NELSON RODRIGUES
À SOMBRA DAS
CHUTEIRAS IMORTAIS
Crônicas de futebol
Seleção e notas:
RUY CASTRO
3ª reimpressão
COLEÇÃO DAS OBRAS DE NELSON RODRIGUES
Coordenação de Ruy Castro
1. O casamento (romance)
2. A vida como ela é... O homem fiel e outros contos
3. O óbvio ululante: Primeiras confissões (crônicas)
4. À sombra das chuteiras imortais (crônicas de futebol)
A edição das obras de Nelson Rodrigues
conta com o apoio da Unicamp
http://groups.google.com/group/digitalsource
Copyright © 1993 by
Espólio de Nelson Falcão Rodrigues
Copyright de "Personagens para a eternidade"
© 1993 by Ruy Castro
Capa:
João Baptista da Costa Aguiar
sobre foto de Rodolpho Machado/
Abril Imagens
Preparação:
Marcos Luiz Fernandes
Índice remissivo:
Sérgio Pereira de Almeida
Revisão:
Lucíola S. de Morais
Agradecemos a Christina Konder e a Maria Célia Fraga,
do Departamento de Pesquisa de O Globo, e a
Augusto Falcão Rodrigues pelo auxílio na reunião do material
que resultou neste livro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rodrigues, Nelson, 1912-1980.
À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol / Nelson
Rodrigues ; seleção e notas Ruy Castro. -- São Paulo : Companhia das
Letras, 1993.
ISBN 85-7164-320-2
1. Crônicas brasileiras \. Castro, Ruy, 1948 -- II. Título.
93-1175 CDD-869.935
Índices para catálogo sistemático:
1. Crônicas : Século 20 : Literatura brasileira
869.935
2. Século 20 : Crônicas : Literatura brasileira
869.935
1993
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Tupi, 522
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Fax: (011)826-5523
CONTRACAPA
Do brasileiro vira-lata ao brasileiro orgulhoso de ser brasileiro
-- esta é a trajetória contada por Nelson Rodrigues nas setenta
crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Elas cobrem o período
que vai da Copa do Mundo de 1950, em que a derrota do Brasil para
o Uruguai em pleno Maracanã reforçou a péssima imagem que o
brasileiro fazia de si mesmo, à Copa de 1970 no México, a do
tricampeonato -- passando pela emoção de todas as Copas que
vieram no meio e que ajudaram o Brasil a se transformar como
nação.
Mas não é só quando trata da seleção que Nelson faz do futebol
um teatro que envolve todas as paixões humanas. Ao falar de um
reles Flamengo X Canto do Rio ou do velório de um velho jogador
obscuro, ele está apenas usando o futebol como um pretexto para
mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o
indivíduo, a vida e a morte.
Seleção de Ruy Castro
ORELHASDOLIVRO
Nelson Rodrigues não enxergava direito. De longe, então, era
incapaz de distinguir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o
torcedor a léguas do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Tinha
que ter alguém soprando no ouvido dele os lances que a vista curta
não alcançava. E, no entanto, ninguém jamais retratou um jogo de
futebol com a dimensão épica que o leitor vai encontrar neste livro
organizado por Ruy Castro com o mesmo rigor e o mesmo
encantamento com que se debruçou sobre a vida e a obra desse
admirável artista que conheci tão de perto.
Releio, em estado de graça, a prosa poética de Nelson
Rodrigues, escrita ao longo de vinte anos. São crônicas da época em
que o futebol brasileiro foi mais feliz. O livro apaixona. O estilo é, ao
mesmo tempo, lírico e cortante. Nelson adjetiva a vida e os homens
com uma audácia exemplar. À sombra das chuteiras imortais é a obra
sem igual de um cronista que nunca deu a mínima bola para a
frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de Nelson, futebol
sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora.
Chuteiras sangrando pela doce abstração de um gol.
O olhar metafórico de Nelson percorria o campo todo, recriando
cada passe, cada drible, cada gol, numa secreta tabelinha com
parceiros do imponderável. Era nas entrelinhas desse jogo sempre
mágico que ele ia buscar seus personagens. A bola que passasse por
Castilho não passaria por uma certa alma do outro mundo que o
cronista volta e meia escalava para salvar de uma derrota o time do
Fluminense ou a seleção nacional. Por suas sagradas paixões, Nelson
Rodrigues encarava Deus e o mundo.
Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o
amor pelo buraco da fechadura. Poderia dizer, também, que via o
futebol com os olhos de um iluminado. Todo domingo, ele ia ao
estádio, para contemplar os anjos e os demônios da sua devoção. Foi
assim, no entardecer de cada jogo, que nasceu À sombra das
chuteiras imortais, canto primeiro e único à epopéia do futebol
brasileiro.
Nelson é o nosso Homero, sem tirar nem pôr.
Armando Nogueira
Nelson Rodrigues nasceu no Recife, PE,
em 1912, e morreu no Rio, em 1980.
Dele, a Companhia das Letras já
publicou: O casamento (romance), A vida
como ela é... -- O homem fiel e outros
contos, O óbvio ululante: primeiras
confissões (crônicas) e este A sombra das
chuteiras imortais. Próximo lançamento:
A vida como ela é... II. A editora lançou
também O anjo pornográfico: a vida de
Nelson Rodrigues, por Ruy Castro.
ÍNDICE
PERSONAGENS PARA A ETERNIDADE -- Ruy Castro.........11
FLAMENGO SESSENTÃO ....................................................13
O CRAQUE SEM IDADE ......................................................15
CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE....................................17
O JUIZ LADRÃO..................................................................19
BOCAGE NO FUTEBOL .......................................................21
RIGOLETTO DE LANÇA-PERFUME......................................23
O CRAQUE NA CAPELINHA.................................................25
O RISO................................................................................27
FREUD NO FUTEBOL..........................................................29
A DIVINA GOLEADA............................................................32
IRRESISTÍVEL FLAMENGO .................................................34
A CUSPARADA METAFÍSICA ...............................................37
ARTILHEIRO EM ESTADO DE ANJO ...................................40
O DEUS DE CARLITO ROCHA.............................................43
VESTIDO DE FOGO.............................................................46
A REALEZA DE PELÉ ..........................................................49
DIDI SEM GUIOMAR ...........................................................52
O GORDO SALVADOR.........................................................55
O QUADRÚPEDE DE 28 PATAS...........................................58
COMPLEXO DE VIRA-LATAS...............................................61
DESCOBERTA DE GARRINCHA ..........................................64
MORRENDO AO PÉ DO RÁDIO ...........................................67
O TRIUNFO DO HOMEM .....................................................70
É CHATO SER BRASILEIRO! ...............................................73
GARRINCHA NÃO PENSA ....................................................75
A CRUZ DO BOTAFOGO......................................................78
CEM POR CENTO DIDA.......................................................81
A VOLTA DA LEITERIA........................................................84
O PELÉ BRANCO.................................................................87
BANDEIRINHA -ARTILHEIRO ..............................................90
A VINGANÇA DE JULINHO..................................................93
UM HORIZONTE DE CHIFRES ............................................96
O "POSSESSO"....................................................................99
O EICHMANN DO APITO ................................................... 102
BICAMPEÕES DO MUNDO................................................ 105
BEIJOS IMACULADOS ...................................................... 108
O MINEIRO SOLIDÁRIO..................................................... 111
UM FLUMINENSE TÃO FLAUBERT.................................... 113
O DIVINO DELINQÜENTE ................................................. 115
SEMANA DE FLA--FLU ..................................................... 118
PIOR PARA OS FATOS....................................................... 121
A CAVEIRA NO ESPELHO.................................................. 124
O MAIS CARIOCA DOS TIMES........................................... 127
O MARTÍRIO DE NÍLTON SANTOS..................................... 130
ENCOURAÇADO DE SOL .................................................. 132
OS QUE NEGAM GARRINCHA........................................... 134
MATAR OU MORRER......................................................... 136
TERRENO BALDIO ............................................................ 139
OS INIMIGOS DO ÓBVIO................................................... 141
SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS ..................................... 144
A VERGONHA.................................................................... 147
A COPA DO APITO............................................................. 150
A INVISIBILIDADE DO ÓBVIO........................................... 153
UM GESTO DE AMOR ....................................................... 155
"BEAU" YUSTRICH "GESTE".............................................. 158
UM ESCRETE DE FERAS .................................................. 161
CHEGA DE HUMILDADE................................................... 166
À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR............................ 169
"JOÃO SEM MEDO"........................................................... 174
A BARRIGA INSUBMERSÍVEL ........................................... 177
O GOL MIL ........................................................................ 180
GUERRA SUJA, TÃO SUJA................................................ 183
O BELO MILAGRE DAS VAIAS........................................... 188
MOMENTOS DE ETERNIDADE.......................................... 193
O GRANDE SOL DO ESCRETE.......................................... 196
O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE........................... 200
O ENTENDIDO, SALVO PELO RIDÍCULO........................... 205
DESLIZANDO COMO CISNES............................................ 210
O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA.................................. 213
DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO................................. 218
PERSONAGENS PARA A ETERNIDADE
Das setenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais, as
primeiras 31 foram publicadas originariamente na revista Manchete
Esportiva, onde Nelson Rodrigues escreveu de 1955 a 1959. Dessas
31, as primeiras onze conservam os títulos originais. As outras vinte,
publicadas sob a rubrica "Meu personagem da semana", ganharam
títulos novos usando-se escrupulosamente o pensamento e as
palavras do autor. As 39 crônicas restantes (a partir de "Um
horizonte de chifres") saíram em O Globo, onde Nelson escreveu a
partir de 1962 uma coluna diária que, às segundas-feiras, vinha sob
a rubrica "Meu personagem da semana" e, nos demais dias, sob "À
sombra das chuteiras imortais". Também essas ganharam títulos
novos sob o mesmo critério.
As notas ao pé de página, pelo organizador desta edição,
servem para situar o leitor sobre o resultado e outros detalhes da
partida a que Nelson se refere -- uma preocupação que ele não
precisava ter, já que sua coluna vinha na página onde se cobria o tal
jogo. A identificação de certos nomes citados por ele só foi feita nos
casos extremos. Supôs-se que a maneira com que ele escrevia sobre
futebol, quase desligando-o da vida real e jogando-o numa dimensão
de eternidade, fosse suficiente para tornar essas pessoas fascinantes,
mesmo que o leitor não tenha grande informação sobre elas.
Aos que notarem a ausência do "Sobrenatural de Almeida" e de
outros personagens de Nelson: eles pertencem mais às suas crônicas
dos anos 70 -- fora das balizas deste livro, que se encerra
exatamente no tricampeonato do Brasil. Mas estarão presentes numa
segunda e inevitável coletânea futebolística de Nelson. À sombra das
chuteiras imortais é só o começo.
R. C.
FLAMENGO SESSENTÃO
Corria o ano de 1911. Vejam vocês: -- 1911! O bigode do kaiser
estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava
paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas
ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: -- é
impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à
Primeira Grande Guerra. Uma menina de catorze anos para
atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos: --
grande época! grande época!
Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos
espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto unilateral de
Mata-Hari, que nasceu o Flamengo.* Em tempo retifico: -- nasceu a
seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já
começava a tecer a sua camoniana tradição náutica. Em 1911,
aconteceu uma briga no Fluminense. Discute daqui, dali, e é possível
que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: -- cindiu-se o
Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi
fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.
Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: -- a torcida
tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta
coisa sublime: -- quando havia um gol, as mulheres rolavam em
ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: -- a
inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil, achar-se
uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como
espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha
*O Flamengo foi fundado em 15/11/1895.
uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia
a pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas,
rins, tórax e baços adversários? Hoje, o homem está muito
desvirilizado e já não aceita a ferocidade dos velhos tempos. Mas
raciocinemos: -- em 1911, ninguém bebia um copo d'água sem
paixão.
Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de
1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol
moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o
élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a
tremenda força rubro-negra. Note-se: -- não se trata de um
fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e
torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de
qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza
maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-
negro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele
vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um césar apunhalado.
Também é de 911, da mentalidade anterior à Primeira Grande
Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale
tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a
camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: -- quando
o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis
mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas tremem então, intimidados,
acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo
não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a
camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a
camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
[Manchete Esportiva, 26/11/1955]
O CRAQUE SEM IDADE
Quando acabou a etapa inicial do jogo Brasil x Paraguai, o
placar acusava um lírico, um platônico 0 x 0. Ora, o empate é o pior
resultado do mundo. O torcedor sente-se roubado no dinheiro da
entrada e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os
bandeirinhas de vigaristas. Acresce o seguinte: -- de todos os
empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa virgindade
desagradável e irredutível do escore já humilhava o público e, ao
mesmo tempo, o enfurecia.
Súbito, o alto-falante do estádio se põe a anunciar as duas
substituições brasileiras: -- entravam Zizinho e Walter. Foi uma
transfiguração. Ninguém ligou para Walter, que é um craque, sim,
mas sem a tradição, sem a legenda, sem a pompa de um Ziza. O
nome que crepitou, que encheu, que inundou todo o espaço acústico
do Maracanã foi o do comandante banguense. Imediatamente, cada
torcedor tratou de enxugar, no lábio, a baba da impotência, do
despeito e da frustração. O placar permanecia empacado no 0 x 0.
Mas já nos sentíamos atravessados pela certeza profética da vitória.
Os nossos tórax arriados encheram-se de um ar heróico, estufaram-
se como nos anúncios de fortificante.
Eis a verdade: -- a partir do momento em que se anunciou
Zizinho*, a partida estava automática e fatalmente ganha. Portanto,
público, juiz, bandeirinhas e os dois times podiam ter se retirado,
podiam ter ido para casa. Pois bem: -- veio o jogo. Ora, o primeiro
*Brasil 3 x 0 Paraguai, 13/11/1955, no Maracanã. Zizinho fez dois gols e deu o passe
para Escurinho marcar o seu.
tempo caracterizara-se por uma esterilidade bonitinha. Nenhum gol,
nada. Mas a presença de Zizinho, por si só, dinamizou a etapa
complementar, deu-lhe caráter, deu-lhe alma, infundiu-lhe
dramatismo. Por outro lado, verificamos ainda uma vez o seguinte: --
a bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e
acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: -- a pelota
não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidade
de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: -- há na bola uma alma de
cachorra.)
No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho
jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os
bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho
afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: -- a
partida foi um show pessoal e intransferível.
E, no entanto, a convocação do formidável jogador suscitara
escrúpulos e debates acadêmicos. Tinha contra si a idade, não sei se
32, 34, 35 anos. Geralmente, o jogador de 34 anos está gagá para o
futebol, está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Zizinho
mostra o seguinte: -- o tempo é uma convenção que não existe nem
para o craque, nem para a mulher bonita. Existe para o perna-de-
pau e para o bucho. Na intimidade da alcova, ninguém se lembraria
de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento.
Do mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho dezessete ou
trezentos anos, se ele decide as partidas? Se a bola o reconhece e
prefere?
No jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de
aparecer, antes de molhar a camisa, pelo alto-falante, no intervalo.
Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone.
[Manchete Esportiva, 3/12/1955]
CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE
Há tempos, fui à rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E
confesso: -- sempre considerei Olaria tão longínqua, remota, utópica
como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na avenida
Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis
aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: --
recrudesceu em mim o ressentimento contra qualquer espécie de
viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta
minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma
vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros
do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente
mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão
nova e eletrizante.
Eis o fato: -- um jogador qualquer enfiou o pé na cara do
adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan
de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não
conversa: -- esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um
tapa: -- é, na verdade, o mais transcendente, o mais importante de
todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o
homicídio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá
ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma
humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.
Acresce o seguinte: -- o som! E, de fato, de rodos os sons
terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofismas é o
da bofetada. Sim, amigos: -- uma bofetada silenciosa, uma bofetada
muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: -- vítima e agressor
cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável
cordialidade. É o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza,
que a torna irresgatável.
Pois bem: -- na bofetada de Olaria não faltou o detalhe
auditivo. Mas o episódio não esgotara ainda o seu horror. Restava o
desenlace: -- a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve
meias medidas: -- deu no pé. Convenhamos: -- é empolgante um
pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarce, nenhum
recato. Digo "empolgante" e acrescento: -- raríssimo ou, mesmo,
inédito.
Via de regra, só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói
tem sempre uma desfaçatez única: -- apresenta-se como se fosse a
própria estátua eqüestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma
vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: -- chega
em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então,
na mais rigorosa intimidade -- apanha da mulher. Mas cá fora, à luz
do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques
de polícias especiais.
Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, que
renegam, que desfiguram a própria covardia -- o juiz correu como
um cavalinho de carrossel. Note-se: há hoje toda uma monstruosa
técnica de divulgação, que torna inexeqüível qualquer espécie de
sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa
covardia fotografada, irradiada, televisionada projetou-se
irresistivelmente. E quando, em seguida, a polícia veio dar cobertura
ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente
de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de
fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos
ser covardes às escondidas, tínhamos inveja, despeito e irritação
dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cínico estandarte.
[Manchete Esportiva, 17/12/1955]
O JUIZ LADRÃO
De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito
esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: -- vive feliz e
realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de
visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um
deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo
de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar
de Marcos de Mendonça, o "Fitinha Roxa"; da "espanhola"; do
assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo
tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já
lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba
elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa
fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: -- o passado
sempre tem razão.
Por exemplo: -- o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno
vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os
juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de
chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte,
crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha
que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia
o "juiz ladrão". E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e
alvar honestidade. Abra-hão Lincoln não seria mais íntegro do que
Mário Vianna. E vamos e venhamos: -- a virtude pode ser muito
bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras
imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem
úlcera.
Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista.
E verificaremos isto: -- falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a
multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna
inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é
um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.
Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: -- um jogo de
futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25.
Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e
nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e
escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero
e à úlcera: -- as condições do futebol contemporâneo tornam
impraticável a existência do canalha. Ou por outra: -- o canalha
pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem
destino.
Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa
fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas
os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que
genial descaro! Certa vez, foi até interessante: -- existia um juiz que
era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um
domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários?
Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno,
um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: --
levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: -- roubou da maneira
mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final,
os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se
antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma
figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno
está correndo até hoje.
[Manchete Esportiva, 31/12/1955]
BOCAGE NO FUTEBOL
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado
de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da
rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: -- não
havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica,
vivia cercado de conselhos, por todos os lados: -- "Não brinca com
Fulano, que ele diz nome feio!". E o Fulano assumia, aos meus olhos,
as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema.
Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o
anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: -- cada nome
feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por
exemplo: -- os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e
jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro
Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da
Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável
palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz
esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade:
-- retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível,
Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O
craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que
nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o
Bocage de anedota. Pois bem: -- está para nascer um jogador ou um
torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe
ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais
palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em
campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem
dopados e realmente o estão: -- o chamado nome feio é o seu
excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o
caso de Jaguaré.* No seu tempo, os clubes não tinham Departamento
Médico e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria,
desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: -- não tinha
dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era
largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: -- a época de
Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de
fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com
manteiga, podia se considerar um Rockefeller, de tanga, mas
Rockefeller.
Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube
estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas
dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa
inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou
cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como
homem e como craque. Como jogar sem a pornografia luso-
brasileira? Sem as expressões obscenas que dinamizam, que
transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma
traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos
nomes feios intransportáveis.
Finalmente, não pôde mais: -- voltou correndo para o Brasil.
Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque
pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.
[Manchete Esportiva, 14/1/1956]
*Jaguaté foi um folclórico goleiro do Vasco no começo dos anos 30.
RIGOLETTO DE LANÇA-PERFUME
Ontem, assisti a uma cena que me pareceu, salvo engano, uma
pequena, incisiva e inefável lição de vida. Eis o episódio: -- estava eu
na esquina de Carioca com Uruguaiana. Fecha o sinal. Os homens
estacam para o surdo escoamento dos veículos. E, súbito, uma voz
gaiata anuncia: -- "Olha o rapa!". O que houve, a seguir, foi um
desses espasmos coletivos, que só o Tolstoi de Guerra e paz ousaria
descrever.
Vi a histeria dos outros e a minha própria. Todos se
arremessaram: -- senhoras honestíssimas, mestres do direito,
psiquiatras, intelectuais, viúvas, mata-mosquitos. O medo é um
grande e eficaz nivelador. Sob o estímulo da pusilanimidade,
tubarões e pé-rapados largam a mesma baba, elástica e bovina. O
pior de tudo foi o seguinte: -- era rebate falso. Não havia rapa
nenhum. Imediatamente, as caras começaram a resplandecer, já
lavadas do medo, numa cínica, numa deslavada euforia. O último a
recuperar um pouco de harmonia interior foi um psicanalista
célebre. Cobra tão caro, o homem, que o cliente tem que ser, no
mínimo, um estabelecimento bancário para suportar-lhe os preços. E
tinha náuseas de pavor homérico.
Pois bem. Diante do paroxismo geral e do meu próprio,
descobri o seguinte: -- o nosso mais agudo, o nosso mais exasperado
problema vital é o rapa. Não importa o sexo, a idade, o nível social e
econômico de cada um. Do psicanalista nababesco ao pobre-diabo
dostoievskiano, da senhora mais excelsa ao vigarista mais frenético
-- cada um de nós vive esperando que o rapa o lace, o recolha, na
primeira esquina. Pode-se mesmo dizer que a chamada consciência
humana é o medo do rapa.
Eu disse que todos reagem assim, com esse pânico municipal.
Em tempo, retifico. Todos, menos um: -- o juiz de futebol. E, com
efeito, o único ser que está não sei se acima, se abaixo do rapa, ou
imune ao pânico que ele deflagra, é o árbitro de futebol. Ele resiste a
tudo. Repito: -- é o único ser inamovível, inexpugnável.
Todos os domingos, 100, 150, 200 mil pessoas o chamam de
ladrão. Seja ele um Abrahão Lincoln, um Robespierre, um Marat,
uma Maria Quitéria. Não importa. Taxam-no de gatuno e de tudo o
mais. Ora, até os bichos de desenho animado têm seus arreganhos
de pundonor. Vejam as touradas. Há um momento em que, fulo
dentro da roupa, o animal estaca. Diante dos urros do público, ele
recebe uma brusca consciência ética da humilhação. Se lhe fosse
permitido, o touro, assim ofendido, largaria o toureiro e sairia dando
marradas nos espectadores. Só o juiz de futebol lava as mãos diante
do irresponsável furor coletivo. E convenhamos: -- o indivíduo que,
sozinho, resiste a 200 mil pessoas pode quebrar os chifres de
qualquer rapa.
Mas nem sempre foi assim, nem sempre. No passado era
diferente: lavrava o suborno. Por exemplo: -- em 1915, havia um
juiz, de segunda divisão, que se vendia até por um maço de cigarros.
Mas um dia o homem empaca: -- repeliu a oferta de 20 mil réis que
lhe sopraram para amolecer a arbitragem. Esse esgar de vergonha,
de honra, era um sintoma taxativo. Na época, caçava-se louco no
meio da rua, a pauladas. Dois ou três dias depois, passou a
carrocinha de cachorro e o recolheu. O árbitro deixou-se levar: -- ia
no carro feliz e jucundo como um Rigoletto de lança-perfume.
[Manchete Esportiva, 4/2/1956]
O CRAQUE NA CAPELINHA
Falei em craque, mas, em tempo, retifico: -- era um perna-de-
pau. Com uma agravante: -- perna-de-pau de longínquo, de
antediluviano passado. Floresceu, se não me engano, por volta de
914, 916. Era a época inefável em que as mulheres não raspavam
nem as pernas, nem debaixo do braço. E essas canelas barbadas,
essas axilas luxuriantes definiam um tipo de civilização. Pois bem: --
o perna-de-pau, que já enterrava o time em 1915, não tardaria a
abandonar o futebol. Seu último jogo ocorreu na semana em que
assassinaram Pinheiro Machado. De então para cá, ele veio
arrastando sua decadência, através das semanas, meses e anos. Por
último, não comia, nem bebia: -- era a única fome, a única sede do
Brasil. Um dia desses, após uma agonia fétida e terrível, o homem
morreu. E, então, moradores do bairro, em conluio com alguns
comerciantes, resolveram custear-lhe o enterro.
Fui vê-lo na capelinha, para onde o remeteram. Diante dele,
diante do ser transfigurado, verifiquei o seguinte: -- não há morto
canastrão. Vestido de noivo, com sapatos engraxados, ele tem a face,
o ríctus, o perfil do grande ator. Assim acontecera com o perna-de-
pau: -- no caixão, apresentava uma nobre e taciturna máscara
cesariana.
O diabo era o ambiente do velório. Eis a verdade: -- nenhum
morto devia ir para as capelinhas, jamais. Elas traduzem um
sintoma terrível da nossa época. Antes de mais nada, significam um
frívolo desamor à morte e aos mortos. Não sabemos morrer, nem
enterrar. E pior do que isso: -- não sabemos fazer quarto. Essa
impotência diante da morte é o melancólico e inevitável resultado das
capelinhas. Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia
às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em
casa e, pois, dentro de um ambiente em que até os móveis eram
cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de
jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos
outros mortos. Escancaravam-se todas as portas, todas as janelas; e
esta casa iluminada podia sugerir, à distância, a idéia de aniversário,
de casamento ou de velório mesmo.
Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de
Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina que morreu, de febre
amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da
morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes;
derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que
ser contida, amordaçada, quase amarrada. Todos haviam parado de
gemer, de chorar, para espiar essa dor maior. Houve um momento
em que só ela gemia, só ela chorava, como uma insuperável solista.
Hoje, isto não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu
conteúdo poético dramático e, direi mesmo, histérico.
Preliminarmente, o defunto está fora do seu clima residencial. Como
os demais, ele é um constrangido, um cerimonioso, um deslocado.
Sim, todos, inclusive o cadáver, têm um ar de visita. Essa polidez
impede a violência e a espontaneidade da dor que vem de dentro, das
profundezas, como um gemido vacum. Bem que a viúva desejaria
espernear, esganiçar-se, como uma canastrona do velho teatro. Mas
eis a verdade: -- a capelinha torna inexeqüíveis as histerias
magníficas dos funerais antigos.
Eu sei que o perna-de-pau era apenas um perna-de-pau,
contemporâneo, quase dizia colega do assassinato de Pinheiro
Machado. Ainda assim. Qualquer morto é um césar.
[Manchete Esportiva, 11/2/1956]
O RISO
Eis a verdade: -- o que sustenta, o que nutre, o que dinamiza o
futebol é a vaidade. Vejamos o juiz. É um crucificado vitalício. Seja
ele o próprio Abrahão Lincoln, o próprio Robespierre, e a massa
ignara e ululante o chamará de gatuno. Dirá alguém que ele percebe
um bom salário. Nem assim, nem assim. Não há dinheiro que o
compense e redima, nenhum ordenado que o lave, que o purifique. E,
no entanto, ele não renuncia às suas funções nem por um decreto.
Pergunto: -- por que esta obstinação? Amigos, a vaidade o
encouraça, a vaidade o torna inexpugnável, a vaidade o ensurdece
para as 200 mil bocas que urram: -- "Ladrão! Ladrão! Ladrão!".
O mesmo acontece com o craque, com o paredro, com o
técnico. O futebol os projeta e pendura nas manchetes, e esta
publicidade histérica constitui uma delícia suprema. E ninguém é
modesto, ninguém. Qualquer jogador, ou qualquer dirigente, ou
qualquer técnico tem a torva e a vaidade de uma prima-dona gagá,
cheia de pelancas e de varizes. Eu disse que ninguém é modesto no
futebol. Em tempo retifico: -- há, sim, uma única e escassa figura,
que, no meio do cabotinismo frenético e geral, constitui uma exceção
franciscana. Refiro-me ao esquecido, ao desprezado, ao doce
massagista.
A imprensa e o rádio falam de tudo, numa sádica e minuciosa
cobertura. Jamais, porém, um locutor, um repórter lembrou-se de
mencionar a atuação de um massagista. Ele não merece, ao menos,
uma citação desprimorosa. Um bandeirinha consegue ser vaiado.
Não o massagista, que não inspira nada: -- nem amor, nem ódio.
Dir-se-ia que o gandula é mais importante. E, no entanto, apesar da
humildade sufocante de suas funções, o massagista pode ser uma
dessas figuras capitais, que resolvem o destino das batalhas.
Para não ir muito longe, citarei o exemplo de Mário Américo.
Tudo na sua figura de ex-boxeur justifica uma simpatia universal, a
começar pela cabeça minuciosamente raspada, até o último vestígio
de cabelo. Esse coco lustroso e negro já o distingue dos demais, em
violento destaque. Pois bem: -- simples e humilde massagista, Mário
Américo influi mais nos fatos do campo, na evolução das partidas,
que muito jogador, muito paredro, muito técnico. E não é com
massagens platônicas, não é fazendo seu métier, que o homem tem
decidido vários jogos. Mário Américo age pelo riso, apenas pelo riso.
Sim, amigos: -- quando ele se abre, quando se escancara,
quando se alarga no seu riso incoercível, não há força que o
contenha e que lhe resista. Mário Américo sério é um pobre ser,
duma esplendorosa nulidade como todos nós. Mas a gargalhada o
transfigura, dá-lhe uma nova dimensão racial, uma grandeza
inesperada e terrível, o equipara a certos negros da ficção e da vida:
-- Paul Robeson, José do Patrocínio, Otelo, imperador Jones etc.
Sobretudo nas pelejas internacionais, tudo, nesse homem de
cor, é um riso só: -- riem os lábios, as gengivas, os dentes, as ventas
e até a careca retinta. Foi o que aconteceu no Brasil x Argentina*, em
Montevidéu. Luizinho deu um corte num adversário de forma tão
espetacular que Mário Américo não resistiu: -- nunca o seu riso foi
tão largo, nunca o seu riso teve, como naquele momento, uma
dilatação de parto. E aquela cara que ria alucinou os nossos
adversários. Como vencer uma gargalhada cósmica? Se pudessem,
os argentinos teriam atravessado aquele riso com uma lança, como
nas gravuras de são Jorge.
[Manchete Esportiva, 8/3/1956]
*Brasil 1 x 0 Argentina, 5/2/1956, no Estádio Centenário.
FREUD NO FUTEBOL
Um amigo meu que foi aos Estados Unidos informa que, lá,
todo mundo tem o seu psicanalista. O psicanalista tornou-se tão
necessário e tão cotidiano como uma namorada. E o sujeito que, por
qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica
incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em
suma: -- antes de um desses atos gravíssimos, como seja o
adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do-
vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise.
O exemplo dos Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou,
mais exatamente, no futebol brasileiro. De fato, o futebol brasileiro
tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da integridade das
canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o
delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos
e venhamos: -- já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que
talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável.
A torcida, a imprensa e o rádio dão importância a pequeninos e
miseráveis acidentes. Por exemplo: -- uma reles distensão muscular
desencadeia manchetes. Mas nenhum jornal ou locutor jamais se
ocuparia de uma dor-de-cotovelo que viesse acometer um jogador e
incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês: há
uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza
ordinaríssima até uma tuberculose bilateral. Só não existe um
especialista para resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos
times. Em conseqüência, o jogador brasileiro é sempre um pobre ser
em crise.
Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos,
mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x
Hungria*, que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse "perdemos" e
por quê? Pela superioridade técnica dos adversários? Absolutamente.
Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos
imbatíveis. Eis a verdade: -- antes do jogo com os húngaros,
estávamos derrotados emocionalmente. Repito: -- fomos derrotados
por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas. Por que
esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia
dizê-lo.
E não era uma pane individual: -- era um afogamento coletivo.
Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, a
delegação, o técnico, o massagista. Nessas ocasiões, falta o principal.
Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem
ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à
Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai.
E aqui pergunto: -- que entende de alma um técnico de
futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem
mesmo um padre. Por exemplo: -- no jogo Brasil x Uruguai entendo
que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um
Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Francisco. Nos Estados
Unidos, não há uma Bovary, uma Karênina que não passe, antes do
adultério, no psicanalista. Pois bem: -- teríamos sido campeões do
mundo, naquele momento, se o escrete houvesse freqüentado,
previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista.
Sim, amigos: -- havia um comissário de polícia, que lia muito
X-9, muito Gibi. Para tudo o homem fazia o comentário erudito: --
"Freud explicaria isso!". Se um cachorro era atropelado, se uma gata
gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a cerca do
*Hungria 4 x 2 Brasil, 27/6/1954, em Berna. Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no
Maracanã.
vizinho, ele dizia: -- "Freud explicaria isso!". Faço minhas as
palavras da autoridade: -- só um Freud explicaria a derrota do Brasil
frente à Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer
derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele.
[Manchete Esportiva, 7/4/1956]
A DIVINA GOLEADA
Para muitos, a batalha América x Flamengo foi um absurdo
monstruoso. De fato, como explicar que perdesse de quatro um time
que, dias antes, venceu de cinco?* Foi o que aconteceu com o
América, foi o que aconteceu com o Flamengo. E, no entanto, o
mistério é muito mais aparente do que real. Se examinarmos bem a
segunda e a terceira partidas da melhor de três, veremos o seguinte:
-- há um nítido, um taxativo parentesco entre uma goleada e outra.
Os 5 x 1 explicam os 4 x 1 e vice-versa. Com uma ingenuidade
suicida, arranjamos uma data falsa para o tricampeonato.
Segundo o rádio, a imprensa e a televisão, o Flamengo tornou-
se tricampeão na quarta-feira e só na quarta-feira. Ninguém quer ver
que, quatro dias antes, o América já estava liquidado. Sim, amigos:
-- a partir do momento em que cravou no Flamengo, até o cabo, os 5
x 1, o clube rubro fez o próprio e irremediável abismo. Certos escores
são proibitivos, fatais. Por exemplo: -- 5 x 1. É uma goleada e vamos
e venhamos: -- qualquer goleada promove duas vítimas: -- o que
perde e o que ganha. Basta folhear a história do futebol. E nós
temos, à mão, um exemplo crudelíssimo, que ainda hoje nos
enfurece: -- o do match Brasil x Espanha. Perdemos o campeonato
do mundo porque, dias antes, goleamos os espanhóis de uma
maneira quase imoral. Tivéssemos obtido uma vitória mais sóbria e
menos feérica, trucidaríamos o Uruguai com um pé nas costas.
*O campeonato carioca de 1955 prolongou-se até 1956 e foi decidido numa melhor de
três entre Flamengo e América. Na primeira partida (28/3/1956), Flamengo 1 x 0.
Em 1º de abril, o América impôs 5 x 1 e, na negra, em 4 de abril, o Flamengo fez 4 x
1, sagrando-se tricampeão carioca pela segunda vez.
Direi mais: -- admite-se uma goleada num match isolado e
contra um perna-de-pau. Nunca, porém, num match decisivo e
contra um Flamengo. Mas acontece o seguinte: -- os escores altos
geram, quase sempre, uma insatisfação total. Os times que fazem
muitos gols querem ampliar o placar, mais e mais. O América devia
ter parado nos dois ou, no máximo, nos 3 x 1. Quis chegar aos cinco
e não sossegou enquanto não viu o Flamengo arrasado.
Geralmente não enxergamos um palmo adiante do nariz. Não
fosse esta cegueira crassa, e teríamos percebido tudo. Quero dizer: --
a depressão rubro-negra, naquele domingo, era um precário disfarce
dos seus brios enfurecidos. E, ao sair de campo, sob o impacto de
tantos gols, sangrando de humilhação, o Flamengo já devia levar o
estigma, ainda imponderável, do tricampeonato. A tragédia do
América foi ter dado ao rival, no último ou, por outra, no penúltimo
momento, o incentivo final e decisivo.
Deu-se o inevitável: -- houve o desarmamento interior do
América frente ao Flamengo. Era óbvio. Não há irritação possível e,
muito menos, ódio nas relações do vencedor com o vencido. O
ganhador está sempre disposto a deixar-se apunhalar pelo
adversário. Eu imagino que, antes da dor, da raiva, do desespero, o
América há de ter experimentado, quarta-feira, um sincero, fidedigno
espanto diante daquela rajada de gols. E, no entanto, não cabia o
seu assombro: -- ele perdera o campeonato quatro dias antes.
O triunfo do Flamengo encerra uma luminosa e aguda lição de
vida. Ele foi humilhado e sabemos que a humilhação, a grande e
irresgatável humilhação, confere aos homens e aos times uma
dimensão nova, uma potencialidade irresistível. O "mais querido"
devia ter, à mão, sempre, um adversário que o goleasse de 5 x 1, o
maior número possível de vezes. E assim espicaçado, assim
transfigurado, acabaria sendo tricampeão todos os anos.
[Manchete Esportiva, 11/4/1956]
IRRESISTÍVEL FLAMENGO
Quando o serviço de audiodifusão anunciou a equipe do
Flamengo, o público ficou sem saber se ria, se chorava. De fato, a
formação rubro-negra era, a um só tempo, cômica e pungente. Que
espécie de chance poderiam ter os Babás, os Henriques, os Moacir,
contra os Puskas do Honved? O Flamengo atirava garotos contra o
métier, a classe, o virtuosismo dos húngaros. Era uma aventura
pânica, uma experiência, se assim posso dizer, suicida. Pois bem: --
começa o jogo. E, com surpresa e quase com irritação geral, esfarela-
se, à vista de todos, o maciço favoritismo dos visitantes. Sim, amigos:
-- o Flamengo, com seus aspirantes, é que parecia o Honved, é que
parecia o escrete húngaro. Os Babás, os Henriques é que pareciam
os Puskas.*
Os gols começaram a entrar. Terminou o primeiro tempo com
um marcador que não deixava de ser apavorante: -- 3 x 1, a favor
dos quase juvenis rubro-negros. A multidão já não entendia nada.
Fora lá com o seguinte objetivo expresso: -- ver a surra que o
Honved ia dar no Flamengo. Em vez disso, assistia ao massacre
técnico e tático dos magiares. Vem o segundo tempo e nada muda a
fisionomia do jogo. O escore final, 6 x 4, com seu ar de bola de meia,
de pelada, não chega a constituir um banho. Nem o banho está no
marcador, mas no jogo. Foi uma lavagem de bola de futebol que os
meninos da Gávea infligiram aos visitantes. Resta a pergunta: -- por
que a partida assumiu, contra todos os cálculos, características tão
*Flamengo 6 x 4 Honved, 19/1/1957, no Maracanã. O Honved devolveria a goleada,
pelo mesmo placar, uma semana depois, no Pacaembu.
insólitas?
