoba, Rasgador de grama, Espreitador de Restolho,
Enchedor de papo: Esses batem as asas.
Wink-wink louva a Camaradagem, a livre e justa Fraternidade.
Alinhem-se à popa, Escalonem, Ponta a frente, Sobre as nuvens:
Estes aprendem a Eternidade.
Mas eu escolhi as fortes cadências que ficam no ar.
Música de trompete, Canções de risos, Coração épico, Imitador do mundo.
Esse é Lyow, o cantor.


Era uma bela canção, de certa forma, pensou ele, cantada com suave gravidade. Ele começou a
contar nos dedos as dádivas que ela havia mencionado — mas como só tinha três na frente e uma
espécie de calombo atrás, teve que dar duas voltas. Viagem, saúde, honra, amor, apetite,
camaradagem, música, poesia e, como ela tinha declarado, o próprio fato de estar vivo.

Não parecia ser uma lista tão má assim na sua simplicidade, particularmente porque ela poderia ter
acrescentado algo como Sabedoria.


XIV


Mas havia uma excitação crescente no bando. Os jovens gansos flertavam abertamente ou se
reuniam em grupos para discutir sobre seus pilotos. Também faziam brincadeiras, como crianças na
expectativa de uma festa. Um desses jogos consistia em fazer um círculo, enquanto jovens machos,
um depois do outro, iam até o meio com os pescoços esticados, fingindo assobiar. Quando estavam
no meio do círculo corriam o último pedaço batendo as asas. Mostravam, assim, como eram
valentes e que almirantes excelentes seriam quando crescessem. Também começou a se espalhar
entre eles o estranho hábito de sacudir os bicos para os lados, que era comum antes do vôo. Os
anciãos e sábios, que conheciam as rotas de migração, também começaram a ficar inquietos.
Ficavam atentos às formações de nuvens, avaliando o vento e sua força, e de onde estavam vindo.
Os almirantes, cheios de responsabilidades, desfilavam pelo tombadilho com passadas imponentes.

— Por que estou inquieto? — ele perguntou. — Por que estou com essa sensação no meu sangue?
— Espere e verá — disse ela, misteriosamente. — Amanhã, talvez, ou depois de amanhã...
E seus olhos assumiram uma expressão sonhadora, um olhar ao longe e de muito tempo atrás.

Quando o dia chegou, havia uma diferença entre o pântano salgado e a lama da margem. O homem
que parecia uma formiga caminhando pacientemente todas as manhãs entre suas grandes redes, com
as marés bem gravadas na cabeça — pois um erro ali significava a morte certa —, ouviu um clarim
distante no céu. Já não viu milhares nas planícies de lama, e não viu nenhum nos pastos, de onde
viera. A seu modo, era um sujeito simpático — pois ficou solenemente parado e tirou o chapéu de
couro da cabeça. Ele fazia isso religiosamente todas as primaveras, quando os gansos selvagens o
deixavam, e todos os outonos, quando via o primeiro bando regressar.

Quanto tempo se leva para cruzar o Mar do Norte? Num vapor, são dois ou três dias, muitas horas
passando por cima das águas viscosas. Mas para os gansos, para os marinheiros do ar, para as
cunhas angulares que fazem retalho das nuvens, para os cantores dos céus com o vento por trás —
uns cento e dez quilômetros por hora atrás de outros cento e dez —, para esses misteriosos
geógrafos — a quase cinco quilômetros acima, dizem, com os cúmulos a seus pés em vez de água
—, para eles a coisa era diferente.

O Rei jamais tinha visto seus amigos tão alegres. As canções que cantavam, hora após hora,
estavam cheias de alegria. Algumas eram vulgares, que deixaremos para transcrever outra hora,
outras eram sagas belas para além de qualquer comparação, outras até leves. Uma boba que o


divertiu era assim:

Zanzamos pelos céus ao som de donk
E baixamos sobre os pastos com um plonk
Hank-hank, Hink-hink, Honk-honk.
Baixamos o pescoço, soltando um plink
Conto a água pinga na pia com um tlink
Honk-honk, Hank-hank, Hink-hink.
Vamos comer em grupo fazendo hank
Rasgando a relva com um yank
Hink-hink, Honk-honk, Hank-hank.
Mas Hink ou Honk gostamos todos de Plonk,
E Honk ou Hank gostamos todos do yank
E Hank ou Hink fazemos todos umyink .
Para Honk, ou Hank ou Hink!


Uma sentimental era assim:

Selvagem e livre, selvagem e livre.
Tragam meu ganso de volta para mim, para mim.


E uma vez, quando passavam por uma ilha rochosa habitada por gansos-bernacas, que pareciam
solteironas com luvas de couro preto, chapéus de cozinheiro cinzas e contas azeviche, todo o
esquadrão disparou, escarnecendo:

Bernaca Branta se espoja na lama,
Bernaca Branta se espoja na lama,
Bernaca Branta se espoja na lama,
Enquanto voando vamos nós
Glória, glória, vamos lá, querida.
Glória, glória, vamos lá, querida.
Glória, glória, vamos lá, querida.
Vara o Pólo Norte voando juntos.


Mas não adianta tentar falar sobre a beleza. Era simplesmente que a vida era bela além de qualquer
crença, e que era um tipo de alegria que tem que ser vivida.


Às vezes, quando desciam da altura dos cirros para apanhar melhores ventos, viam-se no meio de
rebanhos de cúmulos, imensas torres moldadas com vapor, tão brancas quanto roupa recém-lavadae sólidas como merengues. Às vezes, uma dessas florescências do céu, esses salpicos brancos de
neve de um gigantesco Pégaso, se estenderiam diante deles por quilômetros e quilômetros. Eles
estabeleciam o curso em direção a elas, observando como ficavam cada vez silenciosa e
imperceptivelmente maiores, um crescimento imóvel — e então, quando estavam quase nelas,
quando estavam prestes a chocar os narizes contra aquela massa aparentemente sólida, o sol
obscurecia. Espectros de bruma subitamente se moviam como serpentes do ar, girando ao redor
deles por um segundo. A umidade cinza os envolvia, e o sol, moedinha de cobre, se esvanecia. As
asas próximas às suas próprias asas sombreavam o nada, até que cada pássaro era um som
solitário, uma presença depois da não-criação. E lá pairavam no nada não mapeado, aparentemente
sem velocidade, sem direita nem esquerda, sem topo nem fundo, até que então, de repente, a
moedinha de cobre brilhava e as serpentes encolhiam. Então, num instante, estavam novamente no
mundo adornado de jóias — o mar abaixo deles como turquesa e todos os belos lugares do paraísorecém-criados, com o orvalho do Éden ainda pairando.

Um dos marcos da migração chegava quando passavam uma falésia sobre o oceano. Havia outros
marcos quando, por exemplo, a linha de vôo cruzava com uma fila indiana de cisnes que iam para
Abisco, fazendo um ruído que parecia o latido de cães abafado por um lenço, ou quando
ultrapassavam uma coruja chifrada avançando, intrépida, sozinha, entre cujas penas quentes da
costa, dizia-se, um pequeno filhote pegava carona. Mas a ilha solitária era o melhor. Era uma
cidade de pássaros. Todos chocando, todos discutindo e, no entanto, todos amistosos. No alto do
rochedo, onde a turfa curta era encontrada, uma miríade de mergulhões ocupava-se com suas tocas.
Abaixo deles, na Rua do Bico Afiado, os pássaros estavam tão próximos uns dos outros, e em
plataformas tão estreitas, que tinham de ficar de costas para o mar, segurando-se fortemente com as
patas. Na Rua das Alcas, abaixo daquela, as alcas mantinham seus rostos afilados, que pareciam
brinquedos, virados para cima, tal como os tordos quando estão chocando. Mais embaixo estavam
os Cortiços das Gaivotas-de-Bico. E todos os pássaros que, como os humanos, só punham um ovo
cada um estavam tão apertados que suas cabeças se entrelaçavam — e tinham tão pouco desse
nosso famoso espaço vital que, quando um novo pássaro insistia em pousar na saliência que já
estava lotada, um dos outros tinha que cair fora. Eram como uma multidão incontável de
vendedoras de peixe na maior banca de mercado do mundo, se metendo em brigas particulares,
comendo em sacos de papel, xingando os árbitros, ralhando com seus filhos e se queixando dos
maridos.

— Mexa um pouco para lá, titia — diziam. Ou:
— Saia do caminho, vovó.
— A danada da Flossie foi para lá e se sentou em cima dos pequenos.
— Guarde o caramelo no bolso e assoe o nariz.
— Ora, ora, se não é o tio Albert com a cerveja.
— Tem espaço para uma criança?

— Lá se foi tia Emma. Caiu da plataforma.
— Meu chapéu está no lugar?
— Droga, que confusão.
As espécies se mantinham mais ou menos juntas, mas não brigavam por isso. Aqui e ali, na Rua das
Alcas, via-se às vezes uma gaivota cinza sentada em uma saliência, decidida a manter seus direitos.
Havia talvez meio milhão deles e o barulho que faziam era ensurdecedor.

O Rei não podia deixar de pensar em como uma cidade humana de raças misturadas se arranjaria
numa situação assim.

Depois vinham os fiordes e ilhas da Noruega. Foi sobre uma dessas ilhas, aliás, que o grande W.

H. Hudson escreveu uma história verdadeira de ganso, que devia fazer as pessoas pensarem. Havia
um fazendeiro na costa, conta ele, cujas ilhas sofriam com as raposas — então ele colocou uma
armadilha para raposas em uma delas. Quando foi ver a armadilha no dia seguinte, descobriu que
um velho ganso selvagem fora capturado, obviamente um Grande Almirante, por causa da sua
dureza e das muitas divisas. Esse fazendeiro levou o ganso vivo para sua casa, cortou as pontas das
asas para que não voasse, amarrou suas pernas e o soltou com seus próprios patos e galinhas no
quintal. Ora, um dos efeitos da praga de raposas era que o fazendeiro tinha de trancar o galinheiro à
noite. Ele costumava juntá-las ao entardecer e, então, trancava a porta. Depois de um tempo,
começou a notar uma coisa curiosa: as galinhas já não precisavam ser reunidas; ficavam esperando
por ele na choça. Ele observou esse processo uma tarde, e viu que o potentado cativo assumira a
responsabilidade de reuni-las, o que descobrira com sua própria inteligência. Toda noite, na hora
de fechar, o velho almirante sagaz convocava seus companheiros domésticos, cuja liderança tinha
assumido, e prudentemente os reunia, com esforço próprio, no lugar adequado, como se tivesse
compreendido totalmente a situação. E os gansos selvagens livres, que haviam sido liderados por
ele, nunca mais pousaram na ilha — que anteriormente era um de seus abrigos — onde seu capitão
tinha sumido.
Finalmente, para além das ilhas, estava o pouso de destino do primeiro dia de viagem. Oh, sopro
de delícia e autocongratulação! Eles desabavam dos céus, deslizando de lado, fazendo acrobacias e
até mergulhos giratórios de nariz para baixo. Estavam orgulhosos de si mesmos e de seu piloto,
ansiosos pelos prazeres familiares que os aguardavam.

Percorriam o último trecho planando, com as asas curvadas para baixo. No último momento
cavavam o vento com elas, agitando-as vigorosamente. Depois — bump — estavam no chão.
Mantinham as asas acima da cabeça por um instante e logo as dobravam rápida e graciosamente.
Tinham cruzado o Mar do Norte.


XV


O pantanal siberiano, ao qual chegaram alguns dias depois, era uma concavidade de luz do Sol.
Suas montanhas ainda mantinham uma renda de neve que, quando se derretia, criava riachos que
escorriam como uma inundação de cerveja. Os lagos brilhavam sob nuvens de mosquitos e, entre as
bétulas anãs ao redor de suas margens, as renas amigáveis vagavam curiosamente, cheirando os
ninhos dos gansos, enquanto estes assobiavam na sua direção.

Lyó-lyok imediatamente começou a construir seu berçário, apesar de ainda estar solteira, e o Rei
teve tempo para pensar.

Ele não era um homem crítico, certamente não amargo. A traição à que fora submetido por sua raça
humana mal tinha começado a lhe pesar. Nunca tinha colocado nesses termos para si mesmo, mas a
verdade é que tinha sido traído por todos, até por sua própria esposa e por seu amigo mais antigo.
Seu filho era o menor dos traidores. Sua Távola tinha se voltado contra ele, ou pelo menos metade
dela, e da mesma maneira metade do país pelo qual labutara toda sua vida. Agora lhe pediam que
voltasse para servir aos homens da traição, e finalmente compreendia, pela primeira vez, que fazer
isso significava seu fim. Pois que esperança tinha ele entre a humanidade? Eles tinham assassinado,
quase invariavelmente, todas as pessoas decentes que lhes falaram desde o tempo de Sócrates.
Tinham até assassinado seu Deus. Qualquer um que lhes dissesse uma verdade se tornava objeto
legítimo de sua traição, e a sentença que Merlin tinha lhe imposto era a morte.

Mas ali, ele compreendia, entre os gansos, para os quais assassinato e traição eram obscenidades,
estava feliz e descansado. Ali havia esperança para uma pessoa com bom coração. Às vezes um
homem cansado, com vocação religiosa para se tornar monge, sentia o anseio ardente de ir para o
claustro, para um lugar onde poderia expandir sua alma como uma flor e crescer em direção à sua
idéia do bem. Era isso que o velho sentia com repentina intensidade, salvo que seu claustro era o
pântano inundado de Sol. Ele desejava liquidar o homem dentro de si, e se acomodar.

Se acomodar com Lyó-lyok, por exemplo — parecia-lhe que um espírito fraco podia fazer pior. Ele
começou a compará-la melancolicamente com as mulheres que tinha conhecido, nem sempre com
desvantagem. Ela era mais saudável, e jamais tivera os caprichos, humores ou histerias. Era tão
saudável quanto ele mesmo, tão forte e capaz no vôo. Não havia nada que ele pudesse fazer que ela
também não fizesse — assim, a comunidade de interesses seria perfeita. Ela era dócil, prudente,
fiel, conversadora. Era muito mais limpa que a maioria das mulheres, pois passava metade do dia


se alisando com o bico e a outra metade na água, e seu rosto não era desfigurado por nenhuma
mancha de maquiagem. Uma vez casada, não aceitaria outros amantes. Era mais bela que a média
das mulheres, pois suas formas eram naturais e não artificiais. Era graciosa e não gingava, pois
todos os gansos selvagens caminham graciosamente, e ele tinha aprendido a achar bela a plumagem
dela. Seria uma mãe amorosa.

Ele descobriu em seu velho coração um sentimento cálido por Lvó-lyok, mesmo se houvesse pouca
paixão. Admirava suas pernas vigorosas, com a saliência no alto, e seu bico limpo. Era serreado
como se tivesse dentes, e uma grande língua que parecia ocupar todo o espaço. Ele gostava dela
por nunca se apressar.

A preparação do ninho a encantava, o que o fez observar tudo com prazer. Não era um triunfo
arquitetônico, mas era o necessário. Meticulosamente, ela cuidou de escolher a relva para o forro,
e, depois que finalmente se decidiu, forrou a cavidade na turfa, que parecia ser feita de um papel
mata-borrão marrom úmido e amassado, com urze, liquens, musgos e lanugem do seu próprio peito.
Tudo ficou suave como uma teia. Ele tinha contribuído com um pouco de grama, como um presente,
mas o que trazia em geral tinha a forma errada. Ao arrancá-la, ele tinha acidentalmente descoberto

o maravilhoso universo do lodaçal sobre o qual caminhavam.
Pois era um mundo em miniatura, do mesmo tipo que dizem que os japoneses montam em vasos.
Mas nenhum jardineiro japonês jamais criou uma árvore anã mais parecida com uma verdadeira
como o é um ramo de urze, com seus nós regulares pelo tronco, como botoeiras. Ali, a seus pés,
havia florestas de árvores nodosas, com clareiras e paisagens. Havia a superfície de musgo
parecendo relva e uma camada abaixo de liquens. Havia troncos de árvores caídas pitorescamente,
e até uma estranha espécie de flor: um minúsculo pedúnculo verde-cinza, muito seco e quebradiço,
com uma bolha escarlate na ponta, como cera de lacre. Havia cogumelos microscópicos, só que
suas sombrinhas estavam viradas para baixo, como porta-ovos. E pelo ressequido cenário boscoso
corriam, em vez de coelhos e raposas, besouros de um negrume brilhante que pareciam oleosos, e
que ajustavam suas asas girando suas pontas. Eram os dragões do encantamento, em vez de coelhos,
e eram de infinita variedade — besouros verdes como jóias, aranhas pequenas como cabeças de
alfinete, joaninhas como esmalte vermelho. Nas depressões da turfa, elástica à pressão dos pés,
havia pequenos poços de água marrom povoados por dragões marinhos — salamandras aquáticas e
escorpiões-d'água. Ali, no solo mais úmido, via-se uma multidão de musgos, cada um diferente do
outro — alguns com pedúnculos vermelhos e cabeça verde, como um milho especial para
liliputianos. Ali, onde a urze tinha sido queimada por algum fenômeno natural, como o Sol
brilhando por trás de uma gota de água — e não pelo homem, que prefere queimar os brejos na
primavera, quando estão cheios de ninhos de pássaros —, havia uma desolação de tocos
queimados, com minúsculas conchas de lesmas completamente descoloridas, não maiores que grãos
de milho, e também liquens cor de resina parecidos com esponjas ressecadas, com pedúnculos
ocos quando ele os quebrava.

E havia a vastidão de tudo aquilo, por cima do tamanho microscópico — havia o cheiro do brejo e

o ar limpo, que é mais pungente nos brejos —, havia o Sol, positivamente martelando com seu
vigor e que só dormia um par de horas por noite. E, Deus nos defenda, havia os mosquitos.

Muitas vezes ele pensou que devia ser uma chateação para as aves ficarem sentadas em cima dos
ovos. Agora ele sabia que Lyó-lyok teria um universo diante dela para observar, um mundo inteiro
agitando-se embaixo do seu nariz.

Ele propôs o casamento uma tarde, não de forma ardente, pois já conhecia demasiado do mundo,
mas com gentileza e esperança, quando estavam no deslumbrante lago. Suas águas, dentro da
moldura marrom, refletiam o céu numa tonalidade ainda mais profunda de azul, tão azul quanto os
ovos de melros sem as manchas. Ele nadou na direção dela, com a cauda levantada da água, cabeça
e pescoço esticados, como uma cobra nadadora. Falou-lhe de seus sofrimentos, sua natureza
indigna, e sua admiração. Contou-lhe que, ao se unir a ela, esperava escapar de Merlin e do mundo.
Lyó-lyok, como sempre, não pareceu surpresa. Ela também abaixou o pescoço e nadou em direção
a ele. Ele ficou muito feliz ao ver a doçura dos olhos dela.

