Envio:À Sombra das Chuteiras Imortais - Nelson Rodrigues


NELSON RODRIGUES




À SOMBRA DAS
CHUTEIRAS IMORTAIS
Crônicas de futebol


Seleção e notas:
RUY CASTRO



3ª reimpressão

COLEÇÃO DAS OBRAS DE NELSON RODRIGUES

Coordenação de Ruy Castro



1. O casamento (romance)

2. A vida como ela é... O homem fiel e outros contos

3. O óbvio ululante: Primeiras confissões (crônicas)

4. À sombra das chuteiras imortais (crônicas de futebol)




A edição das obras de Nelson Rodrigues
conta com o apoio da Unicamp




http://groups.google.com/group/digitalsource

Copyright © 1993 by
Espólio de Nelson Falcão Rodrigues
Copyright de "Personagens para a eternidade"
© 1993 by Ruy Castro

Capa:
João Baptista da Costa Aguiar
sobre foto de Rodolpho Machado/
Abril Imagens

Preparação:
Marcos Luiz Fernandes

Índice remissivo:
Sérgio Pereira de Almeida

Revisão:
Lucíola S. de Morais

Agradecemos a Christina Konder e a Maria Célia Fraga,
do Departamento de Pesquisa de O Globo, e a
Augusto Falcão Rodrigues pelo auxílio na reunião do material
que resultou neste livro



Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rodrigues, Nelson, 1912-1980.
À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol / Nelson
Rodrigues ; seleção e notas Ruy Castro. -- São Paulo : Companhia das
Letras, 1993.

ISBN 85-7164-320-2


1. Crônicas brasileiras \. Castro, Ruy, 1948 -- II. Título.

93-1175 CDD-869.935


Índices para catálogo sistemático:
1. Crônicas : Século 20 : Literatura brasileira
869.935
2. Século 20 : Crônicas : Literatura brasileira
869.935


1993

Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Tupi, 522
01233-000 -- São Paulo -- SP
Telefone: (011) 826-1822
Fax: (011)826-5523

CONTRACAPA

Do brasileiro vira-lata ao brasileiro orgulhoso de ser brasileiro

-- esta é a trajetória contada por Nelson Rodrigues nas setenta

crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Elas cobrem o período

que vai da Copa do Mundo de 1950, em que a derrota do Brasil para

o Uruguai em pleno Maracanã reforçou a péssima imagem que o

brasileiro fazia de si mesmo, à Copa de 1970 no México, a do

tricampeonato -- passando pela emoção de todas as Copas que

vieram no meio e que ajudaram o Brasil a se transformar como

nação.

Mas não é só quando trata da seleção que Nelson faz do futebol

um teatro que envolve todas as paixões humanas. Ao falar de um

reles Flamengo X Canto do Rio ou do velório de um velho jogador

obscuro, ele está apenas usando o futebol como um pretexto para

mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o

indivíduo, a vida e a morte.

Seleção de Ruy Castro


ORELHASDOLIVRO

Nelson Rodrigues não enxergava direito. De longe, então, era

incapaz de distinguir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o

torcedor a léguas do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Tinha

que ter alguém soprando no ouvido dele os lances que a vista curta

não alcançava. E, no entanto, ninguém jamais retratou um jogo de

futebol com a dimensão épica que o leitor vai encontrar neste livro

organizado por Ruy Castro com o mesmo rigor e o mesmo

encantamento com que se debruçou sobre a vida e a obra desse

admirável artista que conheci tão de perto.

Releio, em estado de graça, a prosa poética de Nelson

Rodrigues, escrita ao longo de vinte anos. São crônicas da época em

que o futebol brasileiro foi mais feliz. O livro apaixona. O estilo é, ao

mesmo tempo, lírico e cortante. Nelson adjetiva a vida e os homens

com uma audácia exemplar. À sombra das chuteiras imortais é a obra

sem igual de um cronista que nunca deu a mínima bola para a

frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de Nelson, futebol

sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora.

Chuteiras sangrando pela doce abstração de um gol.

O olhar metafórico de Nelson percorria o campo todo, recriando

cada passe, cada drible, cada gol, numa secreta tabelinha com

parceiros do imponderável. Era nas entrelinhas desse jogo sempre

mágico que ele ia buscar seus personagens. A bola que passasse por

Castilho não passaria por uma certa alma do outro mundo que o

cronista volta e meia escalava para salvar de uma derrota o time do

Fluminense ou a seleção nacional. Por suas sagradas paixões, Nelson

Rodrigues encarava Deus e o mundo.

Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o

amor pelo buraco da fechadura. Poderia dizer, também, que via o

futebol com os olhos de um iluminado. Todo domingo, ele ia ao

estádio, para contemplar os anjos e os demônios da sua devoção. Foi

assim, no entardecer de cada jogo, que nasceu À sombra das

chuteiras imortais, canto primeiro e único à epopéia do futebol

brasileiro.

Nelson é o nosso Homero, sem tirar nem pôr.

Armando Nogueira


Nelson Rodrigues nasceu no Recife, PE,

em 1912, e morreu no Rio, em 1980.

Dele, a Companhia das Letras já

publicou: O casamento (romance), A vida

como ela é... -- O homem fiel e outros

contos, O óbvio ululante: primeiras

confissões (crônicas) e este A sombra das

chuteiras imortais. Próximo lançamento:

A vida como ela é... II. A editora lançou

também O anjo pornográfico: a vida de

Nelson Rodrigues, por Ruy Castro.

ÍNDICE



PERSONAGENS PARA A ETERNIDADE -- Ruy Castro.........11

FLAMENGO SESSENTÃO ....................................................13

O CRAQUE SEM IDADE ......................................................15

CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE....................................17

O JUIZ LADRÃO..................................................................19

BOCAGE NO FUTEBOL .......................................................21

RIGOLETTO DE LANÇA-PERFUME......................................23

O CRAQUE NA CAPELINHA.................................................25

O RISO................................................................................27

FREUD NO FUTEBOL..........................................................29

A DIVINA GOLEADA............................................................32

IRRESISTÍVEL FLAMENGO .................................................34

A CUSPARADA METAFÍSICA ...............................................37

ARTILHEIRO EM ESTADO DE ANJO ...................................40

O DEUS DE CARLITO ROCHA.............................................43

VESTIDO DE FOGO.............................................................46

A REALEZA DE PELÉ ..........................................................49

DIDI SEM GUIOMAR ...........................................................52

O GORDO SALVADOR.........................................................55

O QUADRÚPEDE DE 28 PATAS...........................................58

COMPLEXO DE VIRA-LATAS...............................................61

DESCOBERTA DE GARRINCHA ..........................................64

MORRENDO AO PÉ DO RÁDIO ...........................................67

O TRIUNFO DO HOMEM .....................................................70

É CHATO SER BRASILEIRO! ...............................................73

GARRINCHA NÃO PENSA ....................................................75

A CRUZ DO BOTAFOGO......................................................78

CEM POR CENTO DIDA.......................................................81

A VOLTA DA LEITERIA........................................................84

O PELÉ BRANCO.................................................................87

BANDEIRINHA -ARTILHEIRO ..............................................90

A VINGANÇA DE JULINHO..................................................93

UM HORIZONTE DE CHIFRES ............................................96

O "POSSESSO"....................................................................99

O EICHMANN DO APITO ................................................... 102

BICAMPEÕES DO MUNDO................................................ 105

BEIJOS IMACULADOS ...................................................... 108

O MINEIRO SOLIDÁRIO..................................................... 111

UM FLUMINENSE TÃO FLAUBERT.................................... 113

O DIVINO DELINQÜENTE ................................................. 115

SEMANA DE FLA--FLU ..................................................... 118

PIOR PARA OS FATOS....................................................... 121

A CAVEIRA NO ESPELHO.................................................. 124

O MAIS CARIOCA DOS TIMES........................................... 127

O MARTÍRIO DE NÍLTON SANTOS..................................... 130

ENCOURAÇADO DE SOL .................................................. 132

OS QUE NEGAM GARRINCHA........................................... 134

MATAR OU MORRER......................................................... 136

TERRENO BALDIO ............................................................ 139

OS INIMIGOS DO ÓBVIO................................................... 141

SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS ..................................... 144

A VERGONHA.................................................................... 147

A COPA DO APITO............................................................. 150

A INVISIBILIDADE DO ÓBVIO........................................... 153

UM GESTO DE AMOR ....................................................... 155

"BEAU" YUSTRICH "GESTE".............................................. 158

UM ESCRETE DE FERAS .................................................. 161

CHEGA DE HUMILDADE................................................... 166

À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR............................ 169

"JOÃO SEM MEDO"........................................................... 174

A BARRIGA INSUBMERSÍVEL ........................................... 177

O GOL MIL ........................................................................ 180

GUERRA SUJA, TÃO SUJA................................................ 183

O BELO MILAGRE DAS VAIAS........................................... 188

MOMENTOS DE ETERNIDADE.......................................... 193

O GRANDE SOL DO ESCRETE.......................................... 196

O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE........................... 200

O ENTENDIDO, SALVO PELO RIDÍCULO........................... 205

DESLIZANDO COMO CISNES............................................ 210

O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA.................................. 213

DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO................................. 218

PERSONAGENS PARA A ETERNIDADE




Das setenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais, as

primeiras 31 foram publicadas originariamente na revista Manchete

Esportiva, onde Nelson Rodrigues escreveu de 1955 a 1959. Dessas

31, as primeiras onze conservam os títulos originais. As outras vinte,

publicadas sob a rubrica "Meu personagem da semana", ganharam

títulos novos usando-se escrupulosamente o pensamento e as

palavras do autor. As 39 crônicas restantes (a partir de "Um

horizonte de chifres") saíram em O Globo, onde Nelson escreveu a

partir de 1962 uma coluna diária que, às segundas-feiras, vinha sob

a rubrica "Meu personagem da semana" e, nos demais dias, sob "À

sombra das chuteiras imortais". Também essas ganharam títulos

novos sob o mesmo critério.

As notas ao pé de página, pelo organizador desta edição,

servem para situar o leitor sobre o resultado e outros detalhes da

partida a que Nelson se refere -- uma preocupação que ele não

precisava ter, já que sua coluna vinha na página onde se cobria o tal

jogo. A identificação de certos nomes citados por ele só foi feita nos

casos extremos. Supôs-se que a maneira com que ele escrevia sobre

futebol, quase desligando-o da vida real e jogando-o numa dimensão

de eternidade, fosse suficiente para tornar essas pessoas fascinantes,

mesmo que o leitor não tenha grande informação sobre elas.

Aos que notarem a ausência do "Sobrenatural de Almeida" e de

outros personagens de Nelson: eles pertencem mais às suas crônicas

dos anos 70 -- fora das balizas deste livro, que se encerra

exatamente no tricampeonato do Brasil. Mas estarão presentes numa

segunda e inevitável coletânea futebolística de Nelson. À sombra das

chuteiras imortais é só o começo.

R. C.

FLAMENGO SESSENTÃO




Corria o ano de 1911. Vejam vocês: -- 1911! O bigode do kaiser

estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava

paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas

ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: -- é

impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à

Primeira Grande Guerra. Uma menina de catorze anos para

atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos: --

grande época! grande época!

Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos

espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto unilateral de

Mata-Hari, que nasceu o Flamengo.* Em tempo retifico: -- nasceu a

seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já

começava a tecer a sua camoniana tradição náutica. Em 1911,

aconteceu uma briga no Fluminense. Discute daqui, dali, e é possível

que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: -- cindiu-se o

Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi

fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.

Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: -- a torcida

tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta

coisa sublime: -- quando havia um gol, as mulheres rolavam em

ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: -- a

inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil, achar-se

uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como

espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha


*O Flamengo foi fundado em 15/11/1895.

uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia

a pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas,

rins, tórax e baços adversários? Hoje, o homem está muito

desvirilizado e já não aceita a ferocidade dos velhos tempos. Mas

raciocinemos: -- em 1911, ninguém bebia um copo d'água sem

paixão.

Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de

1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol

moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o

élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a

tremenda força rubro-negra. Note-se: -- não se trata de um

fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e

torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de

qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza

maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-

negro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele

vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um césar apunhalado.

Também é de 911, da mentalidade anterior à Primeira Grande

Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale

tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a

camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: -- quando

o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis

mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas tremem então, intimidados,

acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo

não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a

camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a

camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.



[Manchete Esportiva, 26/11/1955]

O CRAQUE SEM IDADE




Quando acabou a etapa inicial do jogo Brasil x Paraguai, o

placar acusava um lírico, um platônico 0 x 0. Ora, o empate é o pior

resultado do mundo. O torcedor sente-se roubado no dinheiro da

entrada e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os

bandeirinhas de vigaristas. Acresce o seguinte: -- de todos os

empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa virgindade

desagradável e irredutível do escore já humilhava o público e, ao

mesmo tempo, o enfurecia.

Súbito, o alto-falante do estádio se põe a anunciar as duas

substituições brasileiras: -- entravam Zizinho e Walter. Foi uma

transfiguração. Ninguém ligou para Walter, que é um craque, sim,

mas sem a tradição, sem a legenda, sem a pompa de um Ziza. O

nome que crepitou, que encheu, que inundou todo o espaço acústico

do Maracanã foi o do comandante banguense. Imediatamente, cada

torcedor tratou de enxugar, no lábio, a baba da impotência, do

despeito e da frustração. O placar permanecia empacado no 0 x 0.

Mas já nos sentíamos atravessados pela certeza profética da vitória.

Os nossos tórax arriados encheram-se de um ar heróico, estufaram-

se como nos anúncios de fortificante.

Eis a verdade: -- a partir do momento em que se anunciou

Zizinho*, a partida estava automática e fatalmente ganha. Portanto,

público, juiz, bandeirinhas e os dois times podiam ter se retirado,

podiam ter ido para casa. Pois bem: -- veio o jogo. Ora, o primeiro



*Brasil 3 x 0 Paraguai, 13/11/1955, no Maracanã. Zizinho fez dois gols e deu o passe
para Escurinho marcar o seu.

tempo caracterizara-se por uma esterilidade bonitinha. Nenhum gol,

nada. Mas a presença de Zizinho, por si só, dinamizou a etapa

complementar, deu-lhe caráter, deu-lhe alma, infundiu-lhe

dramatismo. Por outro lado, verificamos ainda uma vez o seguinte: --

a bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e

acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: -- a pelota

não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidade

de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: -- há na bola uma alma de

cachorra.)

No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho

jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os

bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho

afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: -- a

partida foi um show pessoal e intransferível.

E, no entanto, a convocação do formidável jogador suscitara

escrúpulos e debates acadêmicos. Tinha contra si a idade, não sei se

32, 34, 35 anos. Geralmente, o jogador de 34 anos está gagá para o

futebol, está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Zizinho

mostra o seguinte: -- o tempo é uma convenção que não existe nem

para o craque, nem para a mulher bonita. Existe para o perna-de-

pau e para o bucho. Na intimidade da alcova, ninguém se lembraria

de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento.

Do mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho dezessete ou

trezentos anos, se ele decide as partidas? Se a bola o reconhece e

prefere?

No jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de

aparecer, antes de molhar a camisa, pelo alto-falante, no intervalo.

Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone.



[Manchete Esportiva, 3/12/1955]

CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE




Há tempos, fui à rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E

confesso: -- sempre considerei Olaria tão longínqua, remota, utópica

como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na avenida

Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis

aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: --

recrudesceu em mim o ressentimento contra qualquer espécie de

viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta

minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma

vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros

do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente

mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão

nova e eletrizante.

Eis o fato: -- um jogador qualquer enfiou o pé na cara do

adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan

de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não

conversa: -- esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um

tapa: -- é, na verdade, o mais transcendente, o mais importante de

todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o

homicídio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá

ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma

humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.

Acresce o seguinte: -- o som! E, de fato, de rodos os sons

terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofismas é o

da bofetada. Sim, amigos: -- uma bofetada silenciosa, uma bofetada

muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: -- vítima e agressor

cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável

cordialidade. É o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza,

que a torna irresgatável.

Pois bem: -- na bofetada de Olaria não faltou o detalhe

auditivo. Mas o episódio não esgotara ainda o seu horror. Restava o

desenlace: -- a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve

meias medidas: -- deu no pé. Convenhamos: -- é empolgante um

pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarce, nenhum

recato. Digo "empolgante" e acrescento: -- raríssimo ou, mesmo,

inédito.

Via de regra, só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói

tem sempre uma desfaçatez única: -- apresenta-se como se fosse a

própria estátua eqüestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma

vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: -- chega

em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então,

na mais rigorosa intimidade -- apanha da mulher. Mas cá fora, à luz

do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques

de polícias especiais.

Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, que

renegam, que desfiguram a própria covardia -- o juiz correu como

um cavalinho de carrossel. Note-se: há hoje toda uma monstruosa

técnica de divulgação, que torna inexeqüível qualquer espécie de

sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa

covardia fotografada, irradiada, televisionada projetou-se

irresistivelmente. E quando, em seguida, a polícia veio dar cobertura

ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente

de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de

fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos

ser covardes às escondidas, tínhamos inveja, despeito e irritação

dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cínico estandarte.


[Manchete Esportiva, 17/12/1955]

O JUIZ LADRÃO




De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito

esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: -- vive feliz e

realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de

visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um

deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo

de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar

de Marcos de Mendonça, o "Fitinha Roxa"; da "espanhola"; do

assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo

tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já

lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba

elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa

fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: -- o passado

sempre tem razão.

Por exemplo: -- o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno

vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os

juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de

chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte,

crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha

que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia

o "juiz ladrão". E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e

alvar honestidade. Abra-hão Lincoln não seria mais íntegro do que

Mário Vianna. E vamos e venhamos: -- a virtude pode ser muito

bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras

imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem

úlcera.

Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista.

E verificaremos isto: -- falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a

multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna

inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é

um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.

Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: -- um jogo de

futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25.

Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e

nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e

escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero

e à úlcera: -- as condições do futebol contemporâneo tornam

impraticável a existência do canalha. Ou por outra: -- o canalha

pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem

destino.

Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa

fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas

os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que

genial descaro! Certa vez, foi até interessante: -- existia um juiz que

era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um

domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários?

Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno,

um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: --

levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: -- roubou da maneira

mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final,

os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se

antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma

figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno

está correndo até hoje.



[Manchete Esportiva, 31/12/1955]

BOCAGE NO FUTEBOL




Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado

de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da

rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: -- não

havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica,

vivia cercado de conselhos, por todos os lados: -- "Não brinca com

Fulano, que ele diz nome feio!". E o Fulano assumia, aos meus olhos,

as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema.

Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o

anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: -- cada nome

feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por

exemplo: -- os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e

jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro

Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da

Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável

palavrão.

Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz

esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade:

-- retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível,

Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O

craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que

nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o

Bocage de anedota. Pois bem: -- está para nascer um jogador ou um

torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe

ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais

palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em

campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem

dopados e realmente o estão: -- o chamado nome feio é o seu

excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.

Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o

caso de Jaguaré.* No seu tempo, os clubes não tinham Departamento

Médico e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria,

desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: -- não tinha

dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era

largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: -- a época de

Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de

fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com

manteiga, podia se considerar um Rockefeller, de tanga, mas

Rockefeller.

Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube

estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas

dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa

inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou

cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como

homem e como craque. Como jogar sem a pornografia luso-

brasileira? Sem as expressões obscenas que dinamizam, que

transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma

traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos

nomes feios intransportáveis.

Finalmente, não pôde mais: -- voltou correndo para o Brasil.

Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque

pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.



[Manchete Esportiva, 14/1/1956]




*Jaguaté foi um folclórico goleiro do Vasco no começo dos anos 30.

RIGOLETTO DE LANÇA-PERFUME




Ontem, assisti a uma cena que me pareceu, salvo engano, uma

pequena, incisiva e inefável lição de vida. Eis o episódio: -- estava eu

na esquina de Carioca com Uruguaiana. Fecha o sinal. Os homens

estacam para o surdo escoamento dos veículos. E, súbito, uma voz

gaiata anuncia: -- "Olha o rapa!". O que houve, a seguir, foi um

desses espasmos coletivos, que só o Tolstoi de Guerra e paz ousaria

descrever.

Vi a histeria dos outros e a minha própria. Todos se

arremessaram: -- senhoras honestíssimas, mestres do direito,

psiquiatras, intelectuais, viúvas, mata-mosquitos. O medo é um

grande e eficaz nivelador. Sob o estímulo da pusilanimidade,

tubarões e pé-rapados largam a mesma baba, elástica e bovina. O

pior de tudo foi o seguinte: -- era rebate falso. Não havia rapa

nenhum. Imediatamente, as caras começaram a resplandecer, já

lavadas do medo, numa cínica, numa deslavada euforia. O último a

recuperar um pouco de harmonia interior foi um psicanalista

célebre. Cobra tão caro, o homem, que o cliente tem que ser, no

mínimo, um estabelecimento bancário para suportar-lhe os preços. E

tinha náuseas de pavor homérico.

Pois bem. Diante do paroxismo geral e do meu próprio,

descobri o seguinte: -- o nosso mais agudo, o nosso mais exasperado

problema vital é o rapa. Não importa o sexo, a idade, o nível social e

econômico de cada um. Do psicanalista nababesco ao pobre-diabo

dostoievskiano, da senhora mais excelsa ao vigarista mais frenético

-- cada um de nós vive esperando que o rapa o lace, o recolha, na

primeira esquina. Pode-se mesmo dizer que a chamada consciência

humana é o medo do rapa.

Eu disse que todos reagem assim, com esse pânico municipal.

Em tempo, retifico. Todos, menos um: -- o juiz de futebol. E, com

efeito, o único ser que está não sei se acima, se abaixo do rapa, ou

imune ao pânico que ele deflagra, é o árbitro de futebol. Ele resiste a

tudo. Repito: -- é o único ser inamovível, inexpugnável.

Todos os domingos, 100, 150, 200 mil pessoas o chamam de

ladrão. Seja ele um Abrahão Lincoln, um Robespierre, um Marat,

uma Maria Quitéria. Não importa. Taxam-no de gatuno e de tudo o

mais. Ora, até os bichos de desenho animado têm seus arreganhos

de pundonor. Vejam as touradas. Há um momento em que, fulo

dentro da roupa, o animal estaca. Diante dos urros do público, ele

recebe uma brusca consciência ética da humilhação. Se lhe fosse

permitido, o touro, assim ofendido, largaria o toureiro e sairia dando

marradas nos espectadores. Só o juiz de futebol lava as mãos diante

do irresponsável furor coletivo. E convenhamos: -- o indivíduo que,

sozinho, resiste a 200 mil pessoas pode quebrar os chifres de

qualquer rapa.

Mas nem sempre foi assim, nem sempre. No passado era

diferente: lavrava o suborno. Por exemplo: -- em 1915, havia um

juiz, de segunda divisão, que se vendia até por um maço de cigarros.

Mas um dia o homem empaca: -- repeliu a oferta de 20 mil réis que

lhe sopraram para amolecer a arbitragem. Esse esgar de vergonha,

de honra, era um sintoma taxativo. Na época, caçava-se louco no

meio da rua, a pauladas. Dois ou três dias depois, passou a

carrocinha de cachorro e o recolheu. O árbitro deixou-se levar: -- ia

no carro feliz e jucundo como um Rigoletto de lança-perfume.



[Manchete Esportiva, 4/2/1956]

O CRAQUE NA CAPELINHA




Falei em craque, mas, em tempo, retifico: -- era um perna-de-

pau. Com uma agravante: -- perna-de-pau de longínquo, de

antediluviano passado. Floresceu, se não me engano, por volta de

914, 916. Era a época inefável em que as mulheres não raspavam

nem as pernas, nem debaixo do braço. E essas canelas barbadas,

essas axilas luxuriantes definiam um tipo de civilização. Pois bem: --

o perna-de-pau, que já enterrava o time em 1915, não tardaria a

abandonar o futebol. Seu último jogo ocorreu na semana em que

assassinaram Pinheiro Machado. De então para cá, ele veio

arrastando sua decadência, através das semanas, meses e anos. Por

último, não comia, nem bebia: -- era a única fome, a única sede do

Brasil. Um dia desses, após uma agonia fétida e terrível, o homem

morreu. E, então, moradores do bairro, em conluio com alguns

comerciantes, resolveram custear-lhe o enterro.

Fui vê-lo na capelinha, para onde o remeteram. Diante dele,

diante do ser transfigurado, verifiquei o seguinte: -- não há morto

canastrão. Vestido de noivo, com sapatos engraxados, ele tem a face,

o ríctus, o perfil do grande ator. Assim acontecera com o perna-de-

pau: -- no caixão, apresentava uma nobre e taciturna máscara

cesariana.

O diabo era o ambiente do velório. Eis a verdade: -- nenhum

morto devia ir para as capelinhas, jamais. Elas traduzem um

sintoma terrível da nossa época. Antes de mais nada, significam um

frívolo desamor à morte e aos mortos. Não sabemos morrer, nem

enterrar. E pior do que isso: -- não sabemos fazer quarto. Essa

impotência diante da morte é o melancólico e inevitável resultado das

capelinhas. Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia

às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em

casa e, pois, dentro de um ambiente em que até os móveis eram

cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de

jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos

outros mortos. Escancaravam-se todas as portas, todas as janelas; e

esta casa iluminada podia sugerir, à distância, a idéia de aniversário,

de casamento ou de velório mesmo.

Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de

Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina que morreu, de febre

amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da

morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes;

derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que

ser contida, amordaçada, quase amarrada. Todos haviam parado de

gemer, de chorar, para espiar essa dor maior. Houve um momento

em que só ela gemia, só ela chorava, como uma insuperável solista.

Hoje, isto não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu

conteúdo poético dramático e, direi mesmo, histérico.

Preliminarmente, o defunto está fora do seu clima residencial. Como

os demais, ele é um constrangido, um cerimonioso, um deslocado.

Sim, todos, inclusive o cadáver, têm um ar de visita. Essa polidez

impede a violência e a espontaneidade da dor que vem de dentro, das

profundezas, como um gemido vacum. Bem que a viúva desejaria

espernear, esganiçar-se, como uma canastrona do velho teatro. Mas

eis a verdade: -- a capelinha torna inexeqüíveis as histerias

magníficas dos funerais antigos.

Eu sei que o perna-de-pau era apenas um perna-de-pau,

contemporâneo, quase dizia colega do assassinato de Pinheiro

Machado. Ainda assim. Qualquer morto é um césar.


[Manchete Esportiva, 11/2/1956]

O RISO




Eis a verdade: -- o que sustenta, o que nutre, o que dinamiza o

futebol é a vaidade. Vejamos o juiz. É um crucificado vitalício. Seja

ele o próprio Abrahão Lincoln, o próprio Robespierre, e a massa

ignara e ululante o chamará de gatuno. Dirá alguém que ele percebe

um bom salário. Nem assim, nem assim. Não há dinheiro que o

compense e redima, nenhum ordenado que o lave, que o purifique. E,

no entanto, ele não renuncia às suas funções nem por um decreto.

Pergunto: -- por que esta obstinação? Amigos, a vaidade o

encouraça, a vaidade o torna inexpugnável, a vaidade o ensurdece

para as 200 mil bocas que urram: -- "Ladrão! Ladrão! Ladrão!".

O mesmo acontece com o craque, com o paredro, com o

técnico. O futebol os projeta e pendura nas manchetes, e esta

publicidade histérica constitui uma delícia suprema. E ninguém é

modesto, ninguém. Qualquer jogador, ou qualquer dirigente, ou

qualquer técnico tem a torva e a vaidade de uma prima-dona gagá,

cheia de pelancas e de varizes. Eu disse que ninguém é modesto no

futebol. Em tempo retifico: -- há, sim, uma única e escassa figura,

que, no meio do cabotinismo frenético e geral, constitui uma exceção

franciscana. Refiro-me ao esquecido, ao desprezado, ao doce

massagista.

A imprensa e o rádio falam de tudo, numa sádica e minuciosa

cobertura. Jamais, porém, um locutor, um repórter lembrou-se de

mencionar a atuação de um massagista. Ele não merece, ao menos,

uma citação desprimorosa. Um bandeirinha consegue ser vaiado.

Não o massagista, que não inspira nada: -- nem amor, nem ódio.

Dir-se-ia que o gandula é mais importante. E, no entanto, apesar da

humildade sufocante de suas funções, o massagista pode ser uma

dessas figuras capitais, que resolvem o destino das batalhas.

Para não ir muito longe, citarei o exemplo de Mário Américo.

Tudo na sua figura de ex-boxeur justifica uma simpatia universal, a

começar pela cabeça minuciosamente raspada, até o último vestígio

de cabelo. Esse coco lustroso e negro já o distingue dos demais, em

violento destaque. Pois bem: -- simples e humilde massagista, Mário

Américo influi mais nos fatos do campo, na evolução das partidas,

que muito jogador, muito paredro, muito técnico. E não é com

massagens platônicas, não é fazendo seu métier, que o homem tem

decidido vários jogos. Mário Américo age pelo riso, apenas pelo riso.

Sim, amigos: -- quando ele se abre, quando se escancara,

quando se alarga no seu riso incoercível, não há força que o

contenha e que lhe resista. Mário Américo sério é um pobre ser,

duma esplendorosa nulidade como todos nós. Mas a gargalhada o

transfigura, dá-lhe uma nova dimensão racial, uma grandeza

inesperada e terrível, o equipara a certos negros da ficção e da vida:

-- Paul Robeson, José do Patrocínio, Otelo, imperador Jones etc.

Sobretudo nas pelejas internacionais, tudo, nesse homem de

cor, é um riso só: -- riem os lábios, as gengivas, os dentes, as ventas

e até a careca retinta. Foi o que aconteceu no Brasil x Argentina*, em

Montevidéu. Luizinho deu um corte num adversário de forma tão

espetacular que Mário Américo não resistiu: -- nunca o seu riso foi

tão largo, nunca o seu riso teve, como naquele momento, uma

dilatação de parto. E aquela cara que ria alucinou os nossos

adversários. Como vencer uma gargalhada cósmica? Se pudessem,

os argentinos teriam atravessado aquele riso com uma lança, como

nas gravuras de são Jorge.


[Manchete Esportiva, 8/3/1956]




*Brasil 1 x 0 Argentina, 5/2/1956, no Estádio Centenário.

FREUD NO FUTEBOL




Um amigo meu que foi aos Estados Unidos informa que, lá,

todo mundo tem o seu psicanalista. O psicanalista tornou-se tão

necessário e tão cotidiano como uma namorada. E o sujeito que, por

qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica

incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em

suma: -- antes de um desses atos gravíssimos, como seja o

adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do-

vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise.

O exemplo dos Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou,

mais exatamente, no futebol brasileiro. De fato, o futebol brasileiro

tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da integridade das

canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o

delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos

e venhamos: -- já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que

talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável.

A torcida, a imprensa e o rádio dão importância a pequeninos e

miseráveis acidentes. Por exemplo: -- uma reles distensão muscular

desencadeia manchetes. Mas nenhum jornal ou locutor jamais se

ocuparia de uma dor-de-cotovelo que viesse acometer um jogador e

incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês: há

uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza

ordinaríssima até uma tuberculose bilateral. Só não existe um

especialista para resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos

times. Em conseqüência, o jogador brasileiro é sempre um pobre ser

em crise.

Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos,

mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x

Hungria*, que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse "perdemos" e

por quê? Pela superioridade técnica dos adversários? Absolutamente.

Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos

imbatíveis. Eis a verdade: -- antes do jogo com os húngaros,

estávamos derrotados emocionalmente. Repito: -- fomos derrotados

por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas. Por que

esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia

dizê-lo.

E não era uma pane individual: -- era um afogamento coletivo.

Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, a

delegação, o técnico, o massagista. Nessas ocasiões, falta o principal.

Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem

ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à

Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai.

E aqui pergunto: -- que entende de alma um técnico de

futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem

mesmo um padre. Por exemplo: -- no jogo Brasil x Uruguai entendo

que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um

Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Francisco. Nos Estados

Unidos, não há uma Bovary, uma Karênina que não passe, antes do

adultério, no psicanalista. Pois bem: -- teríamos sido campeões do

mundo, naquele momento, se o escrete houvesse freqüentado,

previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista.

Sim, amigos: -- havia um comissário de polícia, que lia muito

X-9, muito Gibi. Para tudo o homem fazia o comentário erudito: --

"Freud explicaria isso!". Se um cachorro era atropelado, se uma gata

gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a cerca do


*Hungria 4 x 2 Brasil, 27/6/1954, em Berna. Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no
Maracanã.

vizinho, ele dizia: -- "Freud explicaria isso!". Faço minhas as

palavras da autoridade: -- só um Freud explicaria a derrota do Brasil

frente à Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer

derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele.



[Manchete Esportiva, 7/4/1956]

A DIVINA GOLEADA




Para muitos, a batalha América x Flamengo foi um absurdo

monstruoso. De fato, como explicar que perdesse de quatro um time

que, dias antes, venceu de cinco?* Foi o que aconteceu com o

América, foi o que aconteceu com o Flamengo. E, no entanto, o

mistério é muito mais aparente do que real. Se examinarmos bem a

segunda e a terceira partidas da melhor de três, veremos o seguinte:

-- há um nítido, um taxativo parentesco entre uma goleada e outra.

Os 5 x 1 explicam os 4 x 1 e vice-versa. Com uma ingenuidade

suicida, arranjamos uma data falsa para o tricampeonato.

Segundo o rádio, a imprensa e a televisão, o Flamengo tornou-

se tricampeão na quarta-feira e só na quarta-feira. Ninguém quer ver

que, quatro dias antes, o América já estava liquidado. Sim, amigos:

-- a partir do momento em que cravou no Flamengo, até o cabo, os 5

x 1, o clube rubro fez o próprio e irremediável abismo. Certos escores

são proibitivos, fatais. Por exemplo: -- 5 x 1. É uma goleada e vamos

e venhamos: -- qualquer goleada promove duas vítimas: -- o que

perde e o que ganha. Basta folhear a história do futebol. E nós

temos, à mão, um exemplo crudelíssimo, que ainda hoje nos

enfurece: -- o do match Brasil x Espanha. Perdemos o campeonato

do mundo porque, dias antes, goleamos os espanhóis de uma

maneira quase imoral. Tivéssemos obtido uma vitória mais sóbria e

menos feérica, trucidaríamos o Uruguai com um pé nas costas.


*O campeonato carioca de 1955 prolongou-se até 1956 e foi decidido numa melhor de
três entre Flamengo e América. Na primeira partida (28/3/1956), Flamengo 1 x 0.
Em 1º de abril, o América impôs 5 x 1 e, na negra, em 4 de abril, o Flamengo fez 4 x
1, sagrando-se tricampeão carioca pela segunda vez.

Direi mais: -- admite-se uma goleada num match isolado e

contra um perna-de-pau. Nunca, porém, num match decisivo e

contra um Flamengo. Mas acontece o seguinte: -- os escores altos

geram, quase sempre, uma insatisfação total. Os times que fazem

muitos gols querem ampliar o placar, mais e mais. O América devia

ter parado nos dois ou, no máximo, nos 3 x 1. Quis chegar aos cinco

e não sossegou enquanto não viu o Flamengo arrasado.

Geralmente não enxergamos um palmo adiante do nariz. Não

fosse esta cegueira crassa, e teríamos percebido tudo. Quero dizer: --

a depressão rubro-negra, naquele domingo, era um precário disfarce

dos seus brios enfurecidos. E, ao sair de campo, sob o impacto de

tantos gols, sangrando de humilhação, o Flamengo já devia levar o

estigma, ainda imponderável, do tricampeonato. A tragédia do

América foi ter dado ao rival, no último ou, por outra, no penúltimo

momento, o incentivo final e decisivo.

Deu-se o inevitável: -- houve o desarmamento interior do

América frente ao Flamengo. Era óbvio. Não há irritação possível e,

muito menos, ódio nas relações do vencedor com o vencido. O

ganhador está sempre disposto a deixar-se apunhalar pelo

adversário. Eu imagino que, antes da dor, da raiva, do desespero, o

América há de ter experimentado, quarta-feira, um sincero, fidedigno

espanto diante daquela rajada de gols. E, no entanto, não cabia o

seu assombro: -- ele perdera o campeonato quatro dias antes.

O triunfo do Flamengo encerra uma luminosa e aguda lição de

vida. Ele foi humilhado e sabemos que a humilhação, a grande e

irresgatável humilhação, confere aos homens e aos times uma

dimensão nova, uma potencialidade irresistível. O "mais querido"

devia ter, à mão, sempre, um adversário que o goleasse de 5 x 1, o

maior número possível de vezes. E assim espicaçado, assim

transfigurado, acabaria sendo tricampeão todos os anos.


[Manchete Esportiva, 11/4/1956]

IRRESISTÍVEL FLAMENGO




Quando o serviço de audiodifusão anunciou a equipe do

Flamengo, o público ficou sem saber se ria, se chorava. De fato, a

formação rubro-negra era, a um só tempo, cômica e pungente. Que

espécie de chance poderiam ter os Babás, os Henriques, os Moacir,

contra os Puskas do Honved? O Flamengo atirava garotos contra o

métier, a classe, o virtuosismo dos húngaros. Era uma aventura

pânica, uma experiência, se assim posso dizer, suicida. Pois bem: --

começa o jogo. E, com surpresa e quase com irritação geral, esfarela-

se, à vista de todos, o maciço favoritismo dos visitantes. Sim, amigos:

-- o Flamengo, com seus aspirantes, é que parecia o Honved, é que

parecia o escrete húngaro. Os Babás, os Henriques é que pareciam

os Puskas.*

Os gols começaram a entrar. Terminou o primeiro tempo com

um marcador que não deixava de ser apavorante: -- 3 x 1, a favor

dos quase juvenis rubro-negros. A multidão já não entendia nada.

Fora lá com o seguinte objetivo expresso: -- ver a surra que o

Honved ia dar no Flamengo. Em vez disso, assistia ao massacre

técnico e tático dos magiares. Vem o segundo tempo e nada muda a

fisionomia do jogo. O escore final, 6 x 4, com seu ar de bola de meia,

de pelada, não chega a constituir um banho. Nem o banho está no

marcador, mas no jogo. Foi uma lavagem de bola de futebol que os

meninos da Gávea infligiram aos visitantes. Resta a pergunta: -- por

que a partida assumiu, contra todos os cálculos, características tão



*Flamengo 6 x 4 Honved, 19/1/1957, no Maracanã. O Honved devolveria a goleada,
pelo mesmo placar, uma semana depois, no Pacaembu.

insólitas?