Tratei de ler os jornais de domingo. Verifiquei o seguinte: --
cada cronista apresentou uma imagem própria da partida. Segundo
uns, o Honved está "gordo", segundo outros "desambientado", ou,
então, com "saudades da família". O que ninguém se lembrou foi de
atribuir o resultado ao mérito do Flamengo. Sim, o match foi o que
foi, e não o que se esperava, porque demonstramos uma devastadora
superioridade. Não foi o Honved que jogou mal: -- foi o rubro-negro
que jogou muito melhor. Nas vitórias fáceis, o derrotado parece,
logicamente, fora de forma física, técnica e, até, moral. Pois claro!
Tudo o que o vencido faz sai mal, torto, falho. Por outro lado, a
euforia do ganhador sufoca o élan do antagonista. Raciocinemos,
amigos: -- os húngaros pareceram lerdos, pesadões, ineptos, porque
os Babás, os Didas, os Paulinhos disparavam-se com uma
velocidade, uma penetração de balas.
É fácil explicar, também, a perplexidade quase dolorosa do
público. Por ocasião do Mundial da Suíça, os jornalistas patrícios
mandaram de lá uma versão desfigurada da nossa peleja com a
Hungria. Segundo se escreveu, os húngaros venceram, naquela
época, porque eram imbatíveis. E, no entanto, a verdade era bem
outra. O nosso escrete entrou, para os 4 x 2 de Berna, num estado
vizinho do histerismo. Imprestável emocionalmente, não estava em
condições de vencer nem um time de botão. Mas, sábado, o
Flamengo deu uma medida autêntica do nosso futebol.
O que vimos foi, de fato, o cotejo do futebol húngaro e
brasileiro, ambos com as suas características fidedignas. Falar em
"desambientação" de um time que tem métier internacional, que deu
um banho na Inglaterra, em Londres, é um pouco forte. E, além
disso, se eles estavam "desambientados", vamos e venhamos: -- o
Flamengo pôs em campo quase o time de aspirantes.
O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e
exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado
ufanismo. Sim, amigos: -- somos uns Narcisos às avessas, que
cospem na própria imagem. Mas certas vitórias merecem um total
respeito. Por exemplo: -- a de sábado. A garotada rubro-negra deu-
nos uma lição maravilhosa, que é a seguinte: -- o futebol brasileiro,
jogando o que sabe, observando as suas verdadeiras características,
é o melhor do mundo.
[Manchete Esportiva, 26/1/1957]
A CUSPARADA METAFÍSICA
Amigos, é óbvio que eu tenho que catar, entre os 22 elementos
de Canto do Rio x Flamengo*, o meu personagem da semana. Digo
"22 elementos" e já retifico: -- 23. De fato, seria uma injustiça, e das
mais crassas, não incluir o árbitro Alberto da Gama Malcher entre as
figuras cogitáveis. Ele marcou dois pênaltis e, não satisfeito,
determinou uma expulsão. E um juiz que faz tanto está,
indubitavelmente, assumindo uma grave responsabilidade, perante
Deus e perante os homens. Sim, ele poderia ser meu personagem, se
eu não tivesse escolhido outro. E o patético é que, desta vez, não se
trata de gente. Insisto: o meu personagem da semana não pertence à
triste e miserável condição humana. É, e com escrúpulo e vergonha o
confesso, uma cusparada.
A vida dos homens e dos times depende, às vezes, de episódios
quase imperceptíveis. Por exemplo: -- o jogo Canto do Rio x
Flamengo, que foi tão árduo, tão dramático para o rubro-negro.
Antes da partida, havia rubro-negros olhando de esguelha, e com o
coração pressago, o time da vizinha capital. É certo que o Canto do
Rio não esfrega na nossa cara grandes nomes, grandes cartazes. Mas
nós sabemos que está lá, por trás, dispondo, o treinador Zezé
Moreira. Convém temer o clarividente métier, a sábia experiência do
vencedor do Pan-Americano.
Começa o match e logo se percebe que o Flamengo teria de
molhar a camisa. O Canto do Rio fez o jogo que rende, que interessa:
-- bola no chão, passe rasteiro, penetração, agressividade. Termina a
*Flamengo 2 x 1 Canto do Rio, 1/11/1957, no Maracanã.
primeira etapa com um escandaloso 1 x 0 a favor do Canto do Rio.
Cá fora, vários rubro-negros se entreolhavam, em pânico. Imaginem
se o Flamengo cai da liderança, como de um trapézio. Mas vem o
tempo final e o rubro-negro consegue, com um gol notabilíssimo de
Henrique, o empate. Mas não bastava. Um empate significaria, do
mesmo modo, a humilhação de um segundo lugar. Continua a
tragédia.
E, de repente, com a bola longe, nos pés de Jairo, se não me
engano, há um incidente na área do Canto do Rio. Alguém chuta
alguém. Malcher, de uma só cajadada, mata dois coelhos: -- expulsa
Floriano, que lhe pareceu culpado, e assinala pênalti contra o Canto
do Rio. Amigos, eu confesso: -- tive pena do Canto do Rio, porque o
árbitro o punia duas vezes pela mesma falta. Achei que era justiça
demais, castigo demais. Vem Moacir e desempata: -- Flamengo 2 x 1.
Inferiorizado no placar e com dez elementos, lá parte, outra vez, o
Canto do Rio. Jogo duro, viril, disputado com gana e, eu quase diria,
com ódio.
Faltando quatro ou cinco minutos para acabar a batalha,
ocorre contra o Flamengo o pênalti que, para muitos, foi de
compensação. Devia ser empate, ou seja: -- o resultado que viria pôr
abaixo, da ponta, o Flamengo. Foi então que Dida teve uma
lembrança maléfica e mesmo diabólica. Estava a bola na marca
fatídica. Dida aproxima-se, ajoelha-se, baixa o rosto e vai fazer o que
nem todos, na afobação, percebem. Para muitos, ele estaria rezando
o couro. Mas eis, na verdade, o que acontecia: Dida estava cuspindo
na bola. Apenas isso e nada mais.
Objetará alguém que este é um detalhe anti-higiênico,
antiestético, que não devia ser inserido numa crônica. Mas eu vos
direi que, antes de Canto do Rio x Flamengo, já dizia aquele
personagem shakespeariano que há mais coisas no céu e na terra do
que supõe a nossa vã filosofia. Quem sabe se a cusparada não
decidiu tudo? Só sei que lá ficou a saliva, pousada na bola. O que
aconteceu depois todos sabem: -- Osmar bate a penalidade de uma
maneira que envergonharia uma cambaxirra. Atirava o Canto do Rio
pela janela a última e desesperada chance de um empate glorioso.
E ninguém desconfiou que o fator decisivo do triunfo fora,
talvez, a cusparada metafísica de Dida, que ungiu a bola e a desviou,
na hora H.
[Manchete Esportiva, 9/11/1957]
ARTILHEIRO EM ESTADO DE ANJO
Depois da fabulosa goleada botafoguense*, a escolha do meu
personagem da semana deixa de ser problema. É Paulinho, só pode
ser Paulinho. E aqui eu pergunto: -- quem é Paulinho? Antes do jogo
era um e agora outro. Seu nome passou a exigir uma pronúncia mais
enfática. E, no entanto, vejam vocês: -- até há bem pouco tempo era
um sujeito irritante. Quantos gols perdia por jogo, quantos! Parecia,
mal comparando, um Valdo talvez piorado. Sabe-se que, nos
primeiros tempos, a especialidade de Valdo era perder gols que uma
cambaxirra faria. Pois bem: -- Paulinho não lhe ficava atrás. Sempre
que, por circunstâncias jornalísticas, eu vi jogos do Botafogo,
Paulinho atirava pela janela oportunidades deslumbrantes. Debaixo
dos três paus, ele mandava por cima, pelos lados, mas para dentro,
nunca. Num espanto profundo, eu perguntava a um e outro: --
"Como pode? Como pode?". E Paulinho não estava longe de me
parecer um caso perdido.
Justiça se lhe faça, porém: -- perdendo quinze gols por um que
fazia, Paulinho jamais deixou de ser um jogador raçudo. Lutava de
fio a pavio, até a última gota de suor. Corria em campo como um
coelhinho de desenho animado e, além disso, nunca fugiu do pau.
Ora, o público venera os craques sem medo e que molham,
encharcam a camisa, numa honesta e máscula transpiração. E como
Paulinho suava mais que os outros, como tinha brancas hemorragias
de suor, todo mundo o respeitava, inclusive eu. Sim, Paulinho nunca
* Botafogo 6 x 2 Fluminense, 20/12/1957, no Maracanã. A goleada deu o título
carioca de 1957 ao alvinegro.
brincou em serviço. Em cada partida, faz um honrado esforço de
noventa minutos.
Domingo, finalmente, chegou o grande dia de Paulinho. Senão
vejamos: -- um jogador que enfia cinco gols na última batalha, na
batalha que vai decidir a guerra, esse jogador é um monstro. Depois
da peleja, vejo um alvinegro gemendo. A princípio, pareceu-me que
seria uma cólica. Engano. Não era cólica: -- era espanto. E, com
efeito, ele ainda pasmava para a exorbitância numérica de tantos
gols conseguidos por um único cidadão. O botafoguense bufava: --
"Cinco! Cinco!".
Outro alvinegro veio cochichar-me, ao ouvido: -- "Viste aquele
gol de letra que Paulinho fez?". Tomo um susto: -- "De letra?". E, de
fato, na minha dolorosa e ignara perplexidade, eu não me lembrava
de nenhum gol de letra. Mas, como Paulinho meteu tantos, comecei
a admitir que tivesse enfiado um de letra também. Só depois é que
dei pelo equívoco. O chamado gol de letra fora o de bicicleta. Conto o
episódio para que vocês observem o fenômeno. Já há quem esteja
idealizando os tentos de Paulinho. Os cinco gols já nasceram
históricos. Retocados por uns e outros, eles invadem o folclore. A
lenda e a anedota estão funcionando, desde domingo. Daqui a pouco,
quando se contar a história dos cinco gols, não se saberá discernir
entre a ficção e a realidade.
O meu personagem da semana é, desde domingo, uma dessas
glórias súbitas que, de vez em quando, rompem num domingo de
futebol. Antes do jogo, quem era a vedete, a prima-dona, a estrela
máxima do ataque alvinegro? Didi. Com o seu magnífico tipo racial
de príncipe etíope de rancho, ele se destacava furiosamente. Logo
depois, vinha Garrincha, que o treinador húngaro Giula Mandi
considera, e eu também, o maior ponta-direita do mundo. Paulinho
valia, sobretudo, pela desesperada abnegação do seu esforço. Estava,
porém, bem abaixo de Didi e de Garrincha. Mas, a partir do
momento em que Malcher pôs um ponto final na partida de domingo,
Paulinho já não está mais abaixo de ninguém. Pode erguer a cabeça
e bater no peito: -- "Eu sou eu!".
Imagino que, domingo, ao entrar em campo, ele não era um
jogador como qualquer um, como qualquer outro. Era alguém em
estado de graça ou, ainda, em estado de anjo. Sua tremenda euforia
não foi de jogador, nem mesmo de gente. Só mesmo um anjo faria
tantos gols num jogo decisivo. Vejam bem: -- minuto a minuto, foi de
um fôlego bestial. Não parava. Ele, sozinho, nas suas penetrações
alucinantes, bastava para dinamizar a peleja, para dramatizá-la. Foi
com ele que começou a desintegrar-se a defesa tricolor. Ah, o duelo
de Paulinho com Pinheiro! Foi algo de trágico. Eu vos digo: --
Pinheiro, atrás de meu personagem, parecia uma maciça, uma
compacta catedral perseguindo um coelhinho. E como Paulinho
cortou, envolveu, ceifou, dizimou e devastou Pinheiro!
Alguém me dizia, depois da batalha: -- "Não fosse Paulinho,
teríamos empatado de 1 x 1 e seríamos campeões!". Mas houve
Paulinho e, diante dos 6 x 2, do histerismo numérico do escore, a
vontade que dá a qualquer um é sentar no meio-fio e chorar. Não há
raciocínio possível contra a goleada cósmica. E convenhamos: -- os
cinco gols de meu personagem da semana deviam estar, desde
domingo, numa vitrine de museu.
[Manchete Esportiva, 28/12/1957]
O DEUS DE CARLITO ROCHA
Chegou, enfim, o momento de fazer de Carlito Rocha o meu
personagem da semana. Quer queiram, quer não, ele está atrelado ao
fabuloso triunfo alvinegro sobre o Fluminense.* E aqui pergunto: --
qual teria sido a contribuição carlitiana para o título? Eu próprio
respondo: -- Carlito ligou o jogo ao sobrenatural, pôs Deus ao lado
do Botafogo e mais do que isso: -- pôs Deus contra o Fluminense.
E, com efeito, três ou quatro dias antes do clássico, um
jornalista foi provocar o velho Rocha. Ora, Carlito nunca teve meias
medidas, nunca. Bastaram duas ou três perguntas estimulantes
para que, dentro dele, rugisse a imortal paixão botafoguense. Em vez
de soltar declarações convencionais, o homem abriu a alma de par
em par. Contou, entre outras coisas, que vira e ouvira Deus. É raro,
muito raro, que venha alguém a público confessar uma visão.
Geralmente, temos vergonha e, mais do que isso, medo das nossas
visões. E, antes de mais nada, cumpre reconhecer a coragem de
Carlito Rocha. Disse ele que Deus viera anunciar-lhe a vitória do
Botafogo.
Um vaticínio divino é algo mais que um palpite de esquina. E,
no entanto, vejam vocês, nem o jornal que publicou a reportagem,
nem o leitor, nem a torcida, ninguém acreditou, nem em Carlito, nem
na visão, nem mesmo em Deus. As declarações do velho Rocha, tão
honestas e incisivas, pareceram a nós, impotentes da fé, uma
simples e cruel piada do jornal. E um amigo, pó-de-arroz como eu,
*Nelson refere-se ao jogo Botafogo 6 x 2 Fluminense, tratado na crônica anterior.
Carlito Rocha era ex-presidente e, de certa forma, símbolo do Botafogo.
veio perguntar-me:
-- Viste o Deus de Carlito?
Eu não tinha visto o jornal, ainda. Mas as palavras do meu
amigo ficaram ressoantes em mim: -- "Deus de Carlito!". E,
subitamente, eu compreendia o seguinte: -- não há um Deus geral,
não há um Deus de todos, não há um Deus para todos. O que existe,
sim, é o Deus de cada um, um Deus para cada um. Por outras
palavras: -- um Deus de Carlito, um Deus do leitor, um Deus meu e
assim por diante. Ao falar, com um esgar de pouco-caso, no "Deus de
Carlito", o meu amigo anunciava uma verdade, sem querer. Eu
imagino que, até o dia da batalha, tenham dito o diabo do velho
Rocha. Riam dele, de alto a baixo. Pobres de nós, que não sabemos
respeitar as grandes paixões! E ninguém queria perceber o que era
óbvio: -- graças a Carlito, criava-se uma relação entre o Botafogo e o
sobrenatural, e o clássico decisivo passava a adquirir um pouco de
eternidade.
Vem o jogo. Com a nossa obtusidade de ateus, tínhamos da
batalha uma visão crassamente realista. Só cuidávamos dos aspectos
técnicos, táticos e físicos. Eu próprio vivia perguntando, a um e
outro, na minha aflição de pó-de-arroz: -- "O Leo joga? O Leo não
joga?". Em suma: -- pensava em Leo, em Pinheiro, em Cacá, ou
Valdo, mas não chamava o "meu" Deus. Ao passo que o velho Rocha
é sábio quando acrescenta a qualquer pelada do Botafogo a
dimensão de sua fé.
Eu não vi, nem ouvi, durante toda a semana do jogo, um
tricolor falar em Deus. E por quê? Pelo seguinte: -- achamos que
Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o excluímos das
atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um clube tão
sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum brasileiro consegue ser
nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço,
sem os seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu
Deus pessoal e intransferível. É esse místico arsenal que explica as
vitórias esmagadoras.
Por tantos motivos, eu acredito, piamente, na contribuição de
Carlito para o perfeito, o irretocável triunfo alvinegro. E, de resto,
como não gostar do Deus do velho Rocha? Deus tão cordial, íntimo,
terno, que se incorporou à torcida botafoguense, que viveu com a
torcida botafoguense aqueles eternos noventa minutos! Enquanto
nós não tivemos nada, não tivemos ninguém. Mais esperto, o
Flamengo entretém as suas relações com o sobrenatural, através de
são Judas Tadeu. E quanto a Carlito, ninguém merece tanto como
ele, agora, o título de meu personagem da semana.
[Manchete Esportiva, 4/1/1958]
VESTIDO DE FOGO
Eis que o meu personagem da semana é, desta feita, um
Taylor. "Mas que Taylor?", há de perguntar o leitor, numa
irremediável perplexidade. E, de fato, não há, em todo o futebol
brasileiro, um único e escasso Taylor. Mas eu vos digo: -- o meu
atual personagem da semana não é daqui e, se não me falha a
memória, jamais atuou em campo brasileiro. Acrescento: -- é inglês e
acaba de morrer, à sombra de grandes labaredas. Estava na
delegação do Manchester, que voltava para a pátria. Frustrado no
seu vôo, o avião varreu um ou dois telhados, explodindo. Isso em
Munique e, logo, em todo o mundo, as manchetes incorreram no
mesmo lugar-comum: -- "De luto o futebol inglês!", "Tito telegrafou
para a rainha", "A rainha telegrafou para não sei quem" e entre as
vítimas estava o meu personagem: -- o Taylor morto.
Eis a verdade: -- a morte parece conferir um especialíssimo
manto aos seus eleitos. Não há morto sem importância. Dir-se-ia
que, ao morrer, qualquer cidadão põe um ar de rei Lear. Eu disse
"rei" e insisto: -- rei. E o que aconteceu com Taylor, ao cair o avião,
foi que adquiriu, imediatamente, uma nova dimensão. Mas vejam: --
ele já é eterno e nós ainda somos mortais.
Taylor! Pergunto a mim mesmo se, por acaso, não teria vindo,
aqui, algum dia, num desses clubes ingleses que nos visitaram.
Consulto um companheiro que me informa: -- "Nunca jogou aqui". E
é pena. Agora que morreu gostaríamos de o ter visto, correndo,
molhando a camisa, fazendo o metódico, o construído, o despojado
futebol inglês. Futebol que se caracteriza por uma implacável
honestidade.
Ele morreu e ninguém o viu. Ou por outra: -- só o viram os
poucos brasileiros que estiveram em Wembley, naquele funesto
Brasil x Inglaterra*. Taylor jogou pelos britânicos e, por duas vezes,
arrombou as redes brasileiras. Em suma: -- ele colaborou para uma
das mais duras humilhações do nosso futebol. Não tanto o escore de
4 x 2, mas as características da derrota é que ainda hoje nos
envergonham. Realmente, diante dos ingleses caímos em inibições
convulsivas. O que se viu foi um pobre Brasil, sem um único
lampejo. Mas o tempo passa e eis que Taylor morre. E nós que não o
vimos, que não o aplaudimos, nem o vaiamos, sentimos que Taylor
deixou de ser um estranho. Sim, a morte deu-lhe a fisionomia exata,
a face fidedigna, o ríctus certo. O verdadeiro rosto é o último. O
homem da rua, que o ignorava, cochicha para os conhecidos: -- "O
Taylor morreu!". Entre nós e os mortos cessam os limites de polidez,
de cerimônia e de suspeita que separam os vivos uns dos outros.
E há uma circunstância que parece distingui-lo de todos os
outros mortos e de todos os outros vivos: -- ele marcou, como já
referi, dois gols contra nós em Wembley. Naquela ocasião, confesso
que estrebuchei, de raiva cívica. Se fosse um, mas dois, logo dois!
Ora, nada se compara ao ódio que, de momento, açula o torcedor
sempre que o adversário põe um gol como um ovo. A fúria rompe,
sobe das nossas profundezas como uma golfada atroz. Assim eu odiei
Taylor quando perdemos em Wembley. Digo "eu" e acrescento: -- o
resto do Brasil. Cerca de dois anos depois, cai um avião, Taylor
morre e há, em nós, uma transformação.
Os mesmos dois gols, que outrora nos enfureceram, tecem
entre nós e Taylor uma relação mais cordial e mais comovida. Dir-se-
*Tommy Taylor era uma das grandes promessas do futebol inglês. O jogo a que Nelson
se refere foi Inglaterra 4 x 2 Brasil, em 9/5/1956, em Wembley, no qual Gilmar
pegou dois pênaltis. O desastre com o avião que conduzia o Manchester United,
clube de Taylor, foi em 6/2/1958.
ia que, ao vazar o arco brasileiro, ele estava, em verdade, prestando
uma homenagem ao Brasil. Sentimos quase gratidão pela derrota
que ele e os companheiros nos infligiram. E ao imaginá-lo, vestido de
fogo, no avião que decepou o telhado, experimentamos um pouco a
nostalgia da morte. É como se só existisse entre nós e Taylor esta
diferença: -- ele já morreu e nós somos uns mortos frustrados.
Em Wembley, era um ser em plenitude. Quem se lembraria de
lhe soprar ao ouvido: -- "Você vai morrer, Taylor!"? Os que vão
morrer cedo deviam ter uma marca, um distintivo, um estigma
material. Mas como não há esse estigma, a morte de Taylor cobriu o
mundo de espanto.
[Manchete Esportiva, 15/2/1958]
A REALEZA DE PELÉ
Depois do jogo América x Santos*, seria um crime não fazer de
Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu
confrade Albert Laurence chama de "o Domingos da Guia do ataque".
Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: -- dezessete anos! Há
certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de
Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter
dezessete anos, jamais. Pois bem: -- verdadeiro garoto, o meu
personagem anda em campo com uma dessas autoridades
irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador
Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender
mantos invisíveis. Em suma: -- ponham-no em qualquer rancho e a
sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado
de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem
considerável: -- a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele
apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem
escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem
uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe
perguntaram: -- "Quem é o maior meia do mundo?". Ele respondeu,
com a ênfase das certezas eternas: -- "Eu". Insistiram: -- "Qual é o
maior ponta do mundo?". E Pelé: -- "Eu". Em outro qualquer, esse
desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz
uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a
admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas
*
Santos 5 x 3 América, 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio--São Paulo. Foi a primeira crônica de
Nelson sobre Pelé -- e a primeira em que o jogador foi chamado de "rei".
pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o
incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.
Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em
Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América,
monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente
estrebuchava: -- "Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!". De
certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele
recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado.
Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de
adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o
primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que
Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: -- sem passar a
ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição
minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento
em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma
defesa. Ou por outra: -- a defesa estava indefesa. E, então, livre na
área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e
encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e
puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de
confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque
imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a
imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba
intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida
docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é
imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não
tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos
de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa
atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: --
aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos
adversários uns pernas-de-pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a
fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os
húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós
baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante,
por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros
como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os
outros é que tremerão diante de nós.
[Manchete Esportiva, 8/3/1958]
DIDI SEM GUIOMAR
E, súbito, a CBD toma uma providência patética: -- baixa uma
ordem impedindo que qualquer jogador leve a mulher à Suécia. Ora,
a finalidade da medida é de uma cândida transparência. Só um cego
de nascença não vê que se trata de separar Didi de Guiomar*, de
obstar que ela o acompanhe ao próximo Mundial. Está claro que Didi
pagaria todas as despesas de Guiomar; está claro, do mesmo modo,
que ela ficaria fora da concentração, apenas como torcedora de Didi e
do Brasil. Ainda assim, a entidade máxima faz finca-pé. Didi está
diante do dilema: ou a Suécia ou Guiomar. Não importa que a CBD
volte atrás, que revogue a decisão errada e, sobretudo, inumana.
Seja como for, Guiomar já foi transformada num autêntico fato
jornalístico, e merece que eu a apresente como meu personagem da
semana.
Pergunto: -- por que a arbitrariedade contra Didi e Guiomar?
Explico: -- existe, contra ela, um preconceito militante,
agressivo e eu quase diria internacional. Examinem a improcedência
de certas antipatias, de certas irritações. Por exemplo: -- ela trata, a
todos, com uma cordialidade quase doce. E, no entanto, basta que
Didi fracasse numa folha-seca, ou desperdice um pênalti, ou faça um
passe errado, para que a torcida a responsabilize. Vejam vocês as
ironias do futebol: -- ela devia ser responsável, por igual, pelos
defeitos e pelos méritos de Didi. Mas não. Se Didi falha é Guiomar,
se não falha é Didi. Ninguém admite que ela possa representar, no
*Guiomar acabou não indo à Suécia e, mesmo assim, Didi foi considerado o maior
jogador da Copa. A CBD é a antiga Confederação Brasileira de Desportos, atual CBF.
futebol do craque, um poderoso estímulo, um incentivo total. Pelo
contrário: -- atribuem-lhe um papel funesto. Segundo a nossa
maledicência fácil e irresponsável, se Didi não faz mais gols é porque,
atrás dele, está a influência nefanda de Guiomar.
Mas vamos imaginar, aqui, uma outra hipótese: -- Didi sem
Guiomar. Nós sabemos o que é um homem sem sua mulher. Notem:
-- não é qualquer mulher, não é um flerte, não é um namoro, não é
uma aventura, mas algo que independe de tempo, um vínculo
irredutível e, eu tenho mesmo vontade de dizer, eterno. Tanto é
verdade que ninguém consegue imaginar Didi sem Guiomar e vice-
versa. Dir-se-ia que os dois constituem um ser único, indivisível. E o
que a CBD quer, justamente, é amputar um do outro, é fazer a cisão
intolerável de duas metades. Convenhamos: -- já Didi seria menos
Didi, ou por outra: -- não seria Didi. Seria meio Didi, desfalcado na
generosa totalidade do seu ser.
Imaginemos o craque na Suécia. E mais: -- imaginemos o
craque sem Guiomar. O juiz apita uma penalidade, nas imediações
da área, contra o adversário. Didi vai cobrar. É o momento justo e
patético da folha-seca. Mas como executá-la, se há, entre Didi e
Guiomar, terras e águas, se há entre os dois um irredutível oceano?
E, de resto, como exigir uma folha-seca de um jogador que foi
arrancado de seu amor, arrancado de sua paixão? Bem se vê que a
CBD não entende nada de psicologia e nunca amou em sua vida. Ela
vê o craque como tal, apenas. E nem desconfia que o jogador é, antes
de tudo, um homem e que, nessa base, a condição humana está
implicada em todos os seus defeitos e virtudes.
Dirá alguém que Didi e Guiomar brigam muito e que os bate-
bocas em casa influem na produção em campo. Mas os conflitos de
um casal são inevitáveis e, mais do que isso, estimulantes. E quem
nos diz que as brigas domésticas não inspiram Didi, não o
transfiguram, não o virilizam nas batalhas da cancha? De vez em
quando é preciso que um casal se engalfinhe. É sadio e atrevo-me
mesmo a dizer: -- é sublime. E porque um não pode viver sem o
outro, seja na Suécia, seja em Vigário Geral, hoje o meu personagem
da semana são dois: -- Didi e Guiomar.
[Manchete Esportiva, 26/4/1958]
O GORDO SALVADOR
Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um
incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E, no
entanto, vejam: -- pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior
do que ser gordo é ser magro. Digo isto a propósito de Feola*, o meu
personagem da semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da
distância, porém, é como se eu o estivesse vendo com a doce, a
generosa cordialidade que é o clima dos gordos de todos os tempos. E
aqui pergunto: -- um Feola magro teria sido melhor para o escrete?
Não creio e explico. É preciso ver os magros com a pulga atrás
da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de
fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas
que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no
profundo e amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for,
temos de admitir a sua ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis
vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta
circunstância, que ele deplora e repudia. Numa terra de
neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável
humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os
sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.
Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra
a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas
indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória.
*Vicente Feola foi o treinador da seleção brasileira na Copa de 1958. O grosso da
imprensa não o levava a sério, acusando-o de cochilar no banco de reservas durante
os treinos.
Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião,
algum depauperado? Não, senhor. Pelo contrário: -- os quadros
mostram a inequívoca e imperial barriga napoleônica. E uma das
coisas que me levam a acreditar no Brasil como campeão do mundo
é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo.
O leitor pode perguntar, com certa irritação: -- e que
importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato,
dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos
terrenos. O sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo
"cercado de palpites" e acrescento: -- de palpiteiros. O técnico tem,
no mínimo, duzentas irritações por dia. E, além do mais, não há
função mais polêmica. Tudo o que ele faça suscita debates no país
inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a sua desgraça.
E das duas uma: ou ele tem uma inexpugnável sanidade mental ou
acaba maluco e a família não sabe. Só um gordo, repito, possui por
natureza a euforia necessária para resistir às crises de um escrete.
Por exemplo: -- observem o comportamento de Feola na
preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o perturba,
nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não
xingou a mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por
coincidência, magros, que acham bonito e eficaz tratar o craque a
pontapés. Feola, nunca. Podem fazer todas as ondas do céu e da
terra. Ele permanecerá com sua alegria imbatível -- constante,
ininterrupta alegria. E esse bom humor quebra e desmoraliza
qualquer resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende.
Faz o que quer, e só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa
e, direi mesmo, imperceptível.
Não se sente a autoridade de Feola que, entretanto, é militante,
irredutível. Sim, amigos: -- não esbraveja, não estrebucha, nem
todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide. E
ninguém se iluda: -- a sua abundante cordialidade de gordo é o
disfarce de um maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem
histeria, insuscetível de irritações, fazia falta num futebol de
emotivos, de irritados, como o nosso.
Eu disse que Feola não perdia nunca o bom humor e já retifico:
há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gordo. Então,
ele pula e esbraveja como um caluniado.
[Manchete Esportiva, 3/5/1958]
O QUADRÚPEDE DE 28 PATAS
Hoje, o meu personagem da semana é uma das potências do
futebol brasileiro. Refiro-me ao torcedor. Parece um pobre-diabo,
indefeso e desarmado. Ilusão. Na verdade, a torcida pode salvar ou
liquidar um time. É o craque que lida com a bola e a chuta. Mas
acreditem: -- o torcedor está por trás, dispondo.
Escrevi acima que o torcedor não é um desarmado e provo. De
fato, ele possui uma arma irresistível: -- o palpite errado.
Empunhando o palpite, dá cutiladas medonhas. Vejam o primeiro
jogo com os paraguaios. Vencemos de cinco* e podia ter sido de dez.
Fizemos do adversário gato e sapato. Ora, para uma primeira
apresentação foi magnífico ou, mesmo, sublime. Mas quando saí do
Maracanã, após o jogo, vejo, por toda parte, brasileiros amargos e
deprimidos. Mais adiante, esbarro num amigo lúgubre. Faço
espanto: -- "Mas que cara de enterro é essa?". O amigo rosna: --
"Estou decepcionado com o escrete!". Caio das nuvens, o que,
segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro
andar. Instantaneamente, vi tudo: -- o meu amigo era ali, sem o
saber, um símbolo pessoal e humano da torcida brasileira. Símbolo
exato e definitivo.
Em qualquer outro país, uma vitória assim límpida e líquida do
escrete nacional teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Aqui,
a primeira providência do torcedor foi humilhar, desmoralizar o
triunfo, retirar-lhe todo o dramatismo e toda a importância. Atribuía-
*Brasil 5 x 1 Paraguai, 4/5/1958, no Maracanã; Brasil 0x0 Paraguai, 7/5/1958, no
Pacaembu. Jogos preparatórios para a Copa de 1958.
se a vitória não a um mérito nosso, mas a um fracasso paraguaio. Os
guaranis passavam a ser pernas-de-pau natos e hereditários. Dir-se-
ia que, por uma prodigiosa inversão de valores, sofremos com a
vitória e nos exaltamos com a derrota.
E, no entanto, vejam vocês: -- o escrete visitante, que nos
parecia de vira-latas, acabara de vencer e desclassificar a "Celeste" e
bater a enfática Argentina. Mas, para cuspir na vitória brasileira, o
nosso torcedor fingiu ignorar a real capacidade, a indiscutível classe
do adversário. Veio o segundo jogo, no campo careca e
esburacadíssimo do Pacaembu. Houve um empate, que teve para o
Brasil o gosto de uma semiderrota. Desta vez, porém, nada de choro,
nada de vela. Por toda parte, só se viam caras incendiadas de
satisfação. Com o olho rútilo e o lábio trêmulo, o torcedor patrício
lavava a alma: -- "Eu não disse?". Os pernas-de-pau não eram mais
os paraguaios, eram os brasileiros. E está-se vendo esta vergonha: --
um escrete, que começou vencendo, já é vítima de uma negação
frenética. Há gente torcendo para que ele apanhe de banho na
Suécia.
Eis a verdade, amigos: -- tratam do craque, tratam da equipe e
esquecem o torcedor, que está justificando cuidados especiais. Que
estímulo poderá ter um escrete que é negado mesmo na vitória? A
seleção não tem saída. Se vence de cinco, se dá uma lavagem, o
torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não
presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!
Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção.
Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador. De resto,
convém notar o seguinte: -- o escrete brasileiro implica todos nós e
cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e
de nossas qualidades. Em 50, houve mais que o revés de onze
sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro.
A propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas
esquinas e pelos cafés, batendo no peito: -- "Eu sou uma besta! Eu
sou um cavalo!". Outras vezes, ia mais longe na sua auto-
consagração; e bramava: -- "Eu sou um quadrúpede de 28 patas!".
Não lhe bastavam as quatro regulamentares; precisava acrescentar-
lhe mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete está, como o meu
amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, porque é um Narciso às
avessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meu
personagem da semana.
[Manchete Esportiva, 17/5/1958]
COMPLEXO DE VIRA-LATAS
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da
semana. Os jogadores já partiram* e o Brasil vacila entre o
pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas,
nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: -- "O Brasil não vai
nem se classificar!". E, aqui, eu pergunto: -- não será esta atitude
negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: -- desde 50 que o nosso futebol tem
pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na
última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer
brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente
nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a
dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore
tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em
vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que,
aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou"
como poderia dizer: -- "extraiu" de nós o título como se fosse um
dente.
E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: -- é
ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de
acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: -- o pânico de
uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos,
qualquer esperança. Só imagino uma coisa: -- se o Brasil vence na
Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé
que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de
*Última crônica antes da estréia do Brasil na Copa de 1958.
brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: -- o escrete brasileiro tem, realmente, possi-
bilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não".
Mas eis a verdade: -- eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: --
sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro
bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-
fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado
do Flamengo. Pois bem: -- não vi ninguém que se comparasse aos
nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir,
um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: -- qualquer jogador
brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado
de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de
invenção. Em suma: -- temos dons em excesso. E só uma coisa nos
atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir
ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a
imaginar o espanto do leitor: -- "O que vem a ser isso?". Eu explico.
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que
o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.
Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos
julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que
perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a
equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu
diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha
de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a
vantagem do empate. Pois bem: -- e perdemos da maneira mais
abjeta. Por um motivo muito simples: -- porque Obdulio nos tratou a
pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: -- o problema do escrete não é mais de futebol,
nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé
em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um
vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez
que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele
precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: --
para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
[Manchete Esportiva, 31/5/1958]
DESCOBERTA DE GARRINCHA
E eis que, pela primeira vez, um "seu" Manuel é o meu
personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota,
ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa.
Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia* acabou nos três minutos
iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o "seu"
Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a
Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o
meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo
adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta
inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de
Rasputin.
Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente
na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o
espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que
vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como
marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação
impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de
Garrincha e concluía: -- "Isso não existe!". E eu, como os russos, já
me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu.
Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente,
jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou
melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: -- baile,
sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um
*Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). A URSS era
apontada como o grande fantasma da Copa por seu "futebol científico".
perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.
Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não
acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado
contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha
Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário.
Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu,
vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de
alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros
brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a platéia
internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante
sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de
chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada,
cumprimenta até cachorro. Antes de começar o jogo, o seu marcador
havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: "Esse não dá
pra saída!". E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia
duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território
nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser
brasileiro.
Está claro que não estou subestimando o peito dos outros
jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá
era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E
quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile,
foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem
razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: "Isso
que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!". Calculo
que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar
humilhadíssimas. O marcador do "seu" Manuel já não era um: eram
três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da
Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada
vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não
creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha
estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai
chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência
dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos
passarinhos, desterrados de Pau Grande.
Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e
inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir
Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e
talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.
[Manchete Esportiva, 21/6/1958]
MORRENDO AO PÉ DO RÁDIO
Só os bobos, só os tapados não enxergam que o Brasil
conseguiu, ontem, a sua maior vitória. Digo "maior" porque
vencemos não de banho, não de goleada, mas por um escore magro,
esquálido, quase fúnebre: -- 1 x 0. O povo queria que enfiássemos
uns seis ou sete. Eis a nossa tragédia: -- a pura e simples vitória não
basta. Desejamos enfeitá-la, pôr-lhe fitinhas e guizos. E o triunfo
sem show, sem apoteose, o triunfo enxuto deixa o brasileiro
descontente e desconfiado. Mas eu vos digo, aqui, que ninguém nos
ouve: -- foi a maior vitória brasileira. Imaginem se, por um absurdo,
tivéssemos batido de quinze. Íamos enfrentar a França como uns
anjinhos, isto é, com uma sensação mortal de invencibilidade. Em
50, perdemos a Copa porque goleamos a Espanha. Amigos, deixemos
o banho para a França, que meteu quatro na Irlanda do Norte.
Ótimo. E batam na madeira.
Vejamos, porém, quem deve ser, entre os 22 homens de ontem,
o meu personagem da semana. Ao terminar o jogo, Leônidas*, que
vive a negar os méritos do escrete, doutrinava: -- "Pelé devia ser
barrado!". Pois é este, justamente este, o personagem da semana.
Poderão objetar que Pelé jogou mal. Quem faz, numa quarta-de-final,
o gol da vitória não jogou mal coisíssima nenhuma. De resto, que
autoridade tem Leônidas? Contra a Rússia, ao final do primeiro
tempo, vinha ele para o microfone clamar: -- "Os russos estão
*Brasil 1 x 0 País de Gales, 19/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). O Leônidas a que
Nelson se refere é Leônidas da Silva, ex-craque (inventor da "bicicleta") e então
comentarista esportivo.
jogando melhor! Os russos estão mais perigosos!". Pois bem: --
Leônidas foi o único camarada, em todo o Velho Mundo, que ignorou
o show brasileiro. Enquanto Garrincha bailava, ele se punha a
admirar o adversário! E, por isso, eu vos digo: se Leônidas nega Pelé,
ótimo para este.
Mas admitamos que Pelé tenha jogado pedrinhas. Fez o gol.