Mas uma mão negra desceu para agarrá-lo, como você deve ter adivinhado. Ele se viu puxado para
trás, não pelas asas, não migrando mas arrastado pelo imundo funil da magia. Ele agarrou uma pena
flutuante enquanto desaparecia, e Lyó-lyok não estava mais diante de seu rosto.


XVI


— Agora — gritou o mágico, quase antes de o viajante se materializar. — Agora podemos seguir
adiante com a idéia principal. Finalmente começamos a ver a luz.
— Dê-lhe um tempo — disse a cabra. — Ele parece infeliz.
Merlin descartou a sugestão.
— Infeliz? Bobagem. Ele está perfeitamente bem. Eu dizia que podemos seguir adiante...
— Comunismo — começou o texugo, que era míope e estava tomado pelo assunto.
— Não, não. Já acabamos com os bolcheviques. Ele tem a posse dos dados, e podemos começar a
lidar com a Força. Mas temos que permitir que ele pense por si mesmo. Rei, pode escolher
qualquer animal que lhe convier, e eu explicarei por que eles vão ou não vão para a guerra.
"Não há nenhum engano — ele acrescentou, inclinando-se para a frente como se quisesse impor os
animais à sua vítima impotente, como se fossem docinhos, com um sorriso fascinante. — Pode
escolher qualquer animal que lhe agrade. Serpentes, amebas, antílopes, macacos, asnos,
axolotles....

— Suponha que ele escolha formigas e gansos — sugeriu nervosamente o texugo.
— Não, não. Os gansos não. Gansos são muito fáceis. Temos que ser justos e deixar que ele
escolha o que quiser. Que tal as gralhas?
— Muito bem — disse o texugo. — Gralhas.
Merlin reclinou-se em sua cadeira, juntou as pontas dos dedos, e limpou a garganta.
— A primeira coisa que temos que fazer — disse ele —, antes de considerar os exemplos, é definir
o assunto. O que é Guerra? Guerra, suponho, pode ser definida como o uso agressivo da força entre
grupos da mesma espécie. Deve ser entre grupos, pois de outra maneira seria apenas agressão e
espancamento. O ataque de um lobo raivoso a uma matilha de lobos não seria uma guerra. E,
certamente, deve ser entre membros da mesma espécie. Pássaros predando gafanhotos, gatos
caçando ratos, ou mesmo atuns caçando arenques — isto é, peixes de uma espécie atuando como
predadores de peixes de outra —, nenhum desses é um exemplo verdadeiro de guerra. Portanto
vemos que existem duas coisas essenciais: que os combatentes sejam da mesma família, e que essa

família seja gregária. Podemos, portanto, começar descartando todos os animais que não são
gregários, antes de procurar exemplos de guerra na natureza. Tendo feito isso, nos vemos com um
grande número de animais, tais como os estorninhos, carpas, coelhos, abelhas e milhares de outros.
Ao começar nossa busca de guerra entre eles, entretanto, nos deparamos com poucos exemplos.
Quantos animais que vocês conseguem pensar agem agressivamente e de maneira combinada contra
grupos de sua própria espécie?

Merlin esperou por dois segundos para o velho responder e continuou com seu discurso.

— Exatamente. Você ia mencionar alguns insetos, o homem, vários micróbios ou corpúsculos do
sangue — se é que esses podem ser considerados da mesma espécie — e depois não iria encontrar
mais nada. A grande imoralidade da guerra é, como já mencionei antes, uma extravagância da
natureza. Sentemo-nos, portanto, aliviados por essa feliz coincidência de poder descartar um monte
de dados que poderiam ser realmente difíceis de manejar, e examinemos as peculiaridades
especiais daquelas espécies que realmente se engajam em hostilidades. E o que descobrimos?
Descobrimos, como postulariam os famosos comunistas do texugo, que são as espécies que
possuem propriedade privada as que lutam? Ao contrário, descobrimos que os animais guerreiros
são exatamente aqueles que tendem a limitar ou banir posses individuais. São as formigas e as
abelhas, com seus estômagos e territórios comunitários, e o homem, com suas propriedades
nacionais, que cortam os pescoços uns dos outros; enquanto os pássaros, com suas esposas, ninhos
e territórios de caça privados, os coelhos, com suas tocas e estômagos, as carpas, com seus
domicílios individuais, e as liras, com suas casas de tesouro e clubes de campo privados,
permanecem em paz. Vocês não devem desprezar meros ninhos e territórios de caça como formas
de propriedade — são tão formas de propriedade para os animais quanto o lar e os negócios para o
homem. E o mais importante é que são propriedade privada. Os possuidores de propriedades
privadas na natureza são pacíficos, enquanto os que inventaram a propriedade pública vão à guerra.
Isto, como podem observar, é exatamente o oposto da doutrina totalitária.
"E claro que os possuidores de propriedades privadas na natureza às vezes são obrigados a
defender suas posses contra a pirataria de outros indivíduos. Mas isso raramente termina em
derramamento de sangue, e os homens, eles mesmos, não precisam temer isso, pois nosso Rei já os
persuadiu a adotarem o princípio da força policial.

"Mas talvez vocês queiram objetar e dizer que o traço que une os animais guerreiros não seja o
nacionalismo: talvez eles façam guerra por outras razões — porque são todos fabricantes, ou todos
proprietários de animais domésticos, ou todos agricultores como algumas das formigas, ou porque
todos têm depósitos de comida. Não vou perturbá-los com a discussão das possibilidades, pois
vocês podem examiná-las por si mesmos. As aranhas são grandes fabricantes e, no entanto, não
guerreiam; abelhas não têm animais domésticos nem agricultura e, no entanto, vão à guerra; muitas
das beligerantes formigas não têm estoque de comida. Através de um processo mental como este,
tal como achar o Máximo Divisor Comum na matemática, vocês terminarão com a explicação que
lhes ofereci. Uma explicação que é, realmente, auto-evidente quando examinada. A guerra é
provocada pela propriedade comunitária, a própria coisa que é defendida por quase todos os
demagogos que mascateiam o que chamam de Nova Ordem.


"Já esgotei meus exemplos. Temos que voltar para instâncias concretas, para examinar o caso.
Examinemos os viveiros.

"Eis aqui um animal gregário, como a formiga, que vive na companhia de suas camaradas em
comunidades aéreas. O corvo é consciente de seu nacionalismo até o ponto de molestar outros
corvos de congregações distantes, se tentarem construir em suas árvores. O corvo não apenas é
gregário, como também levemente nacionalista. Mas o fato importante é que não reivindica
nenhuma propriedade nacional em seus territórios de alimentação. Qualquer campo adjacente que
seja rico em sementes ou vermes será freqüentado não apenas pelos corvos daquela comunidade
como também por todos das comunidades próximas e, na verdade, também pelos pombos e gralhas
das vizinhanças, sem que haja hostilidade. Os corvos, de fato, não reivindicam propriedade
nacional salvo no sentido reduzido da sua área de ninhar, e o resultado é que estão livres do flagelo
da guerra. Eles aceitam a verdade natural óbvia de que o acesso às matérias-primas deve ser livre
para as empresas privadas. "Voltemos, então, aos gansos: uma das raças mais antigas, uma das
mais cultas e uma das mais bem supridas com linguagem. Músicos e poetas admiráveis, mestres do
ar há milhões de anos sem jamais terem jogado uma bomba, monógamos, disciplinados,
inteligentes, gregários, morais, responsáveis, sabemos que são inflexíveis em sua crença de que os
recursos naturais do mundo não podem ser apossados por nenhuma seita ou família particular de
sua tribo. Se existir um bom canteiro de Zostera marina ou um bom campo de restolhos, ali pode
estar uma centena de gansos hoje, dez mil amanhã. Em um bando de gansos que muda de um campo
de alimentação para um campo de descanso podemos encontrar testas-brancas misturadas com pés-
rosados e gansos selvagens ou até mesmo com bernacas. O mundo é livre para todos. Mas não
pense que são comunistas. Cada ganso individualmente está preparado para atacar seu vizinho pela
posse de uma batata podre, e suas esposas e seus ninhos são estritamente privados. Eles não têm
nem casa nem estômago comunal, como as formigas. E essas belas criaturas, que migram livremente
por toda a superfície do globo sem reclamar nenhum pedaço como seu, jamais fizeram uma guerra.

"E o nacionalismo, as exigências de pequenas comunidades por partes da terra indiferente como
propriedade comunal, que constitui a maldição humana. Os mesquinhos e bobos defensores do
nacionalismo polonês ou irlandês: esses são os inimigos dos homens. Sim, e os ingleses que podem
ostensivamente fazer uma grande guerra pelos "direitos das pequenas nações", enquanto erigem um
monumento para uma mulher que foi martirizada por observar que o patriotismo não era bom o
bastante, essas pessoas só podem ser vistas como uma coleção de imbecis benevolentes dirigidos
por vigaristas desnorteados. Nem é justo se fixar nos ingleses ou nos poloneses ou nos irlandeses.
Todos nós estamos meti-os nisso. E a idiotice geral do Homo impoliticus. Sim, e quando falo
rudemente dos ingleses sobre esse assunto, gostaria de imediatamente acrescentar que vivi entre
eles durante vários séculos. Mesmo sendo uma coleção de vigaristas imbecis, pelo menos se
preocupam e são benevolentes, o que não posso deixar de achar preferível à tirania cínica e
estúpida dos Hunos que lutam contra eles. Não se enganem sobre isso.

— E qual — perguntou educadamente o texugo — é a solução prática?
— A mais simples e fácil do mundo. Devem-se abolir coisas tais como barreiras tarifárias,
passaportes e leis de imigração, convertendo a humanidade numa federação de indivíduos. De fato,

devem-se abolir as nações, e não apenas as nações como também os Estados. De fato, não se deve
tolerar unidade maior que a família. Talvez seja necessário limitar os ganhos privados numa escala
generosa, por recear que as pessoas muito ricas se tornem uma espécie de nação em si mesmas.
Que os indivíduos devam se transformar em comunistas ou qualquer outra coisa é realmente
desnecessário, entretanto, e é contra as leis da natureza. No decorrer de mil anos podemos esperar
ter uma linguagem comum se tivermos sorte, mas o principal é que temos que tornar possível para
um homem que viva em Stonehenge empacotar seus trapos da noite para o dia e buscar sua sorte,
sem nenhum impedimento, em Timbuctu...

"O homem pode se tornar migratório — acrescentou como um adendo, com alguma surpresa.

— Mas isso seria um desastre! — exclamou o texugo. — Trabalhadores japoneses... O comércio
seria solapado.
— Bobagem. Todos os homens têm a mesma estrutura física e necessidades de nutrição. Se um cule
pode arruiná-lo ao viver com um prato de arroz no Japão, é melhor você ir para o Japão e comprar
um prato de arroz. Assim você poderá arruinar o cule, que por então estará, suponho, se divertindo
em Londres com o seu Rolls-Royce.
— Mas seria um golpe mortal para a civilização! Iria diminuir o padrão de vida...
— Lorota. Iria aumentar o padrão de vida do cule. Se ele for tão bom quanto você em competição
aberta, ou melhor, boa sorte para ele. Ele é o homem que precisamos. Quanto à civilização, olhe só
para ela.
— Isso significaria uma revolução econômica!
— Você prefere uma série de Armagedões? Nada de valor jamais foi conseguido neste mundo, meu
caro texugo, sem que se tivesse que pagar por isso.
— Certamente — concordou o texugo de repente —, parece que é o que deve ser feito.
— Agora você percebeu. Deixe os homens envolvidos com suas tragédias mesquinhas, se eles
preferem assim, e olhe à sua volta para os duzentos c cinqüenta mil outros animais. Eles, pelomenos, com algumas poucas exceções, têm bom senso político. É uma escolha simples entre a
formiga e o ganso, e tudo o que nosso Rei precisará fazer, quando voltar, vai ser tornar óbvia essa
situação.
O texugo, que era um feroz opositor de todos os tipos de exagero, objetou fortemente.

— Certamente, é uma peça de raciocínio confuso — disse ele — dizer que o homem deve escolher
entre as formigas e os gansos. Em primeiro lugar, o homem pode não ser nenhum dos dois e, em
segundo lugar, como sabemos, as próprias formigas não se sentem infelizes.
Merlin imediatamente aceita esse argumento.

— Não devia ter dito isso. Era só uma maneira de falar. Na verdade nunca há mais que duas
escolhas disponíveis para uma espécie: ou evoluem segundo suas próprias linhas de evolução, ou
então são liquidadas. As formigas têm que escolher entre serem formigas ou serem extintas, e os
gansos tiveram que escolher entre a extinção e serem gansos. Não é que as formigas estejam

erradas e os gansos certos. Formiguismo é o certo para as formigas e o gansismo é o certo para os
gansos. Da mesma forma, os homens terão que escolher entre serem liquidados ou serem homens de
verdade. E uma grande parte de ser homem está na solução inteligente precisamente para essesproblemas da força, que estivemos examinando sob os olhos de outras criaturas. É isso que o Rei
deve tentar fazer que eles percebam.

Archimedes tossiu e disse:

— Desculpe, Mestre, mas sua visão posterior hoje está suficientemente clara para nos dizer se ele
terá sucesso?
Merlin coçou a cabeça e limpou seus óculos.

— No final, terá — ele finalmente disse. — Disso eu tenho certeza. Caso contrário, a raça vai
perecer como as torcazes americanas, as quais, devo acrescentar, eram consideravelmente mais
numerosas que a família humana, e no entanto se extinguiram no decorrer de uma dúzia de anos no
final do século dezenove. Mas, se isso ocorrerá nesta época ou em alguma outra, ainda está obscuro
para mim. A dificuldade de viver de frente para trás e de pensar adiante é que fico confuso sobre o
presente. Esse também é o motivo pelo qual prefiro escapar para o abstrato.
O velho cavalheiro cruzou as mãos por cima da barriga, aqueceu os pés na lareira e, refletindo
sobre suas próprias dificuldades com o tempo, começou a recitar um de seus autores favoritos.

— Eu vi — ele citou — histórias de homens mortais de diferentes raças serem representadas diante
dos meus olhos... reis e rainhas e imperadores e republicanos e patrícios e plebeus varridos em
ordem inversa diante da minha visão... O tempo corre para trás em visões tremendas. Grandes
homens morreram antes de conquistar sua fama. Reis foram depostos antes de serem coroados.
Nero e os Bórgias, Cromwell e Asquith e os jesuítas desfrutaram da infâmia eterna e depois
começaram a merecê-la. Minha pátria mãe... dissolveu-se na bárbara Britânia; Bizâncio dissolveu-
se em Roma; Veneza no Heneti Altino; a Hélade em inumeráveis migrações. Golpes caíram, e todos
foram atacados.
No silêncio que se seguiu a esse impressionante quadro, a cabra retornou a um tópico anterior.

— Ele parece infeliz — disse —, seja lá o que você diga.
Então eles olharam o Rei pela primeira vê desde seu regresso e todos ficaram em silencio.

XVII


Ele os observava com a pena em sua mão. Segurava-a inconscientemente, seu fragmento de beleza.
Manteve-os a distância com ela, como se fosse uma arma capaz de detê-los.

— Eu não vou — disse ele. — Vocês devem procurar outro boi para puxar para vocês. Por que me
trouxeram de volta? Por que devo morrer pelo homem quando vocês mesmos a ele se referem de
forma tão desdenhosa? Pois seria minha morte. E mesmo verdade que as pessoas são ferozes e
estúpidas. Já me impuseram todas as penas, menos a morte. Acham que ouvirão a sabedoria, que o
simplório compreenderá e abandonará suas armas? Não, ele me matará por isso: me matará como
as formigas matariam uma albina.
"E, Merlin — ele lamentou —, eu tenho medo de morrer porque nunca tive a oportunidade de
viver! Nunca tive vida própria, nem tempo para a beleza, e mal comecei a descobri-la. Você me
mostrou a beleza e a arrancou de mim. Você me movimenta como uma peça de xadrez. Você tem o
direito de pegar minha alma e torcê-la em seu molde, de roubar a mente de minha própria mente?

"Oh, animais, eu falhei com vocês, eu sei. Traí sua confiança. Mas não consigo enfrentar a coleira
mais uma vez, porque vocês me levaram longe demais. Por que deveria eu abandonar Lyó-lyok?
Nunca fui esperto, mas era paciente, e até mesmo a paciência acaba. Ninguém pode agüentar isso a
vida inteira.

Eles não ousavam responder, não conseguiam achar nada para dizer.

Sua sensação de culpa e de amor frustrado o fizera infeliz, e agora ele tinha se encolerizado em
autodefesa.

— Sim, você é esperto. Você conhece as palavras difíceis e como brincar com elas. Se a frase é
bonita, você ri e a diz. Mas você está tagarelando agora sobre almas humanas, e foi para minha
alma, a única que tenho, que você apontou. E Lyó-lyok tinha uma alma. Quem fez de vocês deuses
para mexerem com o destino, ou lhes deu poder sobre os corações para fazê-los se unirem e depois
separá-los? Não vou mais fazer esse trabalho sujo; não vou mais me misturar com seus planos
sujos. Vou me retirar para algum lugar tranqüilo com o povo-ganso, onde poderei morrer em paz.
Sua voz quebrou e virou a de um velho e miserável mendigo, enquanto se jogava de volta à cadeira,
cobrindo os olhos com as mãos.

O ouriço estava de pé no meio do assoalho. Com seus dedinhos arroxeados firmemente enlaçados,


o nariz truculento procurando opositores, respirando pesado, tufos de pêlos mortos eriçados,
pequeno, indignado, vulgar e mordido de pulgas, o ouriço enfrentou o comitê e os desafiou.
— Já chega, tá bem? — exigiu. — Dêem no pé, tá certo? O garoto mererece uma chance.
E colocou seu vigoroso corpo entre eles e seu herói, preparado para derrubar o primeiro que
interferisse.

— Ora — ele disse, com sarcasmo. — Um bando de sabibichões, é o que digo. Um belo grupo de
Pilatos convencidos, querendo dispor do Homem. Trelelé-trololó, trelelé-trololó. Mas se
mexererern um dedinho quebro o pescocim de todinhos vocês.
Merlin protestou, infeliz:


Quanto tempo se leva para cruzar o Mar do Norte? Num vapor, são dois ou três dias, muitas
horas passando por cima das águas viscosas. Mas para os transas, para os marinheiros do ar,
para as cunhas angulares que fazem retalho das nuvens, para os cantores dos céus com o vento
por trás — uns cento e dez quilômetros por hora atrás de outros cento e dez —, para esses
misteriosos geógrafos — quase cinco quilômetros acima, dizem, com os cúmulos a seus pés em
vez de água —, para eles a coisa era diferente.


— Ninguém ia querer que ele fizesse alguma coisa que ele não quisesse fazer...
O ouriço caminhou até ele, colocando seu nariz irrequieto a um dedo dos óculos do mágico, que
recuou alarmado, e soprou em seu rosto.