Tratei de ler os jornais de domingo. Verifiquei o seguinte: --

cada cronista apresentou uma imagem própria da partida. Segundo

uns, o Honved está "gordo", segundo outros "desambientado", ou,

então, com "saudades da família". O que ninguém se lembrou foi de

atribuir o resultado ao mérito do Flamengo. Sim, o match foi o que

foi, e não o que se esperava, porque demonstramos uma devastadora

superioridade. Não foi o Honved que jogou mal: -- foi o rubro-negro

que jogou muito melhor. Nas vitórias fáceis, o derrotado parece,

logicamente, fora de forma física, técnica e, até, moral. Pois claro!

Tudo o que o vencido faz sai mal, torto, falho. Por outro lado, a

euforia do ganhador sufoca o élan do antagonista. Raciocinemos,

amigos: -- os húngaros pareceram lerdos, pesadões, ineptos, porque

os Babás, os Didas, os Paulinhos disparavam-se com uma

velocidade, uma penetração de balas.

É fácil explicar, também, a perplexidade quase dolorosa do

público. Por ocasião do Mundial da Suíça, os jornalistas patrícios

mandaram de lá uma versão desfigurada da nossa peleja com a

Hungria. Segundo se escreveu, os húngaros venceram, naquela

época, porque eram imbatíveis. E, no entanto, a verdade era bem

outra. O nosso escrete entrou, para os 4 x 2 de Berna, num estado

vizinho do histerismo. Imprestável emocionalmente, não estava em

condições de vencer nem um time de botão. Mas, sábado, o

Flamengo deu uma medida autêntica do nosso futebol.

O que vimos foi, de fato, o cotejo do futebol húngaro e

brasileiro, ambos com as suas características fidedignas. Falar em

"desambientação" de um time que tem métier internacional, que deu

um banho na Inglaterra, em Londres, é um pouco forte. E, além

disso, se eles estavam "desambientados", vamos e venhamos: -- o

Flamengo pôs em campo quase o time de aspirantes.

O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e

exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado

ufanismo. Sim, amigos: -- somos uns Narcisos às avessas, que

cospem na própria imagem. Mas certas vitórias merecem um total

respeito. Por exemplo: -- a de sábado. A garotada rubro-negra deu-

nos uma lição maravilhosa, que é a seguinte: -- o futebol brasileiro,

jogando o que sabe, observando as suas verdadeiras características,

é o melhor do mundo.



[Manchete Esportiva, 26/1/1957]

A CUSPARADA METAFÍSICA




Amigos, é óbvio que eu tenho que catar, entre os 22 elementos

de Canto do Rio x Flamengo*, o meu personagem da semana. Digo

"22 elementos" e já retifico: -- 23. De fato, seria uma injustiça, e das

mais crassas, não incluir o árbitro Alberto da Gama Malcher entre as

figuras cogitáveis. Ele marcou dois pênaltis e, não satisfeito,

determinou uma expulsão. E um juiz que faz tanto está,

indubitavelmente, assumindo uma grave responsabilidade, perante

Deus e perante os homens. Sim, ele poderia ser meu personagem, se

eu não tivesse escolhido outro. E o patético é que, desta vez, não se

trata de gente. Insisto: o meu personagem da semana não pertence à

triste e miserável condição humana. É, e com escrúpulo e vergonha o

confesso, uma cusparada.

A vida dos homens e dos times depende, às vezes, de episódios

quase imperceptíveis. Por exemplo: -- o jogo Canto do Rio x

Flamengo, que foi tão árduo, tão dramático para o rubro-negro.

Antes da partida, havia rubro-negros olhando de esguelha, e com o

coração pressago, o time da vizinha capital. É certo que o Canto do

Rio não esfrega na nossa cara grandes nomes, grandes cartazes. Mas

nós sabemos que está lá, por trás, dispondo, o treinador Zezé

Moreira. Convém temer o clarividente métier, a sábia experiência do

vencedor do Pan-Americano.

Começa o match e logo se percebe que o Flamengo teria de

molhar a camisa. O Canto do Rio fez o jogo que rende, que interessa:

-- bola no chão, passe rasteiro, penetração, agressividade. Termina a


*Flamengo 2 x 1 Canto do Rio, 1/11/1957, no Maracanã.

primeira etapa com um escandaloso 1 x 0 a favor do Canto do Rio.

Cá fora, vários rubro-negros se entreolhavam, em pânico. Imaginem

se o Flamengo cai da liderança, como de um trapézio. Mas vem o

tempo final e o rubro-negro consegue, com um gol notabilíssimo de

Henrique, o empate. Mas não bastava. Um empate significaria, do

mesmo modo, a humilhação de um segundo lugar. Continua a

tragédia.

E, de repente, com a bola longe, nos pés de Jairo, se não me

engano, há um incidente na área do Canto do Rio. Alguém chuta

alguém. Malcher, de uma só cajadada, mata dois coelhos: -- expulsa

Floriano, que lhe pareceu culpado, e assinala pênalti contra o Canto

do Rio. Amigos, eu confesso: -- tive pena do Canto do Rio, porque o

árbitro o punia duas vezes pela mesma falta. Achei que era justiça

demais, castigo demais. Vem Moacir e desempata: -- Flamengo 2 x 1.

Inferiorizado no placar e com dez elementos, lá parte, outra vez, o

Canto do Rio. Jogo duro, viril, disputado com gana e, eu quase diria,

com ódio.

Faltando quatro ou cinco minutos para acabar a batalha,

ocorre contra o Flamengo o pênalti que, para muitos, foi de

compensação. Devia ser empate, ou seja: -- o resultado que viria pôr

abaixo, da ponta, o Flamengo. Foi então que Dida teve uma

lembrança maléfica e mesmo diabólica. Estava a bola na marca

fatídica. Dida aproxima-se, ajoelha-se, baixa o rosto e vai fazer o que

nem todos, na afobação, percebem. Para muitos, ele estaria rezando

o couro. Mas eis, na verdade, o que acontecia: Dida estava cuspindo

na bola. Apenas isso e nada mais.

Objetará alguém que este é um detalhe anti-higiênico,

antiestético, que não devia ser inserido numa crônica. Mas eu vos

direi que, antes de Canto do Rio x Flamengo, já dizia aquele

personagem shakespeariano que há mais coisas no céu e na terra do

que supõe a nossa vã filosofia. Quem sabe se a cusparada não

decidiu tudo? Só sei que lá ficou a saliva, pousada na bola. O que

aconteceu depois todos sabem: -- Osmar bate a penalidade de uma

maneira que envergonharia uma cambaxirra. Atirava o Canto do Rio

pela janela a última e desesperada chance de um empate glorioso.

E ninguém desconfiou que o fator decisivo do triunfo fora,

talvez, a cusparada metafísica de Dida, que ungiu a bola e a desviou,

na hora H.



[Manchete Esportiva, 9/11/1957]

ARTILHEIRO EM ESTADO DE ANJO




Depois da fabulosa goleada botafoguense*, a escolha do meu

personagem da semana deixa de ser problema. É Paulinho, só pode

ser Paulinho. E aqui eu pergunto: -- quem é Paulinho? Antes do jogo

era um e agora outro. Seu nome passou a exigir uma pronúncia mais

enfática. E, no entanto, vejam vocês: -- até há bem pouco tempo era

um sujeito irritante. Quantos gols perdia por jogo, quantos! Parecia,

mal comparando, um Valdo talvez piorado. Sabe-se que, nos

primeiros tempos, a especialidade de Valdo era perder gols que uma

cambaxirra faria. Pois bem: -- Paulinho não lhe ficava atrás. Sempre

que, por circunstâncias jornalísticas, eu vi jogos do Botafogo,

Paulinho atirava pela janela oportunidades deslumbrantes. Debaixo

dos três paus, ele mandava por cima, pelos lados, mas para dentro,

nunca. Num espanto profundo, eu perguntava a um e outro: --

"Como pode? Como pode?". E Paulinho não estava longe de me

parecer um caso perdido.

Justiça se lhe faça, porém: -- perdendo quinze gols por um que

fazia, Paulinho jamais deixou de ser um jogador raçudo. Lutava de

fio a pavio, até a última gota de suor. Corria em campo como um

coelhinho de desenho animado e, além disso, nunca fugiu do pau.

Ora, o público venera os craques sem medo e que molham,

encharcam a camisa, numa honesta e máscula transpiração. E como

Paulinho suava mais que os outros, como tinha brancas hemorragias

de suor, todo mundo o respeitava, inclusive eu. Sim, Paulinho nunca



* Botafogo 6 x 2 Fluminense, 20/12/1957, no Maracanã. A goleada deu o título
carioca de 1957 ao alvinegro.

brincou em serviço. Em cada partida, faz um honrado esforço de

noventa minutos.

Domingo, finalmente, chegou o grande dia de Paulinho. Senão

vejamos: -- um jogador que enfia cinco gols na última batalha, na

batalha que vai decidir a guerra, esse jogador é um monstro. Depois

da peleja, vejo um alvinegro gemendo. A princípio, pareceu-me que

seria uma cólica. Engano. Não era cólica: -- era espanto. E, com

efeito, ele ainda pasmava para a exorbitância numérica de tantos

gols conseguidos por um único cidadão. O botafoguense bufava: --

"Cinco! Cinco!".

Outro alvinegro veio cochichar-me, ao ouvido: -- "Viste aquele

gol de letra que Paulinho fez?". Tomo um susto: -- "De letra?". E, de

fato, na minha dolorosa e ignara perplexidade, eu não me lembrava

de nenhum gol de letra. Mas, como Paulinho meteu tantos, comecei

a admitir que tivesse enfiado um de letra também. Só depois é que

dei pelo equívoco. O chamado gol de letra fora o de bicicleta. Conto o

episódio para que vocês observem o fenômeno. Já há quem esteja

idealizando os tentos de Paulinho. Os cinco gols já nasceram

históricos. Retocados por uns e outros, eles invadem o folclore. A

lenda e a anedota estão funcionando, desde domingo. Daqui a pouco,

quando se contar a história dos cinco gols, não se saberá discernir

entre a ficção e a realidade.

O meu personagem da semana é, desde domingo, uma dessas

glórias súbitas que, de vez em quando, rompem num domingo de

futebol. Antes do jogo, quem era a vedete, a prima-dona, a estrela

máxima do ataque alvinegro? Didi. Com o seu magnífico tipo racial

de príncipe etíope de rancho, ele se destacava furiosamente. Logo

depois, vinha Garrincha, que o treinador húngaro Giula Mandi

considera, e eu também, o maior ponta-direita do mundo. Paulinho

valia, sobretudo, pela desesperada abnegação do seu esforço. Estava,

porém, bem abaixo de Didi e de Garrincha. Mas, a partir do

momento em que Malcher pôs um ponto final na partida de domingo,

Paulinho já não está mais abaixo de ninguém. Pode erguer a cabeça

e bater no peito: -- "Eu sou eu!".

Imagino que, domingo, ao entrar em campo, ele não era um

jogador como qualquer um, como qualquer outro. Era alguém em

estado de graça ou, ainda, em estado de anjo. Sua tremenda euforia

não foi de jogador, nem mesmo de gente. Só mesmo um anjo faria

tantos gols num jogo decisivo. Vejam bem: -- minuto a minuto, foi de

um fôlego bestial. Não parava. Ele, sozinho, nas suas penetrações

alucinantes, bastava para dinamizar a peleja, para dramatizá-la. Foi

com ele que começou a desintegrar-se a defesa tricolor. Ah, o duelo

de Paulinho com Pinheiro! Foi algo de trágico. Eu vos digo: --

Pinheiro, atrás de meu personagem, parecia uma maciça, uma

compacta catedral perseguindo um coelhinho. E como Paulinho

cortou, envolveu, ceifou, dizimou e devastou Pinheiro!

Alguém me dizia, depois da batalha: -- "Não fosse Paulinho,

teríamos empatado de 1 x 1 e seríamos campeões!". Mas houve

Paulinho e, diante dos 6 x 2, do histerismo numérico do escore, a

vontade que dá a qualquer um é sentar no meio-fio e chorar. Não há

raciocínio possível contra a goleada cósmica. E convenhamos: -- os

cinco gols de meu personagem da semana deviam estar, desde

domingo, numa vitrine de museu.



[Manchete Esportiva, 28/12/1957]

O DEUS DE CARLITO ROCHA




Chegou, enfim, o momento de fazer de Carlito Rocha o meu

personagem da semana. Quer queiram, quer não, ele está atrelado ao

fabuloso triunfo alvinegro sobre o Fluminense.* E aqui pergunto: --

qual teria sido a contribuição carlitiana para o título? Eu próprio

respondo: -- Carlito ligou o jogo ao sobrenatural, pôs Deus ao lado

do Botafogo e mais do que isso: -- pôs Deus contra o Fluminense.

E, com efeito, três ou quatro dias antes do clássico, um

jornalista foi provocar o velho Rocha. Ora, Carlito nunca teve meias

medidas, nunca. Bastaram duas ou três perguntas estimulantes

para que, dentro dele, rugisse a imortal paixão botafoguense. Em vez

de soltar declarações convencionais, o homem abriu a alma de par

em par. Contou, entre outras coisas, que vira e ouvira Deus. É raro,

muito raro, que venha alguém a público confessar uma visão.

Geralmente, temos vergonha e, mais do que isso, medo das nossas

visões. E, antes de mais nada, cumpre reconhecer a coragem de

Carlito Rocha. Disse ele que Deus viera anunciar-lhe a vitória do

Botafogo.

Um vaticínio divino é algo mais que um palpite de esquina. E,

no entanto, vejam vocês, nem o jornal que publicou a reportagem,

nem o leitor, nem a torcida, ninguém acreditou, nem em Carlito, nem

na visão, nem mesmo em Deus. As declarações do velho Rocha, tão

honestas e incisivas, pareceram a nós, impotentes da fé, uma

simples e cruel piada do jornal. E um amigo, pó-de-arroz como eu,



*Nelson refere-se ao jogo Botafogo 6 x 2 Fluminense, tratado na crônica anterior.
Carlito Rocha era ex-presidente e, de certa forma, símbolo do Botafogo.

veio perguntar-me:

-- Viste o Deus de Carlito?

Eu não tinha visto o jornal, ainda. Mas as palavras do meu

amigo ficaram ressoantes em mim: -- "Deus de Carlito!". E,

subitamente, eu compreendia o seguinte: -- não há um Deus geral,

não há um Deus de todos, não há um Deus para todos. O que existe,

sim, é o Deus de cada um, um Deus para cada um. Por outras

palavras: -- um Deus de Carlito, um Deus do leitor, um Deus meu e

assim por diante. Ao falar, com um esgar de pouco-caso, no "Deus de

Carlito", o meu amigo anunciava uma verdade, sem querer. Eu

imagino que, até o dia da batalha, tenham dito o diabo do velho

Rocha. Riam dele, de alto a baixo. Pobres de nós, que não sabemos

respeitar as grandes paixões! E ninguém queria perceber o que era

óbvio: -- graças a Carlito, criava-se uma relação entre o Botafogo e o

sobrenatural, e o clássico decisivo passava a adquirir um pouco de

eternidade.

Vem o jogo. Com a nossa obtusidade de ateus, tínhamos da

batalha uma visão crassamente realista. Só cuidávamos dos aspectos

técnicos, táticos e físicos. Eu próprio vivia perguntando, a um e

outro, na minha aflição de pó-de-arroz: -- "O Leo joga? O Leo não

joga?". Em suma: -- pensava em Leo, em Pinheiro, em Cacá, ou

Valdo, mas não chamava o "meu" Deus. Ao passo que o velho Rocha

é sábio quando acrescenta a qualquer pelada do Botafogo a

dimensão de sua fé.

Eu não vi, nem ouvi, durante toda a semana do jogo, um

tricolor falar em Deus. E por quê? Pelo seguinte: -- achamos que

Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o excluímos das

atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um clube tão

sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum brasileiro consegue ser

nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço,

sem os seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu

Deus pessoal e intransferível. É esse místico arsenal que explica as

vitórias esmagadoras.

Por tantos motivos, eu acredito, piamente, na contribuição de

Carlito para o perfeito, o irretocável triunfo alvinegro. E, de resto,

como não gostar do Deus do velho Rocha? Deus tão cordial, íntimo,

terno, que se incorporou à torcida botafoguense, que viveu com a

torcida botafoguense aqueles eternos noventa minutos! Enquanto

nós não tivemos nada, não tivemos ninguém. Mais esperto, o

Flamengo entretém as suas relações com o sobrenatural, através de

são Judas Tadeu. E quanto a Carlito, ninguém merece tanto como

ele, agora, o título de meu personagem da semana.



[Manchete Esportiva, 4/1/1958]

VESTIDO DE FOGO




Eis que o meu personagem da semana é, desta feita, um

Taylor. "Mas que Taylor?", há de perguntar o leitor, numa

irremediável perplexidade. E, de fato, não há, em todo o futebol

brasileiro, um único e escasso Taylor. Mas eu vos digo: -- o meu

atual personagem da semana não é daqui e, se não me falha a

memória, jamais atuou em campo brasileiro. Acrescento: -- é inglês e

acaba de morrer, à sombra de grandes labaredas. Estava na

delegação do Manchester, que voltava para a pátria. Frustrado no

seu vôo, o avião varreu um ou dois telhados, explodindo. Isso em

Munique e, logo, em todo o mundo, as manchetes incorreram no

mesmo lugar-comum: -- "De luto o futebol inglês!", "Tito telegrafou

para a rainha", "A rainha telegrafou para não sei quem" e entre as

vítimas estava o meu personagem: -- o Taylor morto.

Eis a verdade: -- a morte parece conferir um especialíssimo

manto aos seus eleitos. Não há morto sem importância. Dir-se-ia

que, ao morrer, qualquer cidadão põe um ar de rei Lear. Eu disse

"rei" e insisto: -- rei. E o que aconteceu com Taylor, ao cair o avião,

foi que adquiriu, imediatamente, uma nova dimensão. Mas vejam: --

ele já é eterno e nós ainda somos mortais.

Taylor! Pergunto a mim mesmo se, por acaso, não teria vindo,

aqui, algum dia, num desses clubes ingleses que nos visitaram.

Consulto um companheiro que me informa: -- "Nunca jogou aqui". E

é pena. Agora que morreu gostaríamos de o ter visto, correndo,

molhando a camisa, fazendo o metódico, o construído, o despojado

futebol inglês. Futebol que se caracteriza por uma implacável

honestidade.

Ele morreu e ninguém o viu. Ou por outra: -- só o viram os

poucos brasileiros que estiveram em Wembley, naquele funesto

Brasil x Inglaterra*. Taylor jogou pelos britânicos e, por duas vezes,

arrombou as redes brasileiras. Em suma: -- ele colaborou para uma

das mais duras humilhações do nosso futebol. Não tanto o escore de

4 x 2, mas as características da derrota é que ainda hoje nos

envergonham. Realmente, diante dos ingleses caímos em inibições

convulsivas. O que se viu foi um pobre Brasil, sem um único

lampejo. Mas o tempo passa e eis que Taylor morre. E nós que não o

vimos, que não o aplaudimos, nem o vaiamos, sentimos que Taylor

deixou de ser um estranho. Sim, a morte deu-lhe a fisionomia exata,

a face fidedigna, o ríctus certo. O verdadeiro rosto é o último. O

homem da rua, que o ignorava, cochicha para os conhecidos: -- "O

Taylor morreu!". Entre nós e os mortos cessam os limites de polidez,

de cerimônia e de suspeita que separam os vivos uns dos outros.

E há uma circunstância que parece distingui-lo de todos os

outros mortos e de todos os outros vivos: -- ele marcou, como já

referi, dois gols contra nós em Wembley. Naquela ocasião, confesso

que estrebuchei, de raiva cívica. Se fosse um, mas dois, logo dois!

Ora, nada se compara ao ódio que, de momento, açula o torcedor

sempre que o adversário põe um gol como um ovo. A fúria rompe,

sobe das nossas profundezas como uma golfada atroz. Assim eu odiei

Taylor quando perdemos em Wembley. Digo "eu" e acrescento: -- o

resto do Brasil. Cerca de dois anos depois, cai um avião, Taylor

morre e há, em nós, uma transformação.

Os mesmos dois gols, que outrora nos enfureceram, tecem

entre nós e Taylor uma relação mais cordial e mais comovida. Dir-se-



*Tommy Taylor era uma das grandes promessas do futebol inglês. O jogo a que Nelson
se refere foi Inglaterra 4 x 2 Brasil, em 9/5/1956, em Wembley, no qual Gilmar
pegou dois pênaltis. O desastre com o avião que conduzia o Manchester United,
clube de Taylor, foi em 6/2/1958.

ia que, ao vazar o arco brasileiro, ele estava, em verdade, prestando

uma homenagem ao Brasil. Sentimos quase gratidão pela derrota

que ele e os companheiros nos infligiram. E ao imaginá-lo, vestido de

fogo, no avião que decepou o telhado, experimentamos um pouco a

nostalgia da morte. É como se só existisse entre nós e Taylor esta

diferença: -- ele já morreu e nós somos uns mortos frustrados.

Em Wembley, era um ser em plenitude. Quem se lembraria de

lhe soprar ao ouvido: -- "Você vai morrer, Taylor!"? Os que vão

morrer cedo deviam ter uma marca, um distintivo, um estigma

material. Mas como não há esse estigma, a morte de Taylor cobriu o

mundo de espanto.



[Manchete Esportiva, 15/2/1958]

A REALEZA DE PELÉ




Depois do jogo América x Santos*, seria um crime não fazer de

Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu

confrade Albert Laurence chama de "o Domingos da Guia do ataque".

Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: -- dezessete anos! Há

certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de

Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter

dezessete anos, jamais. Pois bem: -- verdadeiro garoto, o meu

personagem anda em campo com uma dessas autoridades

irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador

Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender

mantos invisíveis. Em suma: -- ponham-no em qualquer rancho e a

sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado

de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem

considerável: -- a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele

apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem

escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem

uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe

perguntaram: -- "Quem é o maior meia do mundo?". Ele respondeu,

com a ênfase das certezas eternas: -- "Eu". Insistiram: -- "Qual é o

maior ponta do mundo?". E Pelé: -- "Eu". Em outro qualquer, esse

desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz

uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a

admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas


*
Santos 5 x 3 América, 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio--São Paulo. Foi a primeira crônica de
Nelson sobre Pelé -- e a primeira em que o jogador foi chamado de "rei".

pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o

incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.

Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em

Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América,

monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente

estrebuchava: -- "Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!". De

certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele

recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado.

Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de

adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o

primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que

Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: -- sem passar a

ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição

minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento

em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma

defesa. Ou por outra: -- a defesa estava indefesa. E, então, livre na

área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e

encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e

puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de

confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque

imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a

imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba

intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida

docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é

imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não

tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos

de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa

atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: --

aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos

adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a

fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os

húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós

baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante,

por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros

como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os

outros é que tremerão diante de nós.



[Manchete Esportiva, 8/3/1958]

DIDI SEM GUIOMAR




E, súbito, a CBD toma uma providência patética: -- baixa uma

ordem impedindo que qualquer jogador leve a mulher à Suécia. Ora,

a finalidade da medida é de uma cândida transparência. Só um cego

de nascença não vê que se trata de separar Didi de Guiomar*, de

obstar que ela o acompanhe ao próximo Mundial. Está claro que Didi

pagaria todas as despesas de Guiomar; está claro, do mesmo modo,

que ela ficaria fora da concentração, apenas como torcedora de Didi e

do Brasil. Ainda assim, a entidade máxima faz finca-pé. Didi está

diante do dilema: ou a Suécia ou Guiomar. Não importa que a CBD

volte atrás, que revogue a decisão errada e, sobretudo, inumana.

Seja como for, Guiomar já foi transformada num autêntico fato

jornalístico, e merece que eu a apresente como meu personagem da

semana.

Pergunto: -- por que a arbitrariedade contra Didi e Guiomar?

Explico: -- existe, contra ela, um preconceito militante,

agressivo e eu quase diria internacional. Examinem a improcedência

de certas antipatias, de certas irritações. Por exemplo: -- ela trata, a

todos, com uma cordialidade quase doce. E, no entanto, basta que

Didi fracasse numa folha-seca, ou desperdice um pênalti, ou faça um

passe errado, para que a torcida a responsabilize. Vejam vocês as

ironias do futebol: -- ela devia ser responsável, por igual, pelos

defeitos e pelos méritos de Didi. Mas não. Se Didi falha é Guiomar,

se não falha é Didi. Ninguém admite que ela possa representar, no



*Guiomar acabou não indo à Suécia e, mesmo assim, Didi foi considerado o maior
jogador da Copa. A CBD é a antiga Confederação Brasileira de Desportos, atual CBF.

futebol do craque, um poderoso estímulo, um incentivo total. Pelo

contrário: -- atribuem-lhe um papel funesto. Segundo a nossa

maledicência fácil e irresponsável, se Didi não faz mais gols é porque,

atrás dele, está a influência nefanda de Guiomar.

Mas vamos imaginar, aqui, uma outra hipótese: -- Didi sem

Guiomar. Nós sabemos o que é um homem sem sua mulher. Notem:

-- não é qualquer mulher, não é um flerte, não é um namoro, não é

uma aventura, mas algo que independe de tempo, um vínculo

irredutível e, eu tenho mesmo vontade de dizer, eterno. Tanto é

verdade que ninguém consegue imaginar Didi sem Guiomar e vice-

versa. Dir-se-ia que os dois constituem um ser único, indivisível. E o

que a CBD quer, justamente, é amputar um do outro, é fazer a cisão

intolerável de duas metades. Convenhamos: -- já Didi seria menos

Didi, ou por outra: -- não seria Didi. Seria meio Didi, desfalcado na

generosa totalidade do seu ser.

Imaginemos o craque na Suécia. E mais: -- imaginemos o

craque sem Guiomar. O juiz apita uma penalidade, nas imediações

da área, contra o adversário. Didi vai cobrar. É o momento justo e

patético da folha-seca. Mas como executá-la, se há, entre Didi e

Guiomar, terras e águas, se há entre os dois um irredutível oceano?

E, de resto, como exigir uma folha-seca de um jogador que foi

arrancado de seu amor, arrancado de sua paixão? Bem se vê que a

CBD não entende nada de psicologia e nunca amou em sua vida. Ela

vê o craque como tal, apenas. E nem desconfia que o jogador é, antes

de tudo, um homem e que, nessa base, a condição humana está

implicada em todos os seus defeitos e virtudes.

Dirá alguém que Didi e Guiomar brigam muito e que os bate-

bocas em casa influem na produção em campo. Mas os conflitos de

um casal são inevitáveis e, mais do que isso, estimulantes. E quem

nos diz que as brigas domésticas não inspiram Didi, não o

transfiguram, não o virilizam nas batalhas da cancha? De vez em

quando é preciso que um casal se engalfinhe. É sadio e atrevo-me

mesmo a dizer: -- é sublime. E porque um não pode viver sem o

outro, seja na Suécia, seja em Vigário Geral, hoje o meu personagem

da semana são dois: -- Didi e Guiomar.



[Manchete Esportiva, 26/4/1958]

O GORDO SALVADOR




Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um

incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E, no

entanto, vejam: -- pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior

do que ser gordo é ser magro. Digo isto a propósito de Feola*, o meu

personagem da semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da

distância, porém, é como se eu o estivesse vendo com a doce, a

generosa cordialidade que é o clima dos gordos de todos os tempos. E

aqui pergunto: -- um Feola magro teria sido melhor para o escrete?

Não creio e explico. É preciso ver os magros com a pulga atrás

da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de

fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas

que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no

profundo e amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for,

temos de admitir a sua ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis

vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta

circunstância, que ele deplora e repudia. Numa terra de

neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável

humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os

sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.

Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra

a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas

indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória.


*Vicente Feola foi o treinador da seleção brasileira na Copa de 1958. O grosso da
imprensa não o levava a sério, acusando-o de cochilar no banco de reservas durante
os treinos.

Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião,

algum depauperado? Não, senhor. Pelo contrário: -- os quadros

mostram a inequívoca e imperial barriga napoleônica. E uma das

coisas que me levam a acreditar no Brasil como campeão do mundo

é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo.

O leitor pode perguntar, com certa irritação: -- e que

importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato,

dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos

terrenos. O sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo

"cercado de palpites" e acrescento: -- de palpiteiros. O técnico tem,

no mínimo, duzentas irritações por dia. E, além do mais, não há

função mais polêmica. Tudo o que ele faça suscita debates no país

inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a sua desgraça.

E das duas uma: ou ele tem uma inexpugnável sanidade mental ou

acaba maluco e a família não sabe. Só um gordo, repito, possui por

natureza a euforia necessária para resistir às crises de um escrete.

Por exemplo: -- observem o comportamento de Feola na

preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o perturba,

nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não

xingou a mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por

coincidência, magros, que acham bonito e eficaz tratar o craque a

pontapés. Feola, nunca. Podem fazer todas as ondas do céu e da

terra. Ele permanecerá com sua alegria imbatível -- constante,

ininterrupta alegria. E esse bom humor quebra e desmoraliza

qualquer resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende.

Faz o que quer, e só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa

e, direi mesmo, imperceptível.

Não se sente a autoridade de Feola que, entretanto, é militante,

irredutível. Sim, amigos: -- não esbraveja, não estrebucha, nem

todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide. E

ninguém se iluda: -- a sua abundante cordialidade de gordo é o

disfarce de um maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem

histeria, insuscetível de irritações, fazia falta num futebol de

emotivos, de irritados, como o nosso.

Eu disse que Feola não perdia nunca o bom humor e já retifico:

há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gordo. Então,

ele pula e esbraveja como um caluniado.



[Manchete Esportiva, 3/5/1958]

O QUADRÚPEDE DE 28 PATAS




Hoje, o meu personagem da semana é uma das potências do

futebol brasileiro. Refiro-me ao torcedor. Parece um pobre-diabo,

indefeso e desarmado. Ilusão. Na verdade, a torcida pode salvar ou

liquidar um time. É o craque que lida com a bola e a chuta. Mas

acreditem: -- o torcedor está por trás, dispondo.

Escrevi acima que o torcedor não é um desarmado e provo. De

fato, ele possui uma arma irresistível: -- o palpite errado.

Empunhando o palpite, dá cutiladas medonhas. Vejam o primeiro

jogo com os paraguaios. Vencemos de cinco* e podia ter sido de dez.

Fizemos do adversário gato e sapato. Ora, para uma primeira

apresentação foi magnífico ou, mesmo, sublime. Mas quando saí do

Maracanã, após o jogo, vejo, por toda parte, brasileiros amargos e

deprimidos. Mais adiante, esbarro num amigo lúgubre. Faço

espanto: -- "Mas que cara de enterro é essa?". O amigo rosna: --

"Estou decepcionado com o escrete!". Caio das nuvens, o que,

segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro

andar. Instantaneamente, vi tudo: -- o meu amigo era ali, sem o

saber, um símbolo pessoal e humano da torcida brasileira. Símbolo

exato e definitivo.

Em qualquer outro país, uma vitória assim límpida e líquida do

escrete nacional teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Aqui,

a primeira providência do torcedor foi humilhar, desmoralizar o

triunfo, retirar-lhe todo o dramatismo e toda a importância. Atribuía-



*Brasil 5 x 1 Paraguai, 4/5/1958, no Maracanã; Brasil 0x0 Paraguai, 7/5/1958, no
Pacaembu. Jogos preparatórios para a Copa de 1958.

se a vitória não a um mérito nosso, mas a um fracasso paraguaio. Os

guaranis passavam a ser pernas-de-pau natos e hereditários. Dir-se-

ia que, por uma prodigiosa inversão de valores, sofremos com a

vitória e nos exaltamos com a derrota.

E, no entanto, vejam vocês: -- o escrete visitante, que nos

parecia de vira-latas, acabara de vencer e desclassificar a "Celeste" e

bater a enfática Argentina. Mas, para cuspir na vitória brasileira, o

nosso torcedor fingiu ignorar a real capacidade, a indiscutível classe

do adversário. Veio o segundo jogo, no campo careca e

esburacadíssimo do Pacaembu. Houve um empate, que teve para o

Brasil o gosto de uma semiderrota. Desta vez, porém, nada de choro,

nada de vela. Por toda parte, só se viam caras incendiadas de

satisfação. Com o olho rútilo e o lábio trêmulo, o torcedor patrício

lavava a alma: -- "Eu não disse?". Os pernas-de-pau não eram mais

os paraguaios, eram os brasileiros. E está-se vendo esta vergonha: --

um escrete, que começou vencendo, já é vítima de uma negação

frenética. Há gente torcendo para que ele apanhe de banho na

Suécia.

Eis a verdade, amigos: -- tratam do craque, tratam da equipe e

esquecem o torcedor, que está justificando cuidados especiais. Que

estímulo poderá ter um escrete que é negado mesmo na vitória? A

seleção não tem saída. Se vence de cinco, se dá uma lavagem, o

torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não

presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!

Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção.

Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador. De resto,

convém notar o seguinte: -- o escrete brasileiro implica todos nós e

cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e

de nossas qualidades. Em 50, houve mais que o revés de onze

sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro.

A propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas

esquinas e pelos cafés, batendo no peito: -- "Eu sou uma besta! Eu

sou um cavalo!". Outras vezes, ia mais longe na sua auto-

consagração; e bramava: -- "Eu sou um quadrúpede de 28 patas!".

Não lhe bastavam as quatro regulamentares; precisava acrescentar-

lhe mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete está, como o meu

amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, porque é um Narciso às

avessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meu

personagem da semana.



[Manchete Esportiva, 17/5/1958]

COMPLEXO DE VIRA-LATAS




Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da

semana. Os jogadores já partiram* e o Brasil vacila entre o

pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas,

nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: -- "O Brasil não vai

nem se classificar!". E, aqui, eu pergunto: -- não será esta atitude

negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: -- desde 50 que o nosso futebol tem

pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na

última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer

brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente

nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a

dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore

tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em

vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que,

aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou"

como poderia dizer: -- "extraiu" de nós o título como se fosse um

dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: -- é

ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de

acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: -- o pânico de

uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos,

qualquer esperança. Só imagino uma coisa: -- se o Brasil vence na

Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé

que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de


*Última crônica antes da estréia do Brasil na Copa de 1958.

brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: -- o escrete brasileiro tem, realmente, possi-

bilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não".

Mas eis a verdade: -- eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: --

sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro

bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-

fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado

do Flamengo. Pois bem: -- não vi ninguém que se comparasse aos

nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir,

um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: -- qualquer jogador

brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado

de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de

invenção. Em suma: -- temos dons em excesso. E só uma coisa nos

atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir

ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a

imaginar o espanto do leitor: -- "O que vem a ser isso?". Eu explico.

Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que

o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.

Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos

julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que

perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a

equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu

diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha

de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a

vantagem do empate. Pois bem: -- e perdemos da maneira mais

abjeta. Por um motivo muito simples: -- porque Obdulio nos tratou a

pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: -- o problema do escrete não é mais de futebol,

nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé

em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um

vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez

que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele

precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: --

para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.



[Manchete Esportiva, 31/5/1958]

DESCOBERTA DE GARRINCHA




E eis que, pela primeira vez, um "seu" Manuel é o meu

personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota,

ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa.

Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia* acabou nos três minutos

iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o "seu"

Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a

Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o

meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo

adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta

inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de

Rasputin.

Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente

na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o

espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que

vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como

marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação

impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de

Garrincha e concluía: -- "Isso não existe!". E eu, como os russos, já

me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu.

Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente,

jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou

melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: -- baile,

sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um



*Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). A URSS era
apontada como o grande fantasma da Copa por seu "futebol científico".

perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.

Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não

acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado

contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha

Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário.

Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu,

vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de

alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros

brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a platéia

internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante

sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de

chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada,

cumprimenta até cachorro. Antes de começar o jogo, o seu marcador

havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: "Esse não dá

pra saída!". E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia

duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território

nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser

brasileiro.

Está claro que não estou subestimando o peito dos outros

jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá

era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E

quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile,

foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem

razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: "Isso

que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!". Calculo

que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar

humilhadíssimas. O marcador do "seu" Manuel já não era um: eram

três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da

Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada

vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não

creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha

estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai

chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência

dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos

passarinhos, desterrados de Pau Grande.

Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e

inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir

Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e

talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.



[Manchete Esportiva, 21/6/1958]

MORRENDO AO PÉ DO RÁDIO




Só os bobos, só os tapados não enxergam que o Brasil

conseguiu, ontem, a sua maior vitória. Digo "maior" porque

vencemos não de banho, não de goleada, mas por um escore magro,

esquálido, quase fúnebre: -- 1 x 0. O povo queria que enfiássemos

uns seis ou sete. Eis a nossa tragédia: -- a pura e simples vitória não

basta. Desejamos enfeitá-la, pôr-lhe fitinhas e guizos. E o triunfo

sem show, sem apoteose, o triunfo enxuto deixa o brasileiro

descontente e desconfiado. Mas eu vos digo, aqui, que ninguém nos

ouve: -- foi a maior vitória brasileira. Imaginem se, por um absurdo,

tivéssemos batido de quinze. Íamos enfrentar a França como uns

anjinhos, isto é, com uma sensação mortal de invencibilidade. Em

50, perdemos a Copa porque goleamos a Espanha. Amigos, deixemos

o banho para a França, que meteu quatro na Irlanda do Norte.

Ótimo. E batam na madeira.

Vejamos, porém, quem deve ser, entre os 22 homens de ontem,

o meu personagem da semana. Ao terminar o jogo, Leônidas*, que

vive a negar os méritos do escrete, doutrinava: -- "Pelé devia ser

barrado!". Pois é este, justamente este, o personagem da semana.

Poderão objetar que Pelé jogou mal. Quem faz, numa quarta-de-final,

o gol da vitória não jogou mal coisíssima nenhuma. De resto, que

autoridade tem Leônidas? Contra a Rússia, ao final do primeiro

tempo, vinha ele para o microfone clamar: -- "Os russos estão


*Brasil 1 x 0 País de Gales, 19/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). O Leônidas a que
Nelson se refere é Leônidas da Silva, ex-craque (inventor da "bicicleta") e então
comentarista esportivo.

jogando melhor! Os russos estão mais perigosos!". Pois bem: --

Leônidas foi o único camarada, em todo o Velho Mundo, que ignorou

o show brasileiro. Enquanto Garrincha bailava, ele se punha a

admirar o adversário! E, por isso, eu vos digo: se Leônidas nega Pelé,

ótimo para este.