Amigos, nada descreve o uivo, o urro que soltamos aqui quando o
espíquer atirou o seu berro bestial: -- "Gol!". Até aquele momento, o
Brasil inteiro, de ponta a ponta, do presidente da República ao
apanhador de guimba, o Brasil estava agonizando, morrendo, ao pé
do rádio. Imaginem se o adversário, antes de Pelé, tivesse enfiado um
gol maluco. Eis a verdade: ia haver uma morte nacional. O Brasil
teria desabado, teria arriado, e, posteriormente, teria saído num
rabecão.
E veio Pelé e fez o milagre. Podia ter enchido o pé. Mas foi
genialmente sóbrio. Apenas colocou. E o arqueiro do País de Gales,
que estava apanhando tudo, até pensamento, foi miseravelmente
enganado. E ficou falando sozinho. Só mesmo Leônidas é quem podia
achar que foi pouco esse gol tão sofrido, tão chorado por milhões de
patrícios.
Eu falei em uivo, em urro. Sim, amigos: -- foi um som jamais
ouvido, desde que se inventou o homem. Algo de bestial, de pré-
histórico, antediluviano, sei lá. Nunca, em nossa curta passagem
terrena, conhecemos uma euforia assim brutal. Foi um desses
momentos em que cada um de nós deixa de ter vergonha e passa a
ter orgulho de sua condição nacional. E pergunto: como esquecer
que foi Pelé, um garoto de cor, dos seus dezessete anos, quem nos
arrancou, ontem, de nossa agonia e de nossa morte? "Garoto de cor",
disse eu. Mas um tipo racialmente nobre como Didi, por exemplo.
Pelé em ação, dentro de campo, tem na sua corrida a cadência de
certos cavalos de charrete, com perdão da imagem. Como Didi, daria
também um belo príncipe etíope de rancho.
E o bonito é que esse menino não se abala, nem se entrega.
Possui a sanidade mental de um Garrincha. Ao contrário do
brasileiro em geral, suscetível de se apavorar em face dos títulos do
inimigo, ele não acredita em nada. Ninguém é melhor do que ele.
Tivesse jogado contra a Inglaterra e creiam: -- havia de driblar até a
rainha Vitória. E, além do mais, foi preciso muita classe para enfiar o
gol único e bendito. Debaixo daquela tensão emocional dantesca, só
um garoto de raça teria lucidez para colocar, simplesmente colocar,
no fundo das redes. Vamos deixar que Leônidas chame Pelé de
perna-de-pau.
É de pernas-de-pau como o meu personagem da semana que o
Brasil está precisando para ser campeão do mundo.
[Manchete Esportiva, 24/6/1958]
O TRIUNFO DO HOMEM
Qualquer jogador do escrete brasileiro podia ser o meu
personagem da semana. De Gilmar a Zagalo. De Zagalo diremos
apenas o seguinte: -- estava em todos os lugares ao mesmo tempo.
De certa feita, foi até interessante. Zagalo salva um gol, sai com a
bola e, em seguida, aparece lá na frente, na área adversária,
desintegrando a defesa inimiga. Amigos, ontem o escrete era
imbatível. Cada vez que um craque patrício apanhava a bola, partia
em todas as direções, como aquele mocinho de fita em série. E, pela
primeira vez, numa final de campeonato do mundo, um escrete vence
de goleada, vence de banho*. Mas, como eu ia dizendo: -- a exibição
do Brasil foi tão perfeita, irretocável, que, desta vez, qualquer um
podia ser o meu personagem.
Por exemplo: -- Pelé, um menor total, irremediável, que nem
pode assistir a filme de Brigitte Bardot. Ao receber o ordenado, o
bicho, é o pai que tem de representá-lo. Pois bem: -- Pelé assombrou
o mundo. Não se limitou a fazer os gols. Tratava de enfeitá-los, de
lustrá-los. Sim, poderia ser Pelé o homem desta página.
E, todavia, eu penso em Didi. Examinem a sua fisionomia, os
seus traços. Há, nele, uma dignidade racial de Paul Robeson.
"Grande jogador", dizem todos. Mas não faltam os que duvidem do
seu caráter, do seu brio, da sua alma. Nos jogos do certame carioca,
é comum ouvir-se um torcedor esbravejando: -- "Didi não está
fazendo força! Didi está amolecendo!". Quando se tratou de organizar
o escrete, quase todo mundo gritou contra Didi. Uns juravam: --
*Brasil 5 x 2 Suécia, 29/6/1958, em Estocolmo. Brasil campeão do mundo.
"Moacir é melhor!". Outros diziam:
-- "Didi não é jogador para a Copa!". Nos treinos da seleção, foi
vaiado quantas vezes? Acabaram queimando o formidável jogador.
Conclusão: -- ele amarrou a cara e seu comportamento, em todo o
Mundial, foi esmagador.
Não se podia desejar mais de um homem, ou por outra: -- não
se podia desejar mais de um brasileiro. Ninguém que jogasse com
mais gana, mais garra, e, sobretudo, com mais seriedade. Nem
sempre marcava gols. Mas estava, fatalmente, por trás dos tentos
alheios. Era ele quem amaciava o caminho, quem desmontava a
defesa inimiga com seus lançamentos em profundidade. Com uma
simples ginga de corpo, liquidava o marcador. E nas horas em que os
companheiros pareciam aflitos, ele, com sua calma lúcida, o seu
clarividente métier, prendia a bola e tratava de evitar um caos
possível.
Não foi só o jogador único, que os críticos europeus mais
exigentes consideraram o maior da Copa. Foi algo mais: -- um
homem de bem. O que ele demonstrou de constância, de fidelidade,
de bravura, de entusiasmo, basta para caracterizá-lo como um
brasileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial, o
brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: -- passa a
ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum
escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias
qualidades morais. De nada adiantará o futebol se o homem não
presta. O belo, o comovente, o sensacional no triunfo de ontem está
no seguinte: -- foi, antes de tudo, o triunfo do homem.
Eu já disse que, no formidável e harmônico esforço do escrete,
todos parecem merecer uma glória igual. É dificílimo destacar este
ou aquele. Mas há, no caso de Didi, certas circunstâncias que
projetam o craque em alto-relevo. O torcedor estava errado quando o
imaginava incapaz de paixão, incapaz de gana, incapaz de garra.
Molhou a camisa, derramou até a última gota de suor, matou-se em
campo. Quando o rei Gustavo da Suécia veio apertar-lhe a mão, eu
imaginei ao ouvir no rádio a descrição da cena: -- dois reis! Pois
Didi, como sempre tenho dito aqui, lembra um rei ou príncipe etíope
de rancho.
Com as suas gingas maravilhosas, ele, em pleno jogo, dava a
sensação de que lhe pendia do peito não a camisa normal, mas um
manto de cetim azul, com barra de arminho.
[Manchete Esportiva, 5/7/1958]
É CHATO SER BRASILEIRO!
Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto,
vejam vocês: -- a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre.
Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir
do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos
dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização
súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com "x" iam ler a
vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: -- analfabetos natos e
hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo
com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do "lance a
lance" da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e,
digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.
E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete que,
hoje, é o meu personagem da semana, meu múltiplo personagem.
Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores,
que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os
tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si
mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a
vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5 x 2, lá
fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de
todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao
apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos
aqui percebemos o seguinte: -- é chato ser brasileiro!
Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as
moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam
pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc. O povo já não se
julga mais um vira-latas. Sim, amigos: -- o brasileiro tem de si
mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de
suas imensas virtudes pessoais e humanas.
Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas
as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: -- que éramos nós?
Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de
Dickens que vivia batendo no peito: -- "Eu sou humilde! Eu sou o
sujeito mais humilde do mundo!". Vivia desfraldando essa humildade
e a esfregando na cara de todo mundo. E, se alguém punha em
dúvida a sua humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir
caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher,
com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis, de
camisola e alpercatas.
Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já
trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage
diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou
mais além: -- diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A
partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é
uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios.
Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das
hipóteses, somos uns ex-buchos.
E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana.
Ninguém aqui admitia que fôssemos os "maiores" em futebol.
Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava
o melhor nem de cuspe à distância. E o escrete vem e dá um banho
de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se
isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a
última peleja. Foi uma lavagem total.
Outra característica da jornada: -- o brasileiro sempre se
achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a
nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o
seguinte: -- o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.
[Manchete Esportiva, 12/7/1958]
GARRINCHA NÃO PENSA
Amigos, estou diante de um problema, que é o seguinte: --
Garrincha foi, há pouco tempo, meu personagem da semana. Poderei
repeti-lo sem irritar os leitores? Eis a verdade, porém: -- não se trata
de escolher, de optar. Ontem, só houve em campo um nome, uma
figura, um show: -- Garrincha. Os outros três campeões do mundo
estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à
miserável condição humana. São mortais e suscetíveis de todas as
contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por
um dever contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas
resistências emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está
acima do bem e do mal.
O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca
existiu. Como os três outros campeões mundiais do Botafogo, ele foi
massacrado por apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o
"seu" Mané está em vigília permanente. E, no entanto, vejam vocês:
-- apareceu em campo com uma disposição vital esmagadora.
Ninguém mais ágil, mais plástico, mais alado. Em campo, desde o
primeiro minuto, foi leve como uma sílfide.
O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio,
cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: -- "Mata!
Esfola!". Ontem, porém, no Botafogo x Fluminense*, sentiu-se uma
curiosa reação: -- Garrincha trazia para o futebol uma alegria
* Botafogo 2 x 1 Fluminense, 10/7/1958, no Maracanã. O campeonato carioca
começou dez dias depois da Copa da Suécia, durante os quais os campeões do
mundo foram submetidos a um festival de homenagens.
inédita. Quando ele apanhava a bola e dava o seu baile, a multidão
ria, simplesmente isto: -- ria e com uma saúde, uma felicidade sem
igual. O jornalista Mário Filho observou, e com razão, que, diante de
Garrincha, ninguém era mais torcedor de A ou de B. O público
passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos
assim, um deleite puramente estético da torcida.
Aconteceu, então, o seguinte: -- foi-se assistir a um jogo e viu-
se Garrincha. No fim, já as duas torcidas queriam apenas que
Garrincha apanhasse a bola e começasse a fazer as suas delirantes
fantasias. Então, aplaudiam nas arquibancadas, cadeiras e gerais,
com uma euforia de macacas-de-auditório. Por exemplo: -- o meu
caso. Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e hereditário, para torcer
pela vitória do Fluminense e contra a vitória do Botafogo. Súbito
começo a exultar também. Diante de cada jogada de Garrincha, eu
experimentava a alegria que as obras-primas despertam.
E, no entanto, vejam vocês: -- chamavam este homem de
retardado! Só agora começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua
superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino
nos seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha.
Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou
chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo
mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha
não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e
irresistível do instinto. E, por isso mesmo, chega sempre antes,
sempre na frente, porque jamais o raciocínio do adversário terá a
velocidade genial do seu instinto.
No segundo tempo, quase não lhe deram bola. E aconteceu o
inevitável: -- o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter
empatado, até. Mas ficamos num joguinho platônico, um futebol
inofensivo, de passes para os lados e para trás. Resta saber: -- de
quem é a culpa? De uma indigência de recursos táticos? Ou faltou-
nos um Garrincha, com suas penetrações fulminantes, as suas
geniais invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores
punham as mãos na cabeça: -- "Isso não existe!".
Eu falei, mais atrás, que ele foi, na sua agilidade, algo de muito
leve, de muito etéreo. De fato, na etapa inicial, Garrincha deu uma
bicicleta de sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão
de que tínhamos visto não um jogo, não dois times, mas uma figura
única e fantástica: -- Garrincha, o meu personagem da semana.
[Manchete Esportiva, 19/7/1958]
A CRUZ DO BOTAFOGO
Se, na sexta-feira, alguém me perguntasse: -- "Quem é Hélio
Cruz?", eu cairia na mais crassa, na mais ignara das perplexidades.
De fato, o nome "Hélio Cruz" não encontraria, em mim, nenhuma
acústica. Eu já o vira jogar em outras partidas do São Cristóvão. Mas
era um desses conhecidos que a gente desconhece, conhecido que a
gente ignora. Sábado, porém, soou a grande hora de Hélio Cruz. O
São Cristóvão ia enfrentar o Botafogo*, não um Botafogo qualquer,
mas um Botafogo potencializado por quatro campeões do mundo. Há
quem diga do alvinegro: -- "É o escrete brasileiro!". Nem tanto,
amigos, nem tanto. Mas uma coisa é certa: -- a presença de Nílton
Santos, Garrincha, Didi e Zagalo confere ao quadro de General
Severiano um charme esmagador.
Houve o jogo e a renda foi uma vergonha. Apenas duzentos e
poucos contos. Mas eu explico a arrecadação deprimente: -- é que
ninguém, na Terra, esperava a derrota do Botafogo. O alvinegro devia
vencer e, segundo todas as presunções, de banho. Por isso, ninguém
foi lá. Mas como eu ia dizendo: -- estava escrito que o momento de
Hélio Cruz era o jogo de sábado. Tudo conspirou, aliás, para dar-lhe
a grande chance. Querendo fazer do time uma fábrica de dinheiro, o
alvinegro está pondo seus craques para jogar, para suar como se
fossem eles uns barqueiros do Volga. Uma equipe tem, como é óbvio,
um limite de resistência. E jogadores que atuam aqui e ali, sem uma
pausa para recuperação, acabam liquidados. O que vimos contra o
*São Cristóvão 2 x 1 Botafogo, 23/7/1958, no Maracanã. Ao fim daquele campeonato,
Hélio Cruz foi vendido para fora do Rio e eclipsou-se. Viveu seus noventa minutos de
glória naquele jogo -- e foi só.
São Cristóvão foi um Botafogo gasto, que não queria nada com a
bola. Perdeu, e pior do que isso: -- perdeu para um adversário que,
em grande parte do jogo, atuou com dez elementos. Convenhamos
que foi o que se chama uma derrota feia. Ou será que o Botafogo
ainda não percebeu que não importam os tostões que possa arranjar
aqui e ali, em excursões caça-níqueis? Não. O que importa é o "bi" e
nada mais.
Voltemos, porém, a Hélio Cruz, que eu transformei no meu
personagem da semana. Não sei se ele jogou bem ou mal. O que sei é
que cravou, no Botafogo, dois gols, o bastante para derrubar o
alvinegro. Quando o São Cristóvão enfiou o primeiro, ocorreu uma
coisa curiosa: -- os espectadores perguntavam uns aos outros: --
"Hélio Cruz? Mas quem é Hélio Cruz?". E, ao chegar na redação, sou
cercado por colegas ávidos: -- "Quem é esse cara?". Ninguém sabia e
eu muito menos. E o que atrapalhava, ainda mais, era o sobrenome.
E, com efeito, nenhum craque usa o nome por extenso. Seria
realmente irritante que um arqueiro se chamasse J. B. dos Passos
Portela ou J. Pimentel da Fonseca. E eu, na minha perplexidade,
perguntava: -- por que não apenas Hélio ou não apenas Cruz? Um
craque que se chamasse simplesmente Hélio ou simplesmente Cruz
não precisaria acrescentar mais uma vírgula ao seu nome. E, no
entanto, o artilheiro de sábado é, por completo, Hélio Cruz, como
num cartão de visitas.
Vejam vocês as ironias do futebol. Hélio Cruz era, até o jogo
com o Botafogo, solidamente desconhecido, maciçamente obscuro.
Já marcara outros gols talvez mais bonitos que os de sábado. Mas
ninguém lhe conseguia decorar o nome. Bastou-lhe pôr abaixo o
Botafogo para que, imediatamente, todos verificassem que ele era um
falso desconhecido, um falso obscuro. O que faltava, apenas, era um
fato qualquer que permitisse a fixação do seu nome e de sua figura.
Sábado, o meu personagem agarrou, com unhas e dentes, a sua
oportunidade.
Certos desconhecidos esperam apenas um pretexto para se
tornarem célebres. O pretexto de Hélio Cruz foram os dois gols
implacáveis. Já ninguém pergunta diante do seu nome: -- "Quem é
esse cara?". E Manchete Esportiva faz, no presente número, o
trocadilho: -- "Hélio foi a Cruz do Botafogo". Até o sobrenome, que
parecia supérfluo, favoreceu a piada. Ora, quando alguém passa a
inspirar os trocadilhos anônimos, passa a ser figura folclórica,
convenhamos: -- está famoso até segunda ordem.
E, além disso, Hélio Cruz teve um mérito espetacular. Derrotou
um Botafogo, apesar da fauna, da flora de campeões do mundo.
Sejam justos: -- ninguém merece mais ser meu personagem da
semana.
[Manchete Esportiva, 2/8/1958]
CEM POR CENTO DIDA
O placar do Flamengo é de assustar*: -- 8 x 0! Essa
abundância numérica significa que o rubro-negro submeteu o Olaria
a um metódico, a um meticuloso, a um hediondo massacre. E o
patético é que não foi um time, uma equipe, que construiu o
escandaloso placar. Foi um homem, um único e solitário homem que
desandou a fabricar gols a torto e a direito. Esse homem chama-se
Dida e eu o apresento aqui como o meu personagem da semana.
Na véspera, ou seja, sábado, um outro craque enfiara quatro.
Refiro-me a Didi que, funcionando na frente, na área, acabou com a
Portuguesa. Conquistou quatro tentos de antologia. Dida, porém, fez
mais: -- meia dúzia e, ontem, nenhuma força humana ou divina
conseguiria destruí-lo. Muita gente há de pensar que Dida abusou,
que não devia ter feito tanto, que podia ter-se limitado aos dois, aos
três, ou, como Didi, aos quatro. Mas a verdade é que o aparente
exagero tem sua íntima lógica irredutível. De fato, Dida andou
passando mal na Copa do Mundo. Na Suécia, o locutor Leônidas
apanhou o microfone para dizer horrores a seu respeito. E vamos e
venhamos: -- fora da pátria, o sujeito é mais sensível, mais
vulnerável. Qualquer restrição que se lhe faça soa como uma
bofetada.
E, além disso, nada enfurece tanto como a injustiça. Qualquer
paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade.
Perguntem a uma zebra do jardim zoológico: -- "Dida é um perna-de-
*Flamengo 8 x 0 Olaria, 22/8/1958, na Gávea. Dida tornou-se o maior goleador da
história do Flamengo antes de Zico, mas não voltou à seleção brasileira.
pau?". E a zebra responderá, com uma ênfase tremenda: --
"Absolutamente! Absolutamente!". Pois bem: -- só Leônidas achou de
arrasar Dida como se este fosse um bonde. Disse, entre outras
barbaridades, que ele não podia nem jogar num time de primeira
divisão. Falei em injustiça e repito: -- deslavada injustiça! Só hoje,
passado o impacto da Copa do Mundo, é que se compreende a
ferocidade de Leônidas. Craque do passado, ele quer ser ainda "o
maior". Sofre com os "diamantes negros" ou "brancos", ou "morenos"
da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por
isso, meteu o pau em Dida. Era como se dissesse: -- "Ah, meus
tempos, meus tempos!".
E o fato é que Dida jogou apenas uma vez na Suécia e voltou
de lá amargurado. E, aqui, havia quem perguntasse: -- "Será que
Dida acabou?". Muitos julgavam sentir, nas suas últimas atuações,
um certo desgaste. Suas velhas características pareciam diluídas. E
eis que, ontem, contra o Olaria, o homem voltou a ser ele mesmo.
Viu-se na Gávea um Dida em plenitude, comendo a bola como nos
seus instantes mais puros e triunfais. Dirá alguém que o Olaria não
é grande adversário. De acordo. Longe de mim considerar o Olaria
um escrete. Mas uma goleada impõe-se por si mesma, torrencial e
irrefutável. Como raciocinar, como argumentar contra a histeria
numérica dos 8 x 0? E se atentarmos em que foi Dida, unicamente
Dida, o autor de seis dos oito gols, então compreenderemos que
estamos em face não de um ex-Dida, mas do próprio. Não há dúvida,
amigos. Despontou com a sua furiosa velocidade, e mais: -- com a
capacidade de invadir, de penetrar, de cortar, de envolver e de
fuzilar. Mas creiam: -- o que o inspirava não era apenas o sadismo
de um gol atrás do outro. Ele enfiava um gol, e depois outro, e mais
outro, como se quisesse fazer uma afirmação para si mesmo. Queria
sentir-se um Dida integral e não tenhamos ilusões: -- foi cem por
cento Dida.
Qualquer jogador de futebol, do virtuose ao perna-de-pau, tem
suas panes, suas depressões. Dida estaria numa dessas angústias.
Mas quem, depois de meter seis gols, não há de sentir-se um
triunfador, com um certo charme cesariano, uma certa aura
napoleônica? Sim, depois de ontem, Dida baniu de si mesmo, até o
último vestígio, o drama da Suécia.
Quando soou o apito final, o aspecto do grande jogador era algo
patético. Tinha o olho rútilo e o lábio trêmulo. Que os outros times
tratem de pôr as barbas de molho! Dida voltou a ser Dida e para
sempre Dida.
[Manchete Esportiva, 30/8/1958]
A VOLTA DA LEITERIA
Canário viu que era chegado o momento, o grande momento do
gol. Então, encheu o pé. Saiu uma bomba, amigos, e que bomba!
Quase as traves desabam na cabeça de Castilho. Eu, cá em cima, na
tribuna de imprensa, calculei: -- "Desta vez não tem castigo!". O
Fluminense estava ganhando de 1 x 0* e a bala de Canário seria o
maldito empate. Pois bem: -- quando a torcida tricolor gemia a
palavra gol, eis que ocorre o milagre: -- bola no travessão! Durante
alguns momentos, houve um carnaval na pequena área tricolor. A
bola pedia pelo amor de Deus: -- "Me chuta! Me chuta!". E não
apareceu um pé americano que a empurrasse para o fundo das
redes. Salvara-se o Fluminense de um gol certo, infalível,
catastrófico. Ao meu lado, um americano abria os braços: -- "É a
leiteria! Voltou a leiteria!". Sim, ele via, ali, o dedo salvador da
leiteria. Outros americanos, também furiosos e também
esbravejantes, descobriam no gol salvo uma coincidência entre o
retorno de Zezé Moreira e a reabertura da leiteria.
A leiteria! Vale a pena traçar aqui, sinteticamente, o seu
resumo biográfico. Abriu as portas, pela primeira vez, em 51. De
repente, os adversários começaram a perceber que o Fluminense não
jogava somente com classe, somente com técnica. Castilho era bom,
era ótimo, era formidável. Mas um arqueiro tem os limites da
condição humana. Ora, Castilho fazia defesas sobrenaturais. E todo
mundo começou, por trás do arqueiro, a ver a influência extraterrena
da leiteria. Numa amargura medonha, o inimigo rosnava que
*Fluminense 1 x 0 América, 23/10/1958, no Maracanã.
Castilho era o leiteiro. O fato é que o Fluminense tornou-se
gloriosamente o campeão de 51. Mas já nos anos seguintes a leiteria
não funcionou tão bem. Estava de portas fechadas ou de portas a
meio pau. Mais algum tempo e ela fechou de todo. No corrente ano,
sobretudo, já ninguém falava mais da leiteria metafísica que tanto
nos valera no passado.
Confesso, amigos: -- havia em mim, como em todo tricolor
autêntico, a funda, a inconsolável nostalgia da nossa querida
protetora. Realmente, o nosso papel no presente campeonato tem
sido o seguinte: -- apanhar bem e ganhar mal. As nossas derrotas
são medonhas e cada vitória nossa é feia como uma derrota. E,
quando já não havia mais esperança, eis que a leiteria reabre, com
estrondo, as suas portas mágicas. Amigos, manda a verdade que se
diga: -- ela influiu, ontem, no resultado da batalha. Digo isso de
peito aberto e fronte erguida, porque não acredito em futebol sem
sorte.
Digo mais: sem esse mínimo de sorte, o sujeito não consegue
nem chupar um Chica-bon, o sujeito acaba engolindo o pauzinho do
Chica-bon. E o Fluminense estava jogando sem uma ínfima gota de
sorte. O time já entrava em campo coberto de azar. Sim, amigos: -- o
time pisava o gramado certo de que estava marcado,
inexoravelmente, pela derrota. Faltava-nos um pouco, um tostão, um
vintém de sorte,
Ou por outra: -- era a leiteria que se estiolava a um canto, com
as garrafas irremediavelmente vazias. O leite já não jorrava mais das
tetas da sorte. As pessoas estreita e crassamente objetivas colocavam
o problema das nossas frustrações em termos técnicos, táticos,
físicos e nada mais. Era um engano funesto. Ninguém acreditava que
há qualquer coisa de laticínio nos gramados, nos espetaculares
êxitos terrenos.
E, domingo, graças a Deus, foi belo, foi sublime. De certa feita,
Amaro chutou. Diga-se: -- chutou de longe. Era tal a distância que,
chutada devagar, a bola levaria meia hora para chegar a seu destino.
Então, ocorre o seguinte: -- Castilho achou que devia fazer golpe de
vista. Não se mexeu; ficou só olhando. A bola bateu na quina da
trave e só não entrou porque estava lá, velando, a leiteria. Um
americano fez, a bico de lápis, uma estatística: -- o Fluminense
sofreu quatro bolas na trave! Vejam bem: -- nem duas, nem três,
mas quatro! O América suava torrencialmente e encontrava tapado o
arco tricolor. E é bom, amigo, é gostosíssimo quando a nossa torcida
sente, na cara, o sopro da sorte. Repito: -- em futebol, não basta
jogar bem. Com um timaço, e depois de estar ganhando de 3 x 0, o
Vasco ainda foi empatar com o Bonsucesso. Ora, o Fluminense jogou
bem domingo e foi superiormente orientado. Mas porque a leiteria
esteve presente, e salvou, com a trave, quatro gols, eu a promovo a
meu personagem da semana.
[Manchete Esportiva, 1/11/1958]
O PELÉ BRANCO
Amigos, não há de ser difícil catar o meu personagem da
semana entre os 22 jogadores de Vasco x Flamengo* (digo 22 e já
amplio: -- mais, por causa das substituições). Mas, como eu ia
dizendo, o personagem pula do jogo como um elástico polichinelo.
Chama-se Almir e os locutores costumam tratá-lo de
"Pernambuquinho". Eu sei que se forma, sobre o craque vascaíno,
um caudaloso anedotário. E nós sabemos que a anedota desfigura,
que a anedota falsifica. Em tudo que se diz sobre Almir, já é difícil
discriminar o que é verdade e o que é folclore.
Por exemplo: -- contam que Almir xinga os adversários. Então
pergunto: -- será o primeiro? Não me parece. O futebol jamais foi
mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de Sarcófago. Direi mais,
se me permitem: -- o futebol é o mais falado e o mais pornográfico
dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em
campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais
resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o
craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e
irresistível. E se o meu personagem xinga os adversários, não faz
outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas
camonianos. Repito: -- o futebol se nutre de pornografia como uma
planta de luz. E Almir apresenta outras qualidades que convém não
*Flamengo 2 x 2 Vasco da Gama, 26/2/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio--São
Paulo. Almir jogou ao lado de Pelé naquele Sul-Americano, inclusive na dramática
partida contra o Uruguai (26/3/1959, Brasil 3 x 1), em que brigaram os 22
jogadores. Almir substituiria Pelé no Santos, na partida decisiva contra o Milan pelo
campeonato mundial de clubes em 1963 (ver pág. 102).
desprezar.
Uma delas é a coragem. Todos nós o conhecemos e uma coisa é
certa: -- para usar uma expressão textual da torcida, ele não foge do
pau. A verdade é que, apesar de todas as convenções disciplinares do
profissionalismo, o futebol vive muito da bravura pessoal dos
craques. O sujeito pusilânime, o sujeito covarde, dá menos no couro.
Há momentos, num jogo, em que o camarada precisa enfiar a cara
no pé do inimigo. Mas Almir, justiça se lhe faça: -- ainda quarta-
feira, na partida do Pacaembu, contra os paulistas, levou um chute
que quase lhe abriu o rosto em dois. Cá, no Rio, vendo pela televisão,
eu fiz meus cálculos: -- "Morreu". Ele desabou como aquele edifício
de Copacabana. Mas não veio nenhum rabecão pescá-lo, nem foi
preciso. Era apenas um nocaute provisório. Mas o episódio encerrava
uma lição de vida e de futebol.
Amigos, a minha teoria é a seguinte: -- o jogador que nunca
levou um pé na cara ainda não amadureceu para os grandes
triunfos. Por exemplo: -- estamos diante do Campeonato Sul-
Americano em Buenos Aires. Qualquer Sul-Americano é duríssimo e,
em Buenos Aires, muito mais. Um escrete nosso, para enfrentar os
argentinos, lá, terá de ser antes de tudo o escrete da coragem. O
sujeito que tiver medo de careta não pode nem sonhar com a seleção
patrícia. E Almir é um dos que podem comparecer, de peito aberto e
lavado, ao certame continental, disposto a dar e a levar botinada. É
pequenininho, mas como diz a sabedoria anônima e plebéia: --
tamanho nunca foi documento. Já o vi derrubar sujeitos maciços,
compactos, grandalhões, como bastilhas supostamente
inexpugnáveis.
Por outro lado, tem um futebol de primeira qualidade. O jogo
de ontem não me deixa mentir. Poucos jogadores, aqui ou em
qualquer lugar, terão como ele a capacidade de varar a defesa
contrária. Ele passa pelos adversários vertiginosamente. Tem uma
penetração e uma velocidade de bala. Contra o Flamengo, por
ocasião do pênalti, Almir deflagrou-se e ia entrar talvez com bola e
tudo, quando o agarraram pelo braço, pela camisa. E não foi só uma
vez. Em inúmeras oportunidades, o meu personagem construiu
jogadas que podiam ser incorporadas a uma antologia, a um museu.
O encontro terminou empatado de 2 x 2 e Almir obrigou a defesa do
Flamengo a molhar a camisa até a última gota de suor.
No Sul-Americano, ele constitui uma preciosidade para o
Brasil. Admitamos a hipótese sinistra de que Pelé não possa,
eventualmente, entrar num jogo qualquer. Que melhor substituto do
que Almir? Tanto mais que são ambos agarotados. Embora mais
velho, o craque cruzmaltino parece tão menino quanto o paulista. E
vamos e venhamos: -- Almir não deixa de ser um pouco o Pelé
branco.
[Manchete Esportiva, 7/3/1959]
BANDEIRINHA -ARTILHEIRO
Amigos, ontem foi o lírico domingo dos velhos. Aqui, Barbosa,
fechando o gol do Vasco; em São Paulo, Jair, decidindo o jogo para o
Santos. Duas eternidades e ambas viçosas, ambas salubérrimas.
Tanto Jair como Barbosa podiam ser, hoje, o meu personagem da
semana. Mas há melhor, amigos, há melhor! Refiro-me ao "Caixa
Econômica", a mais recente, inesperada e espetacular celebridade do
futebol brasileiro. Antigamente, em matéria de Caixa Econômica, só
se conhecia a própria. Mas, graças ao Fla--Flu*, fez-se uma
descoberta sensacional. Sim, amigos: -- existia, aqui, nas nossas
barbas, sem que o percebêssemos, o "Caixa Econômica" bandeirinha.
Foi a grande e, direi mesmo, foi a contundente surpresa do Fla--Flu!
O bandeirinha! É, na história do futebol, o sujeito mais
secundário. A humildade de sua função só tem paralelo com a do
gandula. E houve uma época em que o bandeirinha era um
franciscano apanhador de bola. Foi preciso que o profissionalismo
aparecesse e o arrancasse de sua compacta obscuridade. Então ele
subiu social e economicamente. Lembro-me da primeira
remuneração do bandeirinha: -- 25 mil réis por jogo! Hoje, a função
é mais importante. O homem já marca impedimentos e tornou-se um
personagem ativo e militante na comédia do futebol. Todavia,
nenhum bandeirinha conseguiu, jamais, o furioso destaque do
"Caixa Econômica". Num Fla--Flu sensacional, ele conseguiu ofuscar
*Flamengo 2 x 0 Fluminense, 20/4/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio-- São Paulo.
O bandeirinha, de apelido "Caixa Econômica", chamava-se Adélio Maia. O juiz era
Amílcar Ferreira e o gol valeu.
o juiz, os jogadores, o outro bandeirinha. Foi, atrevo-me a dizê-lo, o
solista do espetáculo.
Aliás, tudo no "Caixa Econômica" parece predispô-lo para a
celebridade e para a glória. A começar pelo apelido. É "Caixa
Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas
Gerais", "Prolar S. A." etc. etc. E vamos e venhamos: -- ninguém
consegue chamar-se "Caixa Econômica" impunemente. Há entre o
nome de um sujeito e o seu destino uma conexão inevitável.
Napoleão teria que ter um destino napoleônico. E o nosso "Caixa
Econômica" não poderia viver eternamente obscuro e eternamente
humilde. O Fla--Flu foi a sua grande chance terrena.
Ao começar e até o encerramento da primeira etapa, o "Caixa
Econômica" ainda permanecia ignorado, ainda permanecia inédito.
E, súbito, na etapa final, surgiu a sua oportunidade napoleônica.
Imagino que tenha ocorrido com o nosso herói uma crise de
saturação. Cansou-se de ser um fósforo apagado dentro do jogo.
Achou talvez abusivo que o campo fosse um espaço privativo dos
jogadores e do juiz. E fez o que nenhum outro bandeirinha, jamais,
teve o desplante de fazer: -- entrou no campo e pôs-se a passear no
gramado com uma soberana naturalidade. E, de repente, acontece o
inconcebível: -- uma tabelinha de um jogador rubro-negro com o
"Caixa Econômica"!
Dizem que a bola bateu, simplesmente bateu, no fabuloso
bandeirinha. Amigos, sejamos mais líricos e menos objetivos. Vamos
admitir que o "Caixa Econômica" deu um passe que caiu como uma
luva, ou melhor, como uma meia no pé de Henrique. Jamais Zizinho
no apogeu, ou Jair, ou o divino Domingos da Guia conseguiram ser
tão precisos, exatos, perfeitos. O estupor do Fluminense foi de tal
ordem que o time parou, de ponta a ponta, e Henrique, vivíssimo,
penetrou com furiosa velocidade. Dida recebeu a bola para marcar.
Vejam vocês a trama diabólica: -- "Caixa Econômica" -- Henrique --
Dida! O Fla--Flu continuou, mas a verdade é que o tricolor estava
perdido. O que desintegrou meu time não foi bem o gol, mas a
intervenção sobrenatural do "Caixa Econômica".
A partir do momento em que se tornou o primeiro bandeirinha-
artilheiro do universo, o meu personagem da semana conheceu a
celebridade. Ontem, a sua simples presença no Vasco x Flamengo
valorizou e dramatizou o clássico. O pânico da torcida cruzmaltina
era que o "Caixa Econômica" apanhasse a bola, saísse driblando e
marcasse para o Flamengo o gol da vitória.
[Manchete Esportiva, 2/5/1959]
A VINGANÇA DE JULINHO
Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da semana
a partir do momento em que o vaiaram. Foi até, se me permitem a
expressão, trágico. Insisto: -- trágico! Quem estava lá viu ou, por
outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã
anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma
vaia só. Menos eu. Eis a verdade: -- eu não apupei, embora
preferisse Garrincha. Parecia-me que o escrete sem o "seu" Mané era
um mutilado. Na pior das hipóteses, eu achava que Feola devia ter
posto os dois: Julinho na ponta direita e Garrincha na esquerda.
Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só
Julinho e esqueceram Garrincha.
Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da
multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã* e
fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim,
amigos: -- o homem andou pela Itália e quando voltou nós o
olhamos, de alto a baixo, como se fosse um gringo qualquer ou, pior
do que isso, como se fosse um perna-de-pau. Não há nada mais
relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória
é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras. Por
exemplo: -- ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça,
contra os húngaros, Julinho fizera um carnaval medonho. De certa
feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba,
e que bomba! O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi
uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a
*Brasil 2 x 0 Inglaterra, 13/5/1959, no Maracanã.
admiração pateta dos visitantes. Pois bem: -- ao ser anunciada a
escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem
não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do
escrete.
Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo.
Imaginei o seguinte vaticínio: -- "Julinho vai comer a bola!". Podia
parecer uma piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a
verdade: -- para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo
fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Julinho há de ter
entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifico, às
chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra 200 mil.
Mas, homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: -- bateu-se
contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a
crucificá-lo em outras vaias. Mas, se nós tínhamos esquecido
Julinho, Julinho não estava esquecido de si mesmo. Foi Julinho em
cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em
inúmeras ocasiões o que ele fez com o adversário foi pior que xingar
a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os
ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de
uma maneira, por assim dizer, sádica. Jamais houve um gol tão
amorosamente sofrido como este. A partir da abertura da contagem,
todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si
mesmo: -- "Este é o Julinho!". E era.
Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra ele
como um touro enfurecido. Pois bem: -- ele agarra o touro a unha e
lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo,
já manso, tornou-se em outro bicho. Sim, amigos: -- do primeiro gol
em diante, a multidão transformou-se em "macaca-de-auditório" de
Julinho. Se ele apanhava a bola, os 200 mil espectadores
arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que
Julinho iria fazer. Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: -- de
um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido,
transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos
pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de Carnaval. De
certa feita, comeu um, dois, três, quatro e quase entrou com bola e
tudo. Imagino que, nesse momento, lord Nelson há de ter
perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de
eternidade: -- "Quem é esse cara?". O "cara" era Julinho, sempre
Julinho.
Assim é o brasileiro de brio. Dêem-lhe uma boa vaia e ele sai
por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de
Julinho foi exatamente isto: -- um milagre de futebol.
[Manchete Esportiva, 16/5/1959]
UM HORIZONTE DE CHIFRES
Amigos, fui ontem à redação de um velho jornal. Entro lá e
vejo, por toda parte, caras a meio pau. Deduzi imediatamente: --
"Pelé". Era, sim, o luto, era a dor, era o velório da distensão*. Desde
sábado que todo o Brasil chora e todo o Brasil vela a contusão de
Pelé. Como diria Brás Cubas, até a natureza se associa à melancolia
nacional. Os ventos são mais tristes, os ventos são mais
inconsoláveis.
E, súbito, na redação do jornal amigo, eu vejo o Cláudio Mello e
Sousa, o poeta, o crítico, o ex-admirador do Paulo Francis. Com o
seu perfil de lord Byron aos dezessete anos, ele meditava horrores
sobre a distensão. Eu ia dizer, fazer a saudação brutal: -- "Olá,
Cláudio!". Mas já o colega se punha de pé. Com o olhar dos profetas
-- olhar varado de luz --, com a fronte alta e fatal, ele anunciava: --
"O Brasil vencerá a Espanha!". Pausa. Novo arranco de vidente para
completar: -- "A vitória do Brasil será um quadro de Goya!". Foi só,
ou por outra: -- não foi só. Em seguida, ele pôs-se a andar na
redação, tumultuosamente, como um centauro truculento.