— Ora — disse ele. — Ninguém nunquinha quer nunca nada. Isso é só pra lembrar que sua
poderosidade quer pensar as coisas ele mesmo.
Depois voltou-se para o Rei de coração partido, parando a distância com tato e dignidade por
causa de suas pulgas.

— Não, Mistre — disse. — Isso aqui já foi longe demais. Venhai cá com esse velho ouriço pra
poderer cheirar o ar do bom Deus por vosso naririz e descansar vossa cuca no colozim da terra.
"E não temai nada desses velhos sabibichões — continuou. — Deix'eles discutirirem os asteriscos
entre si, que é como gostam. Venhai cá cheirar um bom bocadim do ar com vosso humildim servim
e terer o prazer de ver o céu.

Arthur estendeu sua mão para o ouriço, que a pegou relutante, depois de limpar a sua nas costas
espinhentas.

— São todim uns vermes — explicou com pesar —, mas são gente honesta.
Caminharam juntos até a porta, onde o ouriço, voltando-se, examinou o campo.
— Até mais a verer — observou com bom humor, observando o comitê com desprezo
inexprimível. — Cuidadim para não destruirirem o universo antes da gente voltarar. E para não
criarerem outro, olhe lá.
E inclinou-se sarcasticamente na direção do chocado Merlin.

— Deus Paizim.
E para o infeliz Arquimedes, que se esticava, fechava os olhos e se virava para o outro lado.
— Deus Filhim.
E para o texugo implorante.
— E o Santo Carteirim de Deus.

XVIII


Não há nada tão maravilhoso quanto estar ao ar livre numa noite de primavera no campo;
principalmente na última parte da noite e, melhor ainda, se você puder estar a sós. Então, você
pode ouvir o mundo selvagem à solta, e as vacas ruminando logo antes de você tropeçar nelas, e as
folhas com sua vida secreta, e as bicadas e a grama arrancada e a corrente de seu sangue em suas
próprias veias; você pode ver por si mesmo o vulto das árvores e colinas contra a escuridão mais
profunda e as estrelas rodopiando em seus sulcos azeitados; há apenas uma luz brilhando distante
em algum chalé, assinalando alguém doente ou que se levanta cedo para alguma tarefa misteriosa;
as patas do cavalo puxando a carroça gemedora para algum mercado desconhecido arrastam
homens amontoados em cima de sacos, adormecidos; os cães sacodem as correntes nas fazendas, as
raposas regougam uma vez, e as corujas já estão em silêncio: então é um grande momento para estar
vivo e bem consciente, quando tudo o mais que é humano está inconsciente, dentro de casa, enfiado
nas camas, à mercê do espírito da meia-noite.

O vento descansou. As estrelas poeirentas se expandem e contraem no sereno, construindo uma
cena que tiniria se fosse um som. O grande pináculo no qual subiam se levantava contra o céu,
envolvido em majestade, como um horizonte que aspira.

O pequeno ouriço, arrastando-se de moita em moita, caía gemendo nas poças enlameadas,
arquejando ao lutar com rochedos em miniatura. O fatigado Rei o ajudava nas passagens mais
difíceis, levantando-o para que firmasse o pé ou o empurrando por trás, reparando em como eram
patéticas e indefesas suas pernas despidas vistas de trás.

— Brigado — dizia ele. — Muito brigado, simsim.
Quando chegaram no pico, ele se sentou resfolegando, e o velho sentou-se a seu lado para admirar
a paisagem.

Era a Inglaterra que aparecia vagarosamente, enquanto a lua tardia se erguia. Seu real domínio de
Gramarye. Estendida a seus pés, espalhava-se para longe até o remoto norte, inclinando-se na
direção das Hébridas imaginadas. Era sua bela terra. A lua tornava as árvores mais imponentes por
suas sombras que por si mesmas, deslizava pelos rios que pareciam de mercúrio, amaciava os
campos de pasto que pareciam de brinquedo, cobria tudo com uma suave neblina. Mas ele sentiu
que reconheceria sua terra, mesmo sem a luz. Sabia que aquele devia ser o rio Severn, com suas
planícies e seus picos ao longe — todos ainda invisíveis, mas fazendo parte do seu lar. Naquele
campo um cavalo branco devia estar pastando, naquele outro a roupa secava num varal. A terra


tinha necessidade de ser ela mesma.

Subitamente ele sentiu o intenso e triste encanto de ser um ser, para além do certo e do errado —
que, na verdade, o simples fato de ser era a coisa mais profundamente certa. Começou a amar a
terra diante dele com orgulho ardente, não porque fosse boa ou má, mas porque era. Pelas sombras
dos montes de cereal numa tarde dourada; pelos rabos das ovelhas que balançam quando elas
correm, e pelos cordeiros que, ao mamar, mexem os rabos como pequenas ondas; pelas nuvens que
vagueiam sobre ela formando sombras e luzes; pelos esquadrões de tarambolas verdes e douradas
serpenteando pelos pastos e avançando em investidas curtas e unânimes, cabeça contra o vento;
pelas garças fiandeiras que mantêm os pescoços retos como espinhas de peixe segundo David
Garnett e caem desmaiadas se um garoto as espreita e grita antes que elas o vejam; pela fumaça dos
lares como uma barba azul que se extravia pelos céus; pelas estrelas que brilham mais nas poças do
que no firmamento; pelas poças, sarjetas mal vedadas e montes de estéreo onde crescem papoulas;
pelo salmão no rio que de repente salta e volta a mergulhar; pelos brotos de castanha, ao vento
cálido da primavera, saltando de seus galhos como caixas de surpresa, ou como pequenos
espectros que levantam suas mãos verdes para assustá-lo; pelas gralhas que, ao construir, ficam
paradas no ar com ramos no bico, mais belas do que qualquer pombo regressando para casa; pelo
dom prateado do sono, a maior das bênçãos de Deus ao mundo, que se estende lá em baixo, ao luar.

Ele descobriu que a amava — mais que a Guenevere, mais que a Lancelot, mais do que a Lyó-lyok.
Era sua mãe e sua filha. Ele conhecia a fala do seu povo e podia senti-la mudar abaixo dele, se
pudesse voar sobre ela como o ganso que um dia fora, de Zumerzet até Ochaye. Podia dizer como
as pessoas comuns se sentiam a respeito das coisas, sobre todo tipo de coisas, antes mesmo de
perguntar. Ele era seu Rei.

E eles eram seu povo, sua própria responsabilidade de stultus ou ferox, a responsabilidade como a
do velho almirante ganso na fazenda. Agora eles não eram ferozes, porque estavam adormecidos.

A Inglaterra estava aos pés do velho, como um homem-criança adormecido. Quando desperto
ficava circulando, agarrando coisas e quebrando-as, matando borboletas, puxando o rabo do gato,
alimentando seu ego com mestria amoral e incansável. Mas no sono abdicava de sua força
masculina. O homem-criança agora se espalhava indefeso, vulnerável, um bebê confiando que o
mundo o deixaria dormir em paz.

Toda a beleza de seus humanos caiu sobre ele, em vez de seus horrores. Ele viu o grande exército
de mártires que eram suas testemunhas: jovens que tinham partido até mesmo durante as primeiras
alegrias do casamento para serem mortos em sujos campos de batalha como Bedegraine, pelas
crenças de outros homens. Mas que tinham ido voluntariamente; mas que tinham ido porque
pensavam que era o correto; mas que tinham ido apesar de odiar fazê-lo. Talvez fossem jovens
ignorantes, e as coisas pelas quais tenham morrido fossem inúteis. Mas a ignorância deles era
inocente. Tinham feito algo terrivelmente difícil em sua inocente ignorância, e que não era para eles
mesmos.

Ele viu de repente todas as pessoas que tinham aceitado se sacrificar: eruditos sedentos pelo saber,
poetas que recusaram compromissos em troca do sucesso, pais que tinham engolido seu próprio
amor para deixar os filhos viverem, doutores e santos que morreram para ajudar, milhões de


cruzados, geralmente estúpidos, que tinham sido massacrados por sua própria estupidez — mas que
tinham tido boas intenções.

Era isso, ter boas intenções! Ele percebeu um lampejo daquela extraordinária faculdade do homem,
a estranha, altruísta, a rara e obstinada decência que fazia que escritores e cientistas mantivessem
sua verdade mesmo com risco de morte. Eppur si muove, Galileu diria: de qualquer maneira se
move. Eles iam mandar queimá-lo se ele insistisse com essa bobagem ridícula de a Terra se mover
ao redor do Sol, mas ele insistiu na afirmativa sublime porque havia algo que ele valorizava maisque a si mesmo. A Verdade. Reconhecer e afirmar O Que É. Essa era a coisa que o homem podia
fazer, que seus ingleses podiam fazer, seus amados, seus adormecidos, seus agora indefesos
ingleses. Eles podem ser estúpidos, ferozes, não-políticos, quase incorrigíveis. Mas aqui e ali, oh
tão raramente, oh tão escassamente, oh tão gloriosamente, havia aqueles que, de qualquer maneira,
enfrentariam a tortura, o carrasco, e até mesmo a pura e simples extinção, por uma causa maior que
eles mesmos. A verdade, essa coisa estranha, o gracejo de Pilatos. Muitos jovens estúpidos tinham
pensado que morriam por ela, e muitos continuariam a fazê-lo, talvez por milhares de anos. Não era
preciso que estivessem certos sobre sua verdade, como Galileu estaria. Bastava que eles, os
poucos e martirizados, estabelecessem uma grandeza, uma coisa acima da soma de tudo que
ignorantemente tinham.

Mas então mais uma vez a onda de tristeza o assolou, o pensamento sobre o homem-criança quando
despertasse; a visão daquela maioria cruel e brutal, na qual os mártires eram exceções tão raras.
Mas se move, apesar de tudo. Quão poucos e miseravelmente poucos eram os que estavam
determinados a sustentar isso!

Ele poderia chorar de pena do mundo, por sua horripilância que, ainda assim, era digna de pena.

O ouriço comentou:

— Lugarzim bonito, num é?
— Sim, meu bom homem. Mas não há nada que eu possa fazer por eles.
— Já haveis feito, campeão.
Um chalé despertou no vale. Seu olho de luz piscou, e ele podia sentir o homem que o havia
acendido: provavelmente um caçador clandestino, alguém tão lento e desajeitado e paciente como o
texugo, calçando suas pesadas botas.

O ouriço perguntou:

— Shenhor?
— Senhor, homem. E é Majestade, não "mágica estade".
— Majestade?
— Sim, bom homem.
— Lembra que a gente cantarorou pro senhor?
— Lembro bem. Era A Ponte Rústica e Genoveva e... e...

— Lar Doce Lar.
O Rei subitamente fez uma mesura com a cabeça.
— Podemos cantarar de novo, Majestade camararada?
Ele não pôde fazer mais que assentir.

O ouriço levantou-se sob o luar, assumindo a atitude certa para cantar. Plantou os pés firmemente
no chão, cruzou as mãos sobre o estômago, fixou os olhos em um objeto distante. Depois, com sua
clara voz de tenor rural, cantou para o Rei da Inglaterra sobre o Lar Doce Lar.

A música simples e boba terminou — mas não era boba sob o luar, não numa montanha em seu
reino. O ouriço arrastou os pés, tossiu, estava ávido por mais. Mas o Rei não tinha palavras.

— Majestade — ele disse, com timidez —, tem outra, bem novinha.
Não houve resposta.
— Quando ficamomos sabendo que o senhor vinha, aprendedemos uma novinha. Era pra lhe dar
boa-vinda. Aprendedemos lá com aquele Merlin.
— Cante-a — arfou o velho.
Ele tinha esticado os ossos sobre a urze, porque tudo aquilo era demasiado.

E ali, nas alturas da Inglaterra, com uma boa pronúncia porque tinha cuidadosamente aprendido de
Merlin, o tom da música de Parry vinda do futuro, com sua espada de gravetos em uma das mãos
cinzentas e uma charrete de folhas bolorentas na outra, o ouriço se levantou para construir
Jerusalém, e era para valer.

Dê-me o arco de brilhante ouro
Traga-me as flechas do desejo.
Traga minha lança.
Oh, nuvens abram-se.
Traga minha charrete de fogo.
Não deixarei de porfiar e desejar
Nem minha espada dormirá na minha mão
Até que eu construa Jerusalém
Na verde e amável terra da Inglaterra.



XIX


Os rostos pálidos do comitê, inclinados sobre a fogueira, viraram-se na direção da porta em um
único movimento, e seus pares de olhos culpados se grudaram no Rei. Mas foi a Inglaterra que
entrou.

Não era preciso dizer nada, nem havia necessidade de explicar: tudo podia ser visto em seu rosto.

Então, todos se levantaram e foram em sua direção, colocando-se humildemente ao seu redor.
Merlin, para sua surpresa, era um velho cujas mãos tremiam como folhas. Ele assoava o nariz,
demasiadas vezes na verdade, dentro do chapéu cônico, do qual caía uma perfeita chuvarada de
camundongos e rãs. O texugo chorava amargamente c, distraído, sacudia cada lágrima quando esta
chegava na ponta do seu nariz. Archimedes tinha virado a cabeça completamente para trás, para
esconder sua vergonha. Cavall trazia uma expressão atormentada. T. natrix havia encostado a
cabeça sobre o pé real, uma lágrima clara escorrendo de cada narina. E a membrana piscadora de
Balin se agitava com a rapidez do código Morse.

— Deus salve o Rei — disseram.
— Podem sentar-se.
Então todos se sentaram respeitosamente, depois que ele tomou a primeira cadeira: um Conselho
Privado.

— Logo voltaremos — disse ele — para nosso belo reino. Antes de irmos, há que se fazer algumas
perguntas. Em primeiro lugar, tem-se dito que haverá um homem como John Bali, que deve ser um
mau naturalista porque alega que os homens devem viver como as formigas. Qual é a objeção a
essa alegação?
Merlin levantou-se e tirou o chapéu.

— É uma questão da moralidade natural, Senhor. O comitê sugere que é moral para as espécies se
especializarem em suas próprias especialidades. Um elefante deve cuidar da sua tromba, uma
girafa, ou o camelopardo, do seu pescoço. Seria imoral que um elefante voasse, porque não tem
asas. A especialidade do homem, tão desenvolvida nele quanto o pescoço no camelopardo, é seu
neocórtex. Esta é a parte do cérebro que, em vez de ser devotada ao instinto, está relacionada com
a memória, dedução e as formas de pensamento que resultam no reconhecimento, pelo indivíduo, de

sua personalidade. O cocoruto do homem o torna consciente de si mesmo como um ser à parte, o
que não acontece com freqüência em animais e selvagens, portanto, qualquer forma enfática de
coletivismo na política é contrária à especialidade do homem.

"Isso, aliás — prosseguiu o velho cavalheiro vagarosamente, estendendo um filme sobre seus olhos
como se ele mesmo fosse um urubu míope —, é a razão pela qual tenho, na vida inteira que se
estende para trás por vários cansativos séculos, travado minha pequena guerra contra o poder emtodas as suas formas, e é por isso que, certo ou errado, seduzi outros para travar a mesma luta. É
por isso que outrora o persuadi, Senhor, a desprezar os Maníacos por Jogos; a opor sua sabedoria
contra os barões da Força Maior; a acreditar na justiça em vez da força; e a pesquisar com
integridade mental, como tentamos fazer durante esta longa noite, as causas das lutas que estamos
travando; pois a guerra é força desenfreada, a galope. Não me engajei nessa cruzada pelo fato de a
força poder ser considerada errada, num sentido abstrato. Para a sucuri, que é praticamente apenas
um músculo enorme, seria literalmente certo dizer que o Poder é o Certo; para a formiga, cujo
cérebro não é constituído como o cérebro humano, é literalmente verdade que o Estado é mais
importante que o Indivíduo. Mas para o homem, cuja especialidade repousa nas pregas
reconhecedoras de personalidade do seu neocórtex — tão desenvolvido nele quanto os músculos na
sucuri —, é igualmente verdadeiro dizer que a verdade mental, não a força, é o certo; e que o
Indivíduo é mais importante que o Estado. É tão mais importante que deveríamos aboli-lo.
Devemos deixar que as sucuris se admirem por serem atletas musculosas: Mania por Jogos, Force
Majeur e coisas assim estão certas para elas. Talvez as reticulações da píton realmente sejam uma
forma de camiseta reforçada. Devemos deixar que as formigas louvem as glórias do Estado: o
totalitarismo, sem dúvida, é seu tipo de país. Mas para o homem, e não numa definição abstrata do
certo e do errado, mas na definição concreta da natureza de que uma espécie deve se especializar
em sua própria especialidade, o comitê sugere que o poder nunca foi o certo; que o Estado nunca
deve sobrepujar o indivíduo; e que o futuro repousa na alma pessoal.

— Talvez você deva falar sobre o cérebro.
— Senhor, existem muitas e muitas coisas acontecendo nessa velha caixa cerebral, mas para os
propósitos de nossa pesquisa devemos nos limitar a dois compartimentos, o neocórtex e o corpo
estriado. Neste último, para dizer de maneira simples, são determinadas minhas ações instintivas e
mecânicas. No primeiro, mantenho a razão em honra da qual nossa raça foi curiosamente apelidada
de sapiens. Talvez possa explicar isso com uma dessas comparações perigosas e freqüentemente
enganosas. O corpo estriado é como um único espelho, que reflete as ações instintivas para fora,
em retorno aos estímulos que chegam. No neocórtex, entretanto, existem dois espelhos. Eles podem
ver um ao outro e, por essa razão, sabem que existem. Homem, conhece a ti mesmo, disse alguém.
Ou, como outro filósofo colocou, o próprio estudo da humanidade é o homem. Isso porque ele se
especializou no neocórtex. Em outros animais com cérebro que não o homem, a ênfase não é na sala
com o duplo espelho, mas naquela que só tem um. Poucos animais, salvo o homem, são conscientes
de sua própria personalidade. Mesmo nas raças primitivas da família humana ainda existe a
confusão entre o indivíduo e seu ambiente — pois o índio selvagem, como vocês devem saber,
distingue tão pouco entre si mesmo e o mundo exterior que ele próprio cuspirá, se quiser que as
nuvens chovam. Pode-se dizer que o sistema nervoso das formigas só tem um espelho, como o dos

selvagens, e é por isso que é adequado para as formigas serem comunistas, perderem-se dentro da
multidão. Mas é em virtude de o cérebro do civilizado ter o espelho duplo que ele sempre terá que
se especializar na individualidade, no reconhecimento de si mesmo, ou seja lá como queiramchamar isso. É por causa dos dois espelhos que refletem um ao outro que ele jamais poderá ser um
membro completamente altruísta do proletariado. Ele tem que ter um ser e tudo o que vai com um
ser tão altamente desenvolvido — inclusive o egoísmo e a propriedade. Por favor, desculpem
minha comparação, se parece que a usei de maneira inadequada.

