O Modelo Milionário
Oscar Wilde
De que vale ser um jovem encantador se não tiver bastante dinheiro? O romance é privilégio dos ricos e não profissão de desempregados. O pobre deve ser prático e prosaico. Vale mais uma renda permanente do que o dom de fascinar. Eram essas as verdades da vida moderna que o jovem Hughie Erskine não conseguia compreender. Pobre Hughie! Apesar de não ser de grande valor intelectual, nunca, em toda sua vida, havia feito ou dito alguma coisa de realmente relevante ou verdadeiramente reprovável. Era, contudo, extremamente simpático com seus cabelos castanhos ondulados, seu perfil de nÃtidos contornos e seus olhos acinzentados. Era tão bem sucedido com os homens como o era com as mulheres, e possuÃa todas as habilidades, menos a de ganhar dinheiro. Seu pai deixara-lhe por herança, seu sabre de cavalaria e quinze volumes sobre a História da Guerra Peninsular. Hughie pendurou o sabre acima do seu espelho de quarto; encaixotou os livros numa estande entre o Ruffâ™s Guide e o Bailey Magazine e passou a viver com a renda de 200 libras, abonadas por uma velha tia. Tentou todos os meios de ganhar a vida. Durante 6 meses arriscou a sorte na bolsa; mas que podia fazer um louva-a-deus entre ursos e touros? Passou algum tempo vendendo chá aos atacadistas mas cansou-se logo do âœpekoeâ e do âœsouchongâ. Em seguida tentou negociar âœdry sherryâ, mas desistiu logo pois o âœsherryâ era seco demais. Finalmente entregou-se à deliciosa arte de não fazer absolutamente nada e tornou-se um jovem encantador e inútil, com um perfil impecável e sem profissão alguma.
Para complicar as coisas, Hughie amava. Sua eleita era Laura Merton, filha de um coronel reformado que deixara na Ãndia seu bom-humor e seu bom estômago e nunca mais encontrara nem um nem outro. Laura amava loucamente o jovem Hughie e ele, por sua vez, teria sido capaz de beijar com paixão até os cordões dos seus sapatinhos. Laura e Hughie formavam um dos pares mais combinados de Londres e entre ambos não havia sequer um real. O coronel estimava muito o jovem Hughie mas opunha-se a qualquer compromisso de casamento.
Meu caro jovem â" dizia o velho â" Volte quando tiver acumulado com seus próprios esforços umas dez mil libras. Então, poderemos conversar. â" Quando ouvia essas palavras, o jovem Hughie, acabrunhado, buscava conforto nos braços da sua amada.
Certa manhã, quando se dirigia para Holland Park onde moravam os Mertons, Hughie resolveu visitar um grande amigo seu, chamado Alan Trevor, que era pintor. A arte de pintar tornou-se epidêmica em nossos dias. Mas além de pintor, Trevor era também um grande artista, e os grandes artistas são muito raros. Trevor era uma estranha criatura um tanto rude; tinha o rosto salpicado de sardas e usava uma barbicha ruiva, sempre emaranhada. Contudo, quando empunhava o pincel, tornava-se um autêntico mestre e todos os seus trabalhos eram muito requestados. Desde o princÃpio fora fortemente atraÃdo pela sedutora personalidade de Hughie. âœOs pintores só deviam conhecer criaturas obtusas e encantadoras. Criaturas que ao contemplar, nos proporcionem um real prazer artÃstico e ao conversar, um verdadeiro repouso intelectual. Os janotas e as coquetes governam o mundo, ou pelo menos deviam âœgovernarâ, dizia Trevor freqüentemente. Entretanto, depois de conhecer melhor Hughie, apreciou-o tanto pela sua jovialidade e bom caráter quanto pela sua natureza generosa e espontânea, permitindo-lhe livre acesso ao seu estúdio.
Hughie, ao entrar, encontrou Trevor dando os retoques finais num magnÃfico quadro que representava um mendigo em seu tamanho natural. O mendigo em pessoa posava sobre um estrado num dos ângulos do estúdio. Era um ancião encarquilhado com o rosto enrugado como um pergaminho e cuja fisionomia expressava infinita tristeza. Um velho manto rústico, rasgado e esfarrapado, recobria seus ombros e seus sapatos remendados estavam rotos em diversos lugares. Tinha uma das mãos apoiada num grosseiro bastão e a outra segurava um chapéu velho, estendido à caridade pública.
Que extraordinário modelo! â" exclamou Hughie, apertando a mão do amigo.
Extraordinário â" bradou Trevor â" que dúvida! Um modelo como este não é encontrado todos os dias. Um achado, meu amigo, um verdadeiro achado. Um Velasquez em pessoa! Céus! Que água-forte teria Rembrant com um modelo como esse!
Pobre velho â" disse Hughie â" parece tão miserável. Suponho que para vocês, pintores, uma fisionomia dessas vale uma fortuna.
Meu caro Hughie, respondeu o pintor, como quer que um mendigo irradie felicidade?
Acomodando-se no sofá, Hughie perguntou:
Quanto ganha um modelo para posar, Trevor?
Um shilling por hora.
E quanto ganha você com o quadro?
Esse ai me dará uns dois mil.
Libras?
Não, guinéus. Pintores, poetas e doutores só recebem guinéus.
Pois olhe, Alan, na minha opinião os modelos deveriam receber uma porcentagem. O trabalho deles é quase tão árduo quanto do artista.
Tolices, Hughie! Veja só o trabalho que dá aplicar a tinta na tela e ficar o dia todo em pé, na frente do cavalete. Falar é fácil, mas pode estar certo que há momentos em que a arte atinge a dignidade de um trabalho braçal. Mas deixe de tagarelar. Estou trabalhando e preciso de sossego. Sente e fume.
Depois de algum tempo o criado entrou para avisar o pintor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.
Fique aÃ, Hughie. Voltarei em minutos â" disse Trevor.
O velho mendigo aproveitou a ausência do pintor para descansar numa banqueta ao lado do estrado. Sua fisionomia era uma imagem de dor e tristeza e Hughie, comovido, procurou nos bolsos para ver se encontrava alguma moeda. Encontrou apenas uma libra e alguns pences. âœPobre velhoâ, pensou ele, âœprecisa mais desse dinheiro do que eu e não me custa nada ficar sem condução quinze diasâ, e atravessando o estúdio depositou timidamente as moedas na mão do velhinho.
O velhinho assustou-se e, depois, um leve sorriso esboçou-se nos seus lábios murchos.
Muito obrigado, senhor. Muito obrigado.
Trevor chegou e Hughie, enrubescendo um pouco pelo seu gesto, despediu-se e saiu. Passou o resto do dia em companhia de Laura, foi gentilmente censurado pela sua prodigalidade e voltou a pé para casa.
Naquela noite, eram mais ou menos onze horas, Hughie foi para o Pallete Clube e encontrou Trevor sozinho no salão, bebendo vinho branco com água de seltzer.
Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?
Terminar e emoldurar, meu caro! â" respondeu Trevor. â" E a propósito sabe que você fez mais uma conquista? O velhinho que serviu de modelo falou muito de você. Fui obrigado a descrevê-lo na Ãntegra. Ele quis saber quem é você, onde mora, de que vive, quais são seus planos para o futuro...
Meu caro Alan â" exclamou Hughie â" Com certeza quando chegou em casa vou encontrá-lo me esperando. Mas, escute, Trevor. Você parece que está brincando. Saiba que tive muita pena do pobre infeliz. queria poder fazer alguma coisa por ele. Deve ser horrÃvel ser tão desgraçado. Tenho muitas roupas velhas lá em casa. Acha que ele as aceitaria? Estava tão esfarrapado!
Seus farrapos são a sua magnificência â" disse Trevor. â" Por dinheiro algum pintá-lo-ia envergando um fraque. O que você chama de farrapos eu chamo de romance. O que para você representa miséria, para mim representa pitoresco. Todavia, falar-lhe-ei de sua oferta.
Vocês pintores não têm coração â" disse Hughie num tom de censura.
O coração do artista é a sua cabeça â" respondeu Trevor â" Aliás, o objetivo do artista é compreender o mundo como ele o vê e não reformá-lo como o compreendemos. A chacun son métier. Bem, e agora, diga-me como está Laura. O velho modelo está vivamente interessado nela.
Quer dizer que ela também foi assunto de conversa entre vocês? â" exclamou Hughie.
Sim. Contei-lhe toda a história do implacável coronel, da formosa Laura e das 10 mil libras.
Você contou todas essas particularidades ao velho mendigo? â" bradou Hughie, enrubescendo vivamente e bastante exaltado.
Meu caro Hughie â" disse Trevor sorrindo â" Esse pobre homem que você classifica de mendigo é um dos mais ricos da Europa. Se quiser, pode comprar amanhã toda a Inglaterra sem desfalcar seu crédito bancário. Possui propriedades em todas as capitais, faz suas refeições em baixelas de ouro e pode, quando lhe aprouver, impedir a Rússia de entrar em guerra.
Que baboseiras está contando, Alan?
Baboseiras? O ancião que você encontrou hoje no meu estúdio é o barão Hausberg. Um dos meus grandes amigos e admiradores e um dos meus melhores clientes. Compra quase todos os meus quadros e outras coisas mais. Há mais ou menos um mês pediu-me para retratá-lo na caracterização de um mendigo. Que voulez-vous? La fantasie millionnaire! Não posso negar que fez bela figura nos seus farrapos â" ou melhor, nos meus farrapos. Comprei-os na Espanha.
O barão de Hausberg! â" murmurou Hughie, perplexo. â" Santo Deus! E eu lhe dei uma libra â" tartamudeou ele, afundando numa cadeira com ar profundamente consternado!
Você lhe deu uma libra? â" perguntou Trevor rindo. â" Nunca mais a verá, meu caro amigo. Son affaire câ™est lâ™argent des autres.
Devia ter-me avisado, Alan â" disse Hughie visivelmente aborrecido. â" Teria evitado o ridÃculo papel que fiz.
Bem, para começar, Hughie â" disse Trevor â" nunca me passou pela cabeça que você pudesse distribuir esmolas de maneira tão insensata e tola. Compreendo que se beije um modelo bonito, mas quanto a dar uma libra a um modelo feio â" poxa, isso não. Além disso, hoje tinha intenção de não receber ninguém e quando você entrou no estúdio não sabia se o barão Hausberg queria que mencionasse o seu nome. Você compreende, com aqueles trajes...
Deve julgar-me um idiota.
Ao contrário. Quando você saiu ficou muito jovial e murmurava baixinho esfregando as mãos enrugadas. Fiquei um pouco atônito quando o vi tão interessado em você. Agora compreendo. Com certeza vai aplicar a libra que você lhe deu, Hughie, pagando-lhe os juros de seis em seis meses e terá uma história interessante para contar depois do jantar.
Sou mesmo um desastrado â" murmurou Hughie. â" Acho que a melhor coisa a fazer é ir para a cama e, por favor, Alan, não conte o que aconteceu a ninguém.
Tolices Hughie. Esse seu gesto prova o seu elevado espÃrito filantrópico. Fique aÃ, não vá, fume um cigarrinho e vamos conversar um pouco sobre Laura.
Hughie, aborrecido, não quis ficar e foi para casa. Sentia-se acabrunhado e deixou Alan rindo a mais não poder.
Na manhã seguinte, quando estava se preparando para o primeiro almoço, o criado fez-lhe entrega de um cartão com os seguintes dizeres: âœMousieur Gustave Naudim, de la part de M. le Baron Hausbergâ. Com certeza vai pedir uma satisfação, pensou Hughie, mandando o criado introduzir o visitante.
O homem já idoso, de cabelos grisalhos e óculos de armação dourada, entrou na sala e disse com ligeiro sotaque francês: âœTenho prazer de falar com Mr. Erskine?â
Hughie fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Venho da parte do barão Hausberg â" disse ele.
Peço apresentar minhas sinceras desculpas ao senhor barão â" disse Hughie.
Sorrindo, o visitante prosseguiu:
O senhor barão incumbiu-me de lhe entregar esta carta.
Hughie pegou o envelope e leu:
A Hughie Erskine e Laura Merton, como presente de casamento de um velho mendigoâ. Dentro do envelope havia um cheque de 10 mil libras.
Na ocasião do casamento o barão Hausberg pronunciou um bonito discurso em homenagem aos nubentes e Alan Trevor foi um dos padrinhos.
- Modelos milionários são muito raros â" observou Alan â" mas milionários modelos são mais raros ainda.
Oscar Wilde
Contos
Tradução de Cabral do Nascimento
Esta obra foi digitalizada para uso exclusivo de deficientes visuais em Janeiro de 2007 por Sandra Leonor Ferreira
© Relógio D' Ãgua Editores, Abril de 2001
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TÃtulo: Contos
TÃtulo original: The Stories of Oscar Wilde
Autor: Oscar Wilde
Tradução: Cabral do Nascimento
Capa: Fernando Mateus sobre aguarela de Susana Oliveira
Composição e paginação: Relógio D' Ãgua Editores
Impressão: Rolo & Filhos, Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.º: 164542/01
Ãndice
O Reizinho, 7
o Aniversário da Infanta, 25
O Pescador e a Alma, 49
Filho de Estrela, 91
O PrÃncipe Feliz,111
O Rouxinol e a Rosa, 123
O Gigante EgoÃsta, 131
O Amigo Fiel, 137
O Foguete de Lágrimas, 151
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O REIZINHO
Véspera da coroação, à noite: ei-lo só, o reizinho, no seu quarto esplendoroso. Os cortesãos haviam-se retiraÂdo, curvando a cabeça até ao chão, de acordo com a pragÂmática daquele tempo, e encontravam-se agora no vestÃÂbulo maior do Paço, a fim de receberem as últimas lições do mestre de cerimónias - visto alguns deles ainda conÂservarem certa naturalidade de maneiras, o que num palaÂciano constitui falta grave, escusado será dizer.
O rapazinho - pois tinha apenas dezasseis anos - não entristecera com o facto de os ver partir; até se reclinara, com um suspiro de alÃvio, nas almofadas macias do leito bordado e ali permanecera esgazeado e boquiaberto como um fauno dos bosques ou um animal bravio recentemenÂte capturado.
Na verdade, dir-se-ia ter sido apanhado na rede, quase por acaso, descalço e de gaita pastoril, quando conduzia o rebanho do pobre cabreiro que o criara e de quem sempre se imaginara filho. Nascido da filha única do rei, dum caÂsamento secreto com alguém de mais baixa condição (paÂrece que estrangeiro e tocador de alaúde, de cuja música maravilhosa a princesa se enamorara, fora arrancado do
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lado da mãe, enquanto esta dormia, e entregue aos cuidaÂdos dum casal de camponeses sem descendência, habitanÂtes dum lugar que ficava na remota floresta, distante cerÂca de vinte e quatro horas de jornada. O pai, a quem se atribuÃa a qualidade de artista, desaparecera de repente da cidade, deixando incompleto o trabalho que executava na Catedral; e a mãe morrera logo ao despertar, de dor ou de peste, segundo o fÃsico da corte, ou pela acção dum subtiÂlÃssimo veneno italiano, conforme insinuavam outros. Quando o portador da criança, escudeiro fiel, se apeou do cavalo estafado e bateu à porta da cabana do pastor, o caÂdáver da filha do rei baixava à mesma cova dum cemitério rural onde se diz que já repousava outro corpo, o de um rapaz de peregrina beleza, cujas mãos haviam sido atadas atrás das costas e cujo peito estava retalhado de muitas feÂridas rubras.
Tal a história que se propalava à boca pequena no paÃs. O certo era que o rei velho, ou movido pelo remorso ou para evitar somente que o trono se apartasse da sua linhaÂgem, mandara buscar, à hora da morte, aquele neto reneÂgado e, na presença dos seus conselheiros, o reconhecera como seu sucessor. Desde o momento em que havia sido legitimado, o rapazinho dera provas de entranhada paixão pelas coisas belas, paixão que havia de ter tão grande inÂfluência na sua vida. Os que o acompanharam aos apoÂsentos que lhe estavam reservados muitas vezes aludiram ao grito de alegria que se lhe escapara dos lábios ao ver o vestuário precioso e as jóias de tanta valia que se destinaÂvam ao seu uso pessoal; notaram também a satisfação quaÂse selvática com que se despojara da grosseira túnica de couro e do não menos rude capote de pele de cabra. É claÂro que de tempos a tempos se lembrava com saudade da existência livre de outrora e se aborrecia com o cerimonial
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enfadonho da corte, tão demorado que lhe ocupava granÂde parte do dia; mas o palácio maravilhoso de que era doÂno presentemente aparecia-lhe também como um novo mundo feito de propósito para seu regalo, e, logo que poÂdia fugir da mesa do despacho e das audiências, precipiÂtava-se pela escadaria, ladeada de leões de bronze douraÂdo e coberta de pórfiro cintilante, e vagueava de sala em sala, de corredor em corredor, como quem procura achar na beleza um refrigério para a dor e um cordial para a fraÂqueza.
Nesses dias de descoberta (como ele os classificava) e que eram, de facto, autênticas viagens através dum reino encantado, fazia-se acompanhar, com frequência, pelos esbeltos e loiros pajens do seu serviço, os quais tinham capas esvoaçantes e faixas de cores alegres. Noutras ocaÂsiões, porém, ia só, pois sentia, por instinto natural, que os mistérios da arte se aprendem melhor em segredo e que a Beleza, do mesmo modo que a Sabedoria, concede a preÂferência ao adorador solitário.
Durante este perÃodo contaram-se a seu respeito muitas histórias curiosas. Dizia-se que um burgomestre qualÂquer, ao vir à capital a fim de apresentar certa reclamação em favor dos seus munÃcipes, o surpreendera ajoelhado diante dum quadro trazido de Veneza e cujo assunto paÂrecia ser a adoração de novos deuses. Doutra vez estivera afastado durante horas, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro, até que o foram descobrir, depois de buscas porfiadas, num dos torreões setentrionais do palácio, exÂtasiado defronte duma jóia grega esculpida, que represenÂtava a figura de Adónis. E fora visto ainda, a dar crédito a estes boatos, poisando os lábios ardentes na face de márÂmore duma estátua antiga, encontrada no leito do rio
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aquando da construção duma ponte de pedra, e onde se lia, inscrito, o nome do escravo bitÃnio de Adriano. Uma noite inteira passara ele deslumbrado com o efeito do luar numa imagem de prata de Endimião.
Fascinavam-no todas as matérias raras e preciosas e, na ânsia de as obter, despachara muitos mercadores, uns paÂra junto da rude população piscatória dos mares do NorÂte, onde há o tráfico do âmbar, outros para o Egipto, em busca dessa estranha turquesa verde que só se encontra nos túmulos dos faraós e dizem possuir propriedades máÂgicas, outros para a Pérsia a fim de comprarem tapetes de seda e vasos pintados, e outros para a Ãndia, onde adquiÂririam gazas e mármores de cor, pedras opalinas, pau de sândalo, esmaltes azuis e xailes de lã finÃssima.
Todavia, o que mais o ocupara fora o traje a usar no dia da coroação, fato de oiro tecido, coroa cravejada de rubis, ceptro com aros e fiadas de pérolas. Era nisso, realmente, que ele pensava nessa noite, reclinado no luxuoso leito e observando a acha de pinho que ardia no fogão. Os deseÂnhos, feitos pelos mais famosos artistas da época, haviamÂ-lhe sido submetidos uns meses antes, e o reizinho dera ordem para que os mestres e oficiais trabalhassem noite e dia e que se percorressem todos os paÃses em cata de jóias que fossem dignas de figurar no adereço real. Via-se já no altar-mor da Catedral, no seu belo traje de soberano, e, ao pensar em tais coisas, brincava-lhe nos lábios infantis um sorriso e tremia-lhe nos olhos obscuros um brilho novo.
Passado algum tempo levantou-se e, apoiando-se ao paÂno de fogão esculpido, circunvagou a vista pelo quarto imerso em penumbra. Das paredes pendiam tapeçarias opulentas que figuravam o Triunfo da Beleza. Preenchia um canto certo armário embutido de ágata e lápis-lazúli; em frente da janela ostentava-se uma escrivaninha singuÂlarmente
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trabalhada, com painéis de mosaico dourado e de laca, e sobre a qual se viam copos admiráveis de cristal de Veneza e um vaso de ónix raiado de negro. Na colcha de seda da cama estavam bordadas papoilas pálidas, como se houvessem caÃdo das mãos fatigadas do sono; e sustiÂnham o dossel de veludo altas colunas de marfim estriado, donde se erguiam para o tecto de prata fosca tufos de peÂnas de avestruz. Um Narciso risonho segurava, acima da cabeça, um espelho cintilante. Sobre o tampo da mesa desÂcansava uma taça baixa de ametista.
Lá fora, avultava a imensa cúpula da Catedral, luzindo como uma bolha imensa acima das casas indefinidas; viam-se também as sentinelas fatigadas que iam e vinham na esplanada húmida, junto ao rio. Mais longe, no pomar, cantava um rouxinol. Através da janela aberta entrava um vago aroma de jasmim. O reizinho lançou para trás a maÂdeixa castanha e encaracolada que lhe pendia na testa e, pegando num alaúde, deixou correr os dedos pelas cordas. Pesaram-lhe as pálpebras, invadiu-o uma estranha lassiÂdão. Nunca antes sentira, nem com tão vivo e apurado gosto, a magia e o mistério das coisas belas.
Quando a meia-noite soou no relógio da torre, ele toÂcou uma sineta e os pajens entraram e despiram-no com todo o cerimonial, deitando-lhe água de rosas nas mãos e aspergindo-lhe o travesseiro de flores. E adormeceu pouÂco depois de eles haverem saÃdo.
Sonhou durante o sono, e eis o que o seu sonho foi: Estava num sótão comprido e baixo, entre o zumbido e o estardalhaço de muitos teares. Pelas janelas gradeadas espreitava a luz pálida do dia, mostrando-lhe o rosto magro dos tecelões que se curvavam no trabalho. Sob vigasÂ-mestras agachavam-se crianças macilentas, de ar doentio.
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Quando as lançadeiras saltavam através da urdidura, os pequeninos operários levantavam os pesados sarrafos e, se elas paravam, eles detinham-se também. Que rostos reveÂladores de fome, que trémulos dedos enfezados! Sentadas a uma das mesas, cosiam mulheres de cara encovada. EnÂchia o quarto um cheiro nauseabundo, tornando o ar compacto e insuportável. Pelas paredes escorriam fios de água.
O reizinho aproximou-se de cada um dos tecelões, paÂrando e observando. Um deles fitou-o zangado e pergunÂtou:
- Por que me espiais? Foi o nosso patrão que vos manÂdou?
- Quem é o teu patrão? - inquiriu o pequeno.
- O nosso! - replicou o homem, com amarga tristeÂza. - É um sujeito como eu. Para falar verdade só existe uma diferença entre nós: ele usa trajes opulentos e eu anÂdo andrajoso; enquanto passo fome, ele sofre de fartura.
- A terra é livre - disse o reizinho - e tu não és esÂcravo de ninguém.
- Na terra - prosseguiu o tecelão - os fortes escraÂvizam os fracos e, na paz, os ricos escravizam os pobres. Precisamos de trabalhar para viver, e eles dão-nos salários tão mesquinhos que nos acarretam a morte. Mourejamos para eles todo o santo dia, e ei-los que amontoam oiro nos seus cofres, e os nossos filhos definham prematuramente, e as faces dos que amamos tornam-se duras e velhas. PisaÂmos as uvas e os outros bebem o vinho. Ceifamos o trigo e temos a mesa sem pão. Arrastamos correntes invisÃveis, continuamos escravos com carta de alforria...
- Sois todos assim?
- Sim, senhor - respondeu o operário. - Tanto os moços como os adultos, tanto as mulheres como os homens,
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tanto as crianças como os velhos. Os mercadores oprimem-nos e nós temos de sujeitar-nos. Cavalgando, passa o cura junto de nós, a desfiar o seu rosário, mas ninÂguém se preocupa connosco. Através das nossas vielas sombrias arrasta-se a Pobreza de olhos famélicos, e o PeÂcado, de rosto alvar, segue-lhe as pisadas. De manhã acorda-nos a Miséria, e a IgnomÃnia compartilha, à noite, o nosso leito. Mas que vos importam estas coisas? Não sois dos nossos, a vossa face respira felicidade.
Afastou-se de cenho carregado, repelindo o tear, e o reiÂzinho viu que o fio era de oiro. Então apoderou-se dele o terror e novamente interpelou o operário:
- Que vestido é esse que estais a tecer?
- O que há-de servir para a coroação do rei. Mas que tendes vós com isso?
O rapazinho soltou um grito, despertou e viu-se na sua cama. Através da janela descobriu uma Lua enorme e cor de mel, suspensa no ar torvo.
E outra vez adormeceu e sonhou, e eis o que o seu soÂnho foi:
Estava no convés duma galera muito grande na qual reÂmavam cem escravos. A seu lado, sobre um tapete, ia senÂtado o arrais, negro como o ébano, e de turbante de seda carmesim. Dos lobos espessos das orelhas pendiam-lhe volumosos brincos de prata; nas mãos segurava uma baÂlança de marfim.
Os escravos tinham apenas a cobri-los uma tanga esfarÂrapada e cada um deles estava preso por uma corrente ao seu companheiro. A luz do Sol batia-lhes em cheio: cá e lá andavam vários pretos munidos de chicote, com que fusÂtigavam os remadores, e estes distendiam os braços esqueÂléticos, lutando contra a água. O sal esparrinhava das pás.
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Chegaram a uma angra e começaram a tomar fundo. SoÂprava da costa um vento fresco, cobrindo de fina poalha vermelha o convés e a vela latina da galera. Apareceram então três árabes, montados em burros bravos, e arremesÂsaram lanças aos recém-vindos. O arrais deitou mão dum arco e despediu uma frecha contra um deles, atingindo-o na garganta; o árabe caiu pesadamente na ressaca e os ouÂtros dois fugiram. Passou um camelo com uma mulher em cima, envolta num véu amarelo, a qual de vez em quando olhava para trás, para o cadáver do guerreiro.
Logo que soltaram a âncora e arrearam a vela, os pretos desceram ao porão e trouxeram uma longa escada de corÂda, lastrada de chumbo. O arrais deitou-a pela borda, atando solidamente as pontas a duas escoras de ferro. EnÂtão os pretos agarraram o mais novo dos escravos, tiraram-lhe os grilhões, encheram-lhe de cera as narinas e os ouvidos e ataram-lhe uma pedra grossa à cintura: o hoÂmem desceu devagar a escada e desapareceu no mar, surÂgindo logo bolhas à superfÃcie no sÃtio em que ele merguÂlhara. Alguns dos escravos espreitavam, curiosos, dos laÂdos da galera. à proa desta um encantador de tubarões batia monotonamente num tambor.
Passou-se um bocado e o mergulhador surgiu anelante da água e subiu a escada, exibindo uma pérola na mão diÂreita; os pretos apoderaram-se dela e obrigaram-no a desÂcer de novo. A este tempo já muitos dos escravos haviam adormecido, curvados sobre os remos.
De cada vez que o mergulhador voltava à superfÃcie traÂzia uma linda pérola na mão. O arrais verificava-lhes o peÂso e guardava-as num saquitel de couro verde. O reizinho tentou falar, porém a lÃngua dir-se-ia colar-se-lhe ao céu da boca e os lábios recusarem-se ao menor movimento. Tagarelando uns com os outros, os pretos começaram a
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disputar acerca dum fio de contas cintilantes. Em cÃrculos sobre o barco voavam dois grous. Reapareceu o merguÂlhador pela última vez, trazendo uma pérola mais bela do que todas as de Ormuz, pois tinha a forma da lua cheia e era mais branca do que a estrela da manhã. Mas o rosto dele vinha extremamente pálido e, quando descansou no convés, o sangue brotou-lhe dos ouvidos e das narinas; por instantes sacudiu-o um leve tremor, e depois ficou imóvel. Os pretos encolheram os ombros e atiraram-lhe com o corpo pela borda fora.
Riu-se o arrais, que avançou para tomar a pérola. Ao vê-la, apertou-a contra a fronte e curvou-se reverente.
- Há-de ser - declarou - para o ceptro do reizinho.
Em seguida fez sinal aos pretos para que levantassem a âncora.
Quando ouviu isto o moço rei deu um grito e acordou, e viu através da janela os dedos foscos da aurora a colheÂrem as estrelas que se apagavam.
E de novo adormeceu, e sonhou, e eis o que o seu soÂnho foi:
Pensou que vagueava por uma floresta densa, de cujas árvores pendiam frutos estranhos e belas flores venenosas. As serpentes assobiavam-lhe quando ele passava e os paÂpagaios de cores vivas saltavam gritando de ramo em raÂmo. Na lama quente jaziam tartarugas enormes, adormeÂcidas. As árvores estavam cheias de macacos e pavões.
Pouco a pouco ele foi andando até que chegou à orla da floresta e aà viu uma grande quantidade de homens que trabalhavam no leito seco dum rio. Subiam e desciam o precipÃcio como um carreiro de formigas. Uns abriam fundas covas no chão e metiam-se nelas; outros fendiam as rochas armados de picaretas. Outros, ainda, vasculhavam
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na areia. Arrancavam cactos pela raiz e com os pés esmaÂgavam as flores encarnadas. Azafamavam-se, chamando uns pelos outros, sem que nenhum se conservasse ocioso. No negrume duma caverna espreitavam-nos a Morte e a Avareza, e disse aquela:
- Já estou cansada. Dá-me a terça parte desses homens e vou-me embora daqui.
Mas a Avareza abanou a cabeça, respondendo:
- São meus servos.
- Que tens na mão? - inquiriu a outra.
- Três grãos de trigo. Que te importa?
- Dá-me um deles. Plantá-lo-ei no meu jardim. Dá-me um só e eu vou-me embora daqui.
- Não te darei nenhum - replicou a Avareza, esconÂdendo a mão numa prega do vestido.
Riu-se a Morte, pegou numa taça, mergulhou-a numa poça de água e da taça surgiu a Malária. Esta passou pelo meio da multidão e um terço dos homens tombou aniquiÂlado. Acompanhava-a uma neblina fria, e para ela correÂram as cobras-d'água.
E quando a Avareza verificou que a terça parte dos opeÂrários estava morta, bateu no peito e carpiu. Bateu no peiÂto estéril e pranteou em altas vozes.
- Mataste um terço dos meus servos - disse ela. Â
Vai-te daqui! Há guerra nas montanhas da Tartária, e os reis de ambos os lados chamam por ti. Os Afegãs mataram o boi preto e marcham para o campo de batalha. TangeÂram os escudos com as lanças e enfiaram os elmos de ferÂro. Que significa o meu vale para ti, para que te demores tanto tempo nele? Parte, e nunca mais voltes.
- Não irei - respondeu a Morte - sem que me dês um grão de trigo.
A Avareza, porém, fechou a mão e cerrou os dentes.
- Não te darei nada - murmurou.
E a Morte riu, apanhou uma pedra escura e atirou-a para
a floresta, e da espessura bravia dos abetos saiu a Febre vesÂtida de fogo. Passou pelo meio da multidão, e morreu cada homem em que ela tocava. A erva secava-lhe sob os pés.
A Avareza estremeceu e coroou-se de cinzas.
- És cruel! CrudelÃssima! - exclamou. - Há fome nas cidades muradas da Ãndia e estão secas as cisternas de Samarcanda. Há fome nas cidades muradas do Egipto e os gafanhotos invadiram-nas, vindos do deserto. O Nilo não alagou as suas margens e os sacerdotes amaldiçoaram Ãsis e OsÃris. Vai para junto daqueles que precisam de ti e deixa-me em paz com os meus servos.
- Não - redarguiu a Morte - sem que me dês um grão de trigo.
- Não te darei nada! - disse outra vez a Avareza.
E a Morte tornou a rir, assobiou com os dedos e surgiu uma mulher voando pelos ares. Tinha inscrita na testa a palavra Peste e ao seu redor voava uma imensidão de abuÂtres. Ao cobrir o vale com as asas não deixou vivo neÂnhum homem. A Avareza fugiu, a tremer, para a floresta e a Morte saltou para o seu cavalo baio e começou a galoÂpar, a galopar mais célere do que o vento.
No lodo do fundo do vale rastejaram dragões e seres horrÃveis cobertos de escamas. Os chacais vieram a trotar sobre a areia, de focinho erguido, farejando.
E o reizinho chorou e disse:
- Quem eram aqueles homens e que procuravam eles? Alguém, por trás, respondeu:
- Rubis para a coroa real.
Estremeceu o rapazinho, voltou-se e viu um homem com roupa de peregrino, a segurar na mão um espelho de prata.
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- Para a coroa de que rei? - insistiu o primeiro, cada vez mais pálido.
- Olha neste espelho e saberás de quem - volveu o peregrino.
Olhou o moço rei e, vendo o seu próprio rosto, soltou um grito e acordou. O sol brilhante inundava-lhe a alcoÂva, e nas árvores do jardim os pássaros cantavam.
Entraram no quarto o camarista e os oficiais de serviço, que se curvaram diante do monarca. Os pajens trouxeram-lhe o fato tecido de oiro e apresentaram-lhe a coroa e o ceptro. O moço rei olhou para aquelas coisas e notou como eram belas, mais belas do que tudo o que ele até ali vira. Mas lembrou-se dos sonhos e disse aos seus áulicos:
- Levai-os. Não usarei nada disso.
Os cortesãos ficaram espantados; alguns até se riram, supondo que o soberano estava a brincar. Este, porém, falou-lhes de novo, ordenando:
- Levai esses objectos e escondei-os da minha vista. Embora seja hoje o dia da minha coroação, não envergaÂrei esse fato, que foi tecido no tear da tristeza, pelas mãos brancas da dor. Há sangue no coração do rubi, morte no âmago da pérola: não usarei coroa nem ceptro.
Em seguida, contou-lhes os sonhos que tivera.
Depois de o haverem escutado, os familiares do Paço entreolharam-se, cochichando:
- Não há dúvida que ensandeceu. Pois que é um sonho senão um sonho? Uma visão não passa duma visão. Não são coisas reais, a que se dê importância. Que temos a ver com a existência dos que trabalham para nós? Precisamos de ver o semeador para podermos comer pão? Temos de falar com o vinhateiro para que possamos beber vinho?
O camarista dirigiu-se então ao rei nestes termos:
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- Senhor, rogo-vos que ponhais de parte esses negros pensamentos, que envergueis o vosso esplêndido fato e que cinjais a fronte com esta bela coroa. Como há-de o povo saber que sois o rei, se não tendes vestida a indu mentária real?
O reizinho fitou-o e retorquiu:
- É deveras como dizes? Não me reconhecerão como rei se eu não tiver a indumentária real?
- Não vos reconhecerão, Senhor - confirmou o caÂmarista.
- Eu pensava que havia homens com aparência de rei... Mas talvez tenhas razão. No entanto, não usarei esse fato nem cingirei essa coroa. Como vim para o palácio, assim sairei dele.
E despediu-os a todos, excepto um pajem que ele escoÂlhera para companheiro e que era apenas um ano mais noÂvo. Depois de se ter banhado em água lÃmpida, abriu uma arca e tirou dela a túnica de couro e o capote grosseiro de pele de cabra, traje que usara quando guardava rebanhos nas colinas. Vestiu aquelas coisas e empunhou o rude caÂjado de pastor.
O pajem esbugalhou os olhos azuis e disse-lhe, sorrindo: - Senhor, tendes o vestido e o ceptro, mas onde está a coroa?
Então o reizinho cortou um ramo de roseira-brava que subia até à varanda, enrolou-o e pô-lo na cabeça, obserÂvando:
- Coroa também já tenho.
Neste preparo saiu do quarto e passou no vestÃbulo de honra, onde o esperavam os fidalgos, que se divertiram com o espectáculo, comentando um deles:
- Senhor, o povo aguarda o seu rei. Vós mostrais-lhes um mendigo.
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Outro indignou-se e declarou:
- Este rapaz enche de opróbrio o nosso paÃs. Acho-o indigno de ser monarca.
Ele, porém, nada lhes respondeu e seguiu avante. DesÂceu a escadaria de pórfiro, transpôs o portão de bronze, montou no seu cavalo e dirigiu-se à Catedral. Atrás corria o pajem favorito.
O povo ria, dizendo:
- É o bobo de el-rei.
O rapazinho puxou as rédeas e declarou:
- Sou o próprio rei.
Em seguida contou os três sonhos que tivera.
Saiu nesse momento um homem do meio da multidão e falou-lhe severamente:
- Senhor, não sabeis que a existência dos pobres deÂpende do luxo dos ricos? A vossa pompa alimenta-nos, os vossos vÃcios dão-nos saúde. É duro trabalhar para um paÂtrão, mas não ter patrão é mais duro ainda. Pensais que os corvos nos hão-de nutrir? Que remédio tendes para estas coisas? Direis ao que compra: «o preço é este» e o mesmo imporeis ao vendedor? Não creio. Voltai, portanto, ao PaÂço, vesti a vossa púrpura e as vossas cambraias finas. Que vos importam a nossa condição e os nossos sofrimentos?
- Os ricos e os pobres não são irmãos? â" perguntoi o rei.
- São - respondeu o homem - e o nome do irmão riÂco é Caim.
E os olhos do rapazinho encheram-se de lágrimas e ele continuou a galopar através dos murmúrios do povo. O pajem atemorizou-se e abandonou-o.
Quando chegou ao adro da Catedral, os soldados erÂgueram os chuços e disseram:
- Que quereis aqui? Por esta porta só o rei é que entra.
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Ruborizou-se-lhe a face de cólera e replicou:
- O rei sou eu.
E, afastando os chuços, entrou. Vendo-o chegar o bispo naquele traje de pastor, levantou-se muito admirado e foi ao seu encontro, exclamando:
- Meu filho, é esse o vestuário dum rei? E com que coÂroa vos hei-de coroar, e que ceptro vos porei na mão? EsÂte dia devia ser de júbilo para vós, e não de vergonha.
- Há-de a Alegria usar o que a Dor fabricou? - reÂtorquiu o rei.
E contou-lhe os três sonhos que tivera.
Depois de o bispo haver escutado, franziu o sobrolho e respondeu:
- Meu filho, sou um velho, já no inverno dos meus dias, e sei que neste vasto mundo se fazem muitas coisas nocivas. Das montanhas descem ladrões ferozes para rouÂbar crianças, que vão vender aos mouros. Os leões espeÂram as caravanas e devoram os camelos, o javali desarreiÂga o trigo do vale, as raposas roem as vinhas nas encostas, os piratas devastam o litoral e incendeiam os barcos dos pescadores, depois de lhes tirarem as redes. Os leprosos vivem nas lagoas salinas, têm casas de junco e ninguém se lhes pode aproximar; os mendigos vagueiam pelas cidades e comem com os cães. Podeis impedir que tudo isto aconÂteça? Quereis deitar o lázaro na vossa cama e sentar o peÂdinte à vossa mesa? Cumprirá o leão as vossas ordens, obedecer-vos-á o javali? Aquele que fez a miséria não seÂrá mais sábio que vós? Não vos louvo pela vossa acção, e mando-vos que volteis ao Paço; comporeis um rosto aleÂgre, vestireis os trajes reais, e eu vos cingirei a coroa de oiÂro e vos colocarei na mão o ceptro de pérolas. E quanto aos vossos sonhos, não penseis mais neles. O peso deste mundo é demasiadamente grande para que um só homem
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o suporte, e as tristezas do mundo excessivamente pesadas para que as sofra um só coração.
- Dizeis isso nesta casa? - redarguiu o antigo pastor. E, ultrapassando o prelado, subiu os degraus do altar e permaneceu diante da imagem de Cristo.
Estava diante da imagem de Cristo, e tinha à direita e à esquerda os maravilhosos vasos de oiro, o cálice de vinho e a galheta com os santos óleos. Ajoelhou perante aquela imagem, enquanto os cÃrios enormes ardiam esplendoroÂsamente junto do sacrário engastado de jóias e o fumo do incenso subia em volutas azuis pela abóbada. Inclinou a cabeça em oração, e os padres afastaram-se do altar, enÂvoltos nas suas capas rÃgidas de asperges.
E, de súbito, chegou da rua o rumor dum tumulto; os nobres entraram no templo, de espadas desembainhadas, plumas ondulantes e escudos de aço brunido.
- Onde está o sonhador de sonhos? - indagaram. ÂOnde está esse rei que se veste de pedinte, esse rapaz que lança a humilhação no paÃs? Havemos de o matar, pois não é digno de reinar sobre nós!
De novo o reizinho baixou a cabeça e orou, e, quando acabou a sua oração, levantou-se e mirou-os com tristeza, circunvagando a vista.
E então, pelos vitrais das ogivas jorrou sobre ele a luz do Sol, e os raios luminosos teceram-lhe em redor um vesÂtido mais belo do que esse que fora talhado para seu deÂleite. O ramo seco floresceu e encheu-lhe a cabeça de roÂsas mais rubras do que rubis. Mais brancos do que finas pérolas eram os lÃrios, cujos caules pareciam de prata cinÂtilante. Mais vermelhas do que rubis eram as rosas, cujas folhas se diriam de oiro batido.
Ali ficou ele com traje de rei, e as portas do sacrário abriram-se, e no cristal de mil raios do ostensório brilhou
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uma luz maravilhosa e mÃstica. Ali ficou ele com traje de rei, e a glória de Deus encheu a Catedral, enquanto nos seus nichos os santos pareciam mexer-se. Com traje de rei ali ficou ele diante de todos, e o órgão entoou a sua músiÂca, e os trombeteiros sopraram as suas trombetas e os meÂninos do coro cantaram.
E o povo ajoelhou estarrecido, e os nobres embainhaÂram as espadas e prestaram vassalagem, e o rosto do bispo empalideceu, e as mãos tremeram-lhe.
- Maior do que eu, outro vos coroou - disse, prosternando-se.
E o reizinho desceu do altar-mor e seguiu para o paláÂcio através da multidão. Mas ninguém se atreveu a contemplar-lhe a face, porque a sua face era como a dum anjo.
O ANIVERSÃRIO DA INFANTA
Era o dia do aniversário da infanta: completava doze anos, e o sol brilhava magnÃfico nos jardins do palácio.
Embora ela fosse princesa real e infanta de Espanha, fazia anos apenas uma vez em doze meses, como os filhos dos poÂbres; por isso se tornava deveras importante que em semeÂlhante dia o tempo estivesse muito bom, o que na verdade aconteceu. As altas túlipas raiadas empertigavam-se nos seus caules, lembrando longas filas de soldados, e olhavam com ar de desafio para as rosas, através da relva, como a dizeremÂ-lhes: «Agora já somos tão belas como vocês.» Com pó doiÂrado nas asas, adejavam em torno borboletas cor de púrpuÂra, visitando todas as flores, sem faltar nenhuma. Das fendas dos muros saÃam as sardaniscas, e ficavam a aquecer-se à luz esplendorosa. Com o calor, as romãs estalavam e exibiam os seus corações vermelhos e sangrentos. Até os pálidos limões amarelos, que pendiam em profusão entre os encanastrados carunchosos e ao comprido das arcadas sombrias, pareciam haver tomado da claridade fulva do Sol um tom mais rico e mais intenso. As magnólias desabrochavam as suas flores feitas de camadas de marfim; como grandes globos, e imÂpregnavam a atmosfera dum aroma suave e quente.
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A princesinha andava cá e lá no terraço, com os seus companheiros, e jogava aos esconderelos de roda dos vaÂsos de pedra e das velhas estátuas cobertas de musgo. Noutro dia qualquer só lhe consentiriam que brincasse com as crianças da sua condição, de que resultava entreter-se sempre sozinha; mas o dia de anos era uma exÂcepção, e o rei dera ordem para que ela convidasse os amiÂgos juvenis que fossem do seu gosto, a fim de brincarem todos juntos. Que majestosa graça nesses pequenos espaÂnhóis, eles de chapéu emplumado e capas curtas esvoaÂçantes, elas a segurarem a cauda do vestido de brocado, protegendo os olhos da luz muito viva com enormes leÂques negros e prateados! Mas a infanta era a mais gracioÂsa de todas as crianças, a que estava vestida com maior eleÂgância, à moda um tanto embaraçosa da época. O vestido dela era de cetim pardo, com a saia e as largas mangas tuÂfadas repletas de bordados de prata e o rÃgido corpete guarnecido de pérolas valiosas. Quando dava um passo, surgia-lhe de baixo do vestido o sapatinho de enorme laÂço cor-de-rosa. Deste tom, e também do de pérola, era o vasto leque de gaza; e no cabelo, que lhe emoldurava a faÂcezinha pálida como uma auréola de oiro desmaiado, susÂtinha uma rosa branca e formosÃssima.
Observava-os o rei melancólico, lá duma janela do paÂlácio. Seu mano D. Pedro de Aragão, a quem odiava, perÂmanecia um pouco atrás dele, e o inquisidor-mor de GraÂnada havia-se sentado à sua beira. O rei conservava-se mais triste que de costume, lembrando-se da rainha que lhe parecia ter chegado dias antes da alegre terra de FranÂça e que afinal se estiolara já no sombrio esplendor da corÂte espanhola, morta precisamente seis meses depois do nascimento da filha e antes que houvesse visto as amenÂdoeiras florescer duas vezes no pomar ou colhido o fruto
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do segundo ano da velha e rugosa figueira que avultava no meio do pátio, agora invadido pelas ervas. Tão grande foÂra o seu amor por ela que nem suportara que o túmulo lha escondesse: embalsamara-a um fÃsico mouro que em paga desse serviço salvara a vida, condenada já pelo Santo OfÃÂcio, ao que se dizia, por ser herético e suspeito de praticar as artes mágicas. Agora o corpo da rainha jazia numa urÂna envolta em tapeçarias, na capela de mármore preto do palácio, e tal como os frades a trouxeram doze anos antes, naquele tempestuoso dia de Março. Uma vez por mês o rei, embrulhado na capa negra e de lanterna fosca na mão, ia ajoelhar a seu lado, chamando em voz alta mi reina, mi reina! Ãs vezes, quebrando a rigorosa etiqueta (que em Espanha governa cada acto da vida e até põe limites à dor dum rei) pegava nas lÃvidas mãos cheias de jóias, e, no desÂvario da sua aflição, tentava despertar com beijos loucos a face fria e pintada.
Ao ver a infanta saudando, com infantil gravidade, os cortesãos reunidos, ou rindo, por trás do leque, da feia duquesa de Albuquerque, que sempre a acompanhava, o rei evocou de novo a rainha defunta, como a contemplara a primeira vez no castelo de Fontainebleau, quando ele tiÂnha apenas quinze anos e ela era ainda mais nova. Por esÂsa altura haviam ficado oficialmente noivos, com a bênção do núncio apostólico e em presença do rei de França e de toda a corte. Ele voltara depois para o Escorial, trazendo consigo um anel de cabelo loiro e a recordação de dois láÂbios infantis que se curvavam para lhe beijar a mão, no momento de entrar para a carruagem. Mais tarde seguiraÂ-se o casamento, celebrado à pressa em Burgos, cidadeziÂnha fronteiriça aos dois reinos, e a entrada espectaculosa em Madrid, com a habitual missa cantada na igreja de Atocha e um solenÃssimo auto-de-fé, em que cerca de
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trezentos heréticos, entre os quais muitos ingleses, foram enÂtregues ao braço secular, para serem queimados.
Amara-a, sem dúvida, loucamente, e, na opinião de muitos, em prejuÃzo do seu paÃs, que se batia então com a Inglaterra pela posse do Novo Mundo. A custo permitira que ela se afastasse da sua vista; por ela esquecera, ou paÂrecera esquecer, os mais graves negócios de Estado. E, com aquela terrÃvel cegueira que a Paixão provoca nos que se lhe entregam, não percebera que as complicadas ceriÂmónias com que se supunha cativá-la só serviam para lhe agravar ainda mais a misteriosa doença de que padecia. Quando ela morreu, ele, durante uns tempos, andou coÂmo doido. E decerto que abdicaria, retirando-se para o mosteiro trapista de Granada, se não temesse deixar a inÂfanta à mercê do irmão, cuja crueldade, mesmo em EspaÂnha, era coisa por de mais sabida; até havia quem suspeiÂtasse ser esse homem a causa da morte da rainha, conseÂguida por meio dum par de luvas envenenadas com que D. Pedro a presenteara quando a cunhada fora em visita ao castelo de Aragão. Ainda depois de expirados os três anos de luto oficial, ordenado em todos os domÃnios por um edicto régio, o monarca não tolerava que os ministros lhe falassem de novo matrimónio; ao oferecer-lhe o próprio imperador a mão da encantadora arquiduquesa da BoéÂmia, sua sobrinha, ordenou ele aos embaixadores que inÂformassem o seu soberano que o rei de Espanha estava já casado com a Dor e que, embora fosse uma noiva estéril, lhe tinha mais amor do que à Beleza - resposta que cusÂtou à coroa as ricas provÃncias dos PaÃses Baixos, as quais depressa, a instigação do imperador, se revoltaram sob a chefia de alguns fanáticos da Reforma.
A sua vida inteira de casado, com as alegrias dos priÂmeiros tempos e o desespero do súbito desenlace,
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pareciam agora ressuscitar pelo condão da infanta que brincaÂva no terraço. Tinha toda a bela petulância da rainha, o mesmo modo voluntarioso de agitar a cabeça, a mesma curva orgulhosa da linda boca, o mesmo sorriso encantador - de facto, vrai sourire de France - quando erguia
de vez em quando o olhar para a janela ou estendia a mãoÂzita a beijar aos soberbos fidalgos espanhóis. Mas o riso estridente das crianças dir-se-ia espicaçar os ouvidos do rei e o sol brilhante troçar impiedosamente da sua melancolia; e um cheiro pesado de estranhas drogas, como as que usam os embalsamadores, parecia corromper (ou era imaginação?) a p_reza do ar matutino. Escondeu o rosto nas mãos, e, quando a infanta voltou a olhar para cima, os reposteiros tinham-se fechado e o monarca já não estava ali. Ela então fez um gesto de contrariedade e encolheu os ombros. Achava que o pai a devia ter acompanhado mais tempo, no dia do seu aniversário. Que importavam os esÂtúpidos negócios de Estado? Ou fora à quela soturna caÂpela onde os cÃrios ardiam de contÃnuo e onde nunca lhe permitiam que entrasse? Que disparate, quando o sol esÂtava tão claro e toda a gente se sentia feliz! Além disso, perderia a corrida de touros simulada para a qual já tinha soado a trombeta, não falando do espectáculo de tÃteres e de outras coisas deliciosas. O tio e o inquisidor-mor eram muito mais sensatos: haviam saÃdo para o terraço e dirigiam-lhe amáveis parabéns. A infanta sacudiu a cabeÂça e, tomando D. Pedro pela mão, desceu devagar os deÂgraus que conduziam a uma comprida tenda de seda cor de púrpura, adrede erecta ao fundo do jardim. As outras crianças seguiram-na, observando rigorosamente as precedências: à frente iam as que usavam maior quantidade de apelidos.
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Ao seu encontro veio um cortejo de rapazinhos nobres, graciosamente vestidos de toureiros. O conde de Tierra Nueva, lindo menino dos seus catorze anos, descobrindoÂ-se com o à -vontade dum fidalgo de raça e grande de EsÂpanha, conduziu-a solenemente a uma cadeira pequena, cor de oiro e de marfim, colocada sob um dossel, acima da arena. As crianças agruparam-se à volta, agitando os leÂques espaventosos e falando baixinho umas com as outras, enquanto D. Pedro e o inquisidor-mor se detinham, rinÂdo, à entrada. Até a duquesa (camareira-mor, como lhe chamavam), mulher magra e de feições duras, com golilha amarela, parecia não estar com o seu mau humor habitual: algo de semelhante a um sorriso gelado lhe perpassava peÂla face enrugada e lhe torcia os lábios delgados e exangues.
Que tourada extraordinária! Mais bonita, pensava a inÂfanta, do que essa verdadeira que ela vira em Sevilha, por ocasião da visita que o duque de Parma fizera ao rei. AlÂguns dos rapazes curveteavam em cavalos de pau ricaÂmente ajaezados, brandindo compridas farpas enfeitadas de fitas vistosas; outros iam a pé, agitando capas vermeÂlhas diante do touro e saltando rápidos a barreira quando este os acometia. No que respeitava ao touro, era exactaÂmente como os touros a valer, embora fosse feito de verÂga e duma pele esticada; à s vezes insistia em dar a volta ao redondel, erguido nas pernas traseiras, coisa que um aniÂmal genuÃno jamais se lembraria de fazer. E quanto a lutar, também não pedia meças a ninguém. As crianças excitavam-se tanto que trepavam para cima das bancadas, ondulavam os lenços e repetiam: «Bravo, touro!» tal coÂmo é hábito das pessoas crescidas. Enfim, depois de proÂlongado combate, durante o qual mais dum cavaleiro foi escorneado e desmontado, o moço conde de Tierra NueÂva obrigou o touro a ajoelhar e, obtida autorização da
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infanta para dar o golpe de misericórdia, mergulhou com tal violência a espada de pau no cachaço do animal que a caÂbeça deste se desprendeu e mostrou a face risonha do peÂqueno Lorraine, filho do embaixador francês em Madrid.
Foi então. a arena desembaraçada no meio de muitos aplausos e arrastados os cavalos mortos, do que se encarÂregaram dois pajens mouros vestidos de amarelo e preto. Seguiu-se um curto intervalo, e o mestre francês de ginásÂtica exibiu-se na corda bamba; representou-se depois a tragédia semiclássica Sofonisba, por bonifrates italianos, no palco dum teatrinho expressamente edificado para esÂse fim. Moveram-se tão bem, foram tão naturais os seus gestos, que no final da peça os olhos da infanta estavam húmidos de lágrimas. Houve uma ou outra criança que chorou a valer e só se calou quando ingeriu guloseimas; o próprio inquisidor-mor, comovido, não pôde deixar de dizer a D. Pedro achar intolerável que simples bonecos de madeira e cera colorida, accionados por cordelinhos, fosÂsem tão infelizes e suportassem tão grandes desgraças.
Veio depois um prestidigitador africano. Trazia um cesÂto muito grande coberto com toalha; pô-lo no meio da arena, tirou do turbante uma esquisita flauta de cana e principiou a tocar. Daà a pouco a toalha mexia-se e, conÂforme se tornava mais aguda a música, surgiram duas serÂpentes amarelas e verdes, que espetavam a cabeça cuneiÂforme e se erguiam lentamente, balançando-se a compasÂso como plantas que a água fizesse oscilar num tanque. Os pequenos, contudo, assustaram-se um tanto com esses caÂpelos malhados e essas lÃnguas inquietas, e ficaram mais sossegados quando o prestidigitador conseguiu fazer broÂtar da areia uma laranjeira, que deu belas flores brancas e ostentou frutos verdadeiros; e quando pegou no leque duÂma petiza, filha da marquesa de Las Torres, e o transforÂmou
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num pássaro azul que voou em roda da tenda e se pôs a cantar. Nessa altura a admiração e o entusiasmo das crianças não conheceram limites.
Foi também adorável o minuete, executado pelo grupo de dança, composto de rapazes da Igreja de Nossa SenhoÂra do Pilar. A infanta nunca tinha visto essa maravilhosa ceÂrimónia que todos os anos se realiza em Maio, em frente do altar da Virgem e em seu louvor; de facto, nenhum memÂbro da famÃlia real espanhola frequentava a catedral de SaÂragoça desde que um padre louco, que alguns supuseram a soldo de Isabel de Inglaterra, tentara administrar uma hósÂtia envenenada ao PrÃncipe das Astúrias. Só, pois, de tradiÂção é que ela conhecia a «dança de Nossa Senhora», sem dúvida belÃssimo espectáculo. Os rapazes trajavam antigos fatos da corte, de veludo branco e curiosos tricórnios oriaÂdos de prata, sobrepostos de grandes plumas de avestruz; quando se moviam ao sol, acentuava-se-lhes ainda mais a cor trigueira do rosto e o tom negro dos cabelos compriÂdos no meio da brancura ofuscante do vestido. Os assisÂtentes ficaram encantados com a dignidade grave com que eles avançavam e recuavam, consoante a figuração do estiÂlo, e com a graça complicada dos seus gestos lentos e vénias majestosas. Ao finalizar o número, tiraram à infanta os larÂgos chapéus emplumados, saudação a que ela corresponÂdeu com toda a distinção, fazendo mentalmente voto de mandar um cÃrio enorme para o santuário da Senhora do Pilar, em paga do prazer que ela lhe proporcionara. Avançou então na arena um grupo de vistosos egÃpcios, como eram designados nesse tempo os ciganos; sentandoÂ-se em cÃrculo, de pernas cruzadas, começaram a tanger baixinho as cÃtaras, movendo o corpo em cadência e enÂtoando no mesmo diapasão uma ária embaladora. Ao desÂcobrirem o vulto de D. Pedro, olharam-no de cenho
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carregado, e alguns pareceram amedrontar-se, pois havia poucas semanas que mandara enforcar por feitiçaria dois da sua tribo, na praça de Sevilha; mas a formosa infanta, recostada na cadeira e espreitando por cima do leque com os seus grandes olhos azuis, tranquilizou-os e deu-lhes a certeza de que uma criatura assim tão bela jamais poderia ser cruel fosse para quem fosse. Por isso continuaram a tocar com toda a suavidade, mal aflorando as cordas das cÃtaras com as longas unhas pontiagudas e balanceando a cabeça como se estivessem a cair de sono. De súbito, com um grito tão estridente que todas as crianças se assustaram e D. Pedro apertou na mão o cabo de ágata do seu punhal, ergueram-se num pulo e rodopiaram como loucos em torÂno da arena, batendo os pandeiros e entoando uma canção bárbara de amor na sua linguagem gutural. Depois, a ouÂtro sinal, lançaram-se de novo ao chão e ali ficaram muito quietos, ouvindo-se apenas o tom monótono das cÃtaras a quebrar o silêncio envolvente. Repetiram a cena várias veÂzes até que desapareceram, para voltarem com um ursoÂ-pardo e hirsuto, preso por uma corrente, e dois ou três macaquinhos da Berberia, empoleirados nos ombros. O urso pôs-se de cabeça para baixo e pés no ar, com a maior naturalidade, e os macacos raquÃticos fizeram toda a espéÂcie de gaifonas de sociedade com dois pequenos ciganos, que pareciam ser os donos; lutaram com espadas pequeÂnas, dispararam espingardas, e praticaram exercÃcios miliÂtares com a mesma perfeição que a própria guarda real. O número dos ciganos foi, efectivamente, um êxito.
N o entanto, a parte mais divertida desta festa matinal forneceu-a o anão com a sua dança. Quando ele entrou no redondel, bamboleando-se nas pernas arqueadas e abaÂnando a cabeça disforme, para um lado e outro, as crianÂças soltaram um grito de prazer e a infanta riu tanto que a
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camareira se viu forçada a recordar-lhe que, embora houÂvesse precedentes de princesas espanholas chorarem em público, não havia nenhum de uma filha de rei desatar à s gargalhadas diante dos seus inferiores. O anão, porém, era deveras irresistÃvel; nem mesmo na corte de Espanha, coÂnhecida pela sua paixão do horrÃvel, fora jamais visto um monstrozinho tão extraordinário. Era aquela, na verdade, a sua primeira exibição. Tinham-no descoberto apenas na véspera, quando corria pelo bosque: viram-no dois fidalÂgos que andavam à caça numa zona mais distante do soÂbral que envolve a cidade, e haviam-no trazido para o paÂço, a fim de fazer surpresa à infanta. O pai do monstro, que era um pobre carvoeiro, não pusera dificuldades em se desfazer duma criança tão feia e inútil. Talvez que o mais engraçado nele fosse a completa inconsciência em que vivia quanto ao seu aspecto grotesco. Dir-se-ia até que se considerava feliz, tão boa era a sua disposição. Quando o público infantil se ria, ele ria também com a mesma alegria sincera, e no fim de cada dança cumpriÂmentava um por um com vénias profundas e cómicas, e sorrindo, tal se fosse um simples espectador e não a criaÂturinha disforme que a natureza trocista se comprouvera em engendrar para gáudio dos outros.
Quanto à infanta, deslumbrara-o em toda a linha. Não podia despegar dela os olhos, e só para ela parecia dançar. Terminada a exibição, lembrou-se a pequena que a corte lançara flores a Caffarelli (famoso soprano que o papa enÂviara da sua própria capela, a Madrid, na esperança de cuÂrar a melancolia do rei com a doçura daquela voz) e então, parte por brincadeira, parte para arreliar a duquesa, arranÂcou a bela rosa branca do cabelo e atirou-a, com um sorÂriso adorável, para o lado da arena em que estava o anão. Este apanhou-a, levou a flor aos lábios grossos e pô-la deÂ
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pois ao peito, ao mesmo tempo que ájoelhava em terra e sorria num esgar que lhe arregaçava a boca de orelha a orelha e enchia os olhos dum brilho jubiloso.
Tanto a cena perturbou a gravidade da infanta que esta continuou a rir já muito depois de o anão haver desapareciÂdo, e expressou ao tio o desejo de que o número fosse bisaÂdo. Contudo a camareira, sob o pretexto de que o sol estaÂva muito quente, decidiu ser melhor que Sua Alteza voltasÂse sem demora ao palácio, onde fora preparada em sua honÂra uma festa sumptuosa. Haveria um bolo de anos com as suas iniciais desenhadas a granjeias e um estandarte de praÂta a ondular no topo. Levantou-se, pois, a princesa, com toÂda a dignidade, e, tendo dado ordem para que o anão danÂçasse mais uma vez para ela, depois da sesta, e agradecido ao moço conde de Tierra Nueva a bela recepção que lhe proÂporcionara, retirou-se para os seus aposentos, seguida por todas as crianças na mesma ordem por que haviam entrado.
Quando o anãozinho soube que teria de dançar mais uma vez diante da infanta e por sua ordem expressa, ficou tão orgulhoso que correu para o jardim, beijando a rosa branca em raptos de insensato prazer e fazendo os mais toscos e desgraciosos gestos de alegria.
As flores mostraram-se indignadas com tamanha ousaÂdia: atrever-se a penetrar na sua linda mansão! Ao veremÂ-no pular pelas alamedas, agitando os braços de modo tão ridÃculo, não puderam por mais tempo reprimir os sentiÂmentos que as animavam.
- É realmente feio de mais para se permitir o gosto de brincar onde nós estamos - exclamaram as túlipas.
- Devia beber suco de papoilas e dormir milhares de anos - observaram os lÃrios escarlates. E, de irritados, fiÂcaram ainda mais vermelhos.
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- É um verdadeiro horror! - gritou um cacto. â" É torcido, atarracado, e tem a cabeça em desproporção com as pernas. Dá-me comichões por todo o corpo só de penÂsar nele. Se se aproximar de mim não tenho dúvida em o picar.
- E ostenta um dos meus botões mais formosos Âacudiu a roseira branca. - Eu mesma o dei à infanta esta manhã, como presente de anos, e ele furtou-lho. - E braÂdou três vezes a palavra «ladrão».
Até os gerânios encarnados, que em geral se não dão grandes ares, e que todos sabem como têm muitos parenÂtes pobres, se enroscaram de nojo maIo viram; e quando a violeta modestamente notou que ele, embora feio em exÂtremo, culpa não tinha de o ser, os gerânios retorquiram, com certa razão, que o facto de estar inocente não impliÂcava maior condescendência. De facto, algumas violetas sentiam que a fealdade do anão era quase agressiva e que ele teria mostrado melhor gosto se se apresentasse triste, ou pelo menos pensativo, em vez de saltar alegremente, tomando atitudes disparatadas e impróprias.
Quanto ao girassol, flor notável que tivera a honra de dizer as horas do dia nada menos que ao imperador CarÂlos V, achava-se tão surpreendido com o aparecimento do anãozinho que quase se esqueceu de marcar dois miÂnutos completos com o seu longo ponteiro do caule, e não pôde deixar de referir ao pavão branco (nesse moÂmento a apanhar sol na balaustrada) que toda a gente saÂbia que os filhos dos reis eram reis e os filhos dos carÂvoeiros, carvoeiros; e que era disparate pretender o conÂtrário. Com isto concordou inteiramente o pavão, o qual soltou um guincho de assentimento tão forte, na sua voz alta e áspera, que os peixes doirados, habitadores do tanÂque da fonte fresca, assomaram a cabeça fora de água e
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perguntaram aos enormes tritões de pedra que é que se estava a passar.
As aves, porém, gostavam dele. Tinham-no visto muitas vezes no bosque, dançando como um elfo atrás das folhas redemoinhantes, ou aninhado no côncavo dum velho carÂvalho, a compartilhar com os esquilos o seu quinhão de frutos. Não se importava nada que ele fosse feio, porque também o rouxinol, que tão suavemente cantava à noite nos laranjais, forçando por vezes a Lua a inclinar-se para o ouvir, o rouxinol, enfim, não era nenhuma beldade; além disso o anão fora bondoso para com elas: durante aquele Inverno terrÃvel, quando não havia bagas nas árvores, e a terra era dura como aço, e os lobos desciam até à s portas da cidade em busca de alimento, ele jamais se esquecera das avezinhas, e sempre lhes dera migalhas do seu naco de pão negro e os restos do seu pobre almoço.
Por isso voavam em torno do anão, quase a roçar-lhe a face com as asas e palrando umas com as outras. Ele ficaÂva tão contente que não resistia a mostrar-lhes a linda roÂsa branca e a dizer-lhes que a princesa lha dera em prova do seu amor. Não percebiam patavina do que esse ente humano contava, mas isso não tinha importância, e puÂnham então a cabecinha de lado, com ar sisudo, o que é o mesmo que entender as coisas e por sinal muito mais fácil.
Os lagartos também simpatizavam com ele e, quando o viam cansado de correr e estirado no chão a repousar, brincavam por sua vez trepando-lhe pelo corpo, na ideia de o divertirem a seu modo: «Nem todos podem ser tão belos como um lagarto», diziam lá consigo. «Seria esperar o impossÃvel. E, embora custe a acreditar, este anãozinho não é tão feio como parece: basta fechar-se os olhos e olhar para outro lado...» Filósofos por natureza, os lagarÂtos
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à s vezes ficam horas e horas a meditar, quando o temÂpo está de chuva e eles não podem sair.
As flores, contudo, aborreciam-se bastante com o proÂcedimento destes bichos e também com o das aves. «Só conseguem demonstrar», murmuravam, «a vulgaridade das corridas e dos voos repetidos. Os seres bem-educados conservam-se, como nós, sempre no mesmo lugar. Nunca ninguém nos viu aos pulos nos passeios ou a galopar doiÂdamente pela relva atrás das borboletas. Quando necessiÂtamos de mudança de ares, chamamos o jardineiro e ele leva-nos para outro alegrete. Assim é que é digno, e assim se deve fazer. As aves e os lagartos não têm a noção do sossego e, a falar verdade, aquelas nem sequer possuem morada fixa. São simples vagabundas, como os ciganos, e como tal devem ser tratadas.» De modo que as flores erÂgueram o nariz com ar altivo, e se regozijaram ao ver daÃa pouco o anão levantar-se e dirigir-se, através do terraço, para o palácio real.
- Deviam conservá-lo dentro de casa para o resto da viÂda - declararam. - Reparem naquela giba e naquelas perÂnas tortas! - E, dizendo isto, mal podiam conter o riso.
Mas o anãozinho ignorava tudo isto. Adorava os pássaÂros e os lagartos e achava que as flores eram as coisas mais extraordinárias do mundo, exceptuando, já se sabe, a inÂfanta: essa, afinal, dera-lhe uma rosa lindÃssima e parecia amá-lo, no que se diferençava grandemente de todos os mais. Gostaria tanto de ter voltado para ela! Colocá-lo-ia decerto à sua mão direita, sorrir-lhe-ia, e ele jamais sairia do seu lado. Torná-la-ia sua companheira de folguedos, ensinar-lhe-ia toda a espécie de jogos engraçados. Se bem que jamais houvesse estado num palácio, sabia muitas coiÂsas surpreendentes: fazia gaiolas pequeninas de cana, para as cigarras cantarem lá dentro, e transformava um galho
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ele bambu em flauta, dessas cuja música Pã se recreia a ouÂvir. Conhecia o canto de todas as aves, era capaz de chaÂfJ1ar os estorninhos do cimo das ramadas ou as garças da fJ1argem das lagoas. Conhecia o rastro de cada animal e era capaz de seguir a lebre pelas suas pegadas leves ou o javaÂli pelas folhas pisadas do chão. Todas as danças bárbaras conhecia, a dança louca, em trajes rubros, de Outono, a dança ligeira, de sandálias azuis, sobre as searas, a dança das grinaldas cor de neve, do Inverno, a dança das flores, através dos pomares, da Primavera. Sabia onde os pombos-bravos fazem ninho; duma vez, quando certo criador de aves apanhara um casal, ele próprio fora buscar OS filhotes e arranjara-lhes um pombal pequenino no cônÂcavo dum ulmeiro. Ficaram muito mansos e costumavam vir comer-lhe à mão, todas as manhãs. A infanta havia de gostar desses borrachinhos, e dos coelhos que correm enÂtre os fetos altos, e dos gaios de penas metálicas e bico preto, e dos ouriços-cacheiros que se enroscam em bola coberta de espinhos, e das enormes e pacatas tartarugas que se arrastam lentamente, meneando a cabeça e mordisÂcando as folhas tenras. Devia vir, sim, para a floresta, brinÂcar com ele. O anão ceder-lhe-ia a sua própria cama e fiÂcaria a vigiá-la de fora da janela até romper a manhã, para que não lhe fizesse mal o gado graúdo nem se aproximasÂsem da cabana os lobos esfaimados. E, quando rompesse a alvorada, bater-lhe-ia ao postigo para a despertar e irem ambos divertir-se o dia inteiro. Na realidade, a floresta não era um lugar muito ermo. Ãs vezes passava um bispo montado na sua mula branca, a ler um livro iluminado; outras, vinham falcoeiros de boné de veludo verde e gibão de camurça, segurando no punho os falcões carapuçados. Quando chegava o tempo das vindimas, viam-se homens de pés e mãos tintos de roxo, coroados de hera, a Â
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transportar odres gotejantes; e os carvoeiros sentavam-se à noiÂte de roda das altas fogueiras, observando as achas secas a carbonizarem-se pouco a pouco, e a assar castanhas nas brasas. Para confraternizar com eles, saÃam ladrões das caÂvernas. Em certo momento, vira uma linda procissão serpenteando na longa estrada poeirenta de Toledo; iam adiante os frades a entoar cânticos suaves e a alçar flâmuÂlas vistosas e cruzes de oiro, em seguida os soldados de arÂmaduras de prata, mosquetes e lanças, e no meio três hoÂmens descalços, com esquisitos fatos amarelos, como saÂcos pintados com figuras estranhas, e de cÃrios acesos na mão. Havia, pois, muito que ver na floresta; e, quando ela estivesse fatigada, ele descobriria um banco de musgo maÂcio, ou levá-la-ia nos braços, porque era forte, se bem que soubesse não possuir grande estatura. Far-lhe-ia ainda um colar de bagas vermelhas de norça, que seriam decerto tão belas como as contas brancas que ela usava no vestido e das quais poderia despojar-se para trocar por outras noÂvas. Trar-lhe-ia também cálices de bolota, e anémonas orÂvalhadas, e pirilampos que seriam como estrelas no seu caÂbelo de oiro pálido.
Mas onde estava a infanta? Perguntou à rosa que tinha na mão e ficou sem resposta. O palácio dir-se-ia adormeÂcido de lés a lés; nos vãos em que não tinham fechado os taipais, pendiam grossos reposteiros para deter o fulgor da luz. Vagueou então por acolá, em busca dum lugar por onde pudesse introduzir-se, até que avistou uma portinha de serviço que haviam deixado aberta. Insinuou-se por ela e viu-se num átrio esplêndido, mais vasto, pensou, que o próprio bosque e mais cheio de reflexos oirescentes. O soalho era feito de largas lajes coloridas, que compunham um desenho geométrico. A infanta, porém, não se enconÂtrava ali e só algumas soberbas estátuas brancas o olhavam
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do seu pedestal de jaspe, com tristes olhos vazios e estraÂnhos lábios sorridentes.
No extremo do átrio pendia uma cortina de veludo preÂto, ricamente bordada; polvilhada de sóis e de estrelas, emblemas favoritos do rei, recortados na cor que ele mais amava. Quem sabe se ela se escondera aà atrás? Fosse coÂmo fosse, espreitaria.
Aproximou-se devagar e afastou a cortina. Não estava lá. Havia ainda outra sala, talvez mais bonita do que essa donde acabava de sair. Das paredes desciam panos de rás, que representavam em tons verdes uma cena de caça. NaÂquela composição, feita por artistas flamengos, haviam despendido sete anos de labor: fora ali outrora o quarto de João, o Louco, esse rei que tanto gostava de caçar que muitas vezes, no seu delÃrio, tentara montar os cavalos foÂgosos da tapeçaria, e abater o veado sobre que saltavam os galgos enormes, e fazer soar a trompa, e erguer nas mãos a adaga... Servia agora de sala do Conselho de Estado: ao centro, avultava a mesa com as pastas encarnadas dos seÂcretários, nas quais se viam gravados os lises de oiro de Espanha e as armas e emblemas da casa de Habsburgo.
O lhou em volta o anãozinho, espantado e receoso de avançar. Os estranhos cavaleiros silenciosos, que tão veloÂzes galopavam pelos atalhos da mata, traziam-lhe à meÂmória os fantasmas terrÃveis de que ouvira os carvoeiros falar: homens que só caçavam de noite e que, se encontraÂvam algum ser humano, o transformavam em corça e a matavam. Recordou-se, porém, da linda princesa e encheu-se de coragem. Era provável que estivesse na sala seguinte.
Correu sobre as fofas alcatifas mouriscas e abriu a porÂta. Não, também ali não estava. A sala mostrou-se-lhe inÂteiramente deserta. Era a sala do trono, que servia para
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receber embaixadores estrangeiros, quando o rei (o que já raras vezes acontecia) se dignava conceder audiências parÂticulares; a mesma que, muitos anos antes, acolhera os emissários da Inglaterra quando foram tratar do casamenÂto da sua rainha, então uma das soberanas católicas da EuÂropa, com o filho mais velho do imperador. As colgaduras eram de couro dourado de Córdova, e um pesado lustre da mesma cor pendia do tecto branco e negro, ostentando trezentas velas de cera. Por baixo do amplo dossel de teÂcido dourado, no qual estavam bordados a aljôfar os leões e os castelos do reino, ficava o trono, coberto por um paÂno rico de veludo preto guarnecido de lises dourados e primorosamente franjado de prata e pérolas. No segundo degrau do trono estava colocado o genuflexório da infanÂta, com a sua almofada de tecido argênteo, e mais abaixo, fora do âmbito do dossel, a cadeira para o núncio apostóÂlico, a única pessoa que podia sentar-se em presença do rei nas cerimónias públicas, e cujo barrete cardinalÃcio, com as borlas escarlates, se via defronte, num tamborete de púrpura. Na parede, em frente do trono, estadeava um reÂtrato de Carlos V em tamanho natural, de traje de caçador, acompanhado dum cão enorme; havia ainda um quadro que representava Filipe II a receber vassalagem dos HoÂlandeses, mas este ocupava o meio da outra parede. Entre as janelas, uma escrivaninha de ébano embutida de marÂfim, na qual as figuras da Dança da Morte, de Holbein, tiÂnham sido gravadas, dizia-se, pela mão do próprio artista.
O anãozinho, porém, pouco se importava com estes esÂplendores. Não teria dado a sua rosa por todas as pérolas do dossel, nem uma das pétalas pelo próprio trono. O que queria era ver a princesa antes que ela descesse à tenda e pedir-lhe que viesse com ele quando a dança terminasse. Ali, no palácio, o ar era denso e pesado, mas na floresta o
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vento soprava livremente e os raios solares, com mãos de oiro trémulas, afastavam as folhas para os lados. Lá, havia flores, talvez não tão imponentes como as dos jardins do Paço, porém mais docemente perfumadas: jacintos, na Primavera, que inundavam de púrpura os frescos vales e as colinas verdejantes, prÃmulas amarelas que se aninhaÂvam em grupos junto à s raÃzes ásperas dos carvalhos; celiÂdónias brancas, campainhas azuis e Ãris douradas e de tons de lilás. Havia flores alvadias nas aveleiras, as digitais doÂbravam ao peso dos seus alvéolos frequentados pelas abeÂlhas. O castanheiro ostentava as suas estrelas brancas e o espinheiro as suas luas pálidas. Ah, se a encontrasse, sem dúvida que ela viria! Viria com ele à floresta imaculada e, para a entreter, o anãozinho dançaria o dia inteiro. A esta ideia dardejou-lhe um sorriso nos olhos - e então passou à câmara imediata.
Era esta, de todas as salas, a mais bela e a mais resplanÂdecente. As paredes estavam cobertas de damasco cor-deÂ-rosa, historiado de pássaros e melindrosas flores de praÂta. De prata maciça era a mobÃlia, com festões, grinaldas, Cupidos esvoaçantes. Em frente das vastas lareiras, dois guarda-fogos bordados com papagaios e pavões; e o chão, de ónix verde-mar, dir-se-ia perder-se na distância. ConÂtudo, ele não estava sozinho. De pé, enquadrado numa porta do extremo da sala, viu uma figura pequenina que o observava. Tremeu-lhe o coração, dos lábios soltou-se-Ihe um grito de alegria, e ei-lo a caminhar para lá. Conforme avançava, viu a figurinha vir também ao seu encontro.
A infanta? Não, era um monstro, o mais grotesco de toÂdos os monstros. Em vez de talhada como as outras pesÂsoas, esta apresentava-se corcunda, de pernas tortas, com uma cabeça enorme e pendente e uma densa crina sombria. O anãozinho carregou o cenho, e o monstro
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tamÂbém. Riu, e o outro riu com ele, e afastou as mãos para o lado, exactamente como ele fazia. Baixou a cabeça numa vénia trocista, e viu retribuÃdo o cumprimento. AdiantouÂ-se e o imitador veio ao seu encontro, arremedando-lhe cada passo e parando quando o anão parava. Este gritou, divertido, correu para a frente, estendeu a mão, e a mão do monstro tocou a sua, fria como gelo. Teve medo, afastou os dedos, e os outros dedos afastaram-se. Tentou depois agarrá-los, mas impedia-o qualquer coisa ao mesmo temÂpo macia e dura. A face do monstro estava agora muito perto da sua e parecia também aterrorizada. Sacudiu o caÂbelo, que lhe caÃa nos olhos, e o outro fez o mesmo. Bateu-lhe, e ele respondeu, pancada por pancada. BoceÂjou, e viu a carantonha abrir a porta. Recuou, e o monstro recuou também.
Que seria aquilo? Pensou um instante e olhou derredor para o resto da sala. Era esquisito, mas a verdade é que caÂda objecto se lhe afigurou ter o seu duplo nessa parede inÂvisÃvel, duma limpidez de água. Qualquer quadro mostraÂva além o seu igual, qualquer sofá se repetia exactamente lá defronte. O Fauno adormecido, que jazia no vão da paÂrede, junto à porta, era irmão gémeo de outro que dormia também, e a Vénus argêntea, banhada agora pela luz do Sol, estendia os braços a uma Vénus tão encantadora coÂmo ela.
Seria o eco? Falara alto, certa vez no vale, e o eco repetira-lhe a fala, palavra por palavra. Poderia troçar dos olhos, como troçava da voz? Saberia fazer um mundo de imitação, em tudo semelhante ao verdadeiro? Teriam as sombras das coisas vida, cor e movimento? Admitir-se-ia que... ?
Estremeceu, e, tirando do peito a linda rosa branca, voltou-se e beijou-a. O monstro possuÃa também a sua roÂsa,
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igual em todas as pétalas; beijou-a com beijos iguais e apertou-a ao coração em gestos horripilantes.
Quando nele a verdade alvoreceu, soltou o anão um griÂto de desespero, selvático, e tombou por terra, a soluçar. Era ele, pois, o contrafeito, o corcunda, o grotesco, o risÃÂvel! Era o próprio monstro, de quem riam todas as crianças, e até a princesinha; ela, que o anão julgou que o amava, apeÂnas escarnecera da sua fealdade, dos seus membros disforÂmes. Por que o não haviam deixado na floresta, onde não existiam espelhos que lhe dissessem quanto era hediondo? Por que não o matara o pai, em vez de o vender e o expor à humilhação? Pelas faces desciam-lhe lágrimas escaldantes. Desfez em pedaços a rosa branca, e o monstro do espelho procedeu do mesmo modo, atirando ao ar as pétalas delicaÂdas. Rojou-se no chão, e, quando olhou para o seu duplo, este observava-o com uma expressão dolorosa. Afastou-se, com medo de o ver, e tapou os olhos com as mãos; rastejou, como um animal ferido, para o escuro, e ali ficou a gemer.
Neste comenos entrou a infanta com os seus compaÂnheiros, vindo pela janela rasgada; quando viram o feio anãozinho deitado, a bater no pavimento com os punhos cerrados, num exagero espectaculoso, soltaram grandes risadas e apinharam-se à volta dele, a observá-lo.
- Quando dança é muito engraçado - disse a infanta -, mas a representar não é menos. Quase tão bom como os bonifrates, só com a diferença de não ser tão natural.
Falando assim, agitou o vasto leque e aplaudiu.
Mas o anãozinho nunca ergueu a vista, e os soluços foram-se-lhe tornando cada vez mais fracos. De súbito, abriu a boca para respirar, levou a mão ao peito, e caiu ouÂtra vez para ficar completamente imóvel.
- Muito bem! - exclamou a infanta, depois dum insÂtante de silêncio. - Agora podes dançar.
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- Pois é claro - volveram as outras crianças. - É alÂtura de ele se levantar e dançar. Tem a habilidade dum maÂcaquinho, e ainda nos dá mais vontade de rir do que os verdadeiros macacos!
O anão, contudo, permaneceu imóvel.
A infanta bateu o pé e chamou pelo tio, que passava no terraço com o camareiro-mor, lendo cartas acabadas de chegar do México, onde fora recentemente instituÃdo o tribunal do Santo OfÃcio.
- O meu anãozinho - disse a pequena - está de tromÂbas. - Mandai-o que se levante e que dance para eu ver.
Os dois homens sorriram um para o outro e entraram na sala. D. Pedro curvou-se e bateu na cara do anão, com a luva bordada.
- Tens de dançar, petit monstre - ordenou. - A inÂfanta de Espanha e das Ãndias quer que a distraiam.
Mas o anãozinho não se mexeu.
- Dum chicote é que ele precisa - murmurou D. PeÂdro, enfadado, voltando para o terraço.
O camareiro-mor tomou, porém, um ar grave e, ajoeÂlhando ao lado do bobo, pôs-lhe a mão sobre o peito. EsÂteve assim um momento, depois encolheu os ombros, ergueu-se e, fazendo uma profunda vénia à infanta, declaÂrou:
- Mi bella Princesa, o vosso anão, tão divertido, não voltará a dançar. Tenho pena, porque é tão feio que talvez fizesse o rei sorrir.
- E por que é que não volta a dançar? - inquiriu a inÂfanta, rindo.
- Porque o coração se lhe quebrou - respondeu o camareiro.
A infanta franziu as sobrancelhas, e os lábios de pétala de rosa encolheram-se num movimento desdenhoso.
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- Daqui por diante - disse ela - quero que os meus bobos não tenham coração.
E foi a correr para o jardim.
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O PESCADOR E A ALMA
Todas as noites ia para o mar o moço pescador, e lançaÂva a rede à água.
Quando soprava o terral, não apanhava nada, ou muito pouco, pois era um vento áspero, de asas negras, a cujo encontro se erguiam revoltas ondas. Mas se a brisa vinha na direcção da costa, o peixe subia das profundezas, encaminhava-se para a rede, e ele levava-o depois ao merÂcado, onde o vendia muito bem.
Todas as noites ia para o mar, e numa delas a rede ficou tão pesada que ele a custo a içou para bordo. Rindo, disse lá consigo:
- Não há dúvida que apanhei todos os peixes que haÂvia, ou então foi algum monstro que há-de maravilhar as gentes, ou qualquer ser horrÃvel que a nossa rainha deseÂjará ver com certeza.
E, empregando quanta força tinha, puxou as cordas grossas até as veias se lhe marcarem nos braços, como se fossem linhas de esmalte azul à roda dum vaso de bronze. Puxou em seguida as cordas delgadas, e cada vez se aproximava o cÃrculo das boiazinhas de cortiça. Por fim surgiu a rede à tona de água.
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Contudo, não havia lá nenhum peixe, nem monstro, nem ente horrÃvel, mas apenas uma sereiazinha adormecida.
Eram os seus cabelos como um velo de oiro húmido, e cada um deles, de per si, um fio de oiro numa taça de crisÂtal. O corpo branco parecia talhado em marfim e a cauda dir-se-ia feita de madrepérola e de prata; em volta desta enrolavam-se algas verdes. Semelhantes a conchas mariÂnhas eram as suas orelhas, e os lábios faziam pensar no coÂral. As ondas frias batiam-lhe nos frios seios, e sobre as pálpebras cintilava o sal. Tão formosa se lhe afigurou, que o moço pescador se sentiu tomado da maior admiração; estendeu mais o braço, puxou o resto da rede e, debruçanÂdo-se na borda do barco, apertou a sereia ao peito. Ao tocar-lhe, ouviu que ela dava um grito, tal como uma gaiÂvota assustada; acordou, fitou-o cheia de medo com os seus olhos cor de lilás e fez o possÃvel por lhe escapar. Mas ele apertou-a muito bem e não a deixou fugir.
Ao ver que estava prisioneira, ela começou a chorar e disse ao homem:
- Rogo-te que me deixes partir, porque sou filha única dum rei, e meu pai é velho e sozinho.
Ao que o pescador retorquiu:
- Não to consinto sem que me prometas vir cantar paÂra mim sempre que eu te chame, pois os peixes adoram ouvir canções do mar e eu assim poderei encher a minha rede.
- Deixas-me realmente partir, se eu fizer essa proÂmessa?
- Afianço-te que sim.
A sereia prometeu então o que ele queria, e fez o juraÂmento solene dos da sua raça. Abriu o pescador os braços e logo ela mergulhou no mar, trémula ainda de susto.
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Todas as noites o moço pescador saÃa para o mar, chaÂmava a sereia e esta emergia das águas e punha-se a cantar. Derredor dela nadavam golfinhos. Voltejavam-lhe gaivoÂtas sobre a cabeça.
A sereia entoava uma canção surpreendente, canção que se referia à gente do mar que conduz os seus rebanhos de caverna em caverna e leva aos ombros os animais noviÂnhos; aos tritões que têm compridas barbas verdes, e peiÂtos cabeludos, e sopram os búzios quando passa o rei; ao palácio real que é todo feito de âmbar, coberto de lÃmpida esmeralda e pavimentado de pérolas fulgentes; aos jardins marinhos onde o dia inteiro ondulam grandes leques de filigrana de coral, e os peixes se arremessam como pássaÂros de prata, e as anémonas se prendem à s rochas, e cresÂcem outras flores na areia fulva e listada. Cantava acerca das enormes baleias que descem dos mares setentrionais e trazem pingentes de gelo nas barbatanas; das sereias que contam extraordinárias coisas, obrigando os mercadores a taparem com cera os ouvidos, receosos de as escutarem e cederem à tentação de cair à água, afogando-se; das galeÂras submersas e dos seus altos mastros, dos marinheiros enregelados e presos ao cordame, e das cavalas que entram e saem pelas vigias abertas; das pequeninas percebas que são grandes viajantes, se agarram à s quilhas dos navios e dão a volta ao mundo; dos polvos que vivem junto das esÂcarpas, estendem os seus longos tentáculos negros e fazem noite quando lhes convém. Cantava a respeito do caracol do mar, que tem um barco próprio, cavado numa opala, com uma vela de seda; dos tritões afortunados que tocam harpa e conseguem adormecer os monstros fabulosos; das criancinhas que apanham os viscosos marsuÃnos e os caÂvalgam brincando; das sereias que jazem reclinadas na esÂpuma branca e estendem os braços aos marujos; das focas
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de colmilhos curvos e dos cavalos-marinhos de crinas fluÂtuantes.
E, quando ela cantava, todos os atuns subiam do fundo para a escutar, e o moço pescador lançava a rede, com que apanhava uns, e apanhava outros com o arpão. Ao ver o barco bem cheio, a sereia mergulhava no mar, sorrindo para o homem.
Não se aproximava, todavia, o bastante para que ele lhe pudesse tocar. Por mais que ouvisse chamar e suplicar, teiÂmava sempre em se manter afastada. Se o rapaz diligenciaÂva agarrá-la, a sereia desaparecia e ele não a tornava a ver naquela noite. De cada vez o som dessa voz parecia mais doce aos ouvidos do pescador, tão doce que este se esqueÂcia da rede e do seu ardil e não prestava atenção ao que faÂzia. Passavam aos cardumes os atuns de barbatanas rubras e de olhos de oiro salientes, mas ele parece que os não via. O arpão ficava inútil à sua beira, e vazios os cestos de viÂme encanastrado. De lábios entreabertos, olhar abstracto, permanecia indolente no barco, e escutava, escutava até que o envolviam as neblinas do mar e a lua errante lhe manchava de prata as pernas e os braços morenos.
Certa noite chamou-a e disse-lhe:
- Sereiazinha, sereiazinha, eu amo-te. Aceita-me para teu marido.
Ela, porém, abanou a cabeça.
- A tua alma é humana - respondeu. - Se te desfiÂzesses dela, então eu poderia amar-te.
«De que me serve a alma?» pensou o pescador. «Não a vejo, não a sinto, não a conheço. Posso à vontade desfaÂzer-me dela, e a minha ventura será grande.» Escapou-seÂ-lhe dos lábios um grito de alegria e, pondo-se de pé no barco, estendeu os braços à sereia. - Mandarei embora a minha alma - declarou-lhe. - Serás minha noiva e eu
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serei teu noivo. Juntos viveremos nas profundezas do mar. Mostrar-me-ás tudo o que tens cantado, eu farei tudo o que quiseres, e as nossas vidas jamais se apartarão.
A sereiazinha riu de prazer, escondendo a cara nas mãos.
- Mas como hei-de mandar a alma embora? - perÂguntou o pescador. - Diz-me o que devo fazer, e eu imeÂdiatamente o farei.
- Ai de mim! - retorquiu a sereia. - Os habitantes do mar não têm alma.
E, olhando-o ansiosa, desceu ao fundo do abismo.
Na manhã seguinte, antes que o Sol estivesse um palmo acima do monte, o moço pescador foi a casa do cura e baÂteu à porta três vezes. O noviço espreitou pelo postigo e, vendo quem era, deixou cair o ferrolho e disse:
- Entra.
O rapaz entrou, ajoelhou na esteira aromática que coÂbria o soalho e falou em voz alta ao sacerdote que estava a ler a BÃblia.
- Meu reverendo, apaixonei-me por uma criatura do mar, mas a alma impede que eu realize o meu desejo. Dizei-me como posso desfazer-me da alma, pois a verdaÂde é que não preciso dela. Que valor tem para mim? Não a vejo, não a sinto, não a conheço.
O cura bateu no peito e respondeu:
- Meu Deus, meu Deus! Enlouqueceste ou ingeriste alguma erva peçonhenta? A alma é a parte mais nobre do homem e foi-nos dada pelo Criador para que a usássemos nobremente. Não há nada mais precioso do que a alma humana, nem coisa terrena que se lhe possa comparar. VaÂle todo o oiro que há no mundo e é mais considerável do que as jóias dos reis. Esquece, pois, meu filho, esse amor
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que é um pecado sem perdão. Quanto aos habitantes do mar, esses estão perdidos, e da mesma forma estão os que têm comércio com eles. São como os animais do campo que não distinguem o bem do mal. Não foi por eles que Nosso Senhor morreu.
Encheram-se de lágrimas os olhos do moço pescador quando ouviu as palavras amargas do sacerdote. E, levantando-se, redarguiu:
- Os faunos, meu reverendo, vivem nos bosques e são felizes; nas rochas estão os tritões, com as suas harpas de oiro rubro. Deixai-me ser como eles, rogo-vos, porque os meus dias são como os dias das flores. E quanto à minha alma, de que me serve, se se interpõe entre mim e aquela que eu amo?
- O amor carnal é vil! - bradou o cura, irritado. â" E vis e maus são os entes pagãos que Deus permite que vaÂgueiem pelo seu reino. Malditos os faunos do bosque e malditas as cantoras do mar! Eu ouvi-as de noite e elas pretenderam distrair-me das minhas orações. Batem-me à janela e riem. Murmuram-me aos ouvidos a história das suas perigosas alegrias. Tentam-me, e escarnecem-me quando quero rezar, vociferando insolências. Estão perdiÂdas, repito. Para esses seres não há Céu nem Inferno, em parte nenhuma louvarão o nome de Deus.
- Não sabeis o que estais a dizer, meu reverendo! Âexclamou o moço pescador. - Apanhei uma vez, na rede, a filha dum rei. É mais bela do que a estrela de alva, mais branca do que a Lua. Pelo seu corpo eu daria a minha alÂma e pelo seu amor renunciaria ao Céu. Dizei-me o que vos pergunto e deixai-me ir em paz.
- Fora! Fora! - gritou o cura. - A tua amante está perdida e tu perder-te-ás com ela. - E, sem lhe dar a bênÂção, expulsou -o de sua casa.
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O moço pescador foi ao mercado, vagarosamente e de cabeça baixa, como esses a quem a dor aflige. E quando os mercadores o viram chegar, cochicharam uns com os ouÂtros e um deles aproximou-se, chamou-o pelo nome e in dagou:
- Que vens vender?
- Vendo a minha alma! - respondeu. - Peço-vos que a compreis, porque estou farto dela. Que utilidade tem para mim? Não a vejo, não a sinto, não a conheço.
Os mercadores, porém, riram-se dele.
- De que nos serviria a alma dum homem? - retorÂquiram. - Não vale um corno furado. Vende-nos antes o teu corpo, como escravo, e nós vestir-te-emos de púrpuÂra, poremos um anel no teu dedo e tu serás o favorito da poderosa rainha. Mas não nos fales da alma, porque é zeÂro para nós e não tem nenhum préstimo para os nossos negócios.
«Estranha coisa esta!», disse o rapaz com os seus botões. «O cura declarou-me que a alma vale todo o oiro da terra e os mercadores afiançam que não vale um corno furado.»
Saiu da praça, desceu à praia e ficou a matutar no que devia fazer.
Ao meio-dia lembrou-se que um dos seus companheiÂros, segador de perrexil, lhe falara duma bruxa nova que morava numa gruta da ponta da baÃa e que era muito peÂrita nas suas feitiçarias. Começou logo a correr para lá, tão ansioso estava de se desembaraçar da alma. Enquanto corÂria pela praia, sobre a areia, seguia-o uma nuvem de pó. Pelo prurido da palma da mão, a bruxa conheceu a sua vinda, e riu, soltando os cabelos ruivos; e, envolta neles, postou-se à entrada da caverna, segurando na mão um raÂmo de cicuta florida.
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- Em que te posso servir? - gritou, quando ele acaÂbou de trepar, ofegante, a escarpa e se curvou à sua frente. - Queres peixe para a tua rede, quando o vento corre fuÂrioso? Possuo uma flauta de cana, e, ao soprar nela, a muÂgem acode à baÃa. Mas isso tem preço, meu lindo rapaz, tem preço. Que desejas afinal? Um temporal que faça naufragar os navios e atire contra a costa as arcas cheias de tesouros? Movo mais tempestades do que o vento, pois sirvo alguém que é mais forte do que ele. Com uma ciranÂda e um balde, sou capaz de mandar as grandes naus para os abismos do oceano. Mas isso tem preço, meu lindo raÂpaz, tem preço. Que queres então? Sei duma flor que nasÂce no vale e ninguém a conhece senão eu. É de pétalas roÂxas, com uma estrela no âmago e de suco alvo como leite. Tocasses tu com essa flor os lábios da rainha e ela seguirÂ-te-ia por toda a terra; levantar-se-ia da cama do rei e por toda a terra te seguiria. Mas tem preço, meu rapaz, tem preço. Que queres de mim? Sei pisar um sapo no almofaÂriz e fazer dele um caldo que se mexe com mão de defunÂto. Deita-o sobre o teu inimigo, quando ele estiver a dorÂmir, e torná-lo-ás em vÃbora negra e a própria mãe o maÂtará. Com uma roda, posso arrancar a Lua do céu, e num cristal fazer-te ver a Morte. Que pretendes? Que pretenÂdes? Diz-me qual é o teu desejo, que eu o satisfaço. E tu me pagarás o preço, meu lindo rapaz!
- O meu desejo é simples - volveu o moço pescador. - No entanto, o cura indignou-se comigo e pôs-me fora de casa. O meu desejo é simples e os mercadores troçaram de mim e recusaram satisfazer-mo. Por isso vim ter conÂvosco, seja qual for o preço que pedirdes e embora vos considerem má.
- Que é que querias, enfim? - perguntou a feiticeira, aproximando-se mais dele.
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- Queria desfazer-me da alma - declarou o pescador. A bruxa empalideceu, teve um arrepio e escondeu o rosto no manto azul.
- TerrÃvel coisa é essa, meu lindo rapaz!
Ele, porém, sacudiu os cabelos castanhos e ondulados e desatou a rir.
- A alma não é nada para mim - exclamou. - Não a vejo, não a sinto, não a conheço.
- Que me darias tu se eu te ensinasse a maneira? - inÂquiriu a bruxa, poisando nele os seus belos olhos.
- Cem peças de ouro, e as minhas redes, e a choça de canas onde vivo, e o barco pintado em que navego. DizeiÂ-me só como hei-de libertar-me da alma, e todas essas coiÂsas serão vossas.
Ela riu-se, em ar de mofa, e borrifou-o com o ramo de cicuta.
- Posso transformar em ouro as folhas do Outono - replicou - e tecer os raios de luar como se fossem fios de prata. Aquele a quem sirvo é mais rico do que todos, toÂdos os reis da Terra e impera sobre os seus domÃnios.
- Que quereis, então, que vos dê - bradou ele -, se o vosso preço não é ouro nem prata?
A bruxa alisou o cabelo com a sua mão branca e magra. Sorrindo, participou-lhe:
- Terias de dançar comigo.
- Só isso? - replicou o rapaz, pondo-se logo de pé.
- Só isso - confirmou ela, e, mais uma vez, lhe sorriu. - Então, ao pôr-do-sol, em qualquer lugar oculto, nós dançaremos juntos - disse ele. - Depois, ensinar-me-ás o que quero saber.
A feiticeira abanou a cabeça.
- Quando for lua cheia, quando for lua cheia - murÂmurou.
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Em seguida, olhando em volta, apurou o ouvido. Do niÂnho levantara-se um pássaro azul, que principiou a piar e a dar voltas sobre os médãos. Pela erva crescida roçaram três aves malhadas, que assobiaram umas à s outras. Não havia mais nenhum som além do das ondas a bater de enÂcontro aos seixos polidos. De modo que a bruxa estendeu a mão, puxou o rapaz para si e chegou-lhe ao ouvido os lábios secos.
- Esta noite - segredou - tens de ir ao cimo do monÂte. É noite sabática e ele há-de vir.
O moço pescador estremeceu e fitou-a. E ela riu, mos trando os dentes alvos.
- Quem é esse de quem falais? - perguntou.
- Não interessa saber. Vai hoje e espera-me debaixo dos ramos da carpa. Se correr para ti um cão preto, bateÂ-lhe com uma vara de salgueiro e ele fugirá. Se um mocho te falar, não lhe respondas. Quando a Lua estiver cheia, dançaremos os dois sobre a erva.
- Mas jurais-me dizer como hei-de libertar-me da alÂma?
Ela saiu para o sol, e nos seus cabelos ruivos brincou o vento.
- Juro-te pelos pés de cabra - retorquiu.
- Sois a melhor das bruxas - exclamou o moço pesÂcador - e eu hei-de dançar convosco esta noite, no alto do monte. Se em vez disso me tivésseis pedido ouro ou prata, eu gostaria muito mais; visto que é esse o vosso preÂço, recebê-lo-eis, pois é coisa pouca.
Tirou-lhe o barrete, baixou a cabeça e voltou apressado para a cidade. Não cabia em si de contente.
A bruxa viu-o partir. Quando o perdeu de vista, entrou na gruta, tirou um espelho da arca de cedro esculpida, colocou-o na moldura, queimou verbena diante dele,
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sobre umas brasas, e espreitou entre as espirais do fumo. DaÃa pouco, desesperada, enclavinhou as mãos.
- Devia ter sido meu - murmurou. - Eu sou tão forÂmosa como a outra.
Naquela noite, quando nasceu a Lua, o moço pescador subiu ao alto do monte e parou debaixo dos ramos duma carpa. Como um broquel de metal polido, o mar redondo jazia-lhe aos pés. As sombras dos barcos de pesca deslizaÂvam na baÃa. Chamou-o pelo seu nome um volumoso moÂcho, de olhos amarelos como enxofre; mas não obteve resÂposta. Correu para ele, rosnando, um cão preto. O pescaÂdor bateu-lhe com uma chibata de salgueiro e o animal fuÂgiu a ganir.
à meia-noite chegaram as feiticeiras, voando pelo ar coÂmo morcegos.
- Olá! - exclamaram, ao poisar no chão. - Há aqui alguém que não conhecemos. - E puseram-se a farejar, tagarelando umas com as outras, e fazendo sinais. A últiÂma que veio foi a bruxa nova, de cabelo ruivo a flutuar ao vento. Trajava de tecido de oiro, bordado de azul e verde. Na cabeça, trazia um chapelinho de veludo.
- Onde está ele? Onde está ele? - guincharam as bruÂxas, ao vê-la. Ela riu-se, e foi direita à árvore e, pegando na mão do pescador, conduziu-o para o luar e começaram a dançar.
Giravam, giravam em roda, e a bruxa nova pulava tão alÂto que ele lhe podia ver os saltos vermelhos dos sapatos. Depois, através dos que bailavam, chegou o ruÃdo dum gaÂlope, sem que se visse o cavalo. E o pescador teve medo.
- Mais depressa! - gritou a feiticeira, passando-lhe os braços em volta do pescoço e soprando-lhe na face um háÂlito de fogo. - Mais depressa, mais depressa! - bradava
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ela, e a terra parecia girar debaixo dos pés do pescador, cuÂjo cérebro se perturbou. Invadia-o um terror enorme, coÂmo se alguma coisa horrÃvel o espreitasse, até que viu à sombra dum rochedo uma figura que antes ali não estava.
Era um homem vestido de veludo preto, à moda espaÂnhola. Tinha a cara extremamente pálida, mas os lábios sobressaÃam como uma flor vermelha e orgulhosa. Dir-seÂ-ia cansado: encostara-se à rocha, brincando distraÃdo com o punho da sua adaga. Ao lado, no chão, estava um chapéu de plumas e um par de luvas de montar, com puÂnhos de rendas doiradas e um estranho lema bordado a alÂjôfar. Pendia-lhe do ombro uma capa curta, debruada de peles de marta, e os dedos delicados e brancos rutilavam de anéis. Sobre os olhos desciam-lhe as pálpebras pesadas.
O moço pescador não desviava dele a vista, como se esÂtivesse enfeitiçado. Por fim os olhos de ambos encontraÂram-se e, onde quer que dançasse, julgava cravado nele o olhar daquele desconhecido. Ouviu a bruxa rir, e agarrou-a pela cintura e girou com ela doidamente, semÂpre à roda.
De repente, ladrou um cão na floresta, e os pares danÂçantes interromperam-se; indo dois a dois, ajoelharam e beijaram as mãos do homem. Nesse momento aflorou-lhe aos lábios um sorriso ténue, como uma asa de ave que roÂça a água e a encrespa; mas era um sorriso de desdém. Jamais deixou de olhar para o moço pescador.
- Vamos, vamos adorar! - dizia a feiticeira ao ouvido dele, arrastando-o. Invadiu-o então um desejo enorme de lhe obedecer, e seguiu-a. Ao aproximar-se, sem saber porÂquê, persignou-se e invocou o santo nome.
Logo as bruxas desataram a gritar, como falcões, e fugiÂram. A face pálida que observava o rapaz contraiu-se num espasmo doloroso. O homem avançou para um bosquete
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e soltou um assobio, e ao seu encontro veio a correr um ginete ajaezado de prata. Ao saltar para a sela, voltou-se e fitou o rapaz com ar triste. A bruxa de cabelos ruivos também tentou fugir, mas o pescador agarrou-a pelos pulsos e segurou-a muito bem.
- Larga-me! - gritou ela. - Por que nomeaste o que não deve ser nomeado e fizeste o sinal que não deve ser visto?
- Não - respondeu ele. - Sem que me digais o seÂgredo, eu não vos deixarei partir.
- Que segredo? - perguntou a bruxa, debatendo-se como um gato-bravo e mordendo-o com os beiços moÂlhados de espuma.
- Vós o sabeis - retorquiu o rapaz.
Com os olhos verdes turvados de lágrimas, disse ela ao pescador:
- Pede-me o que quiseres, menos isso!
Ele riu, e apertou-a mais.
E quando a bruxa viu que não podia desenvencilhar-se, murmurou:
- Acredita que sou tão bela como a filha do mar, tão atraente como essas que vivem nas águas azuis.
Dizendo isto, pôs-se a acariciá-lo, e uniu o rosto ao do rapaz.
Este, porém, repeliu-a, de cenho carregado, declarando:
- Se não cumprirdes a vossa promessa, matar-vos-ei como a uma feiticeira intrujona.
Fez-se ela pálida como a flor da árvore-de-judas, e treÂmeu.
- Pois seja - redarguiu num suspiro. - Trata-se da tua alma e não da minha. Faça-se a tua vontade.
Tirou do cinto uma faca pequena, cujo cabo era revestiÂdo de pele de cobra, e entregou-lha.
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- De que me serve isto? - inquiriu o pescador, surÂpreendido.
A bruxa conservou-se por instantes calada. SombreouÂ-lhe a expressão uma nuvem de terror. Depois sacudiu os cabelos e disse, rindo de modo singular:
- O que se chama vulgarmente a sombra do corpo não é senão o corpo da alma. Vai à beira-mar, volta as costas à Lua e corta em volta dos pés a tua sombra, que é o corpo da tua alma. Ordena-lhe depois que te deixe, e ela assim fará.
Arrepiou-se o pescador, e retorquiu:
- É certo?
- CertÃssimo. Mais valia que to não dissesse.
Agarrou-se-lhe aos joelhos, depois destas palavras, a chorar. O rapaz, no entanto, repeliu-a de novo, e deixouÂ-a por terra, e, dirigindo-se à borda do monte, principiou a descer, levando a faca no cinturão. A alma, que estava dentro dele, chamou -o e disse-lhe:
- O quê? Eu morei em ti todos estes anos e fui a tua serva. Não me despeças agora. Que mal te fiz?
Riu-se o moço pescador, observando:
- Mal não me fizeste nenhum, mas a verdade é que não preciso de ti. O mundo é vasto e há também o Céu e o InÂferno, e essa mansão crepuscular que fica entre os dois. Vai para onde te aprouver, e não me estorves, porque o meu amor chama por mim.
A alma suplicou-lhe compungida, mas ele não a atenÂdeu, antes, saltando de fraga em fraga, ágil como uma caÂbra montes a, chegou afinal à planÃcie e à costa doirada do mar.
De membros brônzeos, bem constituÃdo, semelhante a uma estátua grega, deteve-se na areia, de costas para a Lua, enquanto da alva espuma do mar surgiam braços que lhe
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acenavam e das ondas se erguiam formas que lhe rendiam tributo. Diante dele estava a sua sombra, que era a corpoÂrização da alma, e atrás flutuava a Lua no ar cor de mel.
Disse-lhe a alma:
- Se sempre queres afastar-me de ti, não me despeças sem coração. O mundo é cruel, dá-me o teu coração para eu levar comigo.
- Como - replicou ele, abanando a cabeça â" como poderia eu amar se te desse o coração?
- Sê piedoso - insistiu a alma. - Dá-me o teu coraÂção, porque o mundo é cruel e eu tenho medo.
- O meu coração pertence ao meu amor. Não te deÂmores, pois, e trata de partir.
- Mas se te amo também!
- Vai-te, que não preciso de ti! - gritou o pescador. E, tirando do cinturão a faca de cabo revestido de pele de coÂbra, cortou a sombra em volta dos pés, e a sombra ergueuÂ-se, parou defronte dele e olhou-o. Era como se fosse o próprio!
O pescador recuou, guardou a faca e sentiu-se dominaÂdo por um sentimento de terror.
- Vai-te - ordenou em voz baixa. - Que eu não torÂne a ver-te!
- Não - replicou ela -, temos de nos encontrar ainÂda.
Falava num murmúrio, quase sem mover os lábios.
- Encontrar-nos como? - repetiu ele. - Não vais seguir-me, com certeza, às profundezas do mar.
- Uma vez em cada ano, virei a este lugar e chamarei por ti - esclareceu a alma. - Quem sabe se terás necesÂsidade de mim?
- Que necessidade posso ter de ti? - retrucou o pesÂcador. - No entanto, faça-se a tua vontade.
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Disse isto e mergulhou na água, os tritões sopraram a trompa e a sereiazinha subiu ao encontro dele, abraçou-o e beijou-o na boca.
Só, na praia, a alma observava-os. E, quando eles desaÂpareceram no abismo, ela afastou-se chorando para a reÂgião dos pântanos.
Passou-se um ano, a alma compareceu na beira-mar e chamou pelo pescador. Este emergiu das águas e indagou:
- Por que me chamas?
Respondeu ela:
- Aproxima-te, porque te quero falar. Vi coisas exÂtraordinárias.
O rapaz aproximou-se, escolheu uma poça não muito funda para se sentar, e, inclinando a cabeça, dispôs-se a ouvir.
- Quando te deixei - começou a alma - voltei o rosÂto para o oriente e meti-me a caminho. Do oriente é que vem tudo quanto é sensato. Viajei durante seis dias, e na manhã do sétimo dia alcancei uma colina do paÃs dos Tártaros. Sentei-me debaixo duma tamargueira, para me abriÂgar do sol. A terra é seca e ardente. Lá em baixo, na planÃÂcie, via as pessoas andarem dum lado para outro como moscas passeando num disco de cobre polido.
«Ao dar meio-dia, subiu no horizonte uma nuvem de poeira encarnada. Viram-na os Tártaros, aprontaram os arcos pintados, e, saltando para os cavalos, largaram ao seu encontro. As mulheres, aos gritos, fugiram para as carroças e esconderam-se por trás dos cortinados de felÂtro. Pelo crepúsculo, os Tártaros voltaram, mas faltavam cinco deles e muitos dos que estavam de regresso vinham feridos. Atrelaram os cavalos à s carroças e afastaram-se a
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toda a brida. Duma toca, surgiram três chacais, que se puÂseram a espreitá-los; depois farejaram o ar e correram em sentido oposto.
«Nasceu a Lua, e eu vi ardendo na planÃcie a fogueira dum acampamento. Dirigi-me para lá. A volta dela, em taÂpetes, estava sentado um grupo de mercadores. Os cameÂlos haviam-nos amarrado mais atrás, e os criados pretos armavam tendas de pele curtida, sobre a areia, e consÂtruÃam uma vedação alta de ramos espinhosos.
«Aproximei-me deles, e o principal dos mercadores levantou-se, desembainhou a espada e perguntou que é que eu desejava. Respondi ser prÃncipe no meu paÃs de origem, e que andava fugido dos Tártaros, os quais preÂtendiam fazer-me seu escravo. Ele sorriu e mostrou-me cinco cabeças espetadas em compridas hastes de bambu. Em seguida quis saber quem era para mim o profeta de Deus, e eu disse-lhe que Mafoma.
«Ao ouvir o nome do falso profeta, curvou a cabeça, pegou-me pela mão e colocou-me à sua ilharga. Um dos pretos trouxe leite de égua numa tigela de pau e um bocaÂdo de carneiro assado.
«Quando rompeu a manhã, metemo-nos a caminho. Eu cavalguei um camelo de pêlo fulvo, ao lado do mercador principal, enquanto à nossa frente corria o homem que transportava a lança. De cada banda seguiam os guerreiÂros, e atrás de nós as mulas carregadas de mercadorias. Compunha-se de quarenta camelos a caravana, e de doÂbrado número de mulas. Partimos do paÃs dos Tártaros para o daqueles que amaldiçoam a Lua. Vimos os grifos que guardam o oiro desses idólatras nas rochas brancas e os dragões de escamas dormindo nas cavernas. Na ocasião de transpor as montanhas, sustivemos a respiração com medo de que as neves se despenhassem sobre nós; cada
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homem atou diante dos olhos um véu de gaza. Ao passarÂmos através dos vales, os Pigmeus lançaram-nos frechas de dentro de buracos de árvores, e à noite ouvimos os selÂvagens rufarem tambores. Chegados que fomos à torre dos macacos, pusemos frutos diante deles, e não nos fizeÂram mal; depois alcançámos a das serpentes, demos-lhes leite quente em pratos de bronze, e elas deixaram-nos prosseguir. Por três vezes, nessa viagem, atingimos as margens do Oxo, que atravessámos em jangadas de maÂdeira, com grandes bexigas cheias de ar. Os hipopótamos procuravam atacar-nos e dar cabo de nós. Os camelos treÂmeram só de os ver.
«Os reis de cada cidade impunham-nos multas e não consentiam que entrássemos as portas. Por cima das muÂralhas atiravam-nos pão, bolinhos de mel, outros recheaÂdos de tâmaras. Por uma centena de cestos pagávamos uma bola de âmbar.
«Quando os moradores das aldeias nos viam chegar, enÂvenenavam os poços e fugiam para o alto dos montes. LuÂtámos com os Magadás, que nascem velhos e vão rejuveÂnescendo de ano para ano até morrerem crianças; com os Latróis, que se intitulam filhos de tigres e se tingem de amarelo e preto; com os Aurantes, que depõem os mortos no cimo das árvores e vivem em grutas sombrias, temenÂdo que o Sol, seu Deus, os sacrifique; como os Crinianos, adoradores do crocodilo, ao qual enfeitam de feixes de erÂva e alimentam de manteiga e aves frescas; com os AgaÂzombas, que têm focinho de cão; e com os Sibães, que providos de patas de cavalo correm mais velozes do que estes. Um terço do nosso grupo morreu em combate, ouÂtro terço morreu de privações. Os restantes murmuraram de mim, alegando que eu lhes levara má sorte. Tirei uma vÃbora debaixo duma pedra e deixei que ela me picasse;
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quando viram que eu continuava de saúde, começaram a temer-me.
«Ao quarto mês atingimos a cidade de IleI. Era noite quando chegámos ao bosque de fora de portas: o ar estaÂva sufocante, porque a Lua passava em Escorpião. ColheÂmos romãs da árvore, partimo-las e tomámos o sumo adoÂcicado. Em seguida deitámo-nos sobre os nossos tapetes, à espera do alvorecer.
«Assim, ao romper da madrugada, levantámo-nos e bateÂmos à porta da cidade. Era de bronze e tinha cavalosÂ-marinhos e leões alados em relevo. Olharam-nos os guarÂdas, das seteiras, e perguntaram que querÃamos. Respondeu o lÃngua da caravana, dizendo que vÃnhamos da SÃria, carreÂgados de fazenda; eles quiseram reféns e declararam que nos abririam a porta ao meio-dia. Entretanto, que esperássemos.
«Era meio-dia quando, de facto, a franquearam. O poÂvo despejava as casas só para nos ver, enquanto percorria a cidade o pregoeiro, gritando por um búzio. Parámos no mercado e os pretos desataram os fardos de pano coloriÂdos e abriam as arcas de sicômoro trabalhado. Terminados estes preparativos, os comerciantes expuseram as suas esÂtranhas mercadorias: linho encerado do Egipto e linho esÂtampado do paÃs dos EtÃopes; esponjas purpúreas de Tiro, tapeçarias azuis de SÃdon, taças de âmbar translúcido, vaÂsos de vidro delicado e outros de barro, esquisitos. Do teÂlhado duma casa observava-nos um grupo de mulheres: uma delas usava máscara de cabedal, dourada.
«No primeiro dia compareceram os sacerdotes a trafiÂcar connosco, no segundo vieram os nobres, no terceiro os artÃfices e os escravos. Tal é o seu modo de proceder, enquanto os mercadores se demoram na cidade.
«Estivemos ali durante uma lua inteira; quando ela coÂmeçava a minguar, eu, aborrecendo-me, vagueei através
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das ruas e fui ter ao jardim da divindade local. Os sacerÂdotes, de túnica amarela, divagavam silenciosos pelo meio das árvores viçosas; sobre o pavimento de mármore preto erguia-se a casa rósea que era a morada do deus. As porÂtas eram de laca, onde havia em relevo, e de oiro polido, figuras de touros e pavões. Cobriam-na telhas de porcelaÂna verde-mar, e das goteiras salientes pendiam campainhas minúsculas; quando as pombas brancas passavam perto, roçando-lhes com as asas, aquelas começavam a tilintar.
«Fronteira ao templo havia uma lagoa de água lÃmpida, pavimentada de ónix raiado. Estendi-me na margem e, com os meus dedos pálidos, toquei nas folhas largas dos nenúfares. Aproximou-se um dos sacerdotes e estacou atrás de mim. Vestia uma pele de serpente, outra de ave ainda coberta de plumagem, e usava sandálias nos pés; na cabeça ostentava a mitra de feltro negro, ornada de cresÂcentes de prata. A túnica apresentava sete tons diferentes de amarelo. Os cabelos frisados tingira-os com antimónio. «Daà a pouco falou-me e perguntou qual seria o meu desejo. Respondi-lhe que era ver o deus.»
«- O deus anda à caça - elucidou-me o sacerdote, mirando-me de forma estranha com os seus olhinhos oblÃquos.
«- Dizei-me em que floresta e eu cavalgarei com ele.
«Com as unhas aguçadas, pôs-se a endireitar as franjas leves da túnica. E murmurou:»
«- O deus está a dormir.
«- Dizei-me em que leito, para eu o velar.
«- O deus está num festim! - bradou então.
«- Se o vinho for doce, beberei com ele, e, se amargo, beberei também.
«Curvou a cabeça, perplexo, e, pegando-me na mão, ergueu-me e conduziu-me ao templo.»
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«Na primeira câmara vi um Ãdolo sentado num trono de jaspe contornado de enormes pérolas orientais. Era uma escultura de ébano, do tamanho dum homem. Na testa exibia um rubi, e do cabelo, sobre as coxas, escorria-lhe um óleo muito espesso. Os pés estavam rubros do sangue fresco dum cabrito, e os quadris cingidos num cinto de cobre guarnecido de sete berilos.
«Perguntei ao sacerdote: «- Este é que é o deus?
«- É este o deus - replicou.
«- Mostrai-me o deus - ordenei. - Senão, tiro-vos a vida.
«Toquei-lhe na mão e ela mirrou-se. E o homem supliÂcou-me:
«- Curai a minha mão, para que vos mostre o deus. «Bafejei-lhe os dedos secos e logo se vivificaram.
«Ainda trémulo, acompanhou-me à segunda câmara, onde vi um Ãdolo de pé sobre uma folha de lódão feita de jaspe, da qual pendiam grandes esmeraldas. Era uma esÂcultura de marfim do tamanho do dobro dum homem. Na frente apresentava um crisólito e os peitos estavam ungiÂdos de mirra e cinamono. Numa das mãos erguia um báÂculo de jade, e na outra um globo de cristal. Em volta do pescoço forte tinha um colar de selenites. Nos pés, borze guins de latão.
«Disse eu ao sacerdote:
«- Este é que é o deus?
«- É este o deus - replicou.
«- Mostrai-me o deus - insisti - ou eu vos matarei. «Pus-lhe um dedo nos olhos e o homem ficou cego.
«- Curai-me - suplicou - e eu vos mostrarei o deus. «Bafejei-lhe os olhos, aos quais voltou a vista. Ele treÂmeu de novo e conduziu-me à terceira câmara. Mas ali
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não havia nenhuma imagem: apenas um espelho redondo de metal sobre um altar de pedra.
«- Onde está o deus? - perguntei. «Respondeu-me:
«- Não há deus nenhum, mas só este espelho que aqui vedes e que é o Espelho da Sabedoria. Reflecte todas as coisas que estão no Céu e na Terra, excepto o rosto de quem o contempla: isso não reflecte, a fim de que possa ser discreto aquele que o olhar. Há muitos outros espeÂlhos, mas são espelhos de Opinião; só este é o da SabedoÂria. Quem o possui sabe tudo, nada lhe pode ser escondiÂdo; quem o não possui não tem sabedoria. É ele, pois, o deus e como talo adoramos.
«Olhei para o espelho e vi que o homem tinha razão. Fiz uma coisa estranha, mas o que fiz não importa: num vale que fica a um dia de viagem deste lugar, eu ocultei o Espelho da Sabedoria. Permite que eu, tua alma, entre de novo em ti, e seja tua escrava. Serás mais sábio do que toÂdos os sábios. A Sabedoria pertencer-te-á. Consente que eu entre em ti, e ninguém será tão sábio como tu.»
Mas o moço pescador riu-se e retorquiu:
- O Amor é preferÃvel à Sabedoria. E a sereiazinha concede-me o seu amor.
- Não há nada melhor do que a Sabedoria - insistiu a alma.
- O Amor é melhor - repetiu o pescador, merguÂlhando nas águas.
E a alma, chorando, afastou-se para o lado dos pântaÂnos.
Passou-se mais um ano, e a alma desceu ao litoral e chaÂmou o moço pescador. Este subiu das profundezas e inÂdagou:
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- Por que me chamas?
Replicou aquela:
- Aproxima-te mais para que te possa falar. Vi coisas extraordinárias.
Ele obedeceu e deitou-se numa poça não muito profunÂda, apoiou a cabeça na mão e dispôs-se a ouvir.
- Quando te deixei - começou a alma - voltei a cara para o sul e caminhei. Do sul vem tudo o que é precioso. Seis dias viajei pelas estradas que levam à cidade de Aster, compridas e poeirentas, por onde passam os peregrinos. Na manhã do sétimo dia, firmei o olhar e - pronto! - a cidade jazia-me aos pés, porque fica situada num vale.
«Tem nove portas, e defronte de cada uma está um caÂvalo de bronze, que rincha quando os beduÃnos descem das montanhas. As muralhas são revestidas de cobre, e as albarrãs cobertas de latão. Em cada torre há um archeiro com o seu arco na mão. Ao nascer do Sol, atinge com uma frecha o tantã, e ao poente sopra numa trompa de corno.
«Quando eu quis entrar, os guardas impediram-me a passagem e perguntaram quem era. Respondi ser um derÂvixe em viagem para Meca, onde está um véu verde no qual o Alcorão foi bordado a letras de prata pelas mãos dos anjos. Os guardas espantaram-se com o caso e deixaram-me passar.
«É tudo como um bazar, lá dentro. Devias ter ido comiÂgo. Através das ruas estreitas flutuavam vistosas lanternas de papel, que pareciam borboletas. Quando sopra o vento nos telhados, elas sobem e descem como bolhas coloridas. Defronte das suas tendas vêem-se os mercadores sentados sobre tapetes de seda. Usam compridas barbas pretas e orÂnam os fezes de moedas de oiro. Entre os dedos frios deslizam-lhes longos cordões de âmbar e de caroços de pêsÂsego esculpidos. Alguns deles vendem gálbano e nardo, e
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perfumes raros das ilhas do oceano Ãndico, e espesso óleo de rosas rubras, e mirra, e especiarias em forma de cravo. Quando alguém pára a fim de lhes falar, eles atiram para um braseiro pedrinhas de incenso, que perfumam o ar. Vi um sÃrio que ostentava na mão uma vara delgada de junco. DeÂla saÃam espirais de fumo cinzento, e o cheiro da combustão era o das amendoeiras na Primavera. Outros vendiam braÂceletes de prata ornamentados em toda a roda de turquesas azuis, e aros para os tornozelos, de fio de latão, debruados de perolazinhas, e garras de leopardo engastadas em oiro, e brincos de esmeralda, e anéis de jade. Das casas de chá viÂnha o som duma viola, e os fumadores de ópio, de rostos lÃÂvidos e sorridentes, voltavam-se para os transeuntes.
«Devias ter ido comigo. Os vendedores de vinho abriam caminho à cotovelada, através da multidão, traÂzendo à s costas odres enormes de pele negra. Na maioria vendiam vinho de Xiraz, que é tão doce como mel e vem servido em tacinhas de metal, onde flutuam pétalas de roÂsa. Havia também negociantes de fruta, de todas as espéÂcies: figos maduros, de capa rota e tom de púrpura; melões que cheiram a almÃscar e são de cor de topázio; limões, e maçãs, e cachos de uvas brancas, e laranjas douradas. CerÂta vez vi passar um elefante, com a tromba pintada de ciÂnábrio e curcuma; por cima das orelhas passava-lhe uma rede de seda carmesim. Parou defronte duma das tendas e começou a devorar as laranjas. O cornaca limitou-se a rir. Não fazes ideia de quanto é estranha aquela gente! QuanÂdo a alegria lhes bate à porta, vão aos vendedores de aves e compram uma qualquer engaiolada, só pelo prazer de lhe dar liberdade; se estão tristes, flagelam-se com espiÂnhos para fazer render a dor.
«Uma tarde vi pretos a carregarem um pesado palanÂquim através do bazar. Era feito de bambu dourado e as
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varas de laca vermelha guarnecidas de pavões de latão. Em frente das janelas pendiam cortinados leves de musselina bordados com asas de escaravelho e aljôfar. Quando pasÂsou por mim, espreitou de dentro uma circassiana de face pálida, que me sorriu. Segui atrás deles, e os pretos estugaram o passo, nada satisfeitos. Eu não me importei: a cuÂriosidade espicaçava-me.
«Por fim pararam diante duma casa branca, quadranguÂlar, que não tinha janelas, mas apenas uma porta pequena, como a dum jazigo. Pousaram o palanquim e bateram três vezes, com um martelo de cobre. Pelo postigo espreitou um arménio de cafetão de couro verde; vendo-os, abriu a porta, estendeu um tapete no chão e a mulher passou por cima, voltando-se para trás, ao entrar, a fim de me sorrir de novo. Nunca eu vira uma pessoa tão pálida!
«Ao nascer da Lua, tornei ao mesmo ponto e procurei a casa, porém já não estava lá. Compreendi então quem era a mulher e por que motivo me sorrira.
«Devias ter ido comigo. Pela festa da lua nova, o moço imperador saiu do palácio e foi orar à mesquita. Tinha barba e cabelo tingidos de folhas de rosa, e as faces emÂpoadas de fina poalha de oiro. As plantas dos pés e as palÂmas das mãos estavam amarelas de açafrão.
«Ao nascer do Sol saiu do Paço vestido de prata e ao poente tornou a sair com uma túnica de oiro. O povo arremessava-se ao chão, ocultando o rosto, coisa que eu não fiz. Mantive-me de pé junto à tenda dum vendedor de tâmaras, e esperei. Quando o imperador me descoÂbriu, ergueu as sobrancelhas pintadas e esperou tamÂbém. Não me mexi de onde estava, maravilhando o poÂvo com o meu arrojo. Aconselharam-me a fugir da cidade. Sem lhes dar atenção, fui para o meio dos vendedoÂres de deuses estrangeiros, que são detestados em razão
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do seu ofÃcio. Ao saberem o que eu tinha feito, cada um deles me ofereceu um deus e me pediu que os deixasse em paz.
«Nessa noite, tendo-me deitado numa almofada da casa de chá, situada na Rua das Romãs, entraram os guardas do imperador e levaram-me ao palácio. Conforme eu ia enÂtrando, iam eles fechando as portas atrás de mim, pondo em todas uma corrente. No interior havia um claustro amplo, com arcadas em toda a volta. As paredes eram de alabastro branco, guarnecidas aqui e ali de azulejos verÂdes. Viam-se colunas de mármore desta cor, e no paviÂmento predominava o tom de flor de pessegueiro. Nunca na minha vida eu vira uma coisa assim.
«Quando atravessei o claustro, duas mulheres, cobertas de véu, olharam-me duma varanda e amaldiçoaram-me. Os guardas apressaram o passo, batendo com a extremiÂdade das lanças na superfÃcie polida das lajes; abriram um portão de marfim trabalhado, e eu encontrei-me num jarÂdim muito húmido, com sete terraços, onde havia túlipas, margaritas dobradas, aloés estriados. Semelhante a uma vara delgada de cristal caÃa a água duma fonte naquele amÂbiente melancólico. Os ciprestes lembravam tochas apagadas, e num deles cantava um rouxinol.
«Ao fundo do jardim erguia-se um pavilhão não muito grande. Quando nos aproximávamos, vieram dois eunuÂcos ao nosso encontro, balançando os corpos flácidos. Fitaram-me sob as pálpebras amarelas, e disse um deles ao capitão da guarda não sei o quê, em voz baixa. O outro mascava bétele, que ia tirando, com gestos afectados, duÂma caixa oval de esmalte roxo.
«Daà a pouco despediu o capitão os soldados. Estes volÂtaram ao palácio, e os eunucos seguiram-nos devagar, coÂlhendo amoras nas árvores por onde passavam. Em certa
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altura o mais velho dos dois olhou para mim e esboçou um sornso perverso.
«Então o capitão da guarda mandou-me que avançasse para a entrada do pavilhão. Andei sem receio e, afastando o reposteiro pesado, entrei ali.
«O moço imperador estava estendido num divã de peÂles de leão tingidas e tinha um gerifalte empoleirado no punho. Atrás dele, de pé, um núbio de elmo de bronze, nu da cinta para cima, com grandes brincos nas orelhas fendidas. Sobre a mesa, ao lado do divã, jazia uma cimitarra de aço, imponente.
«Ao ver-me, o imperador carregou o sobrolho e disseÂ-me:
«- Como te chamas? Não sabes que sou o imperador desta cidade?
«Eu, todavia, conservava-me calado. Ele apontou para a cimitarra, e o núbio, agarrando-a, precipitou-se sobre mim e bateu-me com grande violência. A lâmina zumbiuÂ-me através do corpo e não me fez mal nenhum. O hoÂmem caÃra no chão; quando se levantou, os dentes entrechocavam-se-lhe de terror. Até se foi esconder por trás do divã.
«O imperador pôs-se de pé, pegou numa lança e arremessou-ma. Eu apanhei-a no voo e parti-a em duas. Disparou-me uma seta, mas eu ergui as mãos e imobilizeiÂ-a. Por fim tirou um punhal do cinto de couro branco e feriu o núbio na garganta, com medo de que o escravo contasse tamanha afronta. O homem torceu-se como uma cobra atropelada e aos lábios aflorou-lhe espuma vermeÂlha.
«Logo que o escravo deixou de existir, o imperador virou-se para mim, depois de limpar o suor luzente da tesÂta com um lenço bordado de seda roxa, e disse-me:
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«- És algum profeta, que eu seja incapaz de ferir, ou o filho dum profeta, para que não possa causar-te nenhum dano? Peço-te que deixes a cidade esta noite, pois enÂquanto nela estiveres eu não serei o seu senhor.
«E eu respondi-lhe:
«- Fá-lo-ei por metade dos teus tesouros. Dá-me essa metade e eu ir-me-ei embora.
«O imperador pegou-me na mão e levou-me até ao jarÂdim. Quando o capitão da guarda me viu, ficou boquiaÂberto de espanto; e quando os eunucos me viram, tremeram-lhes os joelhos e eles caÃram no chão.
«Há uma sala no palácio que tem oito paredes de pórfiÂro; e do tecto, de lâminas de bronze, pendem inúmeras lâmpadas. O imperador tocou numa das paredes, que se abriu: descemos então a um corredor iluminado por muiÂtos fachos. De ambos os lados, em nichos, havia grandes jarros de vinho cheios até à borda de moedas de prata. Ao chegarmos ao centro do corredor, proferiu uma palavra que não deve ser proferida, e logo girou uma porta de graÂnito por meio de qualquer mola oculta; ele pôs as mãos diante dos olhos para não ficar deslumbrado.
«Não fazes ideia do que era aquele lugar portentoso! Acumulavam-se acolá conchas de tartaruga, selenites, ocos, enormes, repletos de rubis, oiro m aciço guardado em arcas de pele de elefante, e oiro em pó dentro de garÂrafas de couro. Havia opalas e safiras, as primeiras em taÂças de cristal, as segundas em taças de jade. Dispostas em ordem, sobre pratos delgados de marfim, estavam esmeÂraldas verdes, redondas, e a um canto, dentro de sacos de seda, turquesas e berilos. Vi cornucópias de marfim cheias de ametistas purpúreas, e outras de bronze com calcedónias e sárdios. As colunas eram de cedro e delas pendiam cordões de olhos-de-lince amarelos. Em escudos ovais
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guardavam-se carbúnculos vermelhos e verdes. E isto não é senão uma pequena parte do tesouro.
«Quando o imperador tirou as mãos dos olhos, disseÂ-me:
«- Esta é a minha casa-forte, e metade do que contém é teu, conforme te prometi. Dar-te-ei camelos e cameleiÂros, que cumprirão as tuas ordens e levarão a tua parte do tesouro para onde desejes ir. Isso tem de ser esta noite, porque não quero que o Sol, meu pai, veja nesta cidade um homem que eu não consigo matar.
«Contudo, eu retorqui:
«- O oiro que aqui está é teu, é tua a prata, tuas as jóias preciosas e as demais coisas de valor. Quanto a mim, não necessito de nada disso, nem receberei nada de ti senão o anel que tens no dedo.
«O imperador volveu-me, carrancudo:
«- É simplesmente um anel de chumbo. Não tem neÂnhum valor. Aceita, antes, metade do tesouro e sai da miÂnha cidade.
«- Não! - respondi. - Só quero esse anel de chumÂbo, porque sei o que está inscrito nele, e com que fim.
«Tremeu o imperador, suplicando-me:
«- Toma o teu tesouro e sai da cidade. A minha metaÂde será tua também.
«Eu fiz então uma coisa estranha. Mas o que fiz não imÂporta, pois, numa gruta que fica apenas a um dia de viaÂgem deste lugar, escondi o Anel da Riqueza. É apenas a um dia de viagem e está a esperar por ti. Quem possuir esÂse anel será mais rico do que todos os reis da Terra. Vem, portanto, e toma-o, e a riqueza do mundo será tua.»
Riu-se, porém, o moço pescador.
«- O amor é melhor do que a riqueza! - exclamou. ÂE eu tenho o amor da sereiazinha.
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«- Não, não há nada melhor do que a riqueza - asseÂverou a alma.
«- O amor é melhor - insistiu o pescador, tornando a mergulhar na profundeza das águas.»
E a alma, a chorar, afastou-se para o lado dos pântanos.
N o fim do terceiro ano, a alma desceu à praia e chamou pelo moço pescador. Este surgiu das águas e perguntou: - Por que me chamas?
Respondeu a alma:
- Chega-te mais para mim, para que eu possa falar-te.
Vi coisas extraordinárias.
E ele aproximou-se, deitou-se numa poça não muito funda, apoiou a cabeça na mão e dispôs-se a escutar.
- Numa cidade que eu conheço - disse a alma â" há uma estalagem à beira dum rio. Sentei-me lá com mariÂnheiros que bebiam vinho de duas cores diferentes e coÂmiam pão feito de cevada e peixinhos salgados servidos em folhas de louro, com vinagre. E quando ali estávamos a folgar, entrou um velho com um tapete de cabedal e um alaúde, onde havia dois chifres de âmbar. Depois de deitar o tapete no chão, feriu com uma palheta as cordas do alaúÂde e entrou e começou a dançar uma rapariga que tinha o rosto velado. Velava-lhe o rosto um véu de gaza, mas os pés estavam descalços. Descalços estavam os pés e moviam-se sobre o tapete como duas pombas brancas. Nunca vi nada mais belo, e a cidade onde ela dança é soÂmente a um dia de jornada deste lugar.
Ora, ouvindo o moço pescador as palavras da alma, lembrou-se de que a sereiazinha não tinha pés e não podia dançar. Invadiu-o um grande desejo e disse de si para si: «Se é apenas um dia de jornada, voltarei depois para o meu amor.» Riu-se, pôs-se em pé na água pouco profunÂda
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e avançou pela praia. Ao atingir um ponto seco, riu-se de novo e estendeu os braços à alma. Esta soltou um granÂde grito de alegria, correu ao seu encontro, entrou dentro dele, e o pescador viu logo estendida à sua frente, na areia, aquela sombra do corpo que é o corpo da alma.
E disse-lhe a alma:
- Não nos demoremos, vamo-nos embora já. Os deuÂses do mar são ciumentos e têm monstros que lhes obedeÂcem.
Apressaram-se, pois, e caminharam a noite inteira ao luar, e no dia seguinte ao sol até que, na noite desse dia, chegaram a uma cidade. Disse o pescador à sua alma:
- É esta a cidade onde dança aquela de quem me falaste? - Não é esta, mas outra - respondeu a alma. - ConÂtudo, vamos entrar.
Entraram, percorreram as ruas, e passaram pela dos Ourives. O moço pescador viu uma linda taça de prata numa loja.
- Pega nessa taça e esconde-a - aconselhou-lhe a alÂma.
Ele assim fez, ocultou-a nas dobras da túnica e saÃram apressadamente da cidade. Quando iam a uma légua de distância, o pescador franziu o cenho, deitou fora a taça e perguntou:
- Por que me disseste que tirasse esta taça e a esconÂdesse, se era uma acção má?
- Sossega, sossega - retorquiu a alma.
Na noite do segundo dia alcançaram outra cidade, e o rapaz indagou:
- É aqui que dança aquela de quem me falaste?
- Não é aqui, mas mais adiante - respondeu a alma. - Entretanto, podemos entrar.
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Entraram, percorreram as ruas e passaram na dos MerÂcadores de Sandálias. O moço pescador viu uma criança ao pé dum jarro de água.
- Bate naquela criança - ordenou a alma.
Ele bateu no pequeno, até este chorar, e depois de isto feiÂto desapareceram apressadamente da cidade. Quando iam a uma légua de distância, o rapaz, indignado, inquiriu da alma:
- Por que me disseste que batesse naquela criança, se era uma acção má?
Mas a alma respondeu:
- Sossega, sossega.
N a noite do terceiro dia chegaram a uma cidade, e o pescador perguntou:
- É aqui que dança aquela de quem me falaste? Retorquiu a alma:
- Talvez seja aqui. Vamos entrar.
Entraram, percorreram as ruas, mas em parte nenhuma o moço pescador encontrou o rio e a estalagem que lhe fiÂcava perto. O povo da cidade olhava-o com curiosidade, o que o assustou.
- Vamo-nos embora - disse ele à alma - pois não esÂtá cá a dançarina dos pés alvos.
- Não, fiquemos - objectou a alma. - A noite vai esÂcura e há ladrões pela estrada.
Sentou-se ele então a descansar no mercado. Pouco deÂpois passou ali um mercador, de capa de pano da Tartária e com uma lanterna feita de chifre furado, posta na extreÂmidade duma cana. Perguntou-lhe este homem:
- Por que estás sentado na praça, se vês as tendas feÂchadas e atados de cordas os fardos?
Volveu-lhe o pescador:
- Não encontro estalagem nesta cidade nem tenho paÂrentes que me abriguem.
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- Nós somos todos parentes - observou o mercador. - Pois não foi um único Deus quem nos criou? Anda coÂmigo, que tenho um quarto de hóspedes.
Levantou-se o rapaz e seguiu o outro até sua casa. AtraÂvessaram um jardim cheio de romãzeiras, e o mercador entrou na residência e trouxe ao convidado uma bacia com água de rosas para este lavar as mãos e melões maduÂros para se dessedentar. Pôs-lhe também defronte uma tiÂgela de arroz e um naco de cabrito assado.
Quando o hóspede acabou de comer, o dono da casa levou-o ao quarto que lhe destinava e disse-lhe que desÂcansasse e dormisse. O pescador agradeceu-lhe, beijou o anel que o outro tinha no dedo e estirou-se nos tapetes de peles de cabra tingidas. E, depois de se ter coberto com uma pele de cordeiro preto, o rapaz adormeceu.
Três horas antes de alvorecer, enquanto era ainda noite, a alma despertou-o nestes termos.
- Levanta-te, vai ao quarto do mercador, que está a dormir, mata-o e rouba-lhe o oiro, porque precisamos dele.
O pescador levantou-se e dirigiu-se de rastos ao quarto do mercador. Sobre os pés deste estava um sabre e numa bandeja ao lado havia nove bolsas de oiro. Estendeu a mão, tocou na espada e nesse momento o mercador acorÂdou; pondo-se de pé, agarrou na arma e disse em altos brados ao rapaz:
- Pagas o bem com o mal, retribuis com derramamen to de sangue a bondade que eu tive para contigo?
Murmurou a alma ao pescador:
- Fere-o!
O rapaz assim fez, deixando-o desfalecido, apoderou -se das bolsas de oiro e fugiu a toda a pressa através do pomar de romãzeiras, olhando sempre para a estrela de alva.
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Quando iam a uma légua da cidade, o pescador bateu no peito e disse à alma:
- Por que me ordenaste que matasse o mercador e lhe roubasse o dinheiro? Não há dúvida de que és perversa.
- Sossega, sossega - respondeu-lhe a alma.
- Não - redarguiu ele -, não posso ter sossego porÂque abomino tudo o que me obrigaste a fazer. Também te abomino a ti, e quero que me digas por que me forçaste a semelhantes coisas.
- Quando me mandaste embora - retorquiu a alma - não me deste coração, de modo que aprendi a praticar e a apreciar estes actos.
- Que me dizes? - insistiu o pescador.
- Nenhuma novidade - volveu ela. - Esqueceste-te de que me não deste coração? Custa-me a crer! Não te apoquentes, pois, deixa-me em paz, porque não há dor de que não te libertes nem prazer de que não venhas a proÂvar.
Ao ouvir estas palavras, o moço pescador estremeceu e disse à alma:
- És maldosa, fizeste-me esquecer o meu amor, ofereces-me tentações, encaminhas-me para o pecado.
- Tu - contraveio ela - não esqueceste que me manÂdaste correr mundo, sem me teres sequer dado coração. Agora vamos divertir-nos para outra cidade. Somos posÂsuidores de nove bolsas de oiro.
Mas o rapaz pegou nas bolsas, lançou-as ao chão e calcou-as aos pés.
- Não! - exclamou ele. - Não quero mais nada conÂtigo, nem irei contigo a mais nenhuma parte. Assim como te despedi uma vez, novamente te despeço agora. Não me fizeste bem nenhum. - Voltou-se então de costas para a Lua, e, com uma faca pequena, cujo cabo era revestido de
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pele de cobra, esforçou-se por separar dos pés aquela sombra do corpo que representa o corpo da alma.
Contudo, a alma não se afastou dele, nem lhe obedeceu à intimação. Limitou-se a dizer:
- O feitiço que a bruxa te ensinou já não serve, porque eu não posso deixar-te mais nenhuma vez nem tu me poÂdes expulsar. Aquele que recebe a alma de que se havia desfeito tem de a conservar toda a vida. É o seu castigo e também a sua recompensa.
O moço pescador ficou lÃvido, cerrou os punhos e exÂclamou:
- A bruxa atraiçoou-me, porque não me disse tal coisa.
- Não - replicou a alma -, foi sincera e fiel para comesse que ela adora e de quem será sempre escrava.
Quando o rapaz compreendeu que não poderia, nunca mais, libertar-se da alma, e que a sua alma era perversa, e que nele viveria sempre daà por diante, deixou-se cair no chão e começou a chorar amargamente.
Nasceu o dia, e o moço pescador levantou-se e particiÂpou à alma:
- Vou atar as mãos para não poder executar o que me ordenas, e cerrar os lábios a fim de não proferir as palavras que me sugeres; e, assim, voltarei para onde mora aquela que eu amo. Para o mar voltarei, e à angra onde ela costuÂma cantar. Chamá-la-ei para lhe dizer o que fiz e o mal que me fizeste.
Tentou-o a alma, retorquindo:
- Quem é o teu amor, para que tornes a ele? O mundo tem criaturas muito mais formosas. Há as bailarinas de SaÂmaria que dançam ao modo de qualquer ave ou fera. Têm os pés pintados com alcana e usam nas mãos pequeninos guizos de cobre. Riem durante a dança, e o seu riso é
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argentino como o riso da água. Anda comigo que eu tas mostrarei. Que vem a ser essa tua preocupação quanto ao pecado? Não foram feitas para o que come as coisas graÂtas ao paladar? Será veneno a bebida que nos sabe tão bem? Não te aflijas e anda comigo para outra cidade. Há uma aqui perto, com um jardim cheio de túlipas, e nele viÂvem pavões brancos e outros cujo peito é azul; ao abrirem-se ao sol, as caudas são como discos de marfim e como discos de oiro. Aquela que os alimenta dança por gosto, tanto sobre as mãos como sobre os pés, e tem olhos pintados de antimónio e narinas talhadas em asa de andoÂrinha. Numa das suas narinas há uns ganchos donde penÂde uma flor que foi cortada duma pérola. Ri, ao bailar, e as argolas de prata dos tornozelos tilintam como campainhas argênteas. Não te preocupes, pois, e anda comigo a essa cidade.
Mas o moço pescador não respondeu, antes fechou os lábios com o selo do silêncio, e com uma corda atou as mãos, e viajou ao invés donde tinha vindo, até à baiazinha onde o seu amor lhe cantara. A alma foi a tentá-lo por toÂdo o caminho, sem que ele replicasse ou fizesse qualquer das maldades que ela lhe propunha. Tão grande era a forÂça do amor que tinha dentro de si!
Quando alcançou o litoral, desatou a corda das mãos, tirou dos lábios o selo do silêncio e chamou pela sereiaziÂnha. Ela, porém, não acudiu à chamada, se bem que ele in sistisse todo o dia, e suplicasse.
Escarneceu-o a alma, dizendo:
- Sem dúvida que pouco prazer achou no teu amor. És como esses que em dias de necessidade vertem água numa bilha quebrada. Dás o que tens e nada recebes em troca. Mais valia que me acompanhasses, porque eu sei onde fica o Vale do Prazer e conheço as coisas que lá se desfrutam.
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Mas o moço pescador não respondeu, antes na fenda duma rocha construiu uma choça de caniços e ali morou por espaço dum ano. Cada manhã chamava pela sereia, e ao meio-dia chamava-a outra vez, e todas as noites lhe reÂpetia o nome. Ela, contudo, nunca reapareceu do mar paÂra vir ao seu encontro, nem em parte nenhuma das águas ele a conseguiu descobrir, se bem que a buscasse nas caÂvernas e nas ondas, nas poças deixadas pela vazante e nos abismos profundos.
A alma tentava-o sempre com o mal, segredando-lhe projectos terrÃveis. Mas nunca logrou êxito, tão grande era a força daquele amor!
Passou-se mais um ano, e a alma, dentro dele, pensou: «Tentei meu amo e senhor com o mal, e a sua paixão foi mais forte do que eu. Tentá-lo-ei agora com o bem, e talÂvez ele venha comigo.» De maneira que lhe falou assim:
- Contei-te as alegrias da terra e tu não me deste ouviÂdos. Deixa agora que te conte as dores do mundo; é proÂvável que me escutes. A Dor, realmente, é que tudo goÂverna, e ninguém escapa à s suas malhas. Há gente sem roupa, há gente sem pão. Há viúvas que se vestem de púrÂpura e outras que se escondem sob os andrajos. Cá e lá nos pauis andam lázaros, sem caridade uns para com os outros. Pelas estradas erram mendigos de sacola vazia. Nas ruas das cidades caminha a Fome, a Peste senta-se à s portas das muralhas. Vamos corrigir tudo isto, aniquilar tamanhos males. Por que hás-de permanecer aqui a invoÂcar o teu amor, se ele não responde ao chamamento? E o que é o amor, para que lhe dês tanta importância?
O pescador, no entanto, manteve-se calado, tal era a força do seu amor. Cada manhã chamava pela sereia, chamava-a ao meio-dia e tornava a chamá-la à noite. Ela, porém, nunca veio ao seu encontro, nem ele a pôde achar
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em parte alguma, embora a procurasse nas correntes do mar, nos vales submersos, nas águas que ao anoitecer se tingem de roxo e se volvem pardacentas com a aurora.
Passou-se mais um ano, e a alma disse uma noite ao pesÂcador, quando ele estava na sua casa de caniços:
- Já te hei tentado com o mal, e o mesmo fiz com o bem, e o teu amor é mais forte do que eu. Daqui por dianÂte não te tentarei mais; o que te peço é que me deixes enÂtrar no teu coração para que sejamos unos como outrora.
- Sem dúvida que podes entrar - respondeu o pescaÂdor -, porque, no tempo em que correste mundo, muito havias de ter sofrido por falta de coração.
- Ai de mim! - bradou a alma. - Como posso arÂranjar lugar se o teu coração está repleto de amor?
- No entanto gostaria de te ajudar - observou o pesÂcador.
E, enquanto ele falava, chegou do mar um imenso grito de dor, aquele mesmo que se ouve quando morre alguém que vive lá. Num pulo, o rapaz pôs-se de pé, deixou a casa de canas e foi a correr para a praia. Para acolá se preciÂpitavam as ondas negras, trazendo consigo um fardo que era mais branco do que prata. Branco como a espuma é que era, e, tal uma flor, baloiçava-se nas vagas. A ressaca tomou-o das ondas, a espuma tomou-o da ressaca, e a praia recebeu-o da espuma: aos pés do pescador jazia o corpo da sereia. Morta aos pés dele estava a sereia.
A chorar como quem experimenta um golpe rude, ele ajoelhou e beijou a boca fria e vermelha e brincou com o âmbar molhado dos cabelos. Rojou-se depois ao lado do cadáver, pranteando e tremendo (como se treme de alegria) e apertando-o de encontro ao peito com os seus braÂços morenos. Frios eram os lábios e, contudo, ele beijouÂ-os. Salgado era o mel desse cabelo e todavia ele provouÂ-o com amargurado júbilo. Osculou-lhe as pálpebras feÂchadas. A espuma do mar que ficara nas órbitas era menos salgada do que as suas lágrimas.
Confessou-se então ao ente morto. Nas conchas dos ouvidos depôs-lhe o vinho acre da sua história. PassouÂ-lhe as mãos delicadas em torno da própria cabeça e, com os dedos, tocou-lhe no junco fino do pescoço. Amarga, amarga era a sua alegria, e a sua dor estava repleta dum reÂgozijo incompreensÃvel.
O mar sombrio aproximava-se cada vez mais, e a alva esÂpuma gemia como um lázaro. O mar, com as garras branÂcas de espuma, tacteava a areia da praia. Do palácio do Rei dos Mares chegou novo grito de dor, e lá ao longe, sobre as águas, os tritões sopraram roucamente nas suas trompas.
- Foge! - disse a alma. - As ondas sobem sempre e, se não te afastas, matar-te-ão. Foge, que eu tenho medo, vendo o teu coração fechado para mim em razão do teu imenso amor. Foge para lugar seguro. Decerto que não queres mandar-me sem coração para o outro mundo.
Mas o pescador não escutou a alma. Só se ocupava da sereia, e dizia-lhe:
- O amor é melhor do que a sabedoria, mais precioso do que a riqueza e mais belo do que os pés das filhas dos homens. Não o pode destruir o fogo, nem apagá-lo a água. Chamei-te de madrugada e não me respondeste. A Lua ouviu o teu nome, e tu não me deste atenção. Arrependo-me de te ter deixado para ir vaguear por lonÂge; o teu amor, porém, levei-o sempre comigo, tão forte que nunca pôde ser vencido, embora eu tenha alçado os olhos tanto para o bem como para o mal. Agora, que morÂreste, é natural que eu morra também.
A alma suplicou-lhe que partisse; ele, contudo, não o quis, tão grande era o seu amor. O mar aproximou-se mais
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e tentou cobri-lo com as suas ondas; assim, vendo que o fim não tardava, o pescador beijou loucamente os lábios frios da sereia e estalou o coração que ele tinha dentro de si. E como pela sua grande paixão o coração se lhe partira, a alma pôde ter ingresso e nele se instalou como outrora. E o mar, com as suas ondas, cobriu o corpo do pescador.
Pela manhã saiu o cura a benzer o mar, que estivera anÂtes revolto. Com ele iam os frades e os músicos, e os que levam os cÃrios, e os que seguram os turÃbulos, e muito acompanhamento de povo.
Ao chegar à costa, viu o pescador afogado na ressaca, com o corpo da sereia apertado nos braços. Então recuou, de má catadura, e, tendo feito o sinal-da-cruz, disse em voz alta:
- Não abençoarei o mar nem nada do que nele existe. Malditos sejam os seus habitantes e os que têm trato com ele. E quanto ao que, pelo seu amor, se esqueceu de Deus e aqui jaz com a sua amante despedaçada por sentença do AltÃssimo, digo que lhe peguem no corpo, e igualmente no dela, e que os enterrem longe, sem pôr na campa sinal de nenhuma espécie, para que ninguém saiba o lugar em que repousam. Foram malditos em vida e malditos serão na morte.
O povo fez como ele ordenou, e num campo afastado, onde não crescem ervas odorÃferas, abriu-se uma cova funda e nela puseram os dois cadáveres.
Passou o terceiro ano e, num dia santificado, o cura foi à capela para mostrar ao povo as chagas do Senhor e falar acerca da ira divina.
Depois de se haver paramentado, entrou na capela, curvou-se diante do altar e notou que este estava coberto de estranhas flores, como ele jamais vira. Eram maraviÂlhosas à vista, e a sua beleza perturbou-o, e o seu aroma
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afagou-lhe as narinas, e ele sentiu-se contente sem no enÂtanto saber a razão.
Abriu o tabernáculo, incensou o ostensório que nele se continha e mostrou ao povo a sagrada partÃcula. OcultouÂ-a de novo atrás do véu dos véus e começou a falar aos fiéis, desejoso de se ocupar da cólera celeste. Mas a beleza das flores perturbava-o, e a suavidade do perfume deliciava-lhe o olfacto, e as palavras que lhe vinham aos lábios não se referiam à ira divina mas apenas ao amor de Deus. Por que motivo assim se expressava, ele não o sabia.
Quando chegou ao fim, a multidão chorou, e o cura retirou-se para a sacristia com os olhos repletos de lágriÂmas. Os diáconos entraram e começaram a desvesti-lo, tiraram-lhe a alva e a faixa, o manÃpulo e a estola. Ele, poÂrém, estava como no meio dum sonho.
Depois de lhe haverem tirado os paramentos, o cura olhou para eles e perguntou:
- Que flores são as que estão no altar e donde vieram?
- Vieram daquele terreno em que enterrámos o pescaÂdor... Que flores são, não sabemos.
O sacerdote estremeceu, voltou para casa e orou.
Na manhã seguinte, antes de nascer o Sol, saiu com os frades e os músicos, e os portadores de cÃrios e de turÃbuÂlos, e muito povo, e foi à praia benzer o mar, assim como todas as coisas que nele existem. E abençoou também os faunos, e os seres pequeninos que dançam na floresta e os entes de olhos vivos que espreitam do meio das folhas. Todas as coisas do reino de Deus abençoou, e o povo esÂtava espantado e alegre ao mesmo tempo. Contudo, nunÂca mais no terreno da cova nasceram flores de qualquer espécie, pois voltou a ser estéril como antes fora. Nem os habitantes do mar voltaram à baÃa, como era seu costume, porque se retiraram para outra parte das águas.
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FILHO DE ESTRELA
Era uma vez dois pobres lenhadores que iam a caminho de casa através dum extenso pinhal. Estava-se no Inverno, em noite de frio áspero. No chão a neve já tinha grande alÂtura, assim como nos ramos das árvores: a geada fustigava-lhes os rebentos de cada lado do atalho, no moÂmento em que os homens passavam. E, quando chegaram à Torrente da Montanha, viram-na suspensa no ar, porque o Rei do Gelo a beijara.
Com aquele frio tão intenso, nem as feras nem as aves sabiam que fazer.
- Df! - rosnava o lobo arrastando-se pelo meio do matagal, com o rabo entre as pernas. - Que tempo insuÂportável! Merecia que o Governo olhasse para isto.
- UÃt, uÃt! - gorjeavam os verdelhões. - A velhÃssima Terra está morta, e até lhe puseram esta mortalha branca.
- A Terra vai mas é casar, e este é o vestido de noivaÂsegredavam entre si as rolas, que tinham os róseos peziÂnhos gelados mas que se sentiam compelidas a levar a coiÂsa para o lado sentimental.
- Que disparate! - uivava o lobo. - Digo que a culÂpa é só do Governo e estou disposto a tragar todo aquele
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que me desmentir. (É cheio de senso prático, o lobo, e jaÂmais perde ocasião de fazer valer o seu critério.)
- Ora eu, por minha banda, não preciso de teorias paÂra explicar o que quero - declarou o pica-pau, que era fiÂlósofo nato. - O que é, é; e nesta ocasião o que está é um frio horrÃvel.
E tinha razão, não haja dúvida. Os esquilos pequeninos, moradores do abeto muito alto, esfregavam reciprocaÂmente os focinhos, na esperança de se aquecerem, e os coelhos enroscavam-se lá nas tocas, sem se aventurarem a deitar o nariz de fora. Os únicos animais que pareciam saÂtisfeitos eram os bufos, os quais tinham as penas entorpeÂcidas pela geada, mas não ligavam importância ao caso, rolando os grandes olhos amarelos e chamando uns pelos outros, através da mata:
- TuÃ, tuu, tuÃ, tuu... Que tempo delicioso! Entretanto os lenhadores seguiam o seu caminho, soÂprando com força nos dedos e calcando a neve dura com as largas botas ferradas. Uma vez tombaram numa cova funda e saÃram de lá como moleiros enfarinhados; doutra vez, escorregaram no gelo polido (porque a água do charÂco tinha gelado) e lá se lhes espalhou a lenha toda, sendo preciso reuni-la e atá-la de novo; e de outra, ainda, julgaram-se transviados e tomaram-se de grande medo, pois bem sabiam quanto a neve é cruel para quem lhe dorÂme nos braços. Confiaram, porém, no bom do São MartiÂnho, que protege os viandantes, retrocederam nos mesÂmos passos e prosseguiram com maior cautela, até alcanÂçarem a orla da floresta e descobrirem lá em baixo, no vaÂle, as luzes da aldeia em que moravam.
Ficaram tão contentes por se sentirem salvos que riram alto, e a Terra lhes pareceu semelhante a uma flor de praÂta e a Lua a uma flor de oiro. No entanto, depois de terem
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rido, de novo entristeceram, lembrando-se da sua pobreÂza. Disse um deles ao outro:
- Por que nos rimos, sabendo que a vida é para os riÂcos e não para os pobres como nós? Mais valia que tivésÂsemos morrido de frio na floresta ou que alguma fera nos houvesse devorado.
- De facto - volveu o companheiro - há uns que possuem a mais e outros que têm de menos. A injustiça dividiu o mundo e só foi equitativa na distribuição dos inÂfortúnios.
Enquanto deploravam as suas tristezas, aconteceu ali uma coisa estranha: caiu do céu uma estrela resplandecenÂte e lindÃssima. Escorregou por um lado do firmamento, passou de caminho pelas outras estrelas e, deixando-os a eles boquiabertos de espanto, dir-se-ia ir-se afundar atrás dos salgueiros que estavam junto a um curral, à distância apenas duma pedrada.
- Atenção! - exclamaram. - Um púcaro de oiro paÂra quem a encontrar. - E deitaram a correr, ansioso da reÂcompensa.
Um dos lenhadores era mais lesto; ultrapassou o comÂpanheiro, abriu caminho através das árvores, chegou ao outro lado e - pronto! - ali estava uma coisa doirada em cima da neve branca. Precipitou-se sobre ela e, abaixandoÂ-se, tocou-lhe com as mãos: era uma capa de tecido oiresÂcente, artisticamente feita de estrelinhas e com muitas preÂgas. Gritou então ao camarada, a anunciar-lhe que achara o tesouro caÃdo do céu. Quando aquele chegou, sentaramÂ-se ambos sobre a neve e desfizeram as pregas da capa a fim de poderem dividir o oiro. Mas - oh decepção! Ânão havia ali oiro nenhum, nem prata, nem realmente teÂsouro de qualquer espécie, mas apenas uma criancinha adormecida.
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- Triste fim das nossas esperanças - comentou um deÂles. - Pouca sorte a nossa, pois de que nos servirá este neÂné? Vamos deixá-lo aqui e seguir o nosso caminho. Já soÂmos pobres e temos os nossos próprios filhos, de cuja boca não podemos desviar o pão.
Mas o outro objectou:
- Não, é crueldade abandonar a criança, que morreria gelada. Se bem que eu seja tão pobre como tu, e haja muiÂta gente a sustentar, e pouco com que lhe acudir, ainda asÂsim vou levá-la comigo e a minha mulher se encarregará dela.
E, com imensa ternura, pegou no petiz, embrulhou-o de novo na capa a fim de o proteger do frio agreste, e desÂceu a colina em direcção à aldeia. O companheiro admiÂrou-se muito de tanta loucura e tanta abnegação, mas sólhe disse, ao fim da jornada:
- Já que ficas com a criança, dá-me então a capa, uma vez que tÃnhamos resolvido dividir o achado.
- Tem paciência - respondeu o primeiro -, mas a caÂpa não é minha nem tua; é da criança.
Desejou-lhe prosperidades, encaminhou-se para a sua residência e bateu à porta.
Ao abrir e ao ver o marido são e salvo, a mulher abraÂçou-o e beijou-o, tirou-lhe das costas o feixe de lenha, sacudiu-lhe a neve das botas e disse-lhe que entrasse.
Ele, porém, detinha-se cá fora.
- Encontrei uma coisa na mata, e trouxe-a para ti. ToÂma conta dela...
- Que é? - perguntou a mulher. - Deixa ver já. TeÂmos a casa vazia e precisamos, realmente, de bastantes coisas.
O homem desdobrou a capa e exibiu a criança adormeÂcida.
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- Por amor de Deus! - bradou ela. - Já temos tantos pequenos e ainda trazes mais esse? É capaz de nos dar má sorte! E como o havemos de criar?
Estava deveras aborrecida.
- Escuta, este é filho de estrela. - E contou-lhe como a história se passara.
A mulher, contudo, não se deu por satisfeita, e até troÂçou do marido.
- Os nossos filhos não têm de comer - gritou - e queres ainda por cima sustentar os dos outros? Quem é que se interessa por nós? Quem nos alimenta?
- Deus olha pelos pardais e faz com que não morram de fome - observou o lenhador.
- Achas que eles escapam aos rigores do Inverno? Pois no Inverno estamos agora!
O marido não respondeu e continuou parado à porta. Pela casa dentro soprou o vento áspero, fazendo arrepiar a mulher.
- Não te resolves a entrar? Estou transida de frio!
- Numa casa onde há corações duros, não admira que haja frio também - retorquiu ele.
Foi a vez de ela se calar. Entretanto aproximara-se da laÂreira.
Daà a pouco virou-se para o marido, e este viu-lhe os olhos rasos de lágrimas. Rapidamente o homem depôs-lhe a criança nos braços, e ela beijou-a, indo depois deitá-la num catrezinho onde dormia o filho mais novo.
Na manhã seguinte, o lenhador pegou na misteriosa caÂpa de oiro e guardou-a no baú. Por sua vez, a mulher tiÂrou um colar de âmbar que a criança trazia no pescoço e pô-lo no mesmo lugar.
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Assim se criou o Filho de Estrela com os filhos do leÂnhador; sentava-se com eles à mesma mesa, brincava com eles aos mesmos jogos. De ano para ano se tornava mais belo, causando a admiração de quantos viviam naquela alÂdeia, pois ao passo que os outros eram trigueiros e de caÂbelo preto, ele era fino e branco como marfim, e os seus caracóis loiros pareciam feitos de pétalas de narciso. Os lábios assemelhavam-se a uma flor vermelha, os olhos a violetas à beira de água, o corpo a uma haste em pleno campo, esquecida pelo segador.
A beleza, contudo, tornou-o mau, porque se fez orguÂlhoso, cruel e egoÃsta. Desprezava os filhos do lenhador e os outros pequenos da aldeia, dizendo que eram de baixa extracção enquanto ele pertencia à linhagem dos nobres, por ser filho duma estrela. Arvorou-se, pois, em senhor deÂles, a quem considerou como escravos. Não tinha dó dos pobres, nem dos cegos, nem dos estropiados, nem dos inÂfelizes: atirava-lhes pedras, expulsava-os, mandava-os peÂdir esmola a outra porta, a tal ponto que ninguém (excepÂto os proscritos) se atrevia a mendigar por aquelas paraÂgens. Sentia-se enamorado da própria beleza e troçava dos menos favorecidos de dotes naturais. Amava-se a si mesÂmo, e no Verão, quando o ar está calmo, ia deitar-se junto ao poço do pomar do cura, a fim de contemplar o rosto no espelho da água, o que o fazia rir de pura satisfação.
Muitas vezes lhe ralhavam o lenhador e a mulher.
- Repara - diziam - que não te tratámos como tu tratas os desgraçados, que não acham quem os auxilie. Que necessidade tens de ser tão mau com eles?
Em certas ocasiões o cura mandava-o chamar e fazia o possÃvel de lhe incutir o amor dos seres vivos.
- A mosca é tua irmã; não lhe faças mal. As aves que voam pela floresta dispõem da sua liberdade; não te divirÂtas
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a privá-las desse direito. Deus criou os vermes e as toupeiras e cada qual tem o seu lugar na Terra. Quem és tu, para distribuÃres o sofrimento no reino de Deus? Até o gado bravo o adora.
Mas ele, Filho de Estrela, não dava atenção a esses conÂselhos: ou ficava carrancudo, ou fazia troça, e de novo no meio dos camaradas tomava o comando das brincadeiras. Estes seguiam-no, porque o rapaz era belo, de pés ligeiÂros, sabia dançar, tocar música, apitar com os dedos. PaÂra que ele os guiasse, todos o acompanhavam cegamente. Se, com uma cana aguçada, traspassava os olhos duma toupeira, os outros riam divertidos; se atirava pedras aos leprosos, os pequenos riam da mesma maneira. Em tudo os governava, e assim os tornou, a seu modo, duros de coração.
Ora um dia passou pela aldeia uma pobre mendiga, de vestido roto e pés a sangrarem da aspereza dos caminhos. Via-se que estava nos maiores apuros. Cansada como vinha, sentou-se debaixo dum castanheiro, a repousar.
Viu-a o Filho de Estrela e disse aos seus companheiros:
- Atenção! Está acolá uma pedinte medonha, por baiÂxo daquela linda árvore de folhas verdes. Vamos pô-la a andar. Não gosto de gente feia e suja.
Aproximou-se da mulher, atirou-lhe pedras e escarneÂceu-a. Ela ergueu a vista horrorizada, sem a desviar do rosto do rapaz. E quando o lenhador, que ali perto rachaÂva cepos, viu o que o filho adoptivo estava a fazer, correu a censurá-lo, observando:
- És realmente muito mau. Não sabes o que é ter comÂpaixão. Que mal te fez esta criatura, para a tratares assim?
O interpelado enrubesceu de fúria, bateu o pé no chão e retorquiu:
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- E quem sois vós, para me falardes desse modo? Não sou vosso filho e não vos devo obediência.
- Disseste a verdade - replicou o lenhador. - Mas também é certo que me condoà de ti, quando te encontrei na floresta.
Ao ouvir estas palavras, a mendiga soltou um grito aguÂdo e desmaiou. O homem levou-a para casa, a mulher deÂle tratou-a, e, quando a infeliz voltou a si do desmaio, trouxeram-lhe de comer e de beber a fim de a reconfortarem.
Ela, porém, não quis uma coisa nem outra, e falou nesÂtes termos ao lenhador:
- Dissestes que essa criança foi encontrada na floresta. Faz hoje dez anos que isso aconteceu, não é assim?
- Tendes razão, foi na floresta e completam-se hoje dez anos.
- Que tinha o pequeno consigo? Um colar de âmbar ao pescoço? Não vinha embrulhado numa capa de tecido de ouro, toda bordada de estrelinhas?
- De facto - confirmou o lenhador - é exactamente como dizeis.
Abriu o baú e mostrou a capa e o colar, que ali estavam guardados. Vendo isso, a mendiga desatou a chorar de aleÂgria.
- É o meu filho! - exclamou. - Perdi-o na floresta. Peço-vos que o mandeis chamar depressa. Em procura deÂle tenho calcorreado o mundo inteiro.
O lenhador e a mulher foram buscar o rapazinho, e recomendaram -lhe:
- Vai andando para casa. Lá encontrarás tua mãe, que espera por ti.
Ele correu, cheio de curiosidade e alegria. Mas, ao ver quem o aguardava, riu-se, escarninho, e comentou:
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- Então onde está a minha mãe? Aqui só vejo esta miserável pedinte.
- Sou eu a tua mãe - retorquiu ela.
- Sois doida, para falar assim! - exclamou, indignado o Filho de Estrela. - Eu não sou vosso filho, porque sois uma pobre feia e andrajosa. Ponde-vos a andar, que eu não torne a ver essa horrÃvel carantonha.
- Repito que és meu filho e que te levei para a floresta - insistiu ela, caindo de joelhos e estendendo os braços ao pequeno. - Os ladrões roubaram-te e depois expuseram-te ao frio, para que morresses. Mas eu reconheci-te logo que te vi, assim como te reconheço pelos sinais ali guardados: a capa de tecido de ouro e o colar de âmbar. Por isso te peço que me acompanhes, pois andei por toda a parte à tua busca. Vem comigo, que tenho necessidade do teu amor.
Não se mexia, porém, o Filho de Estrela. Fechara contra a mãe as portas do coração, e nenhum som se ouvia além dos soluços da mulher que chorava a sua dor. Por fim o pequeno falou, e foi com voz dura e amarga que disse:
- Se na verdade sois minha mãe, mais valia que ficásseis longe, em vez de terdes vindo cá encher-me de vergonha, tanto mais que eu pensava ser filho duma estrela e não duma pedinte, como acabais de dizer que sou. Ide-vos, pois, embora, para que vos não torne a ver.
- Meu Deus! - bradou ela. - Não queres ao menos beijar-me, antes de eu partir? Sofri tanto a procurar-te.
- Não quero, não. Sois repugnante, e eu mais depressa beijaria uma cobra ou um sapo.
A mulher pôs-se então de pé e encaminhou-se para a mata, chorando amargamente. Ao ver que ela tinha. partido, o Filho de Estrela reuniu-se muito contente aos seus companheiros, disposto a recomeçar nos jogos. Eles porém, chasquearam, dizendo-lhe:
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- És tão repelente como a cobra, tão imundo como o sapo. Gira daqui, porque não consentimos que brinques connosco!
E expulsaram-no do quintal.
De semblante carregado, o pequeno disse lá consigo: «Que vem a ser isto? Vou mirar-me na água do poço e ela confirmará a minha beleza.»
Dirigiu-se ao poço, olhou para a água, e - Jesus! - o seu rosto era o focinho dum sapo, o corpo estava cheio de escamas como o duma serpente. Atirou-se ao chão, malÂdisse a sua sorte e reflectiu:
«Isto aconteceu-me, sem dúvida, por haver pecado. ReÂneguei a minha mãe, mandei-a embora, e fui para com ela orgulhoso e cruel. Resta-me agora ir procurá-la, correndo o mundo de lés a lés, pois não terei descanso enquanto não a descobrir.»
Chegou-se então ao pé dele a filha do lenhador, pôs-lhe a mão no ombro e observou:
- Que importância tem haveres perdido a beleza? Fica em nossa casa, que eu não troçarei de ti.
- Não - replicou o pequeno. - Fui cruel para com minha mãe, e essa feia acção recaiu sobre mim como casÂtigo. Tenho, portanto, de ir e vaguear pelo mundo até que a encontre e ela me perdoe.
Assim se encaminhou ele para a floresta, chamando peÂla mãe, mas sem obter resposta. Todo o dia a chamou, e, ao anoitecer, preparou-se para dormir num leito de foÂlhas. As aves e os outros animais evitavam-no, lembranÂdo-se da sua crueldade. Só lhe faziam companhia os saÂpos, e ainda as cobras que rastejavam vagarosamente no seu encontro.
De manhã levantou-se, colheu das árvores frutos amarÂgos, que comeu, e continuou a andar através da floresta,
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chorando abundantemente. A tudo e a todos perguntava se tinham visto a mãe.
Falou à toupeira deste modo:
- Tu, que és capaz de perfurar a terra, dize-me se está lá a minha mãe.
- Cegaste-me - respondeu ela. - Como queres agoÂra que eu saiba?
E ao pintarroxo:
-Tu, que sabes voar ao topo das árvores, e abranges toÂdo o horizonte, dize-me onde está a minha mãe.
E o pintarroxo declarou:
- Cortaste-me as asas, para te divertires. Como hei-de agora voar?
- Onde está a minha mãe? - indagou do esquilo que vivia num abeto e se encontrava sozinho.
- Mataste a minha - respondeu aquele. - Procuras a tua para a matar também?
Chorou de novo o Filho de Estrela, e, curvando a cabeÂça, implorou perdão aos entes do Senhor, continuando deÂpois a percorrer a floresta, à cata da mendiga. Ao terceiro dia atingiu uma clareira e desceu até à planÃcie. Ao passar pelas aldeias, as crianças motejavam-no e atiravam-lhe peÂdras. Se queria dormir nalgum curral, os donos das vacas não lho consentiam, receosos de que contagiasse os aniÂmais. Os jornaleiros expulsavam-no, ninguém se compaÂdecia da sua hediondez. Também em parte nenhuma podia obter informes acerca da mulher que era sua mãe, embora durante três anos errasse pelo mundo. Ãs vezes parecia-lhe vê-la adiante de si, na estrada, chamava-a, corria-lhe no enÂcalço e ficava com os pés em sangue. Sempre tudo baldaÂdo! Aqueles que moravam rente ao caminho replicavam invariavelmente que não a tinham visto passar, nem a ela nem a outra que se lhe parecesse. E até se riam da sua dor.
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Pelo espaço de três anos assim vagueou pela Terra, onÂde não achou amor, nem carinho, nem misericórdia: era um mundo semelhante ao que ele próprio fizera, no temÂpo da perdida arrogância.
Certa noite chegou à porta duma cidade fortemente deÂfendida e que ficava na margem dum rio. Se bem que estiÂvesse cansado, de pés muito doridos, dispôs-se todavia a entrar. Mas os soldados que se encontravam de sentinela vedaram-lhe o acesso com as suas alabardas, dizendo-lhe em tom rude:
- Que negócios tens nesta cidade?
- Procuro a minha mãe - volveu ele - e peço-vos me deixeis passar porque talvez a descubra aqui.
Os soldados, porém, escarneceram-no, e um deles, coÂfiando a barba preta, pousou o escudo e disse:
- Pensando bem, tua mãe não ficaria satisfeita se te visÂse, porque tu foste menos favorecido pela natureza do que o sapo dos charcos ou a cobra que se arrasta nos pauis. Some-te! Tua mãe não vive nesta cidade.
Outro, que segurava um estandarte na mão, indagou:
- Quem é tua mãe e porque a procuras?
- Minha mãe - respondeu - é, como eu, pedinte. Tratei-a mal, por isso vos rogo me deixeis passar, a fim de que ela me perdoe, se acaso mora nesta cidade.
Não lho consentiram, apesar de tudo, e até o espetaram com os chuços. Quando ele se voltou, chorando, um dos militares (cuÂja armadura tinha flores de oiro e cujo elmo ostentava um leão alado) aproximou-se dos primeiros e inquiriu-os quanto à identidade do pretendente.
- É um mendigo, filho de mendiga. Pusemo-lo a anÂdar.
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- Ora, podÃamo-lo ter vendido como escravo. Com o dinheiro comprava-se vinho!
- Por esse preço eu compro-o - acudiu um velho de má cara, que nesse instante passava por ali. Pagou o estiÂpulado, agarrou o pequeno pela mão, e entrou com ele na cidade. Depois de atravessarem muitas ruas, chegaram a certa porta praticada num muro coberto por uma romãÂzeira. O velho bateu com o anel de jaspe esculpido, a porÂta abriu-se, e eles desceram cinco degraus de bronze até a um jardim cheio de papoulas pretas e jarros verdes de barÂro cozido. O velho tirou então do turbante um lenço de seda estampada e com ele vendou os olhos do rapaz, empurrando-o depois à sua frente. Quando lhe retiraram a venda, o Filho de Estrela achou-se num calabouço, que era iluminado por uma lanterna em forma de cornucópia.
O velho mostrou-lhe num trincho um pedaço de pão bolorento e disse: - Come. - E uma tigela de água nauÂseabunda e disse: - Bebe. - E após o pequeno haver coÂmido e bebido, o homem foi-se embora, fechando a porta atrás de si e prendendo-a com uma corrente de ferro.
N a manhã seguinte, o velho (que era afinal o mais esÂperto dos mágicos tÃbios e aprendera a sua arte com outro que habitava nos túmulos do Nilo) apareceu outra vez, carregou o cenho e disse:
- Num bosque não longe da porta desta cidade de paÂgãos, existem três moedas de oiro. Uma é de oiro branco, outra de oiro amarelo, outra de oiro vermelho. Hoje irás buscar-me a primeira e, se a não trouxeres, punir-te-ei com cem vergastadas. Vai depressa e ao pôr-do-sol esperar-te-ei à porta do jardim. Repara bem se é de oiro branco, ou então arrepender-te-ás, pois és meu escravo, comprado pelo preço dum jarro de vinho.
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Vendou-lhe os olhos com o lenço de seda estampada, levou-o através da casa e do jardim de papoulas e fê-lo suÂbir os cinco degraus de bronze. Depois de abrir a porta com o anel, conduziu-o até à rua.
O Filho de Estrela saiu a porta da cidade e entrou no bosque de que o mágico lhe havia falado.
Visto por fora, aquele bosque era tentador e parecia cheio de pássaros que cantavam e de flores que perfumaÂvam o ar; por isso o rapazinho enveredou por ele alegreÂmente. Contudo a beleza do recinto de pouco lhe servia, porque por onde quer que passasse se erguiam espinhos do chão, a incomodá-lo, e lhe surgiam cardos dum lado e outro, que o torturavam. Em parte nenhuma achou a moeda de oiro branco de que lhe falara o mago, embora a procurasse desde manhã até ao meio-dia e do meio-dia até ao crepúsculo. A essa hora regressou a casa, choranÂdo com amargura, porque já sabia qual a sorte que o esÂperava.
Ao chegar, porém, à orla da floresta, ouviu um grito vindo da espessura, como de alguém que estivesse aflito. Esquecendo a própria mágoa, retrocedeu para aquele sÃtio e viu uma lebre pequenina presa num laço que lhe armara algum caçador. O rapazinho teve pena dela, deu-lhe liberdade, e disse-lhe:
- Eu não passo dum escravo, mas a ti posso libertar-te. Retorquiu a lebre:
- Agradeço-te muito. Que desejas em troca?
- Ando em busca duma moeda de oiro branco, mas não consigo encontrá-la em parte nenhuma. Se não a levar ao meu dono, ele espancar-me-á.
- Vem comigo - disse a lebre, - Levar-te-ei até lá. Sei onde está escondida, e por que motivo.
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Assim acompanhou a lebre o Filho de Estrela, e - jusÂtos Céus! - no buraco dum carvalho enorme viu a moeÂda de oiro branco que procurava. SatisfeitÃssimo, agarrouÂ-a e declarou ao animal:
- O favor que te fiz retribuÃste-mo com outro muito maior. Centuplicaste a bondade que tive contigo.
- Não - replicou a lebre -, tratei-te como me tratasÂte. - E, falando assim, fugiu a toda a velocidade, enquanÂto o Filho de Estrela se encaminhava para a cidade.
Ora, a uma das portas, estava sentado um leproso, cuja face lha cobria um capuz de pano pardo. Os olhos, pelos buracos deste, luziam como brasas. Ao ver aproximar-se o rapaz, bateu numa tigela de pau, agitou uma campainha, e chamou por ele, dizendo:
- Dá-me uma esmola, que morro de fome. ExpulsaramÂ-me da cidade e ninguém se condói da minha desgraça.
- Ai de mim! - exclamou o interpelado. - No bolso só tenho uma moeda e, se a não levar ao meu senhor, ele bate-me, pois sou seu escravo.
O lázaro, contudo, suplicava, instava, até que o Filho de Estrela se condoeu e lhe entregou a moeda de oiro branco.
Chegou à casa do mago, este abriu-lhe a porta, levou-o para dentro e perguntou:
- Trazes a moeda de oiro branco?
- Não a trago - respondeu o pequeno.
O outro caiu sobre ele, espancou-o, e, apresentando-lhe uma escudela vazia, disse: - Come! - e mostrando-lhe uma taça, vazia também, acrescentou: - Bebe!
E outra vez o lançou na masmorra.
Na manhã seguinte apareceu-lhe e falou assim:
- Se hoje não me trouxeres a moeda de oiro amarelo, ficarás meu escravo toda a vida e apanharás trezentas chiÂcotadas.
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Partiu o Filho de Estrela para a floresta e fartou-se de procurar a moeda de oiro amarelo, sem a poder encontrar em parte alguma. Ao pôr-do-sol sentou-se e começou a chorar, e, enquanto chorava, veio ter com ele a lebre pequenina salva do laço na véspera.
E perguntou-lhe:
- Por que choras? Que andas a procurar na floresta?
Respondeu o rapaz:
- Procuro uma moeda de oiro amarelo que está aqui escondida. Se a não encontrar, o meu dono bater-me-á, visto que me tem como seu escravo.
- Acompanha-me - ordenou-lhe o animal, que desaÂtou a correr até chegar a uma lagoa. E no fundo dessa laÂgoa jazia a moeda de oiro amarelo.
- Como hei-de agradecer-te? - disse o Filho de EsÂtrela. - É já a segunda vez que vens em meu socorro.
- Ora, tu foste o primeiro a ter piedade de mim - volÂveu a lebre, que logo desapareceu velocÃssima.
O rapaz pegou na moeda e meteu-a no bolso; em seguiÂda tomou o caminho da cidade. Viu-o, porém, o leproso, que foi ao encontro dele, ajoelhou e disse:
- Dá-me uma esmola ou morrerei de fome. Replicou-lhe o interpelado:
- Não tenho comigo senão uma moeda de oiro amareÂlo, e, se eu chegar a casa sem ela, o meu senhor bater-meÂ-á, pois que sou seu escravo.
Mas o lázaro tanto lhe rogou que o outro se compadeÂceu e lhe entregou a moeda.
Ao chegar à residência do mágico, este abriu a porta, fêÂ-lo entrar e inquiriu:
- Trazes a moeda de oiro amarelo?
Respondeu-lhe o pequeno:
- Não a trago.
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Então o mago caiu sobre a sua vÃtima, a quem espancou, encheu de ferros e atirou de novo para a prisão.
Na manhã seguinte, tornou a aparecer, dizendo:
- Se me trouxeres hoje a moeda de oiro vermelho, darÂ-te-ei a liberdade. Caso contrário, podes ter como certo que te arranco a vida.
Foi o rapaz para a floresta e todo o dia procurou a moeÂda de oiro vermelho, sem a achar em parte alguma. Ao anoitecer sentou-se a chorar, e no meio do choro surgiuÂ-lhe a pequenina lebre.
- A moeda de oiro vermelho - explicou o animal Âestá na caverna atrás de ti. Portanto, não chores mais e alegra-te.
- Que recompensa te hei-de dar? - exclamou o Filho de Estrela. - É a terceira vez que me acodes.
- Ora, tu foste o primeiro a ter dó de mim - redarÂguiu a lebre, afastando-se rapidamente.
O rapaz entrou na caverna e, no canto mais distante, encontrou a moeda de oiro vermelho. Guardou-a, pois, no bolso e voltou apressado para a cidade. Vendo-o cheÂgar, o leproso parou no meio da estrada e gritou-lhe:
- Dá-me uma esmola ou morrerei de fome.
E o Filho de Estrela mais uma vez se apiedou do desgraÂçado, entregou-lhe a moeda de oiro vermelho e observou:
- A tua necessidade é maior do que a minha.
Tinha, contudo, o coração angustiado, porque bem saÂbia a triste sorte que o esperava.
Mas - vede agora! - ao passar a porta da cidade, os guardas curvaram-se até ao chão, rendendo-lhe homenaÂgem e comentando:
- Como o nosso senhor é belo! Seguia-o a multidão, que dizia:
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- Não há decerto, no mundo, ninguém que se lhe compare em beleza.
O Filho de Estrela, com as lágrimas nos olhos, pensou: «Metem-se comigo, troçando da minha infelicidade.» Tão grande era o acompanhamento que ele se perdeu no caminho, até que foi dar a uma vasta praça, onde ficaÂva o palácio real.
Abriu-se o portão do palácio, e os sacerdotes e altos funcionários correram ao seu encontro, cumprimentaÂram-no reverentes e disseram:
- Sois o nosso senhor, a quem aguardávamos. Sois o fiÂlho do rei.
Replicou-lhes o pequeno:
- Não sou filho de rei, mas sim duma pobre mendiga.
E como é que me proclamais belo, se eu sei que sou meÂdonho?
Então aquele cuja armadura tinha flores de ouro e em cujo elmo havia um leão alado, ergueu o escudo e bradou:
- Como podeis dizer, senhor, que não sois belo?
O rapaz olhou para o escudo e viu o seu rosto como anÂtigamente. Voltara-lhe a beleza, e, nos olhos, descobriu o que antes nunca tinha visto.
Os sacerdotes e os altos funcionários ajoelharam, diÂzendo:
- Estava de há muito escrito que nesta hora chegaria aquele que nos há-de governar. Por isso, que cinja a coroa e empunhe o ceptro e que seja nosso rei para nos conceÂder justiça e mercês.
- Não sou digno - replicou ele - porque reneguei minha mãe e não poderei descansar sem que a encontre e ela me perdoe. Deixai-me, então, partir, pois é necessário que percorra outra vez a terra. Não posso demorar-me, embora me oferteis a coroa e o ceptro.
Falando, desviou o rosto para a rua que levava à porta da cidade, e - oh, milagre! - entre a turba que se comÂprimia em roda dos soldados viu a pedinte que era sua mãe e, a seu lado, o leproso que mendigava à beira da esÂtrada.
Dos lábios irrompeu-lhe um grito de alegria, e ele corÂreu para a mãe e ajoelhou a seus pés, regando-os com arÂdentes lágrimas. Vergou a cabeça, tocando-a no pó do chão, e soluçando como se o coração se lhe despedaçasse, exclamou:
- Mãe, eu reneguei-vos na hora do meu orgulho; aceitai-me na hora da humilhação. Mãe, eu odiei-vos; retribuÃ-me com o vosso amor. Eu repeli-vos, mãe; agora, recebei o vosso filho.
Mas a mendiga não lhe respondeu.
Ele então estendeu os braços, agarrou os pés lÃvidos do leproso e implorou:
- Por três vezes vos auxiliei. Intercedei junto de minha mãe, para que ela me fale. - Mas o leproso não lhe resÂpondeu.
Então soluçou de novo, dizendo:
- Mãe, o meu sofrimento é tão grande que não o posÂso suportar. Concedei-me o vosso perdão e deixai-me volÂtar para a floresta.
E a mendiga pôs-lhe a mão na cabeça e ordenou:
- Levanta-te!
E o lázaro pôs-lhe a mão na cabeça e ordenou também:
- Levanta-te!
O rapaz levantou-se, olhou-os, e - oh, milagre! Âeram um rei e uma rainha.
Disse-lhe a rainha:
- Este que tu socorreste é teu pai.
E disse-lhe o rei:
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- Esta, cujos pés banhaste de lágrimas, é tua mãe. Rodearam-lhe o pescoço com os braços, beijaram-no e conduziram-no ao palácio. Ali lhe vestiram um belo fato e lhe puseram a coroa na cabeça e o ceptro na mão, e na cidade da beira do rio ele reinou e foi seu senhor. MinisÂtrou muita justiça e concedeu muitas mercês a todos. ExÂpulsou o malvado do mágico, ao lenhador e à mulher mandou ricos presentes e outorgou grandes honras aos filhos do casal. Não permitiu que ninguém fosse cruel para com as aves ou quaisquer outros animais, mas ensinou o amor, e a bondade, e a misericórdia. Aos pobres deu pão, aos nus deu vestidos, e houve paz e fartura na terra.
Todavia não reinou muito tempo; tão grande fora o seu sofrimento, tão amargo o fel das suas provações, que ao fim de três anos se finou. E o que lhe sucedeu reinou enÂtão como um déspota.
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O PRÃNCIPE FELIZ
Sobranceira à cidade, numa coluna alta, erguia-se a esÂtátua do PrÃncipe Feliz, revestida de cima a baixo de finas flores de oiro. Por olhos tinha duas safiras cintilantes, e no punho da espada brilhava-lhe um rubi enorme. Toda a gente a admirava.
- Linda como um cata-vento - notou um dos vereaÂdores, que se arrogava gostos artÃsticos. - Só com a difeÂrença de não ser tão útil - acrescentou logo, com medo de que o considerassem homem pouco prático, o que na realidade não era.
- Por que não hás-de ser como o PrÃncipe Feliz? Âperguntou certa mãe ao filho que chorava por não lhe daÂrem a Lua. - O PrÃncipe Feliz nunca se lembra de chorar seja pelo que for.
- Regozijo-me por verificar que existe neste mundo alguém inteiramente feliz - murmurou um desiludido ao contemplar a soberba estátua.
- Parece mesmo um anjo - disseram os meninos do Recolhimento ao saÃrem da Catedral, com as suas capas de escarlate vivo e os seus bibes brancos muito limpos.
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- Como o sabeis? - replicou o professor de MatemáÂtica. - Nunca vistes nenhum!
- Ah, vemo-los em sonhos - afirmaram as crianças, enquanto o professor ficava carrancudo, pois não concorÂdava com isso de os meninos sonharem.
Uma noite, por cima da cidade, voou uma andorinha. As companheiras tinham partido já para o Egipto, havia seis semanas, mas esta deixara-se ficar para trás por estar enamorada dum junco formosÃssimo. Conhecera-o no princÃpio da Primavera, quando descia o rio atrás duma grande borboleta amarela, e fora de tal modo cativada peÂla sua cintura esbelta que se demorara para falar com ele.
- Gostas de mim? - inquiriu a andorinha, que ia semÂpre direita ao fim, sem maiores rodeios. O junco dobrouÂ-se numa inclinação profunda, e ela voou então várias veÂzes em torno dele, roçando a água com as asas e produÂzindo ondulações de prata. Era o seu processo de fazer a corte. O namoro prolongou-se todo o Verão.
- Que afecto tão ridÃculo - chilreavam as amigas. ÂO junco não tem dinheiro e a famÃlia é numerosa. - De facto, o rio estava cheio de juncos. Com a chegada do OuÂtono, as outras andorinhas debandaram.
Depois disso, começou ela a sentir-se muito só e a enfastiar-se do seu amado.
«Não sabe conversar», dizia consigo. «Além disso, desÂconfio que é volúvel, pois está sempre a requebrar-se diante da viração.»
Na verdade, sempre que a viração soprava, o junco flecÂtia em amáveis cortesias.
«Concordo que seja muito caseiro», continuava ela nas suas reflexões; «mas eu adoro viajar, e o meu marido, por consequência, deve viajar também.»
- Queres vir comigo? - acabou por indagar.
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Mas o junco abanou a cabeça. Estava tão apegado ao lar! - Entretiveste-te comigo, nada mais - observou ela.
- Pois agora vou até às Pirâmides. Adeus!
Disse isto e voou. Voou todo o dia, e à noite chegou à cidade.
«Onde hei-de instalar-me?», pensou. «Calculo que a ciÂdade tenha feito os seus preparativos.»
Viu então a estátua do PrÃncipe Feliz, na sua elevada coÂluna.
«Instalar-me-ei ali», declarou a si mesma. «A situação é óptima e não me faltará ar fresco.»
E foi poisar mesmo aos pés do PrÃncipe Feliz.
«Tenho um quarto doirado», murmurou, olhando em roda e preparando-se para dormir. Mas, no preciso insÂtante em que ia meter a cabeça debaixo da asa, caiu-lhe em cima uma grossa gota de água. «É curioso!», exclamou. «Não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão puras e brilhantes, e no entanto chove! O clima da Europa SeÂtentrional é realmente detestável. O junco apreciava a chuva, mas era só por egoÃsmo.»
Caiu então outra gota.
«De que serve uma estátua», reflectiu, «se se não conseÂgue proteger-nos da chuva? O que devo fazer é procurar uma chaminé.» E resolveu mudar-se quanto antes.
Mal, porém, abria as asas, tombou-lhe em cima terceira gota. Olhou para o alto, e viu... Ah, que viu ela?
Os olhos do PrÃncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces de oiro... Era tão belo o seu rosto, visto assim ao luar, que a andorinha se sentiu apiedada.
- Quem sois? - perguntou.
- O PrÃncipe Feliz.
- Então por que chorais? Já me encharcastes toda!
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- Quando estava vivo e tinha coração humano - resÂpondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no palácio de Sans-Souci, onde se não permite que entre a dor. De dia brincava no jardim, com os meus companheiros, e à noite dirigia o baile nos salões. Em volta do parque há um muro elevadÃssimo, mas nunca me importei saber o que estava para além dele. Derredor de mim tudo era belo. Os cortesãos chamavam-me PrÃncipe Feliz, e eu era realmente feliz, se o prazer constitui felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora, que estou morto, colocaramÂ-me aqui tão alto que é possÃvel ver toda a fealdade e miséÂria da minha cidade. E, se bem que o meu coração seja feiÂto de chumbo, não posso impedir-me de chorar.
«O quê? Não é de oiro maciço?», disse a andorinha consigo mesma. Era demasiadamente bem-educada para fazer observações pessoais em voz alta.
- Ali adiante - continuou a estátua, em voz baixa e muÂsical - há aquela ruazinha com uma casa modesta. Uma das janelas está aberta, e através dela vejo a moradora sentaÂda à mesa. Tem rosto magro e cansado, e mãos vermelhas e magoadas da agulha, pois é costureira. Borda flores de marÂtÃrio num vestido de cetim para a mais bela das damas de honor da rainha usar no próximo baile da corte. Na cama, a um canto do quarto, está deitado o filho doente, que tem febre e pede laranjas. A mãe não tem nada que lhe dê senão água do rio, e por isso chora. Minha querida andorinha, não lhe queres levar o rubi do punho da minha espada? Tenho os pés soldados ao pedestal, não posso mexer-me.
- Esperam-me no Egipto - respondeu a andorinha. - As minhas companheiras voam sobre o Nilo, abaixo e acima, a conversar com as imensas flores de lódão. Em breve irão dormir no túmulo do faraó, que lá repousa no seu sarcófago pintado, envolto em linho amarelo e embalÂsamado
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com drogas aromáticas. Em torno do pescoço osÂtenta um colar de jade verde-pálido. As suas mãos são coÂmo folhas murchas.
- Minha querida andorinha - disse o PrÃncipe -, fiÂca ao menos uma noite e sê minha emissária. O pequeno está sequioso e a mãe parece tão triste!
- Não me agradam muito os rapazinhos - asseverou a andorinha. - No Verão que passou, quando eu andava no rio, estavam lá dois deles, grosseirões, filhos do moleiÂro, os quais não se fartavam de me atirar pedras. É claro que nunca me acertaram: nós andorinhas voamos muito bem, e, além disso, procedo duma famÃlia notável pela sua agilidade. Mas aquilo não deixava de ser falta de respeito.
Contudo, o PrÃncipe ficara tão triste que a andorinha se comoveu.
- Apesar de estar muito frio aqui - declarou ela - permanecerei convosco esta noite e serei vossa mensageira.
- Obrigado, querida andorinha, obrigado.
Assim arrancou ela da espada do PrÃncipe o enorme ruÂbi e o levou no bico, por cima dos telhados da cidade.
Passou junto da torre da Catedral, onde há estátuas de anjos de mármore branco; passou pelo palácio e ouviu sons duma dança: à varanda assomou uma rapariga, com o seu namorado.
- Que lindas são as estrelas - dizia ele. - E que exÂtraordinário é o poder do amor!
- Espero que o meu vestido fique pronto para o baile de gala - retorquiu ela. - Recomendei que lhe bordassem flores de martÃrio, mas as costureiras são tão indolentes!
Passou a andorinha sobre o rio e viu as lanternas que pendiam dos mastros dos navios. Passou sobre a judiaria e viu os seus habitantes a traficarem uns com os outros e a pesarem dinheiro em balanças de metal. Por fim chegou
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à casa modesta e espreitou para dentro. O pequeno agitava-se na cama, cheio de febre, e a mãe, de cansada, adormecera em cima do trabalho; a ave entrou, depôs o rubi na mesa, ao lado do dedal da costureira, e em seguiÂda voou em torno do leito, suavemente, refrescando com as asas a testa da criança.
- Que fresco que eu sinto! - exclamou esta. â" Devo estar a melhorar.
E mergulhou em sono profundo.
A andorinha voltou então para a estátua e contou ao PrÃncipe Feliz o que havia feito.
- É curioso - observou ela. - Sinto agora calor, apeÂsar de haver tanto frio.
- Eis o resultado da boa acção que praticaste - repliÂcou o PrÃncipe.
A ave pôs-se a pensar e adormeceu: era coisa que semÂpre lhe dava sono!
Ao romper a manhã, voou para o rio e tomou banho.
- Cá está um fenómeno digno de menção - comentou um professor de Ornitologia, que passava na ponte. - Uma andorinha no Inverno!
E escreveu uma extensa carta para a gazeta local. Toda a gente a citava, pois era abundante de palavras difÃceis, que ninguém compreendia.
- Esta noite sigo para o Egipto - disse a andorinha, muito satisfeita com a ideia.
Visitou todos os monumentos públicos e esteve muito tempo no cimo do campanário da igreja. Por onde quer que passasse, os pardais chilreavam entre si (o que a ela dava grande prazer):
- Que estrangeira tão distinta!
Ao nascer da Lua, voltou ao PrÃncipe Feliz e pergunÂtou-lhe:
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- Quereis alguma coisa para o Egipto? Vou partir agoÂra mesmo.
- Minha querida andorinha, não me concedes a tua companhia por mais uma noite?
- Esperam-me lá - redarguiu ela. - Amanhã as miÂnhas amigas tencionam voar sobre a segunda catarata. Ali, entre os juncais, é que se deitam os hipopótamos, e se senÂta o deus Mémnon sobre um imenso trono de granito. Contempla as estrelas a noite inteira, e, ao despontar da estrela de alva, solta um grito de júbilo e torna a emudeÂcer. Ao meio-dia, vêm beber à margem do rio leões de pêÂlo flavescente. Seus olhos são verdes quais berilos, seu ruÂgido é mais forte que o das cataratas.
- Minha querida andorinha - replicou o PrÃncipe-, vejo no extremo da cidade um rapaz numa água-furtada. Está debruçado sobre a mesa cheia de papéis, e a seu lado, num copo, há um ramo de violetas fanadas. Tem cabelos castanhos e ondulados, lábios rubros de romã, olhos granÂdes e sonhadores. Tenta acabar uma peça para o empresáÂrio do teatro, mas está muito frio para continuar a escreÂver. Não lhe arde lenha no fogão, a fome há-de obrigá-lo a desmaiar.
- Ficarei mais uma noite convosco - respondeu a anÂdorinha, que na verdade possuÃa bons sentimentos. ÂQuereis que leve outro rubi?
- Infelizmente não tenho mais nenhum - declarou o PrÃncipe Feliz. - Os olhos são tudo quanto me resta: compõem-se de duas safiras, trazidas da Ãndia há mil anos. Arranca-me um deles e leva a esse rapaz, que o venderá a qualquer joalheiro e poderá, assim, comprar comida e leÂnha e acabar a peça.
- Ilustre PrÃncipe - volveu a andorinha -, não tenho coragem para fazer uma coisa dessas.
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E começou a chorar.
- Minha querida andorinha, faze como te mando.
Então a avezita arrancou um dos olhos do PrÃncipe e voou para a água-furtada do estudante. Era fácil entrar lá, porque havia um buraco no telhado. Por aà se precipitou ela e chegou ao quarto. O rapaz tinha a cabeça apoiada nas mãos, pelo que não ouviu o sussurro das asas da andoriÂnha; mas quando ergueu os olhos descobriu a bela safira sobre as violetas fanadas.
«Começo a ser apreciado», murmurou. «Isto há-de ter vindo de algum grande admirador. Agora é que vou acabar a peça.»
Considerava-se inteiramente feliz.
No dia seguinte a andorinha desceu ao porto, pois ou no mastro dum navio enorme e observou o trabalho dos maÂrinheiros, que içavam do porão arcas muito pesadas.
- Vou para o Egipto! - gritou a ave, sem que ninguém lhe desse atenção. Ao nascer da Lua regressou à estátua do PrÃncipe Feliz.
- Venho dizer-vos adeus - participou.
Minha querida andorinha, não queres ficar comigo mais uma noite?
- É Inverno - replicou ela - e a neve frÃgida não tardará a cair aqui. No Egipto o sol é quente sobre as palÂmeiras verdes, e os crocodilos refastelam-se no lodo, olhando preguiçosamente à sua volta. As minhas compaÂnheiras constroem ninho no templo de Heleópolis, e as pombas brancas e róseas seguem-nas com a vista, arruÂlhando entre si. Ilustre PrÃncipe, tenho de vos deixar, mas nunca me esquecerei de vós. Na Primavera próxima heiÂ-de trazer-vos duas lindas jóias para substituir aquelas de que vos desfizestes. O rubi será mais vermelho do que a rosa rubra, e a safira mais azul do que o imenso mar.
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- Lá em baixo na praça - disse o PrÃncipe - está uma pequena vendedora de fósforos. Deixou-os cair na valeta e eles ficaram inutilizados. Se não levar dinheiro para caÂsa, o pai há-de bater-lhe, e é por isso que ela chora. Não tem sapatos nem meias e está de cabeça descoberta. Arranca-me o outro olho e leva-lho. Assim o pai já não lhe baterá.
- Ficarei convosco mais uma noite - explicou a anÂdorinha - mas não tenho coragem de vos arrancar o ouÂtro olho. FicarÃeis cego de todo.
- Minha querida andorinha, faze o que te mando Â- ordenou o PrÃncipe.
A ave arrancou-lhe o outro olho e partiu com ele. Ao passar pela rapariga, deixou-lhe cair a jóia na palma da mão.
- Que lindo bocadinho de cristal! - exclamou ela, correndo satisfeita para casa.
Regressou a andorinha à estátua e disse ao PrÃncipe:
- Agora estais cego. Ficarei convosco para sempre.
- Não, minha querida andorinha, tens de partir para o Egipto.
- Ficarei convosco sempre - repetiu ela.
E adormeceu aos pés do PrÃncipe.
No dia seguinte poisou-lhe no ombro e contou-lhe hisÂtórias do que vira em terras estranhas. Falou-lhe dos Ãbis encarnados que se conservam em longas filas nas margens do Nilo e com o bico apanham peixes oirescente; da EsÂfinge, que é tão velha como o mundo, e vive no deserto e tudo sabe; dos mercadores que caminham vagarosamente ao lado dos camelos e levam as mãos cheias de contas de âmbar; do Rei dos Montes da Lua, que é preto como ébaÂno e adora um cristal grandioso; da enorme serpente verÂde que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes a
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alimentá-la com bolos de mel; e dos pigmeus que navegam num grande lago, em cima de largas folhas chatas e andam sempre em guerra com as borboletas.
- Minha querida andorinha - disse o PrÃncipe Feliz -, tu contas-me coisas extraordinárias, mas o mais exÂtraordinário de tudo é o sofrimento dos humanos. Não há mistério maior do que a Miséria. Voa sobre a minha cidade, andorinha, e vem dizer-me o que viste.
Então a andorinha voou sobre a extensa cidade, e viu os ricos divertirem-se em suas casas sumptuosas, enquanto os pedintes se sentavam nos portões. Voou sobre as vielas sombrias e viu faces pálidas de crianças esfomeadas, olhando distraÃdas para o vácuo. Sob o arco duma ponte estavam deitados dois rapazinhos, que se envolviam nos braços um do outro para se aquecerem.
- Que fome que nós temos! - diziam eles.
- Não podeis estar aqui! - replicou-lhes o guarda. E viram-se obrigados a ficar à chuva.
Voltou a andorinha e relatou ao PrÃncipe o que presenÂciara.
- Estou revestido de oiro - observou ele. ÂPodias tirá-lo folha por folha e dá-lo aos meus pobres. Os vivos julgam sempre que o oiro os pode fazer felizes.
Folha atrás de folha, a andorinha foi arrancando o oiro da estátua, até que o PrÃncipe ficou todo cinzento e sem brilho. Folha atrás de folha, a andorinha levou o oiro aos pobres, e as faces das crianças tomaram cor, e elas riram e brincaram nas ruas.
- Agora já temos pão! - diziam todas.
Por fim chegou a neve, e, após a neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, por causa da brancura e do resÂplendor. Dos beirais das casas pendiam longos pingentes gelados, que semelhavam adagas de cristal. Toda a gente
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usava peles, e os rapazinhos, de barretes encarnados, patiÂnavam no gelo.
A pobre andorinha tinha cada vez mais frio, mas não desejava abandonar o PrÃncipe, a quem dedicava tanta esÂtima. Ia apanhar migalhas à porta do padeiro, quando ele não estava a olhar, e tentava aquecer-se batendo as asas de contÃnuo.
No entanto, acabou por se convencer de que morreria, e mal teve forças de voar mais uma vez para os ombros do PrÃncipe.
- Adeus, ilustre PrÃncipe - disse-lhe em voz baixa. Â- Permitis que vos beije a mão?
- Estimo saber que partes finalmente para o EgiptoÂretorquiu aquele.- Demoraste-te por cá muito tempo. Até podes beijar-me na boca, pois gosto bastante de ti.
- Não é para o Egipto que eu vou - respondeu a anÂdorinha. - Vou para a Mansão da Morte. A morte é irmãdo Sono, não é verdade?
E, assim falando, beijou o PrÃncipe nos lábios e caiu morta a seus pés.
Nesse momento, soou dentro da estátua um estalido misterioso, como se se houvesse quebrado alguma coisa. A verdade é que o coração de chumbo se partira em dois bocados. Devia estar um frio muito intenso...
Cedo, na manhã seguinte, o presidente do MunicÃpio passava na praça em companhia dos vereadores. Ao cheÂgarem defronte da coluna, ergueram a vista para a estáÂtua.
- Meu Deus! O PrÃncipe tem tão mau aspecto! - disÂse o presidente.
- De facto, de facto - concordaram os outros, que esÂtavam sempre de acordo com aquele. E subiram para ver a estátua de perto.
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- Caiu-lhe o rubi da espada. Perdeu os olhos e já não há vestÃgios de oiro - declarou o presidente. - Não está muito melhor que um mendigo.
- Pior até - acrescentaram os vereadores.
- E há um pássaro morto, entre os pés - continuou o primeiro. - Temos de publicar uma postura a proibir que os pássaros venham morrer aqui.
O secretário apontou a sugestão no seu livrinho de notas. A estátua do PrÃncipe Feliz foi apeada.
- Visto que já não é belo, também já não é útil - senÂtenciou o professor de Arte da Universidade.
Então fundiram a estátua num forno de alta tensão, e o presidente convocou uma reunião da Câmara para decidiÂrem o destino que deviam dar ao metal.
- Precisamos de fazer outra estátua - disse ele. - PoÂderia ser a minha...
- Ou a minha - disse cada um dos vereadores, sobre o que disputaram.
Da última vez que ouvi falar deles, ainda estavam a disÂcutir sobre o caso.
- Que coisa esquisita! - observou o capataz da fundiÂção. - Este coração de chumbo, partido, não é capaz de fundir. O melhor é deitá-lo fora.
E atiraram-no para um montão de lixo onde jazia o caÂdáver da andorinha.
- Traze-me as duas coisas mais preciosas dessa cidade - disse Deus a um dos seus anjos.
E o anjo trouxe-lhe o coração de chumbo e a andorinha morta.
- Fizeste boa escolha - observou o Senhor. - No meu jardim do ParaÃso esta avezinha cantará eternamente. E na minha áurea cidade o PrÃncipe Feliz me renderá seu culto.
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O ROUXINOL E A ROSA
- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas encarnadas - declarou o moço estudante -; mas no meu quintal não há uma única rosa encarnada.
O rouxinol, que estava no seu ninho da azinheira, ouÂviu o que o rapaz dizia e olhou, admirado, entre a folhaÂgem.
- Não há uma única rosa encarnada no meu quintal! Ârepetiu ele, já com os olhos rasos de lágrimas. - De quanÂtas ninharias depende a felicidade! Li tudo o que os sábios escreveram, possuo todos os segredos da Filosofia. No entanto, por causa duma rosa rubra, a minha vida tornaÂ-se calamitosa.
«Ora ali está um apaixonado sincero», observou o rouxiÂnol. - «Noite após noite ando eu a cantar acerca deste esÂtudante, ainda antes de o conhecer. Noite após noite relatei a sua história à s estrelas. Agora vejo-o finalmente. Tem caÂbelo escuro como a flor do jacinto, lábios vermelhos como a rosa do seu desejo; mas a paixão tornou-lhe o rosto páliÂdo talo marfim, e a dor marcou-lhe o seu sinal na testa.»
- O prÃncipe oferece um baile amanhã à noite - contiÂnuou o rapaz - e a que eu amo é uma das convidadas. Se
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eu lhe levar uma rosa rubra, ela dançará comigo até romper a aurora. Se lhe levar uma rosa encarnada, estreitá-la-ei nos braços e ela apoiará a cabeça no meu ombro, e eu apertarei a sua mão na minha. Mas não há rosas vermelhas no meu quintal, e por isso ficarei sozinho, e ela passará sempre, sem sequer me olhar, e o coração estalar-me-á de dor.
«Ora aà temos um verdadeiro apaixonado», comentou o rouxinol. «Eu canto e ele sofre, e a razão é a mesma. O que para mim é alegria, para ele é aflição. O amor é, sem dúvida, uma coisa extraordinária, mais precioso do que as esmeraldas, mais caro do que as opalas. Não se compra com pérolas nem com granadas, nem sequer se encontra à venda no mercado. Como o poderiam comprar os mercaÂdores, e pesá-lo na balança?»
- Sentar-se-ão os músicos na galeria - continuou o estudante. - Tocarão os seus instrumentos de corda e a minha amada vai dançar ao som da harpa e do violino. Dançará com tanta leveza que os seus pés mal poisarão no soalho, e à volta dela os cortesãos, de engalanados trajes, farão vertiginosos corrupios. Mas comigo é que não há-de dançar, pois não tenho a rosa vermelha que deseja.
Assim monologando, deixou-se cair no chão e ocultou o rosto orvalhado de lágrimas.
- Por que está ele a chorar? - murmurou um lagartiÂnho, ao passar nesse instante e a agitar a cauda.
- Sim, porquê? - observou uma borboleta, que voava atrás dum raio de sol.
- Porquê, porque? - repetiu em voz baixa uma prÃÂmula à sua vizinha do lado.
- Chora por causa duma rosa encarnada - explicou o rouxinol.
- Por uma rosa encarnada! - exclamaram todos. â" É ridÃculo.
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E o lagarto, que era um tanto cÃnico, riu sem rebuço. O rouxinol, porém, compreendia a razão dessa mágoa do estudante, e ficou silencioso na sua árvore, reflectindo sobre o mistério do amor.
De repente, estendeu as asas e lançou-se voando pelo espaço. Atravessou a alameda, como uma sombra, e como uma sombra percorreu o jardim. Ao centro dum alegrete ostentava-se uma viçosa roseira; mal a viu, correu para lá e poisou-lhe num dos ramos.
- Dá-me uma rosa encarnada - suplicou. - CantarÂ-te-ei a minha canção mais suave.
Mas a roseira abanou as folhas.
- As minhas rosas são brancas - disse ela -, tão brancas como a espuma do mar e mais brancas do que a neve das montanhas. Entretanto procura a minha irmã que vive junto ao relógio de sol. Talvez te possa dar o que pretendes.
De maneira que o rouxinol buscou a roseira indicada, Ã qual repetiu o pedido.
Ela, porém, abanou igualmente as folhas.
- As minhas rosas são amarelas - respondeu. - AmaÂrelas como os cabelos das sereias que se sentam em tronos de âmbar, mais amarelas do que os narcisos que florescem no prado antes que o segador apareça com a sua foice. Mas vai procurar a minha irmã, que está por baixo da janela do estudante, e talvez ela te conceda o que pretendes.
De modo que o rouxinol se dirigiu à roseira indicada, à qual falou assim:
- Dá-me uma rosa vermelha e eu cantarei para ti a mi nha canção mais suave.
Mas a roseira abanou as folhas
- É verdade que as minhas rosas são encarnadas, tanto como os pés das pombas, mais do que os grandes leques
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de coral que ondulam nas cavernas do oceano. O Inverno, porém, gelou-me a seiva, a geada queimou-me os botões, o temporal partiu-me os ramos. Este ano não darei flor.
- Tudo o que desejo é só uma rosa encarnada! - inÂsistiu o rouxinol. - Uma só! Não haverá forma de a obÂter?
- Há um único processo - respondeu a roseira -, mas é tão terrÃvel que não me atrevo a aconselhar-to.
- Revela-o. Eu não tenho medo.
- Se queres uma rosa encarnada tens de a extrair da música, ao luar, e tingi-la com o sangue do teu próprio coÂração. Deverás cantar para mim com o peito apoiado num dos meus espinhos. Cantarás toda a noite, o espinho traspassar-te-á o coração, e o sangue da tua vida correrá para as minhas veias, transformando-se na seiva de que preciso.
- A morte é preço excessivo para dar por uma rosa enÂcarnada - retorquiu o rouxinol- e a vida é coisa que toÂdos nós muito amamos. Gosta-se tanto de estar no bosÂque, a ver o Sol no seu carro de oiro e a Lua no seu carro de pérolas! Suave é o aroma do espinheiro e deliciosas as campainhas azuis que se ocultam no vale, e a urze que cresce na colina. No entanto, o amor é melhor do que a viÂda, e o que é o coração dum pássaro comparado com o dum homem?
Abriu então as asas, ergueu-se no espaço. Passou pelo quintal como uma sombra e como uma sombra voou soÂbre a alameda. O estudante estava ainda caÃdo no chão, onde o deixara, e as lágrimas cintilavam-lhe nos olhos, por não se terem secado.
- Regozija-te! - exclamou o rouxinol. - Terás a tua rosa encarnada. Criá-la-ei com música, ao luar, e ficará tinta com o sangue do meu coração. Tudo quanto te peço,
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em paga, é que sejas um apaixonado verdadeiro, pois o amor é mais sábio do que um filósofo e mais resistente que o Poder. As suas asas são Ãgneas na cor, de cor de foÂgo é o seu corpo também. Os lábios têm a doçura do mel e o hálito o perfume do incenso.
O estudante levantou a cabeça e pôs-se a escutar, mas não podia compreender o que o rouxinol lhe dizia, porÂque só era do seu conhecimento aquilo que estava escrito nos livros.
Entendeu-o, porém, a azinheira, e entristeceu, pois era muito amiga da avezita que construÃra o ninho entre os seus ramos. E pediu-lhe:
- Canta-me a tua derradeira canção. Quando desapaÂreceres hei-de sentir-me bastante só.
Cantou, portanto, o rouxinol, em honra da árvore, e fêÂ-lo numa voz que era um murmúrio de água que cai dum jarro de prata. Quando terminou, o estudante pôs-se de pé e tirou da algibeira um caderno de apontamentos e um lápis.
Passeando depois na alameda, o rapaz dizia de si para consigo:
«O rouxinol tem estilo, não se lhe pode negar. Mas terá sentimentos? Desconfio que não. É, na realidade, como a maior parte dos artistas: estilo sem sinceridade. Jamais se sacrificaria fosse por quem fosse. Ocupa-se apenas de múÂsica, e ninguém ignora o egoÃsmo que existe em todas as artes. Temos de confessar, todavia, que produz notas muiÂto belas. Que pena serem isentas de significação e inteiraÂmente destituÃdas de proveito!»
Foi para o seu quarto, deitou-se sobre o mÃsero enxerÂgão e começou a pensar na amada. Daà a pouco adormecia.
Quando nasceu a Lua, o rouxinol voou para a roseira e encostou o peito a um dos espinhos da planta. Toda a noiÂte
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cantou, com o peito unido ao espinho, e o frio astro de cristal parecia inclinar-se para ouvir. Toda a noite cantou, e o espinho foi-se-lhe enterrando mais e mais no peito, e das suas veias o sangue foi-se-lhe escoando lentamente.
Primeiramente cantou a origem do amor no coração de dois jovens. No ramo mais alto da roseira começou a deÂsabrochar uma rosa esplêndida, pétala atrás de pétala, na sequência das canções. Era pálida de inÃcio, como a névoa que paira sobre o rio, pálida como os dedos da manhã e prateada como as asas da aurora. Qual a sombra duma roÂsa num espelho argênteo, ou na superfÃcie dum lago, assim era a flor que desabrochava no mais alto ramo da roseira.
Mas esta ordenou ao rouxinol que se apertasse com mais força contra o espinho.
- Aperta-te, rouxinol, ou então nascerá o dia antes que a rosa esteja completa.
Assim fez a ave, e foi cantando sempre em voz mais cheia, pois agora relatava o despertar da paixão na alma da mulher e na do homem. E um rubor delicado cobriu as pétalas da rosa, como o rubor na face do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho não chegara ainda ao coração do rouxinol, e por isso o âmago da rosa contiÂnuava branco. Só o sangue da avezita poderia carminar o âmago da rosa.
Então a roseira ordenou ao rouxinol que se chegasse mais.
- Aperta com mais força, ou então nascerá o dia antes que a rosa esteja acabada.
Obedeceu o rouxinol, apertando-se mais de encontro ao espinho, e este chegou-lhe ao coração, produzindo-lhe violenta dor em todo o corpo. Amarga, amarÃssima era a dor, e cada vez mais cheio o canto, pois cantava o amor divinizado pela morte, o amor que não morre no túmulo.
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E a bela rosa tornou-se rubra, rubra como o céu ao poente. As pétalas eram dum tom carmesim, e carmesim o coração da flor. Entretanto enfraquecia a voz do rouxinol, as asitas começavam a debater-se, velava-lhe os olhos uma névoa. Enfraquecia-lhe a voz e ele sentiu na garganta qualquer coisa que o sufocava.
Soltou então a última nota de música. Ouviu-a a branÂca Lua, que se esqueceu da alvorada e se deteve no céu. Ouviu-a a rosa vermelha, que estremeceu de prazer e abriu as pétalas à fresca aragem da manhã. Levou-a depois o eco para a sua caverna purpurina e com ela despertou dos seus sonhos os pastores adormecidos. E a nota fluÂtuou entre os canaviais do rio e este arrastou para o mar a mensagem do rouxinol.
- Olha, olha! - gritou a roseira. - A rosa já está comÂpleta.
Mas a ave não respondeu, porque jazia morta no chão, com o espinho cravado no peito.
Ao meio-dia o estudante abriu a janela e olhou para fora.
- Que sorte! - exclamou. - Aqui está uma rosa enÂcarnada. Nunca vi nenhuma como esta em toda a minha vida. É tão bela que há-de ter, forçosamente, um nome laÂtino muito comprido.
Debruçando-se, colheu-a. Em seguida pôs o chapéu e correu a casa do professor, segurando a rosa na mão.
A filha do professor estava sentada à porta, a dobar um novelo de seda azul, e tinha um cão deitado aos pés.
- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa encarnada - bradou o estudante. - Aqui tens a rosa mais encarnada do mundo. Usá-la-ás ao peito, esta noite, e, enquanto dançarmos, ela te falará do meu amor.
Mas a rapariga, com ar carrancudo, respondeu:
- Parece-me que não vai condizer com o meu vestido.
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Além disso, o sobrinho do mordomo-mor enviou-me umas jóias verdadeiras, e toda a gente sabe que as jóias custam mais do que as flores.
- Palavra de honra que és muito ingrata! - responÂdeu, zangado, o rapaz.
E atirou a rosa para a rua, onde foi cair numa valeta, sendo logo esmagada pela roda de um carro.
- Ingrata? - repetiu a rapariga. - O que te digo é que és muito grosseiro. No fim de contas, quem és? Não pasÂsas dum estudante. Nem creio que tenhas fivelas de prata nos sapatos, como o sobrinho do mordomo-mor.
Disse isto, ergueu-se da cadeira e foi para dentro de caÂsa.
- Que estúpida coisa é o amor! - murmurou o estuÂdante, afastando-se. - Não tem a utilidade da Lógica, pois com ele nada se prova, e está sempre a sugerir-nos coisas que afinal não acontecem, ao mesmo tempo que nos faz crer que são verdadeiras. De facto, não é prático e, numa época de utilidade como esta, acho preferÃvel voltar à Filosofia e estudar a MetafÃsica.
De modo que regressou ao seu quarto, tirou um calhaÂmaço poeirento e principiou a ler.
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O GIGANTE EGOÃSTA
Todas as tardes, ao voltarem da escola, as crianças cosÂtumavam ir brincar para o jardim do Gigante.
Era um jardim grande e bonito, coberto de relva macia e verde. Aqui e ali, entre essa relva, desabrochavam flores linÂdas como estrelas; havia uma dúzia de pessegueiros que ao vir a Primavera floresciam de cor-de-rosa e de tons de pérola, e no Outono se carregavam de frutos opulentos. As aves poiÂsavam nas árvores e cantavam com tanta doçura que os peÂquenos interrompiam os seus jogos para ficarem a escutá-las.
- Que bom que é estar aqui - diziam uns para os outros. Certo dia o Gigante regressou. Fora visitar o seu amigo Papão da Cornualha, e demorara-se lá sete anos. Ao fim desses sete anos havia dito tudo o que tinha a dizer, porÂque a sua conversa era limitada, e resolveu voltar ao casteÂlo que lhe pertencia. Quando chegou, viu as crianças a brincarem no jardim.
- Que estais aqui afazer? - exclamou com voz iraÂcunda. E os pequenos fugiram.
- Este jardim é muito meu - declarou. - Que todos o fiquem sabendo. Não consinto que ninguém venha paÂra cá divertir-se, a não ser eu próprio.
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Edificou então um muro muito alto em toda a roda e colocou nele este aviso:
SERÃO CASTIGADOS OS INTRUSOS
Era bastante egoÃsta, esse Gigante.
Os desgraçados dos petizes não tinham já onde brinÂcassem. Tentaram fazê-lo na estrada, mas havia aà muita poeira e calhaus aguçados, o que lhes desagradava. VaÂguearam então em volta do alto muro, depois das aulas, conversando acerca do belo jardim que existia do outro lado.
- Que bom que era estar lá! - diziam uns para os ouÂtros.
Veio a Primavera e por todo o paÃs abriram flores e canÂtaram pássaros: só no jardim do Gigante continuava InÂverno. As aves não se importavam de ir para ali chilrear, porque não havia crianças, e as árvores esqueceram-se de florir. Uma vez houve uma florinha que levantou a cabeÂça acima da relva, mas deu logo com a vista na tabuleta do aviso e teve tanta pena da petizada que de novo se ocultou rente ao chão, e adormeceu. Os únicos entes satisfeitos eram a Neve e a Geada.
- A Primavera esqueceu-se deste jardim - comentaÂvam elas. - De maneira que podemos ficar cá todo o ano.
A Neve cobriu os relvados com o seu imenso manto branco, e a Geada pintou de prata todas as árvores. ConÂvidaram depois o Aquilão a viver com eles, e ele aceitou o convite. Andava embrulhado em peles e bramava todo o dia pelo jardim, derrubando as chaminés da residência.
- MagnÃfico lugar - dizia ele. - Temos de convidar também o Granizo.
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Veio, pois, o Granizo, e diariamente, durante três horas, começou a rufar no telhado do castelo até quebrar grande parte das ardósias. Em seguida corria de roda do jardim, com a maior velocidade de que dispunha. Vestia de cinÂzento e tinha um hálito frio como gelo.
«Não percebo porque é que a Primavera tarda tanto», pensava o Gigante EgoÃsta sentado à janela, a olhar para o seu parque branco de neve. «Espero que o tempo acabe por mudar.»
Mas a Primavera nunca veio, nem o Verão. O Outono amadurecia fruta em todos os quintais, menos no do GiÂgante. «É muito egoÃsta», explicava. Ali era sempre Inverno, e o Aquilão, e a Neve, e o Granizo, e a Geada dançaÂvam de contÃnuo ao redor das árvores.
Certa manhã estava o Gigante ainda na cama, porém já acordado, quando ouviu deliciosa música. Soava-lhe tão agradavelmente aos ouvidos que até julgou serem os múÂsicos do rei que passavam por lá. Mas era apenas um pinÂtarroxo que lhe cantava perto da janela. Havia já tanto tempo que não escutava o canto dos pássaros no seu jarÂdim que achou aquilo a mais bela música do mundo. O Granizo deixou de rufar-lhe nos telhados, o Aquilão cesÂsou de rugir e, pela janela aberta, chegou-lhe à s narinas um perfume inebriante.
- Parece que, enfim, se resolveu a vir a Primavera! Â- exclamou o Gigante.
Saltou da cama e olhou para fora.
E que viu ele?
Viu um espectáculo soberbo. Através dum buraco peÂquenino do muro, as crianças haviam entrado e estavam agora empoleiradas nos ramos das árvores. Em todas as árvores via ele uma criança. E as árvores sentiram-se tão contentes com o regresso da petizada que se cobriam de
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flores e lhes ondulavam suavemente os ramos por cima das cabecitas. Em torno voavam pássaros, chilreando saÂtisfeitos, e as flores espreitavam do meio da relva, sacudiÂdas pelo riso. Era uma cena encantadora, e só num recanÂto mais afastado do jardim permanecia o Inverno. Ali esÂtava um miúdo que não conseguia trepar à árvore e que chorava de desgosto; e a pobre da árvore continuava cheia de neve, enquanto por cima dela uivava o Aquilão.
- Sobe, meu filho - disse a árvore, inclinando os raÂmos o mais que pôde. Mas a criança era pequenina de mais.
O coração do Gigante enterneceu-se quando olhou paÂra fora.
- Tenho sido tão egoÃsta! - exclamou. - Agora percebo o motivo por que a Primavera não aparecia cá. Vou colocar aquele miúdo em cima da árvore e depois derruÂbar o muro. E o jardim será para sempre o lugar de recreio das crianças.
Arrependia-se deveras do que fizera até aÃ. Desceu, pois, a escada, abriu de mansinho a porta e chegou ao jarÂdim. Quando, porém, o lobrigaram os pequenos, de tal modo se assustaram que fugiram a sete pés, e o Inverno regressou ao jardim. Só o tal petiz é que não fugiu, porque tinha os olhos rasos de lágrimas e não viu entrar o GiganÂte. Este foi muito devagar por trás dele, pegou-lhe com toÂdo o cuidado e pô-lo em cima da árvore. E a árvore imeÂdiatamente se encheu de flores, e os pássaros vieram canÂtar, e o rapazinho, estendendo os braços, abraçou o GiÂgante e beijou-o. As outras crianças, vendo isto, comÂpreenderam que o Gigante já não era mau e vieram a corÂrer, e a Primavera veio atrás delas.
- Este jardim, agora, é vosso, meus filhos - declarou o dono.
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Pegou então numa picareta colossal e demoliu o muro. Quando as pessoas da terra se dirigiam ao mercado, ao meio-dia, viram o Gigante a entreter a petizada no mais belo jardim que os seus olhos tinham contemplado.
E todo o dia brincaram, e, ao anoitecer, foram ter com o Gigante para se despedirem dele.
- Onde está o vosso companheiro pequenino? - perÂguntou o dono da propriedade. - Aquele que eu pus em cima duma árvore...
Estimava-o muito, porque fora o que lhe dera um beijo.
- Não sabemos - retorquiram os miúdos. â" Deve ter-se ido embora.
- Então dizei-lhe que não tenha receio e que volte amanhã.
- Não sabemos onde é que ele mora. Nunca o vimos antes.
Esta resposta entristeceu o Gigante.
Todas as tardes, ao saÃrem da escola, vinham os pequeÂnos brincar com o Gigante. Aquele, no entanto, de quem o Gigante mais gostava, esse não tornou a ser visto. O doÂno do jardim mostrava-se muito bondoso para com todos, mas suspirava sempre pelo seu primeiro amiguinho, de quem falava bastantes vezes.
- Gostava tanto de o tornar a ver! - repetia. Passaram os anos e o Gigante envelheceu e enfraqueceu muito. Como já não podia brincar, sentava-se numa polÂtrona enorme a admirar o seu jardim e a ver os jogos das crianças.
- Tenho flores lindÃssimas - dizia ele -, mas as crianÂças são ainda mais bonitas.
Certa manhã de Inverno, enquanto se vestia, olhou pela janela. Já não embirrava agora com o Inverno, pois sabia que era apenas o sono da Primavera e o repouso das flores.
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De súbito, esfregou os olhos, espantado, olhou e tornou a olhar. Não havia dúvida de que era uma coisa estranha. No canto mais afastado do jardim estava uma árvore comÂpletamente revestida de flores alvacentas. Eram áureos os ramos e argênteos os frutos que pendiam. E debaixo da árvore estava o rapazinho de quem ele gostava tanto.
Desceu o Gigante a escada, cheio de alegria, e penetrou no jardim. Foi a correr por cima da relva e chegou aonde estava o pequeno; mas, ao vê-lo, indignou-se, e pergunÂtou:
- Quem se atreveu a magoar-te? Dize-me sem demoÂra, para que eu o mate com a minha espada.
- Estas - volveu a criança - são as feridas do Amor.
- E tu quem és? - continuou o Gigante, invadido por um estranho sentimento e ajoelhando ao lado da criança.
Ela sorriu e respondeu:
- Deixaste-me um dia brincar no teu jardim. Hoje vi rás comigo para o meu, que é o ParaÃso.
E quando, nessa tarde, as crianças apareceram lá, enÂcontraram o Gigante morto, debaixo da árvore, e todo coÂberto de flores alvacentas.
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O AMIGO FIEL
Certa manhã a velha ratazana deitou a cabeça de fora do buraco. Tinha olhinhos vivos como contas e bigodes cinÂzentos muito rijos; quanto ao rabo, parecia um fio comÂprido de borracha preta.
No lago nadavam patinhos, que semelhavam um bando de canários. A mãe deles, que era muito branca e de perÂnas encarnadas, tentava ensiná-los a se equilibrarem de caÂbeça para baixo e patinhas no ar.
- Jamais sereis recebidos na alta sociedade - dizia ela - se não aprenderdes esta prenda.
Ela própria mostrava como se fazia. Mas os patinhos não lhe prestavam atenção. Eram ainda tão novos que não compreendiam as vantagens de se pertencer à alta socieÂdade.
- Que pequenos desobedientes! - comentou a ratazaÂna. - Era bem feito que se afogassem.
- Ora essa - replicou a pata. - Tem de se começar pelo princÃpio e os pais necessitam de muita paciência.
- Quanto a sentimentos maternos, não entendo nada - retorquiu a outra. - Sou solteira e nunca pensei em caÂsar. O amor é, de certo modo, coisa muito boa, mas dou
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maior importância à amizade. Francamente, não conheço nada no mundo que valha um amigo fiel.
- Que ideia fazes das obrigações dum amigo fiel? Âinquiriu um pintarroxo, que ouvira a conversa, empoleiÂrado num ramo de salgueiro.
- Era isso justamente o que eu queria saber - declaÂrou a pata, nadando para o extremo do lago e pondo-se de cabeça para baixo, a fim de dar exemplo aos filhos.
- Que pergunta estúpida! - retorquiu a ratazana. ÂUm amigo fiel é aquele que me presta bons serviços. Nem mais.
- E tu que lhe darias em troca? - perguntou o passaÂrinho, baloiçando-se num ramo prateado e agitando as asas pequenas.
- Não te percebo!
- Pois então vou contar-te uma história que diz resÂpeito a isso.
- Que diz respeito a mim? Sou todo ouvidos. Gosto imensamente de histórias.
- Pode-se aplicar a ti - asseverou o pintarroxo.
Desceu e veio para a margem do lago, onde contou a história do Amigo Fiel.
- Era uma vez - começou o pintarroxo - um hoÂmenzinho sério chamado Hans.
- Pessoa distinta? - interrompeu a ratazana.
- Não me parece que o fosse, excepto pela bondade do seu coração e pelas faces redondas, engraçadas, de tipo bem-humorado. Vivia sozinho numa cabana e todos os dias trabalhava no seu quintal. Em toda a redondeza não havia quintal mais bem tratado. Ali cresciam cravos, goiÂvos, bolsas-de-pastor, bocas-de-Iobo; havia rosas brancas e amarelas, lilases, violetas. Na altura própria floriam as
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columbinas, as manjeronas, as prÃmulas, os manjericos, os narcisos e as cravinas, conforme passavam os meses. Uma flor tomava o lugar doutra, de maneira que se viam semÂpre coisas bonitas e se aspiravam aromas deliciosos.
«o nosso Hans tinha muitos amigos, mas o mais fiel era o corpulento e rico moleiro Hugo. Era na verdade tão fiel e dedicado ao seu Hans que nunca passava pelo quintal deste sem se debruçar sobre o muro para colher um braÂçado de flores ou para encher as algibeiras de ameixas e ceÂrejas, caso fosse tempo de fruta.
«- Os amigos sinceros - dizia ele - deviam ter tudo em comum.
«Hans fazia que sim com a cabeça, sorrindo, e sentia-se orgulhoso de ter um amigo com ideias tão elevadas.
«É certo que muitas vezes os vizinhos achavam esquisiÂto que nunca o moleiro, sendo tão rico, desse qualquer coiÂsa em troca ao amigo Hans, apesar de possuir cem sacos de farinha arrecadados no moinho, e seis vacas leiteiras, e um grande rebanho de ovelhas lãzudas. No entanto o Hans jaÂmais se preocupava com isso, e nada lhe dava maior gosto do que ouvir os discursos extraordinários que o outro cosÂtumava fazer a respeito do altruÃsmo e da amizade sincera.
«Hans trabalhava sempre no seu quintal. Durante as três primeirà s estações do ano podia dizer-se que vivia feÂliz; mas quando chegava o Inverno e ele não tinha nem flores nem fruta que levasse ao mercado, passava o seu boÂcado de frio e fome e não era raro deitar-se sem ter comiÂdo mais que umas peras passadas e meia dúzia de nozes. Além disso, ficava muito só, porque nessa altura o moleiÂro nunca o ia visitar.
«- Não vale a pena ir a casa do amigo Hans enquanto durar a neve - explicava o moleiro à mulher. - Quando as pessoas estão em apuros, convém deixá-las sozinhas,
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sem serem importunadas. Esta é pelo menos a minha opiÂnião acerca da amizade, e julgo que tenho razão. PortanÂto, esperarei pela Primavera e então irei visitá-lo. Ele já me poderá dar, nessa ocasião, um cabaz de margaritas, com que se há-de sentir contentÃssimo.
«- Estás sempre a pensar nos outros - respondia a mulher, confortavelmente sentada numa poltrona, junto da lareira onde ardia um bom lume de pinhas. - Ralas-te de mais. Mas é agradável escutar as tuas ideias sobre a amizade. Estou convencida de que o prior não seria capaz de dizer coisas tão bonitas como tu, embora viva em casa de três andares e use anel de oiro no dedo.
«- Não se podia convidar o amigo Hans a vir para cá? - atalhou uma vez o filho mais novo do moleiro. - Se ele está atrapalhado, eu dou-lhe metade do meu prato de aveia e mostro-lhe os meus coelhinhos brancos.
«- Sempre és muito palerma! - exclamou o pai. - Não sei, realmente, de que serve mandar-te à escola. Parece que não aprendes nada. Pois se o amigo Hans viesse para cá, e visse o nosso lume farto, e a nossa boa ceia, e o nosso esÂplêndido barril de vinho tinto, podia ficar com inveja, e a inveja é uma coisa tremenda, corrompe as melhores natureÂzas. E eu não hei-de querer que se corrompa a natureza do meu amigo Hans. Sou o seu melhor amigo, sempre o tenho vigiado e não o deixarei sucumbir à s tentações. Demais, se Hans vivesse cá, seria capaz de me pedir, a crédito, um pouÂco de farinha, pedido a que eu não poderia aceder. A fariÂnha é uma coisa, a amizade é outra: não devem confundirÂ-se, as palavras pronunciam-se de modo diferente, têm sigÂnificados diversos. Isto entra pelos olhos de toda a gente!
«- Falas muito bem - opinou a mulher, servindo-se duma caneca de cerveja morna. - Até me dá vontade de dormir! É como se estivesse na igreja.
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«- Há muitas pessoas que procedem bem - retrucou o moleiro -, mas poucas falam como deve ser, o que proÂva que o falar é o mais difÃcil dos dois predicados, e tamÂbém o mais bonito. - Dizendo isto, olhou para o filho, com ar severo, e o rapaz sentiu-se tão envergonhado que baixou a cabeça, corou e até verteu algumas lágrimas denÂtro do chá. Mas podia encontrar desculpa na sua extrema verdura de anos.»
- Acabou a história? - perguntou a ratazana.
- É claro que não. Estou ainda no princÃpio - repliÂcou o pmtarroxo.
- Então estás muito atrasado. Actualmente um bom narrador começa pelo fim, depois chega ao princÃpio e enÂtão conclui pelo meio. Este é que é o novo método. SouÂbe tudo a este respeito, outro dia, da boca dum crÃtico que passeava à volta do lago em companhia dum mancebo. FaÂlou durante muito tempo sobre o assunto, e acho que tiÂnha razão, pois usava óculos fumados e era calvo e, semÂpre que o rapaz lhe observava qualquer dúvida, ele exclamava: «Essa agora!» Mas continua com a tua história. Gosto bastante desse moleiro. Eu própria sou dotada dos melhores sentimentos, de maneira que noto afinidades enÂtre nós dois.
- Pois bem - prosseguiu o pintarroxo, saltitando ora sobre uma perna ora sobre outra. Logo que passou o InÂverno, e as florinhas desabrocharam cá e lá, o moleiro disÂse à mulher que ia visitar o seu amigo Hans.
«- Que bom coração que tu tens! - declarou ela. ÂEstás sempre a pensar nos outros. Não te esqueças de leÂvar o cabaz maior, para trazeres flores.
«o moleiro, então, prendeu as asas do moinho com uma corrente de ferro e desceu a colina, levando um cesÂto grande, vazio.
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«- Bom dia, amigo Hans.
«- Bom dia - retorquiu este, apoiado à enxada e sorÂrindo de orelha a orelha.
«- Como passaste o Inverno? - inquiriu o recémÂ-chegado.
«- Assim, assim... É muito amável, realmente, o teu interesse. Para falar verdade, não foi lá muito bom, mas agora temos a Primavera e eu sinto-me feliz. As flores meÂdram todas muito bem.
«- Falámos de ti bastantes vezes, este Inverno, Hans. Pensávamos como estarias...
«- Vocês são umas jóias! Receava que se houvessem esquecido de mim.
«- Que ideia, Hans! A amizade nunca se esquece. É o que ela tem de mais extraordinário. Mas tu, se calhar, não compreendes a poesia da vida. A propósito, as tuas marÂgaritas estão lindÃssimas.
«- Na verdade, não estão feias. É uma sorte para mim ter tantas. Tenciono levá-las ao mercado e vendê-las à fiÂlha do burgomestre. Com esse dinheiro resgatarei o meu carrinho de mão.
«- O quê? Queres dizer com isso que o empenhaste? Fizeste um disparate!
«- Pois vi-me obrigado a fazê-lo. O Inverno, como saÂbes, foi rigoroso, e eu em boa verdade não tinha com que comprar pão. Comecei por empenhar os botões de prata do meu fato de ver a Deus, depois a corrente, também de prata, a seguir o cachimbo, e por último o carrinho de mão. Mas agora vou reaver tudo isso.
«- Hans - disse o moleiro - vou dar-te o meu carriÂnho de mão. Já não está muito novo. Para falar francaÂmente, falta-lhe um dos lados e há qualquer coisa que não me parece certa lá nos raios duma roda. Mas, apesar de
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tudo isso, vou dar-to. Sei que é grande generosidade da miÂnha parte, e há-de haver quem me acuse de perdulário. Mas não sou como os outros; entendo que a generosidade é a essência da amizade, e além disso tenho um carrinho novo para meu uso. Não te preocupes mais, conta com o carrinho de mão.
«- És muito generoso, palavra de honra! - exclamou Hans, com aquela cara tão pândega iluminada por um riÂso de prazer. - Poderei consertá-lo facilmente, porque tenho uma tábua em casa.
«- Uma tábua! - bradou o moleiro. - É precisamenÂte do que eu necessito para o telhado do celeiro. Há lá um grande buraco e, se o não tapar, o trigo molha-se todo. Ainda bem que falaste nisso. É curioso como uma boa acÂção provoca outra. Eu dei-te o meu carrinho, e agora tu vais dar-me a tua tábua. Já se sabe que o carrinho vale mais do que a tábua, mas a verdadeira amizade não olha a essas coisas. Vai já buscá-la, que eu hoje mesmo começarei a trabalhar no celeiro.
«- Com todo o gosto - respondeu Hans, que foi a correr ao telheiro a fim de trazer a tábua.
«- Não é muito grande - observou o moleiro, olhanÂdo para ela - e desconfio que, depois de arranjar o telhaÂdo, não vai ficar bocado nenhum para consertares o carriÂnho. Enfim, a culpa não é minha. E agora, já que te ofereÂci o meu carrinho, estou certo de que, em paga, me darás algumas flores. Tens aqui o cesto. Vê se o enches todo.
«- Todo? - repetiu Hans desconsolado, pois o cesto era na verdade dos maiores e ele sabia que, se o enchesse, não lhe sobejariam flores para vender no mercado. E estaÂva tão impaciente de reaver os seus botões de prata!
«- Pensando bem - observou o moleiro - não acho que esteja a ser exigente, uma vez que te dei o meu carriÂnho.
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Ou eu me engano muito, ou a amizade, a verdadeira amizade, é isenta de qualquer egoÃsmo.
«- Meu caro Hugo! Como és também o melhor dos amigos, podes dispor de todas as flores do meu quintal. Para mim mais vale a boa opinião que faças de mim do que todos os botões de prata do mundo.
«Dizendo isto, apressou-se a colher todas as margaritas que encontrou e com elas encheu o cabaz do moleiro.
«- Adeus, Hans - volveu o outro, que tornou a subir a colina com a tábua às costas e o cesto a abarrotar na mão.
«- Até à vista - replicou Hans, que voltou a cavar a terra, muito satisfeito com a ideia do carrinho.
«No dia seguinte estava ele a colocar uns pregos sobre a porta, a fim de prender os ramos de madressilva, quanÂdo ouviu a voz do moleiro a chamá-lo da estrada. Desceu logo o escadote, atravessou o quintal e espreitou por cima do muro. O amigo trazia um saco enorme de farinha, à s costas.
«- És capaz de me levar este saco ao mercado? - perÂguntou o moleiro.
«- Tenho imensa pena - redarguiu Hans -, mas hoÂje estou muito ocupado. Preciso de segurar as trepadeiras, regar as flores, tosquiar a relva...
«- Está muito bem, mas a verdade é que, atendendo a que eu vou dar-te o meu carrinho de mão, me parece pouÂco amigável essa tua recusa...
«- Não digas isso! - atalhou Hans. - Por nada desÂte mundo desejarei mostrar-me ingrato.
«Foi imediatamente pôr o chapéu e partiu carregado com o saco.
«O dia estava bastante quente e a estrada era poeirenta ao máximo. Antes que o amigo Hans houvesse calcorreaÂdo
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seis milhas, já o cansaço o obrigava a sentar-se para reÂpousar um pouco. Todavia continuou daà a instantes, com todo o heroÃsmo, e por fim alcançou o mercado. Depois de esperar muito tempo, conseguiu vender a farinha por bom preço, e voltou então para casa, temendo que, vindo a noite, os ladrões lhe saltassem ao caminho.
«- O dia foi realmente duro para mim - disse conÂsigo quando recolheu à cama. - Mas estou satisfeito. Não recusei um favor ao moleiro, que é o meu melhor amigo e, demais a mais, vai oferecer-me o seu carrinho de mão.
«Muito cedo, ao outro dia, veio o moleiro pelo produÂto da venda. O amigo Hans, porém, com a estafa da vésÂpera, encontrava-se ainda deitado.
«- Palavra de honra! - exclamou o visitante. - SemÂpre és muito mandrião! Sabendo que eu te vou dar o carÂrinho, bem podias trabalhar um pouco mais. A preguiça é um grande pecado, e eu não gosto que os meus amigos seÂjam preguiçosos. Não leves a mal esta franqueza com que te falo, pois se o faço é por seres meu amigo. Ora de que serviria a amizade se não fosse para a gente dizer o que pensa? Qualquer pessoa é capaz de papaguear coisas boÂnitas, para agradar e lisonjear, mas o amigo verdadeiro, o amigo fiel não se importa de pôr o seu coração à mostra. Sendo amigo deveras, prefere esta forma de proceder, pois sabe que o faz apenas por bem.
«- Desculpa-me - retorquiu Hans, esfregando os olhos e tirando o barrete de dormir. - Eu estava tão canÂsado que pensei não haver mal em ficar mais um bocadiÂnho na cama, a ouvir cantar os pássaros. Não sabias que trabalho melhor depois de os pássaros cantarem?
«- Não, mas folgo muito saber - respondeu o moleiÂro, batendo amigavelmente no ombro de Hans. - DeseÂjava
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que viesses ao moinho para me consertares o celeiro. Veste-te depressa.
«O desgraçado estava ansioso por trabalhar no seu quintal, pois havia quarenta e oito horas que não regava as flores. Mas não queria dizer que não ao moleiro, que era tão seu amigo.
«- Zangavas-te se eu dissesse que tinha muito que faÂzer? - arriscou ele a medo.
«- Pensando bem, não achei que fosse exigir muito, atendendo a que te vou dar o meu carrinho de mão. No entanto, se recusas, eu mesmo me encarregarei da tarefa...
«- Ah, isso é que não! - exclamou o amigo Hans.
«Saltou da cama, vestiu-se e foi para o celeiro, onde consertou o buraco do telhado, trabalhando até ao pôrÂ-do-sol. Nessa ocasião chegou o moleiro, para ver em que altura ia a obra.
«- Já acabaste, Hans?
«- Está tudo pronto - respondeu o interpelado, desÂcendo a escada.
«- Ah, não há trabalho mais consolador do que aqueÂle que se faz para os outros! - sentenciou o dono do moiÂnho.
«- Só o prazer de te ouvir falar assim!... - comentou o amigo Hans, sentando-se e enxugando o suor da testa. - Nunca serei capaz de ter conceitos tão bonitos como os teus!
«- Eles virão - asseverou o moleiro -, mas tens de fazer maior esforço. - Por enquanto estás apenas com a prática da amizade; mais tarde possuirás também a teoria.
«- Achas que sim, francamente?
«- Não tenho a menor dúvida. E agora, que acabaste de consertar o telhado, é preferÃvel ires para casa descansar, pois amanhã gostava que me levasses as ovelhas ao monte.
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«O amigo Hans não teve coragem de fazer qualquer coÂmentário. No dia seguinte de manhã o moleiro apresenÂtou-se na cabana com o rebanho, e Hans foi para o monÂte com os animais. Gastou o dia inteiro na ida e na volta, e, quando regressou, sentiu-se tão fatigado que adormeÂceu na cadeira e só acordou já com dia claro.
«- Agora é que eu vou passar uns dias agradáveis no meu quintal! - disse ele consigo. E meteu logo mãos ao trabalho.
«Mas a verdade é que não podia ocupar-se das suas floÂres, porque o amigo moleiro vinha sempre importuná-lo com pedidos de recados ou de ajudas lá no moinho. Ãs vezes, Hans sentia-se desmoralizado e temia que as flores supusessem diminuição de interesse da parte dele. Consolava-o, porém, a ideia de que o moleiro era o seu melhor amigo. Além disso, pensava na oferta do carrinho que o outro lhe ia fazer, e compreendia quão generoso aquele continuava sendo.
«Deste modo Hans trabalhava para o moleiro, e o moleiÂro proferia sentenças adequadas sobre o valor da amizade, tantas e tão boas que ele costumava anotá-las numa agenda e decorá-las à noite, pois gostava muito de se instruir.
«Ora aconteceu que uma ocasião estava Hans sentado à lareira quando ouviu baterem fortemente à porta. Era uma noite agreste: o vento soprava e rugia de roda da caÂsa tão furioso que, a princÃpio, Hans supôs fosse apenas efeito da tempestade aquela batucada na porta. Mas a coiÂsa repetiu-se, e ainda terceira vez, sempre com mais força, de maneira que se levantou e foi abrir.
«Ali estava o moleiro, de lanterna na mão e um pau comprido ao ombro.
«- Amigo Hans - disse ele -, estou bastante apoquentado. O meu pequeno caiu do escadote e feriu-se.
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Eu vou chamar o médico; mas vive tão longe e a noite está tão ruim que me lembrei de te pedir que fosses em meu lugar. Sabes que vais ter o meu carrinho de mão: não é exigir muito que faças alguma coisa em paga desse favor.
«- Com todo o gosto - replicou Hans - e acho que foste muito amável em teres vindo procurar-me. Irei imeÂdiatamente. O que te peço é que me emprestes a tua lanÂterna, porque a noite está de breu e eu tenho medo de cair no fosso.
«- Desculpa - volveu o outro - mas a lanterna é noÂva e, se alguma coisa lhe sucedesse, seria grande prejuÃzo para mIm.
«- Não faz mal, passarei sem ela - declarou Hans. «Foi buscar uma peliça, enfiou o gorro, atou um lenço em volta do pescoço, e partiu.
«Que noite pavorosa! Tão negra que ele mal enxergava um palmo adiante do nariz. O vento era tão forte que à s vezes quase o derrubava. Hans, todavia, tinha coragem e, depois de haver andado cerca de três horas, chegou à resiÂdência do médico e bateu à porta.
«- Quem é? - perguntou aquele, espetando a cabeça pela janela do quarto.
«- O Hans, senhor doutor.
«- Que deseja?
«- O filho do moleiro caiu do escadote e magoou-se, e o pai desejava que o senhor doutor fosse tratá-lo sem deÂmora.
«- Está bem - respondeu o fÃsico.
«Mandou que lhe aparelhassem o cavalo e lhe trouxesÂsem botas altas e uma lanterna. Uma vez montado, partiu em direcção à casa do moleiro, com o Hans a lhe trotar na peugada.
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«Mas o temporal redobrava de furor, a chuva caÃa a cântaros, e o amigo Hans não podia ver o caminho nem acompanhar o cavalo. Acabou por se extraviar e foi ter aos pântanos, lugar perigosÃssimo, onde o desgraçado se afundou. No dia seguinte uns pastores descobriram o caÂdáver a flutuar num grande charco, e levaram-no para a cabana.
«Toda a gente compareceu no enterro, pois o defunto era muito popular. Foi o moleiro quem levou o luto.
«- Visto que eu fui o seu melhor amigo, cabe-me com justiça desempenhar-me deste encargo.
«E seguiu o cortejo, todo vestido de preto, enxugando de tempos a tempos os olhos num vasto lenço que tirava do bolso.
«- A morte do Hans foi uma perda muito grande para todos - disse o ferreiro, depois do enterro, quando já esÂtavam confortavelmente sentados na estalagem, a beber vinho e a comer bolos.
«- Principalmente para mim - acudiu o moleiro. Â- Imaginem que levei a minha generosidade ao ponto de lhe oferecer o meu carrinho de mão. Agora não sei o que heiÂ-de fazer dele. Atravanca-me a casa e precisa de tantas reÂparações que não haverá ninguém que mo compre. NunÂca mais dou nada seja lá a quem for! Ser generoso sai semÂpre muito caro.»
- E depois? - perguntou a ratazana.
- Não sei mais nada - respondeu o pintarroxo. Â- Não sei nem me importa saber.
- Vê-se bem que não és dotado de sentimentos comÂpassivos - volveu a ratazana.
- O que me parece é que não percebeste a moralidade da história.
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- Pretendes insinuar que a história tem a sua moraliÂdade?
- Está visto que sim!
- Pois então - retorquiu furiosa a ratazana â" devias ter-me prevenido com antecedência. Se o houvesses feito, eu com certeza te não escutaria até ao fim. Teria dito coÂmo o tal crÃtico: «Essa agora!» E talvez ainda esteja a temÂpo de o dizer.
E, soltando um «Essa agora!» com quantas forças pôde, deu um jeito à cauda e retirou-se para o seu buraco.
- Que te parece a ratazana? - indagou a pata, daà a pouco, enfiando pela água adiante. - Pode ter muita esÂperteza, mas eu cá sou mãe de famÃlia e condoo-me semÂpre das solteironas.
- Oxalá não a tenha ofendido - observou o pintarroÂxo. - O certo é que lhe contei uma história que tem a sua moralidade.
- É sempre arriscado fazer uma coisa dessas - repliÂcou a pata.- Eu estou inteiramente de acordo com ela.
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O FOGUETE DE LÃGRIMAS
Ia casar o filho do rei, de modo que o regozijo era geral no paÃs. Ele esperara pela noiva um ano inteiro, mas por fim ela chegara: era uma princesa russa e viera, desde a Finlândia, em trenó puxado por um grupo de seis renas. O trenó tinha a forma dum imenso cisne dourado, e entre as asas do cisne sentava-se a princesa. Chegava-lhe até aos pés a longa capa de arminhos, na cabeça exibia um gorro prateado, e mostrou-se tão pálida como o Palácio da NeÂve onde até aà sempre vivera; tão pálida que toda a gente, ao vê-la passar nas ruas, se admirava e dizia:
- Parece uma rosa branca.
E atiravam-lhe flores das janelas.
A porta do castelo comparecera o prÃncipe, a fim de a receber. Tinha olhos sonhadores, azuis-escuros, e cabelos semelhantes a fios de oiro. Quando a viu, pôs um joelho em terra e beijou-lhe a mão.
- O vosso retrato era um encanto - murmurou. Â
Sois, porém, mais bela ainda que o retrato.
Ao ouvir isto, a princesa corou.
- Há pouco era igual a uma rosa branca - disse um dos
pajens ao seu vizinho. - Agora é como uma rosa escarlate.
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A corte gostou muito desta imagem, sem excepção de ninguém.
Nos dias seguintes ouvia-se repetir-se a cada canto: «Rosa branca, rosa escarlate; rosa branca, rosa escarlaÂte...» O rei ordenou que o salário do pajem fosse dupliÂcado. Como não recebia salário nenhum, a ordem pouco lhe aproveitou, mas a coisa foi considerada bastante honÂrosa e saiu impressa na gazeta oficial.
Passaram-se três dias, ao fim dos quais se realizou o caÂsamento. Foi uma cerimónia magnÃfica. O noivo e a noiÂva caminharam de mãos dadas, debaixo dum pálio de veÂludo roxo bordado a pérolas. Depois houve um banquete de gala, que demorou cerca de cinco horas. O prÃncipe e a princesa tomaram assento no extremo do salão e beberam por uma taça de cristal limpidÃssimo. Só os verdadeiros apaixonados se podiam servir dela, pois que, se lhe tocaÂvam lábios perjuros, ficava escura e enevoada.
- É claro que se amam - disse o pajem. - Claro coÂmo cristal.
Novamente o rei lhe duplicou o salário.
- Que honra! - exclamaram os cortesãos.
A seguir ao banquete houve baile. O noivo e a noiva deÂviam dançar a «dança da rosa» e o rei prometera tocar flauta. Tocava muito mal, mas ninguém jamais se atrevera a dizê-lo, visto tratar-se do rei. Em boa verdade, só sabia duas árias e nunca tinha a certeza de qual era a que tocaÂva. Mas isso importava muito pouco: podia fazer o que quisesse, todos no final aplaudiam com calor.
O último número do programa consistia numa exibição de fogo-de-artifÃcio, que devia principiar exactamente à meia-noite. A princesinha nunca vira fogo-de-artifÃcio, de forma que o rei determinara ao pirotécnico régio que esÂtivesse de serviço no dia da boda.
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- Como é? - perguntou ela ao prÃncipe, certa manhã, quando passeavam no terraço.
- Assemelha-se a uma aurora boreal - explicou o rei, que respondia sempre à s perguntas dirigidas aos outros. Â- Com a diferença de que parece mais natural ainda. Por mim, prefiro isso à s estrelas, porque se sabe de antemão quando vai aparecer, e porque tem a mesma beleza que evocam os meus solos de flauta. Haveis de ver qualquer dia.
Assim, ao fundo do parque, haviam construÃdo uma barÂraca para o efeito. Logo que o pirotécnico régio dispôs tuÂdo como devia ser, os fogos começaram a dialogar entre si.
- O mundo é sem dúvida muito bonito - disse um busca-pés. - Olhai para aquelas túlipas amarelas. Se fosÂsem uns autênticos petardos não seriam mais adoráveis. Estou muito contente por ter viajado. Viajar instrui o esÂpÃrito e desfaz os nossos preconceitos.
- O parque real não é o mundo, meu busca-pés pateÂtinha! - replicou um fósforo de cor. - O mundo é vasÂtÃssimo e, para o ver todo, não gastavas menos de três dias.
- O lugar que nós amamos é que é o mundo - acudiu uma roda-de-fogo, que se sentia feliz na caixa em que a guardavam e que sofrera bastante com a separação. Â
Mas o amor passou de moda, os poetas deram cabo dele. Escreveram tanto a esse respeito, que já ninguém acredita. E não é para admirar. O verdadeiro amor sofre em silênÂcio. Recordo-me que uma vez... Mas deixemos isso. São coisas passadas!
- Que tolice! - replicou o fósforo. - O sentimentaÂlismo não morre; vive sempre, como a Lua. O noivo e a noiva, por exemplo, amam-se deveras. Ouvi esta manhã a história, contada por um papel de embrulho que por acaso estava na mesma gaveta que eu e que sabe todas as noÂvidades da corte.
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Mas a roda-de-fogo abanou a cabeça.
- O sentimentalismo morreu - afirmou ela três vezes. Era daquelas criaturas que julgam tornar uma coisa verÂdadeira só pelo facto de a repetirem amiúde.
De súbito, ouviu-se uma tossezinha seca e todos olhaÂram naquela direcção. O ruÃdo provinha dum foguete grosso e arrogante, amarrado à extremidade duma cana. Tossia sempre antes de falar, para ver se atraÃa as atenções.
- Ham! Ham! - fez ele, e todos ouviram excepto a roda-de-fogo, que estava ainda a abanar a cabeça e a murÂmurar: «O sentimentalismo morreu...»
- Ordem! Ordem! - bradou um petardo. Tinha algo de polÃtico e, como tomava sempre parte nas eleições loÂcais, sabia quais eram as expressões parlamentares em uso.
- Sim, morreu - balbuciou ainda a roda-de-fogo. E pôs-se a dormir.
Logo que se estabeleceu profundo silêncio, o foguete tossiu pela terceira vez e começou a falar. Fê-lo com voz distinta, como se recitasse as suas memórias, e constanteÂmente a olhar por cima do ombro do indivÃduo a quem se dirigia. PossuÃa, de facto, boas maneiras.
- Que sorte para o filho do rei - notou ele - ter caÂsado no próprio dia em que eu vou subir ao ar. Se fosse tuÂdo combinação, não teria dado melhores resultados. O que se vê é que os prÃncipes têm sempre sorte.
- Meu Deus! - interrompeu o busca-pés. - Parece que é precisamente o contrário. Nós é que vamos ser queimados em honra do prÃncipe.
- Isso pode ser contigo - replicou o foguete. - TeÂnho mesmo a certeza de que é assim; no que me respeita, porém, o caso é diverso. Sou um foguete importante, desÂcendente de outros de igual categoria. Minha mãe foi no seu tempo uma roda-de-fogo notável, famosa pelo modo
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como girava. Quando fez a sua aparição em público, roÂdopiou dezanove vezes antes de rebentar, e de cada vez lançava ao ar sete estrelas cor-de-rosa. Tinha um metro de diâmetro e era feita da melhor pólvora. Meu pai foi um foÂguete como eu, de marca francesa. Subia tão alto que reÂcearam não tornasse a descer; mas desceu, porque tinha bons sentimentos, e fez uma descida assombrosa, no meio de chuva de oiro. Os jornais referiram-se ao caso em terÂmos elogiosos. A própria gazeta oficial lhe chamou «um triunfo da arte pilotécnica».
- Pirotécnica, é o que queres dizer - atalhou um fogo-de-bengala. - Sei que é assim porque vi escrito na minha própria caixa.
- Dizia eu... - prosseguia o foguete. - Dizia eu o quê?
- Falavas a teu respeito - explicou o fósforo de cor.
- Já se sabe. Devia forçosamente estar a discutir qualÂquer assunto interessante quando fui interrompido tão sem-cerimónia. Detesto a má-criação e tudo o que não seÂjam boas maneiras, pois sou sensÃvel ao máximo. Estou convencido de que não há no mundo ninguém mais senÂsÃvel do que eu.
- O que é ser sensÃvel? - perguntou um petardo à roda-de-fogo.
- É quem, sofrendo dos calos, anda sempre a pisar os dos outros - respondeu baixinho a interpelada. O petarÂdo quase rebentava a rir.
- De que te ris, ó tu? - indagou o foguete. - Eu não disse nenhum gracejo.
- Rio-me porque estou contente!
- É um motivo egoÃsta. Que direito tens de estar conÂtente? Devias antes pensar nos outros. Ou melhor: devias pensar em mim. Eu penso em mim a toda a hora e espero
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que os outros façam o mesmo. É o que se chama mostrar interesse. Esplêndida virtude, que eu possuo em alto grau! Suponhamos, por exemplo, que me sucedia qualquer coiÂsa esta noite: que desgosto para todos! O prÃncipe e a princesa nunca mais seriam felizes e ficariam com a sua viÂda conjugal estragada para sempre. Quanto ao rei, estou certo de que não resistiria a semelhante contrariedade. Francamente, quando penso na importância da minha siÂtuação, comovo-me até à s lágrimas.
- Pois será melhor que elas não te molhem, se queres dar prazer à assistência - retorquiu-lhe o fósforo de cor.
- Decerto - concordou o fogo-de-bengala, que estaÂva agora mais consolado. - É apenas uma questão de bom senso.
- Bom senso! - volveu indignado o foguete. - Ora essa! Esqueces-te de que sou um ente singular, um indivÃÂduo superior à craveira comum? Qualquer tipo é capaz de ter bom senso, uma vez que não possua imaginação. Eu cá tenho imaginação, pois nunca aceito as coisas como elas são realmente. Vejo-as sempre de maneira diversa. QuanÂto a não me molhar... há aqui alguém que saiba apreciar um temperamento emotivo? O que me vale é não rpe raÂlar com essa ausência, de criaturas sensÃveis. O que 'nos sustenta na vida é a consciência da enorme inferioridade dos outros: eis um sentimento que não me canso de cultiÂvar. A verdade é que nenhum de vocês tem coração. Divertem-se, riem, só porque o prÃncipe e a princesa se caÂsaram!
- E por que não? - observou um balãozito. - Por que não? Trata-se dum sucesso feliz. Quando eu subir ao ar, não me esquecerei de fazer o relato da festa às estrelas. Vocês hão-de vê-las piscar os olhos quando eu lhes falar da linda noiva.
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- Que visão tão trivial da vida! - exclamou o foguete. - Mas não se podia esperar outra coisa. Dentro de ti que há senão vento. És um cérebro oco. Lembrem-se de que o prÃncipe e a princesa podem ir viver para um lugar onde haja um rio profundo, que podem ter um filho único, que esse filho pode nascer loiro e de olhos azuis como o pai; que talvez um dia ele vá passear com a sua aia, e esta adorÂmeça debaixo duma árvore...; o pequenito pode cair ao rio e afogar-se! Que horrÃvel desgraça! Que infelizes pais, que ficam sem o seu filho único! Nunca me esquecerei duma tragédia como esta...
- Mas ainda não perderam o filho! Nem sequer o tiveÂram - acudiu a roda-de-fogo. - Por enquanto não lhes aconteceu nenhuma desgraça.
- Eu não disse que o tivessem perdido - volveu o foÂguete. - Disse que podia suceder. Se já houvesse aconteÂcido isso, não valeria a pena falar do caso. Embirro com os que se lamentam sobre o irremediável. Mas, quando penÂsam que podiam ficar sem o filho único, ah, então, a coisa afecta-me bastante.
- Pudera! - gritou o fogo-de-bengala. - Se tu és tão afectado!
- E tu um malcriadão. Jamais compreenderás a amizaÂde que dedico ao prÃncipe.
- Nem sequer o conheces! - resmungou o fósforo de cor.
- Não disse que o conhecia. Se o conhecesse, talvez não fosse seu amigo. Há sempre perigo em conhecermos os nossos amigos.
- O melhor é não começares a chorar. Isso é que é imÂportante - aconselhou o balão.
- Importante para vocês, isso sei eu. Mas, se eu quiser, hei-de chorar.
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E começou logo a soltar lágrimas, que tombavam como chuva em torno da cana e quase afogaram dois escaraveÂlhos que por ali seguiam em procura dum lugar seco onde instalassem casa.
- Deve ser muito sentimental - comentou a roda-deÂ-fogo. - Chora sem motivo!
Mas o fósforo de cor e o fogo-de-bengala estavam fuÂriosos. Eram indivÃduos muito práticos e não compreenÂdiam tamanha pieguice.
Então nasceu a Lua, que se assemelhava a um enorme broquel de prata. As estrelas principiaram a cintilar e do palácio real chegaram sons de música.
O prÃncipe e a princesa abriram o baile. Dançavam tão bem que as altas açucenas se ergueram mais a fim de os esÂpreitar pela janela. As papoilas rubras, baloiçando a cabeça, puseram-se a marcar o compasso. O relógio anunciou as dez horas, depois as onze e, à última pancada da meiaÂ-noite, vieram todos para o terraço e o rei mandou comÂparecer o pirotécnico régio.
- Pode começar o fogo - disse o monarca.
O pirotécnico fez uma larga vénia e encaminhou-se paÂra o fundo do parque. Acompanhavam-no seis subalterÂnos, levando cada um deles um archote na mão.
Foi um espectáculo deveras surpreendente.
A roda-de-fogo, girando sem parar, fazia um zumbido ensurdecedor. Os fósforos de cor iluminavam o espaço com variegados clarões. Os busca-pés correram por toda a parte, e o fogo-de-bengala tornou, de repente, toda a atÂmosfera escarlate.
- Adeus! - exclamou o balão, começando a subir elargando pequenas faúlhas azuis.
- Pum! Pum! - ressoavam os petardos, que se diverÂtiam à doida. Todos alcançaram grande êxito, excepto o
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foguete de lágrimas. Estava tão húmido por ter chorado que não conseguia arder. A melhor coisa que ele possuÃa era a pólvora, e esta, assim molhada, já não prestava para o efeito. Os seus parentes pobres, a quem ele só falava com ar desdenhoso, esses subiram ao céu como belas e giÂgantescas flores de oiro, que desabrochavam pétalas de luÂme. A corte batia palmas e a princesa ria satisfeitÃssima.
- Calculo que me reservem para outra grande ocasião - disse o foguete. - É com certeza o que isto significa.
E mostrou-se mais orgulhoso do que nunca.
No dia seguinte os operários vieram desmanchar a barÂraca.
- Há-de ser uma deputação - pensou o foguete. Â- Vou recebê-los com a dignidade do costume.
Arrebitou o nariz, franziu as sobrancelhas e tomou toÂdo o aspecto de quem magica num assunto transcendente. Eles, porém, não lhe prestaram atenção. Só no momento de se retirarem é que um gritou:
- Olha! Um foguete! Não prestou.
E atirou-o, por cima do muro, para o fosso.
- Não prestou? É impossÃvel! O homem disse outra coisa, com certeza; eu é que não ouvi bem.
Em todo o caso, caiu na lama.
- Isto aqui não é muito cómodo - murmurou. - ToÂdavia estou certo de que se trata dum sÃtio elegante, alguÂmas termas em moda. Mandaram-me para cá na esperanÂça de me restituÃrem a saúde. De facto, tenho os nervos abalados e preciso de repouso.
N essa altura uma rã, de olhos brilhantes e casaco verde sarapintado, chegou-se nadando até onde ele estava.
- É um recém-vindo - disse ela. - No fim de contas, não há como a lama. Dêem-me tempo de chuva e um fosÂso e eu estarei nas minhas sete quintas. Achas que vai Â
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chover? - indagou, dirigindo-se ao foguete. - Oxalá que sim. O pior é este céu azul, sem nuvens. Que pena!
- Ham! Ham! - tossiu o foguete.
- Que linda voz! exclamou a rã. - Lembra o nosso coaxar, que é o som mais musical do mundo. Vais ouvir esta noite o nosso agrupamento coral. Sentamo-nos no charco dos patos, perto da residência do caseiro, e, logo que a Lua despontar, nós iniciamos o concerto. É tão arÂrebatador que todos ficam acordados só para nos ouviÂrem. Ainda ontem dizia a mulher do caseiro: «Não preÂguei olho em toda a noite, por causa das rãs.» Consola saÂber que somos assim conhecidas.
- Ham! Ham! - repetiu o foguete, irritado. Estava aborrecido porque não o deixavam falar.
- Bela voz, efectivamente - insistiu a rã. â" Conto que vás até ao charco. Mas deixa-me ir ver as minhas filhas: são seis e tenho medo de que aquele peixe grande as encontre. É mesmo um monstro, e não fará cerimónia em as comer a todas ao primeiro almoço. Adeus, adeus. GosÂtei muito da nossa conversa, palavra de honra.
- Chamas a isto conversa! Falaste pelos cotovelos e eu não abri a boca.
- Alguém terá de escutar - retorquiu a rã - e eu por mim aprecio muito dar à lÃngua. Poupa-me tempo e evita discussões.
- Pois eu gosto das discussões.
- Isso é muito plebeu. Na boa sociedade todos temos exactamente a mesma opinião. Mais uma vez adeusinho. Já ali vejo as minhas filhas.
E a rã foi-se embora.
- Que pessoa tão impliquenta! - murmurou o fogueÂte. - E, além disso, mal-educada. Detesto as pessoas, coÂmo tu, que falam de si quando nós desejamos falar de nós;
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é a isso que eu chamo egoÃsmo, e o egoÃsmo é a coisa mais execrável que existe, em especial para os indivÃduos do meu temperamento. Todos me conhecem pelo meu génio compassivo. Bem podias tomar-me como exemplo: não há-de haver melhor modelo em toda a terra. E agora, já que tiveste uma oportunidade como esta, devias aproveitá-la. Olha que eu volto em breve para a corte, onÂde sou muito apreciado. Por sinal que o prÃncipe e a prinÂcesa se casaram ontem em minha honra. É claro que não percebes nada destas matérias, provinciana como és.
- Não vale a pena continuares a falar - atalhou uma libélula, que estava poisada no alto dum junco. - A rã já se foi embora.
- Tanto pior para ela, que para mim é o mesmo - reÂplicou o foguete. - Não vou deixar de falar lá porque não me prestam atenção. Gosto de me ouvir. Isso constitui um dos meus prazeres predilectos. Muitas vezes sustento lonÂgas conversas comigo mesmo, e sou tão inteligente que, em certas ocasiões, não percebo uma única palavra do que digo.
- Nesse caso, por que não dás lições de Filosofia? Âobservou a libélula, que nesse momento desdobrou um par de lindas asas transparentes e voou para o céu.
- Foi estúpida em não ter ficado aqui - comentou o foguete. - Estou convencido de que não terá outra oporÂtunidade de se cultivar. Mas isso é lá com ela. Génios como o meu, mais tarde ou mais cedo acabam por ser apreciados. Assim monologando, enterrou-se mais na lama.
Passou-se algum tempo e então veio a nadar para ele um pato branco, de pernas amarelas e pés largos, que era conÂsiderado uma beldade por causa do seu saracoteio.
- Quá, quá, quá - disse o pato. - Que feitio tão paÂtusco! Nasceste assim ou foi desastre que tiveste em criança?
162
- Bem se vê que viveste sempre no campo, aliás sabeÂrias quem sou. Mas desculpo a tua ignorância. Seria pouÂco natural esperar que os outros fossem tão ilustrados coÂmo eu. Vais cair das nuvens quando souberes que sou caÂpaz de voar até ao céu e de descer em chuva de oiro.
- É coisa que me não deslumbra - redarguiu o pato. - Que vantagem pode haver nisso? Seria diferente se soubesses lavrar, como os bois, ou puxar carros, como os cavalos, ou guardar rebanhos, como os cães de pastor.
- Já vejo - declarou o foguete, dando à voz uma inÂflexão mais orgulhosa ainda -, já vejo que pertences à s classes mais baixas. Uma pessoa na minha situação nunca é útil. Basta que tenhamos certos predicados. Eu por mim não simpatizo com nenhum emprego e muito menos com esses que tu pareces recomendar-me. Sempre achei que os trabalhos rudes só servem para refúgio dos que não têm mais nada que fazer.
- Está bem, está bem - disse o pato, que era de carácÂter dócil e não gostava de contrariar ninguém. - Cada qual tem o seu gosto. Em todo o caso, espero que venhas fixar-te aqui.
- Isso é que não! - exclamou o foguete. - Sou apeÂnas visitante, o que se chama um visitante ilustre. Para faÂlar verdade, considero isto por cá muito enfadonho. Não há sociedade nem isolamento. Um verdadeiro arrabalde! Voltarei provavelmente para a corte, pois sei muito bem que estou destinado a causar sensação no mundo.
- Eu também já um dia pensei entrar na vida pública. Há muitas reformas a fazer. Até tomei parte numa assemÂbleia, há anos, e aprovámos várias moções que condenaÂvam tudo quanto não era do nosso agrado. O efeito não foi o que se esperava. Agora só me interessam os probleÂmas domésticos.
163
- Eu cá fui feito para a vida pública, como todos os meus parentes, ainda os mais humildes. Ainda não me esÂtreei, mas, quando o fizer, há-de ser um êxito! Quanto aos assuntos domésticos, envelhecem-nos depressa e desviam-nos a atenção de coisas mais elevadas.
- Ah, as coisas elevadas! - repetiu o pato. - Isso faz -me lembrar que estou cheio de fome.
E afastou-se a nadar, enquanto dizia várias vezes «quá, quá».
- Não te vás embora! - gritou o foguete. â" Tenho muito que te contar. - O pato não fez caso, e ele contiÂnuou: - Ainda bem que se foi. Decididamente, é uma mentalidade burguesa.
E enterrou-se mais na lama, pensando no isolamento a que estão votados os génios. De repente apareceram dois pequenos de bibes brancos. Vinham pela margem, carreÂgados com achas de lenha e uma cafeteira.
«Agora é que é uma deputação - pensou o foguete. Â- Convém que me mostre cheio de dignidade.»
- Vês isto? - exclamou um dos rapazitos. - Uma caÂna estragada. - Como teria vindo parar aqui?
E tirou o foguete de dentro do fosso.
- Cana estragada? - repetiu aquele. - Deve ser engaÂno. Com certeza que não ouvi bem.
- Vamos pô-la na fogueira - sugeriu outro pequeno.
- Ajudará a ferver a água.
Empilharam as achas, colocaram o foguete em cima e chegaram-lhe fogo.
- Ã"ptimo! - bradou o foguete. - Vão lançar-me ao ar em pleno dia, para que todos possam admirar-me.
- Agora, vamos dormir - disseram os rapazes. Â- Quando acordarmos, a água já estará a ferver.
Deitaram-se no chão e fecharam os olhos.
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O foguete estava bastante húmido, de maneira que levou muito tempo a arder. Afinal, sempre lhe pegou o lume.
- Pronto, vou subir! - declarou a si mesmo, esticanÂdo-se quanto podia. - Tenho a certeza de que irei mais alto que as Estrelas, mais alto que a Lua, mais alto que o Sol. Irei tão alto que...
Ouviu-se um zumbido e ele despegou para a atmosfera. - Estupendo! - exclamou. - Continuarei assim para todo o sempre! Que grande êxito!
Mas ninguém o viu.
Começou então a sentir um formigueiro esquisito por todo o corpo.
«Vou explodir - pensou. - Vou incendiar o mundo inteiro e produzir tal estrondo que ninguém falará noutra coisa durante um ano.»
De facto, explodiu.
Não havia dúvida: a pólvora manifestara-se. Mas ninÂguém o ouviu, nem sequer os dois pequenos, que dorÂmiam profundamente.
Por fim o que restou dele foi apenas uma cana, a qual veio cair em cima dum ganso que passava na borda do fosso.
- Deus do Céu! - exclamou o ganso. - Estão a choÂver paus!
E atirou-se à água.
- Eu bem sabia que causava sensação - murmurou o foguete de lágrimas, arfando. E morreu.
A DONZELA E O FANTASMA
Oscar Wilde
CAPÃTULO I
Quando mister Hiram B. Otis, o Embaixador americano, adquiriu o Parque Canterville, não faltou gente a adverti-lo de que cometia uma loucura, porque na
habitação apareciam, indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade, o próprio lorde Canterville, cujo caracter era dos mais exigentes em escrúpulos,
supusera do seu dever sublinhar o facto, chegado o momento de discutirem as condições do negócio.
- Até nós mesmos tÃnhamos já muito pouca vontade de residir aqui - disse lorde Canterville - desde que a minha tia-avó, a duquesa donatária de Bolton, desmaiou
de terror (ela nunca pôde restabelecer-se desse abalo moral) quando as mãos de um esqueleto lhe assentaram nas espáduas, numa ocasião em que se vestia
para o jantar. Devo igualmente dizer-lhe, mr. Otis, que o fantasma tem sido visto por muitos membros ainda vivos da minha famÃlia, assim como pelo cura
da paróquia, o Reverendo Augustus Dampier, agregado do King's College, em Cambridge. Depois do desgraçado acidente sucedido à duquesa nenhum dos nossos
criados novos quis manter-se ao serviço, e lady Canterville raramente conseguia conciliar o sono durante a noite por causa dos misteriosos ruÃdos vindos
do corredor e da biblioteca.
- Lorde Canterville, - respondeu o Embaixador - eu sou comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que lhes seja atribuÃdo. Venho de um paÃs moderno
em que se tem tudo quanto o dinheiro pode obter. Não é certo que a nossa atrevida mocidade revoluciona o Velho Mundo? Não vos arrebatam as melhores actrizes
e prime donne? Se existisse um fantasma na Europa, dentro em pouco o terÃamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto num dos nossos museus ou exibido
nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de facto, exista - disse, sorrindo, lorde Canterville. - Pode ser que haja resistido às propostas dos vossos arrojados
empresários. É bem conhecido desde há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca deixou de fazer a sua aparição em vésperas do falecimento
de cada pessoa da nossa famÃlia.
- Oh! em todas as famÃlias o médico faz exactamente o mesmo, lorde Canterville. Vamos, fantasmas, é coisa que não há. Não creio que as leis da natureza
abram excepção a favor da aristocracia inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito naturais - comentou lorde Canterville, sem bem compreender a última observação de mr. Otis - e, se
lhe é indiferente ter um fantasma de portas a dentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas a transacção estava concluÃda, e, já quase no termo da época, o Embaixador e a famÃlia foram instalar-se no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira, miss Lucrécia R. Tappan, de West 53 rd. Street, havia sido célebre em Nova-Iorque pela sua beleza. Era agora mulher de meia
idade, muito agradável, com belos olhos e soberbo perfil. Muitas americanas, ao abandonarem o paÃs natal, dão-se ares de mulheres atingidas por um mal
incurável, imaginando ser essa uma das formas da subtileza europeia; mas mrs. Otis não caÃra nunca em semelhante erro. Desfrutava uma compleição invejável
e possuÃa maravilhoso equilÃbrio animal. Em boa verdade e sob numerosos aspectos, era muito inglesa e oferecia excelente exemplo de que a Inglaterra e
a América não têm hoje nada que as distinga uma da outra, salvo, bem entendido, a linguagem.
O filho primogénito, a quem, num impulso de patriotismo que ele jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o nome de Washington, era um rapaz de cabelos
louros e muito bem encarado; parecia integralmente dotado para entrar na diplomacia americana, pois levava de vencida os Alemães, três estações a fio no
casino de Newport. A reputação de exÃmio dançarino que havia conquistado precedera mesmo a sua chegada a Londres. As gardénias e o pariato eram as únicas
fraquezas do seu espÃrito; abstraindo de isso, mostrava ter muito bom-senso.
Miss VirgÃnia E. Otis era uma rapariguinha de quinze anos, graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos rasgados e azuis reflectiam uma bela franqueza.
Era uma admirável amazona. Certo dia batera, em corrida, o velho lorde Bilton, dando duas voltas ao parque em cima do seu poltro e ganhando por comprimento
e meio, precisamente em frente da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo do jovem duque de Cheshire. O duque logo nesse instante tinha pedido a mão
dela, e, remetido nessa mesma tarde para o colégio pelos encarregados da sua educação, regressara a Eton (1) derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a VirgÃnia contavam-se os gémeos, correntemente designados por «os condenados ao açoite». Eram ambos adoráveis rapazinhos e, com o digno Embaixador,
os únicos verdadeiros republicanos da famÃlia.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de Ascot, a estação ferroviária mais próxima, mr. Otis telegrafara no sentido de os irem buscar de carruagem;
e, cheios de alegria, puseram-se todos a caminho.
Era por uma linda meia tarde de Julho, em que o aroma dos pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando ouviam um pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam,
escondido entre os rumorosos fetos, o brilhante peitilho de plumagem de um faisão. à sua passagem, pequenos esquilos, no seio da rama das faias, ficavam-se
a olhá-los, e, alcançado a cauda branca, os coelhos fugiam a bom fugir através dos silvados ou galgavam os cômoros recobertos de musgo.
Todavia, na ocasião em que se entranhavam na alameda do Parque Canterville o céu cobriu-se subitamente de nuvens, uma calma estranha pareceu envolver a
atmosfera, um bando de gralhas passou silenciosamente por cima deles e, antes que houvessem atingido a casa, começaram a cair grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A maneira como se apresentava era irrepreensÃvel. Envergava um vestido de seda preta, avental branco
e touca desta mesma cor. Era mrs. Umney, a governanta. Mrs. Otis, a instâncias de lady Canterville, consentira em conservá-la ao seu serviço. Quando puseram
pé em terra, ela fez a cada um dos seus novos amos uma rasgada mesura e disse, com solenidade já desusada:
- Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio no estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande extensão, de tecto baixo e ao fundo da
qual se via uma ampla janela com vitrais. Fora aà que se preparara o chá, e, após terem-se despojado das vestes de viagem, sentaram-se e puseram-se a olhar
em volta, enquanto mrs. Umney os servia.
De súbito, mrs. Otis descobriu no soalho, nas peças de madeira embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom vermelho escuro, e, longe de suspeitar o que
aquilo significava, disse a mrs. Umney:
- Estou em crer que caiu e alastrou ali qualquer coisa.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa a antiga governanta - é sangue.
- Mas é horrÃvel! - exclamou mrs. Otis. - Não gosto nada de ver manchas de sangue nos salões. É necessário fazer desaparecer isso imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e misteriosa:
- É o sangue de lady Eleanor de Canterville, assassinada precisamente neste sÃtio pelo marido, sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe
nove anos e desapareceu de súbito, em circunstâncias muito estranhas. O corpo dele nunca se encontrou, mas o seu espÃrito culposo vagueia ainda por esta
casa. A mancha de sangue provocou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De resto, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis -. O Pinkerton, o rei dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir e fechar de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir, Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente o parquete com um rolo de um pauzinho que
tinha parecenças com cosmético negro.
Instantes depois a mancha desaparecera por completo.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o rapaz relanceando um olhar pela famÃlia, toda ela em atitude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, iluminou por inteiro o sombrio compartimento um terrÃvel relâmpago e um estrondoso ribombo de trovão fê-los
erguer bruscamente, ao passo que mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o Ministro americano, acendendo um charuto. - Este vetusto paÃs é, suponho, tão excessivamente povoado
que não há bom tempo que chegue para todos os seus habitantes. Foi sempre opinião minha que a emigração era a solução única para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou mrs. Otis - que havemos de fazer de uma mulher que perde assim os sentidos?
- Suspender-lhe-emos o ordenado quando tal suceda, de sorte que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Umney não deixou de voltar a si dentro em breve. Estava porém, indubitavelmente, muito comovida. Com ar grave, preveniu mrs. Otis de que não tardariam
a registar-se acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela - coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites sobre noites não tenho podido pegar no sono,
por causa do que de terrÃvel se passa aqui.
Mr. Otis e a esposa afirmaram à boa mulher que não tinham medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as bênçãos da Providência para os seus novos amos
e procedido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta recolheu ao seu quarto coxeando levemente.
CAPÃTULO II
Naquela noite a tempestade desencadeou-se com violência, mas nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã seguinte, ao descer para o pequeno almoço,
os Otis verificaram que a horrÃvel mancha de sangue reaparecera.
- Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas - disse Washington - pois sempre o empreguei com êxito. Isto deve ser o fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela segunda vez; no dia imediato, porém, ela estava de novo patente. No outro dia a seguir, a mancha lá
se via, se bem que a biblioteca tivesse sido, na véspera à noite, fechada por mr. Otis em pessoa, que levara a chave para o seu quarto.
O interesse de toda a famÃlia encontrava-se agora desperto. Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessivamente dogmático ao negar a existência
de fantasmas. Exprimiu o propósito de pedir a sua inscrição na Sociedade de Estudos PsÃquicos, e Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers
e Podmore, (2) acerca da «Persistência de manchas de sangue após o crime».
Nessa noite todas as dúvidas a respeito da existência objectiva de espectro se dissiparam para sempre. O dia tinha estado quente soalheiro, e quando a proximidade
da noite trouxe alguma frescura a famÃlia completa partiu para um passeio de carruagem. Não regressaram todos senão à s nove horas e tomaram em seguida
uma ligeira ceia. De modo nenhum a conversa incluiu a menor alusão sequer a fantasmas, de maneira que se não poderiam pôr em causa essas preliminares condições
de expectativa e auto-sugestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenómenos psÃquicos, Como mr. Otis mo contou mais tarde, a discussão apegou-se
aos triviais assuntos que constituem a conversação dos americanos cultos da melhor sociedade: a superioridade imensa de miss Fanny Davenport, como actriz,
sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho verde, bolos de trigo mouro e polenda, mesmo nos melhores estabelecimentos ingleses; a importância
de Boston no desenvolvimento do espÃrito universal; as vantagens do sistema de registo das bagagens; a suavidade da pronúncia das palavras em uso em Nova-Iorque
comparada com o pronúncia arrastada de Londres. Nenhuma menção de coisas sobrenaturais. Nenhuma alusão a sir Simon de Canterville. Dadas as onze horas,
a famÃlia recolheu-se e, Ã s onze e meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, mr. Otis foi despertado por um ruÃdo singular que vinha do corredor, perto do seu quarto. Dir-se-ia um tinido de metais que
se entrechocam, e o ruÃdo parecia de cada vez mais próximo. Levantou-se imediatamente, acendeu um fósforo e viu o relógio. Era uma hora em ponto. Muito
calmo, mr. Otis tateou o pulso. Não se tratava de febre. O ruÃdo estranho continuava e, dentro em pouco, mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou
as pantufas, tirou do seu estojo de toilette uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrendo ancião. Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em brasa, lançavam clarões vermelhos. CaÃam-lhe
sobre os ombros os cabelos compridos cor de cinza, em madeixas emaranhadas. A roupa que vestia, de corte antigo, estava cheia de nódoas e em farrapos.
Pesadas cadeias, todas cheias de ferrugem, pendiam-lhe dos pulsos e dos tornozelos.
- Meu caro senhor, - disse mr. Otis - perdoe-me importuná-lo, mas é absolutamente necessário que unte essas correntes. Pensando na sua pessoa, peguei neste
frascozinho de lubrificante. Dizem ser muito eficaz logo à primeira vez que se aplique. No prospecto junto achará muitos atestados dos mais eminentes sábios
do paÃs. Vou deixá-lo aqui, o frasco, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em arranjar-lhe outro se tiver precisão dele.
Ao dizer isto, o Ministro dos Estados-Unidos colocou o frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou a meter-se na cama.
O fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o frasco ao chão encerado,
sumiu-se ao longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e projectando em redor terrificantes clarões verdes.
Ao atingir, porém, o alto da grande escadaria de carvalho, abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois pequenos vultos vestidos de branco, e um rotundo
travesseiro passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não havia tempo a perder e, adoptando como rápido meio de salvação a quarta dimensão do
espaço, esvaiu-se através do revestimento de madeira das paredes, após o que a habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcouvazinha secreta situada na ala esquerda do edifÃcio, apoiou-se, para retomar fôlego, num raio de luar e pôs-se a reflectir no que
lhe acabava de suceder. Em toda a sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca fora insultado tão grosseiramente. Recordou o estado
de terror em que lançara a duquesa donatária quando ela se contemplava ao espelho, taful de diamantes e rendas; as quatro criadas que haviam tido uma crise
de nervos muito simplesmente porque ele, rindo escarninhamente, as espreitara através dos cortinados de um dos quartos de hóspedes; o cura da paróquia,
cuja vela apagara com um sopro quando ele saÃa uma noite da biblioteca, onde se retardara um pouco mais, e que depois, vÃtima de acidentes nervosos, estivera
a ser tratado por sir William Gul; a velha senhora de Tremouillac, a qual, tendo acordado de manhã muito cedo e visto um esqueleto sentado numa poltrona,
junto do fogão, imerso na leitura do seu diário Ãntimo, foi obrigada a conservar-se de cama durante seis semanas, presa de uma febre cerebral. A duquesa,
logo que se vira curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações com o senhor de Voltaire esse céptico notório.
O fantasma lembrou-se também da terrÃvel noite em que esse patife do lorde Canterville foi encontrado no seu gabinete de vestir meio sufocado, com o valete
de ouros no fundo da garganta; precisamente antes de morrer confessara ter trapaceado ao jogo por meio dessa carta e roubado a Charles James Fox, em casa
do Crockford, cinquenta mil libras esterlinas. O fantasma, jurava ele, obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se suicidara com um tiro de revólver
por ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, e da bela lady Stufield, que se intimou a trazer sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro,
para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam imprimindo na sua pele branca de leite, e que acabara por se afogar no lago das carpas, ao fim da alameda
do Rei.
Com o egoÃsmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um sorriso cheio de azedume recordou-se
da sua última aparição como «Ruben, o Vermelho, ou o Bebé Estrangulado», da sua estreia no papel de «Gibéon, o Vampiro de Bexley Moor», e da agitação que
provocara, numa encantadora tarde de Junho, jogando muito simplesmente o chinquilho com a sua própria ossada, em cima da relva do campo de ténis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-lhe travesseiros à cabeça!
Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma nenhum fora tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e até romper a aurora permaneceu em atitude
de profunda meditação.
CAPÃTULO III
Na manhã seguinte, durante o pequeno almoço, o fantasma constituiu o objecto de prolongada discussão. O Embaixador dos Estados-Unidos estava, como é natural,
um pouco aborrecido por ver que a sua dádiva não tinha sido aceite.
- De modo nenhum tive a intenção de dirigir ao fantasma uma injúria pessoal, e, sendo certo que ele reside na casa há tantÃssimo tempo, vocês devem confessar
que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça...
Lamento ter de declarar que, perante esta justa advertência, os gémeos desataram às gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o ministro - se ele se recusa, teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe as cadeias. É impossÃvel
dormir, com um barulho assim no corredor!
Mas durante todo o resto da semana o fantasma não os incomodou absolutamente nada. A coisa única a excitar a atenção era o reaparecimento contÃnuo da mancha
de sangue no parquete da biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque mr. Otis fechava a porta à chave todas as tardes e mandava correr bem as janelas.
O facto de a mancha mudar tantas vezes de tom como um camaleão provocava igualmente numerosos comentários. Em determinadas manhãs, aparecia de um vermelho
escuro, quase um vermelho indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia, era um violeta sumptuoso; e até uma vez, quando os Otis todos desceram
para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, verificaram que a mancha era de um
verde-esmeralda esplendente. É bem de ver, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a famÃlia; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu
respeito. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena VirgÃnia, que, por qualquer ignota razão, parecia sempre consternada ao ver
a mancha de sangue e esteve pertÃssimo de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efectuou-se no Domingo à noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo
vindo do vestÃbulo. Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e antiga armadura, despegada da sua peanha, fora projectada para o lajedo,
enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gémeos, que se tinham munido das suas zarabatanas, descarregaram imediatamente dois pequenos projécteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria
que só longos e sérios exercÃcios, tendo por alvo um professor de escrita, pode dar, enquanto o Ministro dos Estados-Unidos, mantendo-o sob a ameaça do
seu revólver, lhe intimava, segundo a etiqueta, que pusesse as mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva, e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela
de Washington Otis e deixando-os em escuridão completa.
Ao alcançar o cimo da escadaria o fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demonÃacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado.
Contava-se que aquilo fizera embranquecer, no decurso de uma noite apenas, a cabeleira postiça de lorde Raker, e que provocara a demissão de três das governantas
francesas de lady Canterville antes de findo o seu primeiro mês de serviço. Por conseguinte, riu com o seu riso mais horroroso, até o velho tecto abobadado
repercutir com o estrépito desse riso infernal. Mas, mal extinto o último eco, abriu-se uma porta e mrs. Otis apareceu embrulhada num roupão azul pálido.
- Receio que o senhor não esteja bem de saúde. Trago-lhe aqui um frasco de tintura do Doutor Dobell. Se é uma indigestão, verá que o remédio é excelente.
O fantasma fixou-a, cheio de fúria, e esteve prestes a transformar-se num canzarrão negro, realização que lhe tinha valido um justo renome e ao qual o médico
da famÃlia atribuÃa sempre a idiotia incurável do tio de lorde Canterville, o nobre Thomas Horton. Mas um rumor de passos que se aproximavam fizeram-no
hesitar no cruel projecto. Contentou-se em tornar-se levemente fosforescente, e esvaiu-se com um grunhido sepulcral no momento preciso em que os gémeos
chegavam à altura em que se encontrava.
Tendo regressado ao seu quarto, num enorme abatimento, dentro em pouco apossou-se dele a mais violenta agitação. O desplante dos gémeos e o materialismo
grosseiro de mrs. Otis eram, sem sombra de dúvida, extremamente aborrecidos; mas o que o consternava mais era não ter podido envergar a armadura. Acrisolara
suas esperanças em que até mesmo uns americanos modernos não deixariam de perturbar-se à vista de um espectro com armadura guerreira, senão por inteligentes
razões ao menos por respeito por Longfellow, seu poeta nacional (3), cujos versos graciosos e cheios de encanto o tinham ajudado mais de uma vez a passar
o tempo durante a ausência dos Canterville. Para mais, era a sua própria armadura. Ostentara-a com grande êxito no torneio de Kenilworth e recebera os
mais calorosos cumprimentos da Rainha-Virgem em pessoa. Mas quando quisera, agora, enfiar a armadura, fora de todo em todo esmagado pelo peso da enorme
couraça e do elmo de aço, e caÃra desamparadamente sobre o lajedo, esfolando a valer os dois joelhos e contundindo as articulações da mão direita.
Esteve doente durante muitos dias e não saiu do quarto senão para manter a nódoa de sangue. Todavia, com grandes cuidados, restabeleceu-se e resolveu fazer
terceira tentativa para aterrorizar o Ministro dos Estados-Unidos e sua famÃlia. Escolheu a sexta-feira, 14 de Agosto, para a nova aparição, e ocupou a
maior parte desse dia a passar em revista o seu guarda-roupa. Optou, por fim, por um chapéu de abas largas ornado de uma pluma vermelha, um sudário recortado
nos punhos e no pescoço e uma adaga ferrugenta.
No decurso do serão surdiu uma violenta tempestade. O vento soprava tão forte que sacudia janelas e portas da velha moradia. Era exactamente este o tempo
de que o fantasma gostava. Eis o plano em que assentara. Iria de manso e manso até o quarto de Washington Otis; junto do leito, soltaria gritos e enterraria
três vezes a adaga na sua própria garganta, ao som de uma lânguida música. Alimentava uma razão de queixa especial contra Washington, por saber muito bem,
como sabia, que era ele quem, com o seu sabão para tirar nódoas, fazia incessantemente desaparecer a famosa mancha de sangue dos Cantervilles. Após ter
submetido o descuidado e audacioso rapaz a um estado de abjecto terror, dirigir-se-ia então ao quarto ocupado pelo Embaixador dos Estados-Unidos e sua
mulher; pousaria na testa de mrs. Otis a mão cheia de visco, ao mesmo tempo que insinuaria ao ouvido do esposo, todo ele numa tremura, os horrÃveis segredos
de além-túmulo.
Quanto à pequena VirgÃnia, ainda nada decidira. Era meiga e bonita e nunca o insultara. Alguns grunhidos roucos e profundos vindos de dentro do guarda-fato
seriam, pensou, mais do que suficientes, e se por acaso eles a não despertassem poderia puxar com os dedos descarnados e trémulos o couvre-pied da rapariguinha.
Na parte concernente aos gémeos estava deveras decidido a dar-lhes uma lição. Naturalmente, a primeira coisa a fazer era sentar-se sobre o peito deles,
de maneira a produzir a sufocante sensação do pesadelo; depois, ficando as suas camas tão juntinhas, surgiria de permeio sob a forma de um cadáver verde
e gelado, até que os manos se pusessem paralÃticos de medo; por último, despojando-se do sudário, rojar-se-ia em volta de todo o aposento com a sua ossada
embranquecida, fazendo ao mesmo tempo girar as meninas dos olhos, numa imitação de «Daniel o Mudo, ou o Esqueleto do Suicida», papel no qual produzira
grande efeito em muitÃssimas ocasiões e a que atribuÃa a mesma importância que à sua famosa personagem de «Martinho, o Louco ou o Mistério Mascarado».
Ãs dez horas e meia percebeu que a famÃlia se ia deitar. Esteve um bocado de tempo perturbado pelas sonoras risadas dos gémeos, os quais, com a descuidada
alegria de estudantes, certamente se divertiam antes de se enfiarem na cama. Mas às onze e um quarto tudo estava em sossego e, ao soar a meia-noite, ele
partiu para a sua expedição.
O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo crocitava no cimo do velho teixo e o vento vagueava em volta da casa, gemendo como alma penada.
Mas a famÃlia Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruÃdo do temporal. O fantasma esgueirou-se
para fora da madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás
de uma nuvem quando ele passou junto da grande janela ogival ornada de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as da sua esposa
assassinada. Deslizava como uma sombra funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido
de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho, resmungando pragas do século dezasseis e brandindo de quando em quando a adaga corroÃda de ferrugem.
O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento sacudia-lhe as madeixas
compridas de cor de cinza e fazia ondular de maneira grotesca e fantástica o sudário de morto. O quadro inspirava indizÃvel horror. O relógio soou então
o quarto de hora. Compreendeu que tinha chegado o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e transpôs a esquina do corredor. Mas, mal tinha
dado aà um passo, logo recuou com um lamentoso gemido de terror e logo também ocultou nas suas mãos ossudas a face macilenta.
Diante de si erguia-se um horrÃvel espectro, tão imóvel como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia,
a face redonda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão eterna de zombaria. Dos olhos escorriam-lhe clarões
escarlates. A boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico. Um letreiro
contendo uma inscrição em caracteres estranhos e antigos ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certificado de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma
lista de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio de aço brilhante.
Nunca tendo visto, até à data, nenhum fantasma, sentiu naturalmente um grande pavor. Lançou, rápido outro olhar ao terrÃvel espectro e desatou a fugir para
o seu quarto, tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou cair a adaga ferrugenta dentro das grossas botas do
Embaixador, onde o mordomo a foi encontrar no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Mas transcorrido um pedaço de tempo a antiga
coragem dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar com o outro fantasma, logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas,
voltou ao sÃtio onde havia, pela primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro, raciocinando que, no fim de contas, dois fantasmas valiam
mais do que um, e que com a ajuda do seu novo colega talvez vencesse melhor os gémeos.
Mas quando ali se encontrou, no mesmo lugar, um horrÃvel espectáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque
a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio brilhante escorregara-lhe da mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de constrangimento
e incómodo.
Precipitou-se para ele e tomou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se também abaixo, e percebeu que estreitava
apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, uma machada de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz
de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
O FANTASMA OTIS
é o único, autêntico e original
Desconfiai das falsificações!...
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma partida! A caracterÃstica expressão, dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas
sem dentes e, levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descarnadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando o galo
fizesse ouvir mais duas vezes o seu alegre apelo, haviam de dar-se ali acontecimentos sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos
passos.
Mal formulara este temÃvel juramento, subiu, a distância, de uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. O fantasma soltou um prolongado e
amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não repetiu o canto. Por fim, às sete e meia, a chegada
dos serviçais obrigou-o a abandonar o seu horrÃvel posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado
plano. Consultou então muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam da antiga cavalaria. Aà verificou que, de todas as vezes que tal juramento
havia sido formulado, sempre o galo cantara segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. - Ah! não me encontrar ainda no tempo em que, com minha intrépida lança, lhes trespassaria a gorja
e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!
Depois estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que permaneceu até o cerrar da noitinha.
CAPÃTULO IV
No dia imediato o fantasma estava muito fraco e muito cansado. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Com os
nervos quebrados, até o menor ruÃdo o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca.
Se a famÃlia Otis não queria aquilo, claro estava que nem por sombras era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas viviam num plano de existência
de baixo materialismo e eram em absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenómenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento
dos corpos astrais eram, sem dúvida, coisas diferentes e alheias à atenção daquela gente. Ele, fantasma, tinha como missão, como missão solene, aparecer
no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na terceira quartas-feiras do mês, e não via maneira de poder subtrair-se
honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com
o sobrenatural.
Três sábados a fio o fantasma atravessou, portanto, o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três da manhã, tomando mil precauções para não ser
visto nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possÃvel as faixas do parquete roÃdas pelo caruncho, enrolou-se num amplo manto de veludo
negro e decidiu-se a empregar o lubrificante para untar as suas cadeias. É-me forçoso reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adoptar este derradeiro
meio de protecção; mas, uma noite e à hora em que a famÃlia da casa se preparava para ir jantar, introduziu-se nos aposentos de mr. Otis e lançou mão do
respectivo frasco. Ao fazê-lo experimentou, a princÃpio, um pouco de humilhação, mas logo adquiriu a inteligência bastante para se inteirar de que a invenção
estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz. Estendiam constantemente cordas no corredor, nas quais, quando estava escuro, tropeçava; e uma vez em
que se encontrava vestido para desempenhar o papel do «Negro Isaque ou o Caçador de Hogley Woods», deu uma queda muito grave sobre um resvaladouro que
os gémeos haviam armado e que ia desde a Sala das Tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu
fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu pois uma visita, para a noite imediata, aos juvenis e
insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de «Ruperto, o Arrisca-Tudo ou o Conde-sem-Cabeça».
O fantasma já não fazia qualquer aparição mascarado desta maneira desde mais de setenta anos atrás, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara
a gentil lady Bárbara Modish, ao ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do lorde Canterville actual e fugido para Gretna
Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada deste mundo a decidira a entrar numa famÃlia que deixava um tão horroroso fantasma percorrer o terraço,
ao cerrar-se o crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por lorde Canterville em Wandsworth Common, e lady Bárbara, com o coração despedaçado,
morreu em Tunbridge Wells antes de findo esse mesmo ano; de sorte que, sob todos os aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma «composição» extremamente difÃcil (se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um dos maiores mistérios do
sobrenatural, ou, para empregar um termo cientÃfico, do mundo supra-normal), e foram-lhe precisas três boas horas para executar os preparativos. Tudo se
aprontou, finalmente. Estava muitÃssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de montar que condiziam com o trajo eram um tanto largas de mais para
ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um quarto, deslizou através
do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegado ao quarto que os gémeos ocupavam (designavam-no por «o quarto azul», por causa do tom
das pinturas), encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro
de água entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda. No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir
subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior celeridade. No dia seguinte,
muitÃssimo constipado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era de não ter levado a sua própria cabeça nesta expedição; de
contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves consequências.
O fantasma abandonou então toda a esperança de assustar aquela grosseira famÃlia americana e contentou-se, afinal, com percorrer de pantufas de solas de
feltro os corredores, o pescoço envolvo num espesso cachené vermelho por causa das correntes de ar e empunhando um bacamartezinho com receio de ser atacado
pelos gémeos. Foi em 19 de Setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma descera ao vasto hall de entrada, certo de que aà ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar com observações satÃricas as grandes fotografias
do Ministro dos Estados Unidos e de sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituÃdo os retratos da famÃlia dos Cantervilles. Vestia-o um longo
sudário, muito simples mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério. Atara os queixos com uma ligadura de tela amarelada e segurava uma
pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o papel de «Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Cadáveres de Chertsey
Barn», uma das suas mais notáveis criações, da qual ora os Cantervilles tinham excelentes razões para se lembrar, porque fora essa a verdadeira origem
do pleito com o seu vizinho, lorde Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã. O fantasma poderia afirmar que todos os moradores da casa repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de
passeio, para a biblioteca, no fito de ver se ainda restava qualquer vestÃgio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro,
dois vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe berravam «U-u! U-u!» aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitÃssimo natural, precipitou-se para a escadaria: aÃ, porém, esperava-o Washington com a grande mangueira
de rega do jardim. Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior do enorme fogão, que, felizmente para si,
não estava aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu quarto num lamentável estado de sujidade, desarranjo e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições nocturnas. Os gémeos muitas vezes se esconderam à sua espera e, todas as noites, juncavam de cascas de nozes
os corredores, coisa que aborrecia bastante os paÃs e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava
a aparecer. Em consequência, mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a «História do Partido Democrático», em que trabalhava havia uma porção de anos.
Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-bak (4), que causou espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poker e a outros
jogos nacionais americanos. E VirgÃnia percorreu no seu poldro todos os caminhos circunvizinhos, em companhia do duque de Cheshire, que tinha vindo passar
no Parque Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente, que o fantasma abalara dali, e mr. Otis escreveu a lorde Canterville a informá-lo
do caso. Este respondeu que a notÃcia lhe dava grande prazer, e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do Ministro.
Mas os Otis enganavam-se, porque o fantasma permanecia ainda na casa e, se bem que estivesse agora quase inválido, não tinha de forma nenhuma a intenção
de ficar quieto, sobretudo desde que soube que, entre os convidados, se encontrava o duquezinho de Cheshire, cujo tio-avô, lorde Francis Stilton, apostara
um dia cem guinéus em como jogaria aos dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogo
completamente paralÃtico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca mais pôde dizer senão isto: «duplo-seis!».
A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso; mas, para poupar o sentimento de duas famÃlias nobres, tudo foi tentado para abafar a coisa.
Todavia, encontrar-se-á uma sua narrativa pormenorizada no terceiro volume da obra de lorde Tattle: «Memórias Relativas ao PrÃncipe Regente e seus Amigos».
Era, por conseguinte, natural que o fantasma quisesse provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia um parentesco afastado,
devido a uma sua prima-irmã ter casado em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha directa.
Consequentemente, tomou as suas disposições para aparecer ao juvenil enamorado de VirgÃnia na sua célebre criação do «Monge Vampiro, ou o Beneditino Exangue»,
espectáculo tão horrÃvel que a velha lady Startup, ao dar com os olhos nele, o que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes
gritos, que terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias depois, não sem ter deserdado os Canterville, seus mais próximos parentes, e deixado
todo o dinheiro que possuÃa ao seu boticário de Londres.
CAPÃTULO V
Passados dias, andavam VirgÃnia e o seu apaixonado de cabelos em anéis a percorrer a cavalo as pradarias de Brockley, eis senão quando a rapariguinha, sentindo-se
presa num silvado, rasgou o vestido de amazona tão desastradamente, que, ao reentrar em casa, decidiu tomar a escada secreta para que ninguém lhe pusesse
a vista em cima. Ao passar, porém, a correr, diante da Sala das Tapeçarias, cuja porta precisamente estava aberta, julgou perceber a existência de alguém
no interior. Vindo-lhe à ideia que seria a criada de quarto da mãe, a qual às vezes ia para ali costurar, entrou para pedir à mulher que lhe consertasse
a saia.
E, com imensa surpresa sua, VirgÃnia viu o fantasma de Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela, a contemplar o ouro das árvores amarelentas,
a ver as folhas rubras rodopiarem como loucas na grande alameda. A cabeça apoiada na mão, toda a sua atitude traÃa uma depressão extrema. Na verdade, ele
apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena VirgÃnia, cujo primeiro movimento foi fugir e encerrar-se no quarto, tomada logo de piedade
resolveu tentar reconfortá-lo. Os passos de VirgÃnia eram tão leves e a melancolia do fantasma tão profunda, que este não teve consciência.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse VirgÃnia - os meus irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor se portar bem, ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - respondeu ele com os olhos escancarados de espanto à vista daquela gentil donzelinha que ousava dirigir-se-lhe.
- É completamente absurdo! É imprescindÃvel que eu faça ranger as minhas cadeias e ulule pelos buracos das fechaduras e passeie por aà de noite, se é a
isto que a menina faz alusão. Essa é a minha única razão de existência.
Mas, à última hora, o terror que lhe causavam os gémeos impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câmara real, o duquezinho dormia em paz no vasto
leito de baldaquino ornado de plumas e sonhava com VirgÃnia.
- Isso não e uma razão de existência, e o senhor bem sabe que tem sido muito mau. Mrs. Umney disse-nos, no dia da nossa chegada aqui, que o senhor matou
a sua mulher.
- Bem, concordo - disse com vivacidade o fantasma -; mas trata-se de um assunto de famÃlia com o qual os outros nada têm.
- É multo mal feito matar alguém - insistiu VirgÃnia, que, vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana, herdada de qualquer antepassado
da Nova Inglaterra.
- Oh, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstracta! Minha mulher era feia, não engomava nunca convenientemente a minha gola de folhos e não percebia
nada de cozinha. Olhe, eu tinha matado um veado nos bosques de Hogley, um veadozinho magnÃfico. Quer saber como ela o fez aparecer à mesa? Mas que importa
o caso, presentemente?! Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome, embora eu a tenha
matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero dizer, sir Simon... o senhor tem fome? Trago ali uma sanduÃche no meu saco de costura. Quere-a?
- Não, obrigado, já não como nada, agora. Mas é, apesar de tudo, muita amabilidade da sua parte. A menina é muito mais gentil do que o resto da sua horrenda
famÃlia, grosseira, vulgar, indigna!
- Cale-se! - bradou VirgÃnia batendo com o pé no chão. - Quem é grosseiro, horrendo e vulgar, é o senhor; e, quanto a indignidade, sabe perfeitamente que
foi o senhor quem roubou as bisnagas da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridÃcula mancha de sangue na biblioteca. Primeiramente, deitou mão
a todos os meus encarnados, sem esquecer o vermelhão, e tive de deixar de pintar o pôr do Sol; depois arrebatou o verde-esmeralda e o amarelo cromado;
e, finalmente, só me restavam o anil e o branco da China, de modo que só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem tanto quando as olhamos e que
são tão pouco fáceis de executar. Eu nunca disse nada contra o senhor; contudo, andava muito aborrecida e tudo aquilo era bastante ridÃculo. Já se viu
sangue de tom verde-esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco -, que hei-de eu fazer? Nestes nossas dias, é muito difÃcil encontrar sangue verdadeiro e, visto que foi
o seu irmão a romper com o tira-nódoas, não vejo motivo para não lançar mão das bisnagas que lhe pertencem. Quanto à cor, é simples questão de gosto: os
Cantervilles, por exemplo, têm sangue azul, o mais azulado de Inglaterra, mas sei que vós outros, os americanos, troçais a valer de tudo isto.
- O senhor nada sabe a esse respeito, e o melhor que tem a fazer é emigrar, para cultivar o espÃrito. Meu pai não deixará de sentir-se muitÃssimo feliz
em lhe conseguir uma passagem gratuita. O senhor não encontrará dificuldade alguma na alfândega, onde todos os funcionários são democratas. Uma vez em
Nova-Iorque, alcançará o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma
na famÃlia.
- Tenho a convicção de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruÃnas, nem curiosidades - disse VirgÃnia ironicamente.
- Nem ruÃnas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma - Mas tendes a vossa marinha e essas vossas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papá que conceda aos gémeos uma semana suplementar de férias.
- Não, não vá, miss VirgÃnia! - implorou o fantasma. - Estou tão só e tão desgraçado e não sei verdadeiramente o que fazer. Quero dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Ãs vezes é difÃcil a gente manter-se acordada, na igreja sobretudo, mas é coisa bem fácil dormir.
Até os bebés sabem isso; todavia, não são muito inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo, - disse ele com tristeza (os belos olhos azuis de VirgÃnia dilataram-se de espanto). - Há trezentos anos que não durmo,
e estou tão cansado!
O rosto de VirgÃnia tornou-se grave e os labiozinhos puseram-se-lhe a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e, ajoelhando-se junto dele,
ergueu os olhos para a velha face pergaminhanda.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou - Não há então sÃtio onde possa dormir?
- Além em baixo, para lá do pinhal - respondeu ele numa voz lenta e meditativa -, há um jardinzinho. A erva cresce ali, espessa e alta, salpicada das grandes
estrelas brancas da cicuta, e o rouxinol canta lá toda a noite. Toda a noite ali canta o rouxinol, e a fria lua de cristal reclina-se para ver melhor,
e o cipreste estende seus braços gigantescos sobre os dormentes.
Os olhos de VirgÃnia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da Morte - murmurou.
- Sim, da Morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem
nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz! A menina pode ajudar-me. Pode abrir para mim as portas da casa da Morte, porque traz o Amor
consigo e o Amor é mais forte do que a Morte.
VirgÃnia pôs-se a tremer, percorreu-a toda um frémito gelado e, durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar sonhando um terrÃvel sonho.
O fantasma voltou então a falar, e a sua voz ressoava como um suspiro do vento.
- Já leu alguma vez a velha profecia inscrita nos vitrais da biblioteca?
- Oh, muitas vezes! - exclamou a donzelinha erguendo os olhos. - Conheço-a multo bem. Está pintada em curiosas letras a negro e é difÃcil de ler. São apenas
seis versos:
Quando uma criança de coração puro conseguir
Colher dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos puros brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila
E a Graça voltará a Canterville.
«Mas não sei o que isto quer dizer.
- Quer dizer - respondeu ele tristemente - que a menina deve chorar comigo pelos meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha
alma, porque nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de mim. Há-de ver, na escuridão, vultos horrÃveis,
vozes maldosas falar-lhe-ão ao ouvido, mas não sofrerá mal nenhum porque o Inferno nada pode contra a pureza de uma criança.
VirgÃnia não respondeu e o fantasma torceu as mãos com desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem
ergueu-se de súbito, muito pálida. Um estranho clarão lhe perpassou nos olhos.
- Não tenho medo - disse ela com firmez -. Rogarei ao Anjo que tenha piedade de vós.
O fantasma endireitou o busto ao mesmo tempo que soltava um débil grito de alegria, e, inclinando-se com uma gentileza já há muito fora de moda, pegou na
mão da rapariguinha e beijou-lha. Os dedos de sir Simon tinham a frialdade do gelo e seus lábios queimavam como fogo, mas VirgÃnia não sentiu o menor desfalecimento
enquanto ele a fazia atravessar o compartimento cheio de sombras. Bordadas nas tapeçarias, cujo tom verde fora desbotando, viam-se figurinhas de caçadores.
Estes sopraram nas suas trompas ornadas de glandes e, com as minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que arrepiasse caminho.
- Retrocede, VirgÃninha - gritavam eles - vai-te embora!
Mas o fantasma estreitava-lhe a mão com mais força e VirgÃnia fechou os olhos para os não ver. Horrorosos animais de cauda semelhante à dos lagartos, olhos
salientes de cabeça, pestanejaram-lhe repetidamente, de cima do fogão esculpido, e murmuraram:
- Toma cuidado, Virgininha, toma cuidado, olha que talvez nunca mais te tornemos a ver!
Mas o fantasma deslizou com mais celeridade e VirgÃnia não deu ouvidos à queles. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma parou e murmurou palavras
que VirgÃnia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande
caverna negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a puxavam pela saia.
- Depressa! Depressa! - gritou o fantasma -. Senão será demasiadamente tarde.
Num instante o forro de madeira tornou a cerrar-se por detrás deles. A Sala das Tapeçarias ficara deserta.
CAPÃTULO VI
Daà a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como VirgÃnia não descesse, mrs. Otis mandou-a chamar por um dos criados. Passado um momento, este voltou
para dizer que não tinha encontrado miss VirgÃnia em parte nenhuma. Como a jovem adquiria o costume de ir todas as tardes colher flores para o jantar,
mrs. Otis não se inquietou; mas ao soarem as seis horas sem que a filha tivesse reaparecido, começou verdadeiramente a alarmar-se e mandou os rapazes Ã
sua procura, ao mesmo tempo que ela própria e mr. Otis percorriam a casa, compartimento por compartimento.
Ãs seis e meia estavam de volta os rapazinhos sem terem podido achar o mais leve vestÃgio da irmã. Todos se encontravam agora na maior agitação e não sabiam
que fazer, quando mr. Otis se lembrou de repente que, uns dias antes, concedera licença a um bando de ciganos para acamparem no parque. Imediatamente partiu
para Blackfell Hollow, onde, sabia-o, os ciganos deviam agora estar. Acompanhavam-no seu filho mais velho e dois criados da granja. O duquezinho de Cheshire,
louco de ansiedade, insistiu veementemente em se lhes juntar, mas mr. Otis opôs-se temendo que se travasse ali uma desordem. Ao chegar, porém, ao sÃtio
em vista, descobriu que os ciganos haviam desaparecido. O lume, que ardia ainda, e alguns pratos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma retirada
repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que explorassem as circunvizinhanças, mr. Otis regressou a toda a pressa e expediu telegramas para
todos os inspectores de polÃcia do Condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que
lhe selassem o cavalo, intimou a esposa e os três rapazes a tomarem o seu jantar e, acompanhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas mal percorrera
duas milhas ouviu atrás de si um galope. Voltando-se, descortinou o duquezinho, que vinha montado no seu poldro, o rosto muito afogueado e cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -, mas não poderei jantar enquanto VirgÃnia não for encontrada. Peço-lhe que não se zangue. Se o senhor
tivesse consentido, o ano passado, no nosso ajuste de casamento, nada disto teria sucedido. Não vai mandar-me para trás, não é verdade? Eu não quero ir
para casa! Não quero ir para casa!
O Ministro não pôde impedir-se de sorrir ao juvenil e encantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a devoção dele por VirgÃnia. Inclinando-se do
alto do seu cavalo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de levá-lo comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em Ascot.
- O chapéu que vá para o diabo! Da VirgÃnia é que eu preciso! - exclamou, a rir, o duquezinho.
Galoparam até à estação do caminho de ferro, onde mr. Otis perguntou se não tinha sido ali vista, na gare, qualquer pessoa correspondendo aos sinais de
VirgÃnia; mas não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as outras estações da linha e prometeu fazer exercer
por toda a parte uma severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o duquezinho a um comerciante de novidades, que ia precisamente naquele momento
encerrar a sua loja, mrs. Otis dirigiu-se para Bexley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito, era local de encontro dos ciganos,
por lá haver um prado comunal. Chegados a esse sÃtio, mr. Otis e o seu companheiro acordaram o guarda campestre mas não puderam extrair dele a menor informação
e, após terem percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa e alcançaram o Parque Canterville pelas onze horas da noite, completamente esgotados
e desesperados. Washington e os gémeos esperavam-nos ao pé do gradeamento com lanternas, porque a alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de VirgÃnia. Os ciganos tinham sido concentrados nas pradarias de Brockley, mas a jovem não se encontrava
entre eles. Uma confusão de datas explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava mais cedo do que pensavam, obrigara-os a abalar
a toda a pressa. A verdade é que até eles haviam ficado consternados ao saberem do desaparecimento de VirgÃnia, porque guardavam grande reconhecimento
a mr. Otis por este lhes ter permitido acamparem no seu parque, e quatro companheiros do bando ficaram para trás a fim de colaborarem nas pesquisas. O
tanque das carpas fora esvaziado e todo o domÃnio batido de lés a lés, mas sem resultado. Era forçoso renderem-se à evidência: pelo menos naquela noite,
VirgÃnia estava perdida para eles; e, profundamente abatidos, mr. Otis e os rapazes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia à mão os
dois cavalos e o poldro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo. A pobre mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi-louca de inquietação e de pavor;
a velha governanta banhava-lhe a fronte com água de Colónia. Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para que tomasse qualquer alimento e mandou servir
o jantar para todos.
Foi uma bem triste refeição, em que quase se não proferiu palavra. Os próprios gémeos estavam aterrados, amachucados, porque adoravam a irmã. No fim do
jantar mr. Otis, não obstante os rogos do duquezinho, ordenou que todos se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia ser feita nessa noite e que,
no dia seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard (5), para lhe serem enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saÃam da sala de jantar soava a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a décima segunda pancada, ouviram todos
um enorme estrondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flutuaram no espaço, no alto
da escadaria abriu-se um dos panos das paredes e, no patamar, apareceu VirgÃnia, muito pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi um instante enquanto todos se precipitaram para ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o duque afogou-a com a violência dos seus beijos, e os gémeos
executaram em volta do grupo uma dança guerreira.
- Santo Deus, donde vens tu?! - perguntou mr. Otis numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma partida insensata -. Cecil e
eu cavalgámos toda a região, à tua procura, e tua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-te a não voltares a entregar-te a farsas tão estúpidas
como esta.
- Excepto contra o fantasma! Excepto contra o fantasma! - bradaram os gémeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-te aqui! É preciso que nunca mais me deixes - murmurou mrs. Otis, enlaçando a criança, a qual tremia e alisava os seus
caracóis de ouro todos emaranhados.
- Papá - disse VirgÃnia num tom calmo - eu estava com o fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas arrependeu-se verdadeiramente do que fez
e, antes de morrer, deu-me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a famÃlia a fitava, os olhos escancarados de surpresa, mas ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os através de uma abertura no forro de
madeira das paredes até um estreito corredor secreto. Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa. Chegaram por fim a uma
grande porta de carvalho ornada de pregos cheios de ferrugem. Quando VirgÃnia lhe tocou a porta girou nos gonzos, e encontraram-se todos numa salinha baixa,
de tecto de abóbada e cujo único meio de renovação do ar era uma minúscula janela gradeada. Uma enorme argola de ferro estava chumbada à parede e, encadeado
à argola, via-se um grande esqueleto estendido ao comprido no chão de pedra, parecendo tentar agarrar uma escudela velha e uma bilha colocada fora do seu
alcance. A bilha devia ter contido outrora água, porque se mostrava por dentro coberta de bolor. Na escudela não existia senão urna camada de pó.
VirgÃnia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto a horrÃvel tragédia cujo segredo lhe era assim
revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gémeos, o qual se dependurara da janela para observar em que ala da edificação se situava aquele quarto. - Olhem! A
velha amendoeira toda sequinha está em flor! Vêem-se muito bem as flores, à claridade do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente VirgÃnia, erguendo-se; e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- És um anjo! - exclamou o duquezinho, que lhe lançou um braço à volta do pescoço, estreitando-a contra si.
CAPÃTULO VII
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um préstito fúnebre deixava o Parque Canterville pelas onze horas da noite. Oito cavalos negros puxavam
o carro mortuário e sobre as cabeças deles agitavam-se grandes penachos de plumas de avestruz. Um sumptuoso pano cor de púrpura, que as armas dos Cantervilles,
bordadas a ouro, ornavam, cobria o caixão de chumbo. Junto do carro marchavam os criados empunhando tochas e todo o cortejo assumia singular imponência.
Lorde Canterville dirigia o enterro. Tinha vindo expressamente do PaÃs de Gales para assistir à cerimónia e ocupava a primeira carruagem, acompanhado da
jovem VirgÃnia. A seguir iam o Ministro dos Estados Unidos e a esposa, depois Washington e os três rapazes, e por fim, na carruagem da cauda, mrs. Umney.
Partiu-se da convicção de que a governanta, que durante mais de cinquenta anos havia sido apoquentada pelo fantasma, tinha o direito de o ver desaparecer
para sempre. Fora cavada num canto do cemitério uma profunda sepultura, precisamente sob a ramagem do velho teixo, e as preces foram proferidas pelo Rev.
Augustus Dampier da maneira mais impressionante.
No termo da cerimónia, os criados, conforme um costume tradicional na famÃlia Canterville, apagaram as suas tochas e no momento da descida do caixão ao
coval VirgÃnia avançou e depôs sobre ele uma grande cruz tecida de rosas e flores de amendoeira. Simultaneamente, a Lua surgiu de trás de uma nuvem e,
com as suas ondas silenciosas e argênteas, iluminou o pequeno cemitério; e do recesso de uma moita, a distância, subiu o canto de um rouxinol. A jovem
recordou a descrição que o fantasma fizera do Jardim da Morte. Velaram-se-lhe de lágrimas os olhos e mal articulou palavra durante o caminho de regresso.
No dia seguinte de manhã, antes do lorde Canterville partir para Londres, mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias dadas a VirgÃnia pelo fantasma.
Eram de notável magnificência, em especial certo colar de rubis com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezasseis, e o valor delas todas
era tal que mr. Otis sentia grandes escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.
- Lorde Canterville - disse o Ministro -, eu sei que o regime dos bens chamados de mão-morta é aplicável neste paÃs tanto à s jóias como à s terras, e parece-me
evidente que estas jóias de famÃlia lhe pertencem, por conseguinte. Devo, pois, pedir-lhe que as leve para Londres e que as considere simplesmente como
uma parte da vossa herança, agora restituÃda em inesperadas circunstâncias. Quanto à minha filha, ela é ainda uma criança e (sinto-me feliz em dizê-lo)
não presta mais do que medÃocre interesse a esses vãos acessórios de luxo. Para mais, minha mulher, que, ouso afirmá-lo, é em matéria de arte uma autoridade
com a qual é necessário contar - ela gozou do privilégio de passar muitos Invernos em Boston quando ainda solteira - comunicou-me terem essas jóias elevado
valor monetário. Postas à venda, atingiriam altÃssimo preço. Nestas condições, lorde Canterville, estou certo de que compreenderá não poder eu permitir
a nenhum membro da minha famÃlia conservá-las na sua posse. E, em boa verdade, todos esses frÃvolos, adornos, por mais adequados ou indispensáveis que
sejam à dignidade da aristocracia inglesa, estariam em absoluto deslocados entre pessoas educadas nos princÃpios severos e, suponho, imortais, da simplicidade
republicana. Talvez me seja lÃcito acrescentar que VirgÃnia deseja vivamente que a autorize a guardar para ela o cofrezinho, a tÃtulo de recordação dos
desvairos e dos infortúnios desse vosso antepassado. Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o senhor julgue razoável deferir o
pedido. Pela minha parte, confesso estar bastante surpreendido vendo um dos meus filhos exprimir simpatia pelas coisas medievais, seja sob que aspecto
for, e não posso explicar isto a mim próprio senão pelo facto de VirgÃnia ter nascido num dos vossos arrabaldes londrinos pouco tempo depois da chegada
de minha mulher, que regressava de uma viagem a Atenas.
Lorde Canterville escutou com muita gravidade o discurso do digno Ministro, repuxando de quando em quando as pontas do seu bigode grisalho para dissimular
um sorriso involuntário; e quando mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão cordialmente e disse:
- Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a sir Simon, meu infeliz avoengo, um serviço de importância, e eu e a minha famÃlia devemos muito
à maravilhosa coragem dela. Claro está que as jóias lhe pertencem; e, por minha fé, creio que se eu tivesse tão pouco coração que lhas tirasse, o maroto
do velho sairia, antes de quinze dias decorridos, do seu túmulo e arranjar-me-ia uma vida de inferno. Quanto a constituÃrem jóias de famÃlia, tal só seria
possÃvel se figurassem num testamento ou em documento legal, e a existência dessas jóias era-me completamente desconhecida. Asseguro-lhe que não tenho
mais direitos sobre elas do que, por exemplo, o seu mordomo, e, ouso dizê-lo, quando miss VirgÃnia for crescida desvanecer-se-á ao usar esses lindos objectos.
O senhor esquece também, mr. Otis, que comprou em conjunto a propriedade e o fantasma passou, implÃcita e imediatamente, para a sua posse, pois por maior
actividade de que sir Simon tenha dado sinal durante a noite, nos corredores da casa, ele estava verdadeiramente morto do ponto de vista jurÃdico, e a
aquisição feita pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.
Mr. Otis, muito comovido com a recusa de lorde Canterville, suplicou-lhe que reconsiderasse na sua decisão, mas o excelentÃssimo membro da Câmara Alta inglesa
permaneceu firme e, acabou por persuadir o Ministro a que consentisse à filha guardar o presente do fantasma.
E quando, na Primavera de 1890, a jovem duquesa de Cheshire foi, por ocasião do seu casamento, apresentada a primeira vez na recepção da Rainha, as jóias
que ostentava tornaram-se tema da admiração geral. Porque VirgÃnia recebeu a coroa, que é a recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou
aquele que a amava desde a infância logo que ele atingiu a idade conveniente.
Eram ambos, tão sedutores e amavam-se tanto, que esta união encantava toda a gente, salvo a velha marquesa de Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do
duque para uma das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse desÃgnio, dera nada menos que três dispendiosos jantares; e se bom que possa parecer
estranho, também não encantava o próprio mr. Otis. O ministro sentia pelo duquezinho uma grande afeição, mas, em teoria, não era partidário de tÃtulos
nobiliárquicos e, para empregar mesmo palavras suas, «temia um tanto que, por causa da influência amolecedora da aristocracia apaixonada pelo prazer, os
verdadeiros princÃpios da simplicidade republicana fossem esquecidos». Mas houve quem deitasse por terra as suas objecções; e creio bem que, ao avançar
com a filha pelo braço, na nave da igreja de S. Jorge, da Praça Hanover, não houve, no instante, homem mais orgulhoso do que ele na Inglaterra inteira.
Após a sua «lua de mel», o duque e a duquesa voltaram ao Parque Canterville; e no dia seguinte ao da chegada foram, pela tarde, de passeio até ao cemitério
solitário circunvizinho do pinhal
A escolha da inscrição para a lousa tumular de sir Simon tinha levantado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido mandar gravar nela as simples
iniciais do velho aristocrata e os versos inscritos na biblioteca.
A duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que espalhou sobre a sepultura; e depois de se conservarem em recolhimento bastantes minutos, os jovens
foram, sempre passeando, até ao santuário em ruÃnas da velha Abadia. Sentou-se então a duquesa numa pilastra mutilada do templo, enquanto o marido, estendido
a seus pés, fumava um cigarro, o olhar fito nos belos olhos da rapariga. De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-lhe na mão e disse-lhe:
- VirgÃnia, uma mulher não deve ter segredos para seu marido.
- Querido Cecil, não tenho segredos para ti.
- Tem-los, sim - replicou ele a sorrir; - tu nunca me disseste o que te aconteceu quando estiveste encerrada com o fantasma.
- Nunca o disse a ninguém - respondeu VirgÃnia com ar grave.
- Sei isso, mas podias dizer-mo a mim.
- Não me peças tal, Cecil; eu não posso dizer-to. Pobre sir Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não rias, Cecil. Mostrou-me o que é a Vida, o que significa
Morte e porque razão o Amor é mais forte do que a Vida e a Morte.
O duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mulher.
- Podes reservar o teu segredo por tanto tempo quanto eu guardarei o teu coração - murmurou.
- Ele sempre te pertenceu, Cecil
- E di-lo-ás um dia aos nossos filhos, não é verdade?
Carminaram-se, de pejo, as faces de VirgÃnia.
Notas:
1 Colégio na cidade do mesmo nome, um dos mais afamados de Inglaterra e cuja fundação data do séc. XV. Nele se educam os rapazes das famÃlias mais distintas
da sociedade britânica.
2 Frederick William Henry Myers, poeta e ensaÃsta inglês, chefiando um pequeno grupo de investigadores que compreendia, entre outros, F. Podmore, Henry
Sidgwik, Richard Hodgson e Edmund Gurney, fundou em 1882 a Sociedade de Estudos PsÃquicos. Myers cooperou na introdução da obra Fantasmas que vivem (2
vols., 1886) e publicou também, em 1893, A Ciência e a Vida Futura.
3 Longfellow (poeta americano, 1807-1882), inspirado pela descoberta, em Newport, de um esqueleto metido numa armadura, escreveu um poema com esse mesmo
tÃtulo.
4 Prato feito de moluscos de todas as espécies, cozidos entre camadas de algas sobre pedras em brasa. Daà o nome de clam-bake dado a um piquenique improvisado
na ocasião.
5 Corpo de PolÃcia inglês, considerado modelar pela organização de seus serviços.
FIM
Oscar Wilde - O modelo milionаrio
Oscar Wilde - Contos
Oscar Wilde - A DONZELA E O FANTASMA
Oscar Wilde - A Esfinge sem Segredo
Oscar Wilde - Ideal Husband
09:44
Ricardo
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