{Cultura On-Line} Livro - A Busca do Graal 1 - O Arqueiro de Bernard Cornwell (pdf, epub e txt)

O Arqueiro é dedicado a Richard e Julie Rutherford-Moore.

«... muitas batalhas mortíferas se travaram, com muitos seres humanos dizimados, igrejas roubadas, almas destruídas, donzelas e virgens desfloradas, respeitadas esposas e viúvas desonradas; cidades, propriedades e edifícios incendiados, e assaltos, crueldades e emboscadas levados a cabo nas estradas e caminhos. A justiça falhou devido a tudo isto. A fé cristã vacilou, o comércio pereceu e tantas outras perversidades e indescritíveis horrores, enumerados ou escritos, se seguiram a estas guerras.»

João II, rei da França, 1360



Arqueiro - Harlequin deriva provavelmente da antiga palavra francesa hellequin: um exército de cavaleiros do demónio.





Prólogo



O tesouro de Hookton foi roubado na manhã do domingo de Páscoa do ano de 1342.

Tratava-se de um objeto sagrado, uma relíquia suspensa das traves da igreja e era extraordinário que um objeto tão precioso pudesse ser guardado numa aldeia tão obscura. Havia quem dissesse que não deveria ali estar, mas sim ter sido guardado numa catedral ou numa importante abadia, enquanto outros, muitos outros, afirmavam que não era genuíno. Apenas os tolos negavam que as relíquias fossem falsas. Homens bem falantes percorriam os caminhos de Inglaterra vendendo ossos amarelados que diziam ter pertencido aos dedos das mãos e dos pés, bem como às costelas de santos benditos; por vezes, os ossos eram de fato humanos, mas na maioria dos casos, pertenciam a porcos e, até mesmo, a veados. Mesmo assim, o povo comprava-os e venerava-os.

- É o mesmo que rezar a São Guinefort - dizia o padre Ralph, soltando uma gargalhada de troça. - Rezem a ossos de presunto, a ossos de presunto! A um porco bendito!

Fora o padre Ralph que trouxera o tesouro para Hookton e não queria ouvir falar da sua transferência para uma catedral ou abadia. Assim, durante oito anos, ficou suspenso na pequena igreja, acumulando pó e teias de aranha que cintilavam com reflexos prateados quando o sol entrava pela janela alta da torre poente. Os pardais poisavam no tesouro e em algumas manhãs havia morcegos pendurados no seu cabo. Raramente o limpavam e quase nunca o desciam, embora, de vez em quando, o padre Ralph exigisse que lhe trouxessem a escada e soltassem o tesouro das suas correntes, de modo a poder orar junto a ele, enquanto o afagava. Nunca se vangloriava de o ter. Outras igrejas ou mosteiros, na posse de tal relíquia, tê-lo-iam utilizado para atrair os peregrinos, porém o padre Ralph afastava os visitantes.

- Não é nada - respondia, sempre que um desconhecido perguntava o que era a relíquia. - Uma ninharia. Nada! - e zangava-se se os visitantes insistiam. - Não é nada, nada, nada!

O padre Ralph era um homem assustador e mesmo quando não estava zangado, tinha o génio de um demónio descabelado e a sua ira ostensiva defendia o tesouro. Porém, acreditava ser a ignorância a melhor protecção da relíquia, pois se os homens desconhecessem a sua existência, Deus guardá-la-ia. E foi o que Ele fez, durante algum tempo.

A obscuridade de Hookton era de fato o melhor resguardo do tesouro. A pequena aldeia situava-se na costa sul de Inglaterra, onde o Lipp, um ribeiro, quase um rio, corria para o mar junto a uma praia coberta de pequenos calhaus. Meia dúzia de barcos de pesca partiam da aldeia, protegidos à noite pelo próprio Hook, uma língua de seixos que contornava o último braço do Lipp. Mesmo assim, durante a famosa tempestade de 1322 o mar rugira sobre o Hook e desfizera os barcos na parte superior da praia. A aldeia nunca se recuperara de tal tragédia. Antes do temporal, saíam do Hook dezanove barcos mas, vinte anos depois, apenas seis pequenas embarcações enfrentavam as ondas para lá da traiçoeira barra do rio. O resto dos aldeãos trabalhava nas salinas ou criava rebanhos e gado nos montes por trás do aglomerado de cabanas de tecto de colmo, situadas em redor da pequena igreja de pedra, onde o tesouro estava suspenso por entre traves enegrecidas. Assim era Hookton, um local onde havia barcos, peixe, sal e gado, tendo por trás montes verdejantes, por dentro ignorância e à frente o vasto mar.

Hookton, como todas as terras da Cristandade, realizava uma vigília no sábado de Aleluia e, em 1342, esse dever solene era levado a cabo por cinco homens que acompanharam o padre Ralph, enquanto este consagrava os Sacramentos da Páscoa e depois poisava o pão e o vinho sobre o pano branco do altar. As hóstias estavam dentro de uma simples tigela de barro coberta com um pano de linho branqueado, enquanto o vinho se encontrava numa taça de prata que pertencia ao padre Ralph, e que fazia parte do seu mistério. Era um homem muito alto, piedoso e demasiado erudito para ser um simples padre de aldeia. Dizia-se que poderia ter sido bispo, mas que o diabo o perseguira com sonhos maus e havia quem garantisse ser verdade que anos antes de ter vindo para Hookton estivera fechado na cela de um mosteiro devido a uma possessão demoníaca. Depois, em 1334, os demónios tinham-no abandonado e fora enviado para a aldeia, onde aterrorizava os seus habitantes pregando às gaivotas ou caminhando pela praia a chorar os seus pecados e a bater no peito com pedras aguçadas. Uivava como um cão, quando a maldade lhe pesava demasiado na consciência, mas encontrara também uma espécie de paz naquela terra remota. Construíra uma enorme casa de madeira, onde morava com uma governanta, e fizera amizade com sir Giles Marriott, senhor de Hookton, que vivia num castelo de pedra, meia légua mais a norte.

Sir Giles era sem dúvida um gentil-homem, tal como o padre Ralph parecia ser, não obstante o cabelo hirsuto e a voz irada. Coleccionava livros que, logo a seguir ao tesouro que trouxera para a igreja, eram as maiores maravilhas de Hookton. Por vezes, quando não fechava a porta, as pessoas olhavam boquiabertas para os dezassete volumes encadernados a couro, empilhados sobre a mesa. A maior parte estava escrita em Latim, porém havia uns quantos em francês, a língua materna do padre Ralph. Não o francês de França, mas o francês normando, língua dos governantes ingleses, de modo que, embora sem se atreverem a perguntar-lhe, os aldeãos calculavam que o seu sacerdote seria de nobre estirpe. Todos o temiam, embora soubessem que cumpria o seu dever; baptizava-os, dizia missa, casava-os, ouvia-lhes as confissões, absolvia-os, repreendia-os e enterrava-os, mas não os acompanhava. Caminhava só, com o rosto severo, o cabelo desgrenhado e os olhos a brilhar. Todavia e mesmo assim, os aldeãos orgulhavam-se dele. A maior parte das igrejas do campo tinha de suportar sacerdotes ignorantes, com cara de Lua cheia, pouco mais instruídos que os seus paroquianos, mas Hookton tinha no padre Ralph um erudito como era devido, demasiado inteligente para ser sociável, talvez um santo, talvez um nobre de estirpe, um pecador confesso, provavelmente louco, mas, incontestavelmente, um verdadeiro padre.

O padre Ralph abençoou os santíssimos Sacramentos para logo a seguir advertir os cinco homens que Lúcifer andava à solta na noite antes da Páscoa e que o maior desejo do demónio era arrebatá-los do altar. Desse modo, teriam eles de guardar com diligência o pão e o vinho, tarefa que passaram a cumprir, respeitosamente ajoelhados, logo após a partida do sacerdote, olhando o cálice, com o brasão de armas gravado no seu corpo de prata. O brasão mostrava um animal mítico, um yale (Animal mítico parecido com um antílope, do tamanho de um cavalo, com presas e cauda de leão. Foi usado pela primeira vez por John, duque de Beauford, 3.° filho de Henrique IV. [N. da T.]), segurando um graal e fora esse nobre objeto que sugerira aos aldeãos a estirpe fidalga do padre Ralph, caído em desgraça por ter sido possuído pelos demónios. O cálice de prata parecia cintilar à luz de duas imensas velas que ficariam a arder durante toda a noite. A maior parte das aldeias não se podia dar ao luxo de ter círios pascais, mas o padre Ralph todos os anos comprava dois aos monges de Shaftesbury e os aldeãos entravam timidamente na igreja para os admirarem. Porém, naquela noite, depois do pôr do Sol, apenas os cinco homens observavam as chamas enormes e firmes.

A dada altura, John, que era pescador, soltou um peido.

- Deve estar bem maduro para afastar o demónio - disse, fazendo rir os outros quatro. Depois, todos eles abandonaram os degraus do coro e sentaram-se, encostados à parede da nave. A mulher de John mandara um cesto com pão, queijo e peixe fumado, enquanto Edward, que era dono de umas salinas na praia, trouxera a cerveja.

Nas grandes igrejas da Cristandade, eram os cavaleiros que faziam esta vigília anual. Ajoelhavam, envergando a armadura e camisas de tela bordadas com leões empinados, falcões inclinados, cabeças de machado e águias de asas abertas, e os elmos enfeitados com cristas de penas. Porém, não havia cavaleiros em Hookton e apenas o homem mais novo, que se chamava Thomas e estava sentado um pouco afastado dos outros quatro, possuía uma arma. Era uma espada velha, romba e já um pouco ferrugenta.

- Crês tu que essa lâmina velha possa assustar o diabo, Thomas? - perguntou John.

- O meu pai disse-me que a trouxesse - afirmou Thomas.

- Para que quer o teu pai essa espada?

- Já sabes que não deita nada fora - disse Thomas, erguendo a velha arma. Era pesada, mas ele levantou-a com facilidade; aos dezoito anos, era alto e imensamente forte. Era muito apreciado em Hookton, pois além de ser o filho do homem mais rico da aldeia, era também um rapaz trabalhador. Não havia nada de que mais gostasse do que passar um dia no mar a puxar as redes mascarradas que lhe deixavam as mãos feridas e a sangrar. Sabia navegar à vela e tinha força para manobrar um remo enorme, quando o vento caía; sabia montar armadilhas, manejar o arco, cavar uma sepultura, castrar vitelos, cobrir as casas com colmo e cortar feno durante um dia inteiro. Era um rapaz do campo, enorme, ossudo e de cabelo negro, mas Deus dera-lhe um pai que o queria ver acima das coisas vulgares. Queria que Thomas fosse padre e era por isso que o rapaz terminara o primeiro período da sua estada em Oxford.

- Que fazes tu em Oxford, Thomas? - perguntou-lhe Edward.

- Tudo aquilo que não devia - respondeu Thomas. Afastou o cabelo negro do rosto, ossudo como o do pai. Tinha os olhos muito azuis, e um pouco encovados, queixo comprido, e o sorriso fácil. As raparigas da aldeia consideravam-no bonito.

- Há raparigas em Oxford? - perguntou John, manhoso.

- Mais do que devia haver - concordou Thomas.

- Não digas isso ao teu pai - aconselhou Edward. - Ou levas umas boas vergastadas. O teu pai é muito bom com o chicote.

- Não há melhor - confirmou Thomas.

- Só quer o que é melhor para ti - disse John. - Não o podemos censurar por isso.

Mas Thomas censurava o pai. Sempre o fizera. Havia anos que se confrontavam e nada causava tanto atrito entre eles, como a obsessão de Thomas pelos arcos. O pai da mãe fora fabricante de arcos, no Weald, e Thomas vivera com o avô até quase aos dez anos. Depois, o pai trouxera-o para Hookton, onde veio a conhecer o monteiro de sir Giles Marriott, outro homem hábil no manejo desta arma e que passara a ser o seu novo tutor. Thomas fizera o primeiro arco com onze anos, mas quando o pai descobriu a arma de madeira de olmo, quebrara-a sobre o joelho, usando os restos para açoitar o filho.

- Não és um homem do povo - gritara, vergastando Thomas nas costas, na cabeça e nas pernas com as ripas partidas; todavia, nem as palavras nem a pancada tiveram qualquer efeito. E, como o pai de Thomas andava geralmente preocupado com outras coisas, o rapaz tinha muito tempo para se dedicar à sua obsessão.

Aos quinze anos, era tão bom fabricante de arcos quanto o avô, sabendo instintivamente a forma a dar à ripa de salgueiro, de modo a que o interior fosse feito com o cerne, e a parte exterior revestida pelo sâmago, mais flexível para que quando o arco se dobrasse, a madeira do cerne quisesse sempre endireitar-se e o sâmago fosse o músculo que tornava possível o movimento. Para o veloz cérebro de Thomas, havia elegância, simplicidade e beleza num bom arco. Macio e forte, era como o ventre liso de uma rapariga e, naquela noite, ao fazer a vigília pascal na igreja de Hookton, Thomas recordou-se de Jane, que servia na pequena taberna da aldeia.

John, Edward e os outros dois homens tinham estado a falar das coisas da aldeia: do preço dos cordeiros na feira de Dorchester, da velha raposa que, em Lip Hill, tinha comido numa só noite todo um bando de gansos e do anjo que fora visto sobre os telhados em Lyme.

- Parece-me que andaram a beber demais - alvitrou Edward.

- Eu vejo anjos quando bebo - disse John.

- Deve ser Jane - afirmou Edward. - Parece um anjo, lá isso parece.

- E tu não te portes como se o fosses - avisou John. - A moça está grávida.

Os outros quatro homens olharam para Thomas que, com ar inocente, fitava o tesouro suspenso das traves. Na verdade, receava que a criança fosse de fato sua e sentia-se aterrorizado com o que o pai poderia dizer; porém nessa noite fingiu ignorar a gravidez de Jane. Limitou-se a olhar para a relíquia, semi-obscurecida por uma rede de pesca pendurada a secar, enquanto os quatro homens mais velhos, aos poucos, acabaram por adormecer. Uma corrente de ar frio fez tremeluzir a chama das velas gémeas. Algures na aldeia, um cão uivava e Thomas ouvia sempre e ininterruptamente o vaivém das ondas a bater nas pedras, que se detinha, para logo recomeçar. Escutou o ressonar dos quatro companheiros e rezou para que o pai nunca descobrisse o que se passava com Jane, coisa pouco provável, já que ela pressionava Thomas para casarem e ele não sabia o que fazer. Talvez, pensou, o melhor fosse fugir, levar Jane e o arco e fugir, mas como não tinha a certeza, olhava a relíquia no tecto da igreja e rezava para que o santo viesse em seu auxílio.

O tesouro era um lança. Uma arma enorme, com um cabo da grossura do braço de um homem e duas vezes a sua altura. Provavelmente era feita de freixo, apesar de ser tão antiga que ninguém o podia afirmar; a idade curvara também um pouco o cabo, incrivelmente enegrecido, e a extremidade não era uma lâmina de ferro ou aço, mas sim uma cunha de prata baça, que se transformava numa ponta fina. O cabo não se dilatara para proteger o punho, mas era liso como um dardo ou um aguilhão; a relíquia parecia de fato uma enorme vara de bois, mas um camponês nunca picaria um animal com uma ponta de prata. Tratava-se de uma arma, era uma lança.

Só que não era uma velha lança qualquer. Era a própria usada por São Jorge para matar o dragão. Era a lança de Inglaterra, pois São Jorge era o santo deste país, o que a transformava num enorme tesouro, mesmo suspensa do tecto cheio de teias de aranhas da igreja de Hookton. Havia muita gente que dizia que nunca poderia ter pertencido a São Jorge, mas Thomas acreditava que sim. Gostava de imaginar a poeira levantada pelas patas do cavalo do santo, bem como o hálito de chamas infernais soltado pelo dragão, enquanto o animal recuava e São Jorge apontava a lança. A luz do sol, cintilante como as asas de um anjo, teria iluminado o capacete do santo e Thomas imaginava os rugidos do dragão, o agitar da sua cauda coberta de escamas, o cavalo a relinchar de terror; via o santo erguer-se nos estribos, antes de mergulhar a ponta de prata na couraça do monstro. A lança ia directa ao coração e chegavam ao céu os gritos da fera, que estrebuchava, se esvaía em sangue e logo morria. Depois o pó assentava, o sangue do dragão secava sobre as areias do deserto e São Jorge arrancava a lança, que acabaria por chegar à posse do padre Ralph. Mas como? O sacerdote não dizia. Mas ali estava ela, uma enorme lança escura, suficientemente pesada para estilhaçar as escamas de um dragão.

Assim, naquela noite, Thomas rezou a São Jorge, enquanto Jane, a beldade de cabelo negro, cujo ventre começava a arredondar com a criança que esperava, dormia na taberna. O padre Ralph gritava com um pesadelo, assustado pelos demónios que dançavam na escuridão e pelas megeras que gritavam no monte enquanto as ondas intermináveis se lançavam e sugavam as pedras do Hook. Era a noite antes da Páscoa.

Thomas acordou ao som dos galos da aldeia e viu que as velas ricas tinham ardido quase até aos castiçais de estanho. Uma luz cinzenta entrava pela janela, sobre o altar coberto de branco. O padre Ralph prometera à aldeia que um dia naquela janela cintilaria um vitral colorido mostrando São Jorge a picar o dragão com a lança de ponta de prata, mas por enquanto, a moldura de pedra estava preenchida por finas placas de osso, que faziam com que o ar dentro da igreja tivesse a cor amarela da urina.

Thomas levantou-se com vontade de urinar e os primeiros gritos de horror soaram, vindos da aldeia.

Porque era Páscoa, Cristo ressuscitara e os franceses estavam a desembarcar.

Os assaltantes chegaram da Normandia em quatro barcos que haviam navegado durante a noite, empurrados pelo vento oeste. O chefe da expedição, sir Guillaume d'Evecque, o Sieur d'Evecque era um guerreiro experimentado que já combatera os ingleses na Gasconha e na Flandres e conduzira dois assaltos à costa sul de Inglaterra. De ambas as vezes, regressara com os barcos intactos e carregados de lã, prata, gado e mulheres. Vivia numa bela casa de pedra na íle Saint Jean de Caen, onde era conhecido como o cavaleiro do mar e da terra. Tinha trinta anos, peito largo e queimado do sol, de cabelo loiro; era alegre e irreflectido, vivendo da pirataria no mar e de serviços prestados como cavaleiro, em terra. Acabava de chegar a Hookton.

O local era insignificante, quase incapaz de oferecer grandes recompensas, porém, sir Guillaume fora contratado e se falhasse em Hookton, se não conseguisse sequer arrancar uma moeda a um aldeão, mesmo assim, teria lucro, já que lhe tinham prometido mil libras pela expedição. O contrato fora assinado e selado, garantindo-lhe as ditas mil libras juntamente com todo o saque que conseguisse em Hookton. Já lhe tinham pago cem e o resto estava à guarda do Irmão Martin, da Abbaye aux Hommes de Caen, de modo que, para ganhar as restantes novecentas, sir Guillaume apenas teria de levar os barcos até Hookton, ficar com o que quisesse, excepto o recheio da igreja que pertenceria ao homem que lhe oferecera tão generoso contrato. Este encontrava-se agora ao lado de sir Guillaume, no navio principal.

Era um jovem, com menos de trinta anos, alto e de cabelo negro, que raras vezes falava e sorria ainda menos. Trazia uma rica cota de malha que lhe caía até aos joelhos e, sobre ela, uma camisa de tela, de linho negro, sem qualquer insígnia. Mesmo assim, sir Guillaume calculava que o outro fosse nobre, pois tinha a arrogância da sua linhagem e a confiança dos privilegiados. Não era certamente um nobre normando, pois sir Guillaume conhecia-os a todos e tinha sérias dúvidas de que este tivesse vindo dos arredores de Alençon ou Maine, já que muitas vezes acompanhara os exércitos dessas paragens. Porém, a coloração amarelada da tez do desconhecido sugeria-lhe que fosse originário das províncias mediterrânicas, talvez do Languedoque ou de Dauphine, e lá eram todos doidos. Doidos varridos. sir Guillaume nem sequer sabia o nome do homem.

- Há quem me chame Harlequin - respondera o desconhecido quando sir Guillaume lhe perguntara.

- Harlequin? - repetira sir Guillaume, fazendo imediatamente a seguir o sinal da Cruz, pois ninguém faria alarde de um nome assim. - Quer dizer, o mesmo que hellequin?

- É hellequin, em França - concordara. - Mas em Itália diz-se «harlequin». E a mesma coisa - o homem sorrira e nesse sorriso havia a sugestão de que seria melhor sir Guillaume dominar a sua curiosidade, se quisesse receber as restantes novecentas libras.

O homem que se autodenominava Harlequin fitava agora a costa coberta de bruma, onde se avistava a torre de uma igreja atarracada, por entre um vago amontoado de telhados e colunas de fumo dos fogos de combustão lenta das salinas.

- Hookton? - perguntou.

- É o que ele diz - respondeu sir Guillaume, apontando com a cabeça para o mestre da embarcação.