— O ganso tem neocórtex?
Merlin levantou-se novamente.
— Sim, e bem desenvolvido para um pássaro. As formigas têm um sistema nervoso diferente, mais
parecido com o corpo estriado.
"A segunda questão trata da guerra. Foi sugerido que devemos aboli-la, de uma maneira ou de
outra, mas ninguém lhe deu a oportunidade de se defender. Talvez haja algo favorável a ser dito
sobre a guerra. Gostaríamos de saber.

Merlin pôs o chapéu no chão e sussurrou para o texugo, que, para admiração de todos, depois de
remexer na sua pilha de papéis, apareceu com o papel que era o certo.

— Senhor, esta questão já foi apresentada antes ao comitê, que se aventurou a elaborar uma lista
dos prós e dos contras, que estamos prontos para recitar.
Merlin limpou a garganta e anunciou em voz alta:

— PRÓ.
— A favor da guerra — explicou o texugo.
— Número um — disse Merlin. — A guerra é uma das fontes do romance. Sem guerra não haveriaRolandos, Macabeus, Lawrences ou Hodson do Cavalo de Hodson. Não haveria Victoria Cross. É
um estimulante das assim chamadas virtudes, tais como a coragem e a cooperação. De fato, a guerra
tem momentos de glória. Deve-se também notar que, sem guerras, perderíamos pelo menos metade
da nossa literatura. Shakespeare está sobrecarregado dela.
"Número dois. A guerra é uma maneira de diminuir a população, apesar de ser um método horrendo
e ineficaz. O próprio Shakespeare que, no que se refere à questão da guerra, parece concordar com
os alemães e com seu delirante apologista Nietzsche, diz, numa cena que supostamente escreveu
para Beumont & Fletcher, que a guerra cura com sangue a terra quando esta está doente e cura o
mundo do congestionamento de pessoas. Talvez eu possa mencionar entre parênteses, sem
irreverência, que o Bardo parece ter sido curiosamente insensível ao assunto da guerra. Rei
Henrique V é a peça mais revoltante que conheço, e o próprio rei é o caráter mais revoltante.

"Número três. A guerra de fato proporciona uma abertura para a ferocidade contida do homem e,
enquanto o homem permanecer um selvagem, algo desse tipo parece ser necessário. O comitê
considera, a partir de um exame da história, que a crueldade humana sempre acha uma maneira de
se manifestar, se lhe for proibida outra. Nos séculos dezoito e dezenove, quando a guerra era um


exercício limitado, confinado aos exércitos profissionais recrutados entre as classes criminosas, a
grande massa da população apelava para execuções públicas, operações dentais sem anestesia,
esportes brutais e chicotear suas crianças. No século vinte, quando a guerra se estendeu para
abarcar as massas, os enforcamentos, tortura, luta de galos e espancamentos saíram de moda.

"Número quatro. No momento o comitê está levando a cabo uma pesquisa complicada sobre a
necessidade física ou psicológica. Não consideramos proveitoso que um relatório seja feito na
atual etapa, mas acreditamos ter observado que a guerra responde a uma necessidade real do
homem, talvez ligada à ferocidade mencionada no Parágrafo Terceiro, mas talvez não. E de nosso
conhecimento que o homem se torna inquieto ou abatido depois de uma geração de Paz. O imortal,
se não onisciente Bardo de Avon, assinala que a Paz parece produzir uma doença que, alcançando a
cabeça como uma espécie de úlcera, se arrebenta com a guerra. "A guetra", diz ele, "é o abscesso
de muita riqueza e paz, que simplesmente irrompe, não mostrando causa externa pela morte do
homem." Diante dessa interpretação, é a paz que é vista como uma doença lenta, enquanto a ruptura
do abscesso, a guerra, deve ser assumida como benéfica, e não o contrário. O comitê sugeriu duas
maneiras pelas quais a Riqueza e a Paz podem destruir a raça, se a guerra for evitada:
emasculando-a ou tornando-a comatosa através de perturbações glandulares. Sobre o assunto da
emasculação, deve-se notar que as guerras dobram a taxa de nascimentos. A razão pela qual as
mulheres toleram a guerra é que ela promove a virilidade do homem.

"Número cinco. Finalmente, aqui está a sugestão que provavelmente seria feita por todos os outros
animais da face da Terra, exceto o homem, ou seja, de que a guerra é uma bênção inestimável para
a criação como um todo porque oferece uma longínqua possibilidade de extermínio da raça
humana.

"CONTRA — anunciou o mágico, mas o Rei o interrompeu.

— Conhecemos as objeções — disse ele. — A idéia de que seja útil pode ser avaliada um pouco
mais. Se há alguma necessidade de Poder, por que o comitê está pronto para liquidá-lo?
— Senhor, o comitê está tentando traçar as bases fisiológicas, possivelmente de origem pituitária
ou adrenal. Possivelmente, o sistema humano exige doses periódicas de adrenalina, para permitir
que continue saudável. (Os japoneses, como exemplo de atividade glandular, são conhecidos por
comer grandes quantidades de peixe, o que, ao carregar os corpos deles com iodo, expande suas
tireóides e os torna irritáveis.) Até que esta questão seja adequadamente pesquisada o assunto
permanece vago, mas o comitê deseja assinalar que a necessidade fisiológica pode ser suprida por
outros meios. A guerra, como já foi observado, é um meio ineficaz de manter baixa a população;
pode ser também um meio ineficaz de estimular as glândulas adrenais através do medo.
— Que outros meios?
— No Império Romano, a experiência de oferecer espetáculos sanguinários no circo foi tentada
como substituto. Eles proporcionam a Purgação mencionada por Aristóteles, e alguma alternativa
desse tipo pode se revelar eficaz. A ciência, entretanto, sugeriria curas mais radicais. Ou a
deficiência glandular poderia ser suprida por injeções periódicas de adrenalina em toda a
população — ou seja lá qual for a deficiência que se constate — ou então alguma forma de cirurgia

possa ser eficaz. Talvez a raiz da guerra possa ser removida, como o apêndice.

— Fomos informados de que a guerra era causada pela Propriedade Nacional e agora vocês dizem
que se deve a uma glândula.
— Senhor, as duas coisas podem estar relacionadas, embora uma não seja conseqüência da outra.
Por exemplo, se as guerras se devessem exclusivamente à propriedade nacional, deveríamos
espropriedade nacional — ou seja, o tempo todo. Descobrimos, entretanto, que são interrompidas
por calmarias freqüentes, chamadas de Paz. E como se a raça humana ficasse cada vez mais
comatosa nesses períodos de trégua e, quando o que se poderia chamar de ponto de saturação de
deficiência de adrenalina é alcançado, lança-se mão da primeira desculpa que aparece para se
tomar uma boa dose de medo-estimulante. A desculpa à mão é a propriedade nacional. Mesmo
quando as guerras são embonecadas com pretextos religiosos, tais como as cruzadas contra
Saladino ou os Albigenses, ou Montezuma, as bases permanecem as mesmas. Ninguém iria se
preocupar em estender os benefícios do cristianismo a Montezuma se suas sandálias não fossem
feitas de ouro, e ninguém pensaria que o ouro fosse uma tentação suficiente se não estivessem
precisando de uma dose de adrenalina.
— Então você sugere uma alternativa como o circo enquanto aguarda a solução de uma pesquisa na
sua glândula? Vocês já consideraram isso?
Archimedes inesperadamente deu uma risadinha.

— Merlin quer organizar uma feira internacional, Senhor. Quer muitos aparelhos de acrobacias e
rodas-gigantes e ferrovias numa reserva com belos cenários, e todos devem ser levemente
perigosos, de forma a matar, digamos, um homem a cada cem. O ingresso é voluntário, pois ele diz
que uma coisa insuportavelmente má da guerra é o recrutamento obrigatório. Ele diz que as pessoas
irão a essa feira por vontade própria, seja por tédio ou deficiência de adrenalina ou seja lá qual a
razão, e que provavelmente sentirão essa necessidade entre os vinte e cinco, trinta ou quarenta anos
de idade. Deve virar moda e ser glorioso ir para lá. Cada visitante receberá uma medalha
comemorativa, e aqueles que forem cinqüenta vezes vão receber a Medalha de Serviços
Distinguidos, ou a Victoria Cross quando forem cem vezes.
O mágico parecia envergonhado e estalou os dedos.

— A sugestão — disse humildemente — era mais para provocar pensamentos do que para ser
considerada.
— Certamente não parece uma sugestão prática para este ano da graça. Enquanto isso, não existem
panacéias para a guerra que possam ser usadas?
— O comitê sugeriu um antídoto que pode ter efeito temporário, como a soda para acidez
estomacal. Seria inútil para curar a doença, mas pode aliviá-la. Pode salvar alguns milhões de
vidas em um século.
— Qual é esse antídoto?
— Senhor, já deve ter notado que as pessoas que são responsáveis pela declaração e pela alta
direção das guerras não tendem a ser as mesmas pessoas que sofrem seus efeitos extremos. Na

Batalha de Bedegraine, Vossa Majestade lidou com algo assim. Os reis e generais e os líderes de
batalhas têm uma aptidão peculiar para não morrerem nelas. O comitê sugeriu que, depois de cada
guerra, todos os oficiais do lado perdedor que tiverem um posto mais alto que coronel deveriam
ser imediatamente executados, independentemente de seus erros na guerra. Sem dúvida haveria uma
certa quantidade de injustiça nessa medida, mas a consciência de que a morte seria o resultado de
perder uma guerra teria um efeito intimidador sobre os que as promovem e regulam, e isso poderia,
ao evitar algumas guerras, salvar milhões de vidas entre as classes mais baixas. Até mesmo um
Führer como Mordred pensaria duas vezes sobre encabeçar hostilidades se soubesse que sua
própria execução seria o resultado se não se saísse bem.

— Parece razoável.
— É menos razoável do que parece, em parte porque a responsabilidade pela guerra não cabe
integralmente aos líderes. Afinal, um líder tem que ser escolhido ou aceito pelos que lidera. As
multidões com cabeças de hidras não são tão inocentes quanto pretendem. Elas deram um mandato
a seus generais e devem responder pela responsabilidade moral.
— Ainda assim, teria o efeito de fazer os líderes relutarem a ser impelidos para a guerra pelos seus
seguidores, e até mesmo isso ajudaria.
— Ajudaria. A primeira dificuldade reside em persuadir as classes dominantes a concordar com
essa convenção. Ademais, receio que se constate que sempre há um tipo de maníaco, ansioso por
notoriedade a qualquer preço, ou mesmo pelo martírio, que aceitaria a pompa da liderança até com
maior alacridade porque esta estaria enaltecida pelas penalidades melodramáticas. Os reis da
mitologia irlandesa eram compelidos por sua situação a marchar à frente nas batalhas, o que
provocava uma tremenda mortalidade entre eles, no entanto parece que jamais houve falta de reis
ou batalhas na história da Ilha Verde.
— E essa lei moderna que nosso Rei andou inventando? — perguntou, de repente, a cabra.— Se os
indivíduos podem ser dissuadidos de assassinar por medo da pena de morte, por que não pode
haver uma lei internacional sob a qual as nações possam ser dissuadidas de ir à guerra por meios
semelhantes? Uma nação agressiva poderia ser mantida em paz por saber que, se começasse uma
guerra, uma força policial internacional a sentenciaria a se dispersar, por exemplo, transportando
sua população em massa para outros países.
— Existem duas objeções a isso. Primeiro, se estaria tentando curar a doença, não preveni-la.
Segundo, sabemos pela experiência que a existência da pena de morte de fato não elimina o
assassinato. Poderia, no entanto, ser um passo temporário na direção correta.
O velho cruzou as mãos dentro das mangas, como um chinês, e olhou ao redor da mesa do Conselho
esperando, obstinado, mais perguntas. Seus olhos começaram a intimidar os demais.

— Ele está escrevendo um livro chamado Libellus Merlini, as Profecias de Merlin — continuou
Archimedes, travesso, quando viu que o assunto tinha terminado —, que pretendia ler em voz alta
para Vossa Majestade, assim que chegasse.
— Ouviremos a leitura.

Merlin torceu as mãos.

— Senhor — disse —, é uma simples adivinhação, apenas truques de cigano. Tinha que ser escrito
porque havia uma enorme agitação sobre isso no século doze, depois do qual o perderemos de vista
até o século vinte. Mas, Senhor, é um simples truque de auditório, não vale a atenção de Vossa
Majestade no momento.
— De qualquer maneira, leia-me alguns pedaços.
Assim o humilhado cientista, que na última hora tinha perdido toda sua capacidade de fazer
gracejos e argumentar, sacou o manuscrito chamuscado do guarda-fogo da lareira e distribuiu uma
coleção de folhas ainda legíveis, como se fosse mesmo um jogo de cena. Os animais os leram por
turnos, como se fossem provérbios, e foi isso o que disseram:

— Deus prove e o dodô anota.
— O urso cura a dor de cabeça cortando a própria, mas isso o deixa com o traseiro dolorido.
— O Leão se deitará com a Águia, dizendo: Finalmente os animais estão unidos! Mas o diabo vai
perceber a piada.
— As estrelas que ensinaram o Sol a se levantar têm que concordar com ele ao meio-dia, ou
desaparecer.
— Uma criança parada na Broadway irá gritar: Olha só, mamãe, lá está um homem!
— Como é demorado construir Jerusalém, dirá a aranha, descansando exausta em sua teia no piso
térreo do Empire State Building.
— Espaço vital produz espaço para o caixão, observou o besouro.
— Força produz força.
— Guerras de comunidade, condado, país, credo, continente, cor. Depois disso a mão de Deus, se
não antes.
— Imitação antes da ação salvará a humanidade.
— O alce morreu porque seus chifres cresceram demais.
— Não foi preciso nenhuma colisão com a Lua para exterminar os Mamutes.
— O destino de todas as espécies é a extinção como tal, felizmente para elas.
Houve uma pausa depois do último provérbio, enquanto os ouvintes matutavam sobre eles.
— Qual o significado desse com uma palavra em grego?
— Senhor, uma parte do seu significado, mas apenas uma pequena parte, é de que a esperança para
a raça humana deve repousar na educação sem coerção. Confiado formulou assim:
Para propagar a virtude pelo mundo, tem-se primeiro que dirigir seu próprio país.
Para dirigir seu próprio país, tem-se primeiro que dirigir a própria família.


Para dirigir a própria família, tem-se primeiro que regular o próprio corpo através
do treinamento moral.
Para regular o próprio corpo, tem-se primeiro que regular a própria mente.
Para regular a mente, tem-se primeiro que ser sincero em suas intenções.
Para ser sincero em suas próprias intenções, tem-se primeiro que aumentar o
próprio conhecimento.


— Percebo.
— O resto tem algum significado relevante? — perguntou o Rei.
— Nada de nada.
— Mas uma pergunta antes de nos levantarmos. Você disse que a política está descartada, mas ela
parece estar tão ligada à questão da guerra que deve ser enfrentada de alguma forma. Num momento
anterior você alegou ser um capitalista. Tem certeza dessas afirmações?
— Se disse isso, Majestade, não foi o que quis afirmar. O texugo estava falando comigo como se
fosse um comunista dos anos mil novecentos e vinte, o que me fez falar como um capitalista como
autodefesa. Eu sou um anarquista, como qualquer pessoa sensível. De fato, a corrida vai fazer
comunistas e capitalistas mudarem tanto durante as eras que terminarão indistintamente como
democratas. Da mesma forma, os fascistas também se modificarão. Mas quaisquer que sejam as
deformações adotadas por esses três ramos do coletivismo, e por muitos que sejam os séculos nos
quais se massacrem uns aos outros por causa de raivas infantis, o que permanece é o fato de que
todas as formas de coletivismo são equivocadas, em relação ao cérebro humano. O destino do
homem é individualista, e é nesse sentido que posso ter sugerido uma aprovação restrita do
capitalismo. O desprezado capitalista vitoriano, que pelo menos permitiu um bom espaço de
diversão para o indivíduo, provavelmente era mais autenticamente futurista na sua política do que
todas as Novas Ordens aclamadas no século vinte. Ele era do futuro, porque o individualismo
repousa no futuro do cérebro humano. Não era tão antiquado quanto os fascistas e comunistas. Mas
é claro que era consideravelmente antiquado apesar de tudo isso, e é por essa razão que prefiro ser
anarquista: ou seja, ser um pouco atualizado. Os gansos são anarquistas, você se lembra. Eles
compreendem que o sentido moral deve vir de dentro, e não de fora.
— Pensei — disse o texugo, queixoso — que o comunismo fosse um passo na direção da anarquia.
Pensei que quando o comunismo fosse realmente alcançado o Estado desapareceria.
— Pessoas já me disseram isso, mas duvido. Não consigo ver como se pode emancipar um
indivíduo criando primeiro um Estado onipotente. Não existem estados na natureza, exceto entre
monstruosidades como as formigas. Parece-me que pessoas que saem criando estados, como
Mordred está tentando fazer com seus Surradores, têm tendência a se envolver neles, e portanto se
tornam incapazes de escapar. Mas talvez o que você diz seja verdade. Espero que seja. De
qualquer maneira deixemos essas questões dúbias da política para os tiranos sombrios que as
procuram. Daqui a dez mil anos talvez seja o momento para os educados se preocuparem com tais
coisas, mas por enquanto é preciso esperar que a raça cresça. De nossa parte, nós oferecemos esta

noite uma solução para o problema especial da força como árbitro: a obviedade de que a guerra se
deve à propriedade nacional, sendo o ginete estimulado por certas glândulas. Por enquanto
fiquemos por aqui, pelo amor de Deus.

O velho mago afastou suas notas com a mão tremendo. Ele ficara profundamente magoado com as
críticas anteriores do ouriço porque, no segredo de seu coração, amava profundamente seu aluno.
Agora ele sabia, já que seu herói real tinha voltado vitorioso de sua escolha, que sua própria
sabedoria não era o final. Sabia que havia terminado sua tutela. Uma vez dissera ao Rei que ele
jamais voltaria a ser Wart, mas tinha sido apenas um encorajamento, não o dissera a sério. Agora,
falava a sério, agora sabia que ele mesmo cedera o lugar, tinha abdicado da autoridade de conduzir
ou dirigir. Essa abdicação custara-lhe a alegria. Já não seria capaz de continuar com suas arengas

ruidosas, nem dardejar e mistificar com as dobras cintilantes de sua capa mágica. A
condescendência de ensinar agora lhe provocava escrúpulos. Estava se sentindo velho e
envergonhado.