Vibrei ao ver o colega e amigo enchendo uma redação com suas
rútilas patadas. Mas eu compreendi a sua ira e justifiquei a sua
profecia. Hoje o brasileiro autêntico há de ter duas reações
obrigatórias: luto porque Pelé saiu, euforia porque Amarildo vai
entrar. A mesma fatalidade que roubou Pelé salvou Amarildo. E,
*Brasil 0 x 0 Tcheco-Eslováquia, 2/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-
de-final da Copa do Mundo. Pelé contundiu-se gravemente no segundo tempo e não
jogou as partidas restantes. Nelson já vinha pedindo Amarildo no time havia meses.
Foi ele quem batizou o craque botafoguense de "Possesso".
aqui, abro um parêntese para uma breve meditação sobre a
Fatalidade, com F maiúsculo.
Outrora, tudo que acontecia era destino, era sina, era o diabo.
Pérez Escrich reabilitava e promovia suas adúlteras invocando a
Fatalidade. Hoje já sabemos que há Sexo, há Economia por trás das
atitudes sórdidas ou sublimes do ser humano. A Fatalidade já não
explica mais, nem inocenta certas patifarias que os folhetinistas
antigos idealizavam.
Todavia eu lhes digo: -- no presente Mundial, eis que a
Fatalidade passa a funcionar novamente como nos tempos de
Edmundo Dantès. Aí está Amarildo, o "Possesso". Ele não ia entrar
em hipótese nenhuma. Com suicida teimosia, Aymoré Moreira,
Nascimento e Paulo Machado de Carvalho estavam dispostos a
deixar Amarildo eternamente na cerca. Não percebiam que o craque
alvinegro é possesso e que o ataque precisava de possessos. E,
súbito, a Fatalidade põe o dedo no escrete do Brasil. Pelé, o divino,
sofre a distensão mágica. Não recebeu nem um leve, imponderável
toque. E caiu. Caiu como e por quê? Ninguém sabe, mas eu sei: a
Fatalidade de Pérez Escrich.
O desespero está ventando por todo o país. Mas há uma
possibilidade insuspeitada e genial: -- a de que Amarildo desponte
como um novo Pelé, e repito: -- um Pelé branco, mas Pelé. Por outro
lado, cada brasileiro deve ser como o confrade Cláudio Mello e Sousa,
um profeta, um vidente do triunfo. E, de resto, cada um de nós
precisa acreditar no Brasil com pesado e obtuso fanatismo. Graças a
Deus, a Fatalidade interferiu anteontem no jogo México x Espanha.
Faltavam trinta segundos para acabar o match. Era o empate e a
classificação do Brasil.
Pois bem. A mesma Fatalidade que derrubou Pelé, que escalou
Amarildo, a mesma Fatalidade, dizia eu, salvou a Espanha. Seu gol
nasceu na última gota da partida e, ao contrário do que se pensa, foi
bom. Um bicampeão não pode depender de nenhum México. Insisto:
-- um bicampeão terá que levantar a Jules Rimet a mãos ambas,
com o próprio amor e com a própria paixão. De mais a mais, o perigo
viriliza, enternece e ilumina o Brasil. Sim, o perigo desperta e açula
no Brasil sombrias potencialidades. Vamos enfrentar a Espanha.
Diante de nós abre-se todo um horizonte de chifres, ensangüentado
de chifres.
Vejam vocês o que é a chance histórica. A distensão de Pelé foi
para Amarildo como a Revolução Francesa para Napoleão. E eu
imagino como andará o craque alvinegro no Chile. Antes da
distensão de Pelé, que fazia ele? Como o pescador de O velho e o mar,
sonhava com leões. Mas o adversário é a Espanha. E, então,
Amarildo sonha com chifres e sangue. Ele próprio, como no soneto
célebre, é um negro touro "saudoso de feridas".
[O Globo, 5/6/1962]
O "POSSESSO"
Amigos, não é hora de escrever bem. Fosse eu um Goethe na
Itália e, diante do triunfo de ontem, estaria escrevendo
horrendamente mal. Ganhamos. E que fazer agora, senão arrancar
do nosso peito um gemido solene e fundo, como um mugido cívico?
Quando acabou o jogo*, quando a vitória uivou, vimos o seguinte: --
era esta uma cidade espantosamente bêbada. Cada um de nós foi
arremessado do seu equilíbrio chato, foi arrancado do seu juízo
medíocre e estéril.
Saímos à rua. Eu disse "cidade bêbada" e já explico: -- fomos
uma nação em pileque unânime. De pileque sem ter bebido nem
água da bica. E é lindo, e gostoso, e sublime quando não há, entre
75 milhões de sujeitos, não há um único sóbrio. E já um nome me
ocorre: Amarildo, o "Possesso".
Amigos, dizia eu que os profetas andavam por aí aos borbotões.
Repito: -- os profetas escorriam como a água das paredes infiltradas.
Não se dava um passo sem tropeçar, sem esbarrar num profeta. E o
que diziam eles? Diziam a vitória do Brasil e mais: -- profetizavam o
nascimento de um novo Pelé. Eu próprio escrevi, na minha crônica
de anteontem: -- o novo Pelé era moreno, e antecipei minúcias e fui
mais longe. Dei o nome do novo Pelé: -- Amarildo.
Vejam vocês o que é o Brasil. O sujeito quer um idiota e não
acha um idiota. No Brasil de hoje, o imbecil chapado, o imbecil total
é uma impossibilidade. Mesmo o menos dotado dos brasileiros
contemporâneos há de ter a sua chispa, a sua centelha, por vezes
*Brasil 2 x 0 Espanha, 6/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-de-final.
incubada, mas funcionante. Mas, se a pátria precisa de um gênio,
logo o encontra. Aí está a Copa do Mundo: -- perdemos um Pelé e, no
mesmo instante, apareceu outro Pelé. Feliz o povo que, na vaga de
um gênio, põe outro gênio.
Dizia o profeta quase profissional Cláudio Mello e Sousa que a
vitória brasileira seria um quadro de Goya. Aí está o quadro, aí está o
Goya. Mas eu falava de Amarildo. Após o jogo, os colegas me
cumprimentavam como se fora eu o autor de Amarildo. Eu tinha de
retificar: -- "O autor do Amarildo é o Dostoievski!". E, realmente,
nunca vi na vida real um sujeito tão possesso e, por carambola,
dostoievskiano.
O primeiro gol do Brasil ontem foi obra de um possesso. E
repito: -- só um possesso em último grau, montado num demônio,
ou por este montado, só um possesso faria aquilo. Eu não estava lá,
claro. Mas, desde ontem, cada brasileiro está possuído de uma
imensa, de uma implacável vidência. Dir-se-ia que, apesar da
estúpida distância física, todo o Brasil era testemunha visual e
auditiva de cada lance da partida. E eu "vi", no momento do gol, "vi"
Amarildo, a cara, o peito, a loucura de Amarildo. De seu lábio pendia
a baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoievski é
assim que os possessos babam profissionalmente.
Amigos, era ali ou nunca. Setenta e cinco milhões de
brasileiros precisavam mais do gol que todo o Nordeste de água e
pão. O possesso sentiu que era chegado o instante. Caçaram
Amarildo. Entre ele e o gol havia toda uma flora de rapas, de pés na
cara, palavrões, chifres. Só faltaram chupar-lhe a carótida como a
um aspargo. A palavra "madre" circulava copiosamente. Naquele
momento Amarildo não era um só: -- era o possesso, era um
dostoievskiano e, ao mesmo tempo, era um touro de soneto,
"saudoso de feridas".
Era também, por conta de Dostoievski, um rútilo epiléptico.
Amigos, nunca um só foi tantos. E esse múltiplo, esse numeroso
Amarildo acabou enterrando o seu gol, até o fundo, no coração da
Espanha. Ali se cumpria a grande profecia: -- um novo Pelé estava
nascendo. E os Andes estupefatos viram erguer-se o astro
recentíssimo, com o seu frenético fulgor.
E o segundo gol, amigos, o segundo gol! Vamos ao lance. O
Mané apanha a bola. E, entre parênteses, tem razão o poeta e
psicanalista Hélio Pellegrino quando afirma que Garrincha é a maior
sanidade mental do Brasil. Exato. O próprio Freud, se conhecesse o
Mané, havia de reconhecer, com a humildade dos sábios: -- "Rapaz,
se todo mundo tivesse a tua sanidade, eu ia acabar apanhando papel
na esquina!". Ontem todo mundo estava emocionalmente em
pandarecos. Menos o Mané. Pegava a bola e era o mesmo, sempre o
mesmo, eternamente o mesmo, assim na terra como no céu.
No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos. Comeu
com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e
comeu o bandeirinha. Tudo isso com uma saúde de passarinho, e
insisto: -- tudo isso com alegria, com bondade, com pureza. No fim,
não havia mais ninguém para driblar, ninguém. E Mané, que no fogo
mais infernal tudo vê e tudo sabe, passa para Amarildo. Mas não foi
um passe qualquer. Nem a cabeça de são João Batista foi tão na
bandeja como aquela bola de Garrincha. Estava lá Amarildo, o
possesso Amarildo, o rútilo epiléptico. E então ele enfiou a sua
cabeçada mortal. Aquilo era o Brasil.
[O Globo, 7/6/1962]
O EICHMANN DO APITO
Amigos, vencemos o Chile*. E, neste momento, eu não vou
quebrar lanças em prol do estilo, como queria Bilac. E pelo contrário.
Numa hora de farto pileque cívico, eu quero ter o mau gosto de um
orador de gafieira. Quero falar em bandeiras "drapejando". E vamos e
venhamos: -- foi uma vitória colossal, uma selvagem vitória. Estava
tudo contra nós, rigorosamente tudo. Até os Andes tinham enfiado
uma máscara até as orelhas.
Na minha crônica anterior, antes do jogo, eu falava na solidão
do escrete. Jamais um time de futebol ficara tão só. Mas eu escrevi
que o brasileiro é ainda maior quando solitário. Ponham o brasileiro
numa ilha deserta. Ele sozinho como um Robinson Crusoe, ou
apenas com uma arara no ombro. E o brasileiro, sem mais ninguém,
bebendo água em cuia de queijo Palmira, será um rei
shakespeariano, terá um peito de césar proclamado. Então faço a
pergunta: -- que fizemos nós, ontem, em Santiago? Éramos onze
gatos pingados contra milhões enfurecidos.
Mas aí é que está. O Brasil estava só, mas tinha Garrincha.
Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo! E o
Mané, com suas pernas tortas e fulgurantes, com o seu olho rútilo e
também torto, pôs os Andes de gatinhas, ou de cócoras, sei lá.
Quando ele enfiou um gol e depois outro, isso aqui foi, como diria
um orador de gafieira, foi uma pátria constelada de garrinchas.
E o patético é que, quinta-feira, o video-tape de Brasil x
Inglaterra nos dera um versão deprimente do escrete. O povo não
*Brasil 4x2 Chile, 13/6/1962, em Santiago, pelas semifinais da Copa do Mundo.
sabia como conciliar as duas coisas: -- o delírio dos locutores e a
exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A
verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: -- a
imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo
que o video-tape é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público,
que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os
fatos de todo o seu patético.
Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglaterra,
uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo,
altamente veraz. O video-tape demonstrou o contrário. Azar da
imagem. Mais deslumbrante ainda foi a jornada de ontem. Amigos,
todo o Chile se levantou contra nós. A imprensa, o rádio, a TV, o
homem de rua, as crianças -- quiseram triturar emocionalmente a
"seleção de ouro". Nunca se fez um massacre psicológico tão feroz
contra alguém. O futebol passou para um plano secundário. O
objetivo único foi, repito, a liquidação psicológica dos craques
brasileiros.
Mas o gostoso é que o escrete do Brasil em nenhum momento
-- antes, durante ou depois -- teve medo. Foi um time, foi uma
equipe imaculada de medo. E, já em campo, apareceu um outro
adversário, o mais atro, o mais torvo adversário: -- o juiz. Então, o
Brasil teve de lutar contra 75 mil espectadores, contra os jornais,
contra o rádio, contra a TV, contra os carabineiros, contra a
cordilheira, contra tudo, contra todos e mais: -- contra o árbitro. No
seu medo abjeto da multidão; no pavor de ser cuspido e malhado
como um judas de sábado de Aleluia -- ele roubou com um descaro
gigantesco. Sim, a pusilanimidade deu-lhe uma força, um poder,
uma crueldade, uma dimensão inexcedíveis. E, no seu lúgubre
cinismo, o sujeito só faltou apitar hands nos arremessos laterais
brasileiros. Amigos, temos aí um Eichmann do apito. O que ele fez
com Garrincha não tem perdão.
Garrincha! Desde o começo da crônica que eu queria falar no
Mané. E estou-me perdendo em floreios como faria o já referido
orador de gafieira. Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior
figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e
exasperada: -- a maior figura do futebol brasileiro desde Pedro
Álvares Cabral. Quando eu dizia que Garrincha era varado de luz
como um santo de vitral, os idiotas da objetividade torciam o nariz.
Reconheço que faltava ao Mané, realmente, um toque, ou retoque, de
martírio.
Desde ontem, porém, o Mané é mártir oficial, mártir chapado,
da cabeça aos sapatos. O lívido, o gelado Eichmann do apito o
expulsou, com a hedionda conivência do bandeirinha Esteban
Marino. É a santidade, amigos. A coisa foi tão indigna como o seria a
expulsão de são Francisco de Assis. E ainda por cima apedrejaram o
Mané, tiraram o seu tépido, o seu doce, o seu rútilo sangue. É santo,
sim, sem efeito de retórica, sem arranjo literário, tão santo como um
são Sebastião seminu e flechado.
Amigos, como é mais linda a vitória roubada. O juiz gatuno deu
ao nosso feito uma dimensão mais comovida e mais deslumbrante.
Não faz mal o frango ou, por outra, o peru que Gilmar engoliu. O
nosso goleiro come seus frangos, seus perus, mas não se deprime,
não se degrada. Não foi apenas a vitória do escrete. Foi sobretudo a
vitória do homem genial do Brasil.
[O Globo, 14/6/1962]
BICAMPEÕES DO MUNDO
Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem,
quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado
bicampeão do mundo*. Foi um título que o escrete arrancou de suas
rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e
repito: -- não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-
rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu,
assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado
na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75
milhões de reis.
De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo.
Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E
sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da
grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos
iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já
tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil
ser profeta.
Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon.
Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência
deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o
farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha
favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana
d'Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas
estão consteladas de Joanas d'Arc. E os homens parecem
formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé, um são Jorge
*Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile.
Jogo final da Copa.
infante, maravilhosamente infante.
Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais,
folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que
jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o
Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente
descobrimos um novo Pelé. E repito: -- feliz o povo que, na vaga de
um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o "Possesso", surgiu contra a
Espanha. É o novo Pelé proclamado.
Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol
quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para
vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um
rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra a Espanha pendia dos
seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio
duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se
lembram dos seus dois gols contra o Chile. O Mané estava na meia
esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático.
Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.
O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem
foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1 x 0.
Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: --
"Vamos repetir 50?". Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da
derrota. O que eu quero dizer é que, em seguida ao gol da Tcheco-
Eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora
bem pouco Amarildo e bem pouco "Possesso". Desta vez, porém,
partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o
ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai
para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E então o
"Possesso" enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola,
também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o
empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o
carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e
tão possessa. O escrete tinha de vencer porque não era somente o
escrete, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.
No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o "Possesso". Nunca o
"Possesso" foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente
adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia
quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava
Zito. E o "Possesso" deu-lhe o gol. Brasil 2 x 1. Batida a Tcheco-
Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos.
Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco-
Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de
são Jorge.
Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo.
Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos
Estados Unidos. Eis a verdade: -- a Rússia e os Estados Unidos
começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: -- foi a
vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje
o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.
[O Globo, 18/6/1962]
BEIJOS IMACULADOS
Amigos, falemos ainda e sempre do bi. Normalmente, cada um
de nós é um solitário e um incomunicável. O sujeito vive roendo a
própria solidão como uma rapadura. E, súbito, o escrete vem e
arremessa o brasileiro do seu silêncio e de sua misantropia. Este
povo taciturno, caladão, tornou-se um extrovertido ululante. Nas
esquinas, nas casas, nos botecos, erguíamos o nosso grito como uma
lança agudíssima.
E descobrimos o "próximo". Aí é que está: -- na vida comum, o
chamado "próximo" é o ser mais distante e mais inescrutável. Essa
incomunicabilidade faz um mal danado. Pois bem: -- o bi lançou-nos
nos braços do próximo. As ruas se encheram de desconhecidos
íntimos. Todo mundo beijava todo mundo. O Brasil foi, por um
momento, a terra da ternura humana. Os bêbados caíam abraçados
à sarjeta e querendo beijar o meio-fio.
E se houve aqui essa orgia de ternura, imaginem vocês lá no
Chile, lá em Santiago, no próprio local, e repito: -- no próprio local.
Os brasileiros que assistiram ao jogo estavam cara a cara com o fato,
viviam o acontecimento na carne e na alma, tinham uma relação
física com a vitória. Pode-se imaginar o delírio feroz, nunca visto em
terra nenhuma, em época nenhuma.
Ontem eu falei dos espíqueres de rádio, autores do nosso
massacre emocional. Ainda agora a nação está com os nervos em
pandarecos, graças aos bárbaros do microfone. Mas eu lhes digo: --
bendita a angústia que os locutores atearam no Brasil! Continuemos,
amigos, continuemos. O que eu queria dizer é que, em Santiago, e
sob o deslumbrante choque do bi, o brasileiro foi o mais doce ser da
Terra.
O brasileiro! Nós sabemos que, normalmente, o brasileiro é um
fauno de tapete. Usamos sapatos para disfarçar os pés de cabra. Em
Santiago, porém, na noite do triunfo, os nossos patrícios foram
sufocados por uma golfada de bondade total. Amigos, costumo dizer
que qualquer um tem o seu momento de são Francisco de Assis, e
insisto: -- o vigarista, o batedor de carteiras, o ladrão de galinhas ou
o Drácula podem, sob um estímulo qualquer, virar um santo feérico.
Ainda está para se escrever um capítulo sobre os beijos do bi,
na capital chilena. Ao soar o apito final, cada brasileiro presente
sentiu-se fisicamente implicado no triunfo. Aliás, o bi foi um êxito
pessoal de 75 milhões de sujeitos. Todos nós "ganhamos", todos nós
"chutamos". E, depois do match, cada um de nós tinha as canelas
materialmente esfoladas.
E aí começavam os beijos. O sujeito identificava uma patrícia
desconhecida e se lançava nos seus braços. Às vezes não era
patrícia, era chilena ou mesmo tcheca. Mas valia assim mesmo. Aí é
que entrava a pureza da vitória. Naquele momento, o brasileiro
beijaria a própria Ava Gardner com uma dessas inocências
desesperadoras. Ninguém era desconhecido de ninguém.
Tudo isso debaixo de lágrimas. Graças a Deus, somos o povo
mais chorão do mundo. O próprio O Globo estampou uma fotografia
que é um documento do caráter nacional: -- Zagalo chorando. Tal
flagrante devia constar de Os sertões, de Euclides da Cunha, na
parte referente ao homem. E lamento que não tenha sido gravado o
soluço de Zagalo, para ser retransmitido numa cadeia de emissoras.
Assim é o brasileiro. Chora em tudo e por tudo, em batizado, em
enterro, aniversário.
Mas disse eu que o brasileiro é o fauno de tapete. Não no Chile,
após a vitória. Os nossos patrícios beijavam qualquer uma, e com
que inefável naturalidade. Na euforia do triunfo, o "amor ao próximo"
passou a funcionar em todo o seu esplendor. Ninguém era pobre,
rico, bonito, feio, Cleópatra, Lollobrigida ou Paulina Bonaparte, se
por lá aparecesse -- seria apenas o "ser humano". O brasileiro
descobria o "ser humano". No sortilégio do bi, até um esquimó seria
nosso "próximo" -- fisicamente próximo.
Mas eu dizia que os cavalheiros beijavam as damas, e já
acrescento: -- também os cavalheiros se beijavam. Vocês se lembram
do caso dos generais franceses. Na hora da condecoração, eles se
beijam uns aos outros. O brasileiro não entendia essa ternura oficial
entre homens. Mas aí está a lição de vida do bicampeonato. Na tarde
de 17 de junho cada um de nós deixou de ser o fauno de flautinha,
ou de gaita, sei lá. A distribuir beijos imaculados, o brasileiro foi, por
um momento, um são francisco, um mané, um garrincha, cheio de
graça.
[O Globo, 23/6/1962]
O MINEIRO SOLIDÁRIO
Amigos, já contei o episódio. Certa noite, num sarau de grã-
finos, o Otto Lara Resende cheira a bombinha de asma e declara o
seguinte: -- "O mineiro só é solidário no câncer". As senhoras
presentes entreolharam-se, deliciadas. Os cavalheiros não souberam,
de imediato, se aquilo era piada torpe ou fina sociologia. Os mais
atilados veriam, ali, uma verdade estadual, inapelável e eterna.
A frase do Otto caiu na boca do povo. Todo o Brasil a repete. O
sujeito entra num velório, ou numa farmácia, e ouve alguém
cochichar: -- "O mineiro só é solidário no câncer". Há quem diga que
a frase são as obras completas do escritor. Seja como for, continua
de pé a dúvida: -- piada ou verdade?
Dias atrás, outro mineiro, o Waldomiro Autran Dourado, dizia-
me que o Otto é um otimista. Fiz espanto: -- "Como assim?". E o
Autran, ao meu ouvido: -- "O mineiro só é solidário na exumação".
Vejam vocês: -- o câncer só não basta. É ainda pouco. Há os que
sobrevivem. E, segundo o autor do admirável A barca dos homens, o
mineiro só daria sua solidariedade à ossada, à caveira.
Não sei quem está certo, se o Otto, se o Autran. Só sei que há
um mineiro, o Zé Luís Magalhães Lins, do Banco Nacional de Minas
Gerais, que é um generoso, um compassivo, um terno, um úmido. O
chamado leite da bondade humana pinga ou, por outra, esguicha do
Zé Luís. Falei no câncer. Aí é que está: -- a solidariedade do jovem
banqueiro começa na brotoeja.
Temos diante de nós o caso nacional de Garrincha. E, de fato, o
povo acompanhou o drama como se fosse um fascículo de Miguel
Zevaco. O Mané, que era um manso, uma cambaxirra, tivera a sua
primeira indignação terrena. E essa fúria inédita assombrava todo
mundo. Por sua vez, o Botafogo é um clube passional. Insultou-se e
partiu para a briga, desgrenhado como um Tartarin.
Ora, que espécie de relação, ou interesse, ou que diabo seja,
podia ter o Zé Luís com o fato? Mas aí é que está: -- o Zé Luís vive a
distribuir, a mãos ambas, a sua solidariedade gratuita, ininterrupta,
automática. Onde quer que haja um problema, ou um aflito, lá
aparece a solidariedade de Zé Luís como uma vela acesa. Ele se
interessa por tudo e participa de tudo, com uma juvenil, uma
militante efusão. Se na China, se no Alasca, uma galinha pula a
cerca do vizinho, ele vive apaixonadamente o problema.
Ei-lo a quebrar lanças por Garrincha e pelo Botafogo. Meteu-se
no fogo como uma Joana d'Arc. Varava as noites, numa vigília
fanática. Domingo e segunda, quando sumiu a última estrela da
noite, estava o Zé Luís, em General Severiano, discutindo,
aconselhando, com um élan de herói de Walter Scott. Fisicamente, é
um alto, um pálido. E o cansaço dava-lhe um certo halo de martírio.
O Zé Luís sabia que Garrincha nos pertence e que não
poderíamos perder Garrincha. Se o Mané deixasse o futebol,
choraríamos a sua ausência com uma dor de viúva siciliana. E o
jovem banqueiro, com seu ar de aluno de Pedro II, lutou
furiosamente. O dinheiro não o desumanizou, e pelo contrário: -- ele
é que humaniza o dinheiro. Ganhou, por fim, a batalha. Garrincha
não podia perder o Botafogo, nem este podia perder o Mané. O Zé
Luís repôs um nos braços do outro.
[O Globo, 27/3/1963]
UM FLUMINENSE TÃO FLAUBERT
Amigos, no tempo de Eça de Queirós, quando o articulista
estava sem assunto, tinha uma solução genial, que era a seguinte: --
xingava o bei de Túnis. Em Túnis há sempre um bei, e é doce
descompor alguém com a prévia e linda certeza da impunidade. Era
uma delícia para o autor de Os Maias xingar um desconhecido
ilustre. Numa das vezes o bei protestou. Ao descrever fisicamente a
vítima, Eça chamou o bei de "sórdido e obeso".
Possivelmente a importante autoridade não seria uma coisa
nem outra. Ou talvez fosse magro, lívido e hierático. Mas o que eu
queria dizer é que, como todo cronista, eu tenho o meu bei de Túnis.
Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Procuradoria do
Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação
freqüente e mesmo obsessiva de um homem que jamais deu uma
botinada, jamais bateu um córner ou um tiro de meta?
O leitor dirá: -- "É uma obsessão". Ao que eu responderei: --
"É uma obsessão". Se eu pudesse, escreveria todo santo dia sobre o
Otto. A princípio ele foi, estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é algo
mais. Faz-me falta não citá-lo nas minhas crônicas. Sinto-me um
frustrado e um vencido quando não uso o seu nome uma única e
escassa vez. E o interessante é que também o leitor está viciado no
Otto e tem saudades dos seus feitos, da sua figura, das suas piadas.
Hoje, porém, vou falar do Otto a propósito do Fluminense. Pode
parecer que uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Mas
tem. E explico. O Otto é uma coisa que não sei, francamente não sei,
se compromete ou se consagra um estilista. Ninguém mais divino
torturado. Por vezes uma frase lhe custa arrancos de cachorro
atropelado. Outro dia o Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: "Não
seja tão Flaubert de Salambô!".
Por exemplo: -- nas refeições o personagem do Otto "senta-se à
mesa", sempre e inexoravelmente "à mesa". E vamos e venhamos: --
sempre que, numa obra de ficção, o personagem senta-se com a
classe referida, não é mais possível obra-prima, não é mais possível
Ana Karênina. Ao passo que, pessoalmente, ele arrebata porque, no
bate-papo, não há classe, não há Flaubert, não há Salambô, não há
nada.
Outro dia o Otto sentou-se com o Armando Nogueira. Três
horas da manhã. E o escritor mineiro brilhou como uma Duse aos
dezessete anos. Durante 45 minutos ele provou, por A mais B, que
no Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Convenceu o Armando.
Em seguida, passou a demonstrar a verdade inversa, ou seja: -- que,
no Brasil, o golpe é iminente, inevitável e necessário. Estava sendo
ali um Sócrates sem alpercata.
Agora, a relação do Otto com o Fluminense. Domingo passado,
durante os primeiros vinte minutos, o Fluminense foi um Otto, foi
um estilista. Mas no futebol, como na literatura, convém não
caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol
nenhum. Tudo certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No
meu canto, eu via a hora em que perderíamos mais um ponto fatal. E
vem a grande verdade: -- a obra-prima, no futebol e na arte, tem de
ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de
ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos
borbotões.
[O Globo, 9/11/1963]
O DIVINO DELINQÜENTE
Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50. Foi uma
humilhação pior que a de Canudos. O uruguaio Obdulio ganhou de
nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não me venham dizer que o
escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com
o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio -- é como
se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber
botinadas.
Pois bem. Depois da experiência bíblica de 50, passamos a
rosnar, por todas as esquinas e por todos os botecos do continente, o
seguinte juízo final sobre nós: -- "O brasileiro é bom de bola, mas
frouxo como homem". É o que diziam, sim, de nós, com feroz
sarcasmo, os craques da Argentina e os craques do Uruguai. Até que
vem aquele famoso Campeonato Sul-Americano de 1959. Há o jogo
Brasil x Uruguai. E, de repente, estoura um sururu monstruoso.
Brigaram até as cadeiras.
Foi uma página de Walter Scott. O próprio Chinesinho, com o
seu tamanho de anão de Velasquez, levou e deu bordoada. Lindo,
lindo foi quando Didi tomou distância, correu e saltou. Por um
momento ele se tornou leve, elástico, acrobático. E enfiou duas
chuteiras em flor na cara do inimigo. Quando parou a guerra e
continuou o jogo, demos um banho de bola. Ora, há uma nítida
relação entre a passividade de 50 e a agressividade do tal Sul-
Americano. As duas coisas estão ligadas e uma justifica a outra.
Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que "futebol é bola".
Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega
esvazia o futebol como um pneu, e repito: -- retira do futebol tudo o
que ele tem de misterioso e de patético. A mais sórdida pelada é de
uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou
bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria
ainda ao ilustre confrade o seguinte: -- em futebol, o pior cego é o
que só vê a bola.
Faço a meditação acima para justificar a escolha do meu
personagem: -- Almir*. Alguém dirá que Almir é um delinqüente
irrecuperável. Amigos, vamos reexaminar o problema. "Ser ou não
ser delinqüente", "ser ou não ser paranóico", eis a questão. Mas os
mesmos que agora exigem a cabeça de Almir, como se ela fosse a de
Maria Antonieta, gostam muito de Didi. Eu próprio tenho por Didi
uma admiração de macaca-de-auditório. Dei-lhe o nome de "Príncipe
Etíope de Rancho". Mas já diziam os acácios e os pachecos da
crônica: fato é fato. E Didi, conforme todo mundo sabe, quebrou a
perna de Mendonça.
Estava lá o Armando Nogueira. Ora, o Armando é um lúcido,
um sensível e, sobretudo, um justo. O Otto Lara Resende vai mais
longe e jura que esse nobre confrade é o único pastor protestante
escocês que jamais existiu. Eu pergunto ao pastor escocês que há no
Armando se ele, Armando, usou a ênfase de um Moisés ou a ira de
um Zola para chamar Didi de "paranóico" ou de "delinqüente".
Há mais. Ainda o meu amigo Armando Nogueira viu quando,
há tempos, Amarildo quebrou Jair Marinho, do Fluminense. Lá saiu
o esplêndido zagueiro de maca, e quase de rabecão. O Armando, que
é, repito, um justo, foi testemunha ocular e auditiva do fato. Digo
"auditiva" porque ele "ouviu" o som inequívoco da fratura. Jogavam
Botafogo x Fluminense e um autêntico alvinegro foge do túmulo para
ir torcer.
Não lembro o que escreveu o Armando a respeito. Amigos, ando
sofrendo freqüentes lapsos de memória. Mas suponho que o pastor
*Santos 1 x 0 Milan, 16/11/1963, no Maracanã. Almir acertou Amarildo no primeiro
minuto de jogo, tirou de campo o goleiro Balzarini e cavou o pênalti, cobrado por
Dalmo, que tornaria o Santos bicampeão mundial de clubes.
protestante escocês tenha aproveitado a chance para taxar o
"Possesso" de "delinqüente" e de "paranóico". E se poderia citar
dezenas, centenas de exemplos. O match Chile x Itália, em 62, foi
canibalesco. Os adversários só faltavam chupar as carótidas uns dos
outros. Em 58, no match Suécia x Alemanha, os 22 jogadores
agrediram-se a dentadas.
Nós é que vamos exigir, de um jogo de futebol, a cerimônia, a
polidez, a correção de uma sessão da Câmara dos Comuns? O meu
amigo Armando Nogueira se horroriza com o meu personagem da
semana como se este tivesse inaugurado o foul no futebol. Se o jogo
fosse só a bola, está certo. Mas há o ser humano por trás da bola, e
digo mais: -- a bola é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O
que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a
compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que, atrás
dela, há o homem brasileiro com o seu peito largo, lustroso,
homérico.
O Santos é uma equipe assassinada, e repito: -- assassinada
pela inépcia e desumanidade de seus dirigentes. Nenhuma equipe
terrena pode jogar tanto sem se morrer. E, contra o marcadíssimo
Milan, o glorioso time ruía aos pedaços, estrebuchava, agonizava.
Nunca houve cansaço tamanho. E, apesar disso, ganhou do Milan na
mais linda reação que se conhece. Ganhou duas vezes. Por que
agredir a vitória não de um time, mas do homem brasileiro? Por que
esse ressentimento inconfesso, mas nítido, contra o Santos? Mas
voltemos ao meu personagem da semana. Teve uma grande e cálida
atuação no feito brasileiro. Será "paranóico" porque chutou
Amarildo? E Didi, e o próprio Amarildo, e tantos outros? Por justiça,
o meu amigo pessoal Armando Nogueira devia aparecer na boca de
cena para declarar: "Meus senhores e minhas senhoras. Só vejo
paranóicos na minha frente".
[O Globo, 18/11/1963]
SEMANA DE FLA--FLU
Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro
desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark.
Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Walter Clark é
um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do
garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se
que ele arranca contratos de publicidade até em velórios, até em
cemitérios. Pois bem: -- e o Walter Clark só pensa no Fla--Flu*.
Assim que me viu, ele me arrastou para um canto.
Conversamos na varanda da TV Rio, diante do mar. Um cálido sopro
marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio.
Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos
seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o
primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada,
inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla--Flu.
Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-
me a seguinte inconfidência: -- vai comemorar a vitória com busca-
pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um automóvel
branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E esse carro de
noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga
wagneriana para dar o tom alto à comemoração.
Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de
suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma
catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo.
Foi assim, em Hiroxima, na manhã dominical da bomba. Nenhum
*O resultado desse jogo está na próxima crônica.
presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade.
Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência
de um bodinho de charrete. E, de repente, há o clarão hediondo.
Eis o que me pergunto: -- com as suas comemorações
antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroxima
particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é apenas
do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a
mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio
Costa está calmo, e repito: -- é a tal calma da catástrofe. Ao passo
que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que
anuncia as vitórias deslumbrantes.
Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Walter
Clark: -- ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a
vitória tricolor. Foi assim também em 1919. Naquela ocasião, os
eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigantesca. Quarenta
e quatro anos já rolaram depois disso. A cidade estava, como agora,
cálida de Fla--Flu. Lembro que, no dia do jogo, alguém morreu na
minha rua. E, no caixão, o defunto estava de cara amarrada, porque
não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: -- com o
mesmo otimismo trágico do Walter Clark, o Flamengo preparou a
apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com
os respectivos cavalos, o final do match.
E venceu o Fluminense. Creio que não existe, na história de
um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla--Flu.
Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustração dos
corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais
pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E
agora?
O profeta já anunciou: -- "Fluminense, campeão de 63!". Desta
coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém
pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na
convocação, e explico: -- a morte não exime ninguém de seus
deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o
passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já
possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os
torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: --
ganharemos o mais dramático Fla--Flu de todos os tempos.
[O Globo, 13/12/1963]
PIOR PARA OS FATOS
Amigos, ao terminar o grande Fla--Flu*, o profeta tratou de
catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um
vencido? Jamais. Vencido como, se temos de admitir esta verdade
límpida e total: -- o Fluminense jogou mais! Não cabe, contra a
evidência da nossa superioridade, nenhum argumento, sofisma ou
dúvida. Alguém dirá que o profeta não previa o empate.
Exato. Mas vamos raciocinar. Houve lances, no Fla--Flu, que
escapariam à vidência até de um Maomé, até de um Moisés de Cecil
B. de Mille. Lembro-me de um momento em que Marcial estava
batido irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros
e quebrados. E que fez Escurinho? Enfiou a bola na caçapa?
Consumou o gol de cambaxirra?
Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bola na
bandeja como se fosse a cabeça de são João Batista. E eu diria que
nem Joana d'Arc, com suas visões lindas, ou Maomé, pendurado no
seu camelo, ou o Moisés de Cecil B. de Mille, do alto de suas
alpercatas -- podia imaginar tamanha ingenuidade. Escurinho teria
de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e
nunca suspender a bola.
E tem mais. Os profetas de ambos os sexos jamais poderiam
contar com a trave. No segundo tempo, Escurinho mandou uma
bomba. Nenhum gol foi tão merecido. Pois bem: -- vem a trave e
salva. Além do mais, que Maomé, ou que Moisés podia calcular que o
treinador Flávio Costa ia fazer jogo para empate? Dirá o próprio que
*Flamengo 0 x 0 Fluminense, 15/12/1963, no Maracanã. Flamengo campeão carioca.
não foi esta a sua intenção. Mas o fato incontestável é que ele armou
o time para o hediondo 0 x 0.
É óbvio que, desde o primeiro minuto, o Fluminense teria de se
atirar todo para a frente. Era preciso forçar a decisão, o gol, a vitória,
já que o empate seria a catástrofe. O tricolor jogou bem e, no
entanto, não deu, nunca, a sensação de fome e sede de gol. Faltavam
uns quinze minutos, e os nossos jogadores ainda tramavam, ainda
faziam tico-tico, ainda perdiam tempo com passes curtos, para os
lados e para trás. Sim, o Fluminense jogou bem e não cabe
preciosismo num último Fla--Flu.
Já no jogo do Flamengo contra o Bangu, aconteceu o seguinte:
-- sempre que Oldair avançava, eis que Flávio erguia-se na boca do
túnel e fazia um comício. Oldair marcou dois gols por desobediência
e, repito, por indisciplina tática. Ontem, ele estava cá atrás,
defendendo um empate que seria a vitória do Flamengo. Vejam que
tristeza horrenda: -- nós, do Fluminense, jogamos bem e errado.
Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O
tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um
campeão oficial, que é o Flamengo. E, aqui, abro um capítulo para
falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela
cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À
saída do estádio, eu vi um crioulão arrancar a camisa diante do meu
carro. Seminu como um são Sebastião, ele dava arrancos medonhos.
Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão.
Mesmo que eu fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa
alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Não sei se o
time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a
patética, a abnegada torcida rubro-negra merece muito mais. Cabe
então a pergunta: -- quem será o personagem da semana de um
abnegado Fla--Flu tão dramático para nós? Um nome me parece
obrigatório: -- Marcial. E, nessa escolha, está dito tudo. Quando o
goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o
adversário jogou melhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro
que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o gol que Escurinho
não fez. Tampouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na
trave. Assim mesmo, Marcial andou fazendo intervenções decisivas,
catando bolas quase perdidas.
Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que
o profeta pode responder: -- "Pior para os fatos!". É só.