Mas admitamos que Pelé tenha jogado pedrinhas. Fez o gol.

Amigos, nada descreve o uivo, o urro que soltamos aqui quando o

espíquer atirou o seu berro bestial: -- "Gol!". Até aquele momento, o

Brasil inteiro, de ponta a ponta, do presidente da República ao

apanhador de guimba, o Brasil estava agonizando, morrendo, ao pé

do rádio. Imaginem se o adversário, antes de Pelé, tivesse enfiado um

gol maluco. Eis a verdade: ia haver uma morte nacional. O Brasil

teria desabado, teria arriado, e, posteriormente, teria saído num

rabecão.

E veio Pelé e fez o milagre. Podia ter enchido o pé. Mas foi

genialmente sóbrio. Apenas colocou. E o arqueiro do País de Gales,

que estava apanhando tudo, até pensamento, foi miseravelmente

enganado. E ficou falando sozinho. Só mesmo Leônidas é quem podia

achar que foi pouco esse gol tão sofrido, tão chorado por milhões de

patrícios.

Eu falei em uivo, em urro. Sim, amigos: -- foi um som jamais

ouvido, desde que se inventou o homem. Algo de bestial, de pré-

histórico, antediluviano, sei lá. Nunca, em nossa curta passagem

terrena, conhecemos uma euforia assim brutal. Foi um desses

momentos em que cada um de nós deixa de ter vergonha e passa a

ter orgulho de sua condição nacional. E pergunto: como esquecer

que foi Pelé, um garoto de cor, dos seus dezessete anos, quem nos

arrancou, ontem, de nossa agonia e de nossa morte? "Garoto de cor",

disse eu. Mas um tipo racialmente nobre como Didi, por exemplo.

Pelé em ação, dentro de campo, tem na sua corrida a cadência de

certos cavalos de charrete, com perdão da imagem. Como Didi, daria

também um belo príncipe etíope de rancho.

E o bonito é que esse menino não se abala, nem se entrega.

Possui a sanidade mental de um Garrincha. Ao contrário do

brasileiro em geral, suscetível de se apavorar em face dos títulos do

inimigo, ele não acredita em nada. Ninguém é melhor do que ele.

Tivesse jogado contra a Inglaterra e creiam: -- havia de driblar até a

rainha Vitória. E, além do mais, foi preciso muita classe para enfiar o

gol único e bendito. Debaixo daquela tensão emocional dantesca, só

um garoto de raça teria lucidez para colocar, simplesmente colocar,

no fundo das redes. Vamos deixar que Leônidas chame Pelé de

perna-de-pau.

É de pernas-de-pau como o meu personagem da semana que o

Brasil está precisando para ser campeão do mundo.



[Manchete Esportiva, 24/6/1958]

O TRIUNFO DO HOMEM




Qualquer jogador do escrete brasileiro podia ser o meu

personagem da semana. De Gilmar a Zagalo. De Zagalo diremos

apenas o seguinte: -- estava em todos os lugares ao mesmo tempo.

De certa feita, foi até interessante. Zagalo salva um gol, sai com a

bola e, em seguida, aparece lá na frente, na área adversária,

desintegrando a defesa inimiga. Amigos, ontem o escrete era

imbatível. Cada vez que um craque patrício apanhava a bola, partia

em todas as direções, como aquele mocinho de fita em série. E, pela

primeira vez, numa final de campeonato do mundo, um escrete vence

de goleada, vence de banho*. Mas, como eu ia dizendo: -- a exibição

do Brasil foi tão perfeita, irretocável, que, desta vez, qualquer um

podia ser o meu personagem.

Por exemplo: -- Pelé, um menor total, irremediável, que nem

pode assistir a filme de Brigitte Bardot. Ao receber o ordenado, o

bicho, é o pai que tem de representá-lo. Pois bem: -- Pelé assombrou

o mundo. Não se limitou a fazer os gols. Tratava de enfeitá-los, de

lustrá-los. Sim, poderia ser Pelé o homem desta página.

E, todavia, eu penso em Didi. Examinem a sua fisionomia, os

seus traços. Há, nele, uma dignidade racial de Paul Robeson.

"Grande jogador", dizem todos. Mas não faltam os que duvidem do

seu caráter, do seu brio, da sua alma. Nos jogos do certame carioca,

é comum ouvir-se um torcedor esbravejando: -- "Didi não está

fazendo força! Didi está amolecendo!". Quando se tratou de organizar

o escrete, quase todo mundo gritou contra Didi. Uns juravam: --


*Brasil 5 x 2 Suécia, 29/6/1958, em Estocolmo. Brasil campeão do mundo.

"Moacir é melhor!". Outros diziam:

-- "Didi não é jogador para a Copa!". Nos treinos da seleção, foi

vaiado quantas vezes? Acabaram queimando o formidável jogador.

Conclusão: -- ele amarrou a cara e seu comportamento, em todo o

Mundial, foi esmagador.

Não se podia desejar mais de um homem, ou por outra: -- não

se podia desejar mais de um brasileiro. Ninguém que jogasse com

mais gana, mais garra, e, sobretudo, com mais seriedade. Nem

sempre marcava gols. Mas estava, fatalmente, por trás dos tentos

alheios. Era ele quem amaciava o caminho, quem desmontava a

defesa inimiga com seus lançamentos em profundidade. Com uma

simples ginga de corpo, liquidava o marcador. E nas horas em que os

companheiros pareciam aflitos, ele, com sua calma lúcida, o seu

clarividente métier, prendia a bola e tratava de evitar um caos

possível.

Não foi só o jogador único, que os críticos europeus mais

exigentes consideraram o maior da Copa. Foi algo mais: -- um

homem de bem. O que ele demonstrou de constância, de fidelidade,

de bravura, de entusiasmo, basta para caracterizá-lo como um

brasileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial, o

brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: -- passa a

ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum

escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias

qualidades morais. De nada adiantará o futebol se o homem não

presta. O belo, o comovente, o sensacional no triunfo de ontem está

no seguinte: -- foi, antes de tudo, o triunfo do homem.

Eu já disse que, no formidável e harmônico esforço do escrete,

todos parecem merecer uma glória igual. É dificílimo destacar este

ou aquele. Mas há, no caso de Didi, certas circunstâncias que

projetam o craque em alto-relevo. O torcedor estava errado quando o

imaginava incapaz de paixão, incapaz de gana, incapaz de garra.

Molhou a camisa, derramou até a última gota de suor, matou-se em

campo. Quando o rei Gustavo da Suécia veio apertar-lhe a mão, eu

imaginei ao ouvir no rádio a descrição da cena: -- dois reis! Pois

Didi, como sempre tenho dito aqui, lembra um rei ou príncipe etíope

de rancho.

Com as suas gingas maravilhosas, ele, em pleno jogo, dava a

sensação de que lhe pendia do peito não a camisa normal, mas um

manto de cetim azul, com barra de arminho.



[Manchete Esportiva, 5/7/1958]

É CHATO SER BRASILEIRO!




Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto,

vejam vocês: -- a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre.

Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir

do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos

dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização

súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com "x" iam ler a

vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: -- analfabetos natos e

hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo

com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do "lance a

lance" da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e,

digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete que,

hoje, é o meu personagem da semana, meu múltiplo personagem.

Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores,

que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os

tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si

mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a

vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5 x 2, lá

fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de

todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao

apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos

aqui percebemos o seguinte: -- é chato ser brasileiro!

Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as

moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam

pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc. O povo já não se

julga mais um vira-latas. Sim, amigos: -- o brasileiro tem de si

mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de

suas imensas virtudes pessoais e humanas.

Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas

as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: -- que éramos nós?

Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de

Dickens que vivia batendo no peito: -- "Eu sou humilde! Eu sou o

sujeito mais humilde do mundo!". Vivia desfraldando essa humildade

e a esfregando na cara de todo mundo. E, se alguém punha em

dúvida a sua humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir

caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher,

com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis, de

camisola e alpercatas.

Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já

trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage

diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou

mais além: -- diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A

partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é

uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios.

Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das

hipóteses, somos uns ex-buchos.

E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana.

Ninguém aqui admitia que fôssemos os "maiores" em futebol.

Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava

o melhor nem de cuspe à distância. E o escrete vem e dá um banho

de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se

isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a

última peleja. Foi uma lavagem total.

Outra característica da jornada: -- o brasileiro sempre se

achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a

nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o

seguinte: -- o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.


[Manchete Esportiva, 12/7/1958]

GARRINCHA NÃO PENSA




Amigos, estou diante de um problema, que é o seguinte: --

Garrincha foi, há pouco tempo, meu personagem da semana. Poderei

repeti-lo sem irritar os leitores? Eis a verdade, porém: -- não se trata

de escolher, de optar. Ontem, só houve em campo um nome, uma

figura, um show: -- Garrincha. Os outros três campeões do mundo

estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à

miserável condição humana. São mortais e suscetíveis de todas as

contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por

um dever contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas

resistências emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está

acima do bem e do mal.

O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca

existiu. Como os três outros campeões mundiais do Botafogo, ele foi

massacrado por apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o

"seu" Mané está em vigília permanente. E, no entanto, vejam vocês:

-- apareceu em campo com uma disposição vital esmagadora.

Ninguém mais ágil, mais plástico, mais alado. Em campo, desde o

primeiro minuto, foi leve como uma sílfide.

O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio,

cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: -- "Mata!

Esfola!". Ontem, porém, no Botafogo x Fluminense*, sentiu-se uma

curiosa reação: -- Garrincha trazia para o futebol uma alegria


* Botafogo 2 x 1 Fluminense, 10/7/1958, no Maracanã. O campeonato carioca
começou dez dias depois da Copa da Suécia, durante os quais os campeões do
mundo foram submetidos a um festival de homenagens.

inédita. Quando ele apanhava a bola e dava o seu baile, a multidão

ria, simplesmente isto: -- ria e com uma saúde, uma felicidade sem

igual. O jornalista Mário Filho observou, e com razão, que, diante de

Garrincha, ninguém era mais torcedor de A ou de B. O público

passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos

assim, um deleite puramente estético da torcida.

Aconteceu, então, o seguinte: -- foi-se assistir a um jogo e viu-

se Garrincha. No fim, já as duas torcidas queriam apenas que

Garrincha apanhasse a bola e começasse a fazer as suas delirantes

fantasias. Então, aplaudiam nas arquibancadas, cadeiras e gerais,

com uma euforia de macacas-de-auditório. Por exemplo: -- o meu

caso. Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e hereditário, para torcer

pela vitória do Fluminense e contra a vitória do Botafogo. Súbito

começo a exultar também. Diante de cada jogada de Garrincha, eu

experimentava a alegria que as obras-primas despertam.

E, no entanto, vejam vocês: -- chamavam este homem de

retardado! Só agora começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua

superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino

nos seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha.

Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou

chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo

mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha

não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e

irresistível do instinto. E, por isso mesmo, chega sempre antes,

sempre na frente, porque jamais o raciocínio do adversário terá a

velocidade genial do seu instinto.

No segundo tempo, quase não lhe deram bola. E aconteceu o

inevitável: -- o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter

empatado, até. Mas ficamos num joguinho platônico, um futebol

inofensivo, de passes para os lados e para trás. Resta saber: -- de

quem é a culpa? De uma indigência de recursos táticos? Ou faltou-

nos um Garrincha, com suas penetrações fulminantes, as suas

geniais invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores

punham as mãos na cabeça: -- "Isso não existe!".

Eu falei, mais atrás, que ele foi, na sua agilidade, algo de muito

leve, de muito etéreo. De fato, na etapa inicial, Garrincha deu uma

bicicleta de sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão

de que tínhamos visto não um jogo, não dois times, mas uma figura

única e fantástica: -- Garrincha, o meu personagem da semana.



[Manchete Esportiva, 19/7/1958]

A CRUZ DO BOTAFOGO




Se, na sexta-feira, alguém me perguntasse: -- "Quem é Hélio

Cruz?", eu cairia na mais crassa, na mais ignara das perplexidades.

De fato, o nome "Hélio Cruz" não encontraria, em mim, nenhuma

acústica. Eu já o vira jogar em outras partidas do São Cristóvão. Mas

era um desses conhecidos que a gente desconhece, conhecido que a

gente ignora. Sábado, porém, soou a grande hora de Hélio Cruz. O

São Cristóvão ia enfrentar o Botafogo*, não um Botafogo qualquer,

mas um Botafogo potencializado por quatro campeões do mundo. Há

quem diga do alvinegro: -- "É o escrete brasileiro!". Nem tanto,

amigos, nem tanto. Mas uma coisa é certa: -- a presença de Nílton

Santos, Garrincha, Didi e Zagalo confere ao quadro de General

Severiano um charme esmagador.

Houve o jogo e a renda foi uma vergonha. Apenas duzentos e

poucos contos. Mas eu explico a arrecadação deprimente: -- é que

ninguém, na Terra, esperava a derrota do Botafogo. O alvinegro devia

vencer e, segundo todas as presunções, de banho. Por isso, ninguém

foi lá. Mas como eu ia dizendo: -- estava escrito que o momento de

Hélio Cruz era o jogo de sábado. Tudo conspirou, aliás, para dar-lhe

a grande chance. Querendo fazer do time uma fábrica de dinheiro, o

alvinegro está pondo seus craques para jogar, para suar como se

fossem eles uns barqueiros do Volga. Uma equipe tem, como é óbvio,

um limite de resistência. E jogadores que atuam aqui e ali, sem uma

pausa para recuperação, acabam liquidados. O que vimos contra o



*São Cristóvão 2 x 1 Botafogo, 23/7/1958, no Maracanã. Ao fim daquele campeonato,
Hélio Cruz foi vendido para fora do Rio e eclipsou-se. Viveu seus noventa minutos de
glória naquele jogo -- e foi só.

São Cristóvão foi um Botafogo gasto, que não queria nada com a

bola. Perdeu, e pior do que isso: -- perdeu para um adversário que,

em grande parte do jogo, atuou com dez elementos. Convenhamos

que foi o que se chama uma derrota feia. Ou será que o Botafogo

ainda não percebeu que não importam os tostões que possa arranjar

aqui e ali, em excursões caça-níqueis? Não. O que importa é o "bi" e

nada mais.

Voltemos, porém, a Hélio Cruz, que eu transformei no meu

personagem da semana. Não sei se ele jogou bem ou mal. O que sei é

que cravou, no Botafogo, dois gols, o bastante para derrubar o

alvinegro. Quando o São Cristóvão enfiou o primeiro, ocorreu uma

coisa curiosa: -- os espectadores perguntavam uns aos outros: --

"Hélio Cruz? Mas quem é Hélio Cruz?". E, ao chegar na redação, sou

cercado por colegas ávidos: -- "Quem é esse cara?". Ninguém sabia e

eu muito menos. E o que atrapalhava, ainda mais, era o sobrenome.

E, com efeito, nenhum craque usa o nome por extenso. Seria

realmente irritante que um arqueiro se chamasse J. B. dos Passos

Portela ou J. Pimentel da Fonseca. E eu, na minha perplexidade,

perguntava: -- por que não apenas Hélio ou não apenas Cruz? Um

craque que se chamasse simplesmente Hélio ou simplesmente Cruz

não precisaria acrescentar mais uma vírgula ao seu nome. E, no

entanto, o artilheiro de sábado é, por completo, Hélio Cruz, como

num cartão de visitas.

Vejam vocês as ironias do futebol. Hélio Cruz era, até o jogo

com o Botafogo, solidamente desconhecido, maciçamente obscuro.

Já marcara outros gols talvez mais bonitos que os de sábado. Mas

ninguém lhe conseguia decorar o nome. Bastou-lhe pôr abaixo o

Botafogo para que, imediatamente, todos verificassem que ele era um

falso desconhecido, um falso obscuro. O que faltava, apenas, era um

fato qualquer que permitisse a fixação do seu nome e de sua figura.

Sábado, o meu personagem agarrou, com unhas e dentes, a sua

oportunidade.

Certos desconhecidos esperam apenas um pretexto para se

tornarem célebres. O pretexto de Hélio Cruz foram os dois gols

implacáveis. Já ninguém pergunta diante do seu nome: -- "Quem é

esse cara?". E Manchete Esportiva faz, no presente número, o

trocadilho: -- "Hélio foi a Cruz do Botafogo". Até o sobrenome, que

parecia supérfluo, favoreceu a piada. Ora, quando alguém passa a

inspirar os trocadilhos anônimos, passa a ser figura folclórica,

convenhamos: -- está famoso até segunda ordem.

E, além disso, Hélio Cruz teve um mérito espetacular. Derrotou

um Botafogo, apesar da fauna, da flora de campeões do mundo.

Sejam justos: -- ninguém merece mais ser meu personagem da

semana.



[Manchete Esportiva, 2/8/1958]

CEM POR CENTO DIDA




O placar do Flamengo é de assustar*: -- 8 x 0! Essa

abundância numérica significa que o rubro-negro submeteu o Olaria

a um metódico, a um meticuloso, a um hediondo massacre. E o

patético é que não foi um time, uma equipe, que construiu o

escandaloso placar. Foi um homem, um único e solitário homem que

desandou a fabricar gols a torto e a direito. Esse homem chama-se

Dida e eu o apresento aqui como o meu personagem da semana.

Na véspera, ou seja, sábado, um outro craque enfiara quatro.

Refiro-me a Didi que, funcionando na frente, na área, acabou com a

Portuguesa. Conquistou quatro tentos de antologia. Dida, porém, fez

mais: -- meia dúzia e, ontem, nenhuma força humana ou divina

conseguiria destruí-lo. Muita gente há de pensar que Dida abusou,

que não devia ter feito tanto, que podia ter-se limitado aos dois, aos

três, ou, como Didi, aos quatro. Mas a verdade é que o aparente

exagero tem sua íntima lógica irredutível. De fato, Dida andou

passando mal na Copa do Mundo. Na Suécia, o locutor Leônidas

apanhou o microfone para dizer horrores a seu respeito. E vamos e

venhamos: -- fora da pátria, o sujeito é mais sensível, mais

vulnerável. Qualquer restrição que se lhe faça soa como uma

bofetada.

E, além disso, nada enfurece tanto como a injustiça. Qualquer

paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade.

Perguntem a uma zebra do jardim zoológico: -- "Dida é um perna-de-



*Flamengo 8 x 0 Olaria, 22/8/1958, na Gávea. Dida tornou-se o maior goleador da
história do Flamengo antes de Zico, mas não voltou à seleção brasileira.

pau?". E a zebra responderá, com uma ênfase tremenda: --

"Absolutamente! Absolutamente!". Pois bem: -- só Leônidas achou de

arrasar Dida como se este fosse um bonde. Disse, entre outras

barbaridades, que ele não podia nem jogar num time de primeira

divisão. Falei em injustiça e repito: -- deslavada injustiça! Só hoje,

passado o impacto da Copa do Mundo, é que se compreende a

ferocidade de Leônidas. Craque do passado, ele quer ser ainda "o

maior". Sofre com os "diamantes negros" ou "brancos", ou "morenos"

da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por

isso, meteu o pau em Dida. Era como se dissesse: -- "Ah, meus

tempos, meus tempos!".

E o fato é que Dida jogou apenas uma vez na Suécia e voltou

de lá amargurado. E, aqui, havia quem perguntasse: -- "Será que

Dida acabou?". Muitos julgavam sentir, nas suas últimas atuações,

um certo desgaste. Suas velhas características pareciam diluídas. E

eis que, ontem, contra o Olaria, o homem voltou a ser ele mesmo.

Viu-se na Gávea um Dida em plenitude, comendo a bola como nos

seus instantes mais puros e triunfais. Dirá alguém que o Olaria não

é grande adversário. De acordo. Longe de mim considerar o Olaria

um escrete. Mas uma goleada impõe-se por si mesma, torrencial e

irrefutável. Como raciocinar, como argumentar contra a histeria

numérica dos 8 x 0? E se atentarmos em que foi Dida, unicamente

Dida, o autor de seis dos oito gols, então compreenderemos que

estamos em face não de um ex-Dida, mas do próprio. Não há dúvida,

amigos. Despontou com a sua furiosa velocidade, e mais: -- com a

capacidade de invadir, de penetrar, de cortar, de envolver e de

fuzilar. Mas creiam: -- o que o inspirava não era apenas o sadismo

de um gol atrás do outro. Ele enfiava um gol, e depois outro, e mais

outro, como se quisesse fazer uma afirmação para si mesmo. Queria

sentir-se um Dida integral e não tenhamos ilusões: -- foi cem por

cento Dida.

Qualquer jogador de futebol, do virtuose ao perna-de-pau, tem

suas panes, suas depressões. Dida estaria numa dessas angústias.

Mas quem, depois de meter seis gols, não há de sentir-se um

triunfador, com um certo charme cesariano, uma certa aura

napoleônica? Sim, depois de ontem, Dida baniu de si mesmo, até o

último vestígio, o drama da Suécia.

Quando soou o apito final, o aspecto do grande jogador era algo

patético. Tinha o olho rútilo e o lábio trêmulo. Que os outros times

tratem de pôr as barbas de molho! Dida voltou a ser Dida e para

sempre Dida.



[Manchete Esportiva, 30/8/1958]

A VOLTA DA LEITERIA




Canário viu que era chegado o momento, o grande momento do

gol. Então, encheu o pé. Saiu uma bomba, amigos, e que bomba!

Quase as traves desabam na cabeça de Castilho. Eu, cá em cima, na

tribuna de imprensa, calculei: -- "Desta vez não tem castigo!". O

Fluminense estava ganhando de 1 x 0* e a bala de Canário seria o

maldito empate. Pois bem: -- quando a torcida tricolor gemia a

palavra gol, eis que ocorre o milagre: -- bola no travessão! Durante

alguns momentos, houve um carnaval na pequena área tricolor. A

bola pedia pelo amor de Deus: -- "Me chuta! Me chuta!". E não

apareceu um pé americano que a empurrasse para o fundo das

redes. Salvara-se o Fluminense de um gol certo, infalível,

catastrófico. Ao meu lado, um americano abria os braços: -- "É a

leiteria! Voltou a leiteria!". Sim, ele via, ali, o dedo salvador da

leiteria. Outros americanos, também furiosos e também

esbravejantes, descobriam no gol salvo uma coincidência entre o

retorno de Zezé Moreira e a reabertura da leiteria.

A leiteria! Vale a pena traçar aqui, sinteticamente, o seu

resumo biográfico. Abriu as portas, pela primeira vez, em 51. De

repente, os adversários começaram a perceber que o Fluminense não

jogava somente com classe, somente com técnica. Castilho era bom,

era ótimo, era formidável. Mas um arqueiro tem os limites da

condição humana. Ora, Castilho fazia defesas sobrenaturais. E todo

mundo começou, por trás do arqueiro, a ver a influência extraterrena

da leiteria. Numa amargura medonha, o inimigo rosnava que


*Fluminense 1 x 0 América, 23/10/1958, no Maracanã.

Castilho era o leiteiro. O fato é que o Fluminense tornou-se

gloriosamente o campeão de 51. Mas já nos anos seguintes a leiteria

não funcionou tão bem. Estava de portas fechadas ou de portas a

meio pau. Mais algum tempo e ela fechou de todo. No corrente ano,

sobretudo, já ninguém falava mais da leiteria metafísica que tanto

nos valera no passado.

Confesso, amigos: -- havia em mim, como em todo tricolor

autêntico, a funda, a inconsolável nostalgia da nossa querida

protetora. Realmente, o nosso papel no presente campeonato tem

sido o seguinte: -- apanhar bem e ganhar mal. As nossas derrotas

são medonhas e cada vitória nossa é feia como uma derrota. E,

quando já não havia mais esperança, eis que a leiteria reabre, com

estrondo, as suas portas mágicas. Amigos, manda a verdade que se

diga: -- ela influiu, ontem, no resultado da batalha. Digo isso de

peito aberto e fronte erguida, porque não acredito em futebol sem

sorte.

Digo mais: sem esse mínimo de sorte, o sujeito não consegue

nem chupar um Chica-bon, o sujeito acaba engolindo o pauzinho do

Chica-bon. E o Fluminense estava jogando sem uma ínfima gota de

sorte. O time já entrava em campo coberto de azar. Sim, amigos: -- o

time pisava o gramado certo de que estava marcado,

inexoravelmente, pela derrota. Faltava-nos um pouco, um tostão, um

vintém de sorte,

Ou por outra: -- era a leiteria que se estiolava a um canto, com

as garrafas irremediavelmente vazias. O leite já não jorrava mais das

tetas da sorte. As pessoas estreita e crassamente objetivas colocavam

o problema das nossas frustrações em termos técnicos, táticos,

físicos e nada mais. Era um engano funesto. Ninguém acreditava que

há qualquer coisa de laticínio nos gramados, nos espetaculares

êxitos terrenos.

E, domingo, graças a Deus, foi belo, foi sublime. De certa feita,

Amaro chutou. Diga-se: -- chutou de longe. Era tal a distância que,

chutada devagar, a bola levaria meia hora para chegar a seu destino.

Então, ocorre o seguinte: -- Castilho achou que devia fazer golpe de

vista. Não se mexeu; ficou só olhando. A bola bateu na quina da

trave e só não entrou porque estava lá, velando, a leiteria. Um

americano fez, a bico de lápis, uma estatística: -- o Fluminense

sofreu quatro bolas na trave! Vejam bem: -- nem duas, nem três,

mas quatro! O América suava torrencialmente e encontrava tapado o

arco tricolor. E é bom, amigo, é gostosíssimo quando a nossa torcida

sente, na cara, o sopro da sorte. Repito: -- em futebol, não basta

jogar bem. Com um timaço, e depois de estar ganhando de 3 x 0, o

Vasco ainda foi empatar com o Bonsucesso. Ora, o Fluminense jogou

bem domingo e foi superiormente orientado. Mas porque a leiteria

esteve presente, e salvou, com a trave, quatro gols, eu a promovo a

meu personagem da semana.



[Manchete Esportiva, 1/11/1958]

O PELÉ BRANCO




Amigos, não há de ser difícil catar o meu personagem da

semana entre os 22 jogadores de Vasco x Flamengo* (digo 22 e já

amplio: -- mais, por causa das substituições). Mas, como eu ia

dizendo, o personagem pula do jogo como um elástico polichinelo.

Chama-se Almir e os locutores costumam tratá-lo de

"Pernambuquinho". Eu sei que se forma, sobre o craque vascaíno,

um caudaloso anedotário. E nós sabemos que a anedota desfigura,

que a anedota falsifica. Em tudo que se diz sobre Almir, já é difícil

discriminar o que é verdade e o que é folclore.

Por exemplo: -- contam que Almir xinga os adversários. Então

pergunto: -- será o primeiro? Não me parece. O futebol jamais foi

mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de Sarcófago. Direi mais,

se me permitem: -- o futebol é o mais falado e o mais pornográfico

dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em

campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais

resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o

craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e

irresistível. E se o meu personagem xinga os adversários, não faz

outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas

camonianos. Repito: -- o futebol se nutre de pornografia como uma

planta de luz. E Almir apresenta outras qualidades que convém não


*Flamengo 2 x 2 Vasco da Gama, 26/2/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio--São
Paulo. Almir jogou ao lado de Pelé naquele Sul-Americano, inclusive na dramática
partida contra o Uruguai (26/3/1959, Brasil 3 x 1), em que brigaram os 22
jogadores. Almir substituiria Pelé no Santos, na partida decisiva contra o Milan pelo
campeonato mundial de clubes em 1963 (ver pág. 102).

desprezar.

Uma delas é a coragem. Todos nós o conhecemos e uma coisa é

certa: -- para usar uma expressão textual da torcida, ele não foge do

pau. A verdade é que, apesar de todas as convenções disciplinares do

profissionalismo, o futebol vive muito da bravura pessoal dos

craques. O sujeito pusilânime, o sujeito covarde, dá menos no couro.

Há momentos, num jogo, em que o camarada precisa enfiar a cara

no pé do inimigo. Mas Almir, justiça se lhe faça: -- ainda quarta-

feira, na partida do Pacaembu, contra os paulistas, levou um chute

que quase lhe abriu o rosto em dois. Cá, no Rio, vendo pela televisão,

eu fiz meus cálculos: -- "Morreu". Ele desabou como aquele edifício

de Copacabana. Mas não veio nenhum rabecão pescá-lo, nem foi

preciso. Era apenas um nocaute provisório. Mas o episódio encerrava

uma lição de vida e de futebol.

Amigos, a minha teoria é a seguinte: -- o jogador que nunca

levou um pé na cara ainda não amadureceu para os grandes

triunfos. Por exemplo: -- estamos diante do Campeonato Sul-

Americano em Buenos Aires. Qualquer Sul-Americano é duríssimo e,

em Buenos Aires, muito mais. Um escrete nosso, para enfrentar os

argentinos, lá, terá de ser antes de tudo o escrete da coragem. O

sujeito que tiver medo de careta não pode nem sonhar com a seleção

patrícia. E Almir é um dos que podem comparecer, de peito aberto e

lavado, ao certame continental, disposto a dar e a levar botinada. É

pequenininho, mas como diz a sabedoria anônima e plebéia: --

tamanho nunca foi documento. Já o vi derrubar sujeitos maciços,

compactos, grandalhões, como bastilhas supostamente

inexpugnáveis.

Por outro lado, tem um futebol de primeira qualidade. O jogo

de ontem não me deixa mentir. Poucos jogadores, aqui ou em

qualquer lugar, terão como ele a capacidade de varar a defesa

contrária. Ele passa pelos adversários vertiginosamente. Tem uma

penetração e uma velocidade de bala. Contra o Flamengo, por

ocasião do pênalti, Almir deflagrou-se e ia entrar talvez com bola e

tudo, quando o agarraram pelo braço, pela camisa. E não foi só uma

vez. Em inúmeras oportunidades, o meu personagem construiu

jogadas que podiam ser incorporadas a uma antologia, a um museu.

O encontro terminou empatado de 2 x 2 e Almir obrigou a defesa do

Flamengo a molhar a camisa até a última gota de suor.

No Sul-Americano, ele constitui uma preciosidade para o

Brasil. Admitamos a hipótese sinistra de que Pelé não possa,

eventualmente, entrar num jogo qualquer. Que melhor substituto do

que Almir? Tanto mais que são ambos agarotados. Embora mais

velho, o craque cruzmaltino parece tão menino quanto o paulista. E

vamos e venhamos: -- Almir não deixa de ser um pouco o Pelé

branco.



[Manchete Esportiva, 7/3/1959]

BANDEIRINHA -ARTILHEIRO




Amigos, ontem foi o lírico domingo dos velhos. Aqui, Barbosa,

fechando o gol do Vasco; em São Paulo, Jair, decidindo o jogo para o

Santos. Duas eternidades e ambas viçosas, ambas salubérrimas.

Tanto Jair como Barbosa podiam ser, hoje, o meu personagem da

semana. Mas há melhor, amigos, há melhor! Refiro-me ao "Caixa

Econômica", a mais recente, inesperada e espetacular celebridade do

futebol brasileiro. Antigamente, em matéria de Caixa Econômica, só

se conhecia a própria. Mas, graças ao Fla--Flu*, fez-se uma

descoberta sensacional. Sim, amigos: -- existia, aqui, nas nossas

barbas, sem que o percebêssemos, o "Caixa Econômica" bandeirinha.

Foi a grande e, direi mesmo, foi a contundente surpresa do Fla--Flu!

O bandeirinha! É, na história do futebol, o sujeito mais

secundário. A humildade de sua função só tem paralelo com a do

gandula. E houve uma época em que o bandeirinha era um

franciscano apanhador de bola. Foi preciso que o profissionalismo

aparecesse e o arrancasse de sua compacta obscuridade. Então ele

subiu social e economicamente. Lembro-me da primeira

remuneração do bandeirinha: -- 25 mil réis por jogo! Hoje, a função

é mais importante. O homem já marca impedimentos e tornou-se um

personagem ativo e militante na comédia do futebol. Todavia,

nenhum bandeirinha conseguiu, jamais, o furioso destaque do

"Caixa Econômica". Num Fla--Flu sensacional, ele conseguiu ofuscar


*Flamengo 2 x 0 Fluminense, 20/4/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio-- São Paulo.
O bandeirinha, de apelido "Caixa Econômica", chamava-se Adélio Maia. O juiz era
Amílcar Ferreira e o gol valeu.

o juiz, os jogadores, o outro bandeirinha. Foi, atrevo-me a dizê-lo, o

solista do espetáculo.

Aliás, tudo no "Caixa Econômica" parece predispô-lo para a

celebridade e para a glória. A começar pelo apelido. É "Caixa

Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas

Gerais", "Prolar S. A." etc. etc. E vamos e venhamos: -- ninguém

consegue chamar-se "Caixa Econômica" impunemente. Há entre o

nome de um sujeito e o seu destino uma conexão inevitável.

Napoleão teria que ter um destino napoleônico. E o nosso "Caixa

Econômica" não poderia viver eternamente obscuro e eternamente

humilde. O Fla--Flu foi a sua grande chance terrena.

Ao começar e até o encerramento da primeira etapa, o "Caixa

Econômica" ainda permanecia ignorado, ainda permanecia inédito.

E, súbito, na etapa final, surgiu a sua oportunidade napoleônica.

Imagino que tenha ocorrido com o nosso herói uma crise de

saturação. Cansou-se de ser um fósforo apagado dentro do jogo.

Achou talvez abusivo que o campo fosse um espaço privativo dos

jogadores e do juiz. E fez o que nenhum outro bandeirinha, jamais,

teve o desplante de fazer: -- entrou no campo e pôs-se a passear no

gramado com uma soberana naturalidade. E, de repente, acontece o

inconcebível: -- uma tabelinha de um jogador rubro-negro com o

"Caixa Econômica"!

Dizem que a bola bateu, simplesmente bateu, no fabuloso

bandeirinha. Amigos, sejamos mais líricos e menos objetivos. Vamos

admitir que o "Caixa Econômica" deu um passe que caiu como uma

luva, ou melhor, como uma meia no pé de Henrique. Jamais Zizinho

no apogeu, ou Jair, ou o divino Domingos da Guia conseguiram ser

tão precisos, exatos, perfeitos. O estupor do Fluminense foi de tal

ordem que o time parou, de ponta a ponta, e Henrique, vivíssimo,

penetrou com furiosa velocidade. Dida recebeu a bola para marcar.

Vejam vocês a trama diabólica: -- "Caixa Econômica" -- Henrique --

Dida! O Fla--Flu continuou, mas a verdade é que o tricolor estava

perdido. O que desintegrou meu time não foi bem o gol, mas a

intervenção sobrenatural do "Caixa Econômica".

A partir do momento em que se tornou o primeiro bandeirinha-

artilheiro do universo, o meu personagem da semana conheceu a

celebridade. Ontem, a sua simples presença no Vasco x Flamengo

valorizou e dramatizou o clássico. O pânico da torcida cruzmaltina

era que o "Caixa Econômica" apanhasse a bola, saísse driblando e

marcasse para o Flamengo o gol da vitória.



[Manchete Esportiva, 2/5/1959]

A VINGANÇA DE JULINHO




Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da semana

a partir do momento em que o vaiaram. Foi até, se me permitem a

expressão, trágico. Insisto: -- trágico! Quem estava lá viu ou, por

outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã

anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma

vaia só. Menos eu. Eis a verdade: -- eu não apupei, embora

preferisse Garrincha. Parecia-me que o escrete sem o "seu" Mané era

um mutilado. Na pior das hipóteses, eu achava que Feola devia ter

posto os dois: Julinho na ponta direita e Garrincha na esquerda.

Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só

Julinho e esqueceram Garrincha.

Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da

multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã* e

fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim,

amigos: -- o homem andou pela Itália e quando voltou nós o

olhamos, de alto a baixo, como se fosse um gringo qualquer ou, pior

do que isso, como se fosse um perna-de-pau. Não há nada mais

relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória

é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras. Por

exemplo: -- ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça,

contra os húngaros, Julinho fizera um carnaval medonho. De certa

feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba,

e que bomba! O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi

uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a


*Brasil 2 x 0 Inglaterra, 13/5/1959, no Maracanã.

admiração pateta dos visitantes. Pois bem: -- ao ser anunciada a

escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem

não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do

escrete.

Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo.

Imaginei o seguinte vaticínio: -- "Julinho vai comer a bola!". Podia

parecer uma piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a

verdade: -- para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo

fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Julinho há de ter

entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifico, às

chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra 200 mil.

Mas, homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: -- bateu-se

contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a

crucificá-lo em outras vaias. Mas, se nós tínhamos esquecido

Julinho, Julinho não estava esquecido de si mesmo. Foi Julinho em

cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em

inúmeras ocasiões o que ele fez com o adversário foi pior que xingar

a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os

ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de

uma maneira, por assim dizer, sádica. Jamais houve um gol tão

amorosamente sofrido como este. A partir da abertura da contagem,

todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si

mesmo: -- "Este é o Julinho!". E era.

Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra ele

como um touro enfurecido. Pois bem: -- ele agarra o touro a unha e

lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo,

já manso, tornou-se em outro bicho. Sim, amigos: -- do primeiro gol

em diante, a multidão transformou-se em "macaca-de-auditório" de

Julinho. Se ele apanhava a bola, os 200 mil espectadores

arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que

Julinho iria fazer. Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: -- de

um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido,

transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos

pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de Carnaval. De

certa feita, comeu um, dois, três, quatro e quase entrou com bola e

tudo. Imagino que, nesse momento, lord Nelson há de ter

perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de

eternidade: -- "Quem é esse cara?". O "cara" era Julinho, sempre

Julinho.

Assim é o brasileiro de brio. Dêem-lhe uma boa vaia e ele sai

por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de

Julinho foi exatamente isto: -- um milagre de futebol.



[Manchete Esportiva, 16/5/1959]

UM HORIZONTE DE CHIFRES




Amigos, fui ontem à redação de um velho jornal. Entro lá e

vejo, por toda parte, caras a meio pau. Deduzi imediatamente: --

"Pelé". Era, sim, o luto, era a dor, era o velório da distensão*. Desde

sábado que todo o Brasil chora e todo o Brasil vela a contusão de

Pelé. Como diria Brás Cubas, até a natureza se associa à melancolia

nacional. Os ventos são mais tristes, os ventos são mais

inconsoláveis.

E, súbito, na redação do jornal amigo, eu vejo o Cláudio Mello e

Sousa, o poeta, o crítico, o ex-admirador do Paulo Francis. Com o

seu perfil de lord Byron aos dezessete anos, ele meditava horrores

sobre a distensão. Eu ia dizer, fazer a saudação brutal: -- "Olá,

Cláudio!". Mas já o colega se punha de pé. Com o olhar dos profetas

-- olhar varado de luz --, com a fronte alta e fatal, ele anunciava: --

"O Brasil vencerá a Espanha!". Pausa. Novo arranco de vidente para

completar: -- "A vitória do Brasil será um quadro de Goya!". Foi só,

ou por outra: -- não foi só. Em seguida, ele pôs-se a andar na

redação, tumultuosamente, como um centauro truculento.