O velho Rei, cuja infância também havia desaparecido, brincava com um pedaço de papel deixado
sobre a mesa. Ele aplicava o truque de observar as próprias mãos, enquanto pensava. Dobrava o
papel de um jeito e depois o desdobrava cuidadosamente. Era uma das fichas de anotação de
Merlin, que o texugo tinha misturado com as Profecias: uma citação de um historiador chamado
Frei Clynn, que morrera em 1348. Esse frade, empregado como cronista de sua abadia para cuidar
dos registros históricos, tinha visto a Morte Negra chegar para agarrá-lo — possivelmente para
agarrar o mundo inteiro, pois já tinha matado um terço da população da Europa. Com cuidado, ele
deixou algumas peças de pergaminho branco dentro do livro que já não terminaria e concluíra com
a seguinte mensagem, que uma vez despertara em Merlin um estranho respeito: "Vendo essas muitas
enfermidades — ele tinha escrito em latim — e como se o mundo todo tivesse sido mergulhado na
malignidade, esperando entre os mortos que a morte venha até mim, escrevi o que verdadeiramente
ouvi e examinei. E para que o escrito não pereça com o escritor, ou o trabalho' fracasse com o
trabalhador, estou deixando aqui um pouco de papel para sua continuação — para o caso de se por
sorte algum homem permanecer vivo no futuro, ou se alguma pessoa da raça de Adão escapar desta
pestilência, poder prosseguir o trabalho que um dia comecei".

O Rei o dobrou cuidadosamente, confrontando-o com a mesa. Eles o observavam, sabendo que ele
estava prestes a se levantar, e prontos para seguir-lhe o exemplo.

— Muito bem — disse ele. — Nós compreendemos o enigma. Ele deu uma pancadinha na mesa
com o papel e ficou de pé.
— Devemos regressar antes do amanhecer.
Os animais estavam também se levantando. Eles o conduziram até a porta, acotovelando-se para
beijar sua mão e se despedir. Seu agora aposentado tutor, que devia levá-lo até a casa, segurava a
porta para ele passar. Fosse ele um sonho ou não, começava a bruxulear, como todos os demais.
Eles disseram:

— Bom sucesso para Vossa Majestade, uma saída rápida e bem-sucedida.
Ele sorriu gravemente, dizendo:

— Esperamos que seja rápida.
Mas ele estava se referindo à sua morte, como um deles sabia.
— É apenas por esta vez, Majestade — disse T. natrix. — Lembre-se da história de São Jorge, e o
Homo sapiens ainda é assim. Vós fracassareis porque é da natureza do homem matar, se não pela
ignorância, pela ira. Mas o fracasso constrói o sucesso e a natureza muda. O exemplo de um homem
bom sempre instrui o ignorante e diminui sua raiva, pouco a pouco através das eras, até que o
espírito das águas esteja contente. Portanto, grande coragem para Vossa Majestade, e um coração
tranqüilo.
Ele inclinou sua cabeça para aquele que sabia, e voltou-se para sair.

No último instante, uma pequena mão puxou sua manga, lembrando-o do amigo que ele tinha
esquecido. Ele levantou o ouriço com ambas as mãos em seus sovacos, e o manteve a distância do
braço, face a face.

— Ah, amigo — disse ele. — Temos que lhe agradecer em nome da realeza. Adeus, amigo, e vida
alegre para você e suas canções.
Mas o ouriço pedalava os pés como se estivesse numa bicicleta, porque queria descer. Puxou outra
vez a manga, logo que ficou a salvo no chão, e o velho abaixou a cabeça para ouvir o sussurro.

— Não, de jeito nenhum — falou roucamente, agarrando sua mão e olhando direto no seu rosto. —
Não diga adeus.

Puxou de novo pela manga, baixando a voz ao limite do silêncio.

— Até mais a verer — sussurrou o ouriço. — Até mais a verer.

XX


Bem, finalmente chegamos ao final de nossa intrincada história.

Arthur da Inglaterra voltou ao mundo para cumprir seu dever da melhor maneira possível. Pediu
uma trégua a Mordred, depois de se decidir a oferecer metade de seu reino para obter a paz. Para
dizer a verdade, ele estava preparado para ceder tudo, se necessário. Como posse, o reino havia
muito tinha deixado de ter valor para ele, e agora tinha certeza de que a paz era mais importante
que o reino. Mas achava que era seu dever reter uma metade se pudesse, e era por esta razão: se
tivesse pelo menos meio mundo onde trabalhar, talvez ainda fosse capaz de introduzir, nele, os
germes daquele bom senso que tinha aprendido com os gansos e animais.

A trégua foi feita, os exércitos alinhados para o combate, frente a frente. Cada um tinha um
estandarte feito de um mastro de navio colocado em rodas, no topo de cada qual uma pequena caixa
continha a Hóstia consagrada, enquanto, do mastro, pendiam as bandeiras do Dragão e do Cardo.
Os cavaleiros do bando de Mordred usavam armaduras negras, suas plumas também eram negras e,
em suas armas, o chicote escarlate do escudo de Mordred brilhava com o tom sinistro do sangue.
Talvez parecessem mais terríveis do que se sentiam. Foi explicado às tropas que não deveriam
fazer nenhuma demonstração de hostilidade, e que todos deviam manter as espadas embainhadas.
Apenas, com medo de traição, foi-lhes dito que poderiam atacar em socorro, se alguma espada
fosse vista desembainhada enquanto parlamentavam.

Arthur avançou para o espaço entre os exércitos com seu pessoal, e Mordred, com seu próprio
pessoal usando as vestimentas negras, veio encontrá-lo. Eles ficaram frente a frente, e o velho Rei
mais uma vez viu o rosto de seu filho. Estava tenso e perturbado. Ele também, pobre homem, tinha
vazado mais além da Pena e da Solidão no país de Kennaquhair; mas fora sem guia e tinha se
perdido.

Para a surpresa de todos, o tratado foi concluído mais facilmente do que ele esperara. O Rei ficou
com metade de seu reino. Por um instante, a alegria e a paz estavam na balança.

Mas, naquele momento crucial, o velho Adão levantou-se de uma forma diferente. A guerra feudal,
a opressão dos barões, o poder individual, e mesmo a rebelião ideológica: tudo isso ele tinha
conseguido resolver, de uma forma ou de outra, só para ser vencido, no último momento, pelo fato
episódico de que o homem era um assassino por instinto.

Uma cobra mexeu-se pelo prado onde estavam, perto de um oficial do pessoal de Mordred. Esse


oficial recuou instintivamente e girou a mão pelo corpo, o bracelete com o chicote aparecendo num
segundo como um relâmpago. A espada brilhante apareceu flamejando, vibrando para matar a
assim chamada víbora. Os exércitos que esperavam, tomando isso por traição, levantaram o grito
do ódio. As lanças dos dois lados se aprestaram. E, enquanto o Rei Arthur corria em direção a seu
próprio esquadrão, um velho de cabelos brancos tentando represar a maré interminável, levantando
as mãos nodosas no gesto de fazê-los recuar, lutando até o fim contra a torrente da Força que, em
toda a sua vida, irrompeu em um novo lugar sempre que ele a rechaçava, então o tumulto se formou,
os gritos de guerra soaram, e as águas chocaram-se por cima de sua cabeça.

Lancelot chegou tarde demais. Ele tinha vindo na maior rapidez, mas foi em vão. Tudo que pôde
fazer foi pacificar o país e enterrar os mortos. Então, quando uma aparência de ordem foi
restaurada, correu para Guenevere. Ela ainda deveria estar na Torre de Londres, pois o cerco de
Mordred tinha fracassado.

Mas Guenevere tinha ido embora.

Naquela época as regras dos conventos não eram tão estritas quanto são agora. Muitas vezes não
eram mais que hospedarias para seus patronos bem-nascidos. Guenevere tinha vestido o véu em
Amesbury.

Ela achou que eles tinham sofrido o bastante, e causado demasiado sofrimentos a outros. Recusou-
se a ver seu antigo amor ou conversar sobre sua decisão. Disse, o que era evidentemente mentira,
que queria fazer as pazes com Deus.

Guenevere nunca tinha se importado com Deus. Era uma boa teóloga, mas isso era tudo. A verdade
é que estava velha e sábia: sabia que Lancelot se importava com Deus apaixonadamente, e era
essencial que ele se voltasse nessa direção. Assim, pelo bem dele, para tornar a coisa mais fácil
para ele, a grande rainha renunciava agora àquilo pelo qual lutara toda a sua vida, agora dava o
exemplo, e sustentou sua escolha. Saiu do cenário.

Lancelot adivinhou uma boa parte disso tudo e, quando ela se recusou a vê-lo, subiu pelo muro do
convento com galanteria gaélica e envelhecida. Ele a emboscou para censurá-la, mas ela foi brava
e inflexível. Alguma coisa em relação a Mordred parecia ter quebrado sua paixão pela vida. Eles
se separaram, para jamais se verem novamente nesta terra.

Guenevere tornou-se uma abadessa mundana. Governava seu convento com eficiência, realeza, com
uma espécie de desprezo superior. Os pequenos alunos de sua escola eram educados na grande
tradição da nobreza. Eles a viam caminhar pelos terrenos, reta, rígida, os dedos brilhando com
anéis, as roupas limpas e finas e perfumadas contra as regras de sua ordem. As noviças a adoravam
de forma unânime, com paixão de escolares, e sussurravam sobre seu passado. Ela se tornou a
Velha Grande Dama. Quando finalmente morreu, seu Lancelot veio buscar o corpo, com seus
cabelos brancos como a neve e a face enrugada, para levá-lo até a tumba do esposo. Lá, na
renomada tumba, ela foi enterrada: um rosto calmo e real, lacrada com pregos e escondida na terra.

Quanto a Lancelot, este se transformou definitivamente num eremita. Com sete de seus cavaleiros
como companheiros, entrou num mosteiro em Glastonbury e dedicou sua vida à devoção. Arthur,
Guenevere e Elaine se foram, mas seu amor fantasmal permaneceu. Ele rezava por todos eles duas


vezes por dia, com todo seu poder jamais vencido, e vivia em contente austeridade afastado dos
homens. Chegou até a aprender a distinguir os cantos dos pássaros, e ter tempo para todas as coisas
que lhe tinham sido negadas pelo Tio Dap. Tornou-se um jardineiro excelente, e um santo reputado.

"Ipse", diz um poema medieval sobre outro velho cruzado, um grande senhor como Lancelot em seu
tempo, e que também se retirou do mundo:

Ipse post militiae cursum temporalis,
Illustratus gratia doni spiritualis,
Esse Christi cupiens miles specialis,
In hac domo monachus factus est claustralis.


Ele, depois do alvoroço das guerras mundanas,
Iluminado com a graça de um dom espiritual,
Ávido por ser o soldado especial de Cristo,
Nesta casa se tornou monge enclausurado.
Mais do que em geral plácido, gentil e benigno,
Branco como um ganso por conta de sua velha idade,
Brando, afável e louvável,
Possuía em si a graça do Espírito Santo.
Pois freqüentemente ia à Santa Igreja,
Alegremente ouvia os mistérios da Missa,
Proclamava tais louvores quanto era capaz
E mentalmente ruminava a glória celestial.
Sua conversação gentil e jocosa,
Altamente louvável e religiosa,
Era assim agradável a toda fraternidade,
Já que não era nem presunçosa nem melindrosa.
Ele, sempre que vagava pelo claustro,
Inclinava-se de um lado para o outro diante dos monges,
E saudava com uma inclinação da cabeça, assim,
Aqueles a quem amava mais intimamente.


Hic per claustrum quotiens transiens meavit,
Hinc e hinc ad monarchos caput inclinavit,
Et sic nutu capitis eos salutavit,
Quos affectu intimo plurimum amavit.


Quando sua própria hora final chegou, foi acompanhada por visões no monastério. O velho abade
sonhou com sinos tangendo belamente, e com anjos, de riso alegre, levando Lancelot para o


Paraíso. Eles o encontraram morto em sua cela, no ato de completar o terceiro e último de seus
milagres. Pois tinha morrido naquilo que se chamava Odor de Santidade. Quando os santos
morrem, seus corpos enchem o quarto com olor adorável, talvez do feno novo, ou de floração na
primavera, ou de praia marinha limpa.

Ector fez o lamento fúnebre do irmão, uma das peças mais tocantes de prosa do idioma. Ele disse:

— Ah, Lancelot, foste a cabeça dos cavaleiros Cristãos. E agora ouso dizer, quando aí jazes, que
nunca jamais a mão terrena de nenhum cavaleiro foi par para a tua. E que foste o mais cortês
cavaleiro que jamais portou escudo. E que foste o amigo mais verdadeiro de teu amor que jamais
montou numa sela. E que foste o mais verdadeiro dos amantes entre os pecadores que jamais
amaram uma mulher. E que foste o mais gentil homem que portou uma espada. E que foste o mais
santo dentre todos os cavaleiros. E que foste o homem mais meigo e gentil que jamais esteve numa
sala com damas. E que foste o mais rigoroso cavaleiro diante do inimigo mortal e que jamais
descansou sua lança.
A Távola Redonda fora esmagada em Salisbury, seus poucos sobreviventes se dizimando ao passar
dos anos. No final restavam apenas quatro deles: o misógino Boris, Bleoberia, Ector e Demaris.
Esses velhos homens fizeram uma peregrinação até a Terra Santa pelo repouso de todos os seus
camaradas, e lá morreram todos numa Sexta-Feira Santa, os últimos da Távola Redonda. Agora não
restava mais nenhum deles: só os cavaleiros da ordem do Bath e de outras ordens degradadas.

Sobre o Rei Arthur da Inglaterra, aquele coração gentil e centro de tudo isso, um mistério
permanece até hoje. Alguns acham que ele e Mordred pereceram um com a espada do outro. Robert
de Thornton menciona que ele foi atendido por um cirurgião em Salerno que, ao examinar seus
ferimentos, descobriu que ele jamais poderia se curar e então "ele disse In manusk{34}
corajosamente no lugar onde estava... e não mais falou". Aqueles que aderem a esse relato alegam
que ele foi enterrado em Glastonbury, sob uma pedra que diz: HIC JACET ARTURUS REX
QUONDAM REX QUE FUTURUS{35}, e que seu corpo foi exumado por Henrique II como
contragolpe ao nacionalismo gales — pois os Cymry{36} alegavam já então que o grande Rei jamais
tinha perecido. Acreditavam que ele regressaria para liderá-los, e também mentirosamente
asseguravam, como sempre, sua nacionalidade britânica. Adam de Dormerham nos conta, por outro
lado, que a exumação aconteceu em abril de 1278, sob Eduardo II, e que ele mesmo testemunhou os
procedimentos; ao mesmo tempo se sabe que uma terceira busca aconteceu em vão sob Eduardo III

— que, dito seja, reviveu a Távola Redonda em 1344, como uma séria ordem da cavalaria como a
da Jarreteira. Seja qual tenha sido a data verdadeira, a tradição mantém que os ossos, quando
exumados, eram de estatura gigantesca, e que os cabelos de Guenevere eram dourados.

Quanto a Lancelot, este se transformou num eremita. Com sete de seus cavaleiros como
companheiros, entrou num mosteiro em Glastonbury e dedicou sua vida a devoção.

Então existe outro conto, amplamente apoiado, falando que nosso herói foi transportado para o vale
do Affalach por uma coleção de rainhas em um bote mágico. Acreditam que elas o levaram
cruzando o Severn até seu próprio país, onde curaram suas feridas.

Os italianos se apoderaram da idéia de um certo Arturo Magno que se trasladou para o monte Etna,
onde ainda pode ser visto ocasionalmente, dizem. Don Quixote, o espanhol, cavalheiro muito culto,
que realmente enlouqueceu por conta disso, sustenta que ele se transformou num corvo — uma
asserção que pode não ser tão ridícula para os que leram nossa pequena história. E também há os
irlandeses, que o misturaram com um dos Fitzgeralds e declaram que ele cavalga ao redor de uma
fortificação pré-histórica irlandesa, com a espada levantada, cantando o Londonderry Air. Os
escoceses, que têm uma lenda sobre


Arthur Cavaleiro
Que cavalga na noite
Com espora dourada
E luz de candelabros,


ainda juram que ele está em Edimburgo, onde acreditam que preside do Arthur's Seat{37}. Os
bretões alegam escutar seu corno e ter visto sua armadura, e também acreditam que ele regressará.
Um livro chamado The High History of the Holy Gr ail, traduzido por um erudito irascível chamado
Dr. Sebastian Evans, diz, ao contrário, que ele foi enterrado em segurança numa casa religiosa "que
está situada na ponta dos Pântanos Aventurosos". Uma senhorita Jessie L. Eston menciona um
manuscrito que ela tem o prazer de denominar 1533, apoiada pela Morte d Arthur, no qual se
declara que a rainha que chegou para levá-lo não era outra senão a envelhecida Morgana, sua meia-
irmã, e que ela o levou para uma ilha mágica. O Dr. Sommer considera o relato absurdo. Um grupo
de pessoas chamadas Wolfram von Eschenbach, Ulrich von Zatzikhoven, Dr. Wechssler, Professor
Simmer, Sr. Nutt e outros mais ou desprezam completamente o assunto ou permanecem numa
confusão erudita. Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Wordsworth, Tennyson e várias outras
testemunhas confiáveis concordam que ele ainda vive sobre a terra: Milton inclina-se a acreditar
que ele está sob a terra (Arturumque etiam sub terris bella moventem{38}), enquanto Tennyson é de
opinião que ele voltará a nos visitar, "como um moderno cavalheiro de porte Imponente",
possivelmente como o Príncipe Consorte. A contribuição de Shakespeare é colocar o amado
Falstaff, em sua morte, não no seio de Abraão, mas no de Arthur.

As lendas das pessoas comuns são belas, estranhas e afirmativas. Gervase de Tilbury, escrevendo
em 1212, diz que, nas florestas da Bretanha, "os couteiros contam que em dias alternados, por volta
do meio-dia, ou à meia-noite quando a lua está cheia e brilhante, muitas vezes vêem um bando de
caçadores que, ao responder às perguntas, dizem que são da casa e companheiros de Arthur". Estes,
entretanto, provavelmente eram verdadeiros bandos de caçadores clandestinos saxões, como os
seguidores de Robin Wood, que apelidaram seu bando em honra ao antigo Rei. Os homens de
Devon estão acostumados a apontar "a cadeira e o forno" de Arthur nos rochedos de sua costa. Em
Somersetshire existem algumas aldeias chamadas de Camellot do Leste e do Oeste, mencionadas
por Leland, envolvidas por lendas sobre um rei que ainda reina com uma coroa dourada. Deve-se
notar que o rio Ivel, onde, segundo Drayton, nossas "façanhas cavalheirescas e bravos sucessos
brotaram", está na mesma região. Assim também é Cadbury do Sul, cujo pároco afirma que seus
paroquianos relatam como "as pessoas dizem que na noite de lua cheia o Rei Arthur e seus homens
cavalgam pela colina, e seus cavalos estão ferrados de prata, e uma ferradura de prata foi
descoberta na trilha por onde passam, e quando terminam de cavalgar pela colina param para dar.
água a seus cavalos na fonte dos desejos". Finalmente há a pequena aldeia de Bodmin, na
Cornualha, cujos habitantes têm certeza de que o Rei habita um túmulo local. Em 1113 eles
chegaram a assaltar, dentro do santuário, um grupo de monges da Bretanha — coisa jamais vista —
porque tinham duvidado da lenda. Há que se admitir que algumas dessas datas dificilmente podem


se encaixar no espinhoso assunto da cronologia arturiana, e Malory, esse grande homem que é a
fonte mais nobre de toda esta história, mantém cautelosa reserva.