[O Globo, 16/12/1963]
A CAVEIRA NO ESPELHO
Amigos, sou um admirador profundo do cinema italiano. Bem
me lembro dos meus tempos de menino. Sempre que havia uma fita
de Francesca Bertini, lá estava eu, com meus seis, sete anos
salubérrimos. E a Bertini deslumbrava a minha infância. Santa e,
como diria Augusto dos Anjos, abominabilíssima senhora! No
momento mais dramático dos filmes, ela saía pelas portas, aos urros
e às patadas. E se alguém a beijava, eis a vamp antediluviana
querendo subir pelas paredes como uma lagartixa profissional.
Assim era no tempo da cena muda. Mas, com a passagem dos
anos, o cinema foi mudando. Menos o italiano, que continuou fiel ao
próprio povo. A Bertini passou. Mas outras a substituíram, e
seguindo uma linha parecida. E o cinema atual da Itália está cada
vez mais feroz e cada vez mais esbravejante. Pode-se dizer que ele
repôs o urro no centro do drama humano. Suas atrizes, ainda as
mais sóbrias, são desgrenhadas viúvas sicilianas. Francesca Bertini
está mais viva, mais atual, mais obsessiva do que nunca.
Faço toda esta volta pelo cinema italiano para chegar ao
Botafogo. É, com efeito, o clube mais passional, mais siciliano, mais
calabrês do futebol brasileiro. Um tricolor pode torcer em surdina,
pode cochichar, pode suspirar. O botafoguense, porém, é de uma
extroversão ululante como nos velórios da Sicília. Lembro-me de uma
vizinha que torcia pelo Botafogo. Por uma funesta coincidência,
casara-se com um rubro-negro. E o casal discutia muito sobre
futebol. Uma vez, houve um Flamengo x Botafogo. E não sei se
ganhou o Flamengo, ou se ganhou o Botafogo.
Só sei que, na volta do jogo, os dois vinham brigando. Foi lindo
quando desembarcaram do táxi. A doce vizinha berrava: -- "Te bebo
o sangue!". Tiveram de chamar a radiopatrulha ou do contrário ela
descascaria a carótida do marido para chupá-la como laranja. Nessa
implacabilidade está o charme da torcida botafoguense. Esse tom,
essa efusão, essa agressividade, essa ira, ou estertor de ópera, de
filme italiano, é que dá o tom justo aos homens de General
Severiano.
E, além disso, como o italiano da anedota, o alvinegro
autêntico paga para sofrer. O alvinegro autêntico, repito, prefere a
catástrofe. E, quando o time perde, ele se realiza. Pode clamar,
espernear, arrancar os cabelos, amaldiçoar e soltar os cães de sua
ira. É a vocação da calamidade que torna inconfundível o
botafoguense irreversível.
Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase
viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e
respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem
nenhum pretexto para soluçar as suas mágoas clubísticas.
Felizmente, este ano o Botafogo perdeu o tricampeonato. E seus
fanáticos podem descarregar, em todas as direções, o seu potencial
de ira.
Cabe então a pergunta: -- e por que o Botafogo perdeu o
tricampeonato? Ora, eu não sou botafoguense e posso me dar ao
luxo de um mínimo de isenção e de objetividade. A meu ver, o
Botafogo começou a perder o tricampeonato quando negociou Didi.
Há uma verdade eterna, em futebol, que é a seguinte: -- todo clube
precisa ter uns tantos bens inegociáveis. E não há preço que pague
um bicampeão mundial. Didi teria que envelhecer em General
Severiano até se converter numa múmia gagá.
O Botafogo continuou a perder o tricampeonato quando
pensou, simplesmente pensou, em vender Garrincha. Um clube que
admite, mesmo como hipótese, a venda de um Mané tem mesmo a
tal vocação da catástrofe. O Botafogo perdeu de vez o tricampeonato
quando vendeu Amarildo. Negociando o "Possesso", que marcou os
dois gols contra a Espanha, o alvinegro estava querendo ver, no
espelho, a própria caveira. Há também a ausência de Garrincha. Mas
o joelho do Mané não é um problema cirúrgico, e repito: -- o joelho é
apenas um castigo.
Agora a conclusão: -- se o Botafogo quis vender o Mané, e se
negociou Amarildo, e se entregou Didi -- é porque queria se dilacerar
no arrependimento e na expiação.
[O Globo, 28/12/1963]
O MAIS CARIOCA DOS TIMES
Amigos, o brasileiro é o homem de sua rua, do seu bairro, de
sua cidade. Já escrevi isso umas cinqüenta vezes. Como eu ia
dizendo: -- para qualquer um de nós a viagem é um sacrifício
hediondo. A partir do Méier, baixa no sujeito uma aguda e
desesperada saudade. Eu sei que uns poucos gostam de viajar. São
os falsos brasileiros, descaracterizados, cosmopolitas e, numa
palavra, bobos irreversíveis.
Daí a tragédia dos times que saem, por aí, nas ignominiosas
excursões caça-níqueis. Fora do aquário natal o craque brasileiro
afoga. Por exemplo: -- Didi. Por que fracassou na Espanha o
"Príncipe Etíope de Rancho"? Foi uma vítima da nostalgia. Melhor
que todos os seus companheiros de Real Madrid, Didi acabou
apagando. Foi barrado, até. Contam que, nas tardes frias, ele só
faltava uivar de saudade.
E, se assim aconteceu com o extraordinário jogador, imagino
que os demais devam ter a mesmíssima reação. Outro exemplo: -- o
Santos. É o melhor time do mundo. Houve momentos em que se
disse por aqui: -- "O verdadeiro escrete brasileiro é o Santos!". E, de
fato, quando o Santos joga bem, lembra as melhores atuações da
seleção de 58.
E, no entanto, o esquadrão de Vila Belmiro virou saco de
pancada. Apanhou de cinco do Independientes, de cinco do Peñarol
e, sábado, de três do Colo Colo. Como eu dizia ontem, o Santos
adquiriu o vício de perder. Apanha do grande e do pequeno.
Qualquer dia desses vamos vê-lo tomar um banho do Arranca-Toco
F. C. A coisa toma um ar meio sobrenatural. Não há explicação
possível. O Santos é, indubitavelmente, um esquadrão de ouro. Além
de tantos valores conhecidos e consagrados, lá está o maior de todos:
-- Pelé.
Um quadro que tem Pelé está na obrigação de ganhar de todo
mundo. E por que perde? Porque deixou de ser um time brasileiro.
Sim, transformou-se numa equipe internacional. Reparem: -- o
Santos faz turismo no Brasil. Um dia está na Argentina; em seguida,
no Chile; e, depois, na Bolívia, no Peru. Seus jogadores são
aplaudidos, vaiados e xingados em todos os idiomas.
A meu ver, baixou no Santos o tédio desesperador de tantas
viagens. Que espécie de estímulo pode ter um time cujos adversários
mudam de sotaque três vezes por semana? A equipe voltaria à sua
melhor forma, ao seu grande ímpeto, se parasse. Ponham o Santos
para jogar no Maracanã, só no Maracanã. Eu não diria no
Pacaembu. Em São Paulo há um ressentimento contra o quadro de
Vila Belmiro. Mas aqui, no maior estádio do mundo, o Santos
tornaria a encontrar o seu clima.
Vocês querem saber a última verdade sobre o Santos? Ei-la: --
é o mais carioca dos times. Só por um equívoco crasso e ignaro
nasceu em Vila Belmiro. Mas a verdade é que, por índole, por
vocação, por fatalidade -- ele encontra, no Maracanã, uma dimensão
nova e decisiva. É ali, no colosso do Derby, que o Santos mereceu as
suas aclamações mais formidáveis. A multidão só falta carregá-lo no
colo e passear com Pelé na bandeja, triunfalmente.
Não me venham com explicações técnicas, táticas para seus
fracassos. Esse time, que pára em todas as pátrias, menos na
própria, estourou o limite de saturação. Qualquer viagem o aniquila.
Tem que deixar de ser um pobre e errante quadro internacional. E o
pior é que até Vila Belmiro soa como um exílio porque o Santos
nasceu no lugar errado. Sua verdadeira casa é o Maracanã. Ah, se
ele conseguisse naturalizar-se carioca -- seria uma equipe imbatível
e eterna.
[O Globo, 3/3/1964]
O MARTÍRIO DE NÍLTON SANTOS
Amigos, minha última obsessão é a seguinte: -- o tapa que
Nílton Santos deu no juiz*. O episódio ainda é assunto, é notícia, é
manchete. O craque foi arrastado a julgamento. Em vão, bateu às
portas da indulgência humana. Ninguém lhe concedeu uma
atenuante. A impressão que se teve é que o tapa de Nílton Santos
está entre os sete pecados capitais.
Cabe então a pergunta: -- a coisa merecia esse estardalhaço?
Merecia essa promoção? Receio que sim e explico. Não há tapa
intranscendente. Agressor, vítima e testemunhas estão implicados na
mesma humilhação. Eu me lembro de uma cena que vi, faz tempo,
numa luta de Éder Jofre. Na altura do segundo ou terceiro round,
um espectador ergue-se, aos uivos. Vociferava para o ringue: --
"Parem! Parem!". Cercado por três ou quatro, o sujeito foi arrastado.
Mais desgrenhado e ululante do que um jeremias, ele ia soluçando:
-- "Não se bate na cara de ninguém! De ninguém!".
Parece que a Justiça Esportiva, sensível à transcendência do
tapa, levou o castigo às últimas conseqüências. E, de repente, Nílton
Santos lembrou o martírio de Dreyfus. Como se sabe, diante da tropa
formada, arrancaram os bordados de Dreyfus, depenaram as
dragonas, arrancaram os botões, derrubaram o boné. Tudo isso ao
som de tambor, cometa, o diabo. Nílton Santos quase teve essa
degradação total.
E não ocorreu a ninguém que um tapa pode ter a sua ética
*Nílton Santos, 39 anos e bicampeão do mundo, foi suspenso por sessenta
dias por agredir Armando Marques.
profunda. Nílton Santos bateu por quê? Sim, por quê? Vamos
reconstituir o fato. Segundo todas as testemunhas, o árbitro correu
para o jogador e espetou-lhe o dedo na cara. Vamos e venhamos: -- é
meio triste para um adulto, casado, pai de filhos, sofrer uma desfeita
assim pública e assim hedionda.
A gravidade de uma humilhação depende de público. Se os dois
estivessem num terreno baldio, apenas assistidos por alguma cabra
vadia, a coisa não teria nenhum patético. É a testemunha que
valoriza e dramatiza as ofensas. Nílton Santos e o juiz brigaram num
campo de futebol. Gente por toda parte, e repito: -- gente pendurada
até no lustre. Dirá alguém que o jogador agrediu. Convém lembrar:
-- dedo na cara também é agressão.
Eis o problema: -- um juiz pode agredir e um jogador não pode
revidar? Dirá algum fariseu que o atleta não pode dar tapas como
um gângster. Ora, mil vezes mais grave, mais solene, mais hierático
do que o atleta é o ser humano. Um jogador não pode ser, nunca, a
antipessoa. E, afinal de contas, se houvesse justiça real, o jogador
que se portou como homem -- e por isso mesmo -- teria de ser
desagravado, promovido, premiado.
Mas, no caso, há também um aspecto desesperador. Refiro-me
à infalibilidade que se confere ao juiz de futebol. Tem um poder que,
hoje, negamos ao rei da Arábia Saudita. A tirania mais cruel e obtusa
tem seus limites. E só o juiz de futebol paira acima do bem e do mal.
Sim, depois do que fizeram com Maria Antonieta, ou com Maria
Stuart, ou com Inês de Castro -- não se entende que um apito, um
reles apito, possa tornar alguém sagrado, intangível.
[O Globo, 12/3/1964]
ENCOURAÇADO DE SOL
Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi
um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio
Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete,
colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras
da época se cobriam até o pescoço. Em suma: -- o brasileiro vestia-
se como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá.
Hoje não. Procura-se um fraque e não se encontra um fraque.
Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito que entrasse
sem gravata num bonde -- era de lá expulso a patadas. E, agora,
anda-se de biquíni nos lotações. Um sol hediondo vai derretendo as
catedrais e amolecendo os obeliscos. Não há dúvida: -- somos
finalmente tropicais.
Olhem as nossas praias. A nudez jorra aos borbotões. Em
1905, o turista que visse Machado de Assis havia de anotar no
caderninho: -- "Este é o povo mais vestido do mundo!". Em nossos
dias, o mesmo turista havia de escrever inversamente: -- "Este é o
mais despido dos povos!". Pois bem. E, no entanto, vejam vocês: --
ocorre aqui uma reação curiosíssima.
Sim, diante do calor, o brasileiro esperneia e pragueja. O que
fazem com o futebol chega a ser burlesco. Em pleno verão,
suspendem os clássicos e as peladas. O Maracanã cerra as suas
portas. Todas as botinadas são proibidas. E ninguém percebe o
absurdo. O justo, o lógico, o adequado é que um craque tropical,
como o nosso, jogue no verão e descanse no inverno.
Não me venham com o argumento de higiene. Para um tropical,
a higiene é um sol homicida. E se reclamamos, se esbravejamos, se
uivamos contra o sol, cabe uma dúvida honesta. É possível que
sejamos tropicais por engano. E, nesse caso, certo estaria Machado
de Assis ao pôr fraque e galochas, assim desafiando o hediondo sol
do meio-dia.
O futebol antigo era mais inteligente. O jogador entrava em
campo e os jogos caniculares tinham mais élan, mais saúde, mais
euforia. Por exemplo: -- em 1910, ano em que o Botafogo foi
campeão. Naquele tempo, o Brasil era tropical sem o saber. Lembro
que um craque alvinegro, famosíssimo, jogava com uma vasta toalha
felpuda enrolada no pescoço. Quarenta graus à sombra e ele varava
o campo como um centauro de cobertor.
E nunca houve, no velho futebol, nenhuma insolação. Pelo
contrário: -- o craque tinha uma resistência de hipopótamo. Na
célebre gripe espanhola morreu todo mundo. A mortandade foi pior
do que a da primeira batalha do Marne. Mas como eu ia dizendo: --
uns morriam e outros eram enterrados. E, quando o sujeito relutava
em morrer, era liquidado a pauladas como uma ratazana. Muito
bem: -- só os jogadores de futebol sobreviveram.
Não havia Departamento Médico nos clubes. Mas o sol
potencializava o jogador e o protegia contra o tifo, a malária e a peste
bubônica. Sim, bons tempos em que o Brasil não era ainda tropical
ou por outra: -- não sabia que o era! O craque usava bigodões
imensos, carapuça e mais: -- seus calções escorriam até as canelas.
Lindo, lindo. E assim, encouraçado de sol, abarrotado de calor, o
craque ou o perna-de-pau eram uma bastilha deslumbrante de
saúde.
[O Globo, 13/4/1964]
OS QUE NEGAM GARRINCHA
Amigos, qualquer multidão é triste. Juntem 150 mil pessoas no
Maracanã e vejam como imediatamente o estádio começa a exalar
tristeza e depressão. Assim foi ontem, 1º de maio, Dia do Trabalho, e
portões abertos para todo mundo*. Aquilo foi tomado de assalto. E,
quando soou o apito inicial, tinha gente até no lustre.
Mas o que eu queria dizer é que, como qualquer multidão,
aquela massa estava triste, fúnebre, inconsolável. E só mesmo o meu
personagem da semana, Mané Garrincha, conseguiu arrancar do
Maracanã entupido uma gargalhada generosa total. Vocês se
lembram de Charlie Chaplin, em Luzes da ribalta, fazendo o número
das pulgas amestradas? Pois bem, Mané deu-nos um alto momento
chapliniano. E o efeito foi uma bomba.
Na primeira bola que recebeu, já o povo começou a rir. Aí é que
está o milagre: -- o povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta.
Ria adivinhando que Garrincha ia fazer a sua grande ária, como na
ópera. Como se sabe, só o jogador medíocre faz futebol de primeira.
O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola. Sim, ele cultiva a bola
como uma orquídea de luxo.
Foi uma das jogadas mais histriônicas de toda a vida de Mané.
Primeiro, pulou por cima da bola. Fez que ia mas não foi. Pula pra lá,
pra cá, com a delirante agilidade de 58. Lá estava a bola, imóvel,
impassível, submissa ao gênio. E Garrincha só faltou plantar
bananeiras. Três ou quatro gaúchos batiam uns nos outros,
tropeçavam nas próprias pernas.
*Brasil 2 x 0 Seleção gaúcha, 1/5/1966, no Maracanã. Jogo preparatório para a Copa
do Mundo na Inglaterra.
O importante, porém, é que a multidão, neurótica como toda
multidão, ria, finalmente ria. E o som de 150 mil gargalhadas saiu do
Maracanã e rolou por toda a cidade. Era mais uma ressurreição do
Mané. Digo "ressurreição" porque o meu personagem da semana já
teve vários atestados de óbito. Sabemos que ele está jogando no
Coríntians e fazendo gols fantásticos. Não contente de fazer os
próprios, tem sido, com seus passes magistralíssimos, o co-autor de
não sei quantos gols alheios.
Pois bem. Mas há, na crônica, quem o trate como um defunto
do futebol. Chega a ser patusca a insistência com que vários colegas
anunciam a morte do Garrincha de 58 e de 62. E Mané tem que ser
exumado. Só o povo é que, na sua imaculada boa-fé, não acredita no
fim do ídolo. Sempre que ele recebia a bola, a multidão caía em
estado de graça plena.
E vamos e venhamos: -- para um defunto, Mané parecia ontem
salubérrimo. Cabe então a pergunta: por que certos confrades
teimam em não enxergar o óbvio ululante? Há várias explicações. Em
primeiro lugar, os colegas alvinegros ressentidos contra o abominável
ex-botafoguense. E há também a falta de bondade. Amigos, eu
sempre digo que sem um mínimo de ternura não se chupa nem um
Chica-bon. Os que negam Garrincha têm uma aridez de três
desertos.
Mas o que importa, para nós, para o escrete, para o Brasil, é
que Mané voltou a ser ele mesmo. Ainda ontem nós verificamos, mais
uma vez, como é importante, como é decisiva a sua presença. Antes
de mais nada, o adversário dá-lhe uma cobertura histérica de três e
até quatro marcadores. Imaginem lá fora, imaginem na Inglaterra.
Sempre que ele receber a bola, lord Nelson há de tremer na tumba e
a "Divina Dama" há de chorar lágrimas de esguicho.
[O Globo, 2/5/1966]
MATAR OU MORRER
Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol
brasileiro, eu direi: -- a delicadeza, e reforço: -- a extrema
delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez
do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi
assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas, os adversários já
entravam de navalha na liga.
Ao passo que, até no foul, o escrete verde-amarelo era de uma
suavidade impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x
Alemanha* foi uma carnificina. Eu estava vendo a hora em que os
adversários iam arrancar a carótida uns dos outros para chupá-la
como tangerina. Foram noventa minutos de uma fero de recíproca e
homicida. Valeu tudo, rigorosamente tudo.
Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar
pena a correção dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola.
Jamais o mundo vira um escrete tão doce e de uma inocência quase
suicida. Um sociólogo que lá estivesse havia de fazer a constatação
apiedada: -- "O escrúpulo é próprio do subdesenvolvimento" .
O escrúpulo e mais: -- a humildade, a lealdade, o altruísmo.
No jogo Brasil x França, o árbitro comportou-se como um larápio.
Não houve, em toda a história da Copa, um roubo mais cristalino e
cínico. Tivemos que fazer três gols para que valesse um. E o escrete
brasileiro nem piscou. Deixou-se furtar e só faltou beijar a testa do
ladrão.
*Nelson refere-se a Suécia 3 x 1 Alemanha (24/6/1958) e Brasil 5 x 2 França
(25/6/1958), ambos em Gotemburgo. O outro jogo foi Brasil 2 x 0 Alemanha,
6/6/1965, no Maracanã, em que Pelé quebrou a perna do alemão Giezzmann.
O pior vocês não sabem. Até 58 o Brasil fazia de si mesmo a
pior das imagens. Sim, o brasileiro se considerava um facínora. E, no
Maracanã, quando um de nós ousa um foul mais violento, o estádio
vem abaixo. Por toda parte há quem esbraveje: "Cavalo! Cavalo!".
Mas é uma injustiça. Muito mais brutal do que o nosso é o futebol da
Inglaterra, da Alemanha, da França, da Itália, da Bulgária.
O meu amigo Antônio Callado viu, certa vez, um jogo Inglaterra
x Escócia. Foi um pau só, do primeiro ao último minuto. E, súbito,
explode um sururu. Brigaram os 22 jogadores, o juiz, os
bandeirinhas, as torcidas. A polícia montada teve de invadir o
campo. No Brasil, o sururu é tão antigo, tão obsoleto como um quepe
da Guerra do Paraguai. E, quando um de nós dá um tapa, as
manchetes tremem e há uma comoção nacional.
A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são defeitos
gravíssimos. Um jogador brasileiro tem vergonha de pisar na cara do
adversário caído. O europeu não. O europeu não recua diante de
nada. Vocês se lembram do jogo Brasil x Alemanha aqui no
Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas que teve um lance de
epopéia.
Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não
recuou, nem o brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o
seguinte: -- matar ou morrer. O alemão preferiu matar e Pelé não
quis morrer. O nosso levou vantagem pelo seguinte: -- porque
introduziu no choque a molecagem brasileira. Conclusão: -- Pelé
sobreviveu e o germânico saiu de maca.
A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: --
condenou Pelé. Se a coisa fosse na Alemanha, e a vítima Pelé, o
cronista de lá ia considerar a fratura um fato normal e
intranscendente. Amigos, na Europa o foul praticamente não existe.
O juiz só costuma apitar quando um adversário estripa o outro.
E não há dúvida de que, por uma tendência natural e por se
tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o
brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no
inglês. Mas verdade é bem diferente. Hoje sabemos que o único
inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso,
desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.
[O Globo, 30/5/1966]
TERRENO BALDIO
Amigos, para entender a Comissão Técnica da seleção, eu
inventei as conversas de terreno baldio com o João Havelange. E por
que terreno baldio? Vou repetir a minha explicação. Tudo o que se
diz num capinzal vem repassado de sinceridade. Ao passo que, no
gabinete, na sala, no coquetel e na mesa, o ser humano usa 35
máscaras, nunca a sua face verdadeira.
Pois bem. Tenho levado o presidente da CBD para os matagais
mais discretos, mais secretos da cidade. E, lá no sigilo, no mistério
do terreno baldio, digo ao João as coisas indizíveis, as coisas
impublicáveis. E ele responde com a mesma lealdade. Tal é a
vantagem das conversas imaginárias.
Acontece que o escrete vive um grande momento. Estamos a
um mês da Copa da Inglaterra e rola, por todo o país, a pergunta
apavorante: -- "E o time?". Sim, onde está o time que a Comissão
Técnica não fez? Não importa a sua qualidade. Mas 80 milhões de
brasileiros querem uma equipe básica, suscetível de retoques, mas
conhecida e proclamada.
E ninguém conhece esse time. Que nós não o conhecêssemos,
vá lá. Afinal, somos pobres e ignaros mortais. Mas a própria
Comissão Técnica participa da nossa ignorância e da nossa
perplexidade. A equipe, que toda a nação deseja, ela não a tem. E o
pior é que o relógio não pára. Nem o relógio, nem a folhinha.
Começou uma luta corpo a corpo entre o escrete e o tempo. Cada
minuto perdido é irrecuperável.
Com o João num terreno baldio, e na presença apenas de uma
cabra pensativa, eu cobraria: -- "E o time, Havelange? E o time?". Aí
está a pergunta de todo um povo. Podia não ser o ideal, mas que
fosse um time. A própria Comissão só poderá agir e reagir a partir de
uma equipe básica.
Sob o olhar indiferente da cabra, eu perguntaria: -- "Você acha
direito, João?". Por enquanto, há um só titular obrigatório: -- Pelé.
Garrincha é provável e sabemos que a Comissão tudo fará para
impor Servílio. Outra pergunta de terreno baldio: -- "Como você
explica, Havelange, que não se tenha experimentado ninguém ao
lado de Pelé?". O João, que conhece futebol, sabe que Silva não é um
perna-de-pau. Pelo contrário: -- Silva se impôs, durante todo o
campeonato, como um atacante decisivo. Servílio, com a bola nos
pés, pode ter -- quem sabe? -- mais virtuosismo.
Mas Silva é o homem das grandes e fatais penetrações. Tem o
tal feitio épico que o tricampeonato exige. E não há dúvida: -- há
muito que merece uma chance ao lado de Pelé. Há também Alcindo,
há também Jairzinho. Dirá alguém que Jairzinho é reserva de
Garrincha e Silva reserva de Pelé. Mas craques como Silva, como
Jairzinho podem ser testados de várias maneiras. Em verdade, o que
há é um pré-julgamento da Comissão, em favor de Servílio.
No terreno baldio, eu perguntaria ainda ao João: -- "Fidélis ou
Carlos Alberto? E Brito? E Bellini? Orlando ou Altair, hein,
Havelange? Paulo Henrique ou Rildo?". O nosso João teria de
responder: -- "Não me pergunte nada. Sei tanto quanto você". Sabe
tanto quanto nós. Pura e santa verdade. O presidente da CBD e
chefe da delegação sabe tanto quanto qualquer outro brasileiro, vivo
ou morto. Dirá alguém que a Comissão demora para não errar. Pois
que erre. A simples demora é, em si mesma, um erro maior.
[O Globo, 2/6/1966]
OS INIMIGOS DO ÓBVIO
Amigos, uma das coisas mais fascinantes da televisão, no
momento, é o programa do Otto. E, lá, aparece de tudo. Do rajá ao
sociólogo, do profeta ao camelô, do psiquiatra ao macumbeiro, do
santo ao ventríloquo. Dessa irisada complexidade, tira o Otto um
charme inimaginável. Ainda não perdi as esperanças de ver, entre os
seus convidados, uma foca amestrada, equilibrando laranjas no
focinho.
Ontem, o meu fraterno colega entrevistou uma psicanalista
sobre um dos problemas mais agudos do nosso tempo: -- a
juventude. E aí começa o equívoco. "Do nosso tempo" por quê? O
jovem sempre foi problemático e, se não é problemático, estejamos
certos: -- trata-se de um débil mental que deve ser amarrado num pé
de mesa. Vamos dar graças a Deus que a nossa juventude tenha um
drama, uma angústia, uma tensão dionisíaca ou demoníaca, sei lá.
Mas a psicanalista começa a falar e logo percebemos o seu raro
brilho e o seu vasto saber. Por que o jovem está inquieto, tenso,
vibrante, explosivo, perplexo e ameaçador? A culpa é da sociedade e
da família. Quanto ao próprio jovem, a entrevista não faz uma tênue
insinuação ou uma vaga referência. O que importa é apenas a
situação social. Como reles coadjuvante, a situação familiar.
E eu então vi subitamente tudo. Imaginei que, diante de uma
prova de natação, a psicanalista havia de concluir: -- "Quem nada é
a piscina e não o nadador". Minha vontade foi bater o telefone para a
TV Globo e dizer: -- "Minha senhora, não se esqueça do nadador". Se
vocês admitirem a comparação, eu diria que há, sim, um nadador no
problema da juventude. Sim, o que está por trás da família, da
sociedade, das gerações é um velho conhecido nosso, ou seja: -- o
homem.
Os sociólogos do Otto, os psicólogos do Otto, os educadores do
Otto, os professores do Otto ainda não chegaram ao ser humano e o
ignoram com uma crassa e bovina teimosia. É preciso que alguém
lhes escreva uma carta anônima, com o furo sensacional: -- "O
homem existe! O homem existe!". E vai ser um susto, um pânico, um
horror, quando os citados especialistas perceberem que a besta
humana está inserida na nossa paisagem.
Eis a verdade: -- todas as segundas-feiras, o programa do Otto
apresenta um feroz, um rancoroso inimigo do óbvio. E que dizer do
escrete? Passo do Otto para o campeonato do mundo. Amigos, um
dos mais graves problemas da seleção era o companheiro de Pelé.
Oitenta milhões de brasileiros queimavam os miolos, sem achar a
solução. Onde encontrar esse misterioso, utópico, alucinante
companheiro?
Não tem perdão a obtusidade com que insistimos em Servílio.
Só no jogo com o Peru é que desconfiamos do óbvio ululante. Não
havia nenhuma afinidade entre alhos e bugalhos, ou seja: -- entre
Servílio e Pelé. Mas no dia seguinte todo mundo enxergou, de
repente, outro óbvio ainda mais estarrecedor: -- Alcindo. O tal
companheiro de Pelé, mais esperado do que um messias, era o
formidável centauro gaúcho.
Notem que estava na cara. Mas ai de nós, ai de nós! Nunca
enxergamos o que está na cara. Alcindo treinava com uma saúde,
um élan, uma fome, uma sede, uma fúria sagrada. Se pusessem um
paralelepípedo na arquibancada ele diria, com o dedo apontado para
Alcindo: -- "Esse é o companheiro de Pelé!". (Nas minhas crônicas, os
paralelepípedos têm dedo.) Mas, como eu ia dizendo: -- o que um
paralelepípedo veria, ao primeiro olhar, nós não víamos. E, por fim,
ninguém acreditava mais no tal companheiro. Foi preciso que
jogassem o Brasil e a Polônia*, lá no Mineirão. E o óbvio baixou, de
repente, no estádio. Não há mais dúvida, não há mais nada. O
jogador que o óbvio escala é inarredável, irreversível, assim na terra
como no céu.
[O Globo, 8/6/1966]
*Brasil 4 x 1 Polônia, 5/6/1966, no Mineirão.
SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS
Amigos, ontem foi um dia santo. O escrete do Brasil fazia a sua
primeira audição na Inglaterra*. Eu vos direi que a rainha devia ter
comparecido ontem, e não na véspera. Pois o divino Pelé jogou como
se todos ali fossem rainhas. E se o diáfano espectro de Maria Stuart
viu o crioulo, há de ter sussurrado: -- "Vai jogar assim no raio que o
parta!".
Mas eu dizia que toda a cidade parou. As nossas madames
Bovary, as nossas Anas Karêninas suspenderam seus amores e seus
pecados, das três às seis. Os bandidos do Leblon não assaltaram
senhoras nem crianças. E o caro Geraldo Mascarenhas, do Banco
Mineiro da Produção, deixou de pensar nos títulos que eu já devia ter
pago. Ontem, ninguém era credor, ninguém era devedor.
Éramos apenas brasileiros, da cabeça aos sapatos. No centro
da cidade, durante o jogo e depois do jogo, toda a cidade se inundou
de papel picado. Chovia tudo das sacadas. Quando Garrincha fez o
segundo gol, até papel higiênico foi atirado das janelas altas. Era a
vitória, ainda a primeira vitória e apenas a primeira vitória. Mas a
nação inteira crispou-se de sonho.
Doce escrete do Brasil! Nós o malhamos, aqui, como se ele
fosse um judas de sábado de Aleluia. O Maracanã, o Morumbi, o
Pacaembu e o Mineirão vaiaram seus craques. E, assim humilhada e
assim ofendida, partiu um dia a seleção nacional. Partiu para a
gigantesca jornada do Tri. E aconteceu o milagre: a distância
aproximou o escrete do povo. Sim, o exílio deu-nos a verdadeira
*Brasil 2 x 0 Bulgária, 12/7/1966, em Liverpool. Estréia do Brasil na Copa da
Inglaterra.
imagem do time brasileiro.
Jogamos com a Bulgária e a vencemos. Ainda bem que não foi
uma goleada. Aprendemos em 50 que nada embriaga mais do que o
vinho dos escores frenéticos. Os 2 x 0 chegam para a nossa alegria e
a nossa fé. Não queremos mais. Basta que continue assim da
primeira à última partida. Mas certos lances do escrete fizeram a
Inglaterra tremer de beleza.
E onde estão os pessimistas? Dirá alguém que a equipe não
esteve perfeita. Mas aí é que está: -- não queremos a perfeição,
queremos o tricampeonato. Toda obra de arte é imperfeita. E a nossa
vitória de ontem foi, justamente, uma obra de arte total. Só espero
que cada um de nós faça uma autocrítica exemplar. Precisamos
chegar diante do espelho para confessar: -- "Nós somos burros,
muito burros, burríssimos!".
Durante meses repetimos, com a pertinácia da obtusidade, que
Altair era, fisicamente, imprestável para o escrete. Colegas meus
afirmavam, com a ênfase do erro: -- "Orlando é melhor, Orlando é
melhor!". Pois bem. Há o jogo, e Altair, do primeiro ao último
segundo, despontou como a maior figura da defesa. Suportou
bravamente todas as situações de choque corporal. Vocês imaginam
o que seja o búlgaro. Sim, o búlgaro tem a saúde do zebu premiado.
E o nosso frágil, dispnéico, exânime Altair era uma bastilha
inexpugnável. Levou pau e deu pau. E por ele ninguém passou,
ninguém.
Outra figura comovente foi Denílson. Até outro dia, era
aspirante do Fluminense e hoje é titular no maior escrete do mundo.
É o momento de se fazer justiça a Carlito Rocha. No momento em
que Denílson não era ninguém, era zero, o velho Rocha, de olho
rútilo e lábio trêmulo, ousou a profecia: -- "Vocês vão torcer por esse
menino em Londres". Todo mundo achou graça. Mas o que parecia
uma piada era um maravilhoso vaticínio.
Falemos agora de Pelé. Os cronistas ingleses ousaram
blasfemar contra o divino. E o crioulo respondeu com uma exibição
imortal. Não me venham falar em Di Stefano, em Puskas, em Sivori,
em Suárez. Eis a singela e casta verdade: -- não chegam aos pés de
Pelé. Quando muito, podem engraxar-lhe os sapatos, escovar-lhe o
manto. Eu dizia e repito: -- só um débil mental de babar na gravata
terá coragem de duvidar do escrete. Um time que tem Pelé é
tricampeão nato e hereditário.
[O Globo, 13/7/1966]
A VERGONHA
Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação feroz.
Eu diria que a vergonha de 50 foi mais amena, mais cordial. Naquela
ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda não se instalara em
nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de
babar na gravata. Quando passava a carrocinha de cachorro, cada
um de nós tinha medo de ser laçado também.
Mas hoje, não. Ou por outra: -- até ontem, o brasileiro poderia
avançar até o limite extremo da ribalta e anunciar, de fronte erguida:
-- "Sou bicampeão". E de repente, o duplo título começa a ficar
antigo, obsoleto, espectral, como se não significasse mais nada.
Olhem para as nossas esquinas e os nossos botecos. Por toda parte
uma sensação de orfandade. Dir-se-ia que Suécia e Chile são duas
glórias fenecidas.
Quando acabou o jogo, li em todas as caras a pergunta: -- "Por
quê? Por quê?". O melhor futebol da Terra conhecia uma humilhação
mundial. Não falo do resultado. Qualquer um perde, ganha ou
empata. Em 54, o escrete húngaro do Armando Nogueira entrou por
um cano deslumbrante. Mas não houve o ridículo, eis o importante,
não houve o ridículo que desabou sobre o nosso escrete.
E, de fato, a seleção do Brasil não jogou como um time e jamais
foi um time. Graças à Comissão Técnica, fomos, do começo dos
treinos até a estréia na Inglaterra, um bando de ciganos a dar
botinadas em todas as direções. Alguém que não conhecesse os
títulos do Brasil havia de pensar: -- "Eis um time de pernas-de-pau,
eis um time de cabeças-de-bagre!".
E seria injusto, monstruosamente injusto. Porque o jogador
brasileiro continua o melhor do mundo. Nada descreve e nada se
compara à graça, ao sortilégio, à flama do nosso craque. Cabe então
a pergunta: -- e por que fez tanta vergonha? Eis o óbvio ululante: --
o time do Brasil não foi derrotado nem pela Hungria, nem por
Portugal*. Derrotado está pela burrice da Comissão Técnica.
Através de quatro meses, a Comissão teve tudo. Com menos
dinheiro, a Inglaterra fez o seu império. E a Comissão teve prestígio,
e apoio, e promoção, e entusiasmo, e confiança, e autoridade. Pois
bem. Nos quatro meses, ela não revelou um único e escasso
momento de lucidez. Quando a gente se lembra do que ela fez,
chega-se a pensar em insânia. Mas aí é que está: -- a burrice é a pior
forma de loucura.
Repito que o Brasil saiu daqui sem um time formado, sem um
projeto tático e sem saber como ia jogar e com que craques jogaria.
Parecia brincadeira, uma sinistra, hedionda brincadeira. Nem isso e
pelo contrário. A burrice não tem humor, a burrice é grave. Advertida
pelo rádio, pela imprensa, pela TV, a Comissão ia cometendo as
inépcias mais inverossímeis. Oitenta milhões de brasileiros pediam
um time, pelo menos um time, bom, mau ou péssimo, mas um time,
apenas um time, um desgraçado time. E, à medida que ia
acumulando os seus erros, a Comissão era cada vez mais enfática,
mais infalível, mais onipotente.
Jogamos três vezes. Depois do jogo da Bulgária, esperou-se que
fosse mantida a equipe. Mas ai de 80 milhões de brasileiros! A
burrice tem sutilezas geniais. Como a Hungria vinha feroz em cima
do Brasil, entramos em campo com outro time. A Comissão
desintegrou a defesa, mexeu no ataque. Contra Portugal, outro time.
E, se viesse um quarto jogo, um quarto time. Tudo isso nas barbas
atônitas de um povo.
*Hungria 3 x 1 Brasil, 15/7/1966, em Liverpool. Portugal 3 x 1 Brasil, 19/7/1966,
em Liverpool. Brasil desclassificado da Copa nas oitavas-de-final.
E 80 milhões de sujeitos estão aí, pagando pela burrice alheia.
Não apareceu ninguém para amarrar a Comissão num pé de mesa,
dizendo-lhe: -- "Bebe água numa cuia de queijo Palmira!". Amigos,
na catástrofe de ontem comprovamos mais uma vez esta verdade
inapelável e eterna: -- na batalha entre o gênio e a burrice, ganha
esta e o gênio fica rosnando de impotência e frustração. Venceu a
burrice imortal da Comissão Técnica.
[O Globo, 20/7/1966]
A COPA DO APITO
Amigos, eis uma verdade inapelável: -- só os subdesenvolvidos
ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo,
um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor
sem nenhuma folha de parreira. Vejam a presente Jules Rimet. Nas
barbas indignadas do mundo, a Inglaterra se prepara para ganhar no
apito o caneco de ouro.
Vocês pensam que há algum disfarce, ou escrúpulo, ou
mistério? Absolutamente. Tudo se fez e se faz com uma premeditação
deslavada e na cara das vítimas. A serviço da Inglaterra, a FIFA
escalou oito juizes ingleses para os jogos do Brasil. A arbitragem foi
manipulada para liquidar primeiro os bicampeões e, em seguida, os
outros países sul-americanos. O match Inglaterra x Argentina* foi um
roubo. Uruguai x Alemanha, outro escândalo.
E nem se pense que a Inglaterra baixou a vista, escarlate de
vergonha. Nada disso. Por que rubor, se ela é um grande povo e se
tem, ou teve, um grande império? Vejam o sincronismo da coisa: --
um juiz alemão deu a vitória à Inglaterra contra a Argentina, um juiz
inglês deu a vitória à Alemanha contra o Uruguai. No match
Argentina x Alemanha, foi expulso um jogador argentino. Terminado
o jogo, cinco jogadores sul-americanos tiveram que sair quase de
maca.
*Nelson refere-se aos jogos Inglaterra 1 x 0 Argentina e Alemanha 4 x 0 Uruguai pelas
quartas-de-final. Cinco dias depois da publicação dessa crônica, na finalíssima
Inglaterra x Alemanha (30/7/1966, em Londres), o jogo normal terminou 2 x 2. Na
prorrogação, o inglês Hurst chutou, a bola bateu no travessão e quicou em cima da
linha do gol alemão, sem entrar. O juiz suíço validou o gol inexistente. A Inglaterra
ainda faria outro gol (resultado final 4 x 2) e seria campeã do mundo, como previra
Nelson.
Valeu tudo contra o Brasil e, sobretudo, contra Pelé. O crioulo
foi caçado contra a Bulgária. Não pôde jogar contra a Hungria e só
voltou contra Portugal. Nova caçada. Sofreu um tiro de meta no
joelho. Verdadeira tentativa de homicídio. O juiz inglês nem piou.
Silva levou um bico nas costelas. Jairzinho foi outra vítima e assim
Paraná. O árbitro a tudo assistia com lívido descaro.
E nós? Que fizemos nós? Nada. No último jogo, o Brasil
apanhou sem revidar. Amigos, eu sei que os nossos jogadores
tiveram um preparo físico quase homicida. Antes da primeira
botinada, já o craque brasileiro estava estourado. Sei também que o
Brasil não teve, jamais, um time. A nossa equipe era o caos. Por
outro lado, faltou-nos qualquer organização de jogo, qualquer projeto
tático.
Além disso, porém, a seleção brasileira acusou um defeito
indesculpável e suicida. Como se sabe, esta Copa é uma selva de pé
na cara. E, no entanto, vejam vocês: -- o brasileiro lá apareceu com
um jogo leve, afetuoso, reverente, cerimonioso. E havia um abismo
entre os dois comportamentos: nós, fazendo um futebol diáfano,
incorpóreo, de sílfides; os europeus, como centauros truculentos,
escouceando em todas as direções.
Ainda ontem, o sr. Barbosa Lima Sobrinho escrevia um lúcido
artigo sobre a suavidade do nosso escrete. Note-se que se trata de
um acadêmico, que deve ter compromissos com as boas maneiras, a
polidez, o trato fino etc. etc. Mas ele enxergou o óbvio ululante, ou
seja: -- o futebol vive de sombrias e facinorosas paixões. Durante os
noventa minutos, são onze bárbaros contra onze bárbaros.
Claro que as palavras do sr. Barbosa Lima Sobrinho são
outras. Mas o sentido, se bem o entendi, é este. Portanto, não tem
sentido que o Brasil vá jogar contra os bárbaros europeus com
manto de arminho, sapatos de fivela ou peruca de marquês de Luís
XV. Eis a verdade: -- o que dá charme, apelo, dramatismo aos
clássicos e às peladas é o foul. A poesia do futebol está no foul. E os
jogos que fascinam o povo são os mais truculentos.
O Brasil naufragou num mar de contusões por isso mesmo: --
porque sabia apanhar e não sabia reagir. O ilustre acadêmico está
rigorosamente certo. Hoje, depois do pau que levamos, aprendemos
que o craque brasileiro tem de ser reeducado. Digo "reeducado" no
sentido de virilizar o seu jogo. Amigos, o Mário Pedrosa está fazendo
um ensaio sobre o futebol. É um pensador político, um crítico de
artes plásticas, homem de uma lucidez tremenda. Ora, o intelectual
brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar na gravata. E
o nosso Mário Pedrosa sabe disso e foi um dos sujeitos que sofreram
na carne e na alma o fracasso da seleção. Pois espero que, no seu
ensaio, inclua todo um capítulo assim titulado: -- "Da necessidade
de baixar o pau".
Dito isto, vamos escolher o meu personagem da semana. Podia
ser Paraná. Eu sei que, tecnicamente, ele deixa muito a desejar. Sei.
Mas, contra os portugueses, Paraná deu um pau firme e épico. Mas
eu prefiro Rildo. Que grande, solitária e inexpugnável figura. No meio
do jogo, era tal o seu brio que dava a sensação, por vezes, de que ia
comer e beber a bola. Foi um bárbaro jogando contra bárbaros.
Amigos, o argentino que deu no juiz alemão lavou a alma de todo um
povo. Pois o nosso Rildo, com suas rútilas botinadas, promoveu e
reabilitou o homem brasileiro.
[O Globo, 25/7/1966]
A INVISIBILIDADE DO ÓBVIO
Eu ia começar esta crônica dizendo o que mesmo? Ia dizer que
nada mais antigo do que o passado recente. Perdão. Não é bem isso.
Ah, agora me lembro. O que eu queria dizer é que ninguém enxerga o
óbvio. Poderão objetar que já escrevi isso umas duzentas vezes. Ai de
mim, ai de mim. Não sinto nenhum escrúpulo, nenhum pudor de me
repetir. Hoje, porém, tenho uma variação. Direi que o óbvio é não só
invisível, mas detestável.
A toda hora, e em toda parte, encontramos inimigos ferozes do
óbvio. Um deles é o nosso Armando Marques, o maior juiz do futebol
brasileiro. Vocês conhecem o episódio. No último Fla--Flu*, o ponta
tricolor Wílton recebeu um lançamento em profundidade. O garoto
corre mais do que um coelhinho de desenho animado. Conseguiu
bater o marcador, ultrapassá-lo em sua velocidade fulminante. Por
desgraça, o goleiro adversário saíra antes e ia agarrar a bola.
Wílton usou a mão e tirou-lhe a bola. Perfeito lance de
basquete. A falta foi de um óbvio tão ululante que Armando Marques
não viu. E o nosso extreminha pôde, com um sublime descaro, enfiar
a bola no fundo das redes. Ora, o nosso melhor árbitro ganha 12
milhões antigos. É um salário de Walther Moreira Salles. E ninguém
entendeu que, tão bem pago, Armando Marques fosse cego, surdo e
mudo para a evidência estarrecedora.
Houve quem insinuasse duas hipóteses: -- ou má-fé ou
incompetência. Nem uma coisa, nem outra. A competência ou a boa-
fé de Armando Marques está acima de qualquer dúvida ou sofisma.
*Fluminense 1 x 0 Flamengo, 13/10/1968, Estádio Mário Filho. O gol de Wílton foi
talvez o mais ululantemente ilegal da história do estádio.
Portanto, só uma coisa o justifica e absolve: -- a invisibilidade do
óbvio.
[O Globo, 26/10/1968]
UM GESTO DE AMOR
Amigos, eu considero um pobre-diabo o brasileiro que não
esteve, sábado, no Estádio Mário Filho, vendo e vivendo a festa de
Garrincha. Eu ia falar em "noite inesquecível". Mas, bolas!, há não
sei quantas "noites inesquecíveis" que não são inesquecíveis, e
repito: -- noites que o sujeito esquece meia hora depois.
O belo, o patético, o pungente na "noite de Garrincha" é que
ninguém, de fato, a esquecerá. Somos tão cegos que não enxergamos
o óbvio ululante, isto é, que ninguém faltaria, ninguém. Eu vi,
sábado, no Mário Filho, sujeitos que julgava mortos e enterrados há
trinta anos. Até grã-finos que não sabiam se a bola é redonda ou
quadrada, até as grãs-finas compareceram.
E foi quase apavorante. No dia do clássico, toda a cidade achou
que tinha de estar presente. Foi o maravilhoso encontro, não
combinado, com o Mané. Sábado, ninguém era mais importante na
cidade. Mas como dizia eu: -- somos tão cegos que só parte da
massa pôde comprar entrada; era irrisório o número de bilheterias;
milhares e milhares de pessoas tiveram que pular o muro ou
arrombar portões. E vi uma grã-fina fazer o que não fazia desde a
primeira Chupeta: -- chorar!
Vejam vocês como são as coisas. Garrincha vivia por aí, mais
abandonado, mais desprezado do que um cachorro atropelado.
Lembro-me de um sujeito que veio me soprar ao pé da orelha: -- "Vai
acabar na sarjeta!". Outro fez o vaticínio não menos feroz, segundo o
qual teria o fim do "Ébrio", de Vicente Celestino. Pode-se dizer que,
de uma maneira geral, ninguém jamais admitiu a sua ressurreição.
Cabe então a pergunta: -- se todos estavam assim pressagos, por
que ninguém ensaiava um gesto de amor? Sim: -- por que ninguém
lhe estendia a mão, por quê?
Ai de nós, ai de nós. Temos uma piedade frívola e relapsa.
Gostamos de esquecer. Eu falei em "piedade" e gostaria de notar: -- o
brasileiro esquece antes da compaixão. Mas havia, no caso, para
todos nós, um problema intolerável de consciência. Mané merecia a
nossa alegre e crudelíssima indiferença? Não e nunca. Poucos
homens serviram tanto o seu povo.
Em 58 e 62, a nossa felicidade dependeu de suas pernas
tortas. Na véspera do jogo com a Rússia, na Suécia, cruzei com um
bêbado no meio da rua. Era um crioulão plástico, lustroso,
ornamental. Bêbado de morrer, chorava, profético: -- "Vamos perder
da Rússia! Vamos perder da Rússia!". Pranteava, na véspera, o
desgosto do dia seguinte. E, pouco antes do jogo, estava eu atracado
ao rádio, na redação. Virei-me para um companheiro e perguntei-lhe:
-- "Quem ganha?". O outro respondeu, com boquinha de nojo: --
"Ganha a Rússia, porque o brasileiro não tem caráter".
Mas foi Mané que ganhou. Estreava na Copa. Quando recebeu
a bola, no primeiro minuto de jogo, driblou um russo, mais outro,
outro mais, como no soneto. Driblou as barbas de Rasputin, driblou
as cinzas do czar e, em seguida, enfiou uma bomba na trave. O
adversário se liquidou, ali, na sua primeira escapada. E, assim,
fomos até a final, com Garrincha liquidando o País de Gales, a
França, a Suécia.
Em 62, os Andes se prostraram diante do seu gênio. Pelé saiu
no segundo jogo e não voltou mais. Garrincha ganhou sozinho o
bicampeonato. E, súbito, aquele rapaz da Raiz da Serra compensou-
nos de todas as nossas humilhações pessoais e coletivas. Vocês
sabem que, do nosso lábio, sempre pendeu a baba elástica e bovina
da humildade. Em 58, ou 62, o mais indigente dos brasileiros pôde
tecer a sua fantasia de onipotência.
E, por tudo isso, as multidões, sem que ninguém pedisse, e
sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os portões. E
ofereceram a Mané Garrincha uma festa de amor, como não houve
igual, nunca, assim na terra como no céu.
[O Globo, 2/12/1968]
"BEAU" YUSTRICH "GESTE"
Amigos, não sei se vocês leram o romance Beau Geste, ou
viram o filme Beau Geste. Se não leram, nem viram, vamos lá. Não
vou contar a história toda. O que interessa, para efeito desta crônica,
é apenas um episódio. Imaginem vocês um deserto total. E lá,
debaixo de um sol horrendo, ou varrido por tempestades de areia,
erguia-se um forte.
E o forte foi cercado por bandidos montados. Ah, nós só
conhecemos em matéria de bandido os assaltantes de chauffeurs.
São realmente temíveis. Mas não se comparam aos assassinos do
deserto. Estes não respeitam nem poste. Amam o sangue alheio.
Submetidos a um sítio implacável, os soldados do forte foram
morrendo, um a um.
Houve um momento em que só restaram dois sobreviventes: --
o capitão e o leitor. Com a guarnição exterminada, que fariam um
mísero capitão e o simples leitor? O leitor, como se sabe, é um
inimigo pessoal do risco. E o capitão teria que suportar sozinho os
azares da guerra. Entregar-se era impossível ou, por outra, inútil. Os
árabes o matariam até o último vestígio.
E eis que de repente ocorre ao capitão uma idéia genial. Ele vai
apanhando os defuntos um por um, e os distribui pelas seteiras. Em
seguida, sai atirando por detrás de cada morto. Ao longe, os sitiantes
têm a sensação de que a guarnição continua maravilhosamente
intacta. Se todos atiravam, ninguém estava ferido, agonizante ou
defunto.
Os bandidos pensavam: -- "Não é possível! Não é possível!".
Mas as balas continuavam a chover sobre eles. E, por fim, tomados
de um pavor fatal, saíram correndo e, segundo consta, estão
correndo até hoje. Eis o que eu queria dizer: -- o bom comandante é
autor dos mais cínicos e deslavados milagres.
Contei a história acima pensando na vitória de anteontem*, no
Estádio Magalhães Pinto. Os mineiros venceram em condições
admiráveis. Começaram perdendo por 2 x 0. Quando se temia uma
goleada, eis que o Atlético passou a uma reação maravilhosa. Sua
equipe parecia morta e enterrada para o triunfo. E súbito, com os
brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali, seus homens
despertaram da falsa morte. Foi um espetáculo empolgante de
paixão.
Mas eu pergunto: -- quem foi, acima de todos e de tudo, o
autor do milagre? Eis o seu nome: -- Yustrich. Temos a mania de
dizer que técnico não ganha jogo. Bem sei que ele não dá uma única
e escassa botinada. E nem enfia os gols da vitória. Mas, sem
aparecer, ele pode estar por trás de cada botinada, dispondo. E o
nosso Yustrich é do tipo guerreiro do capitão de Beau Geste.
No romance, o militar punha os defuntos para dar tiros em
todas as direções, como um Tom Mix. E Yustrich segue a mesma
linha. Para ele, uma partida, e sobretudo internacional, é uma
guerra. Nenhum dos seus jogadores fica no meio de campo
bocejando ou de braços cruzados. Todos lutam e todos defendem:
um por um e todos por todos. Aí está o milagre de Yustrich. Os times
que dirige adquirem, antes de mais nada, a sede e a fome da vitória.
Dirá alguém: -- "Mas todos gostam de bicho". Há porém uma
maneira mais ativa, mais viril, mais épica de gostar de bicho. Uns
preferem o bicho sem esforço, sem sacrifício, sem risco.
Todavia, os comandados de Yustrich pensam na vitória antes
* Brasil (representado pelo Atlético Mineiro) 3 x 2 Iugoslávia, 19/12/1968, no
Mineirão. Yustrich, conhecido como "O Homem Mau", foi um discutido treinador dos
anos 50 e 60.
do bicho e, repito, pensam na vitória pela vitória. Só depois é que
vem a idéia do bicho. Vencemos a Iugoslávia graças sobretudo a
Yustrich, o capitão de Beau Geste.
[O Globo, 21/12/1968]
UM ESCRETE DE FERAS
De vez em quando, alguém me pergunta: -- "Existe mesmo a
grã-fina das narinas de cadáver?". E eu, então, tenho que repisar a
velha história. Para situá-la no tempo e no espaço, explico que foi há
quatro ou cinco meses, no Estádio Mário Filho. Era um jogo do
Botafogo com... Mas não importa o adversário.
Ia eu com o Marcello Soares de Moura. Nada como uma carona
para aproximar os homens. E o Marcello sempre me leva para o
futebol no seu Volks, cor de vinho tinto. Súbito, eu a vejo no Estádio
Mário Filho. Sem ser o Dedo de Deus, é altíssima. Anda com o perfil
alto das sonâmbulas. Baixo a voz para o Marcello: -- "Aquela tem
narinas de cadáver". O amigo olha e confirma. E era grã-fina.
Subimos no mesmo elevador. Os presentes, inclusive eu, não
tiravam os olhos da grã-fina. Mas coisa curiosa: -- todos olhavam,
sem saber por que olhavam. Vocês entendem? Ninguém sabia
explicar a própria curiosidade. Para mim, eram, e só podiam ser, as
narinas de cadáver. Saltamos no sexto andar do estádio. Foi aí que,
sempre ereta como as sonâmbulas, vira-se para o marido: --
"Fulano". Usou um diminutivo qualquer, que não me lembro, e fez a
pergunta: -- "Quem é a bola?".
Nem eu, nem o Marcello rimos porque as narinas de cadáver
exerciam sobre nós o que os criminologistas chamam de "coação
irresistível". Estávamos fisicamente acuados. Mas ficou no ar a
pergunta em flor: -- "Quem é a bola?". Lembrei-me das narinas de
cadáver porque, em recentíssima pesquisa, o IBOPE apurou o
seguinte: -- 50% dos meus leitores são leitoras. Esse público
feminino é, a um só tempo, doce e terrível.
Faço a mim mesmo a pergunta: -- por que tenho, entre os
meus leitores, tantas leitoras? Será porque trato bem a mulher,
qualquer mulher? Realmente, acho a mulher menos comprometida.
Não, não é isso o que eu queria dizer. Queria dizer "menos
corrompida". Sim, ela se corrompe menos do que o homem. Na mais
degradada das mulheres sobrevive algo de intacto, intangível, eterno.
Esse mínimo de inocência sempre a salva. E a simpatia que aqui
confesso, mais que um sentimento secundário e superficial, é uma
irradiação de profundezas.
Estou dizendo tudo isso porque o meu assunto de hoje é
supostamente antifeminino. Simplesmente, vou escrever sobre
futebol. Entre as minhas leitoras, muitas jamais entraram no
Estádio Mário Filho; e suspiram: -- "Eu não gosto de futebol". Outras
poderiam perguntar, como a grã-fina das narinas de cadáver: --
"Quem é a bola?". Todavia, há um momento em que todos entendem
de futebol e gostam de futebol. É quando está em causa o destino do
escrete. Na hora de seleção, até a grã-fina das narinas de cadáver
adquire uma súbita clarividência.
Podemos dividir os nossos assuntos em "interessantes" e
"vitais". Um dos assuntos "vitais" do Brasil é a seleção. E,
justamente, já se pode falar numa "crise do escrete". Felizmente, é
uma crise gráfica, uma crise impressa, uma crise de colunistas,
locutores e manchetes. Ah, o futebol dinamiza uma tal massa de
interesses, negócios, egoísmos, vaidades. Estranho mundo, em que
não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas
víboras inumeráveis.
Tudo começou quando João Havelange teve a grande coragem
de escolher o João Saldanha para treinador da seleção. Pela primeira
vez, o escrete passava a ser um problema estritamente técnico e
nada político. O presidente da CBD não quis agradar a A ou B, mas
juntar os melhores. Já sabemos que a competência é amargamente
antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito: -- a competência
tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes.
Eles ficam sem ter o que fazer e o que dizer. Vagam pelas esquinas e
pelos botecos, sem função e sem destino.
O excelente Geraldo Bretas, de São Paulo, passou a pregar
uma guerra de secessão entre o futebol carioca e o paulista. Disse,
perante as câmeras e microfones da TV Globo: -- "São Paulo deve
negar seus jogadores". Bem se vê que o nosso Bretas não pensava
nem no Brasil, nem em São Paulo. Ou por outra: -- pensava em São
Paulo Machado de Carvalho. Mas o agitado confrade não é um caso
único. Há vários Bretas, inclusive cariocas. Mas o Bretas tem, na
pior das hipóteses, a virtude da nitidez. Diz o que tem de dizer,
escreve o que tem de escrever. Não guarda bobagens para o dia
seguinte.
Todavia, o João Havelange veio a descobrir que o pior Bretas é
o falso amigo, de falsa solidariedade. Mas a conspiração contra a
competência evoluía em silêncio. E os Bretas confessos ou
inconfessos, introspectivos ou ululantes, estavam apenas esperando
um pretexto explosivo. Esse pretexto veio de um foul no recente
Brasil x Peru*. Gérson levou uma cotovelada que foi uma nítida
agressão. Pouco depois, revidava com um foul. Ora, o foul é nosso
velho conhecido. Oitenta milhões de brasileiros são íntimos do foul.
Quando Didi quebrou a perna de Mendonça e esperou seis anos para
ir à forra com Pavão -- não se gastou tanto papel e tinta, nem houve
nenhum berro gráfico. Mendonça morreu para o futebol, azar o dele.
Os bons rapazes da imprensa não viram no fato nada de épico ou de
sublime.
Mas eu explico: -- naquela ocasião, não havia interesses
criados e frustrados. A fratura de Mendonça só interessou mesmo à
vítima e familiares. A de Pavão, idem. Agora, não. Agora havia uma
*Brasil 3 x 2 Peru, 9/4/1969, no Estádio Mário Filho.
"crise" latente que o foul de Gérson detonou. Vocês sabem o que
aconteceu depois. Um outro peruano deu um pontapé no brasileiro.
Este revidou. O juiz expulsa os dois. Minutos depois, com o jogo
ainda interrompido, um peruano, lá no meio do campo, agride um
brasileiro, que nada fez, nem queria fazer. Vejamos: -- como devia
portar-se o nosso patrício?
Como 50% dos meus leitores são leitoras, é possível que a grã-
fina das narinas de cadáver esteja me lendo. Ela não sabe ainda
quem é a bola. Mesmo assim, faço-lhe a pergunta: -- "O brasileiro
deve aceitar, em sua própria terra, a bolacha de um peruano?". Boa
parte da crônica acha que sim. Considera um "espetáculo
degradante" o uso que fizemos de uma legítima defesa. Houve o
sururu, e daí? Na Inglaterra é mil vezes pior. Lá, brigam os 22
jogadores, as duas torcidas, o juiz, os bandeirinhas e gandulas.
Depois, vai todo mundo para a estação quebrar locomotivas. E é um
povo gigantesco, que salvou o mundo. Se, em Dunquerque, a
Inglaterra tivesse capitulado, os nazistas fariam provas hípicas
montando brasileiros.
Mas a bordoada, no caso, é o que há de mais intranscendente.
O foul de Gérson não espantaria ninguém. O que se quer derrubar é
o João Saldanha, ainda que, para tanto, seja preciso derrubar o
escrete. Tudo serve de pretexto. O nosso João, num dos seus
arroubos de Tartarin, disse que seu ideal era um "escrete de feras".
Na pior das hipóteses, fez uma metáfora. Imaginem que os interesses
contrariados estão uivando até contra a metáfora.
Eis o que eu queria dizer à Guanabara, a São Paulo, Rio
Grande, Alagoas, Pernambuco e a todo o Brasil: -- o João está
maravilhosamente certo. O "escrete de feras" é uma velha utopia de
todos os brasileiros, inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. A
humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue. Todo
escrete tem a sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado e
chamava-se Obdulio Varela. O escrete do João terá onze Obdulios.
Imaginem vocês que, ontem, recebo um interurbano de São
Paulo. Era um leitor paulista, indignado. Com um horror
indescritível, vira locutores bandeirantes torcendo contra o escrete
nacional. No fim, berravam: -- "Vitória imerecida! Vitória imerecida!".
Não eram paulistas, não eram brasileiros, não eram nada: -- eram
súbitos índios peruanos. E pedia o leitor que eu protestasse, em
nome de São Paulo, junto aos meus colegas de lá. Amigos, não sei se
vocês conhecem a história do português que era credor de um circo.
O circo faliu e o dono, como pagamento, deu-lhe o mais bonito leão
da casa. E sai o português com o leão. Mas achando a juba do bicho
muito grande, mandou passar-lhe a máquina zero. Imediatamente, o
leão começou a ser olhado como um cachorro amarelo. No dia
seguinte, em vez de rugir, latia. Quero concluir dizendo: -- no escrete
do João, ninguém vai ser cachorro amarelo.
[O Globo, 14/4/1969]
CHEGA DE HUMILDADE
Amigos, a humildade acaba aqui. Desde ontem o Fluminense é
o campeão da cidade. No maior Fla--Flu* de todos os tempos, o
tricolor conquistou a sua mais bela vitória. E foi também o grande
dia do Estádio Mário Filho. A massa "pó-de-arroz" teve o sentimento
do triunfo. Aconteceu, então, o seguinte: -- vivos e mortos subiram
as rampas. Os vivos saíram de suas casas e os mortos de suas
tumbas. E, diante da platéia colossal, Fluminense e Flamengo
fizeram uma dessas partidas imortais.
Daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: --
"Aquele Fla--Flu!". Ah, quem não esteve ontem no Estádio Mário
Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfeita,
irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Ninguém
conquista o título num único dia, numa única tarde. Não. Um título
é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um campeonato inteiro.
Acreditem: -- o Fluminense começou a ser campeão muito
antes. Sim, quando saiu do caos para a liderança. "Do caos para a
liderança", repito, foi a nossa viagem maravilhosa. Lembro-me do
primeiro domingo em que ficamos sozinhos na ponta. As esquinas e
os botecos faziam a piada cruel: -- "Líder por uma semana". Daí para
a frente, o Fluminense era sempre o líder por uma semana.
Olhem para trás. Da rodada inaugural até ontem, não houve
time mais regular, mais constante, de uma batida mais harmoniosa.
Mas foi engraçado: -- por muito tempo, ninguém acreditou no
Fluminense, ninguém. Um dia, Flávio veio de São Paulo. Era o
*Fluminense 3 x 2 Flamengo, 15/5/1969, no Estádio Mário Filho. Domingues, goleiro
do Flamengo, foi expulso aos vinte minutos do segundo tempo com o jogo em 2 x 2.
ponta-de-lança mais esperado que um Moisés. Queríamos um
goleador. E nunca mais se interrompeu a ascensão para o título.
O curioso é que, há muito tempo, aqui mesmo desta coluna,
fez-se o vaticínio de que o campeonato teria a sua decisão num Fla--
Flu. Foram autores de tal profecia, primeiro, o Celso Bulhões da
Fonseca; em seguida, o Carlinhos Niemeyer, um e outro rubro-
negros. O que ambos não sabiam é que já estava escrito há 6 mil
anos que o campeão seria o Fluminense. E vou citar um outro
oráculo: o Haroldo Barbosa. Quando o tricolor parecia uma piada, o
bom Haroldo piscou o olho para o Marcello Soares de Moura: --
"Este é o ano do Fluminense!". E do seu olhar vazava luz.
E mais: -- na sexta-feira, o presidente do Fluminense,
Francisco Lapport, convidou para um almoço, em sua residência, a
mim, ao Marcello Soares de Moura e ao Carlinhos Nasser. Ainda na
mesa, e antes do cafezinho, baixou-nos o sentimento profético do
título. Amigos, o que se viu ontem no Estádio Mário Filho foi
espantoso. Primeiro, a tempestade de bandeiras, de pó-de-arroz, os
pombos tricolores e rubro-negros.
E que formidável partida! Houve, durante noventa minutos, um
suspense mortal. O Fluminense fez o primeiro gol e o Flamengo
empatou. O Fluminense fez o segundo e o Flamengo mais uma vez
empata. Duzentas mil pessoas atônitas morriam nas arquibancadas,
gerais e cadeiras. E foi preciso que Flávio, o goleador do Fluminense,
o goleador do campeonato, marcasse aquele que seria o gol da
vitória, da doce e santa vitória. E o rubro-negro não empatou mais,
nunca mais. Era a vitória, era o título.
Agora a pergunta: -- e o personagem da semana? Podia ser
Cláudio, que fez uma exibição magistral e, inclusive, um gol. Podia
ser Denílson, que volta a ser o "Rei Zulu" e um dos maiores jogadores
brasileiros de defesa. Penso também em Galhardo, que, a princípio
nervosíssimo, teve intervenções sensacionais. Podia ser também Telê,
que, sóbrio, modesto, trouxe a equipe do caos para o título. Mas
entendo que desta vez o personagem deve ser o time. Do goleiro ao
ponta-esquerda. Todos, todos mostraram uma alma, uma paixão, um
ímpeto inexcedíveis.
Pelo amor de Deus, não me venham dizer que, no segundo
tempo, o Flamengo jogou com dez. O rubro-negro cresceu com a
desvantagem numérica, lançou-se todo para a frente. Eram dez
fanáticos dispostos a vencer ou perecer. O Flamengo teve ontem um
dos grandes momentos de sua história. Mas, dizia eu no começo que
a nossa humildade pára aqui. Passamos toda a jornada com um
passarinho em cada ombro e as duras e feias sandálias nos pés. Mas
o Fluminense é o campeão. Erguendo-me das cinzas da humildade,
anuncio: -- "Vamos tratar do bi".
[O Globo, 16/6/1969]
À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR
Se vocês querem conhecer um povo, examinem o seu
comportamento na vitória e na derrota. Há poucos dias, o Brasil
derrotou a Inglaterra no Estádio Mário Filho*. Conviria comparar os
dois comportamentos: o do Brasil vencedor e o da Inglaterra vencida.
Comecemos por nós. Quinta-feira, o Estádio Mário Filho estava
abarrotado. Com algum exagero, diria eu que havia gente pendurada
até no lustre. Por conta do jogo, a cidade suspendeu todos os
pecados. Ninguém matou, nem roubou, nem traiu. Que eu saiba, não
houve um único e escasso assalto. Todas as classes, profissões,
ideologias, raças e idades juntaram-se no ex-Maracanã.
Houve o jogo e vencemos. A Inglaterra é campeã do mundo e
perdeu. Bastaram dois minutos do verdadeiro futebol brasileiro. Em
120 segundos, liquidamos o inimigo. Vejam vocês: -- a Inglaterra
fazia a pose de melhor futebol do mundo. Os nossos jornais ou
afirmavam ou, na pior das hipóteses, imaginavam que o futebol
inglês era, sim, o melhor do mundo. Por um funesto lapso, o
brasileiro já não se lembrava de que somos os bicampeões.
No vídeo, não havia a menor coincidência entre o que o locutor
dizia e o que a imagem mostrava. Por exemplo: -- Tostão foi, durante
a partida, um estilista da cabeça aos sapatos. Seus passes saíam
límpidos, exatos, macios. Deu um banho de bola nos ingleses. E a
maioria dos espíqueres exigia, aos brados, a sua substituição. O
rádio e a TV não faziam outra coisa senão soluçar elogios aos
ingleses. Os visitantes tinham todos os méritos e os brasileiros todos
*Brasil 2 x 1 Inglaterra, 12/6/1969, no Estádio Mário Filho.
os defeitos.
E, então, comecei a perceber que profissionais, torcedores e
simples curiosos estavam ali por diferentes motivos. Uns queriam ver
a caveira de João Saldanha; outros, a caveira do Brasil; e ainda
outros, as duas caveiras: -- do Brasil e do Saldanha. Houve um
momento em que me virei para o Marcello Soares de Moura e
cochichei-lhe: -- "Se o Brasil perder, vão enforcar o Saldanha como
um ladrão de cavalos". O leitor há de perguntar: -- "O Brasil é tão
impopular no Brasil?". Realmente, o Brasil é muito impopular no
Brasil.
Dirão vocês que, nas arquibancadas e gerais, o povo quis
ajudar o escrete. O diabo é que o povo vaia sem querer, vaia
automaticamente. Sim, o povo morreria de tédio e frustração se não
pudesse vaiar qualquer coisa, inclusive o minuto de silêncio. E
portanto o povo, a um só tempo bom e crudelíssimo, ora vaiava, ora
aplaudia. Mas eu falo dos que, nas perpétuas, tribunas e cativas,
torciam, com o mais límpido, translúcido despudor, pelo inimigo.
Falei com vários e os sujeitos estrebuchavam de devoção: -- "Como
jogam! Como jogam!". Meu Deus, é um futebolzinho bem aplicado e
laborioso o dos ingleses, de uma disciplina tática feroz e uma base
física medonha. Só.
Terminou o primeiro tempo com o marcador de 1 x 0 a favor da
Inglaterra. O Brasil dera-se ao luxo de perder um pênalti. Na fila do
café, um sujeito me agarra e diz: "No segundo tempo a Inglaterra vai
melhorar e o Brasil vai abrir o bico". Entendi o raciocínio do fulano:
como há por aqui o Nordeste, o Amazonas, a mortalidade infantil,
teríamos mais dez minutos de fôlego, se tanto.
Mas aconteceu exatamente o inverso: a Inglaterra abriu o bico
e o Brasil melhorou. Sim, no segundo tempo a Inglaterra não
arriscou um mísero ataque. Agarrou-se a uma retranca ainda mais
radical que a do primeiro tempo para salvar o 1 x 0. Dois ou três
idiotas da objetividade começaram a achar que até a saúde de vaca
premiada era um mito insustentável. Os nossos bons adversários
não tinham pernas. E a maioria dos locutores, principalmente os
paulistas, continuava a exigir a retirada de Tostão. E, no momento
em que mais se exasperavam contra o maravilhoso jogador, Tostão é
derrubado, deita-se na grama e faz o gol!
Foi um assombro. Em pé, Tostão já é pequeno, pequeno e
cabeçudo como um anão de Velasquez. Imaginem agora deitado. Os
ingleses ficaram indignados e explico: -- um gol como o de Tostão
desafia toda uma complexa e astuta experiência imperial. Um minuto
depois, ou dois minutos depois, Tostão dá três ou quatro cortes
luminosíssimos e entrega a Jairzinho. Este põe lá dentro. Naquele
momento ruía toda a pose inglesa. Era a vitória e pergunto: -- como
reagimos diante da vitória? Claro que o homem da arquibancada
subiu pelas paredes como uma lagartixa profissional.
Mas pergunto: -- e os outros? E os outros? A imprensa, o que
fez a imprensa? E o rádio? E a TV? Deviam estar virando
cambalhotas elásticas, acrobáticas. A Inglaterra pode não ter futebol,
mas tem o título. É campeã do mundo. Portanto, vencemos o título.
Os grandes jornais não concederam ao feito brasileiro uma manchete
de primeira página. O mais dramático é que quase toda a imprensa,
rádio e TV trataram de amesquinhar, humilhar, aviltar a vitória. Em
São Paulo as Folhas acharam os ingleses "os melhores". No Rio, a
mesma coisa. No subdesenvolvido, a imparcialidade não é uma
posição crítica, mas uma sofisticação insuportável. Fingindo-se de
justa, quase toda a crônica falada e escrita falsificou o jogo, isto é,
descreveu um jogo que não houve.
Vejam agora o comportamento dos ingleses. Ninguém faz um
império sem um implacável cinismo. E os nossos adversários
portaram-se com um admirável descaro. Vocês viram o que houve no
Estádio Mário Filho. A Inglaterra foi um Bonsucesso. Dirão que estou
fazendo um exagero caricatural. Mas, se o Bonsucesso tivesse
assassinado a pauladas Maria Stuart, se jogasse à sombra de lord
Nelson, lady Hamilton e Dunquerque, e se morasse no palácio de
Buckingham -- o Bonsucesso faria mais que os ingleses. Batidos em
dois minutos, submetidos a um olé inédito e ignominioso, faltou aos
nossos adversários a nobilíssima humildade da autocrítica. O técnico
e os jogadores trataram a derrota como se vitória fosse; esvaziaram a
humilhação de todo o dramatismo. Os brasileiros não são de nada.
Tostão fez aquele gol espantoso. Deitado, enfiou a bola nas redes.
Diante de tamanho feito, os ingleses deviam admitir, de vista baixa:
-- "Aprendemos mais esta". Nada disso e pelo contrário: acharam
absurdo, indesculpável, que um jogador deitado fizesse um gol. Com
o cinismo de grande povo, o inglês inverte magicamente tudo em seu
favor. Ao passo que o brasileiro, subdesenvolvido, inverte tudo em
seu prejuízo.
Felizmente houve o olé. Foi talvez o momento mais alto do
futebol brasileiro. A parte da crônica mais subdesenvolvida condenou
o olé como antiesportivo e desrespeitoso. E outros pretendem que foi
um recurso tático e, portanto, nada ofensivo: apenas queríamos
ganhar tempo e nunca desfeitear o adversário. É inútil mentir.
Vamos retirar do olé os bons sentimentos, que não existiram. Houve,
sim, uma crueldade jucunda. Os ingleses, batidos e lisamente
batidos, tratam de aviltar o nosso triunfo. Dizem que Pelé foi feito
pela publicidade, como um refrigerante.
Eis o que eu queria observar: fez bem o escrete brasileiro em
tirar sua bela vingança. Os ingleses é que, sem pernas, fisicamente
gastos, teriam de fazer cera. Basta lembrar que, para coroamento do
olé, quase saiu o terceiro gol, lindo, lindo, do crioulo. Se Pelé tivesse
estourado as redes inglesas, havíamos de guardar seu gol numa
caixinha de veludo. Nunca se viu, em tempo nenhum, em idioma
nenhum, tão formidável explosão lírica e maligna. A seleção campeã
do mundo foi posta na roda. Durante três, ou quatro, ou cinco
minutos, o adversário correu em vão atrás da bola. E os craques
brasileiros trocavam passes irretocáveis. Ninguém descreverá jamais
a alegria popular. O berro colossal inundou a cidade: "Olé! Olé! Olé!".
Saldanha mandava parar. Não queria que o inimigo crescesse na
humilhação. Mas a loucura instalara-se no Estádio Mário Filho.
Eram 80, 100 mil pessoas ébrias de olé. E, súbito, depois da
crudelíssima exibição, Gérson estica uma bola comprida para Pelé. O
crioulão dispara e quase, quase entra com bola e tudo. Depois do
jogo, a multidão saiu em plena embriaguez. Muitos dias já se
passaram. E ainda sentimos a ressaca triunfal do olé.
[O Globo, 17/6/1969]
"JOÃO SEM MEDO"
Amigos, não acreditem, pelo amor de Deus, que as qualidades
influem no amor. Influem pouquíssimo ou nada. Nunca me esqueço
de um vizinho que tive na minha infância profunda. Era um santo da
cabeça aos sapatos ou, melhor dizendo, da cabeça às sandálias. Do
berço ao túmulo, não praticou uma má ação. Era todo amor, todo
bondade. E só me admira que não andasse com um passarinho em
cada ombro.
Pois bem: -- um dia, casou-se. Para usar uma velha imagem
minha, direi que entrou por um cano deslumbrante. Já os
conhecidos diziam-lhe: -- "Cuidado, que um dia tua mulher te dá
bola de cachorro". E, certa vez, na presença de visitas, ela o
destratou de alto a baixo: -- "Eu queria um marido, não um santo".
E ainda completou: -- "Tenho nojo de tua bondade". Em outra
ocasião, a víbora explodiu: -- "Arranja um defeito. Ou arranjas um
defeito ou me desquite". Não foi possível. A perfeição do infeliz
aumentava de quinze em quinze minutos.
Até que se separaram. E quando um inocente do Leblon
perguntou à víbora se ele a maltratava, ela urrou: -- "Aquela besta é
um santo!". Por aí se vê, a virtude exagerada, em vez de favorecer o
amor, pode liquidá-lo. Estou farto de ver sujeitos que são amados
pelos seus defeitos.
Por exemplo: -- o meu caro João Saldanha. Tenho-lhe um afeto
de irmão. Quebrei minhas lanças para que a CBD O escolhesse. João
Havelange e Antônio do Passo tiveram um momento de lucidez ou
mesmo de gênio, um momento digno de um Disraeli, e o chamaram.
Ao ter a notícia, berrei: -- "É o técnico ideal!". Um amigo meu, bem
pensante insuportável, veio me perguntar: -- "Você acha que o João
tem as qualidades necessárias?". Respondi: -- "Não sei se tem as
qualidades. Mas afirmo que tem os defeitos necessários". E,
realmente, o querido Saldanha possui defeitos luminosíssimos.
Por exemplo: -- é um furioso. Não acendam um fósforo perto
dele que o João explode. E aí está o primeiro e maravilhoso defeito:
-- uma Copa do Mundo é uma selva de gângsteres. Dirão que é
exagero. Exagero, uma ova. Perdão. Exagero, vírgula. Tudo é possível
na Jules Rimet, menos uma boa ação. Portanto, se o João é um
Tartarin ou, melhor dizendo, se cospe mais fogo do que o dragão de
são Jorge, melhor para o Brasil. O técnico não precisa apenas
entender de bola. Antes de mais nada, precisa ser um guerreiro.
Outro defeito: -- ele fará qualquer negócio para o Brasil ser
campeão do mundo e voltar com o caneco de ouro. Dirão vocês: --
"Mas é feio!". Ora, ora. Desde quando o bonito ganhou a Copa? De
mais a mais, só os subdesenvolvidos têm escrúpulos. O inglês é um
grande povo. Na guerra, salvou o mundo com a sua resistência. Mas
em 66 a Inglaterra foi de um descaro empolgante. Manipulou juizes,
baixou o pau, fez horrores e ganhou. Portanto, com as suas
qualidades o inglês salvou o mundo; com os seus defeitos, ganhou a
taça.
Mais outro defeito do João: -- doutrinou o escrete para não
levar desaforo para casa. Os lorpas, os pascácios, os bovinos hão de
perguntar: -- "E a esportividade?". Respondo que, na Copa, a
esportividade é uma piada de necrotério. Dirão que em 58 e 62 fomos
bonzinhos. Mas os demais concorrentes fizeram o diabo. E nós fomos
bonzinhos graças ao nosso bom subdesenvolvimento.
Mais um defeito do Saldanha: -- a dionisíaca e, ao mesmo
tempo, santa molecagem carioca. Foi para a Europa estudar os
adversários. Mas lá não perdeu tempo. Pôs a boca no mundo: -- "O
futebol europeu é uma carnificina!". Disse, ou por outra, berrou isso
em todos os idiomas. Hoje, até os esquimós sabem que, na Europa,
os jogadores bebem o sangue do adversário como se groselha fosse.
Ora, o que o Saldanha está fazendo, de país em país, é um
terrorismo bárbaro. Está coagindo os europeus, e todos os
concorrentes. Se há um foul modesto ele espalha aos quatro ventos:
-- "Assassinato! Assassinato!". Já os juizes de 70 estão acuados. Não
queiram saber o que o João não fará no próximo Mundial.
Ele fez a advertência mundial: -- "Meu jogador não dará o
primeiro tiro. Mas, se começarem, nós vamos acabar com a guerra".
E os europeus, uns latagões, com uma saúde de vaca premiada, já
tremem diante do João e já começam a sentir um prévio e
insuportável sentimento de culpa. Creiam que, com os defeitos de
"João Sem Medo", o Brasil ganhará a Copa.
[O Globo, 6/11/1969]
A BARRIGA INSUBMERSÍVEL
Amigos, vocês conhecem, decerto, o maior feito de Mao Tsé-
tung, nas suas últimas 25 encarnações. Nunca se viu nada parecido.
Mas vamos aos fatos. Um dia, o grande homem mandou ver a relação
de todos os recordes mundiais de natação, passados, presentes e
futuros. Viu os tempos e até achou: -- "Esses caras são umas barcas
da Cantareira".
E resolveu mostrar que, além do mais, é um gênio natatório.
Chamou a imprensa, o rádio e a televisão e caiu n'água. Primeiro,
subiu num trampolim. Queria começar com um salto ornamental.
Atirou-se lá de cima e caiu sentado como um aqualouco. Oitocentos
milhões deram urros de admiração. Ao contrário dos demais
recordistas da especialidade, em vez de mergulhar de cabeça, o que
seria uma trivialidade, o líder genial mergulhava sentado.
Logo se viu que tudo podia acontecer a Mao Tsé-tung, menos
morrer afogado. Graças a sua barriga insubmersível (e mais
insubmersível que o Titanic e o Bismarck), ele poderia, se o quisesse,
boiar eternamente. Toda a imprensa local e estrangeira estava de
cronômetro na mão. Logo se viu que seu tempo seria fantástico. Ele
não usou os estilos convencionais, como os outros nadadores.
Enquanto os estilistas dos outros povos usam nado livre, de costas
ou de peito, ele preferiu uma forma que só as crianças usam: --
cachorrinho. Fez dezesseis longos e dilatados quilômetros, nadando
cachorrinho. No fim, verificou-se que superara todas as velocidades
passadas, presentes e futuras.
Diante de um feito inédito na História e na Lenda, Mao Tsé-
tung transcendeu todos os limites humanos. Oitocentos milhões de
chineses prostraram-se diante do divino Chefe. Em seguida o
governo transformou aquele dia no maior feriado nacional do país.
Vocês entendem? O dia em que Mao Tsé-tung realizou tal prova
tornou-se uma espécie de 14 de Julho chinês. E como a China
comemora, anualmente, a proeza sobrenatural? Da seguinte
maneira: -- atirando-se n'água de sapatos, gravata e guarda-chuva.
E como muitos não sabem nadar, uns 100 mil chineses morrem,
anualmente, afogados. E morrem felizes, por se tratar de um suicídio
nacional.
Mas vejam vocês: -- um brasileiro realizou algo mais
impressionante do que o gorducho deus chinês. Refiro-me a Pelé, o
divino crioulo. Embora sem ter a barriga insubmersível de Mao, Pelé
está fazendo mil gols*. Esse milheiro é algo de irreal e deslumbrante
como As mil e uma noites. Às vezes, eu me pergunto, no meu
assombro: -- "Como é que um só sujeito pode fazer mil gols?". Como
diz a minha vizinha, gorda e patusca: -- "Mil gols não são dez, nem
quinze".
É claro que esse prodígio não podia passar em branca nuvem.
Por isso mesmo, a seção de esportes de O Globo teve a idéia
luminosíssima de celebrar os mil gols. Vai haver uma festa inédita na
história do nosso futebol. E, realmente, não há homenagem mais
merecida. Só imagino o envenenado despeito, a amarga frustração de
Mao Tsé-tung quando souber que um sujeito chamado Pelé, de um
certo país chamado Brasil, enfiou tantas bolas na caçapa. Não se
iludam: -- se o Chefe chinês tivesse tido a idéia, já teria completado
os mil gols, e muito antes de Pelé. Vamos imaginar a cena: -- o
grande homem concorrendo com Pelé. Mao, com a barriga maior que
a do Chacrinha, com os calções batendo nas canelas, chutando em
todas as direções.
*Faltando um gol para completar o milésimo de Pelé, a grande pergunta passou a ser:
onde e contra quem seria o "gol mil"?
Como se sabe, no Estado totalitário tudo é possível. E Mao Tsé-
tung, num só jogo, faria o milheiro, com um pé nas costas. Toda a
imprensa de lá, o rádio e a televisão aceitariam o deslavado milagre
como tal. Graças a Deus, nenhum puxa se lembrou de sugerir-lhe o
assombroso feito. Pelé ficará, para sempre, na História e na Lenda,
como único autor dos mil gols. Só imagino a comemoração de O
Globo. Todas as mulheres bonitas da cidade estarão presentes,
inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. Não sei que misteriosa
fascinação exerce o doce crioulão sobre as mulheres bonitas do
Brasil. Eu acho que, depois, Pelé devia fazer a volta olímpica, mas na
bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.
[O Globo, 13/11/1969]
O GOL MIL
Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois
esses 5 milhões deviam estar presentes, anteontem, no Estádio
Mário Filho para ver o milésimo gol de Pelé*. Dirão os idiotas da
objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil
pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora,
atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas.
O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que alguém,
vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol
brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas
casas e os mortos de suas tumbas. Viva a mulher bonita, que não
faltou. Só as feias não apareceram.
Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher
bonita. As mais lindas garotas estavam lá. Mas falei em festa do
futebol e, realmente, foi muito mais do que isso. Era uma festa
nacional, a festa do povo, a festa do homem.
Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-
fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não
sabendo quem é a bola. Mas o que a magnetizava era Pelé como
homem, mito e herói. Bem sabemos que futebol é um esforço
coletivo. São os times que ganham, perdem ou empatam. Mas no
caso de Pelé, foi um só. Só ele marcou os mil gols. Nunca se viu nada
parecido no mundo. É uma glória maravilhosamente individual,
maravilhosamente solitária. Some-se a isto os gols que ele deu na
bandeja, gols dos quais ele foi o co-autor, ou melhor, foi mais autor
*Santos 2 x 1 Vasco da Gama, 19/11/1969, no Estádio Mário Filho.
do que o autor. Um passe genial vale como um gol.
Muitos lamentam que tenha sido de pênalti. Meu Deus do céu,
e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa
adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. Não foi um
companheiro, mas ele próprio quem foi derrubado. Não queria
cobrar. Mas seus companheiros fizeram uma greve linda contra o
pênalti. Ninguém tocaria na bola. E, então, 100 mil pessoas, na
gigantesca cadência coral, começaram a exigir: -- "Pelé, Pelé, Pelé!".
Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de
cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: -- "Com esse eu me
casava!".
Mas vejam como o grande acontecimento tem a paisagem
própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num
galinheiro. Foi isso que eu disse, quando o Santos jogou no campo
do Esporte Clube Bahia. É óbvio que, depois do Estádio Mário Filho,
todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irremediáveis. O
Pacaembu, por exemplo, é um galinheiro. O campo do Botafogo, do
Fluminense, do Parque Antártica, e centenas, milhares de outros
campos obsoletos, são outros tantos galinheiros. É aqui e, repito, é
no Estado Mário Filho que Pelé teve os seus grandes dias e as suas
grandes noites. O próprio crioulo sabe que é muito mais amado aqui
do que em São Paulo.
Quando a bola foi colocada na marca do pênalti, criou-se um
suspense colossal no estádio. O meu colega e amigo Villas-Bôas
Corrêa, que não tem nada de passional, estava comovido da cabeça
aos sapatos. A louríssima, por mim citada, sentia-se cada vez mais
noiva de Pelé. O marido, ao lado, parecia concordar com o noivado e
dar-lhe sua aprovação entusiástica. Eu não sei como dizer. Mas
estávamos todos crispados de uma emoção, um certo tipo de emoção,
como não conhecíamos.
Ao que íamos assistir já era História e já era Lenda. Imaginem
alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou
sei lá. No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor que toda a
cidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se
plástica, elástica, vital, como a anca de cavalo. Mas havia alguém
contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável
goleiro argentino Andrada. Em qualquer hipótese, ele ia se tornar
uma figura histórica: -- defendendo ou não. E quando Pelé estourou
as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de
Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha. De
repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um
pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol.
Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil
pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta
olímpica. Pelé com a camisa do Vasco, Naquele momento éramos
todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros.
[O Globo, 21/11/1969]
GUERRA SUJA, TÃO SUJA
Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os
chacais do futebol brasileiro -- todo mundo acha que estou fazendo
uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais,
os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabeça de João
Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de
um dia para outro.
Sabem quando começaram a afiar a guilhotina para Saldanha?
No dia mesmo em que o escolheram para técnico da seleção. Não sei
se vocês se lembram. Se não se lembram, vamos lá. Uma manhã,
João Havelange e Antônio do Passo passaram na casa de João
Saldanha. Era um domingo parnasiano, com um luminosíssimo azul
de soneto. Feito o convite, o João deu a resposta fulminante: --
"Topo". Só dois dias depois e, portanto, na terça-feira, explodiu a
notícia.
E se juntaram todas as invejas, todas as frustrações, todos os
interesses contrariados. Uns disfarçavam menos, outros mais, o
ressentimento. O espantoso é que, pela primeira vez, cometia-se esta
gafe hedionda: -- a escolha de um técnico para uma função técnica.
Não fora um ato político, nem do Havelange, nem do Passo.
Dias depois, encontro-me com o Havelange no Cartum. Ou por
outra: -- o Cartum ainda não existia. Foi no Nino. Saudei-o assim: --
"Foi um lance de estadista". Diga-se de passagem que a maioria da
imprensa era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da TV.
Mas o povo estava com o João. Por onde passava, o homem das
esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffeur de
praça dizia-me, de olho rútilo: -- "Agora vai!". E repetia, com o lábio
trêmulo: -- "Agora vai!".
Mas o profissional da imprensa, do rádio, não lhe dizia "bom-
dia" sem lhe pingar veneno. Veneno da víbora que matou Cleópatra.
Assim em todo o Brasil. Há dois ou três dias, um jornal de Curitiba
abriu a manchete terrorista: -- "Preso João Saldanha". Outros
vinham me soprar, lúgubres: -- "Na primeira derrota, o João cai do
cavalo". Como se desejou essa "primeira derrota".
Alguém perguntará: -- "Por que essa gana de tantos contra um
só?". Vejamos. Primeiro, porque ele não tem medo. Nada nos
humilha mais do que a coragem alheia. Segundo, porque passou a
ser o homem mais promovido do Brasil. Ainda agora, vimos a força
do seu nome e de sua lenda. Seu incidente, em São Conrado,
coincidiu com o seqüestro do cônsul japonês. Mas o caso do João
abafou, esvaziou o do japonês. Os jornais falavam do João, e de uma
forma tão obsessiva, que parecia ele o seqüestrado, ele o raptado.
Terceiro, porque havia o terror de que voltasse, do México, com
o caneco de ouro, para sempre. Imaginem o João passeando na
avenida, e de maçã na boca, como um triunfal leitão assado. O que
se fez com Saldanha, nas eliminatórias, foi uma das páginas mais
negras do futebol brasileiro. Passaram para o povo jogos que só
existiam na imaginação dos bons colegas. O escrete estava uma
vergonha, ninguém jogava nada. Lembro-me de um locutor
vociferando: -- "Assim o Brasil não passa da estréia".
Aqui, atracado ao rádio, o povo ouvia só, em cava depressão.
Mas, quando veio o tape, foi um divertido escândalo. Os nossos
jogadores deslizavam na grama como cisnes. Ninguém precisava
correr. A seleção andava em campo para cansar o adversário. Contra
a Venezuela, a irradiação foi uma antologia de horrores. Terminou o
primeiro tempo empatado de 0 x 0.
O Brasil não fez gol na primeira fase porque, novamente, quis
exaurir o inimigo. Na etapa final, fizemos um. Um dos confrades
berrou: -- "Agora o João vai recuar Pelé para defender o escore". Meu
Deus do céu, a superioridade brasileira chegava a ser humorística.
Na sua má-fé cínica, a maioria dos confrades atribuía ao time de
Saldanha os defeitos mais horripilantes. Todavia, o video-tape, com
sua veracidade burra, serviu para desmascarar toda a fraude. Sem
recuar Pelé, ganhamos de cinco.
As hienas, os chacais, os abutres voltaram frustradíssimos.
Precisavam de uma derrota e não tinham a derrota. Mas
continuavam passando o amolador na guilhotina. Falei no jogo com a
Inglaterra. Ah, não falei do jogo com a Inglaterra. Pois bem: o escrete
do João, sem um treino, com os jogadores entregues na véspera, o
escrete, repito, venceu a Inglaterra. E não foi uma vitória como há
muitas, como há tantas. Vencemos com um ignominioso olé. Os
ingleses andaram na roda como os ursos bêbados de feira.
Portanto, só uma hiena, ou só um abutre, ou só um chacal
pode afirmar que o escrete não fez nada. Em plena fase experimental,
fez mais do que devia, mais do que podia. O olé em cima dos
campeões do mundo foi, segundo a própria imprensa inglesa, um
show maravilhoso. Mas, como não vinha a derrota inapelável,
começou o massacre. Claro que nem todos os cronistas usaram o
mesmo processo. Mas cada notícia sobre Saldanha era,
normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado
terrorismo contra o técnico. Isso, em toda a imprensa, em todo o
rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora,
minuto após minuto.
Perdi a conta das vezes em que João foi malhado como um
judas de sábado de Aleluia. E se o grande técnico dava uma bronca,
o nosso grã-finismo estrebuchava: -- "Não tem serenidade! Não tem
equilíbrio!". Claro que podíamos dizer isso, porque cada um de nós
estava fora da guerra, e abanando-se com a Revista do Rádio. Sim, é
fácil ter boas maneiras, é fácil ter equilíbrio, é fácil ter serenidade,
quando ninguém nos xinga, quando ninguém nos insulta, quando
ninguém nos massacra.
Digo "massacre" para repetir: -- nunca houve, no Brasil, um
massacre pessoal tão desumano. E o espantoso é que nós exigíamos
do "João Sem Medo" um comportamento de estátua de Abrahão
Lincoln. E como os seus brios se eriçaram mais do que as cerdas
bravas do javali -- encontraram, finalmente, o pretexto. Faltara a
derrota, que as hienas esperavam. Mas o Saldanha tinha brio.
Ótimo, ótimo. Por ser brioso, tinha que sair do escrete.
Houve um truque: -- a demissão coletiva da Comissão Técnica.
Mas o que se queria era a cabeça do João. E, para tanto, a guilhotina
vinha sendo afiada há meses. Ah, como é curioso o destino das
palavras. Imaginem vocês que, no domingo do segundo Brasil x
Argentina, conversei com João Havelange. Estávamos na tribuna de
honra do Estádio Mário Filho. O jogo ainda não começara. A dois
passos de nós, tomando um café forte, estava o presidente da
República. Havelange disse-me o que pareciam ser palavras eternas:
-- "O João vai até o fim. Não há hipótese de sua saída. E se, por
acaso, ele pedir demissão, eu o impedirei, fisicamente, de sair".
Já ensaiei uma explicação. Mas repito: -- "Por que, por quê?".
O Salim Simão explica-me que Saldanha tornara-se poderoso
demais. Ele, sozinho, com a sua figura folclórica, as suas broncas
lendárias, os seus brios flamejantes -- ele era maior do que a CBD, do
que as federações, do que as forças ostensivas ou obscuras que
manipulavam o nosso futebol. E as invejas, as vaidades, as
frustrações, os rancores -- não podiam admitir que ele fosse maior
do que uma estrutura laboriosamente criada e mantida. E ainda
seria muito maior e muito mais forte se voltasse com o caneco de
ouro. Teria então meios de transformar a nossa realidade esportiva.
Mas vejam: -- seu primeiro dever era a classificação; e ele o
cumpriu. O segundo dever era a conquista do título. Parentes,
figuras da imprensa, do rádio e da televisão se uniram para frustrá-
lo no seu maravilhoso esforço final. Exigiram que ele se deixasse
massacrar sem um gemido. Rolou a cabeça do "João Sem Medo". E,
agora, queremos mais do que nunca o caneco.
Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna
do nosso vômito.
[O Globo, 19/3/1970]
O BELO MILAGRE DAS VAIAS
O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouviram
bem, repito: -- o seu exílio era o Brasil. Os nossos jogadores são
tratados como se fossem estrangeiros. Ou pior. Porque os
estrangeiros merecem, não raro, uma polidez convencional, sim, um
mínimo de cerimônia. Vocês viram, não viram, Brasil x Inglaterra?
"Não somos os melhores", afirma um cronista machadiano. E,
não sendo os melhores, e sendo os ingleses sim, nós os derrotamos.
Como se não bastasse a vitória brasileira, ainda infligimos aos
campeões do mundo um ignominioso olé. Mas eis o que eu queria
dizer: -- no segundo tempo, um dos visitantes fez uma coisa que, em
futebol, é a vergonha inapelável e eterna: -- atrasou do meio de
campo. Ao meu lado, na tribuna de imprensa, o botafoguense
Serginho explodia em arroubos: -- "Como eles atrasam bem! Com
que tranqüilidade!".
Por aí se vê que admiramos mais os defeitos ingleses do que as
virtudes brasileiras. Conversei com um dos jogadores do escrete e ele
abriu-me a alma, de par em par. Contou-me que, jogando sob uma
cúpula de vaias, não era um brasileiro a jogar para brasileiros. Não e
nunca. Tinha a sensação de que era um brasileiro a jogar para
javanês, tirolês, congolês, tibetano, caucasiano e birmanês.
De brasileiros, a maioria dos assistentes só tinha -- o palavrão.
Era, sim, o palavrão, rugido no idioma de Camões, era o palavrão,
repito, que localizava o Morumbi no Brasil, E disse mais o pobre
craque. Como se não bastassem as vaias de boca, sofria também as
vaias impressas. Os jornais, em sua maioria, não tinham uma
palavra solidária, amiga, fraterna. O escrete era negado de alto a
baixo, isto é, a partir da manchete.
O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos
edifícios, pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania-
perseguição. Passou pelo morro da Viúva, achou que o Pão de Açúcar
tinha-lhe horror; que o Corcovado, idem. De outra vez, sentiu-se
malquerido até pelo poente do Leblon. Disse-me várias vezes,
obsessivamente, o jogador: -- "Precisamos sair daqui! Precisamos ir
embora!".
Ouvi em silêncio o craque patrício e, sem nada dizer, dei-lhe
toda a razão. Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuidade: -- "O
brasileiro não gosta do brasileiro?". Exatamente: -- o brasileiro não
gosta do brasileiro. Ou por outra: -- o subdesenvolvido não gosta do
subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque.
Ainda agora, no Morumbi, jogamos com a Bulgária*. Embora entre os
búlgaros existissem carecas, pais de família, que fez a nossa crônica?
Na hipótese de uma vitória nacional, passaram a dizer que os
adversários eram infanto-juvenis do seu país. E se, porventura,
ganhássemos de 17 x 0, diriam as manchetes: -- "Brasil ganha do
berçário búlgaro!".
Não sei se vocês se lembram de uma passagem que contei, aqui
mesmo, nesta coluna. Era o caso de um patrício meu que assim se
apresentava nas esquinas, botecos e retretas: -- "Chegou o
quadrúpede!". Fazia uma volta no local e dava outro berro: -- "Sou
um quadrúpede de 28 patas!". Era esse o seu triunfal cartão de
visitas. Ligava para a namorada e começava assim: -- "É o
quadrúpede!".
Lembrei-me desse conhecido, que assim se aviltava, ao ouvir
uma mesa-redonda numa das nossas emissoras. O assunto era o
escrete. Ora, o escrete é feito à nossa imagem. E os cronistas
*Brasil 0 x 0 Bulgária, 26/4/1970, no Morumbi. Brasil 1 x 0 Áustria, 29/4/1970, no
Estádio Mário Filho. Últimos amistosos antes do embarque para a Copa do México.
reunidos não fizeram outra coisa senão cuspir, como Narciso às
avessas, na própria imagem. Negaram a seleção, negaram o jogador,
negaram o técnico, negaram o preparador, negaram o médico,
negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: -- "E, agora, com
licença, porque vamos urrar no bosque mais próximo!".
Os brasileiros empataram com os carecas da Bulgária por um
escore que humilha os dois lados: -- 0 x 0. Mas o resultado em nada
influiu. A vaia começou antes do jogo, continuou durante o jogo e
depois do jogo. Mas se me perguntarem quem empatou com os
húngaros, eu diria: -- a antitorcida. Uma multidão que só vaia não
pode chamar-se a si mesma de torcida nem tem o direito de exigir
vitória.
O que fizeram com Paulo César é indesculpável. Ele não era
nem culpado de estar ali e, repito, estava ali porque o escalaram.
Setenta, ou oitenta, ou noventa mil sujeitos contra um só. Não se
conhece outro brasileiro tão humilhado. A vaia é um prazo. Dura um
minuto, dois, três. Vaia é esforço e não temos, como os ingleses, a
saúde e a resistência de uma vaca premiada. Pois bem. A vaia que
trucidou Paulo César durou noventa minutos.
Digo noventa minutos e já retifico: -- mais. Mais, porque
começou antes do jogo. A aluna de psicologia da PUC, que entende
nossos sentimentos, dizia-me: -- "Só o ódio sustenta uma vaia de
noventa minutos". Aí está: -- só o ódio. E seria lícito dizer-se que
Paulo César foi linchado, fisicamente linchado, por uma vaia.
Há outra observação que eu desejaria fazer. A vaia contra um
atinge e ofende os demais, inclusive os adversários. Claro, pois a vaia
não tem nome e endereço como os envelopes. Os destinatários eram
os 22 jogadores e mais os reservas, de ambos os lados. Mas volto à
mesa-redonda da TV. Houve pouquíssimas exceções; e uma delas, e a
mais veemente, a mais otimista, foi o "Marinheiro Sueco". Vibrante
de justiça e de procela, tratou de defender o maravilhoso craque do
Brasil.
Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é
que o time nacional leva um maravilhoso trunfo. No México, ele se
sentirá muito menos estrangeiro do que aqui. E estará protegido pela
distância. Acreditem que a distância será a nossa ressurreição. Se
me perguntarem o que deverá fazer a seleção para ganhar a Copa,
direi, singelamente: -- "Não nos ler". Sei que as nossas crônicas vão
aparecer, por lá, como abutres impressos. Não importa. O que
interessa é fugir da feia e cava depressão que dos nossos textos
emana.
Quando o jato subir, o escrete assumirá a sua verdadeira
dimensão. Cada cronista há de ter uma palavra final para o time
nacional. Já vimos que um dos colegas escreveu, a título de juízo
final: -- "Não somos os melhores". Esse tom de catástrofe é de quase
toda a imprensa brasileira. Mas não é, repito, o meu tom. Dirão
vocês que adoto, diante da Jules Rimet, uma posição romântica.
Nego. Justamente porque sou realista é que sinto, inevitável, fatal, a
vitória brasileira.
Os pessimistas são os alienados. Por exemplo: -- o ilustre
cronista diz que data de 66 o ocaso do nosso futebol. Quem fala
assim é, obviamente, um ressentido contra os fatos. Ele não os aceita
e parece dizer: -- "Se os fatos não confirmam o que escrevo, pior
para os fatos". Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de
objetividade, de apreço aos fatos, sabe que o futebol brasileiro é o
melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio
ululante.
Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o
caneco, porque somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de
melhores, levamos para o México as vaias ainda não cicatrizadas. De
vez em quando, eu relembro o que acontecia com o "Tigre da
Abolição". Nos comícios, José do Patrocínio começava gelado de
pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio da multidão, o
chamassem de "negro", "negro", "negro" e "negro". E a humilhação
racial o potencializava. Dizia então coisas como aquela: -- "Sou
negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha
pátria!".
Com o escrete, já começa o belo milagre das vaias. Foi milagre
o segundo tempo de Brasil x Áustria. Aquela bola que Pelé passou de
calcanhar ou o gol de Rivelino, cada jogada era um momento de
eternidade do futebol. Vou ao aeroporto dizer aos nossos jogadores:
-- "Vocês já são campeões do mundo".
[O Globo, 1/5/1970]
MOMENTOS DE ETERNIDADE
Amigos, nenhum outro escrete no mundo podia oferecer o
futebol que os nossos jogadores ofereceram ontem. Não esqueçam
que, aqui, vários cronistas fizeram verdadeiro terrorismo com o
quadro da Tcheco-Eslováquia*. O nosso adversário era fabulosíssimo,
ao passo que o nosso pobre jogo era antigo, obsoleto, como a
primeira sombrinha de Sarah Bernhardt. Promoveram os tchecos
como se fossem os fantasmas da Copa.
E que vimos nós? Um desenho, uma pintura, um tapete
bordado. Ganhamos de 4 x 1, e sem sorte nenhuma. Terminamos o
primeiro tempo empatados por 1 x 1. E o justo, o certo, o correto é
que tivéssemos chegado ao fim dos 45 minutos iniciais com dois gols
de vantagem e, portanto, 3 x 1. Mas no segundo tempo veio a
tremenda explosão. Amigos, vocês viram a TV, ouviram o rádio: -- o
Brasil deu um banho de bola num dos mais formidáveis
concorrentes da Copa. Não há nada melhor no futebol europeu do
que o time que, ontem, dobrou os joelhos diante do gênio dos nossos
craques.
Vejam como são as coisas. Os nossos jornais de ontem, em sua
maioria, não demonstraram o menor otimismo; limitaram-se a
vender depressão aos seus leitores. Apresentaram as fotografias de
58 ou de 62? Não. Estavam muito mais interessados em relembrar,
pela imagem, 54 e 50. Vários estamparam a nossa entrada em
campo contra a Hungria, na Suíça. Tomados de horror, vimos o time
nacional de cabeça baixa, o time nacional batido antes da luta.
*Brasil 4 x 1 Tcheco-Eslováquia, 3/6/1970, em Guadalajara. Primeiro jogo das
oitavas-de-final.
E a resposta foi a maravilhosa exibição do escrete. A exibição
brasileira foi trinta vezes melhor do que a finalíssima entre a
Inglaterra e a Alemanha, em 66. Naquela ocasião, os 22 homens,
segundo o figurino da pelada mais humorística, faziam o jogo de bola
pra frente e fé em Deus. E, ontem, que fazíamos nós? Que fez esse
escrete que saiu daqui vaiado e repito: -- esse escrete que se fez de
vaias? Um jogo prodigiosamente articulado, sim, harmonioso,
plástico, belo. Era uma música, meu Deus.
E, por isso, entendo que a cidade se levantasse em gigantesca
apoteose. Aquele corso dos velhos carnavais voltou. As buzinas
estavam de uma formidável histeria. Um turista que por aqui
passasse e visse 5 milhões de sujeitos urrando havia de anotar no
seu caderninho: -- "Esta cidade enlouqueceu!". E, realmente,
ficamos loucos. As pessoas se olhavam na rua e diziam umas para as
outras: -- "Somos brasileiros!". Ruiu, por terra, a sinistra impostura
do futebol europeu. Sempre disse que seus jogadores têm uma saúde
de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos
vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.
Choviam papel picado das sacadas, e listas telefônicas.
Serpentinas, confete, lança-perfume. Ou por outra: -- lança-
perfume, não. Mas confete e serpentina, sim. Todos os automóveis
incendiados de bandeiras. Mas o que eu achei mais bonito vocês não
sabem. Eis o que aconteceu: -- já que não lhe faziam a justiça, o
escrete fez justiça a si mesmo.
No México, fizemos jogadas que foram, para o futebol mundial,
momentos de eternidade. E Gérson? Quanta gente o negou? Quanta
gente disse e repetiu: -- "Não tem sangue! Não tem coragem! Não tem
sangue, não tem coragem!". O vampiro de Dusseldorf, que era
especialista em sangue, se provasse o sangue de Gérson, havia de
piscar o olho: -- "Sangue do puro, do legítimo, do escocês". E não foi
só a coragem indomável. Impôs-se como a maior figura da jornada.
Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Em momento nenhum
deixou de ser um virtuose, um estilista. E a bomba santa de Rivelino
que abriu o caminho da vitória? Quando os tchecos fizeram a falta,
90 milhões de brasileiros rezaram: -- "Rivelino, Rivelino, Rivelino!". E
ele cobrou o foul de uma maneira genialíssima. Com a violência do
tiro, a bola deixou de ser redonda, assumiu a forma do ovo e o
goleiro adversário foi dramaticamente batido.
E o gol de Pelé? Gérson enfiou aquela espantosa bola com-
prida. O sublime crioulo a matou no peito e fez uma obra-prima de
gol. Quanto ao gol de Jairzinho, abalou o campeonato do mundo.
Driblou um, mais outro, outro mais, ainda outro e enfiou no canto. E
a alma da rua voou pelos ares. Eu vi a grã-fina das narinas de
cadáver cair de joelhos, no meio da rua, e estrebuchar como uma
víbora agonizante.
[O Globo, 4/6/1970]
O GRANDE SOL DO ESCRETE
Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de
mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a
glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos.
Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado. Eu próprio,
certa vez, desprezei um homem, tive por esse homem a maior náusea
ética. Não podia vê-lo sem que minha úlcera desse pulinhos de rã.
Sem fazer segredo do meu horror, chamei-o, de público, de cadáver
moral.
Eu teria, na ocasião, dezessete anos. E o adolescente vive de
falsos horrores. Tempos depois, verifiquei que estava errado, errado
de alto a baixo. O homem que eu supunha infame era, na verdade,
uma dessas nobilíssimas figuras exemplares, um falso defunto
moral. Quase um santo.
Eis o que eu queria dizer: -- dedico esta crônica aos equívocos
que, em certos casos, inauguram a estátua e, em outros,
desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino crioulo.
Muitíssimas vezes, Pelé foi estátua e, muitíssimas vezes, foi
vaia. Eu me lembro de um jogo do escrete em que jogou mal ou,
como diz a gíria, jogou pedrinhas. E, no fim de certo tempo, explodia
a ira da multidão. No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro
da vaia. Não sei se todos se lembram de um fato muito curioso. Num
jogo Brasil x Inglaterra, aqui, no ex-Maracanã, ao ser anunciado o
nome de Julinho, todo o estádio vaiou. Mas começa o jogo. Julinho
fez uma série de jogadas perfeitas, irretocáveis. Em dez minutos, o
que era humilhação passou a ser apoteose. E assim Julinho teve a
fulminante reabilitação.
Volto a Pelé. Repito que, naquela tarde, ele foi pouquíssimo
Pelé. E, então, começou a fúria popular. A ninguém ocorria que o
supercraque não precisa jogar bem. O perna-de-pau é que tem de se
matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas
nostalgias da burrice. Em outro plano, Sartre, o grande Sartre,
andou por aqui e disse coisas de que se envergonharia Luvizaro.
Podia dizê-las, porque era Sartre. Por exemplo, afirmou o grande
homem: -- "O marxismo é inultrapassável". O já citado Luvizaro não
diria isso. Ele sabe que, daqui a quinze minutos, o marxismo pode
estar ultrapassado por coisa muito melhor. Mas o que sabe Luvizaro
Sartre pode ignorar, porque é Sartre.
E, em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo,
porque é Pelé. Se abrir a Revista do Rádio no meio do campo, estará
usando um dos privilégios do gênio. Mas a multidão não perdoa, em
Pelé, um passe errado. Se vinha o adversário e frustrava o seu drible,
Pelé era quase apedrejado como uma adúltera bíblica. Éramos, ao
todo, umas 150 mil pessoas. E dizíamos, uns aos outros, que Pelé já
não era o mesmo. Houve um, mais afoito, que declarou: -- "Pelé está
morto".
Ninguém protestou. Ou por outra, houve, sim, um protesto.
Estava lá o Manoel Duque, que reagiu e gritou: -- "Pelé continua
sendo o maior jogador do mundo". E, como um outro resmungasse, o
Duque repetia: -- "O maior jogador do mundo, em todos os tempos".
Mas, como ia dizendo: -- vaiaram Pelé os noventa minutos. Posso
dizer que influiu na vaia, além do mais, um certo cansaço, um certo
tédio do mito. A multidão precisa destruir os mitos que promove.
A partir de então, não só o homem de arquibancada, também
os entendidos, também os técnicos, também os cronistas --
começaram a meter a picareta na estátua de Pelé. Tem sido uma
alegre demolição. O crioulo passou a ser o responsável por todos os
males que afligiam a seleção. Fui a um sarau de grã-finos e lá ouvi
alguém jurar: -- "Pelé morreu para o futebol".
Chegou a correr a notícia de que seria barrado do escrete e do
Santos. Ou por outra: -- do Santos não, porque seu nome ainda é
bilheteria. Cheguei a imaginar que, humilhado, ofendido, ele próprio
saísse da seleção. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: -- "Nada
como um dia depois do outro".
Já nas eliminatórias, Pelé teve momentos de Pelé. Mas
insistíamos, obsessivamente: -- "Não é o mesmo! Não é o mesmo!".
E, para todo mundo, menos o Manoel Duque, já deixara de ser o
maior jogador do mundo. Duque vivia repetindo: -- "Mesmo jogando
a metade do que sabe, ainda é o maior". Até que chegou a primeira
partida do Brasil, na Copa, contra os tchecos. Ora, segundo todos os
críticos de futebol, a Tcheco-Eslováquia era um dos mais formidáveis
concorrentes ao título mundial. Enquanto o Brasil se preparava em
quinze dias, ela se cuidou durante quatro anos. Era assim uma
potência da Jules Rimet.
Desde os primeiros momentos sentiu-se que o Rei era um falso
defunto do futebol ou, mais do que isso, um salubérrimo defunto, a
explodir de saúde. Aliás, recuando um pouco, eu poderia falar do
jogo recente, aqui, no Mário Filho, contra a Áustria, onde Pelé foi
maravilhosamente Pelé. Mas o que importa, de momento, é a nossa
estréia de quarta-feira. Foi, em primeiro lugar, um homem isento de
idade, isento de tempo, com uma . vitalidade de dezessete anos.
Defendeu e atacou, estava em todas as posições ao mesmo tempo.
Inventou jogadas que nenhum outro jogador faria, em qualquer
tempo.
Foi no primeiro tempo? Não: -- no segundo. Exatamente, no
segundo tempo: l x l ainda no marcador. Recomeça a partida e Pelé
estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a
visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de
posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém.
De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não
sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade,
descreveu-nos o lance.
A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva
implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que
Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa distância? E o
goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve
qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em
quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Parecia uma cena dos Três
Patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as
Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os
brasileiros parados, os mexicanos parados -- viram a bola tirar o
maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se
consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de
eternidade do futebol.
Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso?
Simplesmente, ali o Rei se vingava das nossas vaias. E não só ele: --
também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as hienas da crônica
ainda uivam contra a defesa. "Há falhas, há falhas", rosnam as
hienas (nas minhas crônicas as hienas rosnam). Lendo certos
colegas, eu penso num velho episódio. Estava eu em Teresópolis,
num edifício de apartamentos. Desci com a cachorrinha. Fazia uma
diáfana manhã parnasiana, de um azul de soneto. No jardim, eu
tremia, E, de repente, lá da janela, um vizinho pôs-se a esbravejar.
Sabem por quê? Porque a cadelinha acabara de sujar o gramado. E,
então, o sujeito achou que a porcaria mínima era mais importante,
mais transcendente do que o céu, a floresta, a luz, as fontes, os
pássaros. Assim fazem os cronistas que esquecem uma exibição
deslumbrante para catar falhinhas que têm, cada uma, o tamanho
de uma pulga.
Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é
grande. Mas nós somos maiores, porque somos Brasil, imensamente
Brasil, eternamente Brasil.
[O Globo, 6/6/1970]
O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE
Não sei se repararam que os maridos não matam mais. Ou por
outra: -- só matam na primeira página de O Dia e da Luta
Democrática. E, hoje, é cada vez mais raro o homicida por amor ou o
suicida por amor. Mas o crime passional já teve a sua voga. (Aí está:
-- voga. Boa palavra. Tem som. Pretendo usá-la mais vezes.) Quando
eu era garoto, na altura aí de 1920. (Já chego ao futebol. Vocês não
perdem por esperar.) Mas em 1920 as pessoas tinham honra. E,
então, lavava-se a honra a tiros, lavava-se a honra a bengaladas.
Em 1920 ou 19. Agora me lembro: -- houve um crime muito
falado, que saiu até em jornal de modinha. Como sempre digo, todo
casal exige uma vítima, assim como exige um algoz. Para o bom
equilíbrio da casa, é preciso que a vítima aceite o seu papel e que o
algoz como tal se comporte. Era assim na casa do famoso senador
Fulano de Tal. Era uma cabeça e sua retórica tinha um nível de Rui
Barbosa, de Pedro Moacir e outros. Mas onde acabava o grande
tribuno começava o marido crudelíssimo.
Batia até na mulher. E, uma noite, houve uma cena
desagradabilíssima. O senador recebia outros senadores, com suas
senhoras. E houve um momento em que a pobre esposa disse uma
coisa qualquer, uma dessas trivialidades que não comprometem
ninguém. Foi uma frase assim: -- "Eu prefiro a homeopatia". E,
então, diante das visitas, o tribuno vira-se para a mulher: -- "Você
não sabe o que diz. Você é burra. E cala a boca!". A santa mulher
pergunta: -- "Mas eu não tenho direito de falar?". E o marido: --
"Não fala, não diz mais nada!". A outra exclamou: -- "Fulano!". Deu-
lhe o berro final: -- "Não diz mais nada ou apanha na boca!". Os
convidados já se queriam enfiar debaixo da mesa.
Aquela vítima era bonita, um pouco fanada, mas bonita. Ao
mesmo tempo, sabia que beleza é um prazo. Dizia às amigas: --
"Estou ficando velha, estou ficando velha", Até que, um dia,
apareceu-lhe um antigo namorado. Aproveitando um minuto, o ex-
namorado disse-lhe, de passagem: -- "Eu sou o mesmo". A mulher
quase desfaleceu. Sentiu-se atravessada de luz, sei lá. Mas passou.
Até que, uma manhã, por causa de um botão que faltava na camisa,
o senador disse, quase doce: -- "Vai buscar a vara de marmelo".
Recuou, lívida: -- "Não me bata, não me bata". Ele insiste, ainda
mais suave: -- "Eu disse: -- vai buscar a vara de marmelo". A mesma
cena, por outros motivos e até sem motivo, já acontecera não sei
quantas vezes. Aquela mulher, trancando os lábios, foi buscar a vara
de marmelo. Chorava. Ele apanha a vara e diz: -- "Não chora. Engole
o choro". E, de fato, apanhou sem chorar, apanhou e engoliu o
choro.
Não sei se no mesmo dia, ou no dia seguinte, ela apareceu no
escritório do antigo namorado. Começa, ofegante: -- "Você ainda me
quer?". Ele, fora de si, disse tudo: -- "Não te esqueci um minuto. Hei
de te amar sempre, sempre". E começou a chorar, o pobre-diabo. Ela
estava impassível: -- "Fulano me deu uma surra, hoje. Eu tenho
duas horas. Duas horas livres. Vem comigo". Não foram duas, foram
quatro ou cinco. Quando chegou em casa, estava o marido. Ele disse,
com um ódio sem exaltação: -- "Você foi vista, no Alto da Boa Vista,
com um homem". Pausa. Repete: -- "Pode me explicar o que estava
fazendo com um homem no Alto da Boa Vista?". Nesse momento, ela
teve um leve sorriso, de ironia quase compassiva:
-- "Só podia estar traindo você".
Desta vez não foi vara de marmelo, mas bengala. Bateu
durante uma meia hora talvez. Agora queria que a mulher chorasse,
que a mulher gritasse. Berrava: -- "Grita! Chora!". Mas não chorou,
nem gritou. E, quando ela caiu, ele ficou, por um momento, vendo
aquela mulher destruída. Agonizava. O senador acabou de matá-la a
pontapés.
Muitos anos depois, ou, para ser mais exato, em 1957, na
véspera do seu casamento, um rapaz contou à noiva a mesma
história. Ele era Otacílio e ela, Odete (nome, como se sabe, em vias
de extinção). A pequena, de uma família de nervosos, balbuciou: --
"E era teu tio?". Esse parentesco inesperado, à última hora, parecia
insinuar não sei que vaticínio. Há um silêncio. Antes de se despedir,
Otacílio disse mais: -- "Vamos casar amanhã. Anda por aí uma
pouca-vergonha como nunca vi. Mas olha: -- quero te avisar.
Comigo, não. Você é tudo para mim, sou maluco por você. Mas se me
traíres, algum dia, eu vou fazer contigo o que meu tio fez com a
mulher". Ela começa a chorar: -- "Está me ameaçando?". Quis ir
embora, mas ele a segurou: -- "Não estou ameaçando, porque você
não vai me trair. Ou vai? Se não me traíres, eu serei, disparado, o
melhor marido do mundo". Odete ainda tremia: -- "Você me dá
medo!".
Um ano antes, uma senhora tirara cartas para Otacílio. E,
entre outras, avisou: -- "Você vai ser traído. Por uma mulher.
Loura". Aquilo não saiu da cabeça do rapaz. E, por coincidência,
Odete era exatamente loura. Antes de pedir a garota em casamento,
uma outra leu sua mão e disse-lhe exatamente o contrário: -- "Não
vai ser traído por loura nenhuma. Pode se casar".
Casaram-se e, no fim de sete meses, Otacílio estava convencido
de que a segunda cigana estava certa e de que a primeira era
vigarista. Para os amigos, vivia-se gabando: -- "Lua-de-mel não
acaba". E, realmente, pareciam feitos um para o outro. Ele brincava:
-- "Não te disse que era só não me trair? Sou ou não sou o melhor
marido do mundo?". Ela respondia, num beijo: -- "Igual a você pode
haver. Melhor, duvido". Ele ria:
-- "Aproveita, aproveita".
Até que chegou 58, com o campeonato do mundo. A princípio,
Otacílio era meio pessimista. Mas ganhamos o primeiro jogo, Brasil x
Áustria, por 3 x 0. Odete pulava dentro de casa: -- "Não te disse?
Não te disse? Vamos ser campeões do mundo, meu filho!". Exausto,
emocionalmente: -- "Ainda é cedo, ainda é cedo". Empate com a
Inglaterra. Vitória deslumbrante sobre a Rússia. Desta vez Otacílio
agarrou a mulher no colo: -- "E Garrincha? Você viu Garrincha?".
Arquejava: -- "Agora, sim. Agora estou fazendo fé. Passamos pelo
susto do País de Gales. Mas que banho na França". Otacílio abria os
braços: -- "Eu não mereço tanto!". Agora, era a Suécia: -- "Será que
vai ser como 50? Será que vamos perder a última?". Odete trançava
os dedos: -- "A maior barbada!".
E, de repente, tudo mudou. Na véspera de Brasil x Suécia,
apareceu um tio velhíssimo, delegado de polícia e irmão do senador
homicida. O sobrinho o recebeu com a pergunta: "Ganhamos
amanhã?". O velho de cara amarrada queria saber onde podiam
conversar em particular. Trancaram-se no quarto dos fundos: --
"Meu sobrinho, não sou de rodeios. Tua mulher te trai. Eu disse que
tua mulher te trai". Otacílio pergunta, quase sem voz: -- "O que é
que o senhor está dizendo?". O outro continuou, implacável. Não era
um boato, um talvez, um quem sabe, um pode ser: -- "Fatos, fatos".
Tinha, por escrito, endereço, nome do outro, horário, os dias de
encontro. "Demos uma batida e estavam lá os dois. Ele é um tal de
Bulau, que vem aqui. Não vem aqui um Bulau torcer com vocês? E
não é teu amigo?''. Otacílio não dizia nada. O tio levanta e deixa um
revólver em cima da mesa: -- "Essa arma era do teu tio, o senador.
Funciona. Mata a tua mulher. E foge, livra o flagrante. Ou matas ou
te cuspo na cara". Saiu, sem se despedir. A dor que atravessava
Otacílio era a de ter sabido antes e não depois da finalíssima.
Apanhou o revólver. Aquilo deu-lhe uma náusea. E o amigo,
que não saía de lá. Pôs o revólver na gaveta. Na hora do jantar,
tomando sopa, decidiu: -- mataria no dia seguinte, depois do jogo ou
durante. Se a coisa estivesse para a Suécia, mataria durante o jogo.
Passou a noite em claro, mas curioso: -- pensava mais no título do
que no adultério.
Chega o dia seguinte. Foguetes antes da partida. Odete furiosa,
achando que o "já ganhou" dava azar. Ele não consegue pensar na
sua vergonha de marido. "Penso depois do jogo." Começou, começou.
Suécia 1 x 0. Vira-se branco para a mulher. O sentimento da derrota
deu-lhe vontade de matá-la, naquele momento. Vamos esperar mais
um pouco. O senador estava certo. E, de repente, Vavá empata.
Quando deu conta de si, estava aos beijos e abraços com a mulher.
Gemeu: -- "Vamos esperar, vamos esperar". Terceiro gol, quarto. A
cidade explodia. Lançou-se nos braços da mulher. E, súbito, puxou a
mulher pelo braço. Moravam numa dessas casas antigas do bulevar
e com essa coisa lírica, antiga, paisagística que é um galinheiro. No
quintal, tira o revólver: -- "Olha o que eu vou fazer". Abre a porta do
galinheiro e atira nas galinhas e mata, uma por uma. Atira o revólver
pelo muro da vizinha. Depois agarra a mulher e soluça: -- "Eu te
amo, eu te amo, eu te amo!".
[O Globo, 8/6/1970]
O ENTENDIDO, SALVO PELO RIDÍCULO
Por que o Brasil não gosta do Brasil e por que nos falta um
mínimo de auto-estima? É a pergunta que me faço, sem lhe achar a
resposta. Dirão vocês que exagero e que não é tanto assim, que
diabo. Responderei que é tanto assim ou pior. Vocês se lembram da
Passeata dos 100 Mil, a famosíssima Passeata dos 100 Mil?
Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu a cito
muito. Posso dizer que é uma das minhas referências mais
obsessivas. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o
seu fracasso encontrará nos 100 Mil um dado essencial. Não havia,
ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem
torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem
cabeça-de-bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da
grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites.
E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não
falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o
assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em Rússia, ou em
Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma palavra, nem por acaso,
nem por distração, sobre o Brasil. Picharam o nosso Municipal com
um nome único: -- Cuba. Do Brasil, nada? Nada.
As elites passavam gritando: -- "Vietnã, Vietnã, Vietnã!". E,
quanto ao Brasil, os 100 Mil faziam um silêncio ensurdecedor. Tanto
vociferaram o nome de Vietnã, de Cuba e China, que minha vontade
foi replicar-lhes: -- "Rua do Ouvidor, rua do Ouvidor, rua do
Ouvidor!". Simplesmente, o Brasil não existe para as nossas elites.
Foi essa a única verdade que trouxe, em seu ventre, a Passeata dos
100 Mil.
Estou apresentando um exemplo e poderia citar muitos outros.
Vamos ficar por aqui. Há um momento, todavia, em que todos se
lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o
Brasil. Aí está o milagre do escrete. Fora as esquerdas, que acham o
futebol o ópio do povo, fora as esquerdas, dizia eu, todos os outros
brasileiros se juntam em torno da seleção. É, então, um pretexto,
uma razão de auto-estima. E cada vitória compensa o povo de velhas
frustrações, jamais cicatrizadas.
Não sei se contei o caso de certo amigo meu. É o que se chama
um boa-vida. Sua mesa tem vinhos raros e translúcidos. Um dia,
ocorreu-lhe um capricho voluptuoso e tomou um banho de leite de
cabra. Perguntei-lhe: -- "Que tal?". Respondeu: -- "Assim, assim".
Duas vezes por ano, dá uma volta pela Europa. Pois bem. É esse
amigo que me confessa: -- "Só me sinto brasileiro quando o escrete
ganha". Fora disso, passa anos sem se lembrar do Pão de Açúcar ou
sem pensar na Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista
argentino.
Domingo ele bateu o telefone para mim. No seu desvario,
berrava: -- "Ganhamos da Inglaterra!"*. Chorava: -- "Como é bom ser
brasileiro!". E, durante toda a Copa, será um brasileiro de esporas e
penacho. Também a grã-fina das narinas de cadáver me ligou.
Soluçava: -- "Brasil! Brasil! Brasil!". Mais tarde, eu a vi, patética,
enrolada na bandeira brasileira. Parecia uma Joana d'Arc da seleção.
O meu assunto de hoje é, justamente, o escrete que está
maravilhando o mundo. Tem sua história, tem a sua lenda. Antes de
mais nada, não pensem que se improvisa um escrete da noite para o
dia. Não. É todo um secreto, um misterioso, um profundo trabalho
de gerações. Até que, um dia, há o milagre: -- juntam-se, então, no
mesmo time, um Pelé e um Gérson, um Rivelino, um Jairzinho.
*Brasil 1 x 0 Inglaterra, 7/6/1970, em Guadalajara. Segundo jogo das oitavas-de-
final.
Vocês viram o nosso gol contra a Inglaterra. Foi uma obra-
prima. Começou em Tostão, que passou a Paulo César. Paulo César
novamente a Tostão. Este trabalha a bola. A área inglesa era uma
ferocíssima selva de botinadas. Cada milímetro estava ocupado.
Tostão dribla um inglês, e mais outro inglês, um terceiro inglês. E
vinham outros, e mais outros e outros mais. Tostão vira-se e entrega
a Pelé. Três adversários envolvem o sublime crioulo. Este, rápido,
empurra para Jairzinho, enganando todo mundo.
Era um gol que não podia ser feito porque a muralha de
cabeças estava lá, inultrapassável. Mas tudo teve a solução
fulminante do talento. A bola deslizou para Jairzinho. No seu banco,
Alf Ramsey, o técnico inglês, parecia certo de que seus jogadores iam
frustrar o ímpeto e o virtuosismo dos nossos.
Não sei se vocês sabem, mas esse Ramsey é um caso de
imodéstia delirante. Declarara à imprensa internacional: -- "A
Inglaterra vai ganhar, porque o Brasil não tem defesa. Félix, Brito e
Piazza são horrorosos". Vejam a polidez, a cerimônia, a reverência
desse cavalheiro. Os rapazes da imprensa perguntaram: -- "E Pelé?".
Achou graça: -- "Ora, Pelé". E disse que tinha meios e modos de
apagar o Rei. O que Ramsey queria dizer, por outras palavras, é que
os brasileiros não são de nada.
Volto ao passe de Pelé. A bola está no pé de Jairzinho.
Esquecia-me de contar uma outra do mesmo Ramsey. Ele também
declarou que os negros brasileiros rebolam muito. Não disse
rebolam, mas ponham aí uma palavra equivalente. Pois bem: -- eis o
fato: -- Jairzinho arranca. A bola sabe quando vai ser gol e se ajeita
para o gol. E Jairzinho, que era a maior saúde em campo, ainda
ultrapassou um inglês; e encheu o pé. Era o gol de uma das mais
belas, mais perfeitas, irretocáveis vitórias brasileiras de todos os
tempos.
O próprio Ramsey, apesar de sua máscara de ferro, dizia depois
do jogo que, na altura do gol brasileiro, a defesa inglesa estava
entregue às baratas. O certo, o lógico é que, depois do gol, as coisas
acontecessem numa progressão fulminante de catástrofe. Mas diz o
Ramsey: -- "Os brasileiros recuaram para defender o 1 x 0. O que
seria de nós se eles não recuassem?".
Mas não tem sido fácil a vida do escrete. Por exemplo: -- Paulo
César sofreu em São Paulo uma experiência inédita: -- uma vaia de
noventa minutos. Isso corresponde a um linchamento. Só não
entendo, até hoje, como ele conseguiu sobreviver. Nem se pense que
foi ele o único. Mas não vamos amaldiçoar as vaias ao escrete. Elas o
fizeram, elas o virilizaram. A jornada brasileira no México é uma
vingança contra as vaias.
E o que a seleção e, antes da seleção, o que sofreu o futebol
brasileiro nas mãos dos "entendidos". Tenho que abrir, neste
momento, um tópico especial. O que é o "entendido"? Veremos se
posso caracterizá-lo. É o cronista que esteve, em 66, na Inglaterra, e
voltou com a seguinte descoberta: -- o futebol europeu em geral e o
inglês em particular eram muito melhores do que o nosso.
Estávamos atrasados de quarenta anos para mais. Quanto à
velocidade, era uma invenção européia. Os brasileiros andavam de
velocípede e os europeus a jato. O "entendido" afirmava mais: -- os
times de lá não deixavam jogar. Essa foi genial. Imaginem vocês um
time jogando e o adversário assistindo, como numa frisa de teatro.
Por outro lado, o preparo físico dos europeus era esmagador. Como
se não bastasse tudo o mais, ainda descobriu o "entendido": -- o
futebol moderno não é bonito, não quer ser bonito e escorraçou o
belo e artístico de suas cogitações. Bonito e artístico é o futebol sub-
desenvolvido de Brasil e outros.
O jogo Brasil x Inglaterra desmontou vários mitos. A tal
velocidade não existe. Os ingleses tinham períodos enormes em que
preferiam o velocípede ao jato. A saúde de vaca premiada é a nossa e
não a deles. Não há no time adversário um jogador com a furiosa
plenitude de um Jairzinho ou de um Pelé. Uma mentira a história de
que os europeus não deixam jogar. E como não deixam, se Tostão
comeu três, Pelé enganou mais três e Jairzinho ultrapassou mais
um, antes de fazer o gol? O pau-de-arara de ouro, Clodoaldo, corre
mais do que todo o escrete inglês junto. E vem o "entendido" e
declara, solene, enfático, hierático: -- "Nós não somos os melhores".
Pois os lorpas, os pascácios, acreditam. Basta Brasil x Tcheco-
Eslováquia, ou Brasil x Inglaterra que tudo não passa de uma
impostura inédita. Vou concluir: -- o "entendido" só não se torna
abominável porque o ridículo o salva.
[O Globo, 10/6/1970]
DESLIZANDO COMO CISNES
Amigos, bem sei que ninguém se ruboriza mais. O último rubor
que se conhece ocorreu num baile da ilha Fiscal. De então para cá,
nunca mais ninguém ficou ruborizado. Mas este campeonato tem
sido uma experiência fabulosa para nós brasileiros. Vocês sabem o
que dizem os jornais ingleses do nosso futebol? Dizem apenas e
textualmente o seguinte: -- "Devia ser proibido jogar tão bonito".
Eles acham absurdo que o Brasil possa mandar para o México
um time de virtuoses, de estilistas. E, portanto, podemos baixar a
vista, escarlates de modéstia. É a Inglaterra que nos põe nas nuvens.
Cabe então a pergunta: -- e as vaias? Esse mesmíssimo escrete, que
assombra o mundo, recebe as vaias humilhantes da própria terra.
Era como se fôssemos um time de pernas-de-pau, uma equipe de
cabeças-de-bagre.
E os "entendidos"? Estavam diante do óbvio e não enxergavam
o óbvio. Um deles, escrevendo sobre Brasil x Inglaterra, deu duas
notas dez aos ingleses e nenhuma nota dez aos brasileiros. Sempre
escrevo que o pior cego é o míope. O citado "entendido" não
desconfiou que o Brasil não é nada do que ele dizia, e nada do que
ele ainda diz. Todo mundo já sabe que não há na Copa um time que
se compare ao Brasil. E o "entendido" ainda está atracado ao mito,
ao pobre e falecido mito do futebol inglês.
Ontem a Inglaterra disse adeus à Copa. O juiz de 66 não estava
lá para inventar o gol que a Inglaterra não marcou. E ela perdeu para
a Alemanha. É um futebolzinho, o inglês, que só vinga sob uma
cínica, deslavada cobertura da arbitragem. E o futebol brasileiro, que
os "entendidos" sempre negaram ou, na pior das hipóteses, sempre
subestimaram? O "entendido" escreveu, outro dia: -- "Não somos os
melhores".
E vocês viram o jogo com a Tcheco-Eslováquia? Levou do Brasil
um banho de Paulina Bonaparte. Em seguida, a Inglaterra, a favorita
dos nossos "entendidos". Ganhamos por 1 x 0. Um gol só, mas que
valeu por cinco. Vocês se lembram do lance. Tostão apanha a bola,
dribla um inglês, outro inglês. E ao terceiro inglês, passou-lhe a bola
por entre as pernas. Em seguida, o formidável craque, vendo que os
adversários, em hordas, vinham caçá-lo, deu uma maravilhosa
virada para Pelé. O sublime crioulo está com a bola nos pés. Três
ingleses rugem para ele. E, então, Pelé os engana lindamente. Em vez
de chutar, passa para Jairzinho.
Jairzinho recebe a bola e engana mais um inglês. E manda
uma bomba no canto. Esse gol, de uma trama genial, foi um
momento de eternidade do futebol mundial. Mas os "entendidos",
embora presentes, estavam lá para admirar os ingleses. Contra a
Romênia, fizemos 25 minutos iniciais de um futebol nunca sonhado.
Era um jogo fácil. O Brasil merecia ganhar de uma goleada
astronômica. Depois da Romênia*, o Peru. Os gols que perdemos são
incontáveis. Dois lances geniais de Pelé explodiram na trave. Tostão,
que fez dois, perdeu uns três. Antes que eu me esqueça, uma
pergunta que gostaria de fazer aos "entendidos": -- e a famosa e
irracional velocidade, que era uma característica fundamental do
futebol europeu? O Brasil, quando quer, corre mais que os europeus,
e quando não quer, põe-se a passear em campo, a deslizar como
cisnes, sem nenhuma pressa, nenhuma. Afirmava-se também que os
europeus não deixavam jogar. Eles não fazem outra coisa senão
deixar o Brasil jogar.
Mas falo, falo, e não digo uma palavra sobre o meu personagem
*Brasil 3 x 2 Romênia, 10/6/1970, em Guadalajara. Terceiro jogo pelas oitavas-de-
final. Brasil 4 x 2 Peru, 14/6/1970, em Guadalajara. Jogo pelas quartas-de-final.
da semana. Vamos dar-lhe nome: -- Tostão. Foi uma enorme figura.
Marcou dois gols e foi um criador de jogadas maravilhosas. Já a sua
atuação no gol contra a Inglaterra foi um lance de gênio. Mas o que
eu queria chamar a atenção de vocês é para o abnegado e formidável
esforço de Tostão. Saído de uma crise vital, aceita todos os riscos
para servir ao escrete. De quinze em quinze minutos, seu futebol
cresce. Está entre os cinco ou seis maiores jogadores do mundo em
todos os tempos. Como influiu para a nossa vitória sobre o Peru! Fez
uma série de coisas perfeitas e irretocáveis. Já na semifinal da
quarta-feira, espero que ele apareça em estado de graça plena.
Imaginem Tostão dando tudo, Pelé dando tudo, Jairzinho dando
tudo, Rivelino dando tudo, Gérson dando tudo.
[O Globo, 14/6/1970]
O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA
Em 58, na véspera de Brasil x Rússia, entrei na redação. Tiro o
paletó, arregaço as mangas e pergunto a um companheiro: -- "Quem
ganha amanhã?". Vira-se para mim, mascando um pau de fósforo.
Responde: -- "Ganha a Rússia, porque o brasileiro não tem caráter".
Eis a opinião dos brasileiros sobre os outros brasileiros: -- não
temos caráter. Se ele fosse mais compassivo, diria: -- "O brasileiro é
um mau-caráter". Vocês entenderam? O mau-caráter tem caráter,
mau embora, mas tem. Ao passo que, segundo meu colega, o
brasileiro não tem nenhum. Pois bem. No dia seguinte há o jogo e, no
seu primeiro lance, Garrincha sai driblando russos e quase entra
com bola e tudo.
Vejam: -- diante do Brasil, a Rússia perdeu antes da luta.
Bastou um momento de Mané para liquidá-la. Mas o que ainda me
espanta é a frase do companheiro: -- "O brasileiro não tem caráter".
Essa falta de auto-estima tem sido a vergonha, sim, tem sido a
desventura de todo um povo. Ganhamos em 58, ganhamos em 62.
Depois da Suécia e do Chile, seria normal que retocássemos um
pouco a nossa imagem. Mas há os recalcitrantes. Outro dia, um
colega puxou-me para um canto. Olha para os lados e cochicha: --
"Não somos os melhores". E repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: --
"Não somos os melhores". E por todas as esquinas e por todos os
botecos há patrícios vendendo impotência e frustração.
Quando o escrete partiu para o México levando vaias jamais
cicatrizadas, vários jornais fizeram uma sinistra impostura. A seleção
ia para a guerra. Uma Copa é uma guerra de foice no escuro. Mas
parte da nossa imprensa pôs a boca no mundo: -- "Humildade,
humildade!". Eu pergunto: -- o que é o brasileiro? O que tem sido o
brasileiro desde Pero Vaz de Caminha? Vamos confessar a límpida,
exata, singela verdade histórica: -- o brasileiro é um pau-de-arara.
Vamos imaginar esse pau-de-arara na beira da estrada. Que faz ele?
Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com
infinito deleite, a sua sarna bíblica.
E súbito encosta uma Mercedes branca, diáfana, nupcial. O
cronista esportivo, que a dirige, incita o pau-de-arara: -- "Seja
humilde, rapaz, seja humilde!". Vocês percebem a monstruosidade?
Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda lhe
acrescentam a humildade. Certos rapazes da imprensa não
perceberam que a humildade é defeito de reis, príncipes, duques,
rainhas. Há pouco tempo, o papa assim se despediu de uma senhora
brasileira: -- "Reze por mim", implorou sua santidade. Podia fazê-lo
porque era a maior figura da Igreja.
Outro exemplo: -- a mulher bonita. Conheci uma que era
linda, linda. Quase uma Ava Gardner ou mais do que a Ava Gardner.
Quando o marido entrava, ela se lançava não nos seus braços, mas
aos seus pés. E fazia apenas isto: -- beijava um sapato do marido e,
depois, o outro sapato. Também podia fazer isso porque era
maravilhosa. Por onde passava ia ateando paixões e suicídios. A
humildade era a sua vaidade de mulher bonita.
Passo da mulher fatal ao escrete. Um escrete é feito pelo povo.
E como o povo o fez? Com vaias. Nunca houve na Terra uma seleção
tão humilhada e tão ofendida. E, além disso, os autores das vaias
ainda pediam humildade. O justo, o correto, o eficaz é que assim
incentivássemos a seleção de paus-de-arara: -- "Tudo, menos
humildade! Seja arrogante! Erga a cabeça! Suba pelas paredes!
Ponha lantejoulas na camisa!".
Chamo os nossos jogadores de paus-de-arara sem nenhuma
intenção restritiva. O pau-de-arara é um tipo social, humano,
econômico, psicológico tão válido como outro qualquer. Tem
potencialidades inéditas, valores ainda não realizados.
Estou dizendo tudo isso na véspera, exatamente na véspera, de
Brasil x Itália. É a finalíssima. Vejam vocês: -- o escrete negado não
três vezes, mas mil vezes -- foi vencendo os seus adversários, um por
um, não deixando pedra sobre pedra. Diziam que os europeus não
deixam jogar. Pois bem: -- quando se trata do Brasil, todo mundo o
deixa jogar.
Foi assim com a Tcheco-Eslováquia, com a Inglaterra, a
Romênia, o Peru e o Uruguai*. O espectro de 50 está mais enterrado
do que sapo de macumba. Bem que a pobre Inglaterra tentou o diabo
para que o Brasil não jogasse. Mas vocês se lembram do nosso gol?
Vejam quantos jogaram. Primeiro, Paulo César passou a Tostão. E
Tostão resolveu jogar em cima dos ingleses. Em vez de passar de
primeira, deu-se ao luxo voluptuoso de driblar um inimigo; mas era
pouco para a sua fome, e driblou outro inimigo. Podia passar. Mas
Tostão preferiu enfiar a bola por entre as pernas do terceiro inimigo.
Adiante estava Pelé. E o estilista estende a Pelé. Cercado de ingleses
por todos os lados, o semidivino crioulo toca para Jairzinho. Este
podia ter atirado de primeira. Não: -- achou que devia driblar mais
outro inglês. E só então sua bomba foi explodir no fundo das redes.
Por que os ingleses não nos impediram do jogar? E, realmente,
foi um gol feito com tão amorosa paciência, com tão fino lavor e
inexcedível virtuosismo. O leitor há de perguntar: -- "Mas como, se
os `entendidos' diziam que o futebol brasileiro estava mais obsoleto
do que o guarda-chuva do senador Paulo de Frontin?". Realmente, os
"entendidos" tudo fizeram para acabar com o nosso craque. Queriam
que nós imitássemos os defeitos europeus. Queriam tirar do nosso
futebol toda a magia, toda a beleza, toda a plasticidade, toda a
imaginação. Faziam a apologia do futebol feio. Era como se
estivessem apresentando o corcunda de Notre Dame como um
padrão de graça e eugenia.
Mas a famosa velocidade está a merecer um capítulo especial.
*Brasil 3 x 1 Uruguai, 17/6/1970, em Guadalajara, pelas semifinais. Alemanha 3 x 2
Inglaterra, 14/6/1970, pelas quartas-de-final.
Com a maior solenidade, os "entendidos" acusavam o nosso futebol
de lento. E o que se vê na Copa é esta coisa infinitamente patusca: a
morosidade inteligentíssima dos brasileiros derrubou a velocidade
burríssima dos europeus. Finalmente, diante dos resultados
concretos, o povo não lê mais os "entendidos". Desde a Tcheco-
Eslováquia, aconteceu o cínico e deslavado milagre: nunca houve um
escrete tão amado. Por outro lado, cada vitória faz a cidade explodir.
E um dos nossos jornais tem a coragem de chamar a festa gigantesca
de relativo carnaval.
Observem agora o que o escrete fez por nós. Há pouco tempo o
brasileiro tinha uma certa vergonha de ser brasileiro. Conheço um
patrício que andou ensaiando um sotaque para não trair a sua
nacionalidade. Agora não. Agora acontece esta coisa espantosa: --
todo mundo quer ser brasileiro. O país foi invadido por brasileiros,
ocupado por brasileiros. Dizia-me o Francisco Pedro do Coutto: --
"Nunca vi tantos brasileiros". E outra coisa: -- as mulheres estão
mais lindas, e os homens mais fortes, e há uma bondade difusa,
volatilizada, atmosférica. Jamais se cumprimentou tanto. E como
sorrimos uns para os outros.
Apenas 24 horas nos separam da finalíssima. Quem jogará por
nós é o melhor escrete da Copa. Enquanto os outros dão botinadas, o
brasileiro faz a arte que os "entendidos" negam e renegam. Vocês
devem ter visto, ontem, o tape de Inglaterra x Alemanha. O campo
era varrido de correrias irracionais. Vale tudo, do gogó para cima.
Vinte e dois homens, e mais o juiz e mais os bandeirinhas, e aquela
fauna triste de patadas.
Que falso futebol, que antifutebol. Amanhã, sim, amanhã o
mais belo futebol do mundo jogará contra a Itália. E quando acabar o
jogo vocês verão subir o nome do Brasil como um formidável berro
em flor.
[O Globo, 20/6/1970]
DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO
Amigos, foi a mais bela vitória do futebol mundial em todos os
tempos. Desta vez, não há desculpa, não há dúvida, não há sofisma.
Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso. Vocês se
lembram do que os nossos "entendidos" diziam dos craques
europeus. Ao passo que nós éramos quase uns pernas-de-pau, quase
uns cabeças-de-bagre. Se Napoleão tivesse sofrido as vaias que
flagelaram o escrete, não ganharia nem batalhas de soldadinhos de
chumbo.
Era mais fácil encontrar uma girafa em nossas redações do que
um otimista. O otimista era visto, e revisto, como um débil mental.
Quando o escrete saiu daqui, as hienas, os abutres, os chacais
uivavam: -- "Não passa das quartas-de-final!". Fazia-se uma
campanha do pessimismo. E os "entendidos" recomendavam:
"Humildade, humildade!". Como se o brasileiro fosse um pobre-diabo
de pai e mãe. Eu me lembro do dia em que João Saldanha foi
chamado para técnico do escrete. Tivemos uma conversa de terreno
baldio. E me dizia o João: -- "Vamos ganhar de qualquer maneira! O
caneco é nosso!".
Raríssimos acreditavam no Brasil. Um deles era o presidente,
que me dizia: -- "Vamos ganhar, vamos ganhar" -- e que, ainda no
sábado, dava o seu palpite para a finalíssima: -- "Brasil 4 x 1"*. Mas
os "entendidos" juravam que o futebol brasileiro estava atrasado
trinta anos. E a famosa velocidade européia? Essa velocidade existia
entre eles, e para eles. Mas o Brasil ganhou de todo mundo andando,
*Brasil 4 x 1 Itália, 21/6/1970, na Cidade do México. Brasil tricampeão mundial.
simplesmente andando. Com a nossa morosidade genial nós
enterramos a velocidade burra dos nossos adversários.
Sempre escrevi (graças a Deus, não "entendo" de futebol), mas
escrevi que a finalíssima de 66 foi o antifutebol e, repito, uma pelada
da pior espécie. Mas ai de nós, ai de nós. O "entendido", só de falar
da Inglaterra e da Alemanha, babava na gravata. Queria acabar com
o gênio, a magia, a beleza do nosso futebol. Mas, sem querer, com
sua inépcia, com sua incompetência, os "entendidos" acabaram
prestando um grande serviço, porque tornaram os brios do escrete
mais eriçados do que as cerdas bravas do javali.
O curioso é que os não entendidos é que acreditavam na
seleção. Por exemplo: -- o Walther Moreira Salles. Pôs-se à frente de
todo o movimento de apoio financeiro ao escrete. Não faltou quem lhe
dissesse: -- "Não faça isso. Esse escrete é uma droga". Coisa curiosa:
-- em momento nenhum o Walther Moreira Salles deixou de
acreditar na nossa seleção. Muitas vezes me disse: -- "Eu sei que
vamos ganhar".
Paro de escrever para atender o telefone. É o Vadinho Dolabela,
o último boêmio, o último romântico do Brasil. Chora no telefone: --
"Nelson, ganhamos, Nelson! O caneco é nosso!". Que ele seria nosso
estava escrito há 6 mil anos. Nunca uma seleção fez, na história do
futebol, uma jornada tão perfeita como o Brasil em 70. Ganhamos de
todos os pseudocobras. Todas as finalíssimas são duríssimas.
Alemanha x Itália, em 38, exigiu prorrogação. Quando o jogo acabou,
os craques deitavam-se no chão, muito mais mortos do que vivos.
Alemanha x Inglaterra, nova prorrogação, tanto em 66, como em 70.
O Brasil não precisou de um minuto a mais.
E nós, ontem, demos um passeio. Quem fez o gol da Itália, o
franciscano gol da Itália, não foram os italianos. Foi uma brincadeira
de Clodoaldo. Esse notabilíssimo craque, sergipano quatrocentão,
resolveu dar uma bola de calcanhar. O inimigo recebeu de presente,
recebeu de graça, o passe e o gol. Ao passo que os gols brasileiros
foram obras de arte, irretocáveis, eternas. A cabeçada de Pelé, na
abertura da contagem, foi algo de inconcebível. Ele subiu, leve, quase
alado, e enfiou no canto.
Em suma, cada gol dos nossos era uma preciosidade. Já na
véspera as maiores autoridades do futebol declararam,
unanimemente, que o Brasil tinha que ganhar o jogo, porque era
muito melhor. Esse era o óbvio ululante, que o mundo enxergava,
menos os "entendidos" daqui. Antes que eu me esqueça, preciso
observar o evidentíssimo: -- ganhamos dando, no adversário, um
banho de Paulina Bonaparte. Dizia-se que os italianos eram
formidáveis. Perderam de 4 x 1 para nós, e devia ser de 4 x 0. Ou
melhor: -- e nem de 4 x 0, mas de 5 x 0, e explico: -- no último
momento, Rivelino, driblando todo mundo, invadiu a área e ia entrar
com bola e tudo, quando sofreu o mais cínico, o mais deslavado dos
pênaltis. Era um gol mais do que certo. Ainda tivemos que enfrentar
um árbitro altamente pernicioso..
Amigos, glória eterna aos tricampeões mundiais. Graças a esse
escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser patriota. Somos
90 milhões de brasileiros, de esporas e penacho, como os Dragões de
Pedro Américo.
[O Globo, 22/6/1970]
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA HELVÉ-
TICA EDITORIAL EM GARAMOND LIGHT E
IMPRESSA PELA GRÁFICA EDITORA
HAMBURG EM OFF-SET PARA A EDITORA
SCHWARCZ EM SETEMBRO DE 1993.
À Sombra das Chuteiras Imortais – Nelson Rodrigues
À Sombra das Chuteiras Imortais
Nelson Rodrigues
Primeira coletânea das crônicas esportivas de Nelson Rodrigues, reúne setenta textos que Nelson publicou na extinta revista Manchete Esportiva e em O Globo entre os anos de 1955 e 1970. Elas cobrem o período mais rico e fascinante do futebol brasileiro – aquele que vai da derrota do Brasil para o Uruguai, na final da Copa de 50, em pleno Maracanã, à conquista definitiva do tricampeonato no México, em 1970, passando pelas emoções que transformaram a idéia que o brasileiro fazia de si mesmo.
Boa Leitura
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