Vibrei ao ver o colega e amigo enchendo uma redação com suas

rútilas patadas. Mas eu compreendi a sua ira e justifiquei a sua

profecia. Hoje o brasileiro autêntico há de ter duas reações

obrigatórias: luto porque Pelé saiu, euforia porque Amarildo vai

entrar. A mesma fatalidade que roubou Pelé salvou Amarildo. E,


*Brasil 0 x 0 Tcheco-Eslováquia, 2/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-
de-final da Copa do Mundo. Pelé contundiu-se gravemente no segundo tempo e não
jogou as partidas restantes. Nelson já vinha pedindo Amarildo no time havia meses.
Foi ele quem batizou o craque botafoguense de "Possesso".

aqui, abro um parêntese para uma breve meditação sobre a

Fatalidade, com F maiúsculo.

Outrora, tudo que acontecia era destino, era sina, era o diabo.

Pérez Escrich reabilitava e promovia suas adúlteras invocando a

Fatalidade. Hoje já sabemos que há Sexo, há Economia por trás das

atitudes sórdidas ou sublimes do ser humano. A Fatalidade já não

explica mais, nem inocenta certas patifarias que os folhetinistas

antigos idealizavam.

Todavia eu lhes digo: -- no presente Mundial, eis que a

Fatalidade passa a funcionar novamente como nos tempos de

Edmundo Dantès. Aí está Amarildo, o "Possesso". Ele não ia entrar

em hipótese nenhuma. Com suicida teimosia, Aymoré Moreira,

Nascimento e Paulo Machado de Carvalho estavam dispostos a

deixar Amarildo eternamente na cerca. Não percebiam que o craque

alvinegro é possesso e que o ataque precisava de possessos. E,

súbito, a Fatalidade põe o dedo no escrete do Brasil. Pelé, o divino,

sofre a distensão mágica. Não recebeu nem um leve, imponderável

toque. E caiu. Caiu como e por quê? Ninguém sabe, mas eu sei: a

Fatalidade de Pérez Escrich.

O desespero está ventando por todo o país. Mas há uma

possibilidade insuspeitada e genial: -- a de que Amarildo desponte

como um novo Pelé, e repito: -- um Pelé branco, mas Pelé. Por outro

lado, cada brasileiro deve ser como o confrade Cláudio Mello e Sousa,

um profeta, um vidente do triunfo. E, de resto, cada um de nós

precisa acreditar no Brasil com pesado e obtuso fanatismo. Graças a

Deus, a Fatalidade interferiu anteontem no jogo México x Espanha.

Faltavam trinta segundos para acabar o match. Era o empate e a

classificação do Brasil.

Pois bem. A mesma Fatalidade que derrubou Pelé, que escalou

Amarildo, a mesma Fatalidade, dizia eu, salvou a Espanha. Seu gol

nasceu na última gota da partida e, ao contrário do que se pensa, foi

bom. Um bicampeão não pode depender de nenhum México. Insisto:

-- um bicampeão terá que levantar a Jules Rimet a mãos ambas,

com o próprio amor e com a própria paixão. De mais a mais, o perigo

viriliza, enternece e ilumina o Brasil. Sim, o perigo desperta e açula

no Brasil sombrias potencialidades. Vamos enfrentar a Espanha.

Diante de nós abre-se todo um horizonte de chifres, ensangüentado

de chifres.

Vejam vocês o que é a chance histórica. A distensão de Pelé foi

para Amarildo como a Revolução Francesa para Napoleão. E eu

imagino como andará o craque alvinegro no Chile. Antes da

distensão de Pelé, que fazia ele? Como o pescador de O velho e o mar,

sonhava com leões. Mas o adversário é a Espanha. E, então,

Amarildo sonha com chifres e sangue. Ele próprio, como no soneto

célebre, é um negro touro "saudoso de feridas".



[O Globo, 5/6/1962]

O "POSSESSO"




Amigos, não é hora de escrever bem. Fosse eu um Goethe na

Itália e, diante do triunfo de ontem, estaria escrevendo

horrendamente mal. Ganhamos. E que fazer agora, senão arrancar

do nosso peito um gemido solene e fundo, como um mugido cívico?

Quando acabou o jogo*, quando a vitória uivou, vimos o seguinte: --

era esta uma cidade espantosamente bêbada. Cada um de nós foi

arremessado do seu equilíbrio chato, foi arrancado do seu juízo

medíocre e estéril.

Saímos à rua. Eu disse "cidade bêbada" e já explico: -- fomos

uma nação em pileque unânime. De pileque sem ter bebido nem

água da bica. E é lindo, e gostoso, e sublime quando não há, entre

75 milhões de sujeitos, não há um único sóbrio. E já um nome me

ocorre: Amarildo, o "Possesso".

Amigos, dizia eu que os profetas andavam por aí aos borbotões.

Repito: -- os profetas escorriam como a água das paredes infiltradas.

Não se dava um passo sem tropeçar, sem esbarrar num profeta. E o

que diziam eles? Diziam a vitória do Brasil e mais: -- profetizavam o

nascimento de um novo Pelé. Eu próprio escrevi, na minha crônica

de anteontem: -- o novo Pelé era moreno, e antecipei minúcias e fui

mais longe. Dei o nome do novo Pelé: -- Amarildo.

Vejam vocês o que é o Brasil. O sujeito quer um idiota e não

acha um idiota. No Brasil de hoje, o imbecil chapado, o imbecil total

é uma impossibilidade. Mesmo o menos dotado dos brasileiros

contemporâneos há de ter a sua chispa, a sua centelha, por vezes


*Brasil 2 x 0 Espanha, 6/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-de-final.

incubada, mas funcionante. Mas, se a pátria precisa de um gênio,

logo o encontra. Aí está a Copa do Mundo: -- perdemos um Pelé e, no

mesmo instante, apareceu outro Pelé. Feliz o povo que, na vaga de

um gênio, põe outro gênio.

Dizia o profeta quase profissional Cláudio Mello e Sousa que a

vitória brasileira seria um quadro de Goya. Aí está o quadro, aí está o

Goya. Mas eu falava de Amarildo. Após o jogo, os colegas me

cumprimentavam como se fora eu o autor de Amarildo. Eu tinha de

retificar: -- "O autor do Amarildo é o Dostoievski!". E, realmente,

nunca vi na vida real um sujeito tão possesso e, por carambola,

dostoievskiano.

O primeiro gol do Brasil ontem foi obra de um possesso. E

repito: -- só um possesso em último grau, montado num demônio,

ou por este montado, só um possesso faria aquilo. Eu não estava lá,

claro. Mas, desde ontem, cada brasileiro está possuído de uma

imensa, de uma implacável vidência. Dir-se-ia que, apesar da

estúpida distância física, todo o Brasil era testemunha visual e

auditiva de cada lance da partida. E eu "vi", no momento do gol, "vi"

Amarildo, a cara, o peito, a loucura de Amarildo. De seu lábio pendia

a baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoievski é

assim que os possessos babam profissionalmente.

Amigos, era ali ou nunca. Setenta e cinco milhões de

brasileiros precisavam mais do gol que todo o Nordeste de água e

pão. O possesso sentiu que era chegado o instante. Caçaram

Amarildo. Entre ele e o gol havia toda uma flora de rapas, de pés na

cara, palavrões, chifres. Só faltaram chupar-lhe a carótida como a

um aspargo. A palavra "madre" circulava copiosamente. Naquele

momento Amarildo não era um só: -- era o possesso, era um

dostoievskiano e, ao mesmo tempo, era um touro de soneto,

"saudoso de feridas".

Era também, por conta de Dostoievski, um rútilo epiléptico.

Amigos, nunca um só foi tantos. E esse múltiplo, esse numeroso

Amarildo acabou enterrando o seu gol, até o fundo, no coração da

Espanha. Ali se cumpria a grande profecia: -- um novo Pelé estava

nascendo. E os Andes estupefatos viram erguer-se o astro

recentíssimo, com o seu frenético fulgor.

E o segundo gol, amigos, o segundo gol! Vamos ao lance. O

Mané apanha a bola. E, entre parênteses, tem razão o poeta e

psicanalista Hélio Pellegrino quando afirma que Garrincha é a maior

sanidade mental do Brasil. Exato. O próprio Freud, se conhecesse o

Mané, havia de reconhecer, com a humildade dos sábios: -- "Rapaz,

se todo mundo tivesse a tua sanidade, eu ia acabar apanhando papel

na esquina!". Ontem todo mundo estava emocionalmente em

pandarecos. Menos o Mané. Pegava a bola e era o mesmo, sempre o

mesmo, eternamente o mesmo, assim na terra como no céu.

No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos. Comeu

com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e

comeu o bandeirinha. Tudo isso com uma saúde de passarinho, e

insisto: -- tudo isso com alegria, com bondade, com pureza. No fim,

não havia mais ninguém para driblar, ninguém. E Mané, que no fogo

mais infernal tudo vê e tudo sabe, passa para Amarildo. Mas não foi

um passe qualquer. Nem a cabeça de são João Batista foi tão na

bandeja como aquela bola de Garrincha. Estava lá Amarildo, o

possesso Amarildo, o rútilo epiléptico. E então ele enfiou a sua

cabeçada mortal. Aquilo era o Brasil.



[O Globo, 7/6/1962]

O EICHMANN DO APITO




Amigos, vencemos o Chile*. E, neste momento, eu não vou

quebrar lanças em prol do estilo, como queria Bilac. E pelo contrário.

Numa hora de farto pileque cívico, eu quero ter o mau gosto de um

orador de gafieira. Quero falar em bandeiras "drapejando". E vamos e

venhamos: -- foi uma vitória colossal, uma selvagem vitória. Estava

tudo contra nós, rigorosamente tudo. Até os Andes tinham enfiado

uma máscara até as orelhas.

Na minha crônica anterior, antes do jogo, eu falava na solidão

do escrete. Jamais um time de futebol ficara tão só. Mas eu escrevi

que o brasileiro é ainda maior quando solitário. Ponham o brasileiro

numa ilha deserta. Ele sozinho como um Robinson Crusoe, ou

apenas com uma arara no ombro. E o brasileiro, sem mais ninguém,

bebendo água em cuia de queijo Palmira, será um rei

shakespeariano, terá um peito de césar proclamado. Então faço a

pergunta: -- que fizemos nós, ontem, em Santiago? Éramos onze

gatos pingados contra milhões enfurecidos.

Mas aí é que está. O Brasil estava só, mas tinha Garrincha.

Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo! E o

Mané, com suas pernas tortas e fulgurantes, com o seu olho rútilo e

também torto, pôs os Andes de gatinhas, ou de cócoras, sei lá.

Quando ele enfiou um gol e depois outro, isso aqui foi, como diria

um orador de gafieira, foi uma pátria constelada de garrinchas.

E o patético é que, quinta-feira, o video-tape de Brasil x

Inglaterra nos dera um versão deprimente do escrete. O povo não


*Brasil 4x2 Chile, 13/6/1962, em Santiago, pelas semifinais da Copa do Mundo.

sabia como conciliar as duas coisas: -- o delírio dos locutores e a

exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A

verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: -- a

imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo

que o video-tape é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público,

que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os

fatos de todo o seu patético.

Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglaterra,

uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo,

altamente veraz. O video-tape demonstrou o contrário. Azar da

imagem. Mais deslumbrante ainda foi a jornada de ontem. Amigos,

todo o Chile se levantou contra nós. A imprensa, o rádio, a TV, o

homem de rua, as crianças -- quiseram triturar emocionalmente a

"seleção de ouro". Nunca se fez um massacre psicológico tão feroz

contra alguém. O futebol passou para um plano secundário. O

objetivo único foi, repito, a liquidação psicológica dos craques

brasileiros.

Mas o gostoso é que o escrete do Brasil em nenhum momento

-- antes, durante ou depois -- teve medo. Foi um time, foi uma

equipe imaculada de medo. E, já em campo, apareceu um outro

adversário, o mais atro, o mais torvo adversário: -- o juiz. Então, o

Brasil teve de lutar contra 75 mil espectadores, contra os jornais,

contra o rádio, contra a TV, contra os carabineiros, contra a

cordilheira, contra tudo, contra todos e mais: -- contra o árbitro. No

seu medo abjeto da multidão; no pavor de ser cuspido e malhado

como um judas de sábado de Aleluia -- ele roubou com um descaro

gigantesco. Sim, a pusilanimidade deu-lhe uma força, um poder,

uma crueldade, uma dimensão inexcedíveis. E, no seu lúgubre

cinismo, o sujeito só faltou apitar hands nos arremessos laterais

brasileiros. Amigos, temos aí um Eichmann do apito. O que ele fez

com Garrincha não tem perdão.

Garrincha! Desde o começo da crônica que eu queria falar no

Mané. E estou-me perdendo em floreios como faria o já referido

orador de gafieira. Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior

figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e

exasperada: -- a maior figura do futebol brasileiro desde Pedro

Álvares Cabral. Quando eu dizia que Garrincha era varado de luz

como um santo de vitral, os idiotas da objetividade torciam o nariz.

Reconheço que faltava ao Mané, realmente, um toque, ou retoque, de

martírio.

Desde ontem, porém, o Mané é mártir oficial, mártir chapado,

da cabeça aos sapatos. O lívido, o gelado Eichmann do apito o

expulsou, com a hedionda conivência do bandeirinha Esteban

Marino. É a santidade, amigos. A coisa foi tão indigna como o seria a

expulsão de são Francisco de Assis. E ainda por cima apedrejaram o

Mané, tiraram o seu tépido, o seu doce, o seu rútilo sangue. É santo,

sim, sem efeito de retórica, sem arranjo literário, tão santo como um

são Sebastião seminu e flechado.

Amigos, como é mais linda a vitória roubada. O juiz gatuno deu

ao nosso feito uma dimensão mais comovida e mais deslumbrante.

Não faz mal o frango ou, por outra, o peru que Gilmar engoliu. O

nosso goleiro come seus frangos, seus perus, mas não se deprime,

não se degrada. Não foi apenas a vitória do escrete. Foi sobretudo a

vitória do homem genial do Brasil.



[O Globo, 14/6/1962]

BICAMPEÕES DO MUNDO




Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem,

quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado

bicampeão do mundo*. Foi um título que o escrete arrancou de suas

rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e

repito: -- não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-

rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu,

assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado

na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75

milhões de reis.

De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo.

Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E

sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da

grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos

iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já

tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil

ser profeta.

Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon.

Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência

deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o

farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha

favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana

d'Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas

estão consteladas de Joanas d'Arc. E os homens parecem

formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé, um são Jorge


*Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile.
Jogo final da Copa.

infante, maravilhosamente infante.

Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais,

folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que

jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o

Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente

descobrimos um novo Pelé. E repito: -- feliz o povo que, na vaga de

um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o "Possesso", surgiu contra a

Espanha. É o novo Pelé proclamado.

Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol

quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para

vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um

rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra a Espanha pendia dos

seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio

duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se

lembram dos seus dois gols contra o Chile. O Mané estava na meia

esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático.

Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.

O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem

foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1 x 0.

Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: --

"Vamos repetir 50?". Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da

derrota. O que eu quero dizer é que, em seguida ao gol da Tcheco-

Eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora

bem pouco Amarildo e bem pouco "Possesso". Desta vez, porém,

partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o

ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai

para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E então o

"Possesso" enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola,

também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o

empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o

carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e

tão possessa. O escrete tinha de vencer porque não era somente o

escrete, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.

No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o "Possesso". Nunca o

"Possesso" foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente

adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia

quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava

Zito. E o "Possesso" deu-lhe o gol. Brasil 2 x 1. Batida a Tcheco-

Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos.

Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco-

Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de

são Jorge.

Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo.

Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos

Estados Unidos. Eis a verdade: -- a Rússia e os Estados Unidos

começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: -- foi a

vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje

o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.



[O Globo, 18/6/1962]

BEIJOS IMACULADOS




Amigos, falemos ainda e sempre do bi. Normalmente, cada um

de nós é um solitário e um incomunicável. O sujeito vive roendo a

própria solidão como uma rapadura. E, súbito, o escrete vem e

arremessa o brasileiro do seu silêncio e de sua misantropia. Este

povo taciturno, caladão, tornou-se um extrovertido ululante. Nas

esquinas, nas casas, nos botecos, erguíamos o nosso grito como uma

lança agudíssima.

E descobrimos o "próximo". Aí é que está: -- na vida comum, o

chamado "próximo" é o ser mais distante e mais inescrutável. Essa

incomunicabilidade faz um mal danado. Pois bem: -- o bi lançou-nos

nos braços do próximo. As ruas se encheram de desconhecidos

íntimos. Todo mundo beijava todo mundo. O Brasil foi, por um

momento, a terra da ternura humana. Os bêbados caíam abraçados

à sarjeta e querendo beijar o meio-fio.

E se houve aqui essa orgia de ternura, imaginem vocês lá no

Chile, lá em Santiago, no próprio local, e repito: -- no próprio local.

Os brasileiros que assistiram ao jogo estavam cara a cara com o fato,

viviam o acontecimento na carne e na alma, tinham uma relação

física com a vitória. Pode-se imaginar o delírio feroz, nunca visto em

terra nenhuma, em época nenhuma.

Ontem eu falei dos espíqueres de rádio, autores do nosso

massacre emocional. Ainda agora a nação está com os nervos em

pandarecos, graças aos bárbaros do microfone. Mas eu lhes digo: --

bendita a angústia que os locutores atearam no Brasil! Continuemos,

amigos, continuemos. O que eu queria dizer é que, em Santiago, e

sob o deslumbrante choque do bi, o brasileiro foi o mais doce ser da

Terra.

O brasileiro! Nós sabemos que, normalmente, o brasileiro é um

fauno de tapete. Usamos sapatos para disfarçar os pés de cabra. Em

Santiago, porém, na noite do triunfo, os nossos patrícios foram

sufocados por uma golfada de bondade total. Amigos, costumo dizer

que qualquer um tem o seu momento de são Francisco de Assis, e

insisto: -- o vigarista, o batedor de carteiras, o ladrão de galinhas ou

o Drácula podem, sob um estímulo qualquer, virar um santo feérico.

Ainda está para se escrever um capítulo sobre os beijos do bi,

na capital chilena. Ao soar o apito final, cada brasileiro presente

sentiu-se fisicamente implicado no triunfo. Aliás, o bi foi um êxito

pessoal de 75 milhões de sujeitos. Todos nós "ganhamos", todos nós

"chutamos". E, depois do match, cada um de nós tinha as canelas

materialmente esfoladas.

E aí começavam os beijos. O sujeito identificava uma patrícia

desconhecida e se lançava nos seus braços. Às vezes não era

patrícia, era chilena ou mesmo tcheca. Mas valia assim mesmo. Aí é

que entrava a pureza da vitória. Naquele momento, o brasileiro

beijaria a própria Ava Gardner com uma dessas inocências

desesperadoras. Ninguém era desconhecido de ninguém.

Tudo isso debaixo de lágrimas. Graças a Deus, somos o povo

mais chorão do mundo. O próprio O Globo estampou uma fotografia

que é um documento do caráter nacional: -- Zagalo chorando. Tal

flagrante devia constar de Os sertões, de Euclides da Cunha, na

parte referente ao homem. E lamento que não tenha sido gravado o

soluço de Zagalo, para ser retransmitido numa cadeia de emissoras.

Assim é o brasileiro. Chora em tudo e por tudo, em batizado, em

enterro, aniversário.

Mas disse eu que o brasileiro é o fauno de tapete. Não no Chile,

após a vitória. Os nossos patrícios beijavam qualquer uma, e com

que inefável naturalidade. Na euforia do triunfo, o "amor ao próximo"

passou a funcionar em todo o seu esplendor. Ninguém era pobre,

rico, bonito, feio, Cleópatra, Lollobrigida ou Paulina Bonaparte, se

por lá aparecesse -- seria apenas o "ser humano". O brasileiro

descobria o "ser humano". No sortilégio do bi, até um esquimó seria

nosso "próximo" -- fisicamente próximo.

Mas eu dizia que os cavalheiros beijavam as damas, e já

acrescento: -- também os cavalheiros se beijavam. Vocês se lembram

do caso dos generais franceses. Na hora da condecoração, eles se

beijam uns aos outros. O brasileiro não entendia essa ternura oficial

entre homens. Mas aí está a lição de vida do bicampeonato. Na tarde

de 17 de junho cada um de nós deixou de ser o fauno de flautinha,

ou de gaita, sei lá. A distribuir beijos imaculados, o brasileiro foi, por

um momento, um são francisco, um mané, um garrincha, cheio de

graça.



[O Globo, 23/6/1962]

O MINEIRO SOLIDÁRIO




Amigos, já contei o episódio. Certa noite, num sarau de grã-

finos, o Otto Lara Resende cheira a bombinha de asma e declara o

seguinte: -- "O mineiro só é solidário no câncer". As senhoras

presentes entreolharam-se, deliciadas. Os cavalheiros não souberam,

de imediato, se aquilo era piada torpe ou fina sociologia. Os mais

atilados veriam, ali, uma verdade estadual, inapelável e eterna.

A frase do Otto caiu na boca do povo. Todo o Brasil a repete. O

sujeito entra num velório, ou numa farmácia, e ouve alguém

cochichar: -- "O mineiro só é solidário no câncer". Há quem diga que

a frase são as obras completas do escritor. Seja como for, continua

de pé a dúvida: -- piada ou verdade?

Dias atrás, outro mineiro, o Waldomiro Autran Dourado, dizia-

me que o Otto é um otimista. Fiz espanto: -- "Como assim?". E o

Autran, ao meu ouvido: -- "O mineiro só é solidário na exumação".

Vejam vocês: -- o câncer só não basta. É ainda pouco. Há os que

sobrevivem. E, segundo o autor do admirável A barca dos homens, o

mineiro só daria sua solidariedade à ossada, à caveira.

Não sei quem está certo, se o Otto, se o Autran. Só sei que há

um mineiro, o Zé Luís Magalhães Lins, do Banco Nacional de Minas

Gerais, que é um generoso, um compassivo, um terno, um úmido. O

chamado leite da bondade humana pinga ou, por outra, esguicha do

Zé Luís. Falei no câncer. Aí é que está: -- a solidariedade do jovem

banqueiro começa na brotoeja.

Temos diante de nós o caso nacional de Garrincha. E, de fato, o

povo acompanhou o drama como se fosse um fascículo de Miguel

Zevaco. O Mané, que era um manso, uma cambaxirra, tivera a sua

primeira indignação terrena. E essa fúria inédita assombrava todo

mundo. Por sua vez, o Botafogo é um clube passional. Insultou-se e

partiu para a briga, desgrenhado como um Tartarin.

Ora, que espécie de relação, ou interesse, ou que diabo seja,

podia ter o Zé Luís com o fato? Mas aí é que está: -- o Zé Luís vive a

distribuir, a mãos ambas, a sua solidariedade gratuita, ininterrupta,

automática. Onde quer que haja um problema, ou um aflito, lá

aparece a solidariedade de Zé Luís como uma vela acesa. Ele se

interessa por tudo e participa de tudo, com uma juvenil, uma

militante efusão. Se na China, se no Alasca, uma galinha pula a

cerca do vizinho, ele vive apaixonadamente o problema.

Ei-lo a quebrar lanças por Garrincha e pelo Botafogo. Meteu-se

no fogo como uma Joana d'Arc. Varava as noites, numa vigília

fanática. Domingo e segunda, quando sumiu a última estrela da

noite, estava o Zé Luís, em General Severiano, discutindo,

aconselhando, com um élan de herói de Walter Scott. Fisicamente, é

um alto, um pálido. E o cansaço dava-lhe um certo halo de martírio.

O Zé Luís sabia que Garrincha nos pertence e que não

poderíamos perder Garrincha. Se o Mané deixasse o futebol,

choraríamos a sua ausência com uma dor de viúva siciliana. E o

jovem banqueiro, com seu ar de aluno de Pedro II, lutou

furiosamente. O dinheiro não o desumanizou, e pelo contrário: -- ele

é que humaniza o dinheiro. Ganhou, por fim, a batalha. Garrincha

não podia perder o Botafogo, nem este podia perder o Mané. O Zé

Luís repôs um nos braços do outro.



[O Globo, 27/3/1963]

UM FLUMINENSE TÃO FLAUBERT




Amigos, no tempo de Eça de Queirós, quando o articulista

estava sem assunto, tinha uma solução genial, que era a seguinte: --

xingava o bei de Túnis. Em Túnis há sempre um bei, e é doce

descompor alguém com a prévia e linda certeza da impunidade. Era

uma delícia para o autor de Os Maias xingar um desconhecido

ilustre. Numa das vezes o bei protestou. Ao descrever fisicamente a

vítima, Eça chamou o bei de "sórdido e obeso".

Possivelmente a importante autoridade não seria uma coisa

nem outra. Ou talvez fosse magro, lívido e hierático. Mas o que eu

queria dizer é que, como todo cronista, eu tenho o meu bei de Túnis.

Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Procuradoria do

Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação

freqüente e mesmo obsessiva de um homem que jamais deu uma

botinada, jamais bateu um córner ou um tiro de meta?

O leitor dirá: -- "É uma obsessão". Ao que eu responderei: --

"É uma obsessão". Se eu pudesse, escreveria todo santo dia sobre o

Otto. A princípio ele foi, estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é algo

mais. Faz-me falta não citá-lo nas minhas crônicas. Sinto-me um

frustrado e um vencido quando não uso o seu nome uma única e

escassa vez. E o interessante é que também o leitor está viciado no

Otto e tem saudades dos seus feitos, da sua figura, das suas piadas.

Hoje, porém, vou falar do Otto a propósito do Fluminense. Pode

parecer que uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Mas

tem. E explico. O Otto é uma coisa que não sei, francamente não sei,

se compromete ou se consagra um estilista. Ninguém mais divino

torturado. Por vezes uma frase lhe custa arrancos de cachorro

atropelado. Outro dia o Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: "Não

seja tão Flaubert de Salambô!".

Por exemplo: -- nas refeições o personagem do Otto "senta-se à

mesa", sempre e inexoravelmente "à mesa". E vamos e venhamos: --

sempre que, numa obra de ficção, o personagem senta-se com a

classe referida, não é mais possível obra-prima, não é mais possível

Ana Karênina. Ao passo que, pessoalmente, ele arrebata porque, no

bate-papo, não há classe, não há Flaubert, não há Salambô, não há

nada.

Outro dia o Otto sentou-se com o Armando Nogueira. Três

horas da manhã. E o escritor mineiro brilhou como uma Duse aos

dezessete anos. Durante 45 minutos ele provou, por A mais B, que

no Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Convenceu o Armando.

Em seguida, passou a demonstrar a verdade inversa, ou seja: -- que,

no Brasil, o golpe é iminente, inevitável e necessário. Estava sendo

ali um Sócrates sem alpercata.

Agora, a relação do Otto com o Fluminense. Domingo passado,

durante os primeiros vinte minutos, o Fluminense foi um Otto, foi

um estilista. Mas no futebol, como na literatura, convém não

caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol

nenhum. Tudo certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No

meu canto, eu via a hora em que perderíamos mais um ponto fatal. E

vem a grande verdade: -- a obra-prima, no futebol e na arte, tem de

ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de

ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos

borbotões.



[O Globo, 9/11/1963]

O DIVINO DELINQÜENTE




Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50. Foi uma

humilhação pior que a de Canudos. O uruguaio Obdulio ganhou de

nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não me venham dizer que o

escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com

o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio -- é como

se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber

botinadas.

Pois bem. Depois da experiência bíblica de 50, passamos a

rosnar, por todas as esquinas e por todos os botecos do continente, o

seguinte juízo final sobre nós: -- "O brasileiro é bom de bola, mas

frouxo como homem". É o que diziam, sim, de nós, com feroz

sarcasmo, os craques da Argentina e os craques do Uruguai. Até que

vem aquele famoso Campeonato Sul-Americano de 1959. Há o jogo

Brasil x Uruguai. E, de repente, estoura um sururu monstruoso.

Brigaram até as cadeiras.

Foi uma página de Walter Scott. O próprio Chinesinho, com o

seu tamanho de anão de Velasquez, levou e deu bordoada. Lindo,

lindo foi quando Didi tomou distância, correu e saltou. Por um

momento ele se tornou leve, elástico, acrobático. E enfiou duas

chuteiras em flor na cara do inimigo. Quando parou a guerra e

continuou o jogo, demos um banho de bola. Ora, há uma nítida

relação entre a passividade de 50 e a agressividade do tal Sul-

Americano. As duas coisas estão ligadas e uma justifica a outra.

Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que "futebol é bola".

Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega

esvazia o futebol como um pneu, e repito: -- retira do futebol tudo o

que ele tem de misterioso e de patético. A mais sórdida pelada é de

uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou

bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria

ainda ao ilustre confrade o seguinte: -- em futebol, o pior cego é o

que só vê a bola.

Faço a meditação acima para justificar a escolha do meu

personagem: -- Almir*. Alguém dirá que Almir é um delinqüente

irrecuperável. Amigos, vamos reexaminar o problema. "Ser ou não

ser delinqüente", "ser ou não ser paranóico", eis a questão. Mas os

mesmos que agora exigem a cabeça de Almir, como se ela fosse a de

Maria Antonieta, gostam muito de Didi. Eu próprio tenho por Didi

uma admiração de macaca-de-auditório. Dei-lhe o nome de "Príncipe

Etíope de Rancho". Mas já diziam os acácios e os pachecos da

crônica: fato é fato. E Didi, conforme todo mundo sabe, quebrou a

perna de Mendonça.

Estava lá o Armando Nogueira. Ora, o Armando é um lúcido,

um sensível e, sobretudo, um justo. O Otto Lara Resende vai mais

longe e jura que esse nobre confrade é o único pastor protestante

escocês que jamais existiu. Eu pergunto ao pastor escocês que há no

Armando se ele, Armando, usou a ênfase de um Moisés ou a ira de

um Zola para chamar Didi de "paranóico" ou de "delinqüente".

Há mais. Ainda o meu amigo Armando Nogueira viu quando,

há tempos, Amarildo quebrou Jair Marinho, do Fluminense. Lá saiu

o esplêndido zagueiro de maca, e quase de rabecão. O Armando, que

é, repito, um justo, foi testemunha ocular e auditiva do fato. Digo

"auditiva" porque ele "ouviu" o som inequívoco da fratura. Jogavam

Botafogo x Fluminense e um autêntico alvinegro foge do túmulo para

ir torcer.

Não lembro o que escreveu o Armando a respeito. Amigos, ando

sofrendo freqüentes lapsos de memória. Mas suponho que o pastor


*Santos 1 x 0 Milan, 16/11/1963, no Maracanã. Almir acertou Amarildo no primeiro
minuto de jogo, tirou de campo o goleiro Balzarini e cavou o pênalti, cobrado por
Dalmo, que tornaria o Santos bicampeão mundial de clubes.

protestante escocês tenha aproveitado a chance para taxar o

"Possesso" de "delinqüente" e de "paranóico". E se poderia citar

dezenas, centenas de exemplos. O match Chile x Itália, em 62, foi

canibalesco. Os adversários só faltavam chupar as carótidas uns dos

outros. Em 58, no match Suécia x Alemanha, os 22 jogadores

agrediram-se a dentadas.

Nós é que vamos exigir, de um jogo de futebol, a cerimônia, a

polidez, a correção de uma sessão da Câmara dos Comuns? O meu

amigo Armando Nogueira se horroriza com o meu personagem da

semana como se este tivesse inaugurado o foul no futebol. Se o jogo

fosse só a bola, está certo. Mas há o ser humano por trás da bola, e

digo mais: -- a bola é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O

que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a

compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que, atrás

dela, há o homem brasileiro com o seu peito largo, lustroso,

homérico.

O Santos é uma equipe assassinada, e repito: -- assassinada

pela inépcia e desumanidade de seus dirigentes. Nenhuma equipe

terrena pode jogar tanto sem se morrer. E, contra o marcadíssimo

Milan, o glorioso time ruía aos pedaços, estrebuchava, agonizava.

Nunca houve cansaço tamanho. E, apesar disso, ganhou do Milan na

mais linda reação que se conhece. Ganhou duas vezes. Por que

agredir a vitória não de um time, mas do homem brasileiro? Por que

esse ressentimento inconfesso, mas nítido, contra o Santos? Mas

voltemos ao meu personagem da semana. Teve uma grande e cálida

atuação no feito brasileiro. Será "paranóico" porque chutou

Amarildo? E Didi, e o próprio Amarildo, e tantos outros? Por justiça,

o meu amigo pessoal Armando Nogueira devia aparecer na boca de

cena para declarar: "Meus senhores e minhas senhoras. Só vejo

paranóicos na minha frente".


[O Globo, 18/11/1963]

SEMANA DE FLA--FLU




Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro

desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark.

Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Walter Clark é

um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do

garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se

que ele arranca contratos de publicidade até em velórios, até em

cemitérios. Pois bem: -- e o Walter Clark só pensa no Fla--Flu*.

Assim que me viu, ele me arrastou para um canto.

Conversamos na varanda da TV Rio, diante do mar. Um cálido sopro

marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio.

Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos

seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o

primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada,

inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla--Flu.

Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-

me a seguinte inconfidência: -- vai comemorar a vitória com busca-

pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um automóvel

branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E esse carro de

noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga

wagneriana para dar o tom alto à comemoração.

Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de

suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma

catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo.

Foi assim, em Hiroxima, na manhã dominical da bomba. Nenhum


*O resultado desse jogo está na próxima crônica.

presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade.

Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência

de um bodinho de charrete. E, de repente, há o clarão hediondo.

Eis o que me pergunto: -- com as suas comemorações

antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroxima

particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é apenas

do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a

mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio

Costa está calmo, e repito: -- é a tal calma da catástrofe. Ao passo

que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que

anuncia as vitórias deslumbrantes.

Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Walter

Clark: -- ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a

vitória tricolor. Foi assim também em 1919. Naquela ocasião, os

eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigantesca. Quarenta

e quatro anos já rolaram depois disso. A cidade estava, como agora,

cálida de Fla--Flu. Lembro que, no dia do jogo, alguém morreu na

minha rua. E, no caixão, o defunto estava de cara amarrada, porque

não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: -- com o

mesmo otimismo trágico do Walter Clark, o Flamengo preparou a

apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com

os respectivos cavalos, o final do match.

E venceu o Fluminense. Creio que não existe, na história de

um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla--Flu.

Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustração dos

corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais

pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E

agora?

O profeta já anunciou: -- "Fluminense, campeão de 63!". Desta

coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém

pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na

convocação, e explico: -- a morte não exime ninguém de seus

deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o

passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já

possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os

torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: --

ganharemos o mais dramático Fla--Flu de todos os tempos.



[O Globo, 13/12/1963]

PIOR PARA OS FATOS




Amigos, ao terminar o grande Fla--Flu*, o profeta tratou de

catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um

vencido? Jamais. Vencido como, se temos de admitir esta verdade

límpida e total: -- o Fluminense jogou mais! Não cabe, contra a

evidência da nossa superioridade, nenhum argumento, sofisma ou

dúvida. Alguém dirá que o profeta não previa o empate.

Exato. Mas vamos raciocinar. Houve lances, no Fla--Flu, que

escapariam à vidência até de um Maomé, até de um Moisés de Cecil

B. de Mille. Lembro-me de um momento em que Marcial estava

batido irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros

e quebrados. E que fez Escurinho? Enfiou a bola na caçapa?

Consumou o gol de cambaxirra?

Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bola na

bandeja como se fosse a cabeça de são João Batista. E eu diria que

nem Joana d'Arc, com suas visões lindas, ou Maomé, pendurado no

seu camelo, ou o Moisés de Cecil B. de Mille, do alto de suas

alpercatas -- podia imaginar tamanha ingenuidade. Escurinho teria

de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e

nunca suspender a bola.

E tem mais. Os profetas de ambos os sexos jamais poderiam

contar com a trave. No segundo tempo, Escurinho mandou uma

bomba. Nenhum gol foi tão merecido. Pois bem: -- vem a trave e

salva. Além do mais, que Maomé, ou que Moisés podia calcular que o

treinador Flávio Costa ia fazer jogo para empate? Dirá o próprio que


*Flamengo 0 x 0 Fluminense, 15/12/1963, no Maracanã. Flamengo campeão carioca.

não foi esta a sua intenção. Mas o fato incontestável é que ele armou

o time para o hediondo 0 x 0.

É óbvio que, desde o primeiro minuto, o Fluminense teria de se

atirar todo para a frente. Era preciso forçar a decisão, o gol, a vitória,

já que o empate seria a catástrofe. O tricolor jogou bem e, no

entanto, não deu, nunca, a sensação de fome e sede de gol. Faltavam

uns quinze minutos, e os nossos jogadores ainda tramavam, ainda

faziam tico-tico, ainda perdiam tempo com passes curtos, para os

lados e para trás. Sim, o Fluminense jogou bem e não cabe

preciosismo num último Fla--Flu.

Já no jogo do Flamengo contra o Bangu, aconteceu o seguinte:

-- sempre que Oldair avançava, eis que Flávio erguia-se na boca do

túnel e fazia um comício. Oldair marcou dois gols por desobediência

e, repito, por indisciplina tática. Ontem, ele estava cá atrás,

defendendo um empate que seria a vitória do Flamengo. Vejam que

tristeza horrenda: -- nós, do Fluminense, jogamos bem e errado.

Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O

tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um

campeão oficial, que é o Flamengo. E, aqui, abro um capítulo para

falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela

cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À

saída do estádio, eu vi um crioulão arrancar a camisa diante do meu

carro. Seminu como um são Sebastião, ele dava arrancos medonhos.

Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão.

Mesmo que eu fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa

alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Não sei se o

time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a

patética, a abnegada torcida rubro-negra merece muito mais. Cabe

então a pergunta: -- quem será o personagem da semana de um

abnegado Fla--Flu tão dramático para nós? Um nome me parece

obrigatório: -- Marcial. E, nessa escolha, está dito tudo. Quando o

goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o

adversário jogou melhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro

que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o gol que Escurinho

não fez. Tampouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na

trave. Assim mesmo, Marcial andou fazendo intervenções decisivas,

catando bolas quase perdidas.

Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que

o profeta pode responder: -- "Pior para os fatos!". É só.



[O Globo, 16/12/1963]

A CAVEIRA NO ESPELHO




Amigos, sou um admirador profundo do cinema italiano. Bem

me lembro dos meus tempos de menino. Sempre que havia uma fita

de Francesca Bertini, lá estava eu, com meus seis, sete anos

salubérrimos. E a Bertini deslumbrava a minha infância. Santa e,

como diria Augusto dos Anjos, abominabilíssima senhora! No

momento mais dramático dos filmes, ela saía pelas portas, aos urros

e às patadas. E se alguém a beijava, eis a vamp antediluviana

querendo subir pelas paredes como uma lagartixa profissional.

Assim era no tempo da cena muda. Mas, com a passagem dos

anos, o cinema foi mudando. Menos o italiano, que continuou fiel ao

próprio povo. A Bertini passou. Mas outras a substituíram, e

seguindo uma linha parecida. E o cinema atual da Itália está cada

vez mais feroz e cada vez mais esbravejante. Pode-se dizer que ele

repôs o urro no centro do drama humano. Suas atrizes, ainda as

mais sóbrias, são desgrenhadas viúvas sicilianas. Francesca Bertini

está mais viva, mais atual, mais obsessiva do que nunca.

Faço toda esta volta pelo cinema italiano para chegar ao

Botafogo. É, com efeito, o clube mais passional, mais siciliano, mais

calabrês do futebol brasileiro. Um tricolor pode torcer em surdina,

pode cochichar, pode suspirar. O botafoguense, porém, é de uma

extroversão ululante como nos velórios da Sicília. Lembro-me de uma

vizinha que torcia pelo Botafogo. Por uma funesta coincidência,

casara-se com um rubro-negro. E o casal discutia muito sobre

futebol. Uma vez, houve um Flamengo x Botafogo. E não sei se

ganhou o Flamengo, ou se ganhou o Botafogo.

Só sei que, na volta do jogo, os dois vinham brigando. Foi lindo

quando desembarcaram do táxi. A doce vizinha berrava: -- "Te bebo

o sangue!". Tiveram de chamar a radiopatrulha ou do contrário ela

descascaria a carótida do marido para chupá-la como laranja. Nessa

implacabilidade está o charme da torcida botafoguense. Esse tom,

essa efusão, essa agressividade, essa ira, ou estertor de ópera, de

filme italiano, é que dá o tom justo aos homens de General

Severiano.

E, além disso, como o italiano da anedota, o alvinegro

autêntico paga para sofrer. O alvinegro autêntico, repito, prefere a

catástrofe. E, quando o time perde, ele se realiza. Pode clamar,

espernear, arrancar os cabelos, amaldiçoar e soltar os cães de sua

ira. É a vocação da calamidade que torna inconfundível o

botafoguense irreversível.

Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase

viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e

respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem

nenhum pretexto para soluçar as suas mágoas clubísticas.

Felizmente, este ano o Botafogo perdeu o tricampeonato. E seus

fanáticos podem descarregar, em todas as direções, o seu potencial

de ira.

Cabe então a pergunta: -- e por que o Botafogo perdeu o

tricampeonato? Ora, eu não sou botafoguense e posso me dar ao

luxo de um mínimo de isenção e de objetividade. A meu ver, o

Botafogo começou a perder o tricampeonato quando negociou Didi.

Há uma verdade eterna, em futebol, que é a seguinte: -- todo clube

precisa ter uns tantos bens inegociáveis. E não há preço que pague

um bicampeão mundial. Didi teria que envelhecer em General

Severiano até se converter numa múmia gagá.

O Botafogo continuou a perder o tricampeonato quando

pensou, simplesmente pensou, em vender Garrincha. Um clube que

admite, mesmo como hipótese, a venda de um Mané tem mesmo a

tal vocação da catástrofe. O Botafogo perdeu de vez o tricampeonato

quando vendeu Amarildo. Negociando o "Possesso", que marcou os

dois gols contra a Espanha, o alvinegro estava querendo ver, no

espelho, a própria caveira. Há também a ausência de Garrincha. Mas

o joelho do Mané não é um problema cirúrgico, e repito: -- o joelho é

apenas um castigo.

Agora a conclusão: -- se o Botafogo quis vender o Mané, e se

negociou Amarildo, e se entregou Didi -- é porque queria se dilacerar

no arrependimento e na expiação.



[O Globo, 28/12/1963]

O MAIS CARIOCA DOS TIMES




Amigos, o brasileiro é o homem de sua rua, do seu bairro, de

sua cidade. Já escrevi isso umas cinqüenta vezes. Como eu ia

dizendo: -- para qualquer um de nós a viagem é um sacrifício

hediondo. A partir do Méier, baixa no sujeito uma aguda e

desesperada saudade. Eu sei que uns poucos gostam de viajar. São

os falsos brasileiros, descaracterizados, cosmopolitas e, numa

palavra, bobos irreversíveis.

Daí a tragédia dos times que saem, por aí, nas ignominiosas

excursões caça-níqueis. Fora do aquário natal o craque brasileiro

afoga. Por exemplo: -- Didi. Por que fracassou na Espanha o

"Príncipe Etíope de Rancho"? Foi uma vítima da nostalgia. Melhor

que todos os seus companheiros de Real Madrid, Didi acabou

apagando. Foi barrado, até. Contam que, nas tardes frias, ele só

faltava uivar de saudade.

E, se assim aconteceu com o extraordinário jogador, imagino

que os demais devam ter a mesmíssima reação. Outro exemplo: -- o

Santos. É o melhor time do mundo. Houve momentos em que se

disse por aqui: -- "O verdadeiro escrete brasileiro é o Santos!". E, de

fato, quando o Santos joga bem, lembra as melhores atuações da

seleção de 58.

E, no entanto, o esquadrão de Vila Belmiro virou saco de

pancada. Apanhou de cinco do Independientes, de cinco do Peñarol

e, sábado, de três do Colo Colo. Como eu dizia ontem, o Santos

adquiriu o vício de perder. Apanha do grande e do pequeno.

Qualquer dia desses vamos vê-lo tomar um banho do Arranca-Toco

F. C. A coisa toma um ar meio sobrenatural. Não há explicação

possível. O Santos é, indubitavelmente, um esquadrão de ouro. Além

de tantos valores conhecidos e consagrados, lá está o maior de todos:

-- Pelé.

Um quadro que tem Pelé está na obrigação de ganhar de todo

mundo. E por que perde? Porque deixou de ser um time brasileiro.

Sim, transformou-se numa equipe internacional. Reparem: -- o

Santos faz turismo no Brasil. Um dia está na Argentina; em seguida,

no Chile; e, depois, na Bolívia, no Peru. Seus jogadores são

aplaudidos, vaiados e xingados em todos os idiomas.

A meu ver, baixou no Santos o tédio desesperador de tantas

viagens. Que espécie de estímulo pode ter um time cujos adversários

mudam de sotaque três vezes por semana? A equipe voltaria à sua

melhor forma, ao seu grande ímpeto, se parasse. Ponham o Santos

para jogar no Maracanã, só no Maracanã. Eu não diria no

Pacaembu. Em São Paulo há um ressentimento contra o quadro de

Vila Belmiro. Mas aqui, no maior estádio do mundo, o Santos

tornaria a encontrar o seu clima.

Vocês querem saber a última verdade sobre o Santos? Ei-la: --

é o mais carioca dos times. Só por um equívoco crasso e ignaro

nasceu em Vila Belmiro. Mas a verdade é que, por índole, por

vocação, por fatalidade -- ele encontra, no Maracanã, uma dimensão

nova e decisiva. É ali, no colosso do Derby, que o Santos mereceu as

suas aclamações mais formidáveis. A multidão só falta carregá-lo no

colo e passear com Pelé na bandeja, triunfalmente.

Não me venham com explicações técnicas, táticas para seus

fracassos. Esse time, que pára em todas as pátrias, menos na

própria, estourou o limite de saturação. Qualquer viagem o aniquila.

Tem que deixar de ser um pobre e errante quadro internacional. E o

pior é que até Vila Belmiro soa como um exílio porque o Santos

nasceu no lugar errado. Sua verdadeira casa é o Maracanã. Ah, se

ele conseguisse naturalizar-se carioca -- seria uma equipe imbatível

e eterna.

[O Globo, 3/3/1964]

O MARTÍRIO DE NÍLTON SANTOS




Amigos, minha última obsessão é a seguinte: -- o tapa que

Nílton Santos deu no juiz*. O episódio ainda é assunto, é notícia, é

manchete. O craque foi arrastado a julgamento. Em vão, bateu às

portas da indulgência humana. Ninguém lhe concedeu uma

atenuante. A impressão que se teve é que o tapa de Nílton Santos

está entre os sete pecados capitais.

Cabe então a pergunta: -- a coisa merecia esse estardalhaço?

Merecia essa promoção? Receio que sim e explico. Não há tapa

intranscendente. Agressor, vítima e testemunhas estão implicados na

mesma humilhação. Eu me lembro de uma cena que vi, faz tempo,

numa luta de Éder Jofre. Na altura do segundo ou terceiro round,

um espectador ergue-se, aos uivos. Vociferava para o ringue: --

"Parem! Parem!". Cercado por três ou quatro, o sujeito foi arrastado.

Mais desgrenhado e ululante do que um jeremias, ele ia soluçando:

-- "Não se bate na cara de ninguém! De ninguém!".

Parece que a Justiça Esportiva, sensível à transcendência do

tapa, levou o castigo às últimas conseqüências. E, de repente, Nílton

Santos lembrou o martírio de Dreyfus. Como se sabe, diante da tropa

formada, arrancaram os bordados de Dreyfus, depenaram as

dragonas, arrancaram os botões, derrubaram o boné. Tudo isso ao

som de tambor, cometa, o diabo. Nílton Santos quase teve essa

degradação total.

E não ocorreu a ninguém que um tapa pode ter a sua ética


*Nílton Santos, 39 anos e bicampeão do mundo, foi suspenso por sessenta
dias por agredir Armando Marques.

profunda. Nílton Santos bateu por quê? Sim, por quê? Vamos

reconstituir o fato. Segundo todas as testemunhas, o árbitro correu

para o jogador e espetou-lhe o dedo na cara. Vamos e venhamos: -- é

meio triste para um adulto, casado, pai de filhos, sofrer uma desfeita

assim pública e assim hedionda.

A gravidade de uma humilhação depende de público. Se os dois

estivessem num terreno baldio, apenas assistidos por alguma cabra

vadia, a coisa não teria nenhum patético. É a testemunha que

valoriza e dramatiza as ofensas. Nílton Santos e o juiz brigaram num

campo de futebol. Gente por toda parte, e repito: -- gente pendurada

até no lustre. Dirá alguém que o jogador agrediu. Convém lembrar:

-- dedo na cara também é agressão.

Eis o problema: -- um juiz pode agredir e um jogador não pode

revidar? Dirá algum fariseu que o atleta não pode dar tapas como

um gângster. Ora, mil vezes mais grave, mais solene, mais hierático

do que o atleta é o ser humano. Um jogador não pode ser, nunca, a

antipessoa. E, afinal de contas, se houvesse justiça real, o jogador

que se portou como homem -- e por isso mesmo -- teria de ser

desagravado, promovido, premiado.

Mas, no caso, há também um aspecto desesperador. Refiro-me

à infalibilidade que se confere ao juiz de futebol. Tem um poder que,

hoje, negamos ao rei da Arábia Saudita. A tirania mais cruel e obtusa

tem seus limites. E só o juiz de futebol paira acima do bem e do mal.

Sim, depois do que fizeram com Maria Antonieta, ou com Maria

Stuart, ou com Inês de Castro -- não se entende que um apito, um

reles apito, possa tornar alguém sagrado, intangível.



[O Globo, 12/3/1964]

ENCOURAÇADO DE SOL




Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi

um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio

Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete,

colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras

da época se cobriam até o pescoço. Em suma: -- o brasileiro vestia-

se como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá.

Hoje não. Procura-se um fraque e não se encontra um fraque.

Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito que entrasse

sem gravata num bonde -- era de lá expulso a patadas. E, agora,

anda-se de biquíni nos lotações. Um sol hediondo vai derretendo as

catedrais e amolecendo os obeliscos. Não há dúvida: -- somos

finalmente tropicais.

Olhem as nossas praias. A nudez jorra aos borbotões. Em

1905, o turista que visse Machado de Assis havia de anotar no

caderninho: -- "Este é o povo mais vestido do mundo!". Em nossos

dias, o mesmo turista havia de escrever inversamente: -- "Este é o

mais despido dos povos!". Pois bem. E, no entanto, vejam vocês: --

ocorre aqui uma reação curiosíssima.

Sim, diante do calor, o brasileiro esperneia e pragueja. O que

fazem com o futebol chega a ser burlesco. Em pleno verão,

suspendem os clássicos e as peladas. O Maracanã cerra as suas

portas. Todas as botinadas são proibidas. E ninguém percebe o

absurdo. O justo, o lógico, o adequado é que um craque tropical,

como o nosso, jogue no verão e descanse no inverno.

Não me venham com o argumento de higiene. Para um tropical,

a higiene é um sol homicida. E se reclamamos, se esbravejamos, se

uivamos contra o sol, cabe uma dúvida honesta. É possível que

sejamos tropicais por engano. E, nesse caso, certo estaria Machado

de Assis ao pôr fraque e galochas, assim desafiando o hediondo sol

do meio-dia.

O futebol antigo era mais inteligente. O jogador entrava em

campo e os jogos caniculares tinham mais élan, mais saúde, mais

euforia. Por exemplo: -- em 1910, ano em que o Botafogo foi

campeão. Naquele tempo, o Brasil era tropical sem o saber. Lembro

que um craque alvinegro, famosíssimo, jogava com uma vasta toalha

felpuda enrolada no pescoço. Quarenta graus à sombra e ele varava

o campo como um centauro de cobertor.

E nunca houve, no velho futebol, nenhuma insolação. Pelo

contrário: -- o craque tinha uma resistência de hipopótamo. Na

célebre gripe espanhola morreu todo mundo. A mortandade foi pior

do que a da primeira batalha do Marne. Mas como eu ia dizendo: --

uns morriam e outros eram enterrados. E, quando o sujeito relutava

em morrer, era liquidado a pauladas como uma ratazana. Muito

bem: -- só os jogadores de futebol sobreviveram.

Não havia Departamento Médico nos clubes. Mas o sol

potencializava o jogador e o protegia contra o tifo, a malária e a peste

bubônica. Sim, bons tempos em que o Brasil não era ainda tropical

ou por outra: -- não sabia que o era! O craque usava bigodões

imensos, carapuça e mais: -- seus calções escorriam até as canelas.

Lindo, lindo. E assim, encouraçado de sol, abarrotado de calor, o

craque ou o perna-de-pau eram uma bastilha deslumbrante de

saúde.



[O Globo, 13/4/1964]

OS QUE NEGAM GARRINCHA




Amigos, qualquer multidão é triste. Juntem 150 mil pessoas no

Maracanã e vejam como imediatamente o estádio começa a exalar

tristeza e depressão. Assim foi ontem, 1º de maio, Dia do Trabalho, e

portões abertos para todo mundo*. Aquilo foi tomado de assalto. E,

quando soou o apito inicial, tinha gente até no lustre.

Mas o que eu queria dizer é que, como qualquer multidão,

aquela massa estava triste, fúnebre, inconsolável. E só mesmo o meu

personagem da semana, Mané Garrincha, conseguiu arrancar do

Maracanã entupido uma gargalhada generosa total. Vocês se

lembram de Charlie Chaplin, em Luzes da ribalta, fazendo o número

das pulgas amestradas? Pois bem, Mané deu-nos um alto momento

chapliniano. E o efeito foi uma bomba.

Na primeira bola que recebeu, já o povo começou a rir. Aí é que

está o milagre: -- o povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta.

Ria adivinhando que Garrincha ia fazer a sua grande ária, como na

ópera. Como se sabe, só o jogador medíocre faz futebol de primeira.

O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola. Sim, ele cultiva a bola

como uma orquídea de luxo.

Foi uma das jogadas mais histriônicas de toda a vida de Mané.

Primeiro, pulou por cima da bola. Fez que ia mas não foi. Pula pra lá,

pra cá, com a delirante agilidade de 58. Lá estava a bola, imóvel,

impassível, submissa ao gênio. E Garrincha só faltou plantar

bananeiras. Três ou quatro gaúchos batiam uns nos outros,

tropeçavam nas próprias pernas.


*Brasil 2 x 0 Seleção gaúcha, 1/5/1966, no Maracanã. Jogo preparatório para a Copa
do Mundo na Inglaterra.

O importante, porém, é que a multidão, neurótica como toda

multidão, ria, finalmente ria. E o som de 150 mil gargalhadas saiu do

Maracanã e rolou por toda a cidade. Era mais uma ressurreição do

Mané. Digo "ressurreição" porque o meu personagem da semana já

teve vários atestados de óbito. Sabemos que ele está jogando no

Coríntians e fazendo gols fantásticos. Não contente de fazer os

próprios, tem sido, com seus passes magistralíssimos, o co-autor de

não sei quantos gols alheios.

Pois bem. Mas há, na crônica, quem o trate como um defunto

do futebol. Chega a ser patusca a insistência com que vários colegas

anunciam a morte do Garrincha de 58 e de 62. E Mané tem que ser

exumado. Só o povo é que, na sua imaculada boa-fé, não acredita no

fim do ídolo. Sempre que ele recebia a bola, a multidão caía em

estado de graça plena.

E vamos e venhamos: -- para um defunto, Mané parecia ontem

salubérrimo. Cabe então a pergunta: por que certos confrades

teimam em não enxergar o óbvio ululante? Há várias explicações. Em

primeiro lugar, os colegas alvinegros ressentidos contra o abominável

ex-botafoguense. E há também a falta de bondade. Amigos, eu

sempre digo que sem um mínimo de ternura não se chupa nem um

Chica-bon. Os que negam Garrincha têm uma aridez de três

desertos.

Mas o que importa, para nós, para o escrete, para o Brasil, é

que Mané voltou a ser ele mesmo. Ainda ontem nós verificamos, mais

uma vez, como é importante, como é decisiva a sua presença. Antes

de mais nada, o adversário dá-lhe uma cobertura histérica de três e

até quatro marcadores. Imaginem lá fora, imaginem na Inglaterra.

Sempre que ele receber a bola, lord Nelson há de tremer na tumba e

a "Divina Dama" há de chorar lágrimas de esguicho.



[O Globo, 2/5/1966]

MATAR OU MORRER




Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol

brasileiro, eu direi: -- a delicadeza, e reforço: -- a extrema

delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez

do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi

assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas, os adversários já

entravam de navalha na liga.

Ao passo que, até no foul, o escrete verde-amarelo era de uma

suavidade impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x

Alemanha* foi uma carnificina. Eu estava vendo a hora em que os

adversários iam arrancar a carótida uns dos outros para chupá-la

como tangerina. Foram noventa minutos de uma fero de recíproca e

homicida. Valeu tudo, rigorosamente tudo.

Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar

pena a correção dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola.

Jamais o mundo vira um escrete tão doce e de uma inocência quase

suicida. Um sociólogo que lá estivesse havia de fazer a constatação

apiedada: -- "O escrúpulo é próprio do subdesenvolvimento" .

O escrúpulo e mais: -- a humildade, a lealdade, o altruísmo.

No jogo Brasil x França, o árbitro comportou-se como um larápio.

Não houve, em toda a história da Copa, um roubo mais cristalino e

cínico. Tivemos que fazer três gols para que valesse um. E o escrete

brasileiro nem piscou. Deixou-se furtar e só faltou beijar a testa do

ladrão.



*Nelson refere-se a Suécia 3 x 1 Alemanha (24/6/1958) e Brasil 5 x 2 França
(25/6/1958), ambos em Gotemburgo. O outro jogo foi Brasil 2 x 0 Alemanha,
6/6/1965, no Maracanã, em que Pelé quebrou a perna do alemão Giezzmann.

O pior vocês não sabem. Até 58 o Brasil fazia de si mesmo a

pior das imagens. Sim, o brasileiro se considerava um facínora. E, no

Maracanã, quando um de nós ousa um foul mais violento, o estádio

vem abaixo. Por toda parte há quem esbraveje: "Cavalo! Cavalo!".

Mas é uma injustiça. Muito mais brutal do que o nosso é o futebol da

Inglaterra, da Alemanha, da França, da Itália, da Bulgária.

O meu amigo Antônio Callado viu, certa vez, um jogo Inglaterra

x Escócia. Foi um pau só, do primeiro ao último minuto. E, súbito,

explode um sururu. Brigaram os 22 jogadores, o juiz, os

bandeirinhas, as torcidas. A polícia montada teve de invadir o

campo. No Brasil, o sururu é tão antigo, tão obsoleto como um quepe

da Guerra do Paraguai. E, quando um de nós dá um tapa, as

manchetes tremem e há uma comoção nacional.

A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são defeitos

gravíssimos. Um jogador brasileiro tem vergonha de pisar na cara do

adversário caído. O europeu não. O europeu não recua diante de

nada. Vocês se lembram do jogo Brasil x Alemanha aqui no

Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas que teve um lance de

epopéia.

Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não

recuou, nem o brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o

seguinte: -- matar ou morrer. O alemão preferiu matar e Pelé não

quis morrer. O nosso levou vantagem pelo seguinte: -- porque

introduziu no choque a molecagem brasileira. Conclusão: -- Pelé

sobreviveu e o germânico saiu de maca.

A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: --

condenou Pelé. Se a coisa fosse na Alemanha, e a vítima Pelé, o

cronista de lá ia considerar a fratura um fato normal e

intranscendente. Amigos, na Europa o foul praticamente não existe.

O juiz só costuma apitar quando um adversário estripa o outro.

E não há dúvida de que, por uma tendência natural e por se

tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o

brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no

inglês. Mas verdade é bem diferente. Hoje sabemos que o único

inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso,

desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.



[O Globo, 30/5/1966]

TERRENO BALDIO




Amigos, para entender a Comissão Técnica da seleção, eu

inventei as conversas de terreno baldio com o João Havelange. E por

que terreno baldio? Vou repetir a minha explicação. Tudo o que se

diz num capinzal vem repassado de sinceridade. Ao passo que, no

gabinete, na sala, no coquetel e na mesa, o ser humano usa 35

máscaras, nunca a sua face verdadeira.

Pois bem. Tenho levado o presidente da CBD para os matagais

mais discretos, mais secretos da cidade. E, lá no sigilo, no mistério

do terreno baldio, digo ao João as coisas indizíveis, as coisas

impublicáveis. E ele responde com a mesma lealdade. Tal é a

vantagem das conversas imaginárias.

Acontece que o escrete vive um grande momento. Estamos a

um mês da Copa da Inglaterra e rola, por todo o país, a pergunta

apavorante: -- "E o time?". Sim, onde está o time que a Comissão

Técnica não fez? Não importa a sua qualidade. Mas 80 milhões de

brasileiros querem uma equipe básica, suscetível de retoques, mas

conhecida e proclamada.

E ninguém conhece esse time. Que nós não o conhecêssemos,

vá lá. Afinal, somos pobres e ignaros mortais. Mas a própria

Comissão Técnica participa da nossa ignorância e da nossa

perplexidade. A equipe, que toda a nação deseja, ela não a tem. E o

pior é que o relógio não pára. Nem o relógio, nem a folhinha.

Começou uma luta corpo a corpo entre o escrete e o tempo. Cada

minuto perdido é irrecuperável.

Com o João num terreno baldio, e na presença apenas de uma

cabra pensativa, eu cobraria: -- "E o time, Havelange? E o time?". Aí

está a pergunta de todo um povo. Podia não ser o ideal, mas que

fosse um time. A própria Comissão só poderá agir e reagir a partir de

uma equipe básica.

Sob o olhar indiferente da cabra, eu perguntaria: -- "Você acha

direito, João?". Por enquanto, há um só titular obrigatório: -- Pelé.

Garrincha é provável e sabemos que a Comissão tudo fará para

impor Servílio. Outra pergunta de terreno baldio: -- "Como você

explica, Havelange, que não se tenha experimentado ninguém ao

lado de Pelé?". O João, que conhece futebol, sabe que Silva não é um

perna-de-pau. Pelo contrário: -- Silva se impôs, durante todo o

campeonato, como um atacante decisivo. Servílio, com a bola nos

pés, pode ter -- quem sabe? -- mais virtuosismo.

Mas Silva é o homem das grandes e fatais penetrações. Tem o

tal feitio épico que o tricampeonato exige. E não há dúvida: -- há

muito que merece uma chance ao lado de Pelé. Há também Alcindo,

há também Jairzinho. Dirá alguém que Jairzinho é reserva de

Garrincha e Silva reserva de Pelé. Mas craques como Silva, como

Jairzinho podem ser testados de várias maneiras. Em verdade, o que

há é um pré-julgamento da Comissão, em favor de Servílio.

No terreno baldio, eu perguntaria ainda ao João: -- "Fidélis ou

Carlos Alberto? E Brito? E Bellini? Orlando ou Altair, hein,

Havelange? Paulo Henrique ou Rildo?". O nosso João teria de

responder: -- "Não me pergunte nada. Sei tanto quanto você". Sabe

tanto quanto nós. Pura e santa verdade. O presidente da CBD e

chefe da delegação sabe tanto quanto qualquer outro brasileiro, vivo

ou morto. Dirá alguém que a Comissão demora para não errar. Pois

que erre. A simples demora é, em si mesma, um erro maior.



[O Globo, 2/6/1966]

OS INIMIGOS DO ÓBVIO




Amigos, uma das coisas mais fascinantes da televisão, no

momento, é o programa do Otto. E, lá, aparece de tudo. Do rajá ao

sociólogo, do profeta ao camelô, do psiquiatra ao macumbeiro, do

santo ao ventríloquo. Dessa irisada complexidade, tira o Otto um

charme inimaginável. Ainda não perdi as esperanças de ver, entre os

seus convidados, uma foca amestrada, equilibrando laranjas no

focinho.

Ontem, o meu fraterno colega entrevistou uma psicanalista

sobre um dos problemas mais agudos do nosso tempo: -- a

juventude. E aí começa o equívoco. "Do nosso tempo" por quê? O

jovem sempre foi problemático e, se não é problemático, estejamos

certos: -- trata-se de um débil mental que deve ser amarrado num pé

de mesa. Vamos dar graças a Deus que a nossa juventude tenha um

drama, uma angústia, uma tensão dionisíaca ou demoníaca, sei lá.

Mas a psicanalista começa a falar e logo percebemos o seu raro

brilho e o seu vasto saber. Por que o jovem está inquieto, tenso,

vibrante, explosivo, perplexo e ameaçador? A culpa é da sociedade e

da família. Quanto ao próprio jovem, a entrevista não faz uma tênue

insinuação ou uma vaga referência. O que importa é apenas a

situação social. Como reles coadjuvante, a situação familiar.

E eu então vi subitamente tudo. Imaginei que, diante de uma

prova de natação, a psicanalista havia de concluir: -- "Quem nada é

a piscina e não o nadador". Minha vontade foi bater o telefone para a

TV Globo e dizer: -- "Minha senhora, não se esqueça do nadador". Se

vocês admitirem a comparação, eu diria que há, sim, um nadador no

problema da juventude. Sim, o que está por trás da família, da

sociedade, das gerações é um velho conhecido nosso, ou seja: -- o

homem.

Os sociólogos do Otto, os psicólogos do Otto, os educadores do

Otto, os professores do Otto ainda não chegaram ao ser humano e o

ignoram com uma crassa e bovina teimosia. É preciso que alguém

lhes escreva uma carta anônima, com o furo sensacional: -- "O

homem existe! O homem existe!". E vai ser um susto, um pânico, um

horror, quando os citados especialistas perceberem que a besta

humana está inserida na nossa paisagem.

Eis a verdade: -- todas as segundas-feiras, o programa do Otto

apresenta um feroz, um rancoroso inimigo do óbvio. E que dizer do

escrete? Passo do Otto para o campeonato do mundo. Amigos, um

dos mais graves problemas da seleção era o companheiro de Pelé.

Oitenta milhões de brasileiros queimavam os miolos, sem achar a

solução. Onde encontrar esse misterioso, utópico, alucinante

companheiro?

Não tem perdão a obtusidade com que insistimos em Servílio.

Só no jogo com o Peru é que desconfiamos do óbvio ululante. Não

havia nenhuma afinidade entre alhos e bugalhos, ou seja: -- entre

Servílio e Pelé. Mas no dia seguinte todo mundo enxergou, de

repente, outro óbvio ainda mais estarrecedor: -- Alcindo. O tal

companheiro de Pelé, mais esperado do que um messias, era o

formidável centauro gaúcho.

Notem que estava na cara. Mas ai de nós, ai de nós! Nunca

enxergamos o que está na cara. Alcindo treinava com uma saúde,

um élan, uma fome, uma sede, uma fúria sagrada. Se pusessem um

paralelepípedo na arquibancada ele diria, com o dedo apontado para

Alcindo: -- "Esse é o companheiro de Pelé!". (Nas minhas crônicas, os

paralelepípedos têm dedo.) Mas, como eu ia dizendo: -- o que um

paralelepípedo veria, ao primeiro olhar, nós não víamos. E, por fim,

ninguém acreditava mais no tal companheiro. Foi preciso que

jogassem o Brasil e a Polônia*, lá no Mineirão. E o óbvio baixou, de

repente, no estádio. Não há mais dúvida, não há mais nada. O

jogador que o óbvio escala é inarredável, irreversível, assim na terra

como no céu.



[O Globo, 8/6/1966]




*Brasil 4 x 1 Polônia, 5/6/1966, no Mineirão.

SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS




Amigos, ontem foi um dia santo. O escrete do Brasil fazia a sua

primeira audição na Inglaterra*. Eu vos direi que a rainha devia ter

comparecido ontem, e não na véspera. Pois o divino Pelé jogou como

se todos ali fossem rainhas. E se o diáfano espectro de Maria Stuart

viu o crioulo, há de ter sussurrado: -- "Vai jogar assim no raio que o

parta!".

Mas eu dizia que toda a cidade parou. As nossas madames

Bovary, as nossas Anas Karêninas suspenderam seus amores e seus

pecados, das três às seis. Os bandidos do Leblon não assaltaram

senhoras nem crianças. E o caro Geraldo Mascarenhas, do Banco

Mineiro da Produção, deixou de pensar nos títulos que eu já devia ter

pago. Ontem, ninguém era credor, ninguém era devedor.

Éramos apenas brasileiros, da cabeça aos sapatos. No centro

da cidade, durante o jogo e depois do jogo, toda a cidade se inundou

de papel picado. Chovia tudo das sacadas. Quando Garrincha fez o

segundo gol, até papel higiênico foi atirado das janelas altas. Era a

vitória, ainda a primeira vitória e apenas a primeira vitória. Mas a

nação inteira crispou-se de sonho.

Doce escrete do Brasil! Nós o malhamos, aqui, como se ele

fosse um judas de sábado de Aleluia. O Maracanã, o Morumbi, o

Pacaembu e o Mineirão vaiaram seus craques. E, assim humilhada e

assim ofendida, partiu um dia a seleção nacional. Partiu para a

gigantesca jornada do Tri. E aconteceu o milagre: a distância

aproximou o escrete do povo. Sim, o exílio deu-nos a verdadeira


*Brasil 2 x 0 Bulgária, 12/7/1966, em Liverpool. Estréia do Brasil na Copa da
Inglaterra.

imagem do time brasileiro.

Jogamos com a Bulgária e a vencemos. Ainda bem que não foi

uma goleada. Aprendemos em 50 que nada embriaga mais do que o

vinho dos escores frenéticos. Os 2 x 0 chegam para a nossa alegria e

a nossa fé. Não queremos mais. Basta que continue assim da

primeira à última partida. Mas certos lances do escrete fizeram a

Inglaterra tremer de beleza.

E onde estão os pessimistas? Dirá alguém que a equipe não

esteve perfeita. Mas aí é que está: -- não queremos a perfeição,

queremos o tricampeonato. Toda obra de arte é imperfeita. E a nossa

vitória de ontem foi, justamente, uma obra de arte total. Só espero

que cada um de nós faça uma autocrítica exemplar. Precisamos

chegar diante do espelho para confessar: -- "Nós somos burros,

muito burros, burríssimos!".

Durante meses repetimos, com a pertinácia da obtusidade, que

Altair era, fisicamente, imprestável para o escrete. Colegas meus

afirmavam, com a ênfase do erro: -- "Orlando é melhor, Orlando é

melhor!". Pois bem. Há o jogo, e Altair, do primeiro ao último

segundo, despontou como a maior figura da defesa. Suportou

bravamente todas as situações de choque corporal. Vocês imaginam

o que seja o búlgaro. Sim, o búlgaro tem a saúde do zebu premiado.

E o nosso frágil, dispnéico, exânime Altair era uma bastilha

inexpugnável. Levou pau e deu pau. E por ele ninguém passou,

ninguém.

Outra figura comovente foi Denílson. Até outro dia, era

aspirante do Fluminense e hoje é titular no maior escrete do mundo.

É o momento de se fazer justiça a Carlito Rocha. No momento em

que Denílson não era ninguém, era zero, o velho Rocha, de olho

rútilo e lábio trêmulo, ousou a profecia: -- "Vocês vão torcer por esse

menino em Londres". Todo mundo achou graça. Mas o que parecia

uma piada era um maravilhoso vaticínio.

Falemos agora de Pelé. Os cronistas ingleses ousaram

blasfemar contra o divino. E o crioulo respondeu com uma exibição

imortal. Não me venham falar em Di Stefano, em Puskas, em Sivori,

em Suárez. Eis a singela e casta verdade: -- não chegam aos pés de

Pelé. Quando muito, podem engraxar-lhe os sapatos, escovar-lhe o

manto. Eu dizia e repito: -- só um débil mental de babar na gravata

terá coragem de duvidar do escrete. Um time que tem Pelé é

tricampeão nato e hereditário.



[O Globo, 13/7/1966]

A VERGONHA




Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação feroz.

Eu diria que a vergonha de 50 foi mais amena, mais cordial. Naquela

ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda não se instalara em

nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de

babar na gravata. Quando passava a carrocinha de cachorro, cada

um de nós tinha medo de ser laçado também.

Mas hoje, não. Ou por outra: -- até ontem, o brasileiro poderia

avançar até o limite extremo da ribalta e anunciar, de fronte erguida:

-- "Sou bicampeão". E de repente, o duplo título começa a ficar

antigo, obsoleto, espectral, como se não significasse mais nada.

Olhem para as nossas esquinas e os nossos botecos. Por toda parte

uma sensação de orfandade. Dir-se-ia que Suécia e Chile são duas

glórias fenecidas.

Quando acabou o jogo, li em todas as caras a pergunta: -- "Por

quê? Por quê?". O melhor futebol da Terra conhecia uma humilhação

mundial. Não falo do resultado. Qualquer um perde, ganha ou

empata. Em 54, o escrete húngaro do Armando Nogueira entrou por

um cano deslumbrante. Mas não houve o ridículo, eis o importante,

não houve o ridículo que desabou sobre o nosso escrete.

E, de fato, a seleção do Brasil não jogou como um time e jamais

foi um time. Graças à Comissão Técnica, fomos, do começo dos

treinos até a estréia na Inglaterra, um bando de ciganos a dar

botinadas em todas as direções. Alguém que não conhecesse os

títulos do Brasil havia de pensar: -- "Eis um time de pernas-de-pau,

eis um time de cabeças-de-bagre!".

E seria injusto, monstruosamente injusto. Porque o jogador

brasileiro continua o melhor do mundo. Nada descreve e nada se

compara à graça, ao sortilégio, à flama do nosso craque. Cabe então

a pergunta: -- e por que fez tanta vergonha? Eis o óbvio ululante: --

o time do Brasil não foi derrotado nem pela Hungria, nem por

Portugal*. Derrotado está pela burrice da Comissão Técnica.

Através de quatro meses, a Comissão teve tudo. Com menos

dinheiro, a Inglaterra fez o seu império. E a Comissão teve prestígio,

e apoio, e promoção, e entusiasmo, e confiança, e autoridade. Pois

bem. Nos quatro meses, ela não revelou um único e escasso

momento de lucidez. Quando a gente se lembra do que ela fez,

chega-se a pensar em insânia. Mas aí é que está: -- a burrice é a pior

forma de loucura.

Repito que o Brasil saiu daqui sem um time formado, sem um

projeto tático e sem saber como ia jogar e com que craques jogaria.

Parecia brincadeira, uma sinistra, hedionda brincadeira. Nem isso e

pelo contrário. A burrice não tem humor, a burrice é grave. Advertida

pelo rádio, pela imprensa, pela TV, a Comissão ia cometendo as

inépcias mais inverossímeis. Oitenta milhões de brasileiros pediam

um time, pelo menos um time, bom, mau ou péssimo, mas um time,

apenas um time, um desgraçado time. E, à medida que ia

acumulando os seus erros, a Comissão era cada vez mais enfática,

mais infalível, mais onipotente.

Jogamos três vezes. Depois do jogo da Bulgária, esperou-se que

fosse mantida a equipe. Mas ai de 80 milhões de brasileiros! A

burrice tem sutilezas geniais. Como a Hungria vinha feroz em cima

do Brasil, entramos em campo com outro time. A Comissão

desintegrou a defesa, mexeu no ataque. Contra Portugal, outro time.

E, se viesse um quarto jogo, um quarto time. Tudo isso nas barbas

atônitas de um povo.


*Hungria 3 x 1 Brasil, 15/7/1966, em Liverpool. Portugal 3 x 1 Brasil, 19/7/1966,
em Liverpool. Brasil desclassificado da Copa nas oitavas-de-final.

E 80 milhões de sujeitos estão aí, pagando pela burrice alheia.

Não apareceu ninguém para amarrar a Comissão num pé de mesa,

dizendo-lhe: -- "Bebe água numa cuia de queijo Palmira!". Amigos,

na catástrofe de ontem comprovamos mais uma vez esta verdade

inapelável e eterna: -- na batalha entre o gênio e a burrice, ganha

esta e o gênio fica rosnando de impotência e frustração. Venceu a

burrice imortal da Comissão Técnica.



[O Globo, 20/7/1966]

A COPA DO APITO




Amigos, eis uma verdade inapelável: -- só os subdesenvolvidos

ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo,

um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor

sem nenhuma folha de parreira. Vejam a presente Jules Rimet. Nas

barbas indignadas do mundo, a Inglaterra se prepara para ganhar no

apito o caneco de ouro.

Vocês pensam que há algum disfarce, ou escrúpulo, ou

mistério? Absolutamente. Tudo se fez e se faz com uma premeditação

deslavada e na cara das vítimas. A serviço da Inglaterra, a FIFA

escalou oito juizes ingleses para os jogos do Brasil. A arbitragem foi

manipulada para liquidar primeiro os bicampeões e, em seguida, os

outros países sul-americanos. O match Inglaterra x Argentina* foi um

roubo. Uruguai x Alemanha, outro escândalo.

E nem se pense que a Inglaterra baixou a vista, escarlate de

vergonha. Nada disso. Por que rubor, se ela é um grande povo e se

tem, ou teve, um grande império? Vejam o sincronismo da coisa: --

um juiz alemão deu a vitória à Inglaterra contra a Argentina, um juiz

inglês deu a vitória à Alemanha contra o Uruguai. No match

Argentina x Alemanha, foi expulso um jogador argentino. Terminado

o jogo, cinco jogadores sul-americanos tiveram que sair quase de

maca.


*Nelson refere-se aos jogos Inglaterra 1 x 0 Argentina e Alemanha 4 x 0 Uruguai pelas
quartas-de-final. Cinco dias depois da publicação dessa crônica, na finalíssima
Inglaterra x Alemanha (30/7/1966, em Londres), o jogo normal terminou 2 x 2. Na
prorrogação, o inglês Hurst chutou, a bola bateu no travessão e quicou em cima da
linha do gol alemão, sem entrar. O juiz suíço validou o gol inexistente. A Inglaterra
ainda faria outro gol (resultado final 4 x 2) e seria campeã do mundo, como previra
Nelson.

Valeu tudo contra o Brasil e, sobretudo, contra Pelé. O crioulo

foi caçado contra a Bulgária. Não pôde jogar contra a Hungria e só

voltou contra Portugal. Nova caçada. Sofreu um tiro de meta no

joelho. Verdadeira tentativa de homicídio. O juiz inglês nem piou.

Silva levou um bico nas costelas. Jairzinho foi outra vítima e assim

Paraná. O árbitro a tudo assistia com lívido descaro.

E nós? Que fizemos nós? Nada. No último jogo, o Brasil

apanhou sem revidar. Amigos, eu sei que os nossos jogadores

tiveram um preparo físico quase homicida. Antes da primeira

botinada, já o craque brasileiro estava estourado. Sei também que o

Brasil não teve, jamais, um time. A nossa equipe era o caos. Por

outro lado, faltou-nos qualquer organização de jogo, qualquer projeto

tático.

Além disso, porém, a seleção brasileira acusou um defeito

indesculpável e suicida. Como se sabe, esta Copa é uma selva de pé

na cara. E, no entanto, vejam vocês: -- o brasileiro lá apareceu com

um jogo leve, afetuoso, reverente, cerimonioso. E havia um abismo

entre os dois comportamentos: nós, fazendo um futebol diáfano,

incorpóreo, de sílfides; os europeus, como centauros truculentos,

escouceando em todas as direções.

Ainda ontem, o sr. Barbosa Lima Sobrinho escrevia um lúcido

artigo sobre a suavidade do nosso escrete. Note-se que se trata de

um acadêmico, que deve ter compromissos com as boas maneiras, a

polidez, o trato fino etc. etc. Mas ele enxergou o óbvio ululante, ou

seja: -- o futebol vive de sombrias e facinorosas paixões. Durante os

noventa minutos, são onze bárbaros contra onze bárbaros.

Claro que as palavras do sr. Barbosa Lima Sobrinho são

outras. Mas o sentido, se bem o entendi, é este. Portanto, não tem

sentido que o Brasil vá jogar contra os bárbaros europeus com

manto de arminho, sapatos de fivela ou peruca de marquês de Luís

XV. Eis a verdade: -- o que dá charme, apelo, dramatismo aos

clássicos e às peladas é o foul. A poesia do futebol está no foul. E os

jogos que fascinam o povo são os mais truculentos.

O Brasil naufragou num mar de contusões por isso mesmo: --

porque sabia apanhar e não sabia reagir. O ilustre acadêmico está

rigorosamente certo. Hoje, depois do pau que levamos, aprendemos

que o craque brasileiro tem de ser reeducado. Digo "reeducado" no

sentido de virilizar o seu jogo. Amigos, o Mário Pedrosa está fazendo

um ensaio sobre o futebol. É um pensador político, um crítico de

artes plásticas, homem de uma lucidez tremenda. Ora, o intelectual

brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar na gravata. E

o nosso Mário Pedrosa sabe disso e foi um dos sujeitos que sofreram

na carne e na alma o fracasso da seleção. Pois espero que, no seu

ensaio, inclua todo um capítulo assim titulado: -- "Da necessidade

de baixar o pau".

Dito isto, vamos escolher o meu personagem da semana. Podia

ser Paraná. Eu sei que, tecnicamente, ele deixa muito a desejar. Sei.

Mas, contra os portugueses, Paraná deu um pau firme e épico. Mas

eu prefiro Rildo. Que grande, solitária e inexpugnável figura. No meio

do jogo, era tal o seu brio que dava a sensação, por vezes, de que ia

comer e beber a bola. Foi um bárbaro jogando contra bárbaros.

Amigos, o argentino que deu no juiz alemão lavou a alma de todo um

povo. Pois o nosso Rildo, com suas rútilas botinadas, promoveu e

reabilitou o homem brasileiro.



[O Globo, 25/7/1966]

A INVISIBILIDADE DO ÓBVIO




Eu ia começar esta crônica dizendo o que mesmo? Ia dizer que

nada mais antigo do que o passado recente. Perdão. Não é bem isso.

Ah, agora me lembro. O que eu queria dizer é que ninguém enxerga o

óbvio. Poderão objetar que já escrevi isso umas duzentas vezes. Ai de

mim, ai de mim. Não sinto nenhum escrúpulo, nenhum pudor de me

repetir. Hoje, porém, tenho uma variação. Direi que o óbvio é não só

invisível, mas detestável.

A toda hora, e em toda parte, encontramos inimigos ferozes do

óbvio. Um deles é o nosso Armando Marques, o maior juiz do futebol

brasileiro. Vocês conhecem o episódio. No último Fla--Flu*, o ponta

tricolor Wílton recebeu um lançamento em profundidade. O garoto

corre mais do que um coelhinho de desenho animado. Conseguiu

bater o marcador, ultrapassá-lo em sua velocidade fulminante. Por

desgraça, o goleiro adversário saíra antes e ia agarrar a bola.

Wílton usou a mão e tirou-lhe a bola. Perfeito lance de

basquete. A falta foi de um óbvio tão ululante que Armando Marques

não viu. E o nosso extreminha pôde, com um sublime descaro, enfiar

a bola no fundo das redes. Ora, o nosso melhor árbitro ganha 12

milhões antigos. É um salário de Walther Moreira Salles. E ninguém

entendeu que, tão bem pago, Armando Marques fosse cego, surdo e

mudo para a evidência estarrecedora.

Houve quem insinuasse duas hipóteses: -- ou má-fé ou

incompetência. Nem uma coisa, nem outra. A competência ou a boa-

fé de Armando Marques está acima de qualquer dúvida ou sofisma.


*Fluminense 1 x 0 Flamengo, 13/10/1968, Estádio Mário Filho. O gol de Wílton foi
talvez o mais ululantemente ilegal da história do estádio.

Portanto, só uma coisa o justifica e absolve: -- a invisibilidade do

óbvio.



[O Globo, 26/10/1968]

UM GESTO DE AMOR




Amigos, eu considero um pobre-diabo o brasileiro que não

esteve, sábado, no Estádio Mário Filho, vendo e vivendo a festa de

Garrincha. Eu ia falar em "noite inesquecível". Mas, bolas!, há não

sei quantas "noites inesquecíveis" que não são inesquecíveis, e

repito: -- noites que o sujeito esquece meia hora depois.

O belo, o patético, o pungente na "noite de Garrincha" é que

ninguém, de fato, a esquecerá. Somos tão cegos que não enxergamos

o óbvio ululante, isto é, que ninguém faltaria, ninguém. Eu vi,

sábado, no Mário Filho, sujeitos que julgava mortos e enterrados há

trinta anos. Até grã-finos que não sabiam se a bola é redonda ou

quadrada, até as grãs-finas compareceram.

E foi quase apavorante. No dia do clássico, toda a cidade achou

que tinha de estar presente. Foi o maravilhoso encontro, não

combinado, com o Mané. Sábado, ninguém era mais importante na

cidade. Mas como dizia eu: -- somos tão cegos que só parte da

massa pôde comprar entrada; era irrisório o número de bilheterias;

milhares e milhares de pessoas tiveram que pular o muro ou

arrombar portões. E vi uma grã-fina fazer o que não fazia desde a

primeira Chupeta: -- chorar!

Vejam vocês como são as coisas. Garrincha vivia por aí, mais

abandonado, mais desprezado do que um cachorro atropelado.

Lembro-me de um sujeito que veio me soprar ao pé da orelha: -- "Vai

acabar na sarjeta!". Outro fez o vaticínio não menos feroz, segundo o

qual teria o fim do "Ébrio", de Vicente Celestino. Pode-se dizer que,

de uma maneira geral, ninguém jamais admitiu a sua ressurreição.

Cabe então a pergunta: -- se todos estavam assim pressagos, por

que ninguém ensaiava um gesto de amor? Sim: -- por que ninguém

lhe estendia a mão, por quê?

Ai de nós, ai de nós. Temos uma piedade frívola e relapsa.

Gostamos de esquecer. Eu falei em "piedade" e gostaria de notar: -- o

brasileiro esquece antes da compaixão. Mas havia, no caso, para

todos nós, um problema intolerável de consciência. Mané merecia a

nossa alegre e crudelíssima indiferença? Não e nunca. Poucos

homens serviram tanto o seu povo.

Em 58 e 62, a nossa felicidade dependeu de suas pernas

tortas. Na véspera do jogo com a Rússia, na Suécia, cruzei com um

bêbado no meio da rua. Era um crioulão plástico, lustroso,

ornamental. Bêbado de morrer, chorava, profético: -- "Vamos perder

da Rússia! Vamos perder da Rússia!". Pranteava, na véspera, o

desgosto do dia seguinte. E, pouco antes do jogo, estava eu atracado

ao rádio, na redação. Virei-me para um companheiro e perguntei-lhe:

-- "Quem ganha?". O outro respondeu, com boquinha de nojo: --

"Ganha a Rússia, porque o brasileiro não tem caráter".

Mas foi Mané que ganhou. Estreava na Copa. Quando recebeu

a bola, no primeiro minuto de jogo, driblou um russo, mais outro,

outro mais, como no soneto. Driblou as barbas de Rasputin, driblou

as cinzas do czar e, em seguida, enfiou uma bomba na trave. O

adversário se liquidou, ali, na sua primeira escapada. E, assim,

fomos até a final, com Garrincha liquidando o País de Gales, a

França, a Suécia.

Em 62, os Andes se prostraram diante do seu gênio. Pelé saiu

no segundo jogo e não voltou mais. Garrincha ganhou sozinho o

bicampeonato. E, súbito, aquele rapaz da Raiz da Serra compensou-

nos de todas as nossas humilhações pessoais e coletivas. Vocês

sabem que, do nosso lábio, sempre pendeu a baba elástica e bovina

da humildade. Em 58, ou 62, o mais indigente dos brasileiros pôde

tecer a sua fantasia de onipotência.

E, por tudo isso, as multidões, sem que ninguém pedisse, e

sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os portões. E

ofereceram a Mané Garrincha uma festa de amor, como não houve

igual, nunca, assim na terra como no céu.



[O Globo, 2/12/1968]

"BEAU" YUSTRICH "GESTE"




Amigos, não sei se vocês leram o romance Beau Geste, ou

viram o filme Beau Geste. Se não leram, nem viram, vamos lá. Não

vou contar a história toda. O que interessa, para efeito desta crônica,

é apenas um episódio. Imaginem vocês um deserto total. E lá,

debaixo de um sol horrendo, ou varrido por tempestades de areia,

erguia-se um forte.

E o forte foi cercado por bandidos montados. Ah, nós só

conhecemos em matéria de bandido os assaltantes de chauffeurs.

São realmente temíveis. Mas não se comparam aos assassinos do

deserto. Estes não respeitam nem poste. Amam o sangue alheio.

Submetidos a um sítio implacável, os soldados do forte foram

morrendo, um a um.

Houve um momento em que só restaram dois sobreviventes: --

o capitão e o leitor. Com a guarnição exterminada, que fariam um

mísero capitão e o simples leitor? O leitor, como se sabe, é um

inimigo pessoal do risco. E o capitão teria que suportar sozinho os

azares da guerra. Entregar-se era impossível ou, por outra, inútil. Os

árabes o matariam até o último vestígio.

E eis que de repente ocorre ao capitão uma idéia genial. Ele vai

apanhando os defuntos um por um, e os distribui pelas seteiras. Em

seguida, sai atirando por detrás de cada morto. Ao longe, os sitiantes

têm a sensação de que a guarnição continua maravilhosamente

intacta. Se todos atiravam, ninguém estava ferido, agonizante ou

defunto.

Os bandidos pensavam: -- "Não é possível! Não é possível!".

Mas as balas continuavam a chover sobre eles. E, por fim, tomados

de um pavor fatal, saíram correndo e, segundo consta, estão

correndo até hoje. Eis o que eu queria dizer: -- o bom comandante é

autor dos mais cínicos e deslavados milagres.

Contei a história acima pensando na vitória de anteontem*, no

Estádio Magalhães Pinto. Os mineiros venceram em condições

admiráveis. Começaram perdendo por 2 x 0. Quando se temia uma

goleada, eis que o Atlético passou a uma reação maravilhosa. Sua

equipe parecia morta e enterrada para o triunfo. E súbito, com os

brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali, seus homens

despertaram da falsa morte. Foi um espetáculo empolgante de

paixão.

Mas eu pergunto: -- quem foi, acima de todos e de tudo, o

autor do milagre? Eis o seu nome: -- Yustrich. Temos a mania de

dizer que técnico não ganha jogo. Bem sei que ele não dá uma única

e escassa botinada. E nem enfia os gols da vitória. Mas, sem

aparecer, ele pode estar por trás de cada botinada, dispondo. E o

nosso Yustrich é do tipo guerreiro do capitão de Beau Geste.

No romance, o militar punha os defuntos para dar tiros em

todas as direções, como um Tom Mix. E Yustrich segue a mesma

linha. Para ele, uma partida, e sobretudo internacional, é uma

guerra. Nenhum dos seus jogadores fica no meio de campo

bocejando ou de braços cruzados. Todos lutam e todos defendem:

um por um e todos por todos. Aí está o milagre de Yustrich. Os times

que dirige adquirem, antes de mais nada, a sede e a fome da vitória.

Dirá alguém: -- "Mas todos gostam de bicho". Há porém uma

maneira mais ativa, mais viril, mais épica de gostar de bicho. Uns

preferem o bicho sem esforço, sem sacrifício, sem risco.

Todavia, os comandados de Yustrich pensam na vitória antes


* Brasil (representado pelo Atlético Mineiro) 3 x 2 Iugoslávia, 19/12/1968, no
Mineirão. Yustrich, conhecido como "O Homem Mau", foi um discutido treinador dos
anos 50 e 60.

do bicho e, repito, pensam na vitória pela vitória. Só depois é que

vem a idéia do bicho. Vencemos a Iugoslávia graças sobretudo a

Yustrich, o capitão de Beau Geste.



[O Globo, 21/12/1968]

UM ESCRETE DE FERAS




De vez em quando, alguém me pergunta: -- "Existe mesmo a

grã-fina das narinas de cadáver?". E eu, então, tenho que repisar a

velha história. Para situá-la no tempo e no espaço, explico que foi há

quatro ou cinco meses, no Estádio Mário Filho. Era um jogo do

Botafogo com... Mas não importa o adversário.

Ia eu com o Marcello Soares de Moura. Nada como uma carona

para aproximar os homens. E o Marcello sempre me leva para o

futebol no seu Volks, cor de vinho tinto. Súbito, eu a vejo no Estádio

Mário Filho. Sem ser o Dedo de Deus, é altíssima. Anda com o perfil

alto das sonâmbulas. Baixo a voz para o Marcello: -- "Aquela tem

narinas de cadáver". O amigo olha e confirma. E era grã-fina.

Subimos no mesmo elevador. Os presentes, inclusive eu, não

tiravam os olhos da grã-fina. Mas coisa curiosa: -- todos olhavam,

sem saber por que olhavam. Vocês entendem? Ninguém sabia

explicar a própria curiosidade. Para mim, eram, e só podiam ser, as

narinas de cadáver. Saltamos no sexto andar do estádio. Foi aí que,

sempre ereta como as sonâmbulas, vira-se para o marido: --

"Fulano". Usou um diminutivo qualquer, que não me lembro, e fez a

pergunta: -- "Quem é a bola?".

Nem eu, nem o Marcello rimos porque as narinas de cadáver

exerciam sobre nós o que os criminologistas chamam de "coação

irresistível". Estávamos fisicamente acuados. Mas ficou no ar a

pergunta em flor: -- "Quem é a bola?". Lembrei-me das narinas de

cadáver porque, em recentíssima pesquisa, o IBOPE apurou o

seguinte: -- 50% dos meus leitores são leitoras. Esse público

feminino é, a um só tempo, doce e terrível.

Faço a mim mesmo a pergunta: -- por que tenho, entre os

meus leitores, tantas leitoras? Será porque trato bem a mulher,

qualquer mulher? Realmente, acho a mulher menos comprometida.

Não, não é isso o que eu queria dizer. Queria dizer "menos

corrompida". Sim, ela se corrompe menos do que o homem. Na mais

degradada das mulheres sobrevive algo de intacto, intangível, eterno.

Esse mínimo de inocência sempre a salva. E a simpatia que aqui

confesso, mais que um sentimento secundário e superficial, é uma

irradiação de profundezas.

Estou dizendo tudo isso porque o meu assunto de hoje é

supostamente antifeminino. Simplesmente, vou escrever sobre

futebol. Entre as minhas leitoras, muitas jamais entraram no

Estádio Mário Filho; e suspiram: -- "Eu não gosto de futebol". Outras

poderiam perguntar, como a grã-fina das narinas de cadáver: --

"Quem é a bola?". Todavia, há um momento em que todos entendem

de futebol e gostam de futebol. É quando está em causa o destino do

escrete. Na hora de seleção, até a grã-fina das narinas de cadáver

adquire uma súbita clarividência.

Podemos dividir os nossos assuntos em "interessantes" e

"vitais". Um dos assuntos "vitais" do Brasil é a seleção. E,

justamente, já se pode falar numa "crise do escrete". Felizmente, é

uma crise gráfica, uma crise impressa, uma crise de colunistas,

locutores e manchetes. Ah, o futebol dinamiza uma tal massa de

interesses, negócios, egoísmos, vaidades. Estranho mundo, em que

não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas

víboras inumeráveis.

Tudo começou quando João Havelange teve a grande coragem

de escolher o João Saldanha para treinador da seleção. Pela primeira

vez, o escrete passava a ser um problema estritamente técnico e

nada político. O presidente da CBD não quis agradar a A ou B, mas

juntar os melhores. Já sabemos que a competência é amargamente

antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito: -- a competência

tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes.

Eles ficam sem ter o que fazer e o que dizer. Vagam pelas esquinas e

pelos botecos, sem função e sem destino.

O excelente Geraldo Bretas, de São Paulo, passou a pregar

uma guerra de secessão entre o futebol carioca e o paulista. Disse,

perante as câmeras e microfones da TV Globo: -- "São Paulo deve

negar seus jogadores". Bem se vê que o nosso Bretas não pensava

nem no Brasil, nem em São Paulo. Ou por outra: -- pensava em São

Paulo Machado de Carvalho. Mas o agitado confrade não é um caso

único. Há vários Bretas, inclusive cariocas. Mas o Bretas tem, na

pior das hipóteses, a virtude da nitidez. Diz o que tem de dizer,

escreve o que tem de escrever. Não guarda bobagens para o dia

seguinte.

Todavia, o João Havelange veio a descobrir que o pior Bretas é

o falso amigo, de falsa solidariedade. Mas a conspiração contra a

competência evoluía em silêncio. E os Bretas confessos ou

inconfessos, introspectivos ou ululantes, estavam apenas esperando

um pretexto explosivo. Esse pretexto veio de um foul no recente

Brasil x Peru*. Gérson levou uma cotovelada que foi uma nítida

agressão. Pouco depois, revidava com um foul. Ora, o foul é nosso

velho conhecido. Oitenta milhões de brasileiros são íntimos do foul.

Quando Didi quebrou a perna de Mendonça e esperou seis anos para

ir à forra com Pavão -- não se gastou tanto papel e tinta, nem houve

nenhum berro gráfico. Mendonça morreu para o futebol, azar o dele.

Os bons rapazes da imprensa não viram no fato nada de épico ou de

sublime.

Mas eu explico: -- naquela ocasião, não havia interesses

criados e frustrados. A fratura de Mendonça só interessou mesmo à

vítima e familiares. A de Pavão, idem. Agora, não. Agora havia uma


*Brasil 3 x 2 Peru, 9/4/1969, no Estádio Mário Filho.

"crise" latente que o foul de Gérson detonou. Vocês sabem o que

aconteceu depois. Um outro peruano deu um pontapé no brasileiro.

Este revidou. O juiz expulsa os dois. Minutos depois, com o jogo

ainda interrompido, um peruano, lá no meio do campo, agride um

brasileiro, que nada fez, nem queria fazer. Vejamos: -- como devia

portar-se o nosso patrício?

Como 50% dos meus leitores são leitoras, é possível que a grã-

fina das narinas de cadáver esteja me lendo. Ela não sabe ainda

quem é a bola. Mesmo assim, faço-lhe a pergunta: -- "O brasileiro

deve aceitar, em sua própria terra, a bolacha de um peruano?". Boa

parte da crônica acha que sim. Considera um "espetáculo

degradante" o uso que fizemos de uma legítima defesa. Houve o

sururu, e daí? Na Inglaterra é mil vezes pior. Lá, brigam os 22

jogadores, as duas torcidas, o juiz, os bandeirinhas e gandulas.

Depois, vai todo mundo para a estação quebrar locomotivas. E é um

povo gigantesco, que salvou o mundo. Se, em Dunquerque, a

Inglaterra tivesse capitulado, os nazistas fariam provas hípicas

montando brasileiros.

Mas a bordoada, no caso, é o que há de mais intranscendente.

O foul de Gérson não espantaria ninguém. O que se quer derrubar é

o João Saldanha, ainda que, para tanto, seja preciso derrubar o

escrete. Tudo serve de pretexto. O nosso João, num dos seus

arroubos de Tartarin, disse que seu ideal era um "escrete de feras".

Na pior das hipóteses, fez uma metáfora. Imaginem que os interesses

contrariados estão uivando até contra a metáfora.

Eis o que eu queria dizer à Guanabara, a São Paulo, Rio

Grande, Alagoas, Pernambuco e a todo o Brasil: -- o João está

maravilhosamente certo. O "escrete de feras" é uma velha utopia de

todos os brasileiros, inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. A

humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue. Todo

escrete tem a sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado e

chamava-se Obdulio Varela. O escrete do João terá onze Obdulios.

Imaginem vocês que, ontem, recebo um interurbano de São

Paulo. Era um leitor paulista, indignado. Com um horror

indescritível, vira locutores bandeirantes torcendo contra o escrete

nacional. No fim, berravam: -- "Vitória imerecida! Vitória imerecida!".

Não eram paulistas, não eram brasileiros, não eram nada: -- eram

súbitos índios peruanos. E pedia o leitor que eu protestasse, em

nome de São Paulo, junto aos meus colegas de lá. Amigos, não sei se

vocês conhecem a história do português que era credor de um circo.

O circo faliu e o dono, como pagamento, deu-lhe o mais bonito leão

da casa. E sai o português com o leão. Mas achando a juba do bicho

muito grande, mandou passar-lhe a máquina zero. Imediatamente, o

leão começou a ser olhado como um cachorro amarelo. No dia

seguinte, em vez de rugir, latia. Quero concluir dizendo: -- no escrete

do João, ninguém vai ser cachorro amarelo.



[O Globo, 14/4/1969]

CHEGA DE HUMILDADE




Amigos, a humildade acaba aqui. Desde ontem o Fluminense é

o campeão da cidade. No maior Fla--Flu* de todos os tempos, o

tricolor conquistou a sua mais bela vitória. E foi também o grande

dia do Estádio Mário Filho. A massa "pó-de-arroz" teve o sentimento

do triunfo. Aconteceu, então, o seguinte: -- vivos e mortos subiram

as rampas. Os vivos saíram de suas casas e os mortos de suas

tumbas. E, diante da platéia colossal, Fluminense e Flamengo

fizeram uma dessas partidas imortais.

Daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: --

"Aquele Fla--Flu!". Ah, quem não esteve ontem no Estádio Mário

Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfeita,

irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Ninguém

conquista o título num único dia, numa única tarde. Não. Um título

é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um campeonato inteiro.

Acreditem: -- o Fluminense começou a ser campeão muito

antes. Sim, quando saiu do caos para a liderança. "Do caos para a

liderança", repito, foi a nossa viagem maravilhosa. Lembro-me do

primeiro domingo em que ficamos sozinhos na ponta. As esquinas e

os botecos faziam a piada cruel: -- "Líder por uma semana". Daí para

a frente, o Fluminense era sempre o líder por uma semana.

Olhem para trás. Da rodada inaugural até ontem, não houve

time mais regular, mais constante, de uma batida mais harmoniosa.

Mas foi engraçado: -- por muito tempo, ninguém acreditou no

Fluminense, ninguém. Um dia, Flávio veio de São Paulo. Era o


*Fluminense 3 x 2 Flamengo, 15/5/1969, no Estádio Mário Filho. Domingues, goleiro
do Flamengo, foi expulso aos vinte minutos do segundo tempo com o jogo em 2 x 2.

ponta-de-lança mais esperado que um Moisés. Queríamos um

goleador. E nunca mais se interrompeu a ascensão para o título.

O curioso é que, há muito tempo, aqui mesmo desta coluna,

fez-se o vaticínio de que o campeonato teria a sua decisão num Fla--

Flu. Foram autores de tal profecia, primeiro, o Celso Bulhões da

Fonseca; em seguida, o Carlinhos Niemeyer, um e outro rubro-

negros. O que ambos não sabiam é que já estava escrito há 6 mil

anos que o campeão seria o Fluminense. E vou citar um outro

oráculo: o Haroldo Barbosa. Quando o tricolor parecia uma piada, o

bom Haroldo piscou o olho para o Marcello Soares de Moura: --

"Este é o ano do Fluminense!". E do seu olhar vazava luz.

E mais: -- na sexta-feira, o presidente do Fluminense,

Francisco Lapport, convidou para um almoço, em sua residência, a

mim, ao Marcello Soares de Moura e ao Carlinhos Nasser. Ainda na

mesa, e antes do cafezinho, baixou-nos o sentimento profético do

título. Amigos, o que se viu ontem no Estádio Mário Filho foi

espantoso. Primeiro, a tempestade de bandeiras, de pó-de-arroz, os

pombos tricolores e rubro-negros.

E que formidável partida! Houve, durante noventa minutos, um

suspense mortal. O Fluminense fez o primeiro gol e o Flamengo

empatou. O Fluminense fez o segundo e o Flamengo mais uma vez

empata. Duzentas mil pessoas atônitas morriam nas arquibancadas,

gerais e cadeiras. E foi preciso que Flávio, o goleador do Fluminense,

o goleador do campeonato, marcasse aquele que seria o gol da

vitória, da doce e santa vitória. E o rubro-negro não empatou mais,

nunca mais. Era a vitória, era o título.

Agora a pergunta: -- e o personagem da semana? Podia ser

Cláudio, que fez uma exibição magistral e, inclusive, um gol. Podia

ser Denílson, que volta a ser o "Rei Zulu" e um dos maiores jogadores

brasileiros de defesa. Penso também em Galhardo, que, a princípio

nervosíssimo, teve intervenções sensacionais. Podia ser também Telê,

que, sóbrio, modesto, trouxe a equipe do caos para o título. Mas

entendo que desta vez o personagem deve ser o time. Do goleiro ao

ponta-esquerda. Todos, todos mostraram uma alma, uma paixão, um

ímpeto inexcedíveis.

Pelo amor de Deus, não me venham dizer que, no segundo

tempo, o Flamengo jogou com dez. O rubro-negro cresceu com a

desvantagem numérica, lançou-se todo para a frente. Eram dez

fanáticos dispostos a vencer ou perecer. O Flamengo teve ontem um

dos grandes momentos de sua história. Mas, dizia eu no começo que

a nossa humildade pára aqui. Passamos toda a jornada com um

passarinho em cada ombro e as duras e feias sandálias nos pés. Mas

o Fluminense é o campeão. Erguendo-me das cinzas da humildade,

anuncio: -- "Vamos tratar do bi".



[O Globo, 16/6/1969]

À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR




Se vocês querem conhecer um povo, examinem o seu

comportamento na vitória e na derrota. Há poucos dias, o Brasil

derrotou a Inglaterra no Estádio Mário Filho*. Conviria comparar os

dois comportamentos: o do Brasil vencedor e o da Inglaterra vencida.

Comecemos por nós. Quinta-feira, o Estádio Mário Filho estava

abarrotado. Com algum exagero, diria eu que havia gente pendurada

até no lustre. Por conta do jogo, a cidade suspendeu todos os

pecados. Ninguém matou, nem roubou, nem traiu. Que eu saiba, não

houve um único e escasso assalto. Todas as classes, profissões,

ideologias, raças e idades juntaram-se no ex-Maracanã.

Houve o jogo e vencemos. A Inglaterra é campeã do mundo e

perdeu. Bastaram dois minutos do verdadeiro futebol brasileiro. Em

120 segundos, liquidamos o inimigo. Vejam vocês: -- a Inglaterra

fazia a pose de melhor futebol do mundo. Os nossos jornais ou

afirmavam ou, na pior das hipóteses, imaginavam que o futebol

inglês era, sim, o melhor do mundo. Por um funesto lapso, o

brasileiro já não se lembrava de que somos os bicampeões.

No vídeo, não havia a menor coincidência entre o que o locutor

dizia e o que a imagem mostrava. Por exemplo: -- Tostão foi, durante

a partida, um estilista da cabeça aos sapatos. Seus passes saíam

límpidos, exatos, macios. Deu um banho de bola nos ingleses. E a

maioria dos espíqueres exigia, aos brados, a sua substituição. O

rádio e a TV não faziam outra coisa senão soluçar elogios aos

ingleses. Os visitantes tinham todos os méritos e os brasileiros todos


*Brasil 2 x 1 Inglaterra, 12/6/1969, no Estádio Mário Filho.

os defeitos.

E, então, comecei a perceber que profissionais, torcedores e

simples curiosos estavam ali por diferentes motivos. Uns queriam ver

a caveira de João Saldanha; outros, a caveira do Brasil; e ainda

outros, as duas caveiras: -- do Brasil e do Saldanha. Houve um

momento em que me virei para o Marcello Soares de Moura e

cochichei-lhe: -- "Se o Brasil perder, vão enforcar o Saldanha como

um ladrão de cavalos". O leitor há de perguntar: -- "O Brasil é tão

impopular no Brasil?". Realmente, o Brasil é muito impopular no

Brasil.

Dirão vocês que, nas arquibancadas e gerais, o povo quis

ajudar o escrete. O diabo é que o povo vaia sem querer, vaia

automaticamente. Sim, o povo morreria de tédio e frustração se não

pudesse vaiar qualquer coisa, inclusive o minuto de silêncio. E

portanto o povo, a um só tempo bom e crudelíssimo, ora vaiava, ora

aplaudia. Mas eu falo dos que, nas perpétuas, tribunas e cativas,

torciam, com o mais límpido, translúcido despudor, pelo inimigo.

Falei com vários e os sujeitos estrebuchavam de devoção: -- "Como

jogam! Como jogam!". Meu Deus, é um futebolzinho bem aplicado e

laborioso o dos ingleses, de uma disciplina tática feroz e uma base

física medonha. Só.

Terminou o primeiro tempo com o marcador de 1 x 0 a favor da

Inglaterra. O Brasil dera-se ao luxo de perder um pênalti. Na fila do

café, um sujeito me agarra e diz: "No segundo tempo a Inglaterra vai

melhorar e o Brasil vai abrir o bico". Entendi o raciocínio do fulano:

como há por aqui o Nordeste, o Amazonas, a mortalidade infantil,

teríamos mais dez minutos de fôlego, se tanto.

Mas aconteceu exatamente o inverso: a Inglaterra abriu o bico

e o Brasil melhorou. Sim, no segundo tempo a Inglaterra não

arriscou um mísero ataque. Agarrou-se a uma retranca ainda mais

radical que a do primeiro tempo para salvar o 1 x 0. Dois ou três

idiotas da objetividade começaram a achar que até a saúde de vaca

premiada era um mito insustentável. Os nossos bons adversários

não tinham pernas. E a maioria dos locutores, principalmente os

paulistas, continuava a exigir a retirada de Tostão. E, no momento

em que mais se exasperavam contra o maravilhoso jogador, Tostão é

derrubado, deita-se na grama e faz o gol!

Foi um assombro. Em pé, Tostão já é pequeno, pequeno e

cabeçudo como um anão de Velasquez. Imaginem agora deitado. Os

ingleses ficaram indignados e explico: -- um gol como o de Tostão

desafia toda uma complexa e astuta experiência imperial. Um minuto

depois, ou dois minutos depois, Tostão dá três ou quatro cortes

luminosíssimos e entrega a Jairzinho. Este põe lá dentro. Naquele

momento ruía toda a pose inglesa. Era a vitória e pergunto: -- como

reagimos diante da vitória? Claro que o homem da arquibancada

subiu pelas paredes como uma lagartixa profissional.

Mas pergunto: -- e os outros? E os outros? A imprensa, o que

fez a imprensa? E o rádio? E a TV? Deviam estar virando

cambalhotas elásticas, acrobáticas. A Inglaterra pode não ter futebol,

mas tem o título. É campeã do mundo. Portanto, vencemos o título.

Os grandes jornais não concederam ao feito brasileiro uma manchete

de primeira página. O mais dramático é que quase toda a imprensa,

rádio e TV trataram de amesquinhar, humilhar, aviltar a vitória. Em

São Paulo as Folhas acharam os ingleses "os melhores". No Rio, a

mesma coisa. No subdesenvolvido, a imparcialidade não é uma

posição crítica, mas uma sofisticação insuportável. Fingindo-se de

justa, quase toda a crônica falada e escrita falsificou o jogo, isto é,

descreveu um jogo que não houve.

Vejam agora o comportamento dos ingleses. Ninguém faz um

império sem um implacável cinismo. E os nossos adversários

portaram-se com um admirável descaro. Vocês viram o que houve no

Estádio Mário Filho. A Inglaterra foi um Bonsucesso. Dirão que estou

fazendo um exagero caricatural. Mas, se o Bonsucesso tivesse

assassinado a pauladas Maria Stuart, se jogasse à sombra de lord

Nelson, lady Hamilton e Dunquerque, e se morasse no palácio de

Buckingham -- o Bonsucesso faria mais que os ingleses. Batidos em

dois minutos, submetidos a um olé inédito e ignominioso, faltou aos

nossos adversários a nobilíssima humildade da autocrítica. O técnico

e os jogadores trataram a derrota como se vitória fosse; esvaziaram a

humilhação de todo o dramatismo. Os brasileiros não são de nada.

Tostão fez aquele gol espantoso. Deitado, enfiou a bola nas redes.

Diante de tamanho feito, os ingleses deviam admitir, de vista baixa:

-- "Aprendemos mais esta". Nada disso e pelo contrário: acharam

absurdo, indesculpável, que um jogador deitado fizesse um gol. Com

o cinismo de grande povo, o inglês inverte magicamente tudo em seu

favor. Ao passo que o brasileiro, subdesenvolvido, inverte tudo em

seu prejuízo.

Felizmente houve o olé. Foi talvez o momento mais alto do

futebol brasileiro. A parte da crônica mais subdesenvolvida condenou

o olé como antiesportivo e desrespeitoso. E outros pretendem que foi

um recurso tático e, portanto, nada ofensivo: apenas queríamos

ganhar tempo e nunca desfeitear o adversário. É inútil mentir.

Vamos retirar do olé os bons sentimentos, que não existiram. Houve,

sim, uma crueldade jucunda. Os ingleses, batidos e lisamente

batidos, tratam de aviltar o nosso triunfo. Dizem que Pelé foi feito

pela publicidade, como um refrigerante.

Eis o que eu queria observar: fez bem o escrete brasileiro em

tirar sua bela vingança. Os ingleses é que, sem pernas, fisicamente

gastos, teriam de fazer cera. Basta lembrar que, para coroamento do

olé, quase saiu o terceiro gol, lindo, lindo, do crioulo. Se Pelé tivesse

estourado as redes inglesas, havíamos de guardar seu gol numa

caixinha de veludo. Nunca se viu, em tempo nenhum, em idioma

nenhum, tão formidável explosão lírica e maligna. A seleção campeã

do mundo foi posta na roda. Durante três, ou quatro, ou cinco

minutos, o adversário correu em vão atrás da bola. E os craques

brasileiros trocavam passes irretocáveis. Ninguém descreverá jamais

a alegria popular. O berro colossal inundou a cidade: "Olé! Olé! Olé!".

Saldanha mandava parar. Não queria que o inimigo crescesse na

humilhação. Mas a loucura instalara-se no Estádio Mário Filho.

Eram 80, 100 mil pessoas ébrias de olé. E, súbito, depois da

crudelíssima exibição, Gérson estica uma bola comprida para Pelé. O

crioulão dispara e quase, quase entra com bola e tudo. Depois do

jogo, a multidão saiu em plena embriaguez. Muitos dias já se

passaram. E ainda sentimos a ressaca triunfal do olé.



[O Globo, 17/6/1969]

"JOÃO SEM MEDO"




Amigos, não acreditem, pelo amor de Deus, que as qualidades

influem no amor. Influem pouquíssimo ou nada. Nunca me esqueço

de um vizinho que tive na minha infância profunda. Era um santo da

cabeça aos sapatos ou, melhor dizendo, da cabeça às sandálias. Do

berço ao túmulo, não praticou uma má ação. Era todo amor, todo

bondade. E só me admira que não andasse com um passarinho em

cada ombro.

Pois bem: -- um dia, casou-se. Para usar uma velha imagem

minha, direi que entrou por um cano deslumbrante. Já os

conhecidos diziam-lhe: -- "Cuidado, que um dia tua mulher te dá

bola de cachorro". E, certa vez, na presença de visitas, ela o

destratou de alto a baixo: -- "Eu queria um marido, não um santo".

E ainda completou: -- "Tenho nojo de tua bondade". Em outra

ocasião, a víbora explodiu: -- "Arranja um defeito. Ou arranjas um

defeito ou me desquite". Não foi possível. A perfeição do infeliz

aumentava de quinze em quinze minutos.

Até que se separaram. E quando um inocente do Leblon

perguntou à víbora se ele a maltratava, ela urrou: -- "Aquela besta é

um santo!". Por aí se vê, a virtude exagerada, em vez de favorecer o

amor, pode liquidá-lo. Estou farto de ver sujeitos que são amados

pelos seus defeitos.

Por exemplo: -- o meu caro João Saldanha. Tenho-lhe um afeto

de irmão. Quebrei minhas lanças para que a CBD O escolhesse. João

Havelange e Antônio do Passo tiveram um momento de lucidez ou

mesmo de gênio, um momento digno de um Disraeli, e o chamaram.

Ao ter a notícia, berrei: -- "É o técnico ideal!". Um amigo meu, bem

pensante insuportável, veio me perguntar: -- "Você acha que o João

tem as qualidades necessárias?". Respondi: -- "Não sei se tem as

qualidades. Mas afirmo que tem os defeitos necessários". E,

realmente, o querido Saldanha possui defeitos luminosíssimos.

Por exemplo: -- é um furioso. Não acendam um fósforo perto

dele que o João explode. E aí está o primeiro e maravilhoso defeito:

-- uma Copa do Mundo é uma selva de gângsteres. Dirão que é

exagero. Exagero, uma ova. Perdão. Exagero, vírgula. Tudo é possível

na Jules Rimet, menos uma boa ação. Portanto, se o João é um

Tartarin ou, melhor dizendo, se cospe mais fogo do que o dragão de

são Jorge, melhor para o Brasil. O técnico não precisa apenas

entender de bola. Antes de mais nada, precisa ser um guerreiro.

Outro defeito: -- ele fará qualquer negócio para o Brasil ser

campeão do mundo e voltar com o caneco de ouro. Dirão vocês: --

"Mas é feio!". Ora, ora. Desde quando o bonito ganhou a Copa? De

mais a mais, só os subdesenvolvidos têm escrúpulos. O inglês é um

grande povo. Na guerra, salvou o mundo com a sua resistência. Mas

em 66 a Inglaterra foi de um descaro empolgante. Manipulou juizes,

baixou o pau, fez horrores e ganhou. Portanto, com as suas

qualidades o inglês salvou o mundo; com os seus defeitos, ganhou a

taça.

Mais outro defeito do João: -- doutrinou o escrete para não

levar desaforo para casa. Os lorpas, os pascácios, os bovinos hão de

perguntar: -- "E a esportividade?". Respondo que, na Copa, a

esportividade é uma piada de necrotério. Dirão que em 58 e 62 fomos

bonzinhos. Mas os demais concorrentes fizeram o diabo. E nós fomos

bonzinhos graças ao nosso bom subdesenvolvimento.

Mais um defeito do Saldanha: -- a dionisíaca e, ao mesmo

tempo, santa molecagem carioca. Foi para a Europa estudar os

adversários. Mas lá não perdeu tempo. Pôs a boca no mundo: -- "O

futebol europeu é uma carnificina!". Disse, ou por outra, berrou isso

em todos os idiomas. Hoje, até os esquimós sabem que, na Europa,

os jogadores bebem o sangue do adversário como se groselha fosse.

Ora, o que o Saldanha está fazendo, de país em país, é um

terrorismo bárbaro. Está coagindo os europeus, e todos os

concorrentes. Se há um foul modesto ele espalha aos quatro ventos:

-- "Assassinato! Assassinato!". Já os juizes de 70 estão acuados. Não

queiram saber o que o João não fará no próximo Mundial.

Ele fez a advertência mundial: -- "Meu jogador não dará o

primeiro tiro. Mas, se começarem, nós vamos acabar com a guerra".

E os europeus, uns latagões, com uma saúde de vaca premiada, já

tremem diante do João e já começam a sentir um prévio e

insuportável sentimento de culpa. Creiam que, com os defeitos de

"João Sem Medo", o Brasil ganhará a Copa.



[O Globo, 6/11/1969]

A BARRIGA INSUBMERSÍVEL




Amigos, vocês conhecem, decerto, o maior feito de Mao Tsé-

tung, nas suas últimas 25 encarnações. Nunca se viu nada parecido.

Mas vamos aos fatos. Um dia, o grande homem mandou ver a relação

de todos os recordes mundiais de natação, passados, presentes e

futuros. Viu os tempos e até achou: -- "Esses caras são umas barcas

da Cantareira".

E resolveu mostrar que, além do mais, é um gênio natatório.

Chamou a imprensa, o rádio e a televisão e caiu n'água. Primeiro,

subiu num trampolim. Queria começar com um salto ornamental.

Atirou-se lá de cima e caiu sentado como um aqualouco. Oitocentos

milhões deram urros de admiração. Ao contrário dos demais

recordistas da especialidade, em vez de mergulhar de cabeça, o que

seria uma trivialidade, o líder genial mergulhava sentado.

Logo se viu que tudo podia acontecer a Mao Tsé-tung, menos

morrer afogado. Graças a sua barriga insubmersível (e mais

insubmersível que o Titanic e o Bismarck), ele poderia, se o quisesse,

boiar eternamente. Toda a imprensa local e estrangeira estava de

cronômetro na mão. Logo se viu que seu tempo seria fantástico. Ele

não usou os estilos convencionais, como os outros nadadores.

Enquanto os estilistas dos outros povos usam nado livre, de costas

ou de peito, ele preferiu uma forma que só as crianças usam: --

cachorrinho. Fez dezesseis longos e dilatados quilômetros, nadando

cachorrinho. No fim, verificou-se que superara todas as velocidades

passadas, presentes e futuras.

Diante de um feito inédito na História e na Lenda, Mao Tsé-

tung transcendeu todos os limites humanos. Oitocentos milhões de

chineses prostraram-se diante do divino Chefe. Em seguida o

governo transformou aquele dia no maior feriado nacional do país.

Vocês entendem? O dia em que Mao Tsé-tung realizou tal prova

tornou-se uma espécie de 14 de Julho chinês. E como a China

comemora, anualmente, a proeza sobrenatural? Da seguinte

maneira: -- atirando-se n'água de sapatos, gravata e guarda-chuva.

E como muitos não sabem nadar, uns 100 mil chineses morrem,

anualmente, afogados. E morrem felizes, por se tratar de um suicídio

nacional.

Mas vejam vocês: -- um brasileiro realizou algo mais

impressionante do que o gorducho deus chinês. Refiro-me a Pelé, o

divino crioulo. Embora sem ter a barriga insubmersível de Mao, Pelé

está fazendo mil gols*. Esse milheiro é algo de irreal e deslumbrante

como As mil e uma noites. Às vezes, eu me pergunto, no meu

assombro: -- "Como é que um só sujeito pode fazer mil gols?". Como

diz a minha vizinha, gorda e patusca: -- "Mil gols não são dez, nem

quinze".

É claro que esse prodígio não podia passar em branca nuvem.

Por isso mesmo, a seção de esportes de O Globo teve a idéia

luminosíssima de celebrar os mil gols. Vai haver uma festa inédita na

história do nosso futebol. E, realmente, não há homenagem mais

merecida. Só imagino o envenenado despeito, a amarga frustração de

Mao Tsé-tung quando souber que um sujeito chamado Pelé, de um

certo país chamado Brasil, enfiou tantas bolas na caçapa. Não se

iludam: -- se o Chefe chinês tivesse tido a idéia, já teria completado

os mil gols, e muito antes de Pelé. Vamos imaginar a cena: -- o

grande homem concorrendo com Pelé. Mao, com a barriga maior que

a do Chacrinha, com os calções batendo nas canelas, chutando em

todas as direções.


*Faltando um gol para completar o milésimo de Pelé, a grande pergunta passou a ser:
onde e contra quem seria o "gol mil"?

Como se sabe, no Estado totalitário tudo é possível. E Mao Tsé-

tung, num só jogo, faria o milheiro, com um pé nas costas. Toda a

imprensa de lá, o rádio e a televisão aceitariam o deslavado milagre

como tal. Graças a Deus, nenhum puxa se lembrou de sugerir-lhe o

assombroso feito. Pelé ficará, para sempre, na História e na Lenda,

como único autor dos mil gols. Só imagino a comemoração de O

Globo. Todas as mulheres bonitas da cidade estarão presentes,

inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. Não sei que misteriosa

fascinação exerce o doce crioulão sobre as mulheres bonitas do

Brasil. Eu acho que, depois, Pelé devia fazer a volta olímpica, mas na

bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.



[O Globo, 13/11/1969]

O GOL MIL




Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois

esses 5 milhões deviam estar presentes, anteontem, no Estádio

Mário Filho para ver o milésimo gol de Pelé*. Dirão os idiotas da

objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil

pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora,

atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas.

O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que alguém,

vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol

brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas

casas e os mortos de suas tumbas. Viva a mulher bonita, que não

faltou. Só as feias não apareceram.

Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher

bonita. As mais lindas garotas estavam lá. Mas falei em festa do

futebol e, realmente, foi muito mais do que isso. Era uma festa

nacional, a festa do povo, a festa do homem.

Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-

fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não

sabendo quem é a bola. Mas o que a magnetizava era Pelé como

homem, mito e herói. Bem sabemos que futebol é um esforço

coletivo. São os times que ganham, perdem ou empatam. Mas no

caso de Pelé, foi um só. Só ele marcou os mil gols. Nunca se viu nada

parecido no mundo. É uma glória maravilhosamente individual,

maravilhosamente solitária. Some-se a isto os gols que ele deu na

bandeja, gols dos quais ele foi o co-autor, ou melhor, foi mais autor



*Santos 2 x 1 Vasco da Gama, 19/11/1969, no Estádio Mário Filho.

do que o autor. Um passe genial vale como um gol.

Muitos lamentam que tenha sido de pênalti. Meu Deus do céu,

e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa

adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. Não foi um

companheiro, mas ele próprio quem foi derrubado. Não queria

cobrar. Mas seus companheiros fizeram uma greve linda contra o

pênalti. Ninguém tocaria na bola. E, então, 100 mil pessoas, na

gigantesca cadência coral, começaram a exigir: -- "Pelé, Pelé, Pelé!".

Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de

cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: -- "Com esse eu me

casava!".

Mas vejam como o grande acontecimento tem a paisagem

própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num

galinheiro. Foi isso que eu disse, quando o Santos jogou no campo

do Esporte Clube Bahia. É óbvio que, depois do Estádio Mário Filho,

todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irremediáveis. O

Pacaembu, por exemplo, é um galinheiro. O campo do Botafogo, do

Fluminense, do Parque Antártica, e centenas, milhares de outros

campos obsoletos, são outros tantos galinheiros. É aqui e, repito, é

no Estado Mário Filho que Pelé teve os seus grandes dias e as suas

grandes noites. O próprio crioulo sabe que é muito mais amado aqui

do que em São Paulo.

Quando a bola foi colocada na marca do pênalti, criou-se um

suspense colossal no estádio. O meu colega e amigo Villas-Bôas

Corrêa, que não tem nada de passional, estava comovido da cabeça

aos sapatos. A louríssima, por mim citada, sentia-se cada vez mais

noiva de Pelé. O marido, ao lado, parecia concordar com o noivado e

dar-lhe sua aprovação entusiástica. Eu não sei como dizer. Mas

estávamos todos crispados de uma emoção, um certo tipo de emoção,

como não conhecíamos.

Ao que íamos assistir já era História e já era Lenda. Imaginem

alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou

sei lá. No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor que toda a

cidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se

plástica, elástica, vital, como a anca de cavalo. Mas havia alguém

contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável

goleiro argentino Andrada. Em qualquer hipótese, ele ia se tornar

uma figura histórica: -- defendendo ou não. E quando Pelé estourou

as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de

Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha. De

repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um

pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol.

Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil

pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta

olímpica. Pelé com a camisa do Vasco, Naquele momento éramos

todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros.



[O Globo, 21/11/1969]

GUERRA SUJA, TÃO SUJA




Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os

chacais do futebol brasileiro -- todo mundo acha que estou fazendo

uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais,

os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabeça de João

Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de

um dia para outro.

Sabem quando começaram a afiar a guilhotina para Saldanha?

No dia mesmo em que o escolheram para técnico da seleção. Não sei

se vocês se lembram. Se não se lembram, vamos lá. Uma manhã,

João Havelange e Antônio do Passo passaram na casa de João

Saldanha. Era um domingo parnasiano, com um luminosíssimo azul

de soneto. Feito o convite, o João deu a resposta fulminante: --

"Topo". Só dois dias depois e, portanto, na terça-feira, explodiu a

notícia.

E se juntaram todas as invejas, todas as frustrações, todos os

interesses contrariados. Uns disfarçavam menos, outros mais, o

ressentimento. O espantoso é que, pela primeira vez, cometia-se esta

gafe hedionda: -- a escolha de um técnico para uma função técnica.

Não fora um ato político, nem do Havelange, nem do Passo.

Dias depois, encontro-me com o Havelange no Cartum. Ou por

outra: -- o Cartum ainda não existia. Foi no Nino. Saudei-o assim: --

"Foi um lance de estadista". Diga-se de passagem que a maioria da

imprensa era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da TV.

Mas o povo estava com o João. Por onde passava, o homem das

esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffeur de

praça dizia-me, de olho rútilo: -- "Agora vai!". E repetia, com o lábio

trêmulo: -- "Agora vai!".

Mas o profissional da imprensa, do rádio, não lhe dizia "bom-

dia" sem lhe pingar veneno. Veneno da víbora que matou Cleópatra.

Assim em todo o Brasil. Há dois ou três dias, um jornal de Curitiba

abriu a manchete terrorista: -- "Preso João Saldanha". Outros

vinham me soprar, lúgubres: -- "Na primeira derrota, o João cai do

cavalo". Como se desejou essa "primeira derrota".

Alguém perguntará: -- "Por que essa gana de tantos contra um

só?". Vejamos. Primeiro, porque ele não tem medo. Nada nos

humilha mais do que a coragem alheia. Segundo, porque passou a

ser o homem mais promovido do Brasil. Ainda agora, vimos a força

do seu nome e de sua lenda. Seu incidente, em São Conrado,

coincidiu com o seqüestro do cônsul japonês. Mas o caso do João

abafou, esvaziou o do japonês. Os jornais falavam do João, e de uma

forma tão obsessiva, que parecia ele o seqüestrado, ele o raptado.

Terceiro, porque havia o terror de que voltasse, do México, com

o caneco de ouro, para sempre. Imaginem o João passeando na

avenida, e de maçã na boca, como um triunfal leitão assado. O que

se fez com Saldanha, nas eliminatórias, foi uma das páginas mais

negras do futebol brasileiro. Passaram para o povo jogos que só

existiam na imaginação dos bons colegas. O escrete estava uma

vergonha, ninguém jogava nada. Lembro-me de um locutor

vociferando: -- "Assim o Brasil não passa da estréia".

Aqui, atracado ao rádio, o povo ouvia só, em cava depressão.

Mas, quando veio o tape, foi um divertido escândalo. Os nossos

jogadores deslizavam na grama como cisnes. Ninguém precisava

correr. A seleção andava em campo para cansar o adversário. Contra

a Venezuela, a irradiação foi uma antologia de horrores. Terminou o

primeiro tempo empatado de 0 x 0.

O Brasil não fez gol na primeira fase porque, novamente, quis

exaurir o inimigo. Na etapa final, fizemos um. Um dos confrades

berrou: -- "Agora o João vai recuar Pelé para defender o escore". Meu

Deus do céu, a superioridade brasileira chegava a ser humorística.

Na sua má-fé cínica, a maioria dos confrades atribuía ao time de

Saldanha os defeitos mais horripilantes. Todavia, o video-tape, com

sua veracidade burra, serviu para desmascarar toda a fraude. Sem

recuar Pelé, ganhamos de cinco.

As hienas, os chacais, os abutres voltaram frustradíssimos.

Precisavam de uma derrota e não tinham a derrota. Mas

continuavam passando o amolador na guilhotina. Falei no jogo com a

Inglaterra. Ah, não falei do jogo com a Inglaterra. Pois bem: o escrete

do João, sem um treino, com os jogadores entregues na véspera, o

escrete, repito, venceu a Inglaterra. E não foi uma vitória como há

muitas, como há tantas. Vencemos com um ignominioso olé. Os

ingleses andaram na roda como os ursos bêbados de feira.

Portanto, só uma hiena, ou só um abutre, ou só um chacal

pode afirmar que o escrete não fez nada. Em plena fase experimental,

fez mais do que devia, mais do que podia. O olé em cima dos

campeões do mundo foi, segundo a própria imprensa inglesa, um

show maravilhoso. Mas, como não vinha a derrota inapelável,

começou o massacre. Claro que nem todos os cronistas usaram o

mesmo processo. Mas cada notícia sobre Saldanha era,

normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado

terrorismo contra o técnico. Isso, em toda a imprensa, em todo o

rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora,

minuto após minuto.

Perdi a conta das vezes em que João foi malhado como um

judas de sábado de Aleluia. E se o grande técnico dava uma bronca,

o nosso grã-finismo estrebuchava: -- "Não tem serenidade! Não tem

equilíbrio!". Claro que podíamos dizer isso, porque cada um de nós

estava fora da guerra, e abanando-se com a Revista do Rádio. Sim, é

fácil ter boas maneiras, é fácil ter equilíbrio, é fácil ter serenidade,

quando ninguém nos xinga, quando ninguém nos insulta, quando

ninguém nos massacra.

Digo "massacre" para repetir: -- nunca houve, no Brasil, um

massacre pessoal tão desumano. E o espantoso é que nós exigíamos

do "João Sem Medo" um comportamento de estátua de Abrahão

Lincoln. E como os seus brios se eriçaram mais do que as cerdas

bravas do javali -- encontraram, finalmente, o pretexto. Faltara a

derrota, que as hienas esperavam. Mas o Saldanha tinha brio.

Ótimo, ótimo. Por ser brioso, tinha que sair do escrete.

Houve um truque: -- a demissão coletiva da Comissão Técnica.

Mas o que se queria era a cabeça do João. E, para tanto, a guilhotina

vinha sendo afiada há meses. Ah, como é curioso o destino das

palavras. Imaginem vocês que, no domingo do segundo Brasil x

Argentina, conversei com João Havelange. Estávamos na tribuna de

honra do Estádio Mário Filho. O jogo ainda não começara. A dois

passos de nós, tomando um café forte, estava o presidente da

República. Havelange disse-me o que pareciam ser palavras eternas:

-- "O João vai até o fim. Não há hipótese de sua saída. E se, por

acaso, ele pedir demissão, eu o impedirei, fisicamente, de sair".

Já ensaiei uma explicação. Mas repito: -- "Por que, por quê?".

O Salim Simão explica-me que Saldanha tornara-se poderoso

demais. Ele, sozinho, com a sua figura folclórica, as suas broncas

lendárias, os seus brios flamejantes -- ele era maior do que a CBD, do

que as federações, do que as forças ostensivas ou obscuras que

manipulavam o nosso futebol. E as invejas, as vaidades, as

frustrações, os rancores -- não podiam admitir que ele fosse maior

do que uma estrutura laboriosamente criada e mantida. E ainda

seria muito maior e muito mais forte se voltasse com o caneco de

ouro. Teria então meios de transformar a nossa realidade esportiva.

Mas vejam: -- seu primeiro dever era a classificação; e ele o

cumpriu. O segundo dever era a conquista do título. Parentes,

figuras da imprensa, do rádio e da televisão se uniram para frustrá-

lo no seu maravilhoso esforço final. Exigiram que ele se deixasse

massacrar sem um gemido. Rolou a cabeça do "João Sem Medo". E,

agora, queremos mais do que nunca o caneco.

Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna

do nosso vômito.



[O Globo, 19/3/1970]

O BELO MILAGRE DAS VAIAS




O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouviram

bem, repito: -- o seu exílio era o Brasil. Os nossos jogadores são

tratados como se fossem estrangeiros. Ou pior. Porque os

estrangeiros merecem, não raro, uma polidez convencional, sim, um

mínimo de cerimônia. Vocês viram, não viram, Brasil x Inglaterra?

"Não somos os melhores", afirma um cronista machadiano. E,

não sendo os melhores, e sendo os ingleses sim, nós os derrotamos.

Como se não bastasse a vitória brasileira, ainda infligimos aos

campeões do mundo um ignominioso olé. Mas eis o que eu queria

dizer: -- no segundo tempo, um dos visitantes fez uma coisa que, em

futebol, é a vergonha inapelável e eterna: -- atrasou do meio de

campo. Ao meu lado, na tribuna de imprensa, o botafoguense

Serginho explodia em arroubos: -- "Como eles atrasam bem! Com

que tranqüilidade!".

Por aí se vê que admiramos mais os defeitos ingleses do que as

virtudes brasileiras. Conversei com um dos jogadores do escrete e ele

abriu-me a alma, de par em par. Contou-me que, jogando sob uma

cúpula de vaias, não era um brasileiro a jogar para brasileiros. Não e

nunca. Tinha a sensação de que era um brasileiro a jogar para

javanês, tirolês, congolês, tibetano, caucasiano e birmanês.

De brasileiros, a maioria dos assistentes só tinha -- o palavrão.

Era, sim, o palavrão, rugido no idioma de Camões, era o palavrão,

repito, que localizava o Morumbi no Brasil, E disse mais o pobre

craque. Como se não bastassem as vaias de boca, sofria também as

vaias impressas. Os jornais, em sua maioria, não tinham uma

palavra solidária, amiga, fraterna. O escrete era negado de alto a

baixo, isto é, a partir da manchete.

O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos

edifícios, pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania-

perseguição. Passou pelo morro da Viúva, achou que o Pão de Açúcar

tinha-lhe horror; que o Corcovado, idem. De outra vez, sentiu-se

malquerido até pelo poente do Leblon. Disse-me várias vezes,

obsessivamente, o jogador: -- "Precisamos sair daqui! Precisamos ir

embora!".

Ouvi em silêncio o craque patrício e, sem nada dizer, dei-lhe

toda a razão. Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuidade: -- "O

brasileiro não gosta do brasileiro?". Exatamente: -- o brasileiro não

gosta do brasileiro. Ou por outra: -- o subdesenvolvido não gosta do

subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque.

Ainda agora, no Morumbi, jogamos com a Bulgária*. Embora entre os

búlgaros existissem carecas, pais de família, que fez a nossa crônica?

Na hipótese de uma vitória nacional, passaram a dizer que os

adversários eram infanto-juvenis do seu país. E se, porventura,

ganhássemos de 17 x 0, diriam as manchetes: -- "Brasil ganha do

berçário búlgaro!".

Não sei se vocês se lembram de uma passagem que contei, aqui

mesmo, nesta coluna. Era o caso de um patrício meu que assim se

apresentava nas esquinas, botecos e retretas: -- "Chegou o

quadrúpede!". Fazia uma volta no local e dava outro berro: -- "Sou

um quadrúpede de 28 patas!". Era esse o seu triunfal cartão de

visitas. Ligava para a namorada e começava assim: -- "É o

quadrúpede!".

Lembrei-me desse conhecido, que assim se aviltava, ao ouvir

uma mesa-redonda numa das nossas emissoras. O assunto era o

escrete. Ora, o escrete é feito à nossa imagem. E os cronistas


*Brasil 0 x 0 Bulgária, 26/4/1970, no Morumbi. Brasil 1 x 0 Áustria, 29/4/1970, no
Estádio Mário Filho. Últimos amistosos antes do embarque para a Copa do México.

reunidos não fizeram outra coisa senão cuspir, como Narciso às

avessas, na própria imagem. Negaram a seleção, negaram o jogador,

negaram o técnico, negaram o preparador, negaram o médico,

negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: -- "E, agora, com

licença, porque vamos urrar no bosque mais próximo!".

Os brasileiros empataram com os carecas da Bulgária por um

escore que humilha os dois lados: -- 0 x 0. Mas o resultado em nada

influiu. A vaia começou antes do jogo, continuou durante o jogo e

depois do jogo. Mas se me perguntarem quem empatou com os

húngaros, eu diria: -- a antitorcida. Uma multidão que só vaia não

pode chamar-se a si mesma de torcida nem tem o direito de exigir

vitória.

O que fizeram com Paulo César é indesculpável. Ele não era

nem culpado de estar ali e, repito, estava ali porque o escalaram.

Setenta, ou oitenta, ou noventa mil sujeitos contra um só. Não se

conhece outro brasileiro tão humilhado. A vaia é um prazo. Dura um

minuto, dois, três. Vaia é esforço e não temos, como os ingleses, a

saúde e a resistência de uma vaca premiada. Pois bem. A vaia que

trucidou Paulo César durou noventa minutos.

Digo noventa minutos e já retifico: -- mais. Mais, porque

começou antes do jogo. A aluna de psicologia da PUC, que entende

nossos sentimentos, dizia-me: -- "Só o ódio sustenta uma vaia de

noventa minutos". Aí está: -- só o ódio. E seria lícito dizer-se que

Paulo César foi linchado, fisicamente linchado, por uma vaia.

Há outra observação que eu desejaria fazer. A vaia contra um

atinge e ofende os demais, inclusive os adversários. Claro, pois a vaia

não tem nome e endereço como os envelopes. Os destinatários eram

os 22 jogadores e mais os reservas, de ambos os lados. Mas volto à

mesa-redonda da TV. Houve pouquíssimas exceções; e uma delas, e a

mais veemente, a mais otimista, foi o "Marinheiro Sueco". Vibrante

de justiça e de procela, tratou de defender o maravilhoso craque do

Brasil.

Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é

que o time nacional leva um maravilhoso trunfo. No México, ele se

sentirá muito menos estrangeiro do que aqui. E estará protegido pela

distância. Acreditem que a distância será a nossa ressurreição. Se

me perguntarem o que deverá fazer a seleção para ganhar a Copa,

direi, singelamente: -- "Não nos ler". Sei que as nossas crônicas vão

aparecer, por lá, como abutres impressos. Não importa. O que

interessa é fugir da feia e cava depressão que dos nossos textos

emana.

Quando o jato subir, o escrete assumirá a sua verdadeira

dimensão. Cada cronista há de ter uma palavra final para o time

nacional. Já vimos que um dos colegas escreveu, a título de juízo

final: -- "Não somos os melhores". Esse tom de catástrofe é de quase

toda a imprensa brasileira. Mas não é, repito, o meu tom. Dirão

vocês que adoto, diante da Jules Rimet, uma posição romântica.

Nego. Justamente porque sou realista é que sinto, inevitável, fatal, a

vitória brasileira.

Os pessimistas são os alienados. Por exemplo: -- o ilustre

cronista diz que data de 66 o ocaso do nosso futebol. Quem fala

assim é, obviamente, um ressentido contra os fatos. Ele não os aceita

e parece dizer: -- "Se os fatos não confirmam o que escrevo, pior

para os fatos". Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de

objetividade, de apreço aos fatos, sabe que o futebol brasileiro é o

melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio

ululante.

Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o

caneco, porque somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de

melhores, levamos para o México as vaias ainda não cicatrizadas. De

vez em quando, eu relembro o que acontecia com o "Tigre da

Abolição". Nos comícios, José do Patrocínio começava gelado de

pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio da multidão, o

chamassem de "negro", "negro", "negro" e "negro". E a humilhação

racial o potencializava. Dizia então coisas como aquela: -- "Sou

negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha

pátria!".

Com o escrete, já começa o belo milagre das vaias. Foi milagre

o segundo tempo de Brasil x Áustria. Aquela bola que Pelé passou de

calcanhar ou o gol de Rivelino, cada jogada era um momento de

eternidade do futebol. Vou ao aeroporto dizer aos nossos jogadores:

-- "Vocês já são campeões do mundo".



[O Globo, 1/5/1970]

MOMENTOS DE ETERNIDADE




Amigos, nenhum outro escrete no mundo podia oferecer o

futebol que os nossos jogadores ofereceram ontem. Não esqueçam

que, aqui, vários cronistas fizeram verdadeiro terrorismo com o

quadro da Tcheco-Eslováquia*. O nosso adversário era fabulosíssimo,

ao passo que o nosso pobre jogo era antigo, obsoleto, como a

primeira sombrinha de Sarah Bernhardt. Promoveram os tchecos

como se fossem os fantasmas da Copa.

E que vimos nós? Um desenho, uma pintura, um tapete

bordado. Ganhamos de 4 x 1, e sem sorte nenhuma. Terminamos o

primeiro tempo empatados por 1 x 1. E o justo, o certo, o correto é

que tivéssemos chegado ao fim dos 45 minutos iniciais com dois gols

de vantagem e, portanto, 3 x 1. Mas no segundo tempo veio a

tremenda explosão. Amigos, vocês viram a TV, ouviram o rádio: -- o

Brasil deu um banho de bola num dos mais formidáveis

concorrentes da Copa. Não há nada melhor no futebol europeu do

que o time que, ontem, dobrou os joelhos diante do gênio dos nossos

craques.

Vejam como são as coisas. Os nossos jornais de ontem, em sua

maioria, não demonstraram o menor otimismo; limitaram-se a

vender depressão aos seus leitores. Apresentaram as fotografias de

58 ou de 62? Não. Estavam muito mais interessados em relembrar,

pela imagem, 54 e 50. Vários estamparam a nossa entrada em

campo contra a Hungria, na Suíça. Tomados de horror, vimos o time

nacional de cabeça baixa, o time nacional batido antes da luta.


*Brasil 4 x 1 Tcheco-Eslováquia, 3/6/1970, em Guadalajara. Primeiro jogo das
oitavas-de-final.

E a resposta foi a maravilhosa exibição do escrete. A exibição

brasileira foi trinta vezes melhor do que a finalíssima entre a

Inglaterra e a Alemanha, em 66. Naquela ocasião, os 22 homens,

segundo o figurino da pelada mais humorística, faziam o jogo de bola

pra frente e fé em Deus. E, ontem, que fazíamos nós? Que fez esse

escrete que saiu daqui vaiado e repito: -- esse escrete que se fez de

vaias? Um jogo prodigiosamente articulado, sim, harmonioso,

plástico, belo. Era uma música, meu Deus.

E, por isso, entendo que a cidade se levantasse em gigantesca

apoteose. Aquele corso dos velhos carnavais voltou. As buzinas

estavam de uma formidável histeria. Um turista que por aqui

passasse e visse 5 milhões de sujeitos urrando havia de anotar no

seu caderninho: -- "Esta cidade enlouqueceu!". E, realmente,

ficamos loucos. As pessoas se olhavam na rua e diziam umas para as

outras: -- "Somos brasileiros!". Ruiu, por terra, a sinistra impostura

do futebol europeu. Sempre disse que seus jogadores têm uma saúde

de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos

vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.

Choviam papel picado das sacadas, e listas telefônicas.

Serpentinas, confete, lança-perfume. Ou por outra: -- lança-

perfume, não. Mas confete e serpentina, sim. Todos os automóveis

incendiados de bandeiras. Mas o que eu achei mais bonito vocês não

sabem. Eis o que aconteceu: -- já que não lhe faziam a justiça, o

escrete fez justiça a si mesmo.

No México, fizemos jogadas que foram, para o futebol mundial,

momentos de eternidade. E Gérson? Quanta gente o negou? Quanta

gente disse e repetiu: -- "Não tem sangue! Não tem coragem! Não tem

sangue, não tem coragem!". O vampiro de Dusseldorf, que era

especialista em sangue, se provasse o sangue de Gérson, havia de

piscar o olho: -- "Sangue do puro, do legítimo, do escocês". E não foi

só a coragem indomável. Impôs-se como a maior figura da jornada.

Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Em momento nenhum

deixou de ser um virtuose, um estilista. E a bomba santa de Rivelino

que abriu o caminho da vitória? Quando os tchecos fizeram a falta,

90 milhões de brasileiros rezaram: -- "Rivelino, Rivelino, Rivelino!". E

ele cobrou o foul de uma maneira genialíssima. Com a violência do

tiro, a bola deixou de ser redonda, assumiu a forma do ovo e o

goleiro adversário foi dramaticamente batido.

E o gol de Pelé? Gérson enfiou aquela espantosa bola com-

prida. O sublime crioulo a matou no peito e fez uma obra-prima de

gol. Quanto ao gol de Jairzinho, abalou o campeonato do mundo.

Driblou um, mais outro, outro mais, ainda outro e enfiou no canto. E

a alma da rua voou pelos ares. Eu vi a grã-fina das narinas de

cadáver cair de joelhos, no meio da rua, e estrebuchar como uma

víbora agonizante.



[O Globo, 4/6/1970]

O GRANDE SOL DO ESCRETE




Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de

mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a

glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos.

Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado. Eu próprio,

certa vez, desprezei um homem, tive por esse homem a maior náusea

ética. Não podia vê-lo sem que minha úlcera desse pulinhos de rã.

Sem fazer segredo do meu horror, chamei-o, de público, de cadáver

moral.

Eu teria, na ocasião, dezessete anos. E o adolescente vive de

falsos horrores. Tempos depois, verifiquei que estava errado, errado

de alto a baixo. O homem que eu supunha infame era, na verdade,

uma dessas nobilíssimas figuras exemplares, um falso defunto

moral. Quase um santo.

Eis o que eu queria dizer: -- dedico esta crônica aos equívocos

que, em certos casos, inauguram a estátua e, em outros,

desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino crioulo.

Muitíssimas vezes, Pelé foi estátua e, muitíssimas vezes, foi

vaia. Eu me lembro de um jogo do escrete em que jogou mal ou,

como diz a gíria, jogou pedrinhas. E, no fim de certo tempo, explodia

a ira da multidão. No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro

da vaia. Não sei se todos se lembram de um fato muito curioso. Num

jogo Brasil x Inglaterra, aqui, no ex-Maracanã, ao ser anunciado o

nome de Julinho, todo o estádio vaiou. Mas começa o jogo. Julinho

fez uma série de jogadas perfeitas, irretocáveis. Em dez minutos, o

que era humilhação passou a ser apoteose. E assim Julinho teve a

fulminante reabilitação.

Volto a Pelé. Repito que, naquela tarde, ele foi pouquíssimo

Pelé. E, então, começou a fúria popular. A ninguém ocorria que o

supercraque não precisa jogar bem. O perna-de-pau é que tem de se

matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas

nostalgias da burrice. Em outro plano, Sartre, o grande Sartre,

andou por aqui e disse coisas de que se envergonharia Luvizaro.

Podia dizê-las, porque era Sartre. Por exemplo, afirmou o grande

homem: -- "O marxismo é inultrapassável". O já citado Luvizaro não

diria isso. Ele sabe que, daqui a quinze minutos, o marxismo pode

estar ultrapassado por coisa muito melhor. Mas o que sabe Luvizaro

Sartre pode ignorar, porque é Sartre.

E, em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo,

porque é Pelé. Se abrir a Revista do Rádio no meio do campo, estará

usando um dos privilégios do gênio. Mas a multidão não perdoa, em

Pelé, um passe errado. Se vinha o adversário e frustrava o seu drible,

Pelé era quase apedrejado como uma adúltera bíblica. Éramos, ao

todo, umas 150 mil pessoas. E dizíamos, uns aos outros, que Pelé já

não era o mesmo. Houve um, mais afoito, que declarou: -- "Pelé está

morto".

Ninguém protestou. Ou por outra, houve, sim, um protesto.

Estava lá o Manoel Duque, que reagiu e gritou: -- "Pelé continua

sendo o maior jogador do mundo". E, como um outro resmungasse, o

Duque repetia: -- "O maior jogador do mundo, em todos os tempos".

Mas, como ia dizendo: -- vaiaram Pelé os noventa minutos. Posso

dizer que influiu na vaia, além do mais, um certo cansaço, um certo

tédio do mito. A multidão precisa destruir os mitos que promove.

A partir de então, não só o homem de arquibancada, também

os entendidos, também os técnicos, também os cronistas --

começaram a meter a picareta na estátua de Pelé. Tem sido uma

alegre demolição. O crioulo passou a ser o responsável por todos os

males que afligiam a seleção. Fui a um sarau de grã-finos e lá ouvi

alguém jurar: -- "Pelé morreu para o futebol".

Chegou a correr a notícia de que seria barrado do escrete e do

Santos. Ou por outra: -- do Santos não, porque seu nome ainda é

bilheteria. Cheguei a imaginar que, humilhado, ofendido, ele próprio

saísse da seleção. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: -- "Nada

como um dia depois do outro".

Já nas eliminatórias, Pelé teve momentos de Pelé. Mas

insistíamos, obsessivamente: -- "Não é o mesmo! Não é o mesmo!".

E, para todo mundo, menos o Manoel Duque, já deixara de ser o

maior jogador do mundo. Duque vivia repetindo: -- "Mesmo jogando

a metade do que sabe, ainda é o maior". Até que chegou a primeira

partida do Brasil, na Copa, contra os tchecos. Ora, segundo todos os

críticos de futebol, a Tcheco-Eslováquia era um dos mais formidáveis

concorrentes ao título mundial. Enquanto o Brasil se preparava em

quinze dias, ela se cuidou durante quatro anos. Era assim uma

potência da Jules Rimet.

Desde os primeiros momentos sentiu-se que o Rei era um falso

defunto do futebol ou, mais do que isso, um salubérrimo defunto, a

explodir de saúde. Aliás, recuando um pouco, eu poderia falar do

jogo recente, aqui, no Mário Filho, contra a Áustria, onde Pelé foi

maravilhosamente Pelé. Mas o que importa, de momento, é a nossa

estréia de quarta-feira. Foi, em primeiro lugar, um homem isento de

idade, isento de tempo, com uma . vitalidade de dezessete anos.

Defendeu e atacou, estava em todas as posições ao mesmo tempo.

Inventou jogadas que nenhum outro jogador faria, em qualquer

tempo.

Foi no primeiro tempo? Não: -- no segundo. Exatamente, no

segundo tempo: l x l ainda no marcador. Recomeça a partida e Pelé

estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a

visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de

posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém.

De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não

sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade,

descreveu-nos o lance.

A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva

implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que

Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa distância? E o

goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve

qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em

quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Parecia uma cena dos Três

Patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as

Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os

brasileiros parados, os mexicanos parados -- viram a bola tirar o

maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se

consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de

eternidade do futebol.

Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso?

Simplesmente, ali o Rei se vingava das nossas vaias. E não só ele: --

também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as hienas da crônica

ainda uivam contra a defesa. "Há falhas, há falhas", rosnam as

hienas (nas minhas crônicas as hienas rosnam). Lendo certos

colegas, eu penso num velho episódio. Estava eu em Teresópolis,

num edifício de apartamentos. Desci com a cachorrinha. Fazia uma

diáfana manhã parnasiana, de um azul de soneto. No jardim, eu

tremia, E, de repente, lá da janela, um vizinho pôs-se a esbravejar.

Sabem por quê? Porque a cadelinha acabara de sujar o gramado. E,

então, o sujeito achou que a porcaria mínima era mais importante,

mais transcendente do que o céu, a floresta, a luz, as fontes, os

pássaros. Assim fazem os cronistas que esquecem uma exibição

deslumbrante para catar falhinhas que têm, cada uma, o tamanho

de uma pulga.

Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é

grande. Mas nós somos maiores, porque somos Brasil, imensamente

Brasil, eternamente Brasil.

[O Globo, 6/6/1970]

O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE




Não sei se repararam que os maridos não matam mais. Ou por

outra: -- só matam na primeira página de O Dia e da Luta

Democrática. E, hoje, é cada vez mais raro o homicida por amor ou o

suicida por amor. Mas o crime passional já teve a sua voga. (Aí está:

-- voga. Boa palavra. Tem som. Pretendo usá-la mais vezes.) Quando

eu era garoto, na altura aí de 1920. (Já chego ao futebol. Vocês não

perdem por esperar.) Mas em 1920 as pessoas tinham honra. E,

então, lavava-se a honra a tiros, lavava-se a honra a bengaladas.

Em 1920 ou 19. Agora me lembro: -- houve um crime muito

falado, que saiu até em jornal de modinha. Como sempre digo, todo

casal exige uma vítima, assim como exige um algoz. Para o bom

equilíbrio da casa, é preciso que a vítima aceite o seu papel e que o

algoz como tal se comporte. Era assim na casa do famoso senador

Fulano de Tal. Era uma cabeça e sua retórica tinha um nível de Rui

Barbosa, de Pedro Moacir e outros. Mas onde acabava o grande

tribuno começava o marido crudelíssimo.

Batia até na mulher. E, uma noite, houve uma cena

desagradabilíssima. O senador recebia outros senadores, com suas

senhoras. E houve um momento em que a pobre esposa disse uma

coisa qualquer, uma dessas trivialidades que não comprometem

ninguém. Foi uma frase assim: -- "Eu prefiro a homeopatia". E,

então, diante das visitas, o tribuno vira-se para a mulher: -- "Você

não sabe o que diz. Você é burra. E cala a boca!". A santa mulher

pergunta: -- "Mas eu não tenho direito de falar?". E o marido: --

"Não fala, não diz mais nada!". A outra exclamou: -- "Fulano!". Deu-

lhe o berro final: -- "Não diz mais nada ou apanha na boca!". Os

convidados já se queriam enfiar debaixo da mesa.

Aquela vítima era bonita, um pouco fanada, mas bonita. Ao

mesmo tempo, sabia que beleza é um prazo. Dizia às amigas: --

"Estou ficando velha, estou ficando velha", Até que, um dia,

apareceu-lhe um antigo namorado. Aproveitando um minuto, o ex-

namorado disse-lhe, de passagem: -- "Eu sou o mesmo". A mulher

quase desfaleceu. Sentiu-se atravessada de luz, sei lá. Mas passou.

Até que, uma manhã, por causa de um botão que faltava na camisa,

o senador disse, quase doce: -- "Vai buscar a vara de marmelo".

Recuou, lívida: -- "Não me bata, não me bata". Ele insiste, ainda

mais suave: -- "Eu disse: -- vai buscar a vara de marmelo". A mesma

cena, por outros motivos e até sem motivo, já acontecera não sei

quantas vezes. Aquela mulher, trancando os lábios, foi buscar a vara

de marmelo. Chorava. Ele apanha a vara e diz: -- "Não chora. Engole

o choro". E, de fato, apanhou sem chorar, apanhou e engoliu o

choro.

Não sei se no mesmo dia, ou no dia seguinte, ela apareceu no

escritório do antigo namorado. Começa, ofegante: -- "Você ainda me

quer?". Ele, fora de si, disse tudo: -- "Não te esqueci um minuto. Hei

de te amar sempre, sempre". E começou a chorar, o pobre-diabo. Ela

estava impassível: -- "Fulano me deu uma surra, hoje. Eu tenho

duas horas. Duas horas livres. Vem comigo". Não foram duas, foram

quatro ou cinco. Quando chegou em casa, estava o marido. Ele disse,

com um ódio sem exaltação: -- "Você foi vista, no Alto da Boa Vista,

com um homem". Pausa. Repete: -- "Pode me explicar o que estava

fazendo com um homem no Alto da Boa Vista?". Nesse momento, ela

teve um leve sorriso, de ironia quase compassiva:

-- "Só podia estar traindo você".

Desta vez não foi vara de marmelo, mas bengala. Bateu

durante uma meia hora talvez. Agora queria que a mulher chorasse,

que a mulher gritasse. Berrava: -- "Grita! Chora!". Mas não chorou,

nem gritou. E, quando ela caiu, ele ficou, por um momento, vendo

aquela mulher destruída. Agonizava. O senador acabou de matá-la a

pontapés.

Muitos anos depois, ou, para ser mais exato, em 1957, na

véspera do seu casamento, um rapaz contou à noiva a mesma

história. Ele era Otacílio e ela, Odete (nome, como se sabe, em vias

de extinção). A pequena, de uma família de nervosos, balbuciou: --

"E era teu tio?". Esse parentesco inesperado, à última hora, parecia

insinuar não sei que vaticínio. Há um silêncio. Antes de se despedir,

Otacílio disse mais: -- "Vamos casar amanhã. Anda por aí uma

pouca-vergonha como nunca vi. Mas olha: -- quero te avisar.

Comigo, não. Você é tudo para mim, sou maluco por você. Mas se me

traíres, algum dia, eu vou fazer contigo o que meu tio fez com a

mulher". Ela começa a chorar: -- "Está me ameaçando?". Quis ir

embora, mas ele a segurou: -- "Não estou ameaçando, porque você

não vai me trair. Ou vai? Se não me traíres, eu serei, disparado, o

melhor marido do mundo". Odete ainda tremia: -- "Você me dá

medo!".

Um ano antes, uma senhora tirara cartas para Otacílio. E,

entre outras, avisou: -- "Você vai ser traído. Por uma mulher.

Loura". Aquilo não saiu da cabeça do rapaz. E, por coincidência,

Odete era exatamente loura. Antes de pedir a garota em casamento,

uma outra leu sua mão e disse-lhe exatamente o contrário: -- "Não

vai ser traído por loura nenhuma. Pode se casar".

Casaram-se e, no fim de sete meses, Otacílio estava convencido

de que a segunda cigana estava certa e de que a primeira era

vigarista. Para os amigos, vivia-se gabando: -- "Lua-de-mel não

acaba". E, realmente, pareciam feitos um para o outro. Ele brincava:

-- "Não te disse que era só não me trair? Sou ou não sou o melhor

marido do mundo?". Ela respondia, num beijo: -- "Igual a você pode

haver. Melhor, duvido". Ele ria:

-- "Aproveita, aproveita".

Até que chegou 58, com o campeonato do mundo. A princípio,

Otacílio era meio pessimista. Mas ganhamos o primeiro jogo, Brasil x

Áustria, por 3 x 0. Odete pulava dentro de casa: -- "Não te disse?

Não te disse? Vamos ser campeões do mundo, meu filho!". Exausto,

emocionalmente: -- "Ainda é cedo, ainda é cedo". Empate com a

Inglaterra. Vitória deslumbrante sobre a Rússia. Desta vez Otacílio

agarrou a mulher no colo: -- "E Garrincha? Você viu Garrincha?".

Arquejava: -- "Agora, sim. Agora estou fazendo fé. Passamos pelo

susto do País de Gales. Mas que banho na França". Otacílio abria os

braços: -- "Eu não mereço tanto!". Agora, era a Suécia: -- "Será que

vai ser como 50? Será que vamos perder a última?". Odete trançava

os dedos: -- "A maior barbada!".

E, de repente, tudo mudou. Na véspera de Brasil x Suécia,

apareceu um tio velhíssimo, delegado de polícia e irmão do senador

homicida. O sobrinho o recebeu com a pergunta: "Ganhamos

amanhã?". O velho de cara amarrada queria saber onde podiam

conversar em particular. Trancaram-se no quarto dos fundos: --

"Meu sobrinho, não sou de rodeios. Tua mulher te trai. Eu disse que

tua mulher te trai". Otacílio pergunta, quase sem voz: -- "O que é

que o senhor está dizendo?". O outro continuou, implacável. Não era

um boato, um talvez, um quem sabe, um pode ser: -- "Fatos, fatos".

Tinha, por escrito, endereço, nome do outro, horário, os dias de

encontro. "Demos uma batida e estavam lá os dois. Ele é um tal de

Bulau, que vem aqui. Não vem aqui um Bulau torcer com vocês? E

não é teu amigo?''. Otacílio não dizia nada. O tio levanta e deixa um

revólver em cima da mesa: -- "Essa arma era do teu tio, o senador.

Funciona. Mata a tua mulher. E foge, livra o flagrante. Ou matas ou

te cuspo na cara". Saiu, sem se despedir. A dor que atravessava

Otacílio era a de ter sabido antes e não depois da finalíssima.

Apanhou o revólver. Aquilo deu-lhe uma náusea. E o amigo,

que não saía de lá. Pôs o revólver na gaveta. Na hora do jantar,

tomando sopa, decidiu: -- mataria no dia seguinte, depois do jogo ou

durante. Se a coisa estivesse para a Suécia, mataria durante o jogo.

Passou a noite em claro, mas curioso: -- pensava mais no título do

que no adultério.

Chega o dia seguinte. Foguetes antes da partida. Odete furiosa,

achando que o "já ganhou" dava azar. Ele não consegue pensar na

sua vergonha de marido. "Penso depois do jogo." Começou, começou.

Suécia 1 x 0. Vira-se branco para a mulher. O sentimento da derrota

deu-lhe vontade de matá-la, naquele momento. Vamos esperar mais

um pouco. O senador estava certo. E, de repente, Vavá empata.

Quando deu conta de si, estava aos beijos e abraços com a mulher.

Gemeu: -- "Vamos esperar, vamos esperar". Terceiro gol, quarto. A

cidade explodia. Lançou-se nos braços da mulher. E, súbito, puxou a

mulher pelo braço. Moravam numa dessas casas antigas do bulevar

e com essa coisa lírica, antiga, paisagística que é um galinheiro. No

quintal, tira o revólver: -- "Olha o que eu vou fazer". Abre a porta do

galinheiro e atira nas galinhas e mata, uma por uma. Atira o revólver

pelo muro da vizinha. Depois agarra a mulher e soluça: -- "Eu te

amo, eu te amo, eu te amo!".



[O Globo, 8/6/1970]

O ENTENDIDO, SALVO PELO RIDÍCULO




Por que o Brasil não gosta do Brasil e por que nos falta um

mínimo de auto-estima? É a pergunta que me faço, sem lhe achar a

resposta. Dirão vocês que exagero e que não é tanto assim, que

diabo. Responderei que é tanto assim ou pior. Vocês se lembram da

Passeata dos 100 Mil, a famosíssima Passeata dos 100 Mil?

Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu a cito

muito. Posso dizer que é uma das minhas referências mais

obsessivas. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o

seu fracasso encontrará nos 100 Mil um dado essencial. Não havia,

ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem

torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem

cabeça-de-bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da

grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites.

E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não

falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o

assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em Rússia, ou em

Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma palavra, nem por acaso,

nem por distração, sobre o Brasil. Picharam o nosso Municipal com

um nome único: -- Cuba. Do Brasil, nada? Nada.

As elites passavam gritando: -- "Vietnã, Vietnã, Vietnã!". E,

quanto ao Brasil, os 100 Mil faziam um silêncio ensurdecedor. Tanto

vociferaram o nome de Vietnã, de Cuba e China, que minha vontade

foi replicar-lhes: -- "Rua do Ouvidor, rua do Ouvidor, rua do

Ouvidor!". Simplesmente, o Brasil não existe para as nossas elites.

Foi essa a única verdade que trouxe, em seu ventre, a Passeata dos

100 Mil.

Estou apresentando um exemplo e poderia citar muitos outros.

Vamos ficar por aqui. Há um momento, todavia, em que todos se

lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o

Brasil. Aí está o milagre do escrete. Fora as esquerdas, que acham o

futebol o ópio do povo, fora as esquerdas, dizia eu, todos os outros

brasileiros se juntam em torno da seleção. É, então, um pretexto,

uma razão de auto-estima. E cada vitória compensa o povo de velhas

frustrações, jamais cicatrizadas.

Não sei se contei o caso de certo amigo meu. É o que se chama

um boa-vida. Sua mesa tem vinhos raros e translúcidos. Um dia,

ocorreu-lhe um capricho voluptuoso e tomou um banho de leite de

cabra. Perguntei-lhe: -- "Que tal?". Respondeu: -- "Assim, assim".

Duas vezes por ano, dá uma volta pela Europa. Pois bem. É esse

amigo que me confessa: -- "Só me sinto brasileiro quando o escrete

ganha". Fora disso, passa anos sem se lembrar do Pão de Açúcar ou

sem pensar na Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista

argentino.

Domingo ele bateu o telefone para mim. No seu desvario,

berrava: -- "Ganhamos da Inglaterra!"*. Chorava: -- "Como é bom ser

brasileiro!". E, durante toda a Copa, será um brasileiro de esporas e

penacho. Também a grã-fina das narinas de cadáver me ligou.

Soluçava: -- "Brasil! Brasil! Brasil!". Mais tarde, eu a vi, patética,

enrolada na bandeira brasileira. Parecia uma Joana d'Arc da seleção.

O meu assunto de hoje é, justamente, o escrete que está

maravilhando o mundo. Tem sua história, tem a sua lenda. Antes de

mais nada, não pensem que se improvisa um escrete da noite para o

dia. Não. É todo um secreto, um misterioso, um profundo trabalho

de gerações. Até que, um dia, há o milagre: -- juntam-se, então, no

mesmo time, um Pelé e um Gérson, um Rivelino, um Jairzinho.


*Brasil 1 x 0 Inglaterra, 7/6/1970, em Guadalajara. Segundo jogo das oitavas-de-
final.

Vocês viram o nosso gol contra a Inglaterra. Foi uma obra-

prima. Começou em Tostão, que passou a Paulo César. Paulo César

novamente a Tostão. Este trabalha a bola. A área inglesa era uma

ferocíssima selva de botinadas. Cada milímetro estava ocupado.

Tostão dribla um inglês, e mais outro inglês, um terceiro inglês. E

vinham outros, e mais outros e outros mais. Tostão vira-se e entrega

a Pelé. Três adversários envolvem o sublime crioulo. Este, rápido,

empurra para Jairzinho, enganando todo mundo.

Era um gol que não podia ser feito porque a muralha de

cabeças estava lá, inultrapassável. Mas tudo teve a solução

fulminante do talento. A bola deslizou para Jairzinho. No seu banco,

Alf Ramsey, o técnico inglês, parecia certo de que seus jogadores iam

frustrar o ímpeto e o virtuosismo dos nossos.

Não sei se vocês sabem, mas esse Ramsey é um caso de

imodéstia delirante. Declarara à imprensa internacional: -- "A

Inglaterra vai ganhar, porque o Brasil não tem defesa. Félix, Brito e

Piazza são horrorosos". Vejam a polidez, a cerimônia, a reverência

desse cavalheiro. Os rapazes da imprensa perguntaram: -- "E Pelé?".

Achou graça: -- "Ora, Pelé". E disse que tinha meios e modos de

apagar o Rei. O que Ramsey queria dizer, por outras palavras, é que

os brasileiros não são de nada.

Volto ao passe de Pelé. A bola está no pé de Jairzinho.

Esquecia-me de contar uma outra do mesmo Ramsey. Ele também

declarou que os negros brasileiros rebolam muito. Não disse

rebolam, mas ponham aí uma palavra equivalente. Pois bem: -- eis o

fato: -- Jairzinho arranca. A bola sabe quando vai ser gol e se ajeita

para o gol. E Jairzinho, que era a maior saúde em campo, ainda

ultrapassou um inglês; e encheu o pé. Era o gol de uma das mais

belas, mais perfeitas, irretocáveis vitórias brasileiras de todos os

tempos.

O próprio Ramsey, apesar de sua máscara de ferro, dizia depois

do jogo que, na altura do gol brasileiro, a defesa inglesa estava

entregue às baratas. O certo, o lógico é que, depois do gol, as coisas

acontecessem numa progressão fulminante de catástrofe. Mas diz o

Ramsey: -- "Os brasileiros recuaram para defender o 1 x 0. O que

seria de nós se eles não recuassem?".

Mas não tem sido fácil a vida do escrete. Por exemplo: -- Paulo

César sofreu em São Paulo uma experiência inédita: -- uma vaia de

noventa minutos. Isso corresponde a um linchamento. Só não

entendo, até hoje, como ele conseguiu sobreviver. Nem se pense que

foi ele o único. Mas não vamos amaldiçoar as vaias ao escrete. Elas o

fizeram, elas o virilizaram. A jornada brasileira no México é uma

vingança contra as vaias.

E o que a seleção e, antes da seleção, o que sofreu o futebol

brasileiro nas mãos dos "entendidos". Tenho que abrir, neste

momento, um tópico especial. O que é o "entendido"? Veremos se

posso caracterizá-lo. É o cronista que esteve, em 66, na Inglaterra, e

voltou com a seguinte descoberta: -- o futebol europeu em geral e o

inglês em particular eram muito melhores do que o nosso.

Estávamos atrasados de quarenta anos para mais. Quanto à

velocidade, era uma invenção européia. Os brasileiros andavam de

velocípede e os europeus a jato. O "entendido" afirmava mais: -- os

times de lá não deixavam jogar. Essa foi genial. Imaginem vocês um

time jogando e o adversário assistindo, como numa frisa de teatro.

Por outro lado, o preparo físico dos europeus era esmagador. Como

se não bastasse tudo o mais, ainda descobriu o "entendido": -- o

futebol moderno não é bonito, não quer ser bonito e escorraçou o

belo e artístico de suas cogitações. Bonito e artístico é o futebol sub-

desenvolvido de Brasil e outros.

O jogo Brasil x Inglaterra desmontou vários mitos. A tal

velocidade não existe. Os ingleses tinham períodos enormes em que

preferiam o velocípede ao jato. A saúde de vaca premiada é a nossa e

não a deles. Não há no time adversário um jogador com a furiosa

plenitude de um Jairzinho ou de um Pelé. Uma mentira a história de

que os europeus não deixam jogar. E como não deixam, se Tostão

comeu três, Pelé enganou mais três e Jairzinho ultrapassou mais

um, antes de fazer o gol? O pau-de-arara de ouro, Clodoaldo, corre

mais do que todo o escrete inglês junto. E vem o "entendido" e

declara, solene, enfático, hierático: -- "Nós não somos os melhores".

Pois os lorpas, os pascácios, acreditam. Basta Brasil x Tcheco-

Eslováquia, ou Brasil x Inglaterra que tudo não passa de uma

impostura inédita. Vou concluir: -- o "entendido" só não se torna

abominável porque o ridículo o salva.



[O Globo, 10/6/1970]

DESLIZANDO COMO CISNES




Amigos, bem sei que ninguém se ruboriza mais. O último rubor

que se conhece ocorreu num baile da ilha Fiscal. De então para cá,

nunca mais ninguém ficou ruborizado. Mas este campeonato tem

sido uma experiência fabulosa para nós brasileiros. Vocês sabem o

que dizem os jornais ingleses do nosso futebol? Dizem apenas e

textualmente o seguinte: -- "Devia ser proibido jogar tão bonito".

Eles acham absurdo que o Brasil possa mandar para o México

um time de virtuoses, de estilistas. E, portanto, podemos baixar a

vista, escarlates de modéstia. É a Inglaterra que nos põe nas nuvens.

Cabe então a pergunta: -- e as vaias? Esse mesmíssimo escrete, que

assombra o mundo, recebe as vaias humilhantes da própria terra.

Era como se fôssemos um time de pernas-de-pau, uma equipe de

cabeças-de-bagre.

E os "entendidos"? Estavam diante do óbvio e não enxergavam

o óbvio. Um deles, escrevendo sobre Brasil x Inglaterra, deu duas

notas dez aos ingleses e nenhuma nota dez aos brasileiros. Sempre

escrevo que o pior cego é o míope. O citado "entendido" não

desconfiou que o Brasil não é nada do que ele dizia, e nada do que

ele ainda diz. Todo mundo já sabe que não há na Copa um time que

se compare ao Brasil. E o "entendido" ainda está atracado ao mito,

ao pobre e falecido mito do futebol inglês.

Ontem a Inglaterra disse adeus à Copa. O juiz de 66 não estava

lá para inventar o gol que a Inglaterra não marcou. E ela perdeu para

a Alemanha. É um futebolzinho, o inglês, que só vinga sob uma

cínica, deslavada cobertura da arbitragem. E o futebol brasileiro, que

os "entendidos" sempre negaram ou, na pior das hipóteses, sempre

subestimaram? O "entendido" escreveu, outro dia: -- "Não somos os

melhores".

E vocês viram o jogo com a Tcheco-Eslováquia? Levou do Brasil

um banho de Paulina Bonaparte. Em seguida, a Inglaterra, a favorita

dos nossos "entendidos". Ganhamos por 1 x 0. Um gol só, mas que

valeu por cinco. Vocês se lembram do lance. Tostão apanha a bola,

dribla um inglês, outro inglês. E ao terceiro inglês, passou-lhe a bola

por entre as pernas. Em seguida, o formidável craque, vendo que os

adversários, em hordas, vinham caçá-lo, deu uma maravilhosa

virada para Pelé. O sublime crioulo está com a bola nos pés. Três

ingleses rugem para ele. E, então, Pelé os engana lindamente. Em vez

de chutar, passa para Jairzinho.

Jairzinho recebe a bola e engana mais um inglês. E manda

uma bomba no canto. Esse gol, de uma trama genial, foi um

momento de eternidade do futebol mundial. Mas os "entendidos",

embora presentes, estavam lá para admirar os ingleses. Contra a

Romênia, fizemos 25 minutos iniciais de um futebol nunca sonhado.

Era um jogo fácil. O Brasil merecia ganhar de uma goleada

astronômica. Depois da Romênia*, o Peru. Os gols que perdemos são

incontáveis. Dois lances geniais de Pelé explodiram na trave. Tostão,

que fez dois, perdeu uns três. Antes que eu me esqueça, uma

pergunta que gostaria de fazer aos "entendidos": -- e a famosa e

irracional velocidade, que era uma característica fundamental do

futebol europeu? O Brasil, quando quer, corre mais que os europeus,

e quando não quer, põe-se a passear em campo, a deslizar como

cisnes, sem nenhuma pressa, nenhuma. Afirmava-se também que os

europeus não deixavam jogar. Eles não fazem outra coisa senão

deixar o Brasil jogar.

Mas falo, falo, e não digo uma palavra sobre o meu personagem


*Brasil 3 x 2 Romênia, 10/6/1970, em Guadalajara. Terceiro jogo pelas oitavas-de-
final. Brasil 4 x 2 Peru, 14/6/1970, em Guadalajara. Jogo pelas quartas-de-final.

da semana. Vamos dar-lhe nome: -- Tostão. Foi uma enorme figura.

Marcou dois gols e foi um criador de jogadas maravilhosas. Já a sua

atuação no gol contra a Inglaterra foi um lance de gênio. Mas o que

eu queria chamar a atenção de vocês é para o abnegado e formidável

esforço de Tostão. Saído de uma crise vital, aceita todos os riscos

para servir ao escrete. De quinze em quinze minutos, seu futebol

cresce. Está entre os cinco ou seis maiores jogadores do mundo em

todos os tempos. Como influiu para a nossa vitória sobre o Peru! Fez

uma série de coisas perfeitas e irretocáveis. Já na semifinal da

quarta-feira, espero que ele apareça em estado de graça plena.

Imaginem Tostão dando tudo, Pelé dando tudo, Jairzinho dando

tudo, Rivelino dando tudo, Gérson dando tudo.



[O Globo, 14/6/1970]

O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA




Em 58, na véspera de Brasil x Rússia, entrei na redação. Tiro o

paletó, arregaço as mangas e pergunto a um companheiro: -- "Quem

ganha amanhã?". Vira-se para mim, mascando um pau de fósforo.

Responde: -- "Ganha a Rússia, porque o brasileiro não tem caráter".

Eis a opinião dos brasileiros sobre os outros brasileiros: -- não

temos caráter. Se ele fosse mais compassivo, diria: -- "O brasileiro é

um mau-caráter". Vocês entenderam? O mau-caráter tem caráter,

mau embora, mas tem. Ao passo que, segundo meu colega, o

brasileiro não tem nenhum. Pois bem. No dia seguinte há o jogo e, no

seu primeiro lance, Garrincha sai driblando russos e quase entra

com bola e tudo.

Vejam: -- diante do Brasil, a Rússia perdeu antes da luta.

Bastou um momento de Mané para liquidá-la. Mas o que ainda me

espanta é a frase do companheiro: -- "O brasileiro não tem caráter".

Essa falta de auto-estima tem sido a vergonha, sim, tem sido a

desventura de todo um povo. Ganhamos em 58, ganhamos em 62.

Depois da Suécia e do Chile, seria normal que retocássemos um

pouco a nossa imagem. Mas há os recalcitrantes. Outro dia, um

colega puxou-me para um canto. Olha para os lados e cochicha: --

"Não somos os melhores". E repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: --

"Não somos os melhores". E por todas as esquinas e por todos os

botecos há patrícios vendendo impotência e frustração.

Quando o escrete partiu para o México levando vaias jamais

cicatrizadas, vários jornais fizeram uma sinistra impostura. A seleção

ia para a guerra. Uma Copa é uma guerra de foice no escuro. Mas

parte da nossa imprensa pôs a boca no mundo: -- "Humildade,

humildade!". Eu pergunto: -- o que é o brasileiro? O que tem sido o

brasileiro desde Pero Vaz de Caminha? Vamos confessar a límpida,

exata, singela verdade histórica: -- o brasileiro é um pau-de-arara.

Vamos imaginar esse pau-de-arara na beira da estrada. Que faz ele?

Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com

infinito deleite, a sua sarna bíblica.

E súbito encosta uma Mercedes branca, diáfana, nupcial. O

cronista esportivo, que a dirige, incita o pau-de-arara: -- "Seja

humilde, rapaz, seja humilde!". Vocês percebem a monstruosidade?

Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda lhe

acrescentam a humildade. Certos rapazes da imprensa não

perceberam que a humildade é defeito de reis, príncipes, duques,

rainhas. Há pouco tempo, o papa assim se despediu de uma senhora

brasileira: -- "Reze por mim", implorou sua santidade. Podia fazê-lo

porque era a maior figura da Igreja.

Outro exemplo: -- a mulher bonita. Conheci uma que era

linda, linda. Quase uma Ava Gardner ou mais do que a Ava Gardner.

Quando o marido entrava, ela se lançava não nos seus braços, mas

aos seus pés. E fazia apenas isto: -- beijava um sapato do marido e,

depois, o outro sapato. Também podia fazer isso porque era

maravilhosa. Por onde passava ia ateando paixões e suicídios. A

humildade era a sua vaidade de mulher bonita.

Passo da mulher fatal ao escrete. Um escrete é feito pelo povo.

E como o povo o fez? Com vaias. Nunca houve na Terra uma seleção

tão humilhada e tão ofendida. E, além disso, os autores das vaias

ainda pediam humildade. O justo, o correto, o eficaz é que assim

incentivássemos a seleção de paus-de-arara: -- "Tudo, menos

humildade! Seja arrogante! Erga a cabeça! Suba pelas paredes!

Ponha lantejoulas na camisa!".

Chamo os nossos jogadores de paus-de-arara sem nenhuma

intenção restritiva. O pau-de-arara é um tipo social, humano,

econômico, psicológico tão válido como outro qualquer. Tem

potencialidades inéditas, valores ainda não realizados.

Estou dizendo tudo isso na véspera, exatamente na véspera, de

Brasil x Itália. É a finalíssima. Vejam vocês: -- o escrete negado não

três vezes, mas mil vezes -- foi vencendo os seus adversários, um por

um, não deixando pedra sobre pedra. Diziam que os europeus não

deixam jogar. Pois bem: -- quando se trata do Brasil, todo mundo o

deixa jogar.

Foi assim com a Tcheco-Eslováquia, com a Inglaterra, a

Romênia, o Peru e o Uruguai*. O espectro de 50 está mais enterrado

do que sapo de macumba. Bem que a pobre Inglaterra tentou o diabo

para que o Brasil não jogasse. Mas vocês se lembram do nosso gol?

Vejam quantos jogaram. Primeiro, Paulo César passou a Tostão. E

Tostão resolveu jogar em cima dos ingleses. Em vez de passar de

primeira, deu-se ao luxo voluptuoso de driblar um inimigo; mas era

pouco para a sua fome, e driblou outro inimigo. Podia passar. Mas

Tostão preferiu enfiar a bola por entre as pernas do terceiro inimigo.

Adiante estava Pelé. E o estilista estende a Pelé. Cercado de ingleses

por todos os lados, o semidivino crioulo toca para Jairzinho. Este

podia ter atirado de primeira. Não: -- achou que devia driblar mais

outro inglês. E só então sua bomba foi explodir no fundo das redes.

Por que os ingleses não nos impediram do jogar? E, realmente,

foi um gol feito com tão amorosa paciência, com tão fino lavor e

inexcedível virtuosismo. O leitor há de perguntar: -- "Mas como, se

os `entendidos' diziam que o futebol brasileiro estava mais obsoleto

do que o guarda-chuva do senador Paulo de Frontin?". Realmente, os

"entendidos" tudo fizeram para acabar com o nosso craque. Queriam

que nós imitássemos os defeitos europeus. Queriam tirar do nosso

futebol toda a magia, toda a beleza, toda a plasticidade, toda a

imaginação. Faziam a apologia do futebol feio. Era como se

estivessem apresentando o corcunda de Notre Dame como um

padrão de graça e eugenia.

Mas a famosa velocidade está a merecer um capítulo especial.


*Brasil 3 x 1 Uruguai, 17/6/1970, em Guadalajara, pelas semifinais. Alemanha 3 x 2
Inglaterra, 14/6/1970, pelas quartas-de-final.

Com a maior solenidade, os "entendidos" acusavam o nosso futebol

de lento. E o que se vê na Copa é esta coisa infinitamente patusca: a

morosidade inteligentíssima dos brasileiros derrubou a velocidade

burríssima dos europeus. Finalmente, diante dos resultados

concretos, o povo não lê mais os "entendidos". Desde a Tcheco-

Eslováquia, aconteceu o cínico e deslavado milagre: nunca houve um

escrete tão amado. Por outro lado, cada vitória faz a cidade explodir.

E um dos nossos jornais tem a coragem de chamar a festa gigantesca

de relativo carnaval.

Observem agora o que o escrete fez por nós. Há pouco tempo o

brasileiro tinha uma certa vergonha de ser brasileiro. Conheço um

patrício que andou ensaiando um sotaque para não trair a sua

nacionalidade. Agora não. Agora acontece esta coisa espantosa: --

todo mundo quer ser brasileiro. O país foi invadido por brasileiros,

ocupado por brasileiros. Dizia-me o Francisco Pedro do Coutto: --

"Nunca vi tantos brasileiros". E outra coisa: -- as mulheres estão

mais lindas, e os homens mais fortes, e há uma bondade difusa,

volatilizada, atmosférica. Jamais se cumprimentou tanto. E como

sorrimos uns para os outros.

Apenas 24 horas nos separam da finalíssima. Quem jogará por

nós é o melhor escrete da Copa. Enquanto os outros dão botinadas, o

brasileiro faz a arte que os "entendidos" negam e renegam. Vocês

devem ter visto, ontem, o tape de Inglaterra x Alemanha. O campo

era varrido de correrias irracionais. Vale tudo, do gogó para cima.

Vinte e dois homens, e mais o juiz e mais os bandeirinhas, e aquela

fauna triste de patadas.

Que falso futebol, que antifutebol. Amanhã, sim, amanhã o

mais belo futebol do mundo jogará contra a Itália. E quando acabar o

jogo vocês verão subir o nome do Brasil como um formidável berro

em flor.


[O Globo, 20/6/1970]

DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO




Amigos, foi a mais bela vitória do futebol mundial em todos os

tempos. Desta vez, não há desculpa, não há dúvida, não há sofisma.

Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso. Vocês se

lembram do que os nossos "entendidos" diziam dos craques

europeus. Ao passo que nós éramos quase uns pernas-de-pau, quase

uns cabeças-de-bagre. Se Napoleão tivesse sofrido as vaias que

flagelaram o escrete, não ganharia nem batalhas de soldadinhos de

chumbo.

Era mais fácil encontrar uma girafa em nossas redações do que

um otimista. O otimista era visto, e revisto, como um débil mental.

Quando o escrete saiu daqui, as hienas, os abutres, os chacais

uivavam: -- "Não passa das quartas-de-final!". Fazia-se uma

campanha do pessimismo. E os "entendidos" recomendavam:

"Humildade, humildade!". Como se o brasileiro fosse um pobre-diabo

de pai e mãe. Eu me lembro do dia em que João Saldanha foi

chamado para técnico do escrete. Tivemos uma conversa de terreno

baldio. E me dizia o João: -- "Vamos ganhar de qualquer maneira! O

caneco é nosso!".

Raríssimos acreditavam no Brasil. Um deles era o presidente,

que me dizia: -- "Vamos ganhar, vamos ganhar" -- e que, ainda no

sábado, dava o seu palpite para a finalíssima: -- "Brasil 4 x 1"*. Mas

os "entendidos" juravam que o futebol brasileiro estava atrasado

trinta anos. E a famosa velocidade européia? Essa velocidade existia

entre eles, e para eles. Mas o Brasil ganhou de todo mundo andando,


*Brasil 4 x 1 Itália, 21/6/1970, na Cidade do México. Brasil tricampeão mundial.

simplesmente andando. Com a nossa morosidade genial nós

enterramos a velocidade burra dos nossos adversários.

Sempre escrevi (graças a Deus, não "entendo" de futebol), mas

escrevi que a finalíssima de 66 foi o antifutebol e, repito, uma pelada

da pior espécie. Mas ai de nós, ai de nós. O "entendido", só de falar

da Inglaterra e da Alemanha, babava na gravata. Queria acabar com

o gênio, a magia, a beleza do nosso futebol. Mas, sem querer, com

sua inépcia, com sua incompetência, os "entendidos" acabaram

prestando um grande serviço, porque tornaram os brios do escrete

mais eriçados do que as cerdas bravas do javali.

O curioso é que os não entendidos é que acreditavam na

seleção. Por exemplo: -- o Walther Moreira Salles. Pôs-se à frente de

todo o movimento de apoio financeiro ao escrete. Não faltou quem lhe

dissesse: -- "Não faça isso. Esse escrete é uma droga". Coisa curiosa:

-- em momento nenhum o Walther Moreira Salles deixou de

acreditar na nossa seleção. Muitas vezes me disse: -- "Eu sei que

vamos ganhar".

Paro de escrever para atender o telefone. É o Vadinho Dolabela,

o último boêmio, o último romântico do Brasil. Chora no telefone: --

"Nelson, ganhamos, Nelson! O caneco é nosso!". Que ele seria nosso

estava escrito há 6 mil anos. Nunca uma seleção fez, na história do

futebol, uma jornada tão perfeita como o Brasil em 70. Ganhamos de

todos os pseudocobras. Todas as finalíssimas são duríssimas.

Alemanha x Itália, em 38, exigiu prorrogação. Quando o jogo acabou,

os craques deitavam-se no chão, muito mais mortos do que vivos.

Alemanha x Inglaterra, nova prorrogação, tanto em 66, como em 70.

O Brasil não precisou de um minuto a mais.

E nós, ontem, demos um passeio. Quem fez o gol da Itália, o

franciscano gol da Itália, não foram os italianos. Foi uma brincadeira

de Clodoaldo. Esse notabilíssimo craque, sergipano quatrocentão,

resolveu dar uma bola de calcanhar. O inimigo recebeu de presente,

recebeu de graça, o passe e o gol. Ao passo que os gols brasileiros

foram obras de arte, irretocáveis, eternas. A cabeçada de Pelé, na

abertura da contagem, foi algo de inconcebível. Ele subiu, leve, quase

alado, e enfiou no canto.

Em suma, cada gol dos nossos era uma preciosidade. Já na

véspera as maiores autoridades do futebol declararam,

unanimemente, que o Brasil tinha que ganhar o jogo, porque era

muito melhor. Esse era o óbvio ululante, que o mundo enxergava,

menos os "entendidos" daqui. Antes que eu me esqueça, preciso

observar o evidentíssimo: -- ganhamos dando, no adversário, um

banho de Paulina Bonaparte. Dizia-se que os italianos eram

formidáveis. Perderam de 4 x 1 para nós, e devia ser de 4 x 0. Ou

melhor: -- e nem de 4 x 0, mas de 5 x 0, e explico: -- no último

momento, Rivelino, driblando todo mundo, invadiu a área e ia entrar

com bola e tudo, quando sofreu o mais cínico, o mais deslavado dos

pênaltis. Era um gol mais do que certo. Ainda tivemos que enfrentar

um árbitro altamente pernicioso..

Amigos, glória eterna aos tricampeões mundiais. Graças a esse

escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser patriota. Somos

90 milhões de brasileiros, de esporas e penacho, como os Dragões de

Pedro Américo.



[O Globo, 22/6/1970]

Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para
proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura
àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios
eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA HELVÉ-

TICA EDITORIAL EM GARAMOND LIGHT E

IMPRESSA PELA GRÁFICA EDITORA

HAMBURG EM OFF-SET PARA A EDITORA

SCHWARCZ EM SETEMBRO DE 1993.


 

À Sombra das Chuteiras Imortais – Nelson Rodrigues

À Sombra das Chuteiras Imortais - Nelson Rodrigues

À Sombra das Chuteiras Imortais
Nelson Rodrigues

Primeira coletânea das crônicas esportivas de Nelson Rodrigues, reúne setenta textos que Nelson publicou na extinta revista Manchete Esportiva e em O Globo entre os anos de 1955 e 1970. Elas cobrem o período mais rico e fascinante do futebol brasileiro – aquele que vai da derrota do Brasil para o Uruguai, na final da Copa de 50, em pleno Maracanã, à conquista definitiva do tricampeonato no México, em 1970, passando pelas emoções que transformaram a idéia que o brasileiro fazia de si mesmo.

Boa Leitura

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