Quanto a mim, não posso me esquecer do último adeus do ouriço, ligando-o à deixa do Quixotesobre os animais e o sonho subterrâneo de Milton. É pouco mais que uma teoria, mas talvez os
habitantes de Bodmin devam procurar nos outeiros e, se este for como um enorme montículo como
os das toupeiras, com uma abertura escura em um lado, e particularmente se houver rastros de
texugo nas vizinhanças, podemos chegar a nossas próprias conclusões. Pois sou inclinado a
acreditar que meu amado Arthur do futuro está neste exato momento sentado entre seus amigos
eruditos, na Sala do Acordo do Colégio da Vida, e que lá estão gastando o bestunto sobre os
melhores meios de ajudar nossa curiosa espécie. E, por mim, eu espero que algum dia, quando não
apenas a Inglaterra, mas o mundo inteiro precisar deles, e quando estiverem prontos para ouvir a
razão, se isso acontecer, sairão de sua fortificação com alegria e poder. E então, talvez, mais uma
vez nos proporcionarão felicidade no mundo, e cavalheirismo, e a velha bênção medieval de
algumas pessoas simples que tentaram, de alguma maneira, e de sua forma limitada, deter o antigo e
brutal sonho de Atila, o Huno.

***

Explicit líber Regis Quondam, graviter et laboriose scriptus inter annos MDCCCCXXXVI e
MDCCCCXLII, nationibus in diro bello certantibus. Hk etiam incipit, si forte in futuro homo
superstes pertilen-ciam possit evadere et opus continuare inceptum, spes Regis Futuri. Ora pro
Thoma Malory Equite, discipuloqúe humili ejus, qui nunc sua sponte libros deponit ut pro specie
pugnet.


Aqui termina o livro d'o único e eterno rei, escrito com muito labor e esforço entre os anos de 1936
e 1942, quando as nações lutavam em temível guerra. Aqui também começa — se por acaso um
homem no tempo futuro sobreviver à pestilência e continuar a tarefa que ele começou — a
esperança do Futuro Rei. Rezai por Thomas Malory, Cavaleiro, e seu humilde discípulo, que agora
voluntariamente deixa de lado seus livros para lutar por sua espécie.



Personagens deste volume


Os últimos dias do Rei Arthur, seu mágico e seus professores animais


Lancelot, Leia na seção "Os protagonistas".

Guenevere, Idem.

Merlin, Idem.

Lyó-Lyok, é uma gansa que ensina a Arthur o sentido da paz e expõe a ele a crueldade da guerra.
Merlin transforma Arthur em um ganso e Lyó-Lyok torna-se sua professora durante o tempo em
transformação.

Mordred, cavaleiro da Távola Redonda, é filho bastardo do Rei Arthur e sua meia-irmã, a terrível
Morgause. Foi abandonado pelo pai, com outros bebês, em um barco a deriva para ser destruído.
Agora, cego pelo ódio, planeja vingar-se destruindo o que é mais caro ao Rei: sua esposa
Guenevere e seu fiel amigo Lancelot.


Nota do editor


O livro de Merlin, escrito por T. H. White durante a Primeira Guerra Mundial, deveria ser o último
livro de uma coleção de cinco volumes intitulada 0 único e eterno rei. Mas quando O único e
eterno rei foi publicada, em 1958, O livro de Merlin não foi incluído.

White não viu as provas de o livro de Merlin depois que o manuscrito completo foi entregue para
publicação, no final de 1941, e, como ele tinha o hábito de fazer correções e emendas do seu
trabalho depois de composto, esse manuscrito não estava em sua forma final quando chegou até nós.
No entanto, parecia quase completo e só exigiu um trabalho mínimo de edição.

A edição da Putnam de O único e eterno rei, de 1958, serviu de guia para a nossa edição. O uso da
pontuação no diálogo foi normatizado. Todos os erros de ortografia foram corrigidos e as
ortografias arcaicas inglesas, mantidas. Os títulos de livro e, no geral, os nomes de gênero e
espécies ficaram em itálico, e onde White mostrou-se algo inconsistente ao empregar as
maiúsculas, em palavras tais como texugo, homem e democracia, os acertos foram feitos. Nos
poucos casos em que o tipógrafo obviamente omitiu uma palavra, esta foi devidamente inserida.

Dois episódios em O livro de Merlin — cenas em que Merlin transforma Arthur em uma formiga e
mais tarde em um ganso — já haviam aparecido em A espada na pedra, o primeiro livro da trilogia.
White originalmente escreveu-os para O livro de Merlin, em sua versão de cinco livros para 0
único e eterno rei, e, portanto, deixamos que aí ficassem.

Quando o latim e o grego não estão traduzidos no manuscrito original, a tradução foi gentilmente
feita por Peter Green.


EXPLICIT LIBER



A obra


A saga do homem em busca de sua melhor natureza


O único e eterno rei, de T. H. WHITE é considerado em todo o mundo o mais completo e original
relato da saga imortal do Rei Arthur -a "Bíblia" da legenda arturiana. Sua publicação, há pouco
mais de meio século, formulou a visão que todas as gerações subseqüentes fizeram, e fazem, do
mito arturiano -mito que, antes de White, era objeto quase exclusivo do estudo acadêmico. Todas
as releituras e re-elaborações posteriores a 0 único e eterno rei, sejam literárias (como As brumas
de Avalon), cinematográficas (o musical Camelot, o desenho animado A espada era a lei, de Walt
Disney) ou teatrais, bem como uma infinidade de ensaios e teses sobre o tema, têm como referência
primeira a grande obra de White. 0 único e eterno rei influenciou diretamente, ainda, o
desenvolvimento dos dois grandes ciclos épicos da literatura britânica do pós-guerra, Narnia e 0
senhor dos anéis, imaginados e escritos por C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, respectivamente.

White recria a saga épica do Rei Arthur, de sua educação e experiências de infância até o momento
de sua morte, com o insight psicológico e social de que, obviamente, careciam os primeiros relatos
da lenda, que remontam ao princípio do segundo milênio. O ponto de partida para O único e eterno
rei é o romance Le morte d'Arthur, de Sir Thomas Malory (1407-1471), a primeira compilação,
em uma narrativa linear, dos relatos esparsos, orais e escritos, que até então compunham a legenda
arturiana. White é fiel, em seu relato, às linhas gerais da narrativa de Malory, e lhe dá um
detalhamento quase impressionista, a que acrescenta sentidos e valores. Ele escreveu a obra
enquanto a Europa submergia nos conflitos da Segunda Guerra Mundial, e quis aproximar a leitura
da saga à compreensão daqueles tempos tumultuados e insanos. Para tal usou largamente, e com
desenvoltura de poucos antes dele, dos recursos do anacronismo, que lhe permitiram inserir
conceitos e conhecimentos contemporâneos e acrescentar à narrativa original histórias e
personagens de outras eras, que se mesclam para aprofundar suas próprias lendas e aquela na qual
se encontram como convidados.

É o tom contemporâneo, que White consegue antes de tudo com o uso dos anacronismos, que dá a O
único e eterno rei o tom de romance moderno, baseado em um mito e ao mesmo tempo
desmitificador. E é o que ajuda o leitor a identificar-se com a história, em vez de colocá-la
estritamente no âmbito e no contexto do período arturiano. O recurso do anacronismo é usado logo
no começo de A espada na pedra, o primeiro dos cinco volumes da saga, com o propósito de
estabelecer de imediato perante o leitor o tom que o relato terá. Em um encontro entre Sir Ector e
Sir Grummore (à pág. 11), White coloca os personagens bebendo vinho do Porto e referindo-se a


uma tradicional escola britânica, Eton, para esclarecer em seguida, pela voz do narrador (o autor,
ainda que não se explicite, é o narrador, uma evidência proposital em todo o livro):

Não era exatamente Eton que ele queria dizer, pois o Colégio da Sagrada Maria só seria fundado
em 1440, mas a um lugar do mesmo tipo. Também, estavam bebendo hidromel e não Porto, mas
mencionar o vinho moderno dá uma idéia melhor.

O único e eterno rei é o livro central em toda a extensa obra do autor, e aquele em que procura
respostas para as questões do mundo moderno. O anacronismo é aí novamente a ferramenta de
busca: White expõe e relaciona a vida de Arthur aos problemas do mundo moderno para esgrimir
teses e antíteses. Ainda em A espada na pedra (à pág. 250), Merlin e Wart conversam sobre as
artes da cavalaria e Wart expressa o desejo de que Deus lhe permita enfrentar todo o mal do mundo
em sua própria pessoa; Merlin contrapõe-se à afirmação dizendo que seria extremamente
pretensioso da parte dele, e o levaria à destruição. Merlin faz mais que um contraponto -faz uma
profecia -, e o autor faz um pronunciamento: diz pela voz de Merlin e pelo 1 destino de Arthur que
a sociedade não pode ser governada apenas pelo poder. Stephen Dunne, estudioso inglês de sua
obra, diz que o universo mitológico arturiano segundo White não propõe uma representação fugidia
do real, mas "ainda é o mundo como nós o conhecemos". Infelizmente, ele acrescenta.

T. H. White também consegue evitar a monotonia de fazer a mera recriação da lenda arturiana com
a adição de personagens criados por ele e outros, que toma emprestado de outras lendas. A
personagem do Rei Pellinore é exclusiva de O único e eterno rei, e uma adição à narrativa e ao
cast de Malory. As muitíssimas aventuras de Wart, o menino que se tornará o Rei Arthur, também
são itens agregados, e sempre convergem para o tema da formação do indivíduo -aliás, muitos
estudiosos apontam o tema da educação como o pilar básico na estrutura da obra.
A educação de Wart dá a White todos os pretextos de que necessita para discorrer sobre o tema do
aprimoramento da natureza humana. Foi esse discurso subjacente que fez de sua versão da lenda deArthur a mais tocante para o leitor moderno. É sua voz e sua tese central que se fazem ouvir na
breve e poderosa alocução de Merlin em A espada na pedra:

A melhor coisa a fazer quando se está triste é aprender alguma coisa. Essa é a única coisa que
nunca falha. Você pode ficar velho e trêmulo em sua anatomia, pode passar a noite acordado
escutando a desordem de suas veias, pode sentir saudades de seu único amor, pode ver o mundo ao
seu redor ser devastado por lunáticos malvados ou saber que sua honra foi pisoteada no esgoto das
mentes baixas. Só há uma coisa para isso-, aprender. Aprender por que o mundo gira e o que o faz
girar. Essa é a única coisa da qual a mente não pode jamais se cansar, nem se alienar, nem se
torturar, nem temer ou descrer, e nunca sonhar em se arrepender. Aprender é o que lhe resta.

Essa extraordinária lição ficou durante mais de meio século inacessível aos brasileiros; agora, toda
a sabedoria de 0 único e eterno rei chega até nós na mais bela edição da obra em todo o mundo,
inteiramente ilustrada por ALAN LEE e na magnífica tradução de uma das melhores escritoras da
língua portuguesa. MARIA JOSÉ SILVEIRA.


Os protagonistas


Uma linhagem perene no imaginário universal


O Rei Arthur é a personagem principal de O único e eterno rei, e o centro emocional de todo o
ciclo. O romance acompanha a vida de Arthur do começo ao fim, e os principais eventos de sua
vida conformam toda a história. Arthur é o filho do Rei Uther Pendragon e de Igraine, uma rainha
Orkney. Ele resulta do rapto e da sedução de Igraine por Uther; é entregue por Merlin, que depois
virá a ser seu tutor, a Sir Ector, que irá criá-lo junto ao seu filho Kay no Castelo da Floresta
Sauvage. Depois de tornar-se rei, as idéias de Arthur sobre governo reconfiguram a sociedade do
reino, e essas mudanças determinam a trama, a cronologia e o cenário dos cinco volumes que
compõem a obra. O próprio título do ciclo determina que, embora a história termine com Arthur,
ele será sempre o supremo líder de seu povo. Apesar de sua extraordinária importância para o
romance, White faz do Rei Arthur uma personagem bastante descomplicada, qualidade que foi
objeto eventual de críticas: o Arthur de White não é um guerreiro glorioso, mas um formidável
administrador e reformador político. Quando criança, Arthur (então chamado Wart) é honesto,
confiável, modesto e tem bom coração; como rei, ele preserva tais qualidades. O Rei Arthur marca
seu governo por uma nova e importante filosofia que o faz um grande rei, mas suas idéias são
basicamente as de Merlin. O que o torna excepcional é sua fé absoluta nas idéias que discute com o
tutor e o fato de ser capaz de invocá-las e aplicá-las quando se torna rei.

Arthur desenvolve uma sábia consciência ao longo dos cinco volumes da obra, mas esse
desenvolvimento é gradual e sua natureza básica nunca é drasticamente alterada. Um benevolente
otimismo não permite que reconheça de imediato o evidente envolvimento entre Lancelot e
Guenevere; mais tarde, a mesma benevolência faz com que ele os convença a manter seu caso em
segredo. Arthur envelhece e torna-se mais sábio, mas continua incapaz de agir de forma áspera com
aqueles que ama, não importa o quanto eles o tratem mal. Em certo sentido, é a simplicidade e a
séria cautela de Arthur que levam à queda de seu reino. Embora a causa direta para sua tragédia
seja seu caso incestuoso com Morgause, sente-se que Camelot também está perdida porque
estagnou-se. A energia e o progresso do primeiro período do reinado Arthur diminui e cessa,
Camelot corrompe-se, e não sobrevive.

Lancelot é o protagonista do terceiro volume, O cavaleiro imperfeito, e o maior dos cavaleiros na
companhia da Távola Redonda. E também o melhor amigo de Arthur, mas um amigo complexo e


cheio de contradições. Lancelot é igualmente o oposto de Arthur, porque embora esteja sempre apto
a colocar-se rapidamente em ação, ele raramente usa essa habilidade para fazer do mundo um lugar
melhor. A feiúra de Lancelot lhe dá a sensação de que ele pouco vale, um sentimento de
inadequação que se manifesta muito cedo, mas essa baixa auto-estima tem sua exata e oposta
correspondência no talento impressionante, quase sobrenatural, que demonstra nas lides da
cavalaria. A facilidade com que Lancelot conquista todas as glórias possíveis a um cavaleiro,
aliada a um lancinante senso de inferioridade, é a fonte de suas contradições internas e de
comportamento. O Golum de Tolkien deve muito à forma como White desenvolveu a personagem
de Lancelot. Ele é a um só tempo religioso e voluptuoso, quieto e exaltado, manso e violento. E é
simultaneamente o melhor amigo e o traidor de Arthur.

A Rainha Guenevere é a terceira figura no triângulo amoroso que domina a segunda metade do
romance. Ela é bonita, mas ciumenta, egoísta, caprichosa e rasa. Guenevere é capaz de expressar
um amor genuíno e profundo, como o que sente por Arthur e Lancelot, mas enquanto a culpa de
Lancelot sobre seu envolvimento amoroso adquire proporções épicas e ameaça destruí-lo, qualquer
culpa que sinta Guenevere sobre o caso vem depois de sua brutal necessidade de estar fisicamente
com Lancelot. Ela mal se preocupa em esconder o envolvimento, e a certa altura fica visivelmente
excitada com a possibilidade de reunir-se a Lancelot diante de Arthur. Ao envelhecer, Guenevere
tenta desesperadamente permanecer jovem e bela. Ela é uma personagem central, mas é mais
importante pela forma como os outros se sentem a seu respeito do que pelo que faça ou sinta. O
romance As brumas de Avalon surge da percepção dessa visão essencialmente masculina que
norteia o relato de 0 único e eterno rei, e vai compor a mesma saga do ponto de vista de suas
personagens femininas.

Merlin é um mago que já viveu no futuro, portanto sabe o que vai acontecer a seguir. Merlin é tutor
e amigo de Arthur, sua consciência, e a criação da Távola Redonda e de um reino mais civilizado
por Arthur deve-se largamente a sua influência. Embora poderoso, Merlin é também muito gentil -e
ligeiramente fora de centro. Depois de raptado por uma bruxa chamada Nimue, no segundo volume,
só irá reaparecer no quinto volume da saga.


A historia do livro


"O sonho, como o anterior, demorou cerca de meia hora. Nos últimos três minutos, alguns
peixes, dragões e coisas assim passaram correndo. Um dragão engoliu um seixo, mas o cuspiu
fora.

No último piscar de olhos, muito mais diminuto no tempo do que o último milímetro de uma
régua gigantesca, o homem apareceu. Com pancadas, ele quebrou o único seixo que permaneceu
de toda aquela montanha; com ele fez a ponta de uma flecha, e matou seu irmão."

A ESPADA NA PEDRA


"Meu pai fez para mim um castelo de madeira grande o suficiente para que se entrasse dentro, e
fixou canos de pistolas verdadeiras abaixo das ameias para disparar uma saudação em meu
aniversário, mas me fez sentar na frente na primeira noite — aquela profunda noite indiana — para
receber a saudação, e eu, acreditando que iam atirar em mim, chorei."

Em toda a sua vida, White foi sujeito a medos: medos vindo de fora — uma ameaçadora mãe
psicopata, os diretores do Cheltenham College "brandindo suas bengalas", pobreza, tuberculose,
opinião pública; medos vindo de dentro — medo de ter medo, de ser um fracasso, de ser apanhado.
Tinha medo da morte, medo do escuro. Tinha medo de suas próprias predisposições, que poderiam
ser chamadas de vícios: bebidas, rapazes, um sadismo latente. Notavelmente livre do temor a Deus,
temia basicamente a raça humana. Sua vida foi uma batalha contínua contra esses temores, os quais
combatia com coragem, volubilidade, graça sardônica e empenho. Jamais ficava sem um projeto,
jamais se cansava de aprender, e tinha uma alta opinião sobre suas capacidades.

Essa alta opinião era compartilhada por seus professores na Universidade de Cambridge. Quando a
tuberculose o pegou no segundo ano, um grupo de membros graduados reuniu a quantia suficiente de
dinheiro para mandá-lo à Itália para uma convalescença de um ano. Na Itália, ele sentiu-se como
um pato na água, aprendeu a língua, fez alguns amigos, estudou a vida nas pensões e escreveu seu
primeiro romance, They Winter Abroad. O incentivador do fundo de convalescença recordava: "...
ele retornou em grande forma, determinado a tirar o sangue do examinador na Parte II; e, como era
de prever, em 1929 tirou um Primeiro Lugar com Distinção".