- Então que Deus se amerceie dessa terra - proferiu o homem. Sacou da espada, embora os quatro barcos estivessem ainda a meia milha da costa. Os besteiros genoveses, contratados para a viagem, fizeram o sinal da Cruz e começaram a retesar as cordas assim que sir Guillaume ordenou que erguessem o seu estandarte no mastro principal. Era uma bandeira azul decorada com três falcões amarelos, de asas abertas e garras afiadas, já inclinados em direcção à presa. Sir Guillaume sentiu o cheiro das fogueiras das salinas e ouviu o os galos a cantar em terra.

Os galos continuavam a cantar, quando as proas dos quatro barcos encalharam na praia de seixos.

Sir Guillaume e o Harlequin foram os primeiros a saltar para terra, mas logo atrás deles, seguiam duas dezenas de besteiros genoveses, soldados profissionais, conhecedores dos seus deveres. O chefe fê-los atravessar a praia e a aldeia, de modo a fecharem o vale, onde deteriam qualquer aldeão que se decidisse a fugir, levando consigo os seus bens. Os restantes homens de sir Guillaume saqueariam as casas, enquanto os marinheiros ficariam na praia a guardar as embarcações.

Fora uma longa noite passada no mar, com frio e muita ansiedade, mas agora chegara a recompensa. Hookton foi invadida por quarenta homens-de-armas. Usavam capacetes justos e cotas de malha sobre coletes de couro, estavam armados com espadas, machados e lanças, e autorizados a saquear. A maior parte eram veteranos de outros assaltos levados a cabo por sir Guillaume e sabiam exactamente o que tinham a fazer. Abrir a pontapé as portas pouco resistentes e começar a matar os homens. Deixar que as mulheres gritassem, mas matar os homens, pois eram eles que mais ripostavam. Algumas mulheres fugiam, mas os besteiros genoveses estavam ali para as deter. Uma vez mortos os homens, o saque poderia começar, o que levava tempo, já que os aldeãos metiam tudo o que possuíam de valor em esconderijos difíceis de encontrar. O colmo tinha de ser arrancado, os poços explorados, o soalho erguido, mas havia muita coisa que estava à vista: presuntos que aguardavam a primeira refeição após a Quaresma, renques de peixe fumado ou seco, montes de redes, boas panelas, rocas e fusos, ovos, batedeiras de manteiga, barricas de sal - coisas muito humildes, mas de valor suficiente para serem levadas para a Normandia. Nalgumas casas guardavam pequenas quantidades de moedas e uma delas, a do padre, escondia um tesouro de travessas, castiçais e jarros de prata. Havia mesmo lá alguns rolos de bom tecido de lã, uma enorme cama entalhada e um bom cavalo no estábulo. Sir Guillaume olhou para os dezassete livros, mas concluiu que nada valiam e assim, tendo arrancado os fechos de bronze das capas de couro, deixou-os para que ardessem quando incendiassem as casas. Teve de tirar a vida à governanta do padre. Lamentou aquela morte. Sir Guillaume não se melindrava por matar mulheres, porém as suas mortes não traziam qualquer honra, de modo que não as encorajava, a menos que elas lhe causassem problemas. A governanta do padre quisera resistir. Atirara-se aos soldados com o espeto de assar, chamara-lhes filhos de prostitutas e vermes do diabo, de modo que, por fim, sir Guillaume cortou-a ao meio com a espada, já que ela não aceitava o seu destino.

- Cabra estúpida - exclamou ele, passando por cima do cadáver para espreitar a lareira. Dois belos presuntos estavam a ser fumados na chaminé.

- Desce-os - ordenou a um dos seus homens e depois deixou-os, para revistarem a casa, enquanto ele se dirigia à igreja.

O padre Ralph, acordado pelos gritos dos seus paroquianos, enfiara a sotaina e correra à igreja. Os homens de sir Guillaume tinham-no deixado em paz, por respeito, mas uma vez lá dentro, o sacerdote começar a repelir os invasores, até que o Harlequin chegou e, aos berros, ordenou aos seus homens que o agarrassem. Prenderam-lhe os braços e imobilizaram-no diante do altar coberto com a toalha pascal.

O Harlequin, de arma na mão, inclinou-se diante do padre Ralph.

- Meu senhor conde - disse.

O padre Ralph fechou os olhos, talvez em oração, embora parecesse estar muito irritado. Abriu-os e fitou o belo rosto do Harlequin.

- Sois o filho de meu irmão - disse, sem parecer zangado, mas sim imensamente triste.

- E verdade.

- Como está vosso pai?

- Morto - respondeu o Harlequin. - Tal como o pai dele e vosso.

- Deus dê descanso às suas almas - proferiu piedosamente o padre Ralph.

- E quando morrerdes vós, velho, serei conde e a nossa família erguer-se-á de novo.

O padre Ralph esboçou um leve sorriso e olhou para a lança.

- De nada te servirá - afirmou. - O seu poder está reservado para homens virtuosos. Não terá qualquer efeito num demónio como vós.

Depois o padre Ralph soltou um estranho gemido, e perdeu o fôlego enquanto baixava os olhos para o ventre, onde o sobrinho tinha enterrado a espada. Esforçou-se por falar, mas as palavras não lhe saíram, depois tombou, quando os soldados o largaram e caiu sobre o altar com uma poça de sangue no colo.

O Harlequin limpou a espada na toalha, manchada de vinho, e ordenou aos homens de sir Guillaume que arranjassem uma escada.

- Uma escada? - perguntou o soldado, confuso.

- Eles não cobrem os telhados com colmo? Então têm escadas. Descobre uma - o Harlequin embainhou a espada e ergueu os olhos para a lança de São Jorge.

- Lancei-lhe uma maldição - murmurou o padre Ralph em voz fraca. Estava pálido, moribundo, mas extremamente calmo.

- As vossas maldições, senhor, preocupam-me tanto como um peido de uma taberneira - o Harlequin atirou os castiçais de estanho a um soldado, depois pegou nas hóstias que estavam na tigela de barro e meteu-as na boca. Olhou então para o recipiente e, concluindo que não tinha qualquer valor, deixou-o sobre o altar.

- Onde está o vinho? - perguntou ao padre Ralph. Este abanou a cabeça.

- Cálix meus inebrians - disse, e o Harlequin soltou uma gargalhada. O padre Ralph fechou os olhos quando a dor se apoderou do seu ventre. - Oh, meu Deus! - gemeu.

O Harlequin baixou-se junto ao tio.

- Dói muito?

- Como fogo - respondeu o padre Ralph.

- Ides arder no Inferno, meu senhor - disse o Harlequin e viu como o padre Ralph se agarrava ao ventre ferido para estancar o fluxo de sangue. Afastou-lhe as mãos e desferiu-lhe um forte pontapé no estômago. O padre Ralph contorceu-se gemendo de dor.

- Um presente da vossa família - disse o Harlequin e voltou-lhe as costas, pois a escada já tinha sido trazida para dentro da igreja.

A aldeia enchera-se de gritos, já que a maioria das mulheres e crianças estavam vivas e a sua provação mal começara. As mais novas foram imediatamente violadas pelos homens de sir Guillaume e as mais belas, incluindo Jane, da taberna, foram levadas para os barcos, para serem transportadas para a Normandia, onde se transformariam em prostitutas ou em esposas destes homens. Uma delas gritava, porque tinha um bebé dentro de casa, mas os soldados não a entendiam e bateram-lhe para que se calasse antes de a entregarem nas mãos dos marinheiros. Estes deitaram-na sobre as pedras e levantaram-lhe as saias. A mulher chorou, inconsolável, ao ver arder a sua casa. Gansos, porcos, cabras, seis vacas e o cavalo bom do padre foram conduzidos para os barcos, enquanto gaivotas brancas voavam aos gritos, no céu.

O sol mal se erguera sobre os montes a Oriente e a aldeia já rendera mais do que sir Guillaume ousara esperar.

- Podíamos seguir para o interior - sugeriu o capitão dos besteiros genoveses.

- Já temos aquilo que viemos buscar - interveio o Harlequin, vestido de negro. Colocara desajeitadamente a lança de São Jorge sobre a erva do cemitério e olhava agora a antiga arma como se tentasse compreender o seu poder.

- O que é isso? - perguntou o besteiro genovês.

- Nada que a ti te sirva.

Sir Guillaume sorriu.

- Se se desferir um golpe com essa lança, estilhaça-se como se fosse de marfim.

O Harlequin encolheu os ombros. Tinha encontrado o que desejava e não lhe interessava a opinião de sir Guillaume.

- Vamos para o interior - sugeriu de novo o capitão genovês.

- Talvez uma ou duas léguas - concordou sir Guillaume. Sabia que tinha a recear a chegada dos temidos arqueiros ingleses a Hookton, mas provavelmente tal não aconteceria antes do meio-dia. Assim, perguntava a si próprio se não existiria uma outra aldeia próxima que valesse a pena saquear. Olhou para uma menina aterrorizada, que não teria mais que onze anos e estava a ser arrastada para a praia por um soldado.

- Quantos mortos? - perguntou.

- Nossos? - o capitão genovês parecia surpreendido com a pergunta. - Nenhum.

- Nossos não, deles.

- Trinta homens, quarenta? Umas quantas mulheres?

- E saímos sem um único arranhão! - sir Guillaume exultava. - É pena pararmos agora - olhou para o amo, mas o homem de negro não parecia importar-se com o que fizessem. Entretanto o capitão genovês limitava-se a resmungar, o que surpreendeu sir Guillaume, pois julgava-o desejoso de prosseguir o assalto. Contudo, viu que o resmungo irritado não fora provocado por falta de entusiasmo, mas sim por uma seta de penas brancas que se lhe enterrara no peito. Atravessara a camisa de malha e o colete almofadado como uma agulha, deslizando pelo linho e matando instantaneamente o besteiro.

Sir Guillaume atirou-se ao chão e um instante depois outra seta passou por cima dele para se enterrar na erva. O Harlequin arrancou a lança e corria já em direcção à praia, enquanto sir Guillaume tentava abrigar-se na entrada da igreja.

- Besteiros! - gritou. - Besteiros! Porque alguém começara a ripostar.

Thomas ouvira os gritos e, tal como os outros quatro homens que se encontravam na igreja, fora até à porta, para saber o que se passava. Assim que chegaram à entrada, viram, já no cemitério, um bando de homens armados, com as cotas de malha e os elmos cinzentos escuros à luz da manhã.

Edward atirou com a porta da igreja, pôs-lhe a tranca e persignou-se.

- Meu doce Jesus - disse, estupefato e depois estremeceu quando um machado se enterrou na madeira. - Dá-me isso! - e agarrou na espada de Thomas.

Este entregou-lha. A porta da igreja tremia agora enquanto dois ou três machados atacavam a madeira antiga. Os aldeãos sempre tinham partido do princípio que Hookton era demasiado pequena para ser assaltada, mas agora a porta da igreja fazia-se em estilhaços diante dos seus olhos. Teve a certeza de que eram os franceses. Por toda a costa, corriam histórias a respeito destes desembarques e o povo rezava orações para se proteger de tais ataques, porém, o inimigo encontrava-se ali e os golpes dos machados ecoavam dentro da igreja.

Thomas estava em pânico, mas ignorava-o. Sabia apenas que tinha de sair dali, de modo que correu e saltou sobre o altar. Esmagou o cálice de prata com o pé direito e atirou-o ao chão ao trepar para o parapeito da grande janela do lado nascente. Lançou-se contra as placas amareladas, partiu o osso e ficou voltado para o cemitério. Viu homens de gibões vermelhos e verdes passarem a correr pela taberna, mas nenhum olhou para ele, de modo que saltou e correu para a vala, onde rasgou as roupas a tentar atravessar a sebe de espinhos, para passar para o outro lado. Atravessou o atalho, saltou a vedação do jardim do pai e bateu com toda a força à porta da cozinha, mas ninguém atendeu, e uma seta bateu no lintel a uma pequena distância do seu rosto. Thomas encolheu-se e fugiu por entre os feijoeiros, até ao estábulo onde o pai guardava o cavalo. Não havia tempo para libertar o animal, por isso Thomas trepou ao monte de feno onde escondia o arco e a aljava. Ouviu uma mulher gritar ali perto. Os cães uivavam. Os franceses gritavam, enquanto deitavam portas abaixo. Thomas pegou no arco e na aljava, arrancou o colmo das traves e esgueirou-se pela greta saindo para o pomar do vizinho.

Correu então como se fosse perseguido pelo diabo. O projéctil de uma besta caiu sobre a relva quando chegou a Lip Hill. Dois arqueiros genoveses começaram a persegui-lo, mas Thomas era jovem, alto, forte e veloz. Correu monte acima, atravessando a pastagem verdejante cheia de primaveras e margaridas, saltou a vedação que cobria uma abertura na sebe e depois continuou em direcção ao cume. Só parou no bosque, já na outra encosta, onde se deixou cair, para recuperar o fôlego, por entre as campainhas azuis. Aí ficou, a escutar os carneiros num campo próximo. Esperou, mas nada mais ouviu. Os besteiros tinham abandonado a perseguição.

Thomas ficou muito tempo deitado por entre as flores silvestres, mas por fim resolveu voltar cautelosamente ao cimo do monte, de onde avistou um grupo de mulheres velhas e crianças que se espalhavam pela outra encosta. Aquela gente tinha, sabe-se lá como, fugido aos besteiros e seguiria sem dúvida em direcção ao norte, para avisar sir Giles Marriott, contudo Thomas não se lhes juntou. Preferiu descer até umas aveleiras, onde florescia também o mercurial vivaz e de onde conseguia ver a morte da sua aldeia.

Os homens carregavam o saque para os quatro estranhos barcos ancorados nas pedras do Hook. Estavam agora a incendiar o primeiro telhado de colmo. Havia dois cães mortos ao lado de uma mulher quase nua, que os franceses seguravam no chão; tinham-lhe levantado as saias e serviam-se dela cada um por sua vez. Thomas recordou que, não havia muito tempo a mulher tinha casado com um pescador, cuja primeira esposa morrera de parto. Tinha um ar tímido e feliz, mas agora, quando tentava rastejar pela estrada, um francês dera-lhe um pontapé na cabeça e soltara uma gargalhada. Thomas viu Jane, a rapariga que temia ter engravidado, ser arrastada para os barcos e sentiu vergonha da sua sensação de alívio por não ter de dar a notícia ao pai. Mais cabanas eram incendiadas, à medida que os franceses lançavam palha a arder para cima dos telhados de colmo e Thomas viu o fumo subir cada vez mais espesso antes de abrir caminho por entre as aveleiras até um sítio onde a profusão de flores brancas do espinheiro o ocultava. Foi daí que disparou o arco.

Era o melhor arco que alguma vez fizera. Fora cortado de uma ripa que dera à costa, proveniente de um navio afundado no canal. Uma dezena dessas ripas aparecera na praia de Hookton, trazidas pelo vento sul e o monteiro de sir Giles Marriott pensava que seriam de teixo italiano, pois tratava-se da madeira mais bela que alguma vez vira. Thomas vendera onze destas ripas, de veios apertados, em Dorchester, mas conservara a melhor. Cortara-a, depois passara os extremos pelo vapor, de modo a dar-lhes uma leve inclinação, contrária aos veios da madeira, e cobrira-a com uma mistura de fuligem e óleo de linhaça. Cozera a mistura no fogão da mãe, em dias que o pai estava ausente de casa, de modo que este nunca soube o que o filho andava a fazer. É verdade que por vezes se queixava do cheiro, mas a mulher dizia-lhe que estava a preparar uma poção para envenenar ratos. O arco tivera de ser pintado, para não secar, pois de contrário a madeira tornar-se-ia quebradiça e racharia sob a tensão da corda. A tinta secara para ficar de uma cor dourada, exactamente como os arcos que o avô fabricara em Weald. Thomas quisera que o seu ficasse mais escuro, e esfregou mais fuligem na madeira, passando-lhe a seguir cera de abelha. Foi o que fez durante duas semanas, até o arco ficar tão escuro como o cabo da lança de São Jorge. Colocou nas pontas dois bocados de osso entalhado, para segurar a corda feita de fibras de cânhamo entrançadas, humedecidas com grude, depois reforçara a corda com mais cânhamo no sítio em que a flecha se apoiava. Roubara umas moedas ao pai, para comprar cabeças de seta em Dorchester, e fabricara em seguida as hastes de madeira de freixo e penas de ganso, de modo que, naquela manhã de domingo de Páscoa, tinha vinte e três boas flechas dentro da aljava.

Thomas puxou o arco, pegou numa flecha com penas brancas e olhou para os três homens junto à igreja. Estavam muito longe, porém o arco negro era uma das maiores armas jamais feitas e a sua curvatura de freixo tinha uma força excepcional. Um deles vestia uma cota de malha, outro uma simples camisa de tela negra e um terceiro um gibão verde e vermelho sobre a cota, de modo que Thomas concluiu que o que estava vestido de modo mais garrido deveria ser o comandante do assalto e portanto deveria morrer. A sua mão esquerda estremeceu ao pegar no arco. Tinha a boca seca e estava assustado. Sabia que dispararia com toda a força, de modo que baixou o braço e abrandou a tensão da corda. «Lembra-te», disse para consigo, «lembra-te de tudo o que te ensinaram. Um arqueiro não aponta, mata. Está tudo na cabeça, nos braços, nos olhos e matar um homem não é muito diferente de apontar a uma corça. Puxa e solta, mais nada», e fora para isso que praticara mais de dez anos, para que esse acto se tornasse para ele tão natural como respirar e tão fluido como a água de uma nascente. «Puxa a corda e deixa que Deus te guie a flecha.»

O fumo era agora mais espesso sobre Hookton. Thomas sentiu uma imensa raiva surgir dentro de si como um humor escuro; avançou a mão esquerda, recuou a direita e não desviou os olhos do gibão verde e vermelho. Puxou a corda até esta estar atrás da sua orelha direita e depois soltou-a. Era a primeira vez que Thomas de Hookton disparava uma seta na direcção de um homem e soube que o tinha feito na perfeição, desde que esta saltara da corda, pois o arco nem estremecera. A flecha voou bem centrada e viu-a descrever a curva, mergulhando do cimo do monte para atingir com toda a força e profundamente o gibão verde e vermelho. Lançou uma segunda flecha, e o homem de cota de malha caiu e tentou correr para a entrada da igreja, enquanto um terceiro pegava na lança e corria em direcção à praia onde o fumo o poderia ocultar.

Restavam a Thomas vinte e uma flechas. Uma por cada pessoa da Santíssima Trindade, pensou, mais outra por cada ano da sua vida, e essa estava ameaçada, já que uma dúzia de besteiros vinha a correr em direcção ao monte. Soltou a terceira flecha e depois voltou a correr para se esconder nas aveleiras. Sentia-se de súbito exultante, invadido por uma sensação de poder e satisfação. No preciso instante em que a primeira flecha voara pelo céu, soube que mais nada queria da vida. Era um arqueiro. Por sua vontade, Oxford poderia ir para o Inferno, pois encontrara a felicidade. Saltou de contentamento e correu monte acima. Os projécteis lançados pelas bestas caíam por entre as folhas das aveleiras e o jovem reparou que ao voarem produziam um ruído profundo, quase um zumbido. Depois passou o cimo do monte e correu alguns metros para Ocidente, antes de recuar de novo até ao cume. Fez uma pausa, suficiente para disparar outra flecha, depois voltou-se e de novo partiu a correr.

Thomas conduziu os besteiros genoveses numa dança de morte - do monte até à sebe, ao longo de atalhos que conhecia desde a infância - e eles, tão tolos, seguiam-no, pois o orgulho não os deixava admitir que tinham sido derrotados. Mas assim era, e dois deles morreram antes que a trombeta soasse na praia, para reunir os assaltantes e os conduzir aos barcos. Nessa altura, os genoveses deram meia volta, detendo-se apenas para recuperar a arma, aljavas e cota de malha de um dos mortos, porém Thomas matou outro enquanto estavam inclinados sobre o primeiro defunto, mas dessa vez os sobreviventes fugiram dele.

Thomas seguiu-os até à aldeia envolta em fumo. Passou a correr pela taberna, que mais parecia um inferno, e chegou à praia, onde os quatro barcos estavam a ser levados. Os marinheiros empurraram-nos com os longos remos, levando-os para o mar. Rebocaram as três melhores embarcações de Hookton e queimaram os restantes. A aldeia ardia também, com o colmo a rodopiar em direcção ao céu, lançando fagulhas, fumo e fragmentos incandescentes. Thomas lançou inutilmente da praia uma última flecha e viu-a mergulhar nas águas a curta distância dos assaltantes em fuga; depois deu meia volta e regressou à aldeia fedorenta, incendiada, ensanguentada e dirigiu-se à igreja, único edifício a que os assaltantes não tinham ateado fogo. Os seus quatro companheiros de vigília estavam mortos, mas o padre Ralph vivia ainda e estava sentado, encostado ao altar. A parte de trás da sotaina estava ensopada em sangue vivo e tinha o rosto comprido invulgarmente pálido.

Thomas ajoelhou ao lado do sacerdote.