Em 1932, por recomendação de Cambridge, foi nomeado chefe do Departamento de Inglês em
Stowe School.

Era uma posição de autoridade, sob uma direção esclarecida que lhe dava muito espaço. Seus
alunos ainda se lembram dele, alguns pelo estímulo de seus ensinamentos, outros pela mordacidade
de sua crítica, outros ainda pelas perambulações extracurriculares à procura de cobras na grama.
Ele aprendeu a voar, com o objetivo de acabar com o medo de cair de lugares altos, e a pensar um
pouco melhor da raça humana ao conhecer os trabalhadores das fazendas na taberna local. Depois
de um par de anos, cansou-se de Stowe e inventou, sem prova alguma, que o diretor queria se ver
livre dele. Tendo que enfrentar o temor à pobreza, ele fez dois livros com intenções comerciais e
compilou outro. Uma pescaria na chuva e solidão, no feriado da Páscoa, mostrou-lhe o que
realmente queria — a liberdade de escrever, ter em mãos um livro seu além de um salmão.

Em meados do verão de 1936, demitiu-se de seu posto e alugou uma choupana de guarda-caça em
Stowe Ridings, na região de Stowe. O trabalho compilado a partir de extratos de seus diários de
pesca, caça, tiro e vôo, e chamado England Have My Bonés, vendeu tão bem que o editor resolveu
pagar-lhe duzentas libras anuais por um livro ao ano.

A choupana de guarda-caça ficava no meio da mata — uma vigorosa estrutura vitoriana sem
amenidades. Foi à luz de lampião que White tirou de urna estante um exemplar de Morte d'Arthur,
que tinha usado para o ensaio sobre Malory, o qual entregara como parte dos exames de inglês.
Naquele momento, ele estava preocupado com a impressão que causaria nos examinadores. Agora,
leu-o com a mente livre.

Uma das vantagens de tirar o Primeiro Lugar com Distinção era inglês é a capacidade de ler. White
leu a Morte d'Arthur tão argutamente como se estivesse lendo uma síntese. O comentário em que ele
resume o que achou pode ter sido seu primeiro passo em direção a 0 único e eterno rei:

"Toda a história arthuriana é uma condenação grega comum, comparável à de Orestes.

Uther começou o erro contra a família do Duque da Cornualha e foi um descendente dessa família
que finalmente vingou o erro em Arthur. Os pais tinham comido uvas verdes etc. Arthur teve que
pagar pela transgressão inicial do pai, mas, para fazer a coisa mais justa, os fados ordenaram que
ele próprio também cometesse uma transgressão (contra os da Cornualha), para ligá-lo mais
intimamente à sua perdição.

Aconteceu assim.

O Duque da Cornualha desposou Igraine e tiveram três filhas: Morgana Le Fay, Elaine e Morgause.

Uther Pendragon apaixonou-se por Igraine e, para ficar com ela, matou seu esposo na guerra. Em
Igraine ele gerou Arthur; portanto, Arthur é meio-irmão das três mulheres, mas foi criado
separadamente.

As mulheres desposaram Uriens, Nentres e Lot, todos reis. Naturalmente, nenhuma delas gostava de
Uther e dos que tivessem algo a ver com ele.

Quando Uther morreu e Arthur sucedeu-lhe em circunstâncias misteriosas, Arthur naturalmente
herdou essa rixa. As três irmãs persuadiram seus maridos a liderarem uma revolta de onze reis.


Disseram a Arthur que Uther era seu pai, mas Uther tinha sido um velho cavalheiro muito vigoroso
e Merlin, estupidamente, se esqueceu de contar a Arthur quem era sua mãe.

Depois de uma grande batalha em que os onze reis foram vencidos, Morgause, a esposa do Rei Lot,
armou uma armadilha para Arthur. Até esse momento eles não sabiam de seu parentesco.
Apaixonaram-se, foram para a cama, e o resultado foi Mordred. Assim, Mordred era fruto de
incesto (seu pai era meio-irmão de sua mãe), e foi ele quem finalmente trouxe a destruição sobre a
cabeça de Arthur. O pecado foi o incesto, a punição Guenevere e o instrumento da punição
Mordred, o fruto do pecado. Foi Mordred quem insistiu em pôr a boca no trombone sobre o caso
amoroso entre Lancelot e Guenevere, para o qual Arthur preferia fazer vista grossa desde que nada
fosse colocado em palavras."

En trentiesme année de mon aage
Quand toutes mes hontesfai bues


White tinha trinta anos quando alugou a choupana de guarda-caça. Havia acertado as contas com
seu passado, estava de bem consigo mesmo, estava livre. Sua solidão era povoada por uma
sucessão de falcões, uma coruja castanho-amarelada resgatada, uma cadela setter em que ele soltou
sua capacidade frustrada de amor. Agora, com a Morte d'Arthur, ele tinha um tema no qual poderia
soltar sua capacidade frustrada de adorador de herói, sua miscelânea de erudição acumulada, seu
amor pela vida, sua admiração por Malory. Foi como se, ao começar um novo tema, ele escrevesse
como um noviço. Em vez da árida destreza dos trabalhos comerciais, A espada na pedra tem o
ímpeto e a afoiteza do trabalho de um principiante. Está cheio de poesia, farsa, invenção,
iconoclastia e, acima de tudo, a reverência devida à juventude em seu retrato do jovem Arthur. O
livro foi aceito para publicação em ambos os lados do Atlântico, e nos Estados Unidos estava
sendo considerado para ser o livro do mês do Months Club — que o lançou. Mas era 1938, o ano
de Munique; as pistolas no forte de brinquedo estavam carregadas para mais do que apenas uma
saudação. O medo da guerra quase o sufocava quando ele usava a máscara contra gás, recuou
quando Chamberlain comprou a paz nos termos de Hitler, mas não podia ser esquecido.

O pensamento de White era típico da época do pós-guerra. A guerra era uma demência destruidora.
Silenciava a lei, matava os poetas, exaltava o orgulho, enchia o ganancioso de mercadorias e
oprimia o humilde e dócil; nenhum bem poderia vir dali, estava desesperadamente fora de moda.
Ninguém a queria. (Lamentavelmente, tampouco ninguém quis com paixão a Liga das Nações.) Se,
contra a razão e o bom senso, outra guerra surgisse, ele declararia sua objeção de consciência. No
primeiro surto de pequenos ratos correndo para se inscrever como voluntários, ele escreveu para
David Garnett: "Escrevi para Siegfried Sassoon e para o diretor da Stowe (minha pobre lista de
pessoas influentes) para perguntar se eles poderiam me conseguir qualquer emprego razoável nesta
miserável guerra, se ela começar. Este é o ultimato: eu proponho me alistar como soldado raso um
mês depois da deflagração das hostilidades, a menos que um de vocês me consiga um trabalho
eficaz antes disso".


Chamberlain capitulou, a crise passou, White começou A rainha do ar e das sombras (o segundo
volume de O único e eterno rei), mas se desviou para escrever Grieffor the Grey Geese, um
romance que nunca terminou. O romance foi concebido em um estado de intensa excitação física.
Ele estava só, estava no intimidador território ao nível do mar em Wash, estava perseguindo um
desejo longo tempo ambicionado, complexamente composto de proeza esportiva e sadismo —
atirar em um ganso selvagem em pleno vôo. Os caçadores de ganso fazem guerra aos gansos. Entre
os caçadores de ganso há um renegado que toma o partido dos gansos, desviando seu vôo para
longe das fileiras dos atiradores. White claramente se identifica com o renegado, embora inclinado
a atirar em ganso selvagem.

Em janeiro de 1939, ele escreveu para Garnett, que o convidara para pescar salmão na Irlanda: "Se
pelo menos eu conseguir sair deste país condenado antes do desastre, ficarei feliz. Dois anos de
preocupação com o assunto me convenceram de que é melhor escapar para continuar vivo, e tenho
certos direitos de fazer isso. Posso tanto fazer isso quanto me matar, com a deflagração das
hostilidades. Eu não gosto de guerra, eu não quero a guerra, e eu não a comecei. Acho que posso
suportar a vida como um covarde, mas não poderia suportá-la como um herói".

Um mês mais tarde ele estava na Irlanda, vivendo em uma casa de fazenda chamada Doolistown,
em County Meath, onde propôs ficar o tempo suficiente para terminar A rainha do ar e das sombras
(publicado logo depois) e pescar um salmão. Foi sua casa pelos seis anos e meio seguintes. Por
seis desses anos, ele não escutou uma voz inglesa e raramente uma voz cultivada. A província da
Irlanda o engoliu como um pântano profundo.

Ele tinha escapado de seu país condenado, mas não podia evitar estar ao alcance de sua voz.

Diário, 26 de abril, 1939
Fala-se agora seriamente de recrutamento na Inglaterra, e todo mundo vive de um
discurso de Hitler a outro. Li mais atrás neste diário sobre as várias pequenas
decisões aparatosas que tentei tomar sob a pressão da Besta: ser um objetor de
consciência, e depois fugir, e depois procurar algum emprego construtivo de tempo
de gueixa que pudesse combinar trabalho criativo com serviço a meu país. Todas
elas arremetidas tristes e aterrorizadas de um canto assombrado ao seguinte.


A guerra de fato proporciona uma abertura para a ferocidade contida do homem c, enquanto o
homem permanecer um selvagem, algo desse tipo parece ser necessário. O comitê considera, a
partir de um exame da história, que a crueldade humana sempre acha uma maneira de se
manifestar, se lhe for proibida outra.

Enquanto isso, ele tentava proteger sua paz de espírito com arremetidas em novas direções.
Morando em um lar católico e tratado como um da família, pensou em se tornar católico. Como seu
pai tinha nascido na Irlanda, ele se iludiu com a idéia de uma linhagem irlandesa. Leu livros sobre
a história da Irlanda, com desapaixonada erudição conhecendo autores de ambos os lados da
intricada questão; tentou aprender o gaélico escocês, com aulas uma vez por semana com o
professor local e «fazendo uma hora de exercícios toda manhã»; procurou um lugar para morar e
alugou uma casa chamada Sheskin Lodge, em County Mayo, para os tiros; mais tarde, fez pesquisas
sobre a lendária Godstone (Pedra de Deus), na ilha de Inniskea. Muito a propósito, embora
involuntariamente, ele foi capturado pela beleza sombria, o charme desolado de Erris — a parte de
County Mayo que se estende entre a cordilheira de Nephin Beg e o mar.


Foi em Sheskin Lodge, envolvido pelos caramanchões de fticsias e moitas de rododendros e
cercado por léguas de pântanos, que ele escutou as últimas vozes da Inglaterra. Elas diziam adeus.
A guerra tinha sido declarada, os Garnetts, que estavam de visita, estavam voltando para a
Inglaterra.

A locação de Sheskin terminada, ele voltou para Doolis-town e escutou as notícias.

20 de outubro, 1939
Ainda não parece ter muitas pessoas sendo assassinadas — nenhum, horrendo
massacre de gás e bactéria.
Mas a verdade está desaparecendo.
Estamos sufocando-nos com propaganda em vez de gás, lentamente sentindo nossos
espíritos morrendo.


23 de outubro
A guerra que escutamos pelo rádio é mais terrível do que qualquer coisa que eu
possa imaginar como mera morte. A mim, me parece que a morte deve ser um nobre
e terrível mistério, seja qual for o credo da pessoa ou as circunstâncias de sua
morte. É uma coisa natural, de qualquer forma. Mas o que está acontecendo pelo
rádio não é natural. 0 timbre das vozes que cantam sobre Hitler e a morte é um
timbre de escárnio e zombaria. Os diabos no inferno devem cantar desse jeito.


Nesse momento ele estava se preparando para O cavaleiro imperfeito (A rainha do ar e das
sombras, entregue ao seu editor seis meses antes, tinha sido devolvido com um pedido para que
fosse reescrito) e fazendo uma análise do caráter do Sir Lancelot de Malory — com traços
semelhantes aos dele mesmo: "Provavelmente sádico, ou não teria tal medonho cuidado em ser
gentil... Gosta da solidão".

Na análise de Guenevere, onde não tem nada pessoal para seguir, ele especula, e faz o melhor que
pode para superar sua aversão pelas mulheres. "Guenevere tinha algumas características boas. Ela
escolheu o melhor amante que pôde e foi corajosa o suficiente para deixá-lo ser seu amante."
"Guenevere dificilmente parece ter sido uma favorita de Malory, não importa o que Tennyson tenha
pensado sobre ela."

Foi uma nova experiência para White aproximar-se de um livro de forma tão deliberada ou
escrevê-lo de maneira tão compacta. Não há momentos despreocupados no relato de 0 cavaleiro
imperfeito, no qual a Maldição aperta o cerco sobre Arthur, e Lancelot é obrigado a ser um
instrumento disso, por seu amor por Guenevere.

Ele o escreveu em Erris, no hotel da pequena cidade de Belmullet, entre pesquisas sobre a Pedra
de Deus, horas ao ar livre nas gélidas manhãs à espera da passagem dos gansos selvagens,
jovialidades locais e acessos de bebedeira depois dos quais ele se trancava no seu quarto de hotel,
aterrorizado pelo IRA.


Em 1º de outubro, depois de terminar O cavaleiro imperfeito, ele saiu de Erris e voltou para
Doolistown para escrever A chama ao vento. Este, o último livro da Morte d'Arthur, em que o Rei
condenado cambaleia de derrota em derrota, já existia como esqueleto de uma peça. White era
incapaz de escrever lentamente. Em meados do outono, a peça já estava viva como narrativa, e ele
estava pensando nos títulos para a tetralogia completa: O Delito Antigo... Arthur Pendragon…

14 de novembro de 1940

Pendragon ainda pode ser salvo, e se elevar a um sucesso esplêndido, alterando a
última parte do Livro 4 e levando Arthur de volta para seus animais. A lenda de sua
entrada no subsolo, no final, na cova do texugo, onde o texugo, o ouriço, a cobra, o
Lúcio (no caso, empalhado) e todos os outros poderiam estar esperando para
conversar com ele. Agora, com Merlin, eles devem discutir a guerra do ponto de
vista de um naturalista, como tenho feito ultimamente neste diário. Eles devem
decidir conversar meticulosamente sobre o assunto, durante o longo retiro de
Arthur no subsolo, a relação do hom,em com os outros animais, na esperança de
encontrar um novo ângulo para o problema a partir daí. Para começar, esse, na
verdade, era o objetivo original de Merlin, ao apresentá-lo aos animais. Agora, o
que podemos aprender, entre os animais, sobre a abolição da guerra?

Pendragon ainda pode ser salvo. Outra salvação estava sendo considerada.

White foi para Belmullet supondo estar em casa, na Irlanda. Mas chegou como um inglês no exílio.
Ele tinha sido recebido, e bem recebido, como algo novo sobre o qual se fala; mas nunca tinha sido
aceito. Outro Delito Antigo não o permitia — a brecha entre o odiado e a raça que odeia. Pensaram
que fosse um espião (o rumor de uma invasão inglesa tinha deixado a maioria dos cidadãos de
Belmullet acordados a noite inteira); seus movimentos eram observados; teve que se apresentar à
polícia e foi proibido de deixar o continente; ele tinha se juntado às forças de segurança locais, mas
lhe pediram para não comparecer aos desfiles. Seu desapontamento pode ter sido enfatizado pelo
paralelo com A chama ao vento, em que as boas intenções de Arthur de nada adiantam contra seus
inimigos hereditários. Agora, um novo inverno se estendia frente a ele, um inverno de solidão
intelectual, contando apenas consigo mesmo para se consultar, apenas consigo mesmo para se
alimentar. Tinha um teto sobre a cabeça, um quarto para se isolar, refeições regulares, a paisagem
confinada de County Meath onde passear com seu cachorro, nada especial de que se queixar, nada
para acompanhá-lo. A guerra o tinha aprisionado em uma cela acolchoada.

Foi para sua própria salvação que ele saltou. Em 6 de dezembro, ele escreveu para L. J. Potts, seu
tutor em Cambridge em tempos passados, ininterruptamente seu Pai Confessor nas Cartas: "O
próximo volume deverá se chamar A chama ao vento (atualmente, é preciso acrescentar um se Deus
quiser). Terminará uma noite antes da última batalha, com Arthur absolutamente em frangalhos. E,
depois disso, vou j acrescentar um novo quinto volume, no qual Arthur reencontra Merlin no


subsolo (que resultará ser a toca do texugo do volume 1) e os animais voltam outra vez,
principalmente as formigas e os gansos selvagens. Não faça cara feia. A inspiração é um presente
de Deus. Compreenda, de repente descobri que (1) o tema central da Morte d'Arthur é encontrar um
antídoto contra a guerra, (2) que a melhor maneira de examinar as políticas do homem é observá-lo,
com Aristóteles, como um animal político. Não quero entrar nisso tudo agora, estragaria o frescor
do futuro livro, mas tenho pensado muito, à | maneira de Sam Butlerish, sobre o homem como um
animal entre os animais — seu cerebrum etc. Acho que posso realmente fazer um comentário sobre
todos esses ismos fúteis (comunismo, fascismo, conservacionismo etc), dando um passo para trás

— direto para o mundo real, no qual o homem é apenas um dos outros inumeráveis animais.
Portanto, para fazer minha 'moral' compreensível (mas não vou declarar isso), terei a oportunidade
maravilhosa de dar o giro completo à roda, e terminar com os animais onde comecei. Isso tornará
meu épico terminado uma fruta perfeita, 'redonda e madura e acabada'". No mesmo dia, ele
escreveu para Garnett, perguntando em qual livro Garnett disse ter lido que Malory atacou de
surpresa um convento, e continuava: "Até onde posso ver, meu quinto volume será todo sobre
anatomia do cérebro. Parece estranho para Arthur, mas é verdade. Será que você conhece, de
imediato, algum livro bastante elementar mas eficaz sobre a anatmia do cerebelo em animais,
peixes, insetos etc? Quero saber que tipo de cerebelo tem uma formiga, e também um ganso
selvagem. Você é o tipo de pessoa que saberia isso".
Embora White use o tempo futuro em suas cartas para Potts, é pouco provável que ele tenha
esperado de 14 de novembro a 6 de dezembro antes de começar O livro de Merlin. O Livro 5,
começando onde o Livro 4 original terminava, tem uma proximidade direta que não suportaria
muita demora. Arthur ainda está sentado sozinho em sua tenda em Salisbury, esperando sua última
batalha na insolvência final de suas esperanças e chorando as lágrimas lentas da velhice. Quando
Merlin entra para reatar o antigo relacionamento de mestre-aluno entre os dois e vê a extensão do
tormento de Arthur, não tem certeza de poder fazer isso a essa hora tardia. Sua segurança de que a
lenda perpetuará Arthur e a Távalo Redonda, muito depois que a história deixá-los, cai em ouvidos
pouco atentos. Ele invoca o relacionamento antigo deles. O aluno supera o mestre e o descarta com
um Le roy s'advisera. Em nenhum outro lugar dos quatro volumes anteriores White fez Arthur tão
rei quanto nesse seu retrato como derrotado. Em Farewell Victoria, seu romance do começo dos
anos trinta, ele cunhou a frase "os imortais generais da derrota". No primeiro capítulo de O livro
de Merlin ele o demonstra.

Mas o esquema do Livro 5 é levar Arthur ao subsolo, onde os animais do Livro 1 estão esperando
para conversar com ele, e onde Merlin vai submetê-lo ao conteúdo das anotações de White a fim de
que descubra o que pode ser aprendido com os animais sobre a abolição da guerra.

Como os animais evitam guerrear com os de sua espécie, esse poderia ser um bom tema de se
examinar.

Mas a discussão é tendenciosa desde o começo pela insistência de Merlin na inferioridade do
homem. Liber scriptus proferetur... Merlin tinha aberto as anotações de White e encontrado poucas
evidências de que o homem merece ser colocado entre as duas mil e oitocentas e cinqüenta
espécies de animais mamíferos do mundo. Elas sabem como se portar adequadamente, vivendo sem


guerra nem usurpação. O homem não. Merlin enfraquece a denúncia acrescentando o insulto de que

o homem é um parvenu.
A esta altura, nenhum dos presentes é ímpio o suficiente para sugerir que o homem pode melhorar
com o tempo.

Em uma etapa posterior da discussão, Arthur, o representante da espécie psrvenue, sugere que o
homem teve algumas boas idéias, como as construções e campos arados. Ele é colocado em seu
lugar pelas realizações dos corais, castores, pássaros carregadores-de-semente e finalmente
derrubado pela minhoca, tão estimada por Darwin. A distinção entre realização e realização
planejada não é permitida a ele, e a conversa volta para a nomenclatura, Homo ferox (sapiens está
fora de questão), Homo stultus, ho? No impolkkus. O último é o mais daninho; o homem deve
permanecer selvagem e ignorante até que, como as outras espécies de mamíferos, aprenda a viver
em paz.

É fácil achar buracos na retórica de White. O livro de Merlin foi escrito com a imprevidência de
um impulso. Guarda muita coisa que é arguta, perturbadora, cativante, brilhante, muita coisa que
emociona, além de uma quantidade de informação. Mas Merlin, o principal orador, torna-se o
porta-voz de uma irritação, e a irritação é de White. Seu medo da raça humana, do qual ele parecia
ter se livrado, retorna com a fúria intensificada, fúria contra a raça humana que faz a guerra e a
glorifica.

Nenhum jorro de irritação cai sobre Arthur. Sempre que emerge da torrente de instrução, ele é um
bom caráter; vagaroso para se encolerizar, ansioso para aprender, e nada tolo. Ele é tão
recuperável quanto a grama, e gosta de escutar muita conversa boa. Quando Merlin lhe diz que para
continuar sua educação ele deve se transformar em formiga, ele está pronto e desejoso.
Transformado em formiga, por magia, ele entra no formigueiro que Merlin conserva para
propósitos científicos. O que vê ali é a evocação de White do estado totalitário. Obrigado por sua
forma externa a funcionar como formiga operária, sente-se tão ultrajado pela beligerância e
futilidade submissa de seus companheiros operários que se opõe ao exército de formigas em plena
marcha, e tem de ser tirado apressadamente dali por Merlin.

Como última aula, White lhe entrega o que, então, deve ter parecido uma felicidade irrevogável: o
inverno de 1938, que passou caçando gansos.

É interessante perceber como foram muitas as experiências acumuladas por White nesses dias e
como as vivenciou com tal intensidade que pouco mais de dois anos se passaram entre Grieffor the
Grey Geese e 0 livro de Merlin. Quando foi pescar na Irlanda, ele tinha levado o livro do ganso
com ele, e o Capítulo 12 de O livro de Merlin abre com a mesma descrição da sombria planura
sem tamanho do brejo de Lincolnshire e o vento horizontal que sopra sobre ele. Mas agora é
Arthur, transformado em ganso, que enfrenta o vento e sente a lerdeza de seus pés de palmípedes,
embora ainda não seja um ganso completo, pois ainda não voou. Quando o bando se reúne e parte
para o vôo da madrugada, ele vai junto.

O remendo velho compromete a roupa nova. Naquele inverno de dois anos antes, White estava no


auge de si mesmo, revigorado por uma experiência verdadeira, seus sentidos alerta, sua imaginação
em chamas como uma fogueira ao vento.

"Estou tão saudável fisicamente", ele escreveu a Sydney Cockerell, "que sou simplesmente
expandido pela brisa marinha e iceberv e alvorada e anoitecer e pôr-do-sol, tão faminto e sóbrio e
rico e sábio que minha mente vai dormir tranqüila."

Em Doolistown sua mente estava insone, exasperada e exigente. Ela permitiu-lhe estender a
vitalidade do remendo velho nas poucas páginas em que Arthur observa os gansos. Mas, com o
Capítulo 13, a intenção de convencer expulsa a intenção criativa de narrar, e com apenas uma
interrupção — quando o ouriço leva Arthur para uma montanha a oeste, onde ele se senta
observando seu reino dormir sob a lua e se reconcilia com os maus por causa dos bons — o livro
estronda com o vozerio, como se em uma fábrica de análises, provas e contraprovas, exortações,
demonstração, explicação, exemplos históricos, parábolas da natureza — até o ouriço fala
demasiado.

No entanto, o tema era bom, e oportuno, e profundamente sentido, e White preserva a consciência
das pessoas e areja a dialética com traços de caráter e apartes coloquiais. Fica claro, pelo
manuscrito, que ele reconhecia a necessidade disso, pois muitas dessas atenuações foram
acrescentadas à mão. Sempre que ele consegue escapar de seu propósito — não menos
esteticamente falho por ser louvável — e entrar no verdadeiro reino da narrativa, 0 livro de Merlin
mostra-o ainda mestre de seus poderes peculiares. É como se o livro fosse escrito por duas
pessoas: o contador de histórias e o homem sábio com suas anotações que, aos gritos, toma seu
lugar.

Talvez ele tenha perdido o rumo nesse deserto pedregoso de palavras e opiniões porque seu antigo
guia lhe faltou. No capítulo final, Malory voltou. Sob sua tutela, White conta como, depois da morte
de Arthur na batalha, Guenevere e Lancelot, nobre abadessa e humilde eremita, chegam ao
silencioso fim. Essas poucas páginas estão entre as melhores que White escreveu. Esperteza e
disputa e ânimo acalorado foram dispensados: não há lugar para eles no mundo completo da lenda,
onde White e Malory nos dão adeus no final da longa jornada que começou sob a luz do lampião na
cabana de guarda-caça em Stowe Ridings.

Esse é o verdadeiro último capítulo de O único e eterno rei e deveria ter sido colocado ali. O
destino quis de outra maneira. "De repente, descobri... o tema central da Morte d'Arthur é encontrar
um antídoto para a guerra." Para dar peso à sua descoberta, fazendo-a parecer menos abrupta,
White incorporou novo material aos três volumes já publicados. Em novembro de 1941, ele os
enviou, junto com A chama ao vento e O livro de Merlin, a seu editor em Londres, para ser
publicado como um conjunto. O Sr. Collins ficou desconcertado. Respondeu dizendo que precisaria
refletir sobre a proposta. Um livro tão grande necessitaria de enorme quantidade de papel. O
prosseguimento da guerra provocava grande procura de papel: formulários em três cópias,
regulamentações, informes, instruções para os civis, leitura leve para os soldados etc. White
insistia que os cinco livros deveriam aparecer como um conjunto. Depois de prolongadas
negociações, no decorrer das quais o pedido de White para ver as provas de 0 livro de Merlin foi
esquecido — uma grave perda, pois ele estava acostumado a confiar nas provas tipográficas para


lhe mostrar o que estava faltando ou que era supérfluo —, o projeto de um livro só de O mico e
eterno rei foi adiado.

O único e eterno rei só foi publicado em 1958, como uma tetralogia. 0 livro de Merlin, a tentativa
de encontrar um antídoto para a guerra, transformou-se numa vítima da guerra.

Sylvia Townsend Warner


O autor


O falcoeiro solitário


TERENCE HANBURY WHITE nasceu em 1906 em Mumbai (ex-Bombaim), índia, de pais britânicos.
Foi educado no Cheltenham College, na Inglaterra, e no Queen's College, em Cambridge, onde se
formou como primeiro da classe. White viveu uma vida solitária, e fora um ou outro de poucos
amigos no mundo literário e acadêmico, seus únicos companheiros foram seus animais. White ficou
especialmente abalado quando seu cão Brownie, um setter vermelho, morreu depois de 14 anos de
fiel amizade. White fez uma única tentativa de se casar, mas sem real afeição por sua noiva -que
acabou por romper com ele antes do casamento.

Depois de formado, White passaria a lecionar em várias escolas preparatórias inglesas. Escreveu
poesias, livros sobre caça e outros esportes e inclusive histórias de detetive, mas seu primeiro
livro de algum sucesso foi uma autobiografia precoce chamada England have my bonés, lançada
em 1936. Depois de 1950 ele viria a viver tranqüilamente da renda de seus livros, particularmente
dos quatro que compunham inicialmente a saga O único e eterno rei {O livro de Merlin só seria
descoberto e agregado aos outros quatro depois de sua morte), e dedicou-se inteiramente a
escrever. Quando não trabalhava, White exercia apaixonadamente a falcoaria; foi ainda piloto de
aviões, marinheiro, pescador e um scholar dedicado aos textos medievais. Foi nesta competência
que ele começou a estudar a legenda arturiana. Ele faria em O único e eterno rei sua própria
interpretação dos muitos e esparsos relatos de que tomou conhecimento nesses estudos.

A espada na pedra apareceria em 1938; A bruxa da floresta, depois re-intitulado A rainha do ar e
das sombras, em 1939; e 0 cavaleiro imperfeito em 1940. O quarto livro, A chama ao vento, só
seria agregado aos três primeiros em 1958, e então num único volume denominado O único e
eterno rei. O quinto volume, O livro de Merlin, no qual Merlin e Arthur discutem sobre o tema da
guerra usando como pretexto os animais que Arthur conheceu quando criança, foi rejeitado por seu
editor, e só viria a ser publicado em 1977. Nos anos que se sucederam à sua publicação, todos os
volumes de O único e eterno rei gozaram de uma popularidade que foi muito além das livrarias.
White morreu em Atenas aos 57 anos, em 1964, quando estreava em todo o mundo a versão em
desenho animado de Disney para A espada na pedra, no Brasil intitulada A espada era a lei.


O ilustrador


O mundo é como ele pinta


O mito e o folclore atraíram muito cedo o londrino ALAN LEE, que decidiu seguir os passos dos
mestres ilustradores do século 19 Arthur Rackham e Edmund Dulac. Nos anos 70 ele se mudou para
Dartmoor, no interior da Inglaterra, com os artistas Marja Lee Kruyt (com quem esteve casado por
muitos anos) e Brian Froud. Nessa época iniciou uma parceria com Ian Ballantine, lendário
publisher americano, e tornou-se um dos mais importantes ilustradores ingleses -pouco depois, já
seria mundialmente reconhecido. Obteve o prestigiado prêmio Kate Greenaway ao ilustrar a uma
história abreviada da Ilíada, e as edições que passou então a ilustrar do ciclo O Senhor dos Anéis
fixaram suas versões imagéticas da obra como as definitivas. Lee já havia dado rosto e forma
também aos personagens e aos cenários da saga arturiana, todos reunidos nesta edição.

Lee foi o primeiro nome a ser chamado pelo diretor Peter Jackson para compor a equipe que
adaptaria O senhor dos anéis e o levaria a sua monumental versão cinematográfica, e assumiu a
direção conceituai da trilogia. Ou seja, todos os personagens e cenários de J. R. R-Tolkien como
os conhecemos na tela -e já reconhecíamos das suas edições ilustradas -passaram antes pela
imaginação e pela pena de Alan Lee.


{1} Esmerilhão é Merlin em inglês (N. T.)
{2} Wood em inglês significa floresta, bosques, (N. T.)
{3} Sir Ector refere-se à madeira, outro significado de wood em inglês, (N. T.)
{4} De Lothian, o reino do Rei Lot: antigamente, uma região da Escócia. (N. T. )
{5} Ilha imaginária que, na cartografia antiga, aparece situada no Atlântico Norte.
{6} . Derivado da palavra saxão, era a maneira como os gaélicos designavam os sa-xões, isto é, os
ingleses. (N. T. )
{7} Oração do velho Simão no Novo Testamento, exprimindo a satisfação de quem realizou suas
mais ardentes esperanças e considera-se pronto para morrer. (N. T).
{8} Forma de tratamento respeitosa usada por europeus importantes na Índia colonial. (N. E. )
{9} Em francês no original: defesas afiadas de madeira ou pedras, nas fortalezas pré-históricas. (N.
T. )
{10} Em francês no original: pedigree, árvore genealógica. (N. T. )
{11}
Sir Donald Bradman, australiano, campeão de críquete por duas décadas a partir de 1928.
(N.T.)
{12}
Outro jogador Famoso. (N.T.)
{13}
Famoso escritor inglês. (N.T.)
{14}
Prioresa do Convento de Sepwell e considerada autora, no século XV, de O livro de St. Albans,
famoso tratado de caça, falcoaria e heráldica. (N.T.)
{15}
Poeta e orador irlandês (1775-1847). (N. T.)
{16}
Pons Asinonm, em latim: Ponte dos Asnos. É o apelido da 5ª Proposição dos Teoremas de
Euclides, devido à sua dificuldade (N. T.)
{17}
Vítima de uma conspiração de católicos contra Jaime I, executado em 1606. (N.T.)
{18}
Termos de falcoaria. Alto vôo, ou seja, a ave sobe para localizar, ela mesma, a presa. Passager
é o falcão peregrino capturado já crescido e usado para treinar os outros.
{19}
Law of Englisbry. Lei normanda que impunha uma multa a cem pessoas por cada normando
assassinado. Para evitar isso, era necessário provar que o morto era de ascendência inglesa. (N. da
T.)
{20}
Referência à época das guerras dos ingleses contra os habitantes do país de Gales. (N.da T.)
{21}
Por que deixam que nos façam mal? Nós somos homens como eles
{22}
Nomes em francês no original, significando, respectivamente, "Alegre Vigia", "Beleza",
"Divertimento", "Mau vizinho" e "Galhofeiro".

{23}
"Porque se esqueceu de adaptar a cauda na parte posterior". (N. da T.)
{24}
"Dá-lhes a paz eterna, Senhor" -Oração no ofício dos mortos. (N. da T.)
{25}
Jogo de palavras que em inglês são homófonas: sheep (ovelha) e ship (navio). (N. da T.)
{26}
Nome dado originalmente à maior das ilhas dos Açores; mais tarde, foi assim que se chamou a
legendária ilha localizada na costa oeste da Irlanda. (N.T.)
{27}
Resposta cortês usada pela realeza para rejeitar uma petição. Literalmente, significa que o rei
procurará conselho sobre a questão. (N.T.)
{28}
Abreviatura de suspendatur, "que o enforquem".

{29}
"Alguma coisa vem do nada." Esta é uma paródia ou adaptação do familiar ex nihilo nihilfit,
isto é, "nada vem do nada" (embora esta não seja a forma exata) de Lucrécio e Pércio
{30}
Literalmente, "agora você manda embora" ou "agora pode deixar que parta", do Cântico de
Simeão (Lucas 2, 29). Era usado em um sentido geral, significando "Já vi tudo, agora posso morrer
feliz".
{31}
Do latim = celibatário, solteiro. Ver volume I, A espada na pedra. (N. T.)
{32}
Do latim = estúpido. (N. T.)
{33}
Do latim = A formiga é um exemplo de grande indústria (N.T.)
{34}
"Em Tuas mãos." A frase inteira da morte de Jesus (Lucas 23, 46) é "em Tuas mãos encomendo
meu espírito".
{35}
"Aqui jaz Arthur, o único e eterno Rei."
{36}
Cymry em gaélico significa "conterrâneos", e toda uma linhagem de lendas arturianas coloca
nosso personagem como um grande celta — especificamente galés — vencedor dos saxões.
{37}
Monte nas redondezas de Edimburgo.
{38}
"E Arthur, também, ainda atiçando guerras sob a terra."

Sumário


Índice
INCIPIT LIBER PRIMUS

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXIII

XXIV

Personagens deste volume
INCIPIT LIBER SECUNDUS

I

II

III

IV

V

VI

VII

5
7
15
24
33
36
47
50
65
77
84
95
103
111
120
125
130
140
146
156
162
166
177
183
190
192
196
197
204
210
216
220
228
232


VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

Personagens deste volume
INCIPIT LlBER TERTIUS

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXIII

XXIV

XXV

XXVI

XXVII

XXVIII

246
249
266
269
277
284
288
293
297
298
301
305
310
317
320
322
334
341
345
347
352
357
360
364
367
372
375
378
383
386
389
394
397
401
405
409
414


XXIX

XXX

XXXI

XXXII

XXXIII

XXXIV

XXXV

XXXVI

XXXVII

XXXVIII

XXXIX

XL

XLI

XLII

XLIII

XLIV

XLV

Personagens Deste volume
INCIPIT LIBER QUARTUS

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

Personagens deste volume
INCIPIT LIBER QUINTOS

Introdução

I

420
426
432
435
443
446
450
452
455
458
462
465
467
471
475
479
481
486
489
490
496
501
510
521
530
534
543
558
564
575
586
592
599
610
613
614
615


II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

Personagens deste volume

Nota do editor
EXPLICIT LIBER

A obra

Os protagonistas

A historia do livro

O autor

O ilustrador

620
625
636
638
643
647
652
654
657
661
664
667
674
678
681
686
689
693
703
711
712
713
714
717
719
730
731


 

O Unico e Eterno Rei – T. H. White

O único e eterno rei - T. H. White

O Unico e Eterno Rei – T. H. White
O único e eterno rei, de T. H. White é considerado em todo o mundo o mais completo e original relato da saga imortal do Rei Arthur – a "Bíblia" da legenda arturiana. Sua publicação, há pouco mais de meio século, formulou a visão que todas as gerações subsequentes fizeram, e fazem, do mito arturiano – mito que, antes de White, era objeto quase exclusivo do estudo acadêmico. Todas as releituras e re-elaborações posteriores a O único e eterno rei, sejam literárias (como As brumas de Avalon), cinematográficas [o musical Camelot, o desenho animado A espada era a lei, de Walt Disney] ou teatrais, bem como uma infinidade de ensaios e teses sobre o tema, têm como referência primeira a grande obra de White. O único e eterno rei influenciou diretamente, também, o desenvolvimento dos dois grandes ciclos épicos da literatura britânica do pós-guerra, Narnia e O senhor dos anéis, imaginados e escritos por C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, respectivamente.

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