- Meu pai?

O padre Ralph abriu os olhos e viu o arco. Fez uma careta, mas Thomas não percebeu se de dor ou reprovação.

- Mataste algum, Thomas? - perguntou o padre.

- Sim - respondeu Thomas. - Muitos.

O padre Ralph contorceu o rosto e estremeceu. Thomas calculava que ele seria um dos homens mais fortes que já conhecera, com as suas falhas, porém resistente como uma vara de salgueiro. Estava agora a morrer, com um queixume na voz.

- Não queres ser padre, pois não Thomas? - perguntou-lhe em francês, a sua língua materna.

- Não - respondeu Thomas da mesma forma.

- Vais ser soldado - disse o sacerdote. - Tal como o teu avô. - Fez uma pausa e soltou um gemido, quando uma nova onda de dor lhe arrepanhou o ventre. Thomas desejava ajudá-lo, mas na verdade, nada podia fazer. A espada do Harlequin trespassara o padre Ralph e apenas Deus o poderia salvar. - Discuti com o meu pai e ele renegou-me - confessou o moribundo. - Deserdou-me e, desde esse dia, recusei-me a reconhecê-lo. Mas tu, Thomas, és parecido com ele. Muito parecido. E sempre discutiste comigo.

- Sim, meu pai - respondeu Thomas, segurando a mão do padre, que não podia resistir.

- Amei a tua mãe - afirmou o padre Ralph. - Foi esse o meu pecado e tu és o seu fruto. Pensei que se fosses padre, poderias erguer-te acima do pecado. E ele invade-nos Thomas, invade-nos por todo o lado. Vi o demónio, Thomas, vi-o com os meus próprios olhos e temos de o combater. Apenas a Igreja o pode fazer - as lágrimas corriam-lhe pelas faces encovadas, com a barba por fazer. Olhou para cima, para o tecto da nave. - Roubaram a lança - disse tristemente.

- Eu sei.

- O meu bisavô trouxe-a da Terra Santa - disse o padre Ralph. - Roubei-a a meu pai e o filho do meu irmão veio hoje para no-la arrebatar - falava em voz baixa. - Vai fazer o mal com ela. Trá-la de volta, Thomas. Trá-la de volta.

- Assim farei - prometeu Thomas. O fumo começava agora a encher a igreja. Não tinha sido incendiada pelos assaltantes, porém os fragmentos incandescentes que andavam no ar atearam o colmo.

- Dizeis que foi o filho do vosso irmão que a roubou? - perguntou Thomas.

- Teu primo - murmurou o padre Ralph, de olhos fechados. - O que vinha vestido de negro. Veio roubá-la.

- Quem é ele? - perguntou Thomas

- O mal - respondeu o padre Ralph. - O mal - gemeu e abanou a cabeça.

- Quem é ele? - insistiu Thomas.

- Cálix meus inebrians - disse o padre Ralph, numa voz que pouco mais era que um murmúrio. Thomas sabia ser o verso de um salmo que significava «a minha taça embriaga-me», assim, calculou que o espírito do pai se lhe escapava, do mesmo modo que a sua alma se aproximava do fim da vida terrena.

- Dizei-me quem era vosso pai! - exigiu Thomas. Dizei-me quem sou, queria ele pedir. Dizei-me quem sois, meu pai. Porém, os olhos do padre Ralph tinham-se fechado, ainda que agarrasse com força a mão de Thomas.

- Meu pai? - chamou o rapaz. O fumo mergulhava na igreja e fil-trava-se pela janela que Thomas quebrara para fugir. - Meu pai?

Mas o pai nunca mais falou. Morreu e Thomas, que toda a sua vida tinha tido questões com ele, chorou como uma criança. Por vezes sentira vergonha dele, mas naquela fumacenta manhã de Páscoa, percebeu quanto o amara. A maior parte dos padres renegava os filhos, mas o padre Ralph nunca escondera Thomas. Deixara o mundo pensar o que lhe aprouvesse e confessara livremente ser homem, tal como era sacerdote. Se pecara ao amar a sua governanta, então fora um doce pecado. Nunca o negara, mesmo ao dizer os actos de contrição e ao recear ser castigado na vida depois da morte.

Thomas afastou o pai do altar. Não queria que o corpo ardesse, quando o telhado viesse abaixo. O cálice de prata que Tomas acidentalmente derrubara ficara debaixo da sotaina ensanguentada do morto e o jovem meteu-o no bolso, antes de arrastar o cadáver para o cemitério. Estendeu o pai ao lado do homem de gibão vermelho e verde e baixou-se junto a eles a chorar, sabendo que não conseguira cumprir a sua primeira vigília pascal. O demónio roubara os Sacramentos, a lança de São Jorge desaparecera e Hookton estava morta.

Ao meio-dia, sir Giles Marriott chegou à aldeia com duas dezenas de homens armados com arcos e podões. O próprio sir Giles vestira a cota de malha e empunhava a espada, mas não havia já inimigos para combater uma vez que Thomas era a única pessoa que restava na aldeia.

- Três falcões amarelos num campo azul - disse Thomas a sir Giles.

- Thomas? - perguntou sir Giles confuso. Era o senhor do castelo, agora já muito velho, mas nos seus tempos combatera escoceses e franceses. Fora grande amigo do pai de Thomas, mas não entendia o rapaz, que considerava ter crescido selvagem como um lobo.

- Três falcões amarelos num campo azul são as armas do homem que fez isto - disse Thomas, desejoso de vingança. Seriam as armas de seu primo? Não sabia. Havia tantas perguntas a que o pai não respondera.

- Não sei de quem é esse brasão - garantiu sir Giles. - Mas rezarei para que sofra as penas do Inferno pelos seus actos.

Nada se poderia fazer até os incêndios se extinguirem e, só nessa altura, poderiam retirar os cadáveres das cinzas. Os mortos carbonizados estavam enegrecidos e grotescamente encolhidos, devido ao calor, e até os corpos dos homens mais altos pareciam ser de crianças. Levaram os aldeãos mortos para o cemitério, para lhes darem a devida sepultura, mas os cadáveres dos quatro besteiros foram arrastados para a praia e despidos.

- Foste tu que fizeste isto? - perguntou sir Giles a Thomas.

- Sim, meu senhor.

- Então, agradeço-te.

- Os primeiros franceses que matei - disse Thomas, raivoso.

- Não - disse sir Giles e ergueu a túnica de um dos homens para lhe mostrar a insígnia com um cálice verde bordado na manga. - São de Génova - afirmou sir Giles. - Os franceses contratam-nos como besteiros. Matei alguns, nos meus tempos mas, de onde estes vêm, há sempre mais para os substituir. Sabes que insígnia é esta?

- Uma taça?

Sir Giles abanou a cabeça.

- O Santo Graal. Afirmam tê-lo guardado na sua catedral. Disseram-me que é enorme e verde, esculpido numa esmeralda e trazido das Cruzadas.

Uma dia gostaria de o ver.

- Então trá-lo-ei para vós - disse Thomas amargamente. - Tal como hei-de recuperar a nossa lança.

Sir Giles voltou-se para o mar. Os barcos dos assaltantes tinham partido havia muito e apenas se viam o Sol e as ondas.

- Porque teriam cá vindo? - perguntou.

- Pela lança.

- Duvido que fosse verdadeira - afirmou sir Giles. Era agora pesado, de rosto avermelhado e cabelo branco. - Tratava-se apenas de uma lança antiga, nada mais.

- É verdadeira - insistiu Thomas. - E foi por isso que cá vieram.

Sir Giles não discutiu.

- O teu pai teria gostado de te ver terminar os estudos.

- Os meus estudos terminaram - disse Thomas, com simplicidade. - Vou para França.

Sir Giles acenou com a cabeça. Em sua opinião, o rapaz seria muito melhor soldado que padre.

- Como arqueiro? - perguntou, olhando para o arco enorme ao ombro de Thomas. - Ou quererás vir para minha casa, para seres treinado como homem-de-armas? - esboçou um leve sorriso. - Nasceste gentil-homem, sabias?

- Nasci bastardo - insistiu Thomas. Sir Giles encolheu os ombros.

- Ele nunca mo disse e, quando eu insistia, limitava-se a dizer que Deus era o seu pai e a sua mãe era a Igreja.

- E a minha mãe era governanta de um padre e filha de um fabricante de arcos - disse Thomas. - Vou para França como arqueiro.

- Serias mais considerado como homem-de-armas - observou sir Giles, mas Thomas não desejava honras. Apenas vingança.

Sir Giles deixou-o escolher o que quisesse do inimigo morto e Thomas pegou numa cota de malha, num par de botas altas, numa faca, num cinto e num elmo. Era um equipamento simples, mas aproveitável e apenas a cota de malha precisava ser reparada, pois deixara passar uma seta por entre os seus anéis. Sir Giles afirmou que devia dinheiro ao pai de Thomas, o que poderia ou não ser verdade, mas pagou ao jovem, oferecendo-lhe um cavalo castrado de quatro anos.

- Precisas de uma montada - disse-lhe. - Agora todos os arqueiros a têm. Vai a Dorchester - aconselhou-o. - E, quer queiras quer não, hás de encontrar alguém a recrutar arqueiros.

Os cadáveres dos genoveses foram decapitados e deixados a apodrecer, e as quatro cabeças empaladas em estacas e plantadas na praia pedregosa do Hook. As gaivotas alimentaram-se dos olhos dos mortos e picaram-lhes a carne, até esta desaparecer, restando apenas ossos ocos a olharem as ondas.

•Porém, Thomas não viu as caveiras. Já atravessara o mar e, com o seu arco negro, partira para a guerra.





Primeira parte

Bretanha



Era Inverno. De manhã, um vento frio soprava do mar, trazendo consigo um cheiro acre a sal, e uma chuva fraca que, sem dúvida, anularia a força das cordas do arco, se não deixasse de cair. - O que é - disse Jake - é um desperdício de tempo. Ninguém lhe prestou atenção.

- Podia ter ficado em Brest - resmungou. - Estava sentado à lareira. A beber cerveja.

De novo o ignoraram.

- É um nome engraçado para uma cidade (Brest significa seio em inglês [N. da T.]) - disse Sam depois de muito tempo. - Brest. Gosto bastante - olhou para os arqueiros. - Talvez voltemos a ver o Melro? - sugeriu.

- Talvez ela te acerte na boca com um projéctil - resmungou Will Skeat. - E fazia-nos um grande favor.

O Melro era uma mulher que combatia nas muralhas da cidade, de cada vez que o exército fazia um assalto. Era jovem, de cabelo negro, usava uma capa preta e disparava uma besta. No primeiro, quando os arqueros de Skeat tinham estado na vanguarda do ataque e perdido quatro homens, puderam, estando muito próximos, ver de perto o Melro com toda a nitidez. Todos a consideravam muito bela, embora após uma derrotada campanha de Inverno, com frio, lama e fome, qualquer mulher lhes tivesse parecido maravilhosa. Mesmo assim, havia nesta qualquer coisa de especial.

- Não é ela que carrega a besta - declarou Sam, indiferente ao mau humor de Skeat.

- Claro que não - concordou Jake. - Não há mulher no mundo capaz de abrir uma besta.

- A Dozy Mary era - contrapôs outro. - Tinha músculos como os de um boi, lá isso tinha.

- E ela fecha os olhos quando dispara - disse Sam, continuando a falar do Melro. - Já reparei.

- Isso é porque tu não prestas atenção ao que estás a fazer - rosnou Will Skeat. - O melhor é fechares a boca, Sam.

Sam era o mais jovem dos homens de Skeat. Afirmava ter dezoito anos, embora não estivesse muito certo, pois perdera-lhes a conta. Era filho de um negociante de panos, tinha cara de querubim, com caracóis castanhos e um coração negro como o pecado. Mas era bom arqueiro; ninguém que o não fosse poderia servir Will Skeat.

- Pronto, rapazes - disse Skeat. - Preparem-se.

Vira a agitação no acampamento lá atrás. O inimigo em breve se daria conta, os sinos da igreja tocariam a rebate, e as muralhas da cidade rapidamente se encheriam de defensores armados com bestas que logo soltariam os seus projécteis sobre os atacantes. Hoje, a tarefa de Skeat era tentar afastar os besteiros das muralhas com as suas setas. Era arriscado, pensou com azedume. Os defensores acocorar-se-iam por trás das ameias, negando assim aos seus homens a oportunidade de apontar e o ataque terminaria, sem dúvida, como os outros cinco, num fracasso.

Fora toda uma campanha de reveses. William Bohum, conde de Northampton, que conduzia este pequeno exército inglês, lançara-se naquela expedição de Inverno, na esperança de capturar um bastião na Bretanha do Norte, porém o assalto a Carhaix fora um humilhante desaire. Os defensores de Guingamp tinham troçado dos ingleses e as muralhas de Lannion reprimiram todos os ataques. Capturaram Tréguier, mas como a cidade não tinha muralhas, o feito não fora grande e não havia sequer onde erguer uma fortaleza. Agora no frio do final do ano, sem nada melhor para fazer, o exército do conde chegara às portas daquela pequena cidade, que pouco mais era que uma aldeia murada, e até esse local miserável os desafiara. O conde lançara ataque após ataque e todos tinham sido repelidos. Os ingleses foram recebidos por uma chuva de projécteis lançados das bestas, as escadas tinham sido empurradas das muralhas e os defensores mostravam-se exultantes com todos os desaires.

- Como se chama este maldito sítio? - perguntou Skeat.

- La Roche-Derrien - respondeu um arqueiro alto.

- Tinhas de saber, Tom - disse Skeat. - Sabes tudo.

- É verdade, Will - respondeu gravemente Thomas. - É literalmente verdade. - Os outros arqueiros riram-se.

- Então, já que sabes tanto - disse Skeat - repete lá o nome da maldita terra.

- La Roche-Derrien.

- Que raio de nome - contestou Skeat. Tinha o cabelo grisalho e o rosto magro e já passara por quase trinta e cinco anos de combates. Viera do Yorkshire e começara a sua carreira de arqueiro na luta contra os escoceses. Fora tão afortunado quanto hábil e assim, conseguira saques, sobrevivera a batalhas e subira nas fileiras, até ser suficientemente rico para reunir ele próprio o seu bando de soldados. Conduzia agora setenta homens-de-armas e outros tantos arqueiros e fora contratado pelo conde de Northampton. Era essa a razão porque estava acocorado junto a uma sebe húmida, a cento e cinquenta passos das muralhas de uma cidade cujo nome nunca recordava. Os seus homens-de-armas estavam no acampamento e dera-lhes um dia de descanso, depois do último assalto falhado. Will Skeat detestava perder.

- La Roche quê? - perguntou a Thomas.

- Derrien.

- Mas que raio quer isso dizer?

- Tenho de confessar que não sei.

- Meu Jesus salvador - troçou Skeat. - Afinal, ele não sabe tudo.

- Contudo, é parecido com derrière, que quer dizer traseiro - acrescentou Thomas. - A rocha do traseiro, é a melhor tradução que consigo arranjar.

Skeat abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas nesse momento o primeiro sino da igreja de La Roche-Derrien começou a tocar, dando o alarme. Era o sino rachado, o que tinha um som áspero. Segundos depois as outras igrejas juntavam os seus dobres, logo enchendo o vento húmido com o seu clangor. O ruído foi acompanhado por uma amortecida ovação inglesa, enquanto as tropas de assalto vinham do acampamento e subiam a estrada em direcção à porta sul da cidade. Os comandantes transportavam escadas, os restantes, armas e machados. O conde de Northampton conduzia o assalto, tal como fizera com os outros, notável na sua armadura semi-oculta pela camisa de tela, com a insígnia de leões e estrelas.

- Sabem o que têm a fazer - gritou Skeat.

Os arqueiros ergueram-se, retesaram os arcos e soltaram-nos. Não havia qualquer alvo nas muralhas, pois os defensores tinham-se escondido, acocorados, mas o ruído das setas metálicas na pedra deveria mante-los assim, fora da vista. As flechas de penas brancas silvavam durante o voo. Mais dois bandos de arqueiros lançavam também as suas, muitos deles disparando para o céu, de modo a que os projécteis caíssem verticalmente no topo da muralha. Para Skeat parecia impossível alguém sobreviver sob uma chuva de pontas de aço, porém, assim que a coluna ofensiva do conde se aproximou a cerca de uma centena de passos, os virotes das bestas começaram a ser cuspidos das muralhas.

Havia uma brecha junto à porta. Fora feita por uma catapulta, a única máquina de guerra do cerco que ainda funcionava devidamente, mas a abertura era pequena, já que apenas o terço superior da muralha fora desmantelado pelos enormes pedregulhos. Os sitiados tinham tapado imediatamente a fenda com madeira e rolos de trapos, porém era um ponto fraco na muralha. Os homens da escada correram imediatamente nessa direcção, aos berros, enquanto os projécteis lançados pelas bestas choviam em seu redor. Tropeçavam, caíam, rastejavam e morriam, porém os sobreviventes chegavam para erguer duas escadas junto à brecha e o primeiro soldado começou a subir. Os arqueiros disparavam com a máxima velocidade possível, lançando as flechas para o cimo da fenda, mas, subitamente apareceu aí um escudo. Um escudo imediatamente atacado por duas dezenas de setas, e por trás dele uma mulher disparava a besta na direcção dos degraus da escada, matando o homem que vinha à frente. Outro escudo apareceu, outra besta disparou. Alguém empurrou uma panela por cima da abertura e a entornou, lançando um jorro de líquido que fez o homem gritar de agonia. Os defensores lançavam pedregulhos por cima da brecha fazendo estalar as bestas.

- Mais próximo! - gritou Skeat e os seus arqueiros ultrapassaram a sebe e percorreram a centena de passos até ao fosso da cidade, onde de novo fizeram soltar os enormes arcos de combate, enviando setas para as aberturas entre as ameias. Alguns defensores morriam, pois tinham tido de avançar para disparar as bestas directamente sobre os homens que se amontoavam junto às escadas. Enquanto os soldados trepavam, uma vara bifurcada empurrou uma escada para trás. Thomas torceu a mão esquerda e soltou os dedos para disparar uma flecha directamente ao peito do homem que empunhava a vara. Este estava coberto pelo escudo de um companheiro, que se afastou por um instante, deixando que a flecha penetrasse imediatamente na pequena abertura, logo seguida de mais duas, antes do coração do homem ter deixado de bater. Mas outros conseguiram fazer cair a escada. - São Jorge! - gritavam os ingleses, porém, o santo deveria estar a dormir pois não prestou qualquer auxílio aos atacantes.

Dos parapeitos foram lançados mais pedregulhos e a seguir uma massa enorme de palha a arder caiu sobre o grupo de atacantes. Um homem conseguiu chegar ao cimo da brecha, mas foi imediatamente morto por um machado, que lhe abriu em dois o elmo e o crânio. Caiu sobre os degraus, impedindo a subida; o conde tentou soltá-lo, porém foi atingido na cabeça por um dos pedregulhos e caiu ao fundo da escada. Dois soldados transportaram o aturdido nobre para o acampamento e a sua partida desmoralizou os atacantes. Já não gritavam. As flechas continuavam a voar e os homens a tentar escalar a muralha; contudo, os defensores sentiam ter repelido o sexto assalto e as bestas cuspiam inexoravelmente os seus projécteis. Foi nesse momento que Thomas viu o Melro na torre, sobre a porta. Apontou-lhe ao seio a seta de aço, ergueu levemente o arco e sacudiu a mão, de modo a que a flecha se desviasse. Bela demais para ser morta, disse para consigo, sabendo que era uma loucura pensar tal coisa. Ela disparou a besta e desapareceu. Meia dúzia de flechas bateram na torre onde ela estivera, mas Thomas calculou que todos os seis arqueiros a tinham deixado disparar antes deles.

- Valha-me Jesus bendito - exclamou Skeat. O ataque falhara e os homens-de-armas fugiam dos projécteis lançados pelas bestas. Havia ainda uma escada de pé, encostada à brecha, com um morto preso nos primeiros degraus.

- Recuem - gritava Skeat. - Recuem!

Os arqueiros fugiam, perseguidos pelos virotes, até conseguirem penetrar a sebe e deixarem-se cair no fosso. Os defensores soltavam gritos de triunfo e dois homens descobriram os respectivos traseiros na torre da porta, meneando-os diante dos derrotados ingleses.

- Bastardos! - exclamava Skeat. - Bastardos! - Não estava habituado a derrotas. - Tem de haver um modo qualquer de entrar - resmungava.

Thomas soltou a corda do arco e escondeu-a dentro do elmo.

- Eu dissete como se entrava - declarou a Skeat. - Dissete de madrugada.

Skeat olhou longamente para Thomas.

- Nós tentámos, rapaz.

- Cheguei às estacas, Will, juro que cheguei. E passei para o lado de lá.

- Então diz-me outra vez - pediu Skeat e Thomas assim fez. Acocorou-se no fosso, debaixo dos insultos dos defensores de La Roche-Derrien, explicou a Will Skeat como haveria de entrar na cidade e este escutou-o, pois o homem do Yorkshire tinha aprendido a confiar em Thomas de Hookton.

Havia já três anos que Thomas se encontrava na Bretanha e, embora esta região não pertencesse a França, o seu duque usurpador trazia uma constante sucessão de franceses prontos a morrer e Thomas descobrira que tinha um dom especial para matar. Não era apenas por ser bom arqueiro - o exército estava cheio de homens tão bons como ele e alguns ainda melhores - mas descobrira que antecipava as acções do inimigo. Observava os soldados, via para onde estavam a olhar, quase sempre adivinhava os seus movimentos e estava pronto para os receber com uma flecha. Era como um jogo, cujas regras só ele conhecia e os outros não.

Ajudou-o o fato de William Skeat confiar nele. Não se mostrara muito disposto a recrutar Thomas, quando se encontraram pela primeira vez na prisão de Dorchester, onde Skeat punha à prova duas dezenas de ladrões e assassinos para testar neles o manejo do arco. Precisava de recrutas e o rei de arqueiros, de modo que os homens que, de contrário teriam enfrentado uma sentença de prisão, eram perdoados, se quisessem servir no estrangeiro. Mais de metade dos soldados de Skeat tinha tomado essa decisão. Skeat pensara que Thomas nunca se adaptaria a tais patifes. Pegara-lhe na mão direita vira-lhe os calos nos dedos que o denunciavam como arqueiro, mas depois batera-lhe na palma macia.

- Que tens andado a fazer? - perguntou Skeat.

- O meu pai queria que eu fosse padre.

- Com que então padre! - dissera Skeat com desdém. - Bom, suponho que então saibas rezar por nós.

- Também sei matar por vós.

Por fim, Skeat aceitara que Thomas fizesse parte do bando, até porque o jovem tinha montada própria. A princípio, pensara que Thomas de Hookton não passava de mais um louco desvairado em busca de aventuras - apesar de ser um louco inteligente - porém, o jovem habituara-se alegremente à vida de arqueiro na Bretanha. O verdadeiro alvo da guerra civil era o saque e, dia após dia, os homens de Skeat entravam nos domínios de quem prestava preito e menagem aos apoiantes do duque Charles e queimavam as quintas, apropriavam-se das colheitas e levavam o gado. Um senhor, cujos camponeses não pudessem pagar as rendas, não poderia contratar soldados; então, os homens-de-armas de Skeat espalhavam-se como uma peste na terra do inimigo e Thomas adorava aquela vida. Era jovem e o seu dever era, não só combater o inimigo, mas também arruiná-lo. Incendiava as quintas, inquinava os poços, roubava as sementes, quebrava os arados, deitava fogo aos moinhos, tirava a casca às árvores dos pomares e vivia do saque feito por si. Os homens de Skeat eram os senhores da Bretanha, um flagelo do inferno, e os aldeãos, a Oriente do ducado, que falavam francês chamavam-lhes hellequin, que significava cavaleiros do demónio. De vez em quando, um bando inimigo procurava encurralá-los, e Thomas aprendera que o arqueiro inglês com o seu enorme arco era o rei dessas escaramuças. O inimigo odiava-os. Se capturavam um inglês, matavam-no. Um homem-de-armas poderia ser feito prisioneiro, por um senhor seria exigido um resgate, mas um arqueiro era sempre assassinado. Torturado primeiro, e depois assassinado.

Thomas prosperava naquela vida e Skeat apercebera-se de que o rapaz era suficientemente inteligente para saber que não deveria ter adormecido uma noite em que era a sua vez de montar guarda. Por essa infração, Skeat espancara-o.

- Estavas perdido de bêbado! - acusara-o e depois dera-lhe uma sova, usando os punhos como martelos de ferreiro. Partira-lhe o nariz, rachara-lhe uma costela e chamara-lhe bosta fedorenta de Satanás mas, ao fim e ao cabo, descobrira que Thomas continuava a sorrir e, seis meses mais tarde promoveu-o, o que significava que teria de comandar uma vintena de homens. Esses soldados eram quase todos mais velhos que Thomas, mas nenhum pareceu ofender-se com a sua promoção, pois sabiam que ele era diferente. A maioria dos arqueiros usava o cabelo cortado curto, mas o de Thomas era ostensivamente comprido, enrolado em cordas de arcos de modo a cair-lhe até à cintura, como numa enorme trança preta. Usava a cara rapada e vestia sempre de negro. Um tal aspecto poderia tê-lo tornado pouco popular, mas esforçava-se muito, tinha um humor vivo e era generoso. Mesmo assim, parecia estranho. Todos os arqueiros traziam consigo talismãs, talvez a medalha de um santo, de pouco valor, ou uma pata de lebre, mas Thomas trazia uma pata seca de cão pendurada ao pescoço, e afirmava tratar-se da mão de São Guinefort. Ninguém se atrevia a desdizê-lo, visto que era o homem mais erudito do bando de Skeat. Falava francês como um nobre, latim como um padre e os arqueiros de Skeat mostravam-se obstinadamente orgulhosos dele, devido a esses talentos. Actualmente, três anos depois de ter entrado para o bando de Skeat, Thomas era um dos chefes dos arqueiros. Até mesmo Skeat lhe pedia por vezes conselho; raramente o seguia, mas pedia-lho e Thomas tinha ainda a pata de cão, o nariz torto e um sorriso despudorado.

E agora tivera uma idéia para entrar em La Roche-Derrien.

Nessa tarde, ainda o cadáver do soldado com a cabeça aberta estava metido entre os degraus da escada abandonada, sir Simon Jekyll cavalgou em direcção à cidade e passeou a trote com a sua montada para trás e para diante, junto aos pequenos virotes de penas negras que marcavam o máximo alcance das armas dos defensores. O seu escudeiro, um jovem tolo de queixo caído e olhos espantados, observava-o à distância. Empunhava a lança do cavaleiro e se algum guerreiro na cidade aceitasse o desafio implícito da presença trocista do seu amo, ele entregaria a lança a sir Simon e os dois cavaleiros combateriam no pasto até um deles se render. E não seria sir Simon, pois era tão hábil como qualquer outro do exército do conde de Northampton.

E o mais pobre.

O seu corcel tinha dez anos, era duro de boca e de dorso demasiado curvo, a sela de arção alto, para se poder firmar, pertencera a seu pai, enquanto que o lorigão que usava, uma túnica de malha que o cobria do pescoço até aos joelhos fora do avô. A espada tinha uma centena de anos, era pesada e não estava afiada. A lança empenara com a humidade do Inverno, enquanto que o elmo, suspenso do arção, parecia uma velha panela de ferro com um forro de couro já gasto. O escudo, com o brasão mostrando uma manopla que empunhava um martelo de guerra, estava gasto e apagado. Os guantes de malha, tal como o resto da armadura, começavam a enferrujar e era por isso que o escudeiro tinha uma orelha vermelha e inchada e o rosto assustado. Porém, a verdadeira razão da ferrugem não era a falta de diligência da parte do rapaz para limpar a malha, mas sim o fato de sir Simon não se poder dar ao luxo de comprar vinagre e areia fina, usados na limpeza do aço. Era pobre. Pobre, amargurado e ambicioso.

E muito bom.

Ninguém o negava. Vencera o torneio de Tewkesbury e recebera uma bolsa com quarenta libras. Em Gloucester, a sua vitória fora recompensada com uma bela armadura. Em Chelmsford tinham sido quinze libras e uma bela sela e em Canterbury, matara um francês antes de lhe ser oferecida uma taça de ouro cheia de moedas; onde estavam todos esses troféus? Nas mãos dos banqueiros e mercadores, donos da hipoteca do domínio de Berkshire, que Simon herdara dois anos antes, embora, na verdade a herança não passasse de dívidas e no momento em que o pai fora enterrado, os prestamistas tinham-se atirado a ele, como cães a um veado ferido.

- Casa-te com uma herdeira - aconselhara-lhe a mãe e fizera desfilar uma dúzia de mulheres, para que o filho as examinasse, porém Simon estava decidido a escolher uma mulher tão bela, quanto ele era bem-parecido. E se o era. Sabia-o bem. Olhava-se no espelho da mãe e admirava o seu reflexo. Tinha o cabelo espesso e loiro, um rosto largo e a barba curta. Em Chester, onde tinha derrubado três cavaleiros no espaço de quatro minutos, os homens tinham-no confundido com o rei, quê costumava combater incógnito em torneios. Portanto, sir Simon não iria desperdiçar o seu belo ar real num saco cheio de rugas, só por causa do dinheiro. Desposaria uma mulher digna de si, embora tal ambição não pagasse as dívidas dos domínios. Assim, sir Simon, para se defender dos credores, procurara obter uma carta de protecção do rei Eduardo III. Essa carta escudava-o de todos os procedimentos legais, desde que servisse o soberano numa guerra no estrangeiro. Quando sir Simon saíra dos seus endividados domínios para atravessar o canal, levando consigo seis homens-de-armas, uma dúzia de arqueiros e um escudeiro de queixo caído, deixava os seus credores impotentes em Inglaterra. Levara ainda consigo a certeza de que em breve capturaria uma nobre francesa ou bretã, cujo resgate seria suficiente para pagar as suas dívidas; porém, até aí, a campanha de Inverno não rendera um único prisioneiro nobre e o saque era tão magro que o exército subsistia a meia ração. E quantos prisioneiros bem-nascidos esperaria ele fazer em La Roche-Derrien? A cidade era um buraco infecto. Mesmo assim, cavalgava para trás e para diante, junto às muralhas na esperança de que algum cavaleiro o desafiasse e saísse a porta sul que, até aí, já resistira a seis assaltos ingleses. Porém, os defensores escarneciam dele, chamando-lhe cobarde, pois que se mantinha fora do alcance das bestas. Por fim, os insultos ofenderam o orgulho de sir Simon e obrigaram-no a aproximar-se mais das muralhas, com os cascos do cavalo a tropeçar por vezes nos virotes caídos. Os homens disparavam contra ele, mas os projécteis não acertavam e era a vez de sir Simon fazer troça.

- Não passa de um tolo imbecil - afirmou Jake, observando-o, do acampamento inglês. Jake era um dos criminosos de William Skeat, um assassino salvo da forca, em Exeter. Era vesgo, porém tinha melhor pontaria que muitos outros. - Mas o que estará agora ele a fazer?

Sir Simon detivera o cavalo e voltara-se para a porta, de modo que quem o observasse julgava que talvez um francês o tivesse desafiado devido à provocação. Porém o que viram foi uma mulher armada com uma besta na ameia da porta, a chamar sir Simon, insistindo para que ele se aproximasse.

Apenas um louco reagiria a tal atrevimento, mas sir Simon obedeceu ao chamado. Tinha vinte cinco anos, amargurados e corajosos, e calculava que uma exibição de descuidada arrogância, desencorajaria a guarnição sitiada e daria alento aos desanimados ingleses; assim, picou o corcel, obrigando-o a entrar em terreno perigoso, onde os projécteis franceses tinham desanimado os ataques ingleses, mas nenhum besteiro disparava; via apenas uma figura solitária na torre da porta e, sir Simon, aproximando-se uns metros apercebeu-se de que se tratava do Melro.

Era a primeira vez que o cavaleiro via a mulher a quem todos os arqueiros davam esse nome e estava suficientemente próximo para se aperceber de que se tratava de uma verdadeira beldade. Ali estava, muito direita, esguia e alta, com uma capa a defendê-la do vento invernal, mas com o longo cabelo negro, solto como o de uma menina. Fez-lhe uma vénia trocista e sir Simon respondeu, inclinando-se desajeitadamente na sela alta, para depois a ver pegar na besta e pô-la ao ombro.

Quando estivermos dentro da cidade, pensou Simon, vou fazer-te pagar tudo isto. Vou deitar-te no chão, Melro e fico em cima de ti. Endireitou-se no cavalo e ficou imóvel, um cavaleiro solitário no campo francês, desafiando-a a apontar para ele e sabendo que ela não o faria. Quando falhasse, saudá-la-ia trocista e os franceses considerariam o gesto de mau agoiro.

Mas e se ela lhe acertasse?

Sir Simon sentiu-se tentado a erguer o desajeitado elmo do arção da sela, mas resistiu ao impulso. Desafiara o Melro e não se poderia mostrar nervoso diante de uma mulher, de modo que ficou à espera, enquanto a via erguer a besta. Os defensores da cidade observavam-na e, sem dúvida, rezavam. Ou talvez fizessem apostas.

Vá, cabra, murmurou em surdina. Estava frio, mas sentia as gotas de suor na testa.

O Melro fez uma pausa, afastou do rosto o cabelo negro, apoiou a besta no intervalo das ameias e apontou de novo. Simon manteve a cabeça erguida e o olhar firme. Era só uma mulher, disse para consigo. Provavelmente não acertava numa carroça a meia dúzia de passos. O cavalo estremeceu e ele estendeu a mão para lhe acariciar o pescoço.

- Já vamos, amigo - disse para o animal.

O Melro, observada de perto por uma dezena de defensores, fechou os olhos e disparou.

Sir Simon viu o virote como uma mancha negra no céu cinzento enquanto as pedras da mesma cor, na torre da igreja, apareciam por cima das muralhas de La Roche-Derrien.

Sabia que o virote não acertaria. Tinha a certeza absoluta. Era uma mulher, por amor de Deus! E foi por isso que nem se mexeu quando viu a mancha vir na sua direcção. Não podia acreditar. Estava à espera que o virote se desviasse para a esquerda ou para a direita ou que caísse com força no chão duro da geada, mas afinal veio-lhe dirigido ao peito. No último instante lembrou-se de erguer o pesado escudo e baixar a cabeça, mas sentiu uma enorme pancada no braço esquerdo, quando o projéctil o atingiu, empurrando-o contra a patilha do arção. O virote bateu-lhe com tanta força no escudo que rachou a madeira de salgueiro e a ponta abriu-lhe um corte profundo no antebraço, através da manga de malha. Os franceses aplaudiam e sir Simon, sabendo que outros besteiros poderiam agora tentar terminar o que o Melro começara, carregou com o joelho no flanco do cavalo e o animal voltou-se, obediente, para logo reagir às esporas.

- Estou vivo - exclamou em voz bem alta, como que para silenciar o júbilo dos franceses. Cabra maldita! Pensou. Haveria de as pagar, de as pagar até mais não. Refreou o cavalo, não querendo que pensassem que fugia.

Uma hora mais tarde, depois do escudeiro lhe ter ligado o corte do braço, sir Simon convenceu-se de que saíra vitorioso. Atrevera-se e sobrevivera. Fora uma demonstração de valentia e saíra com vida, por isso considerava-se um herói e esperava ser recebido como tal, enquanto caminhava para a tenda que abrigava o conde de Northampton, comandante do exército. Esta era feita de duas velas de linho amarelecido, remendado e puído, depois de anos de serviço no mar. Formavam um pobre abrigo, mas isso era típico de William Bohun, conde de Northumberland, que, embora primo do rei e um dos ricos-homens de Inglaterra, desprezava a ostentação.

De fato, o conde parecia tão remendado e gasto quanto as velas que formavam a sua tenda. Era um homem baixo e forte, com uma cara que, segundo os homens diziam, parecia o traseiro de um boi, mas que ao mesmo tempo espelhava a sua alma, rude, corajosa e directa. O exército gostava de William Bohun, conde de Northampton, pois era duro como os soldados. Agora, no momento em que sir Simon baixava a cabeça para entrar na tenda, o cabelo castanho e encaracolado do conde estava em parte coberto por uma ligadura no local do couro cabeludo onde o projéctil lançado da muralha de La Roche-Derrien lhe arrancara o elmo e lhe metera uma aresta de aço cortante. Saudou o cavaleiro, mal-humorado.

- Estais cansado da vida?

- A estúpida cabra fechou os olhos ao disparar! - disse sir Simon ignorando o tom do conde.

- Mesmo assim, tem boa pontaria - respondeu este, furioso. - Aqueles bastardos ainda vão ficar mais animados. E só Deus sabe que não precisavam de incitamentos.

- Estou vivo, senhor - disse, Simon alegremente. - Ela queria matar-me. Falhou. O urso está vivo e os cães ficam com fome.

Esperava que os companheiros do conde o felicitassem, porém estes evitavam mesmo olhá-lo, mantendo-se num silêncio mal-humorado, que ele interpretou como sendo inveja.

Sir Simon era um perfeito imbecil, pensou o conde e estremeceu. Não se importaria tanto com o frio, se o exército estivesse a gozar do êxito, mas havia já dois meses que os ingleses e os seus aliados bretões passavam do desaire à farsa e os seis assaltos a La Roche-Derrien tinham-no levado aos confins da tristeza. Assim, o conde convocava agora um conselho de guerra para sugerir um assalto final, que deveria realizar-se nessa mesma noite. Quase todos os ataques tinham sido levados a cabo de manhã, porém talvez uma escalada de surpresa na moribunda luz do Inverno apanhasse de surpresa os defensores. Só que as pequenas vantagens que essa surpresa lhes pudesse trazer, tinham sido estragadas, pois a loucura de sir Simon trouxera às gentes da cidade nova confiança e não era esse o sentimento dos chefes guerreiros do conde, agora reunidos debaixo do pano de vela amarelado.

Quatro desses chefes eram cavaleiros que, tal como sir Simon, conduziam os seus próprios homens para a guerra, mas os outros eram soldados mercenários que punham os seus homens ao serviço do conde. Três eram bretões, usavam a insígnia de arminho branco do duque da Bretanha e conduziam homens leais ao duque de Montfort, enquanto os outros eram capitães ingleses, todos eles do povo, endurecidos na guerra. William Skeat era um deles e, a seguir, estava Richard Totesham, que começara a carreira como homem-de-armas e agora conduzia cento e quarenta cavaleiros e noventa arqueiros ao serviço do conde. Nenhum deles combatera alguma vez em torneio, nem nunca seriam convidados a fazê-lo, porém eram ambos mais ricos que sir Simon, o que era exasperante. Os meus cães de guerra, era como o conde de Northampton chamava aos capitães independentes e apreciava-os muito, mas também o conde tinha um curioso gosto pela companhia de gente vulgar. William Bohun podia ser primo do rei de Inglaterra, mas bebia e comia de bom grado em companhia de homens como Skeat e Totesham, falava-lhes em inglês, acompanhava-os à caça e confiava neles. Sir Simon sentia-se excluído de tal amizade. Se algum homem naquele exército tinha o dever de ser íntimo do conde era ele, notável campeão de torneios, porém Northampton preferia chafurdar na lama com homens como Skeat.

- E a chuva? - perguntou o conde.

- Está outra vez a cair - respondeu sir Simon, erguendo a cabeça para o tecto da tenda, onde as gotas batiam incertas.

- O tempo vai abrir - afirmou Skeat friamente. Raramente se dirigia ao conde por «meu senhor», tratando-o como se fosse seu igual. E, para grande espanto de sir Simon, o conde parecia gostar.

- E é chuva fraca - disse o conde, espreitando pela abertura da tenda e deixando entrar um remoinho de ar frio e húmido. - As cordas dos arcos vão desprender-se.

- E também as das bestas - contestou Richard Totesham. - Patifes - acrescentou.

O que tornava o desaire inglês tão humilhante era que os defensores de La Roche-Derrien não eram soldados, mas sim os habitantes da cidade: pescadores, construtores de barcos, carpinteiros, pedreiros e até mesmo o Melro, uma mulher!

- E a chuva pode parar - prosseguiu Totesham. - Mas o terreno vai estar escorregadio e é um mau apoio junto às muralhas.

- Não deveríeis ir esta noite - aconselhou Will Skeat. - Deixai os meus rapazes irem pelo rio, amanhã de manhã.

O conde esfregou a ferida da cabeça. Havia uma semana que assaltava a muralha sul de La Roche-Derrien e continuava a acreditar que os homens podiam tomá-la, porém sentia o pessimismo dos seus cães de guerra. Mais um revés, com vinte ou trinta mortos, deixaria o seu exército desanimado, na perspectiva de voltar a Finisterra sem nada terem conseguido.

- Diz-me lá como - pediu.

Skeat limpou o nariz à manga de couro.

- Na baixa-mar há um caminho para contornar a muralha norte - respondeu. - Um dos meus rapazes esteve lá ontem à noite.

- Experimentamos, há três dias - objetou um dos cavaleiros.

- Haveis tentado a jusante - respondeu Skeat. - Quero ir a montante.

- Esse lado tem estacas, tal como o outro - disse o conde.

- Soltas - respondeu Skeat. Um dos capitães bretões traduzia a conversa para os companheiros. - O meu rapaz puxou uma, e ela saiu - continuou Skeat. - Calcula que mais meia dúzia delas estejam capazes de ser retiradas ou então vão partir-se. Diz que são velhos troncos de carvalho e não de olmo, e que já estão podres por dentro.

- Que profundidade tem a lama? - perguntou o conde.

- Até aos joelhos.

A muralha de La Roche-Derrien abrangia os lados poente, sul e nascente da cidade, enquanto o lado norte era defendido pelo rio Jaudy. No local em que a muralha semicircular chegava ao rio, as gentes da cidade tinham espetado estacas enormes na lama, de modo a impedir o acesso na maré vazia. Skeat sugeria agora haver um caminho através dessas estacas podres, mas quando os homens do conde tinham tentado o mesmo no lado nascente da cidade, haviam ficado atolados e sido corridos de lá pelos habitantes da cidade a tiros de besta. A matança fora pior que nos desaires diante da porta sul.

- Mas há ainda uma muralha na margem do rio - declarou o conde.

- Sim - concordou Skeat. - Mas esses bastardos imbecis abriram-na em determinados sítios. Construíram ancoradouros e há um mesmo junto às estacas soltas.

- Então os teus homens terão de retirar as estacas e subir aos ancoradouros, tudo nas barbas dos homens que estão nas muralhas? - perguntou o conde, com ar céptico.

- Podem fazê-lo - declarou Skeat com firmeza.

O conde ainda pensava que a melhor probabilidade de êxito seria colocar os arqueiros a fechar a porta sul e rezar para que as flechas mantivessem os defensores atemorizados, enquanto os seus homens-de-armas assaltavam a brecha. Mesmo assim, admitia, era um plano que já antes falhara, nesse dia e no anterior. E sabia também que apenas tinha mais um ou dois dias. Possuía menos de trezentos homens e um terço deles estava doente; se não lhes conseguisse arranjar abrigo, teria de marchar de volta para Ocidente, com o rabo entre as pernas. Precisava de uma cidade, de uma cidade qualquer, mesmo que fosse La Roche-Derrien.

Will Skeat leu as preocupações no rosto largo do conde.

- Ontem à noite, o meu rapaz esteve a quinze passos do ancoradouro - garantiu. - Podia ter entrado na cidade e aberto a porta.

- Então porque não o fez? - sir Simon não conseguiu resistir a perguntar - Pelas Chagas de Cristo! - prosseguiu. - Eu teria lá entrado!

- Não sois arqueiro - disse Skeat com azedume, fazendo em seguida o sinal da Cruz. Em Guingamp, um dos seus homens fora capturado pelos defensores, que o tinham despido e cortado em bocados sobre o parapeito, para que os sitiantes pudessem assistir à sua longa agonia. Cortaram-lhe em primeiro lugar os dois dedos com que soltava o arco, depois a virilidade e o homem berrara como um porco a ser capado, esvaindo-se em sangue sobre as muralhas.

O conde acenou a um criado que lhes servisse mais vinho aromatizado.

- Conduzes este ataque, Will? - pediu.

- Eu não - respondeu Skeat. - Já estou velho para andar a passear por entre a lama. Vou deixar que o rapaz que andou ontem à noite por entre as estacas, o conduza. É bom rapaz, lá isso é. Um patifório esperto, mas estranho. Ia ser padre, só que me encontrou e tomou juízo.

O conde sentia-se claramente tentado pela idéia. Brincou com o punho da espada e por fim acenou afirmativamente.

- Creio que deveríamos conhecer esse teu patifório esperto. Andará aqui por perto?

- Deixei-o lá fora - disse Skeat e depois voltou-se no banco.

- Tom, meu selvagem! Vem cá!

Thomas inclinou-se, para entrar na tenda do conde, e os capitães que lá se reuniam viram um jovem todo vestido de negro, excepto a cota de malha e a cruz vermelha cosida na túnica. Todas as tropas inglesas usavam a cruz de São Jorge, de modo a que, numa refrega, pudessem saber quem era amigo ou inimigo. O jovem fez uma reverência ao conde, que se apercebeu de que já reparara naquele arqueiro, o que não era de espantar, já que Thomas era um homem de aspecto notável. Usava o cabelo negro recolhido num rabo de cavalo e atado com corda de arco, tinha o nariz torto, comprido e ossudo, o queixo barbeado e olhos atentos e inteligentes, embora o mais invulgar nele fosse o fato de estar limpo. Para além disso, trazia ao ombro um arco, um dos maiores que o conde já vira, não só enorme, mas também pintado de negro, tendo na curvatura o que parecia ser um brasão gravado. O conde pensou que se tratava de vaidade, vaidade e orgulho, e apreciava as duas coisas.

- Para um homem que ontem à noite esteve metido até aos joelhos na lama do rio - disse o conde com um sorriso - estás extraordinariamente limpo.

- Lavei-me, meu senhor.

- Vais-te constipar! - avisou-o o conde. - Como te chamas?

- Thomas de Hookton, meu senhor.

- Diz-me então o que encontraste ontem à noite, Thomas de Hookton.

Thomas contou a mesma história de Will Skeat. Como, depois do cair da noite e quando a maré vazara, se metera na lama do Jaudy. Descobrira que o conjunto de estacas estava instável, podre e solto, e erguera uma, esgueirara-se pelo espaço e avançara uns passos até ao ancoradouro mais próximo.

- Estava tão próximo, meu senhor, que ouvi uma mulher a cantar - disse. A mulher entoara uma canção que a sua própria mãe lhe cantara quando era pequeno, e ficara perturbado pela coincidência.

O conde franziu as sobrancelhas, quando Thomas terminou, não por reprovar qualquer coisa que o arqueiro tivesse dito, mas porque sentia latejar a ferida do couro cabeludo, que o deixara inconsciente durante uma hora.

- Que estavas a fazer ontem à noite, no rio? - perguntou, já que precisava de mais tempo para pensar.

Thomas nada disse.

- A mulher de outro homem - respondeu finalmente Skeat, em lugar de Thomas. - Era o que ele andava a fazer, meu senhor. Atrás da mulher de outro homem.

Os homens reunidos soltaram uma gargalhada, todos, excepto sir Simon Jekyll, que olhava com desagrado para o jovem corado. O patife não passava de um arqueiro, porém usava uma cota de malha muito superior à que sir Simon se podia dar ao luxo de ter! E tinha uma confiança que roçava o despudor. Sir Simon estremeceu. Havia injustiças na vida, que não conseguia entender. Os arqueiros dos condados capturavam cavalos, armas e armaduras, enquanto ele, um campeão de torneios, nunca conseguira nada melhor que um maldito par de botas. Sentia uma necessidade urgente de baixar a proa àquele arqueiro tão calmo.

- Uma sentinela atenta, meu senhor, e este jovem será morto - disse sir Simon ao conde em francês normando, de modo que apenas o pequeno grupo de homens bem-nascidos o pudesse entender. - O nosso ataque ficará atolado na lama do rio.

Thomas lançou a sir Simon um olhar que seria insolente, na sua falta de expressão.

- Devemos atacar de noite - respondeu em francês fluente, voltando-se logo a seguir para o conde. - Meu senhor, a baixa-mar terá lugar antes do nascer do Sol.

O conde olhou-o, surpreendido.

- Como aprendeste francês?

- Com o meu pai, senhor.

- Será que o conhecemos?

- Duvido, senhor.

O conde não insistiu no assunto. Mordeu o lábio e afagou o punho da espada, um gesto habitual, quando reflectia.

- Está muito bem que entres na cidade - resmungou Richard Totesham para Thomas. Totesham estava sentado num banco de mungir e chefiava o maior dos bandos independentes, portanto tinha mais autoridade do que os outros capitães. - Mas que farás, uma vez lá dentro?

Thomas acenou afirmativamente, como se esperasse a pergunta.

- Duvido que possamos chegar à porta - afirmou. - Mas se conseguir levar duas dezenas de arqueiros para junto da muralha do rio, poderei então protegê-la, enquanto colocam as escadas.

- E eu tenho duas escadas - acrescentou Skeat. - Vão ser suficientes. O conde continuava a afagar o punho da espada.

- Da outra vez, quando tentamos atacar pelo lado do rio, ficamos presos na lama - declarou. - Será igualmente funda, no local onde pretendes entrar.

- Pranchas, meu senhor - disse Thomas. - Encontrei algumas numa quinta. As pranchas eram partes de sebes feitas de ramos de salgueiro entrelaçados, usadas para construir rapidamente um cercado para carneiros, ou estender na lama, para servirem de passadeira aos homens.

- Bem vos disse que era inteligente - afirmou Will Skeat com orgulho. - Andou em Oxford, não é verdade Tom?

- Quando era jovem demais para saber o que queria - respondeu Thomas, secamente.

O conde riu-se. Gostava daquele jovem e via que Skeat tinha fé nele.

- Amanhã de manhã, Thomas? - perguntou.

- É melhor do que ao pôr do Sol. A essa hora, ainda estão bem acordados.

Thomas lançou a sir Simon um olhar inexpressivo, dando a entender que a exibição de estúpida valentia da parte do cavaleiro teria espicaçado o entusiasmo dos defensores.

- Então, seja, amanhã de manhã - afirmou o conde. Voltou-se para Totesham. - Mas mantém hoje os teus rapazes junto à porta sul. Quero que pensem que vamos de novo tentar entrar por lá - olhou de novo para Thomas. - Que insígnia é essa, que tens no escudo, rapaz?

- Uma coisa que encontrei, nada mais, senhor - mentiu Thomas, passando o arco ao conde, que estendera a mão. Na verdade, cortara a insígnia de prata do cálice amolgado que encontrara sob as vestes do pai e pregara o metal à parte exterior do arco, onde a sua mão esquerda já quase tinha alisado a prata.

O conde espreitou o desenho.

- Um yale?

- Creio que é esse o nome do animal, meu senhor - declarou Thomas, fingindo ignorância.

- A insígnia não pertence a ninguém que eu conheça - afirmou o conde, experimentando a seguir o arco e erguendo as sobrancelhas, surpreendido com a sua força. Devolveu a arma negra a Thomas e deixou-o ir.

- Que Deus te proteja, amanhã de manhã, Thomas de Hookton.

- Meu senhor - proferiu Thomas, fazendo uma reverência.

- Acompanho-o, com a vossa permissão - disse Skeat e o conde concordou com um aceno, deixando os dois homens partir.

- Se conseguirmos entrar, não deixem os vossos homens à solta - ordenou aos restantes capitães. - Apertem-lhes a rédea. Quero manter esta cidade e não desejo o ódio dos seus habitantes. Que matem, quando for necessário, mas não quero uma orgia de sangue - olhou para os rostos incrédulos. - Vou encarregar a guarnição a um de vós, de modo que facilitem as coisas. Rédea curta.

Os capitães resmungaram, sabendo perfeitamente que seria difícil evitar que os homens saqueassem toda a cidade, mas antes que algum deles pudesse responder aos esperançosos desejos do conde, sir Simon ergueu-se.

- Meu senhor? Um pedido. O conde encolheu os ombros.

- Dizei.

- Permiti que eu e os meus homens conduzamos o grupo da escada. O conde pareceu surpreendido com o pedido.

- Pensais que Skeat não consegue arranjar-se sozinho?

- Decerto que sim, meu senhor - declarou humildemente sir Simon. - Mas mesmo assim, solicito-vos essa honra.

Será melhor que morra sir Simon Jekyll do que Will Skeat, pensou o conde.

Acenou afirmativamente.

- Claro, claro.

Os capitães nada disseram. Que honra haveria em ser o primeiro a entrar numa muralha que outro homem tinha tomado? Não, o patife não queria honra, queria estar bem colocado, para ficar com o saque mais rico da cidade; todavia, nenhum deles deu voz a essa idéia. Eram capitães e sir Simon era um cavaleiro, mesmo que arruinado.

O exército do conde ameaçou um ataque durante o resto desse curto dia de Inverno, mas nunca o levou a cabo, e os cidadãos de La Roche-Derrien atreveram-se a pensar que tinha terminado a sua mais difícil provação, porém fizeram os seus preparativos, não fossem os ingleses atacar de novo no dia seguinte. Contaram os projécteis das bestas, empilharam mais pedras nos parapeitos e alimentaram as fogueiras, onde ferviam panelas de água para despejar sobre os ingleses. Aqueçam esses miseráveis, tinham dito os padres da cidade, e a população gostara da graça. Sabiam que iam vencer e calculavam que a provação em breve terminasse, pois os ingleses decerto se debatiam com falta de alimento. Tudo o que La Roche-Derrien tinha a fazer era agüentar e depois receberia o louvor e as graças do duque Charles.

A chuva miudinha parou ao cair da noite. Os habitantes da cidade foram deitar-se, deixando, porém, as armas a postos. As sentinelas acenderam fogueiras atrás das muralhas e olharam para a escuridão.

Era de noite, era Inverno, estava frio e os sitiantes tinham a sua última oportunidade.



O Melro fora baptizada com o nome de Jeanette Marie Halevy e quando fez quinze anos, os pais levaram-na a Guingamp, ao torneio anual das maçãs. O pai não era aristocrata, de modo que a família não se podia sentar no cercado por baixo da torre de São Lourenço, mas encontrou um lugar lá próximo. Louis Halevy assegurou-se de que a filha ficasse à vista, colocando as cadeiras sobre a carroça da quinta, que os trouxera de La Roche- -Derrien. O pai de Jeanette era um próspero fabricante de barcos e mercador de vinhos, embora a fortuna no negócio não se reflectisse na sua vida. Morrera-lhe um filho de um corte infectado num dedo e o segundo afogara-se numa viagem à Corunha. Jeanette era agora a sua única herdeira.

Havia algum calculismo na jornada a Guincamp. A nobreza da Bretanha, pelo menos aquela que apoiava uma aliança com França, reunia-se no torneio, onde, durante quatro dias, diante de uma multidão que viera tanto para a feira como para o combate, mostravam os seus talentos com a espada e a lança.

Jeanette achava tudo aquilo aborrecido, pois os preâmbulos dos combates eram longos e muitas vezes não se ouviam. Os cavaleiros desfilavam tempos sem fim, acenando com as suas plumas extravagantes, mas algum tempo depois, haveria um breve troar de cascos, um choque de metal, uma ovação e um cavaleiro caía na relva. Era hábito cada vencedor espetar uma maçã na lança e apresentá-la à mulher que mais o atraía, na multidão; eis a razão pela qual o pai levara a carroça da quinta para Guingamp. Quatro dias depois, Jeanette tinha dezoito maçãs e a inimizade de quase vinte jovens de melhor estirpe.

Os pais regressaram com ela a La Roche-Derrien e aguardaram. Tinham exposto a mercadoria e restava agora aos interessados encontrarem o caminho para a sumptuosa casa junto ao rio Jaudy. Olhando para a frontaria a casa parecia pequena, mas passando o limiar o visitante encontrava-se num enorme pátio que dava para o ancoradouro de pedra onde os pequenos barcos de monsieur Halevy eram amarrados na praia-mar. O pátio tinha um muro comum com a igreja de São Renano e, como monsieur Halevy oferecera a torre à igreja, permitiram-lhe abrir um arco nesse muro, de modo a que a família não precisasse sair para a rua quando ia à missa. A casa revelaria a qualquer pretendente tratar-se de uma gente abastada e a presença do padre da paróquia à hora da ceia, daria provas de que também era devota. Jeanette não serviria de divertimento a nenhum aristocrata, mas sim para ser sua esposa.

Uma dezena de homens condescenderam em visitar a casa, mas foi Henri Chenier, conde de Armórica, que obteve a maçã. Era um óptimo pretendente, pois tratava-se de um sobrinho de Charles de Bois, por sua vez, sobrinho do rei Filipe de França, e era Charles que os Franceses reconheciam como duque e governante da Bretanha: O duque permitiu que Henri Chenier lhe apresentasse a noiva, mas logo a seguir aconselhou-o a ver-se livre dela. A jovem era filha de um mercador, pouco mais que uma camponesa, embora até mesmo o duque tivesse que admitir que era uma verdadeira beldade. Tinha o cabelo negro e brilhante, o rosto sem sinais de bexigas e os dentes intactos. Era tão graciosa, que um frade dominicano, ao ver Jeanette na corte do duque, juntara as mãos e exclamara que ela era a imagem viva da Madonna. O duque concordava que era muito bela. E então? Havia muitas mulheres bonitas. Qualquer taberna em Guingamp, disse, podia apresentar uma prostituta de duas libras que faria com que a maioria das esposas parecessem ouriços. Uma esposa não tinha de ser bela, mas sim rica.

- Faz da jovem tua amante - aconselhara ao sobrinho, ordenando-lhe praticamente que se casasse com uma herdeira da Picardia. Porém, esta era uma mulher desmazelada e bexigosa e o conde de Armórica estava tão rendido à beleza de Jeanette, que desafiou as ordens do tio.

Casou com a filha do mercador na capela do seu castelo de Plabennec, em Finisterra, no fim do mundo. O duque calculou que o sobrinho tivesse escutado trovadores a mais, mas o conde e a sua jovem esposa eram felizes e, um ano depois do casamento, quando Jeanette tinha dezasseis anos, nasceu-lhes um filho. Chamaram-lhe Charles, em honra do duque, mas se este se sentiu honrado, nada disse. Recusava-se voltar a receber Jeanette e tratava o sobrinho com frieza.

Mais tarde, nesse mesmo ano, os ingleses vieram em força para apoiar Jean de Monfort, que reconheciam como duque da Bretanha, e o Rei de França enviou reforços ao seu sobrinho Charles, considerando ser ele o verdadeiro duque; assim começou de fato a guerra civil. O conde de Armórica insistiu para que a mulher e o bebé voltassem para casa do sogro, em La Roche-Derrien, pois o castelo de Plabennec era pequeno, estava em más condições e demasiado próximo das forças invasoras.

Nesse Verão o castelo caiu nas mãos dos ingleses, tal como o marido de Jeanette receara, e no ano seguinte, o Rei de Inglaterra passou a temporada de campanha na Bretanha, onde o seu exército repeliu as forças do duque Charles. Não se realizou qualquer batalha importante, mas sim uma série de escaramuças e numa delas, um combate desigual, travado entre as sebes de um vale profundo, o marido de Jeanette foi ferido. Erguera a viseira do elmo para soltar um grito de encorajamento aos seus homens e recebera uma flecha na boca. Os criados trouxeram o conde para a casa junto ao rio Jaudy, onde levou cinco dias a morrer; cinco dias de dor constante, durante os quais fora incapaz de tomar alimento e quase de respirar, uma vez que a ferida inflamou e o sangue se lhe coagulou no esófago. Tinha vinte e oito anos, fora campeão de torneios e, no fim, chorava como uma criança. Morreu sufocado e Jeanette gritou de raivosa frustração e desgosto.

Logo começou para a jovem uma época de infelicidade. Era viúva, La veuve Chenier, e não tinham ainda passado seis meses após a morte do marido, ficou órfã, pois ambos os pais morreram de desinteria. Tinha apenas dezoito anos e o filho, o conde de Armórica, dois, mas Jeanette herdara a riqueza do pai e estava resolvida a utilizá-la para se vingar dos odiosos ingleses, que lhe tinham morto o marido. Assim, começou a equipar dois barcos capazes de atacar a frota inglesa.

Monsieur Belas, que fora o advogado do pai, aconselhara-a a não gastar dinheiro nesses navios. A fortuna de Jeanette não duraria para sempre, disse-lhe, e nada absorvia tanto dinheiro como a equipagem de navios de guerra, que raramente e, apenas por sorte, davam lucro. Seria melhor, aconselhou, utilizá-los no comércio.

- Os mercadores de Lannion estão a fazer bons lucros com o vinho espanhol - sugeriu. Espirrou, pois era Inverno e estava constipado. - Muito bons lucros - disse, com ar sério. Falava bretão, embora tanto ele como Jeanette soubessem, se necessário, exprimir-se em francês.

- Não quero vinho espanhol - ripostou friamente Jeanette. - Quero almas inglesas.

- Essas não dão lucros, senhora - disse Belas. Achava estranho chamar senhora a Jeanette. Conhecia-a de pequena e, para ele, fora sempre a pequena Jeanette. Porém casara e era agora uma viúva aristocrata, e ainda por cima, com mau génio. - Não se podem vender almas inglesas - declarou Belas, docemente.

- Excepto ao diabo - afirmou Jeanette persignando-se. - Mas não preciso de vinho espanhol, Belas. Temos as rendas.

- As rendas! - exclamou Belas, com ar trocista. Era um homem esperto, alto e magro, de cabelo ralo. Durante muito tempo, servira fielmente o pai de Jeanette e ofendera-o o fato do mercador nada lhe ter deixado em testamento. Fora tudo para a filha, excepto uma pequena quantia a ser entregue aos monges de Pontrieux, em troca de missas rezadas por sua alma. Belas escondera o seu ressentimento.

- Não nos chega nada de Plabennec - disse a Jeanette. - Os ingleses estão lá, como quereis que vos paguem as rendas das quintas de vosso pai? Os ingleses em breve se apoderarão delas.

Um exército inglês ocupara Tréguier, que não tinha muralha e ficava a norte, apenas a uma hora de caminho. Tinham deitado abaixo a torre da catedral, pois uns arqueiros tinham disparado contra eles, lá do alto. Belas esperava que os ingleses se retirassem em breve, o Inverno avançava e deveriam ter poucos mantimentos, mas temia que, antes de partirem, pilhassem todo o campo em redor de La Roche-Derrien. Se assim fosse, as quintas de Jeanette perderiam todo o valor.

- Que renda esperais receber de uma quinta incendiada? - perguntou-lhe.

- Não me importo - respondeu ela bruscamente. - Se for preciso, vendo tudo, tudo! - Excepto a armadura e as armas do marido, que eram preciosas e, um dia, iriam para o filho.

Belas suspirou à vista de tal imprudência, depois enrolou-se na capa negra e inclinou-se para o lume baixo que ardia na lareira. Um vento frio chegava do mar, fazendo o fumo sair da chaminé para dentro de casa.

- Permiti que vos ofereça o meu conselho, senhora. Primeiro, o negócio - Belas fez uma pausa para limpar o nariz na longa manga negra. - É difícil, mas posso encontrar um homem que o administre tal como o vosso pai e conseguirei fazer um contrato que garanta o pagamento de uma boa percentagem dos lucros. Em segundo lugar, senhora, devíeis pensar em voltar a casar - fez uma pausa, como se esperasse um protesto, mas Jeanette nada disse. Belas suspirou. Era tão bela! Havia mais de uma dúzia de homens na cidade que desejavam desposá-la, mas o ter sido mulher de um aristocrata dera-lhe volta à cabeça e não se contentaria com alguém sem título. - Senhora - prosseguiu cautelosamente o advogado. - Sois, neste momento, uma viúva detentora de uma considerável fortuna, mas já vi outras assim derreterem-se como a neve em Abril. Encontrai um homem que possa cuidar de vós, dos vossos bens e de vosso filho. Jeanette voltou-se e fitou-o.

- Desposei o melhor homem da Cristandade - afirmou. - Onde pensais que posso encontrar outro igual a ele?

O advogado pensou que, infelizmente, homens como o conde de Armórica se encontravam por toda a parte, pois que mais seriam senão imbecis de armadura, embrutecidos, que acreditavam que a guerra era um desporto? Jeanette, pensava ele, deveria casar com um mercador prudente, talvez viúvo, com fortuna. Suspeitava, porém, que o conselho seria desperdiçado.

- Lembrai-vos do velho ditado, senhora - disse, com astúcia. - Quando um gato guarda o rebanho, os lobos fazem um festim.

Jeanette estremeceu de raiva ao ouvir tais palavras.

- Não estais em vós, monsieur Belas - falava friamente e logo o mandou embora.

No dia seguinte, os ingleses chegaram a La Roche-Derrien, Jeanette retirou a besta do marido do sítio onde escondera as suas riquezas e juntou-se aos defensores, nas muralhas. Maldito Belas mais os seus conselhos! Sabia combater como um homem e o duque Charles, que a desprezara, aprenderia a admirá-la, a apoiá-la e saberia devolver a seu filho as propriedades do seu defunto marido.

Assim, Jeanette transformara-se no Melro, os ingleses morriam diante das suas muralhas e o conselho de Belas fora esquecido. Calculava que depois dos defensores da cidade terem maltratado tanto os ingleses, estes levantariam o cerco. Tudo acabaria em bem e, com esta certeza, o Melro conseguiu dormir, pela primeira vez naquela semana.



Thomas acocorou-se junto ao rio. Atravessara um renque de amieiros para chegar à margem, onde agora descalçava as botas e despia as calças. O melhor é seguir de pernas nuas, para que as botas não fiquem presas na lama do rio. Ia sofrer com o frio, com o frio de gelo, mas não se recordava de se sentir tão feliz. Gostava daquela vida e as suas recordações de Hookton, de Oxford e do pai quase se tinham desvanecido.

- Descalcem as botas - ordenou aos vinte arqueiros que o acompanhavam. - Pendurem as aljavas ao pescoço.

- Porquê? - perguntou alguém do escuro.

- Para se enforcarem com elas - resmungou Thomas.

- Para que as flechas não se molhem - explicou outro homem mais prestável.

Thomas prendeu a sua aljava ao pescoço. Os arqueiros não usavam bolsas iguais às dos caçadores, pois estas eram abertas em cima e as flechas podiam cair, quando corriam, tropeçavam ou saltavam as sebes. As flechas em bolsas abertas ficavam húmidas, quando chovia, e as penas molhadas faziam-nas voar tortas, de modo que os verdadeiros arqueiros usavam bolsas impermeáveis, feitas de linho encerado e atadas com cordões. Eram reforçadas com armações de cana, que esticavam o linho, para que as penas não ficassem esmagadas.

Will Skeat caminhava vagarosamente pela margem onde os homens dispunham as pranchas. Tremia de frio, devido ao vento que vinha da água. O céu, a Oriente, mostrava-se ainda escuro, mas alguma luz chegava das fogueiras que ardiam dentro de La Roche-Derrien.

- Estão muito sossegados - disse Skeat, apontando para a cidade.

- Reza para que estejam a dormir - sugeriu Thomas.

- E nas suas camas. Já não sei como é uma cama - e depois afastou-se para o lado para deixar outro homem passar pela margem do rio. Thomas ficou surpreendido ao ver que se tratava de sir Simon Jekyll, que tanto desdém lhe mostrara na tenda do conde.

- Sir Simon quer dar-te uma palavrinha - disse Will Skeat, sem se incomodar em disfarçar o seu desprezo.

Sir Simon franziu o nariz ao fedor que se erguia da lama do rio. Calculava que grande parte fosse proveniente dos esgotos da cidade e sentia-se satisfeito por não ter de andar por ali de pernas nuas.

- Tens confiança para passar sobre as pranchas? - perguntou a Thomas.

- De outro modo não as atravessaria - respondeu este, sem se preocupar em mostrar algum respeito.

O tom de voz de Thomas irritou sir Simon, mas este controlou o génio.

- O conde - disse com ar distante - deu-me a honra de me deixar conduzir o ataque às muralhas - deteve-se abruptamente e Thomas aguardou, à espera de mais, porém, sir Simon apenas o olhou com uma expressão irritada.

- Então, Thomas vai tomar as muralhas para que possais encostar as escadas em segurança? - perguntou Skeat, por fim.

- O que eu não quero é que os teus homens entrem na cidade à frente dos meus - disse sir Simon, ignorando Skeat e dirigindo-se a Thomas. - Quando vemos homens armados, a tendência é matá-los, compreendes?

Thomas quase cuspiu de desprezo. Os seus homens estavam armados com arcos enormes e nenhum inimigo possuía armas iguais às dos ingleses, de modo que poucas probabilidades haveria de serem confundidos com os defensores da cidade; porém, conteve-se e apenas acenou com a cabeça.

- Tu e os teus arqueiros podem juntar-se a nós no ataque - continuou sir Simon. - Mas ficarão sob as minhas ordens.

Thomas fez novo aceno e sir Simon, irritado pela implícita insolência deu meia volta e afastou-se.

- Bastardo dos infernos! - exclamou Thomas.

- Só quer enfiar o nariz na gamela à frente de todos os outros - declafrou Skeat.

- Vais deixar que o patife utilize as nossas escadas? - perguntou Thomas.

- Se ele quer ser o primeiro a subir, deixa-o. As escadas são de madeira verde, Tom, se se quebrarem, prefiro que seja ele a cair do que eu. Além do mais, creio que será melhor seguirmos-te pelo rio, mas não vou dizer nada a sir Simon - Skeat sorriu e depois praguejou, ao ouvir um estrondo vindo da escuridão a sul.

- Malditas ratazanas brancas - disse e desapareceu por entre as sombras.

As ratazanas brancas eram os bretões leais ao duque John, os homens que usavam a insígnia do arminho branco. Cerca de sessenta arqueiros tinham sido acrescentados aos soldados de Skeat e a sua função era atirar projécteis contra as muralhas, enquanto os outros encostavam as escadas aos parapeitos. Tinham sido esses homens a sobressaltar a noite com o barulho que faziam e que agora era cada vez maior. Um imbecil qualquer tinha tropeçado no escuro e batido num besteiro com um pavês, que era o enorme escudo, atrás do qual se recarregavam laboriosamente as bestas; o besteiro ripostou e logo as ratazanas brancas se envolveram numa rixa no meio da escuridão. Naturalmente que os defensores os ouviram, começando imediatamente a lançar colas de palha incandescente por sobre os parapeitos. O sino de uma igreja começou a tocar a rebate, depois outro, e tudo isto muito antes de Thomas ter começado a atravessar a lama.

Sir Simon Jekyll, sobressaltado pelos sinos e pela palha a arder gritou que o ataque deveria começar.

- Avancem com as escadas! - berrou.

Os defensores corriam para as muralhas de La Roche-Derrien e os primeiros projécteis lançados pelas bestas eram já cuspidos dos parapeitos iluminados pelas bolas de fogo.

- Segurem as malditas escadas! - gritou Will Skeat aos seus homens e depois olhou para Thomas. - Que achas?

- Creio que os patifes estão distraídos.

- Vais entrar?

- Não há nada melhor para fazer, Will.

- Malditas ratazanas brancas.

Thomas conduziu os homens através da lama. As pranchas ajudaram-nos, mas não tanto quanto contavam, pois havia quem escorregasse e lá seguiram o seu caminho com dificuldade em direcção às enormes estacas; Thomas apercebia-se de que o barulho que faziam era suficiente para acordar o Rei Artur e todos os seus cavaleiros. Porém, os defensores eram ainda mais ruidosos. Todos os sinos tocavam a rebate, uma trombeta berrava, os homens gritavam, os cães ladravam, os galos cantavam e as bestas rangiam e estalavam sempre que lhes puxavam as cordas para depois as soltar.

Thomas viu as muralhas à sua direita. Gostaria de saber se o Melro estava lá em cima. Já a vira duas vezes e sentia-se cativado pela ferocidade que se lhe lia no rosto e pelo seu cabelo negro, em desalinho. Vários outros arqueiros tinham também dado pela sua presença e, apesar de todos saberem disparar uma flecha através de uma argola a mais de cem passos de distância, a mulher ainda estava viva. O que um rosto bonito podia fazer, pensou Thomas

Poisou a última prancha e chegou às estacas de madeira, que eram cada uma delas um tronco de árvore enterrado na lama. Os homens juntaram-se a ele, puxando os paus, até a madeira podre se dobrar como palha. As estacas fizeram um ruído terrível a cair, que todavia foi abafado pela balbúrdia que havia dentro da cidade. Jake, o assassino vesgo das cadeias de Exeter, içou-se para o lado de Thomas. À direita tinham agora um ancoradouro de madeira com uma escada tosca num dos extremos. Chegava a manhã e uma fraca e ténue luz acinzentada começava a iluminar, a Oriente, a ponte sobre o Jaudy. Era uma bela ponte de pedra com uma barbacã no extremo oposto e Thomas receava que a guarnição dessa torre os pudesse avistar, porém ninguém deu o alarme e nenhum virote atravessou o rio. Thomas e Jake foram os primeiros a subir a escada de pedra, depois seguiu-se Sam, o mais jovem arqueiro de Skeat. O cais servia também um depósito de madeira, e um cão começou a ladrar aflitivamente, por entre os troncos empilhados; porém, Sam deslizou para a escuridão, empunhando a faca, e os latidos calaram-se imediatamente.

- Cãozinho bonito - disse Sam, quando voltou.

- Preparem os arcos - ordenou Thomas. Atara a corda de cânhamo da sua arma negra e abria agora os cordões da sua aljava.

- Odeio os malditos cães - queixou-se Sam. - A minha mãe foi mordida por um quando estava grávida de mim.

- É por isso que ficaste tolo - alvitrou Jake.

- Calem essas bocas malditas - ordenou Thomas. Havia mais arqueiros a subir para o cais, que balançava assustadoramente, mas via que as muralhas que deviam capturar estavam pejadas de defensores. As flechas inglesas, com as penas brancas a cintilar à luz das fogueiras, passavam por cima dos parapeitos, espetando-se nos telhados de colmo da cidade.

- Talvez devamos abrir a porta sul - sugeriu Thomas.

- Atravessar a cidade? - perguntou Jake, assustado.

- É uma cidade pequena - respondeu Thomas.

- És louco! - disse Jake, mas sorria e as suas palavras eram, afinal, um cumprimento.

- Seja como for, eu vou - disse Thomas. As ruas estariam escuras e ninguém veria os enormes arcos. Calculou que não fosse perigoso.

Uma dezena de homens seguiu Thomas, enquanto o resto começou a saquear os edifícios mais próximos. Cada vez mais soldados entravam pelas estacas quebradas, pois Will Skeat enviava-os, em vez de aguardar que a muralha fosse tomada. Os defensores tinham visto os homens na lama e atiravam da ponta da muralha, porém, os primeiros assaltantes andavam já à solta, pelas ruas.

Thomas entrou às cegas na cidade. Estava escuro como breu e era difícil saber por onde andava, embora, ao sentir que subia o monte sobre o qual a cidade estava construída, calculasse que haveria de chegar ao cume para acabar depois por descer até à porta sul. Passavam por ele homens a correr, mas nenhum se apercebeu de que ele e os companheiros eram ingleses. Os sinos eram ensurdecedores. As crianças choravam, os cães uivavam, as gaivotas gritavam e o barulho começava a aterrorizar Thomas. Que idéia tão tola, pensou. Sir Simon já teria subido às muralhas? Estaria talvez a perder tempo? Porém, as flechas de penas brancas continuavam a bater nos telhados da cidade, sugerindo que as muralhas não tinham sido tomadas, de modo que insistiu e continuou a andar. Por duas vezes deu por si num beco sem saída e, da segunda, ao voltar para uma rua mais larga quase esbarrou num padre que saíra da sua igreja para meter um archote aceso num buraco da parede

- Ide para as ameias! - ordenou severamente o sacerdote, mas depois viu os enormes arcos e abriu a boca para dar o alarme.

Não teve tempo de gritar, pois Thomas enfiou-lhe no ventre a ponta do arco. O padre dobrou-se, sufocado, e Jake cortou-lhe naturalmente a garganta. O sacerdote emitiu um gorgolejo enquanto caía sobre as pedras. Jake franziu a testa quando o ruído terminou.

- Vou para o Inferno pelo que acabei de fazer - disse.

- De qualquer modo, já para lá ias - ripostou Sam. - Vamos todos!

- Vamos mas é para o céu - disse Thomas. - Mas não, se perdermos tempo - sentia-se, de súbito, muito menos assustado, como se a morte do padre lhe tivesse afastado os receios. Uma flecha bateu na torre e caiu na rua, enquanto Thomas conduzia os homens pela frente da igreja. Acabou por descobrir que se encontrava na rua principal de La Roche-Derrien e que descia em direcção a uma fogueira acesa por sentinelas junto à porta sul. Thomas encolheu-se de novo junto da igreja, pois a rua estava cheia de homens, que corriam para o lado ameaçado da cidade. Quando olhou uma vez mais, viu a encosta vazia. Estavam apenas duas sentinelas no parapeito, sobre o arco da porta. Disse-o aos homens.

- Vão apanhar um susto dos diabos - comentou. - Matamos os patifes e abrimos a porta.

- Pode haver mais - avisou Sam. - Há-de haver uma casa da guarda.

- Então, matamo-los também - afirmou Thomas. - Vá, vamos embora! Entraram na rua, correram uns metros e empunharam os arcos. As flechas voaram e os dois guardas caíram da arcada. Um outro saiu da casa da guarda, dentro do torreão da porta, e ficou a olhar espantado para os arqueiros. Porém antes destes poderem erguer as suas armas voltou para dentro e trancou a porta.

- Já é nossa! - gritou Thomas e conduziu os seus homens numa rápida corrida até ao arco.

A casa da guarda permaneceu fechada, de modo que ninguém impediu os arqueiros de erguerem a tranca e abrirem, de par em par, as duas enormes portas da cidade. Os homens do conde viram-nas abertas, viram os arqueiros ingleses recortados à luz das fogueiras e fizeram tal alarido na escuridão, que deu a saber a Thomas que uma torrente de topas vingativas vinha em sua direcção.

O que queria dizer que La Roche-Derrien podia começar as suas lamentações. Os ingleses tinham tomado a cidade.



Jeanette acordara com o sino da igreja a tocar a rebate como se fosse o dia do juízo final, em que os mortos se levantavam das sepulturas e as portas do Inferno se abriam, para deixar entrar os pecadores. O seu primeiro instinto foi dirigir-se à cama do filho, mas o pequeno Charles encontrava-se bem. Via-lhe apenas os olhos, na escuridão um pouco aliviada pelas brasas incandescentes da lareira.

- Mamã? - gritou ele, estendendo-lhe os braços.

- Silêncio - sossegou a criança e depois correu a abrir os batentes das janelas. Uma leve luz acinzentada aparecia já, a Oriente, sobre os telhados, depois soaram passos na rua e ela inclinou-se na janela para ver os homens que saíam a correr da casa, empunhando espadas, bestas e lanças. Uma trombeta chamava-os do centro da cidade, e depois os sinos continuavam a tocar, dando o alarme no fim da noite. O sino da igreja da Virgem estava rachado, fazendo soar um dobre áspero, como de uma bigorna, o que era ainda mais assustador.

- Madame! - gritou uma criada, entrando a correr no quarto.

- Os ingleses devem ter atacado - Jeanette esforçava-se por falar com calma. Vestia apenas uma camisa de linho e, de súbito sentiu frio. Agarrou numa capa, atou-a no pescoço e depois ergueu o filho nos braços.

- Está tudo bem, Charles - tentou consolá-lo. - Os ingleses atacam de novo, mais nada.

Mas, desta vez, não tinha a certeza. Os sinos tocavam com demasiada força. Não era o dobre habitual para avisar de um ataque, mas sim um clangor aterrorizado, como se os homens que puxassem as cordas tentassem repelir o assalto por si próprios. Olhou de novo pela janela e viu as setas inglesas enterradas nos telhados. Ouvia-as bater no colmo. As crianças da cidade acharam que era uma boa brincadeira ir arrancá-las, e duas delas já se tinham ferido, ao cair de cima das casas. Jeanette pensou em vestir-se, mas decidiu primeiro saber o que se passava e assim entregou Charles à guarda da criada e desceu as escadas a correr.

Um dos criados da cozinha foi ter com ela à porta de trás.

- Que se passa, madame?

- Outro ataque, nada mais.

Destrancou a porta do pátio e correu para a entrada particular da igreja de São Renano, justamente quando uma flecha batia na torre e se despenhava lá embaixo. Abriu a porta, e subiu os degraus íngremes, que o pai mandara construir. Não fora a simples fé religiosa que inspirara Louis Halevy a mandar fazer aquela obra, mas sim a possibilidade de poder espreitar o rio, e assistir à chegada dos seus barcos já que o alto parapeito de pedra oferecia uma das melhores vistas de La Roche-Derrien. Jeanette ficou ensurdecida pelas badaladas do sino que soavam na semi-obscuridade, cada uma atingindo-lhe os ouvidos como um verdadeiro golpe. Subiu mais acima, abriu o alçapão no alto das escadas, e trepou à cobertura de chumbo do telhado.

Os ingleses tinham chegado. Podia ver uma torrente de homens junto à muralha do lado do rio. Avançavam pela lama e metiam-se por entre as estacas partidas, como se fossem ratos. Mãe de Jesus! pensou, bendita Mãe de Jesus! Já estão dentro da cidade! Apressou-se a descer as escadas.

- Já cá estão! - gritou para o padre, que puxava a corda do sino. - Já entraram na cidade!

- Ao ataque! Ao ataque! - os ingleses soltavam o grito que os encorajava ao saque.

Jeanette correu pelo pátio e subiu as escadas. Arrancou as roupas do armário, depois voltou-se, quando ouviu vozes aos gritos sob a sua janela. Esqueceu a roupa e tomou Charles nos braços.

- Mãe de Deus - rezou. - Olhai por nós, Olhai por nós! Bendita Mãe de Deus, guardai-nos! - chorava, sem saber o que fazer. Charles gritava porque ela o apertava com força contra si, tentando consolá-lo. Soavam gritos de triunfo na rua, fazendo-a voltar imediatamente à janela para ver o que lhe pareceu ser um rio negro com pregos de aço a correr em direcção ao centro da cidade. Deixou-se cair junto à janela, a soluçar. Charles gritava. Entraram mais duas criadas no quarto, pensando talvez que Jeanette lhes pudesse dar protecção, mas não havia já protecção possível. Os ingleses tinham chegado. Uma das criadas correu o fecho da porta do quarto, mas de que serviria o seu gesto?

Jeanette pensou nas armas escondidas do marido e na lâmina afiada da espada espanhola, ao mesmo tempo que perguntava a si própria se teria coragem de a apontar ao seio e deixar-se cair sobre ela. Seria melhor morrer, que ser desonrada, pensou, mas o que aconteceria depois ao filho? Chorava, desesperada e depois ouviu alguém bater no enorme portão que dava para o pátio. Um machado, pensou ao ouvir as pancadas violentas, que pareciam abanar toda a casa. Uma mulher gritou na rua, depois outra e vozes inglesas aplaudiam entusiasmadas. Um a um, calavam-se os sinos das igrejas, até ser apenas o que estava rachado a dobrar o seu terror sobre os telhados. O machado continuava a atacar a porta. Reconhecê-la-iam, interrogava-se. Sentira-se exultante nos parapeitos, disparando contra os sitiantes a besta que pertencera ao marido e tinha o ombro direito negro, devido a isso; porém, sofrera a dor com prazer, acreditando que cada virote disparado tornava menos provável a invasão da cidade pelos ingleses.

Ninguém o julgara possível. De qualquer modo, porquê sitiar La Roche-Derrien? Nada tinha para oferecer. Como porto, era praticamente inútil, pois os navios maiores não podiam subir o rio, nem mesmo na praia-mar. As gentes da cidade acreditavam que os ingleses queriam fazer uma petulante demonstração de força, mas haveriam de desistir e acabar por partir.

Mas agora, estavam ali e Jeanette gritava, à medida que se alterava o som dos golpes do machado. Já tinham partido a madeira e sem dúvida estariam a tentar erguer a tranca. Fechou os olhos, tremendo, ao ouvir a porta arrastada sobre as pedras. Estava aberta. Oh, Mãe de Deus, rezava, guardai-nos.

Os gritos soavam lá embaixo. Os passos batiam na escada. Vozes de homem gritavam numa língua desconhecida.

Guardai-nos, agora e na hora da nossa morte, porque os ingleses chegaram.



Sir Simon Jekyll sentia-se enfadado. Estava pronto a subir as escadas, se os arqueiros de Skeat alguma vez chegassem às muralhas, coisa que duvidava, mas se os parapeitos fossem dominados, então tencionava ser o primeiro a entrar. Já se via a cortar ao meio alguns defensores em pânico e depois a encontrar uma casa rica para saquear.

Todavia, nada acontecera como imaginara. A cidade estava acordada, a muralha controlada e as escadas nunca chegaram a avançar, porém os homens de Skeat tinham entrado, atravessando simplesmente a lama da margem do rio. Depois uma ovação no lado sul da cidade sugeria que a porta fora aberta, o que significava que todo o maldito exército entrava em La Roche-Derrien à sua frente. Praguejou. Não restaria nada para ele!

- Meu senhor? - Um dos seus homens-de-armas insistia com sir Simon, querendo dele uma decisão acerca de como haveriam de chegar às mulheres e aos bens atrás das muralhas que se esvaziavam já dos seus defensores, pois os homens corriam a proteger as casas e as famílias. Teria sido rápido, muito mais rápido, ter atravessado a lama, mas sir Simon não queria sujar as botas novas, de modo que ordenou que as escadas avançassem.

Estas eram feitas de madeira verde e os degraus dobravam-se assustadoramente, enquanto sir Simon subia. Porém não havia defensores que se lhe opusessem e a escada aguentou, permitindo-lhe saltar para a canhoneira e empunhar a espada. No parapeito, havia meia dúzia de homens com flechas espetadas. Dois estavam ainda vivos e sir Simon apunhalou o que lhe estava mais próximo. O homem levantara-se à pressa da cama, não tinha cota de malha, nem sequer um gibão de couro, mas, mesmo assim, foi difícil desferir o golpe mortal com a sua velha espada. Não fora feita para apunhalar, mas sim para cortar. As novas espadas, feitas do melhor aço europeu, eram famosas pela sua capacidade de furar a malha e o couro, porém esta lâmina antiga necessitou de toda a força bruta de sir Simon para penetrar nas costelas do homem. E que possibilidade teria, perguntava a si próprio, amargurado, de encontrar uma arma melhor naquela desgraçada cidade?

Havia um lanço de degraus de pedra que levava a uma rua agora cheia de arqueiros ingleses e homens-de-armas, manchados de lama até às coxas. Assaltavam as casas. Um homem transportava consigo um ganso morto, outro um rolo de tecido. O saque tinha já começado e sir Simon estava ainda sobre os parapeitos. Gritou para os homens que se apressassem e quando já havia suficientes no cimo da muralha, conduziu-os até à rua. Um arqueiro fazia rolar uma barrica da porta de uma cave, outro puxava uma rapariga por um braço. Para onde se havia de dirigir? Sir Simon não sabia. As casas mais próximas estavam já a ser saqueadas e os gritos entusiasmados que se ouviam a sul sugeriam que a maior parte do exército do conde descia para esse lado da cidade. Alguns habitantes, apercebendo-se de que tudo estava perdido, fugiam dos arqueiros, para poderem atravessar a ponte e dirigirem-se para o campo.

Sir Simon decidiu atacar a parte nascente. Os homens do conde estavam a sul, Skeat encontrava-se junto à muralha poente, de modo que o lado oriental oferecia melhores perspectivas de saque. Empurrou os arqueiros lamacentos de Skeat e conduziu os seus homens em direcção à ponte. As pessoas passavam por ele, assustadas, fingindo não o ver, na esperança que ele fizesse o mesmo. Atravessou a rua principal que levava à ponte e viu um caminho que contornava as casas grandes voltadas para o rio.

Mercadores, pensou sir Simon, mercadores gordos com lucros gordos e depois, à medida que aumentava a luz do dia, viu uma arcada encimada por um brasão. A casa de um nobre.

- Quem tem um machado? - perguntou aos seus homens. Um dos soldados avançou e sir Simon apontou o pesado portão. A casa tinha janelas no rés-do-chão, mas estavam cobertas por pesadas barras de ferro, o que parecia ser bom sinal. Sir Simon recuou para deixar o homem começar a trabalhar na porta.

O homem do machado sabia o que estava a fazer. Começou por abrir um buraco, onde calculava que se encontrasse a tranca e quando terminou, meteu a mão por ele e fez subir a barra para a retirar dos apoios. Assim, sir Simon e os seus arqueiros puderam abrir os portões. O cavaleiro deixou dois homens de guarda à porta, ordenando-lhes que afastassem da propriedade qualquer outro saqueador e depois conduziu os restantes pelo pátio. A primeira coisa que viu foram dois barcos amarrados ao cais do rio. Não eram grandes, mas todas as embarcações eram valiosas, de modo que ordenou aos seus arqueiros que fossem para bordo.

- Digam a quem quer que aqui venha, que são meus, entendem? Meus!

Agora, tinha de escolher: armazéns ou casa? E o estábulo? Disse a dois homens-de-armas que procurassem o estábulo e montassem guarda a todos os cavalos que lá se encontrassem; depois abriu a porta da casa a pontapé, entrando de seguida, com mais seis homens.

Duas mulheres gritaram. Ignorou-as; eram criadas velhas e feias e ele queria coisas mais ricas. Havia uma porta ao fundo da cozinha, fez sinal a um arqueiro e depois, erguendo a espada diante de si, atravessou um pequeno vestíbulo e entrou na sala da frente. Na parede estava suspensa uma tapeçaria mostrando Baco, o deus do vinho. Sir Simon tinha idéia de que por vezes era costume esconderem-se valores sob estes panos que cobriam as paredes. Assim atacou com a espada e arrancou-a dos ganchos, mas lá por trás havia apenas o estuque. Deu um pontapé nas cadeiras e viu uma arca com um enorme cadeado.

- Abram-na! - ordenou aos seus arqueiros. - O que lá estiver dentro é meu! - Ignorando dois livros que não serviriam a ninguém, voltou ao vestíbulo e subiu um lanço de escuras escadas de madeira.

Sir Simon deu com a porta que levava a uma sala, na frente da casa. Estava trancada e uma mulher gritou, quando tentou forçá-la. Recuou e usou o calcanhar da bota para esmagar o ferrolho do lado oposto e fazer saltar a porta dos seus gonzos. Depois entrou com a velha espada a brilhar à fraca luz da manhã e viu a mulher de cabelos negros.

Sir Simon considerava-se um homem prático. O pai, de modo bem sensato não quisera que o filho perdesse tempo a instruir-se, embora o tivesse mandado aprender a ler e ele soubesse escrever uma carta, em caso de necessidade. Apreciava as coisas úteis - cães e armas, cavalos e armaduras - mas desprezava o elegante culto da alta estirpe. A mãe era grande apreciadora de trovadores e ouvia constantemente canções de cavaleiros com ar tão doce, que sir Simon calculava que não se aguentassem dois minutos na refrega de um torneio. As canções e poemas celebravam o amor como se este fosse uma coisa rara que desse encanto à vida, porém, sir Simon não precisava de poetas para o definir, já que para ele bastava deitar uma camponesa no chão de um campo qualquer ou levantar as saias a uma prostituta fedendo a cerveja, numa taberna. Porém, quando viu a mulher de cabelo negro, entendeu finalmente o que celebravam os trovadores.

Não importava que ela tremesse de medo, que tivesse o cabelo em desalinho ou o rosto marcado pelas lágrimas. Simon reconheceu a sua beleza, que o atingiu como uma seta. Perdeu o fôlego. Então aquilo era o amor! Era a certeza de que nunca seria feliz, até que aquela mulher fosse sua - e era muito conveniente, pois tratava-se de uma inimiga, a cidade estava a ser saqueada e sir Simon, de cota de malha e furioso, fora o primeiro a encontrá-la.

- Saiam! - gritou para as criadas que se encontravam no quarto. - Saiam!

As criadas fugiram, a chorar, e sir Simon fechou com um pontapé a porta partida e depois avançou para a mulher, que se acocorou junto à cama do filho com a criança nos braços.

- Quem sois? - perguntou sir Simon em francês. A mulher tentou parecer corajosa.

- Sou a condessa de Armórica - respondeu. - E vós, monsieur?

Sir Simon sentiu-se tentado a atribuir-se um título, de modo a impressionar Jeanette, mas ficara lento de raciocínio e ouviu-se a si próprio pronunciar o seu nome. Apercebia-se lentamente de que o quarto traía riqueza. Os reposteiros da cama eram pesadamente bordados. Os candelabros, de prata maciça, e as paredes de ambos os lados da lareira de pedra estavam dispendiosamente cobertas de madeira trabalhada. Empurrou a cama mais pequena contra a porta, calculando que assim teria um pouco mais de privacidade e depois foi aquecer-se junto ao lume. Meteu mais carvão de pedra entre as chamas baixas e chegou as luvas geladas perto do fogo.

- A casa é vossa, madame?

- É.

- Não é de vosso marido?

- Sou viúva - respondeu Jeanette.

Uma viúva rica! Sir Simon quase se persignou de gratidão. As viúvas que conhecera em Inglaterra eram velhas pintadas, mas esta... Esta era diferente. Esta era uma mulher digna de um campeão de torneios e parecia suficientemente rica para o salvar da ignomínia de ter perdido os seus domínios e posição de cavaleiro. Poderia mesmo ter dinheiro que chegasse para lhe comprar uma baronia. Talvez até um condado. .

Afastou-se do lume e voltou-se para ela, a sorrir.

- Os barcos que estão no cais são vossos?

- Sim, monsieur.

- Pelas leis da guerra, agora pertencem-me, madame. Tudo isto é meu. Jeanette franziu a testa.

- Que leis?

- A lei da espada, madame, mas creio que sois afortunada. Ofereço-vos a minha protecção.

Jeanette sentou-se na beira do seu leito de dossel, agarrada a Charles.

- As leis da cavalaria, meu senhor, garantem-me protecção - disse e estremeceu ao ouvir uma mulher gritar numa casa próxima.

- Cavalaria? - perguntou sir Simon. - Cavalaria? Ouvi falar disso em canções, senhora, mas estamos em guerra. O nosso dever é castigar os partidários de Charles de Blois, por se revoltarem contra o seu legítimo senhor. O castigo e a cavalaria não se misturam - olhou-a, franzindo o sobrolho. - Sois o Melro! - disse, reconhecendo-a, de súbito, à luz do lume ateado.

- O melro? - Jeanette não compreendera.

- Haveis-nos combatido do cimo das muralhas! Haveis-me atingido um braço! - Sir Simon não parecia raivoso, mas sim desconcertado. Esperara sentir-se irado, quando encontrasse o Melro, porém a beleza da condessa era demasiado estonteante para que tal acontecesse. Sorriu. - Fechastes os olhos ao disparar a besta. Foi por isso que não haveis acertado.

- Acertei! - exclamou Jeanette, indignada.

- Um mero arranhão - afirmou sir Simon, mostrando-lhe o rasgão na manga da cota malha. - Mas, madame, porque combateis pelo falso duque?

- O meu esposo - disse rígida - era sobrinho do duque Charles.

Deus do Céu, pensou sir Simon, Santo Deus do Céu! Que belo troféu.

Fez-lhe uma reverência.

- Então, o vosso filho é o actual conde? - disse, designando com um gesto de cabeça Charles, que espreitava ansiosamente dos braços da mãe.

- Assim é - confirmou Jeanette.

- Um belo rapaz - sir Simon viu-se forçado a usar de alguma lisonja. Na verdade, pensava que Charles era um incómodo com cara de Lua cheia, cuja presença o coibia de satisfazer o seu natural desejo de deitar o Melro de costas para lhe mostrar as realidades da guerra. Porém, tinha consciência de que a viúva era uma aristocrata, uma beleza e aparentada com Charles de Blois, sobrinho do rei de França. Aquela mulher valia uma fortuna e a verdadeira necessidade de sir Simon era fazê-la ver que no seu melhor interesse devia aceitar as suas ambições. - Um belo rapaz, madame - continuou - que precisa de um pai.

Jeanette limitou-se a olhar para ele. Sir Simon tinha um rosto grosseiro. O nariz era bolboso, o queixo firme e não denotava o mínimo sinal de inteligência ou espírito. Tinha, porém, confiança suficiente para estar convencido de que ela se casaria com ele. Seria mesmo isso que tencionava fazer? Abriu a boca, soltando depois uma exclamação sobressaltada, quando um grito furioso soou debaixo da janela. Alguns arqueiros tentavam ultrapassar os homens que guardavam o portão. Sir Simon abriu bruscamente os batentes.

- Este lugar é meu - disse, com desprezo, em inglês. - Ide procurar outros patos para depenar. - Voltou-se para Jeanette. - Vedes, madame, como vos protejo?

- Então as leis da cavalaria sempre valem na guerra?

- Na guerra há oportunidades, madame. Sois rica, sois viúva. Precisais de um homem.

Ela fitou-o com os olhos perturbadamente grandes, mal se atrevendo a acreditar na temeridade dele.

- Por quê? - perguntou simplesmente.

- Por quê? - Sir Simon ficara desconcertado com a pergunta. Apontou para a janela. - Escutai os gritos, senhora! Que pensais que acontece às mulheres quando uma cidade cai?

- Mas haveis dito que me protegeríeis - recordou ela.

- E assim farei - estava a perder-se naquela conversa. Pensou que a mulher, embora fosse muito bela, era extremamente estúpida. - Eu proteger-vos-ei - continuou - e vós cuidareis de mim.

- Como?

Sir Simon suspirou.

- Não tendes dinheiro? Jeanette encolheu os ombros.

- Há algum lá em baixo, senhor, escondido na cozinha.

Sir Simon, zangado, franziu o sobrolho. Considerá-lo-ia ela um imbecil? Que morderia o isco de descer as escadas, deixando-a ali para sair pela janela?

- Há uma coisa que sei acerca do dinheiro, senhora. Nunca se esconde onde os criados o possam encontrar. Esconde-se, sim nos aposentos privados. Nas alcovas - abriu uma arca e despejou no chão a roupa que continha, mas nada lá havia oculto. Depois, como se subitamente inspirado, começou a bater no forro de madeira. Ouvira dizer que aqueles painéis ocultavam muitas vezes um esconderijo e foi quase instantaneamente recompensado por um som cavo, muito aceitável.

- Não, monsienr! - exclamou Jeanette.

Sir Simon ignorou-a, ergueu a espada, atacou os painéis de madeira de tília que se fizeram em tiras e retirou-os. Embainhou a espada e puxou as lascas, com as mãos enluvadas.

- Não! - gemeu Jeanette.

Sir Simon espreitou. Havia dinheiro escondido por trás dos painéis, uma barrica cheia de moedas, mas não seria isso o mais interessante. O seu trofeu seria uma armadura e um conjunto de armas como apenas ele conseguia imaginar. Uma armadura cintilante, cada peça ornamentada com subtis gravações e toda incrustada a ouro. Trabalho italiano? E a espada! Quando a retirou da bainha, foi como se empunhasse a própria Excalibur. A lâmina tinha um tom azulado, não era tão pesada como a sua, mas miraculosamente equilibrada. Provavelmente fabricada pelos famosos armeiros de Poitiers, ou, melhor ainda, talvez em Espanha?

- Pertenciam a meu marido - apelou Jeanette. - É tudo o que me resta dele. É a herança de Charles.

Sir Simon ignorou-a. Passou o dedo enluvado pela incrustação de ouro do plastrão. Só essa peça valia um reino.

- É tudo o que lhe resta do pai - implorou Jeanette.

Sir Simon desapertou o cinto e deixou cair no chão a velha espada, prendendo depois a do conde de Armórica à cintura. Voltou-se e fitou Jeanette, admirando o seu rosto imaculado. Eram estes os despojos de guerra com que sonhara, tendo começado já a recear nunca mais dar com eles: uma barrica de moedas, uma armadura digna de um rei, uma espada feita para um campeão e uma mulher que faria a inveja de toda a Inglaterra.

- A armadura pertence-me - afirmou. - Tal como a espada.

- Não, monsieur, por favor.

- Que quereis fazer? Comprar-ma?

- Se necessário for - disse Jeanette, apontando para a barrica.

- Também me pertence, madame - disse sir Simon e, para o provar, dirigiu-se à porta, a passos largos, retirou o que servia para a tapar e gritou a dois dos seus arqueiros que subissem a escada. Apontou para a barrica e para a armadura.

- Levai tudo para baixo - disse. - Guardem tudo muito bem. E não pensem que não contei o dinheiro, porque o fiz. Ide!

Jeanette apercebeu-se do roubo. Queria implorar piedade, mas esforçou-se por manter calma.

- Se me haveis roubado tudo o que possuía - disse a sir Simon - como poderia comprar-vos a armadura?

Sir Simon empurrou de novo a cama da criança de encontro à porta e ofereceu a Jeanette o seu melhor sorriso.

- Há urna coisa que podeis usar para comprar a armadura, minha querida - disse vitorioso. - Possuis aquilo que todas as mulheres possuem. Podeis utilizá-lo.

Jeanette fechou os olhos por uns instantes.

- Todos os gentis-homens de Inglaterra são como vós? - perguntou.

- Poucos são tão hábeis com as armas - respondeu sir Simon orgulhoso.

Ia contar-lhe os seus triunfos nos torneios, certo de que ela se mostraria interessada. Porém Jeanette interrompeu-o:

- Só queria saber - disse ela em tom gelado - se os cavaleiros de Inglaterra são todos ladrões, cobardes e violentos.

Sir Simon ficou verdadeiramente desconcertado com o insulto. Aquela mulher parecia não apreciar a sua boa sorte, erro que apenas poderia atribuir a uma estupidez inata.

- Esqueceis, madame - explicou ele - que os vencedores da guerra recebem troféus?

- E eu sou o vosso troféu?

A mulher era mais do que estúpida, pensou sir Simon, mas quem queria uma mulher inteligente?

- Madame, sou o vosso protector - declarou. - Se vos deixar, se retirar a minha protecção, haverá uma fila de homens na escada para vos arrebatar. Compreendeis?

- Creio - disse ela firmemente - que o conde de Northampton me conferirá melhor protecção.

Cristo redentor, pensou sir Simon, a cabra era perfeitamente obtusa. Era inútil discutir com ela, pois era demasiado imbecil para compreender, de modo que seria preciso forçá-la. Atravessou rapidamente o quarto, arrebatou-lhe Charles dos braços e atirou-o para cima da cama mais pequena. Jeanette gritou e tentou agredi-lo, mas sir Simon pegou-lhe no braço e esbofeteou-lhe o rosto com a mão enluvada; quando a viu imóvel de dor e espanto, arrancou-lhe os cordões da capa e com as mãos enormes rasgou-lhe a camisa que lhe cobria o corpo. Ela gritou, tentando esconder a nudez com as mãos, mas sir Simon obrigou-a a abrir os braços e fitou-a estonteado. Sem qualquer marca!

- Não! - chorou Jeanette.

Sir Simon atirou-a com força para cima da cama.

- Quereis que vosso filho herde a armadura do vosso marido traidor? - perguntou. - Ou a espada? Então, madame, deveis ser boa para com o seu novo proprietário. Eu estou pronto a ser bom para vós. - Desapertou a espada, deixou-a cair no chão. Depois ergueu a cota de malha e tentou abrir os calções.

- Não! - Jeanette gemia e tentava escapar-se de cima da cama, mas sir Simon agarrou-lhe a camisa, e com um puxão baixou-lha até à cintura. O rapazinho gritava, sir Simon tentava retirar as manoplas enferrujadas e Jeanette sentia que o diabo lhe tinha entrado em casa. Tentava cobrir a sua nudez, mas o inglês esbofeteou-a de novo e ergueu mais uma vez a cota de malha. Fora da janela, o sino rachado da igreja da Virgem calara-se por fim, pois os ingleses tinham chegado, Jeanette tinha um admirador e a cidade chorava.



O primeiro pensamento de Thomas, depois de abrir o portão, não fora o saque, mas sim um sítio onde lavar as pernas da lama do rio, acto que levou a cabo num barril de cerveja na primeira taberna que encontrou. O taberneiro era um homem enorme e careca, que atacava estupidamente os ingleses com um pau, de modo que Jake rasteirou-o com o seu arco, abrindo-lhe depois o ventre.

- Patife imbecil - disse Jake. - Se calhar até nem lhe ia fazer mal.

As botas do morto ficavam bem a Thomas, o que foi uma óptima surpresa, pois muito poucas lhe serviam e, uma vez encontrado o esconderijo das moedas, partiram em busca de outros divertimentos. O conde de Northampton picava o cavalo de um lado para outro da rua principal, gritando aos homens furiosos que não incendiassem cidade. Queria manter La Roche-Derrien como fortaleza e ser-lhe-ia inútil ficar com um monte de cinzas.

Nem todos saqueavam. Entre os homens mais velhos e até alguns mais novos, havia quem quisesse limitar os excessos mais violentos, mas eram largamente ultrapassados pelos que nada mais viam senão a oportunidade de roubarem a cidade derrotada. O padre Hobbe, sacerdote inglês que gostava dos homens de Will Skeat tentou convencer Thomas e o seu grupo a guardarem uma igreja; todavia eles tinham em mente outros prazeres.

- Não manches a tua alma, Thomas - disse o padre Hobbe, recordando que Thomas, tal como todos os outros, tinha ouvido missa no dia anterior. Mas este considerava que, de qualquer modo, a sua alma havia de ficar manchada e o melhor seria que tal acontecesse o mais depressa possível. Andava à procura de uma rapariga, qualquer lhe serviria, pois a maior parte dos homens de Will tinham uma mulher no acampamento. Thomas vivera com uma bretã muito meiga, mas esta apanhara uma febre antes do início da campanha de Inverno e o padre Hobbe tivera de dizer uma missa de defuntos por ela. Thomas vira descer à terra o corpo sem mortalha da jovem e pensara nas sepulturas de Hookton e na promessa que fizera ao pai moribundo, mas tratara de a esquecer. Era jovem e não tinha qualquer gosto por pesos de consciência.

La Roche-Derrien encontrava-se já sob a fúria inglesa. Os homens derrubavam telhados de colmo e destruíam o recheio das casas em busca de dinheiro. Os habitantes da cidade que tentassem proteger as mulheres eram mortos e aquelas que se tentassem defender eram espancadas até se submeterem. Algumas pessoas tinham escapado ao saque, atravessando a ponte, mas a pequena guarnição da barbacã fugira do inevitável ataque e já os homens-de-armas do conde dominavam a pequena cidade de La Roche-Derrien, que se rendera ao seu destino. Algumas mulheres tinham-se refugiado nas igrejas e as mais felizes encontraram aí protecção. Porém, a maioria não teve tal sorte.

Thomas, Jake e Sam descobriram finalmente uma casa não saqueada que pertencia a um curtidor, um homem fedorento com uma mulher feia e três filhos pequenos. Sam, cujo rosto inocente fazia com que os desconhecidos confiassem nele à primeira vista, só teve de erguer uma faca junto ao pescoço da criança mais pequena para que o pai se lembrasse imediatamente do local onde escondia o dinheiro. Thomas vigiara o companheiro, temendo que ele realmente cortasse a garganta ao rapazinho, pois, apesar das faces rosadas e olhos alegres, era tão cruel como qualquer outro homem do bando de Skeat. Jake não era melhor, porém Thomas considerava-os seus amigos.

- O homem é tão pobre como nós - disse Jake, estupefato ao contar as moedas do curtidor. Empurrou um terço do monte em direcção a Thomas. - Queres a mulher dele? - ofereceu Jake, generoso.

- Valha-me Deus, não! É vesga como tu.

- É?

Thomas deixou Jake e Thomas a divertirem-se e partiu em busca de uma taberna onde encontrasse comida, bebida e calor. Calculava que as raparigas que valiam a pena deveriam já ter sido arrebatadas, de modo que enrolou a corda do arco, empurrou um grupo de homens que destruíam a carga de uma carroça e descobriu uma estalagem onde uma mãe viúva tinha sensatamente protegido a propriedade e as filhas, dando as boas-vindas aos primeiros soldados. Oferecera-lhes comida de graça e cerveja abundante, enquanto se zangava por lhe sujarem o chão com os pés enlameados. Gritava agora com eles, embora poucos entendessem o que lhes dizia; um dos homens rosnou um aviso a Thomas para que ela e as filhas não fossem incomodadas.

Thomas ergueu as mãos para mostrar que não tinha más intenções e depois pegou num prato com pão, ovos e queijo.

- Agora paga-lhe - resmungou um dos soldados e, obediente, Thomas poisou no balcão as poucas moedas do curtidor.

- Aquele é bem-parecido - disse a viúva às filhas, que soltavam risinhos.

Thomas voltou-se e fingiu inspeccionar as raparigas.

- São as meninas mais belas de toda a Bretanha - afirmou em francês à viúva. - Parecem-se convosco, madame.

O cumprimento, embora fosse evidentemente falso, causou enormes risadas. Lá fora, atrás da taberna, havia gritos e lágrimas, porém no seu interior o ambiente era quente e acolhedor. Thomas comeu avidamente e depois tentou esconder-se junto à janela, quando o padre Hobbe entrou a toda a pressa. Contudo, o sacerdote já o tinha visto.

- Continuo em busca de homens para guardar as igrejas, Thomas.

- Vou embriagar-me, padre - disse Thomas alegremente. - Uma bebedeira tão grande, que qualquer destas raparigas me vai parecer atraente - apontou com a cabeça para as filhas da viúva.

O padre Hobbe observou-as com ar crítico e depois suspirou.

- Vais matar-te se beberes assim tanto, Thomas - sentou-se à mesa, acenou às raparigas e apontou para a caneca.

- Vou beber contigo - disse o padre.

- E as igrejas?

- Em breve todos estarão embriagados - respondeu o padre Hobbe. - O horror terminará. É sempre assim. Cerveja e vinho, só Deus sabe, são as grandes causas de pecado, mas também o encurtam. Valha-me Deus, mas que frio que está aqui! - sorriu para Thomas. - E como está tua negra alma, Tom?

Thomas observou o sacerdote. Gostava do padre Hobbe, que era pequeno e magro, com uma massa de cabelo hirsuto sobre um rosto alegre marcado, pela varíola que contraíra em criança. Era de nascimento humilde, filho de um carpinteiro de carroças do Sussex e, como qualquer outro rapaz do campo, sabia disparar o arco como os melhores. Acompanhava por vezes os homens de Skeat nos seus assaltos ao país do duque Charles e de boa vontade se juntava aos arqueiros, quando desmontavam para formar uma linha de batalha. As leis da igreja proibiam um sacerdote de empunhar uma arma cortante, porém o padre Hobbe afirmava usar sempre setas embotadas, que afinal pareciam penetrar nas cotas de malha do inimigo com a mesma facilidade das outras. Em resumo, o padre Hobbe era um bom homem, cujo único defeito era um interesse excessivo pela alma de Thomas.

- A minha alma dissolve-se em cerveja - afirmou Thomas.

- Muito boa idéia - disse o padre Hobbe. - Com que então, dissolve-se? - Pegou no enorme arco negro e apontou a insígnia de prata com o dedo sujo. - Já descobriste alguma coisa sobre isto?

- Não.

- Ou sobre quem roubou a lança?

- Não.

- Já não te importas?

Thomas encostou-se na cadeira e esticou as longas pernas.

- Estou a fazer um bom trabalho, padre. Estamos a ganhar esta guerra e quem sabe o que acontecerá para o ano? Pode ser que estejamos a esmurrar o nariz ao Rei de França.

O padre Hobbe concordou com um aceno, embora o seu rosto sugerisse que as palavras de Thomas eram irrelevantes. Molhou o dedo numa pequena poça de cerveja sobre a mesa.

- Thomas, fizeste uma promessa a teu pai e fizeste-a numa igreja. Não foi o que me disseste? Uma promessa solene, Thomas? Que recuperarias a lança? Deus escuta esses votos.

Thomas sorriu.

- Padre, fora desta taberna há tantos assassinatos, violações e roubos, que nem todas as penas que há no céu conseguem assentar o rol dos pecados. E estais preocupado comigo?

- Sim, Thomas, estou. Há almas que são melhores que outras. Tenho de olhar por todas elas, mas quando se tem no rebanho uma ovelha premiada, então, o melhor será guardá-la bem.

Thomas suspirou.

- Um dia, padre, encontrarei o homem que roubou a maldita lança e meto-lha pelo traseiro acima até lhe chegar à cabeça. Um dia. Está bem assim?

O padre Hobbe sorriu beatificamente.

- Está sim, Thomas, mas por enquanto, há uma pequena igreja que precisava de mais um homem à porta. Está cheia de mulheres! Algumas delas tão belas que se nos parte o coração só de as olhar. Podes embriagar-te depois.

- As mulheres são realmente belas?

- O que achas, Thomas? A maior parte parecem morcegos e cheiram como cabras, mas mesmo assim, necessitam de protecção.

Thomas ajudou então a guardar a igreja e depois, quando o exército estava tão etilizado que não podia causar mais danos, voltou para a taberna da viúva onde bebeu até perder a consciência. Tomara uma cidade, servira bem o seu senhor e estava satisfeito.



Thomas foi acordado por um pontapé. Uma pausa e novo pontapé, acompanhado de uma caneca de água fria pelo rosto.

- Jesus!

- Sou eu - disse Will Skeat. - O padre Hobbe disseme que estavas aqui.

- Oh, Jesus - repetiu Thomas. Doía-lhe a cabeça e o ventre e sentia-se enjoado. Pestanejou ao de leve, à luz do dia, e depois franziu a testa para Skeat. - És tu!

- Deve ser muito bom ser tão esperto - proferiu Skeat. Sorriu para Thomas, nu sobre a palha do estábulo da taberna, que partilhava com uma das filhas da viúva. - E devias estar bêbado que nem um cacho, para meteres a tua espada numa bainha como essa - acrescentou Skeat, olhando para a rapariga, que puxava uma manta sobre si.

- Estava bêbado - gemeu Thomas. - Ainda estou. - Ergueu-se com passos vacilantes e vestiu a camisa.

- O conde mandou-te chamar - disse Skeat, divertido.

- A mim? - Thomas parecia aflito. - Porquê?

- Talvez queira casar-te com a filha - gracejou Skeat. - Pelas chagas de Cristo, Tom, olha em que estado estás!

Thomas calçou as botas e vestiu a cota de malha, depois foi buscar umas calças à equipagem que tinha no acampamento e vestiu um gibão de fazenda sobre a cota. Este tinha a insígnia do conde de Northampton, três estrelas vermelhas e três verdes, para as quais se precipitavam três leões. Salpicou o rosto com água e barbeou-se com uma navalha afiada.

- Deixa crescer a barba, rapaz - disse Skeat. - Poupa-te trabalho.

- Porque é que o Eilly me quer ver? - perguntou Thomas, referindo-se ao conde pela alcunha.

- Depois do que aconteceu ontem, na cidade? - sugeriu Skeat pensativo. - Pensa que deve enforcar alguém para servir de exemplo, de modo que me perguntou se eu tinha algum patifório inútil de quem me quisesse ver livre. Lembrei-me logo de ti.

- Até poderia enforcar-me, da maneira como me sinto - respondeu Thomas, vomitando em seco e bebendo um gole de água a seguir.

Voltou com Will Skeat para a cidade, onde encontrou o conde de Northampton recebendo as queixas dos habitantes. O edifício onde suspendera a sua bandeira pertencia às corporações, porém era provavelmente mais exíguo que a casa da guarda do seu próprio castelo. Contudo, estava sentado num extremo, enquanto uma sucessão de peticionários implorava justiça. Queixavam-se de ter sido roubados, o que era despropositado, já que se tinham recusado a entregar a cidade, porém o conde escutava-os com toda a delicadeza. Depois, um advogado, com cara de doninha chamado Belas, fez uma reverência diante do nobre e deu início a uma longa queixa acerca do tratamento dado à condessa de Armórica. A princípio, Thomas nem reparava nas palavras, mas a insistência na voz do homem obrigou-o a tomar atenção.

- Se vossa senhoria não tivesse intervido - dizia Belas dirigindo ao conde um sorriso tolo - a condessa teria sido violada por sir Simon Jekyll.

Sir Simon estava num dos lados da sala.

- É mentira - protestou em francês. O conde suspirou.

- Então porque tínheis os vosso calções caídos em volta dos tornozelos quando eu entrei na casa?

Sir Simon corou, para gáudio dos outros homens. Thomas teve de traduzir para Will Skeat, que acenou afirmativamente, pois já tinha ouvido a história.

- O patife ia atirar-se a uma viúva titular, quando o conde entrou - explicou a Thomas. - Ouviu-a gritar, percebes? E viu o brasão sobre a porta. Os membros da aristocracia protegem-se uns dos outros.

O advogado enumerava agora uma longa lista de acusações contra sir Simon. Parecia que este reclamara a viúva e o filho como prisioneiros e exigia um resgate. Roubara-lhe também dois barcos, a armadura do marido, a espada e todo o dinheiro. Belas fazia as queixas em tom indignado e depois inclinou-se diante do conde.

- Sois considerado um homem justo, meu senhor - disse, obsequioso. - Coloco o destino da viúva nas vossas mãos.

O conde de Northampton pareceu surpreendido por ter tal reputação.

- Que desejais? - perguntou.

Belas aprumou-se.

- A restituição dos bens roubados, meu senhor, e a protecção do Rei de Inglaterra para uma viúva e para o seu nobre filho.

O conde tamborilou com os dedos no braço da cadeira e depois franziu as sobrancelhas, olhando para sir Simon.

- Não podeis pedir resgate por uma criança de três anos - disse.

- É um conde! - protestou sir Simon. - Uma criança de nobre estirpe!

O conde suspirou. Apercebera-se de que sir Simon tinha a inteligência de um simples boi que procurava alimento. Não enxergava outro ponto de vista, que não o seu, e era determinado na satisfação dos seus apetites. Talvez fosse por isso que era um soldado tão formidável, mesmo assim, não passava de um imbecil.

- Não pedimos resgate por crianças de três anos - disse o conde com firmeza. - E não mantemos mulheres prisioneiras, a menos que haja alguma vantagem que possa ultrapassar a simples cortesia, coisa que não vejo aqui - o conde voltou-se para os escrivães que tinha atrás da sua cadeira.

- A quem apoiava Armórica?

- Charles de Blois, senhor - respondeu um clérigo bretão, muito alto.

- É um feudo rico?

- Muito pequeno, senhor - o escrivão falava de cor, com o nariz a pingar. - Há uma propriedade em Finisterra que já está nas nossas mãos, umas casas em Guingamp, creio eu, e mais nada.

- Pronto - disse o conde voltando-se para sir Simon. - Que vantagem quereis tirar de uma criança de três anos sem um tostão?

- Não é bem assim - protestou sir Simon. - Encontrei lá uma rica armadura.

- Que sem dúvida o pai do rapaz usou para combater!

- E a casa é rica - sir Simon estava a ficar zangado. - Há barcos, armazéns, estábulos.

- A casa pertencia ao sogro do conde de Armórica - o escrivão falava num tom enfadado. - Um negociante de vinho, creio.

O conde ergueu o sobrolho para sir Simon, com ar intrigado, vendo-o abanar a cabeça, face à obstinação do escrivão.

- O rapaz, senhor - respondeu sir Simon fazendo uma elaborada vénia que raiava a insolência -, é parente de Charles de Blois.

- Mas não tendo um tostão, duvido que lhe tenha grande carinho - ripostou o conde. - Seria mais um peso, não concordais? Além do mais, que quereis que faça? Que obrigue a criança a prestar vassalagem ao verdadeiro duque da Bretanha? O verdadeiro duque, sir Simon, é uma criança de cinco anos que está em Londres. Será uma farsa infantil. Um menino de três anos a curvar-se diante de um de cinco! Será que levam também as amas de leite? Depois festejamos com leite e bolinhos? Ou talvez possamos jogar as escondidas quando a cerimónia terminar.

- A condessa combateu contra nós, das muralhas! - disse sir Simon, tentando um último protesto.

- Não me contrarieis! - gritou o conde, batendo no braço da cadeira. - Esqueceis que sou o enviado do Rei e tenho os seus poderes - o conde encostou-se, rígido de raiva, e sir Simon teve de engolir a fúria, embora não conseguisse resistir a murmurar que a condessa usara uma besta contra os ingleses.

- Será o Melro? - perguntou Thomas a Skeat.

- A condessa? Sim, é o que dizem,

- É uma beldade.

- Depois daquela com quem te vi esta manhã... - disse Skeat. - Como é que sabes?

O conde lançou um olhar irritado a Skeat e a Thomas e, a seguir, voltou-se de novo para sir Simon.

- Se a condessa nos combateu do alto das muralhas, admiro a sua coragem - disse. - Quanto aos outros assuntos... - fez uma pausa e suspirou.

Belas parecia ansioso e sir Simon prudente.

- Os dois barcos - decretou o conde - são troféus a ser vendidos em Inglaterra ou entregues para serviço real e vós, sir Simon, recebereis um terço do seu valor - era esta a regra, segundo a lei. O rei ficava com um terço, o conde com outro e a última parte pertencia ao homem que capturara o troféu. - Quanto à espada e à armadura... - o conde fez nova pausa.

Salvara Jeanette da violação e gostara dela, vira-lhe a angústia no rosto e escutara a sua súplica apaixonada, afirmando nada ter que tivesse pertencido ao marido, excepto a preciosa armadura e a bela espada, mas essas coisas eram, por natureza, legítimos despojos de guerra.

- A armadura as armas e os cavalos são vossos, sir Simon - disse o conde, lamentando ter de tomar aquela decisão, mas sabendo que era justa.

- Quanto à criança, decreto que fique sob a protecção da Coroa Inglesa e, quando tiver idade, poderá decidir a quem prestar vassalagem - olhou para os escrivães, para se certificar que assentavam as suas decisões. - Dizeis vós que quereis aboletar-vos em casa da viúva? - perguntou a sir Simon.

- Tomei-a - disse sir Simon, laconicamente.

- E havei-la deixado sem nada, segundo ouvi dizer - replicou o conde, em tom gelado. - A condessa afirma que lhe haveis roubado dinheiro.

- Mente - sir Simon tinha um ar indignado. - Mentiras, senhor, só mentiras!

O conde duvidava, contudo, seria difícil acusar um gentil-homem de perjúrio sem provocar um duelo e, embora William Bohun não temesse ninguém, que não o seu Rei, não queria combater por uma causa tão mêsquinha. Deixou passar o assunto.

- Porém - continuou - prometi à senhora protecção contra o assédio.

- Fitava sir Simon, enquanto falava, e depois voltou-se para Will Skeat e falou em inglês: - Queres aquartelar os teus homens todos juntos, Will?

- Quero, meu senhor!

- Então ficais na casa da viúva. E ela deve ser tratada honradamente, percebes? Honradamente! Diz isso aos teus homens, Will!

Skeat acenou com a cabeça.

- Corto-lhes as orelhas, se lhe tocarem, meu senhor!

- As orelhas, não, Will. Corta-lhes qualquer coisa mais própria. Sir Simon mostrar-vos-á a casa e, quanto a vós, sir Simon - o conde falava de novo em francês. - Tereis de arranjar cama noutro lado.

Sir Simon abriu a boca para protestar, mas um olhar do conde silenciou-o. Aproximou-se outro peticionário, querendo uma compensação pelo assalto a uma cave cheia de vinho, porém o conde enviou-o a um escrivão para que assentasse as queixas do homem num pergaminho que o conde duvidava ter alguma vez tempo para ler.

Depois dirigiu-se a Thomas:

- Tenho de te agradecer, Thomas de Hookton.

- Agradecer, senhor? O conde sorriu.

- Arranjaste maneira de entrar na cidade, depois de tudo o resto ter falhado.

Thomas corou.

- Foi um prazer, senhor.

- Podes exigir uma recompensa da minha parte - afirmou o conde. - É de costume.

Thomas encolheu os ombros.

- Estou satisfeito, meu senhor.

- És então uma homem de sorte, Thomas. Mas lembrar-me-ei da minha dívida. E obrigado a ti também, Will.

Will Skeat sorriu.

- Se este idiota chapado não quer a recompensa, eu posso recebê-la, meu senhor.

O conde gostou daquilo.

- A minha recompensa para ti, Will, é deixar-te aqui. Vou dar-te toda uma parcela de campo para saqueares. Deus me acuda, qualquer dia, já és mais rico do que eu - ergueu-se. - Sir Simon conduzir-vos-á ao vosso aquartelamento.

Sir Simon poderia ter-se irritado por lhe terem laconicamente ordenado que fosse um mero guia, mas, surpreendentemente, obedeceu sem se mostrar ofendido, talvez por querer uma nova oportunidade de se encontrar com Jeanette. Assim, ao meio-dia, conduziu Will Skeat e os seus homens pelas ruas, até à enorme casa na margem do rio. Vestira a sua nova armadura, sem qualquer capa por cima, de modo que o metal brilhante e os entalhes dourados cintilassem ao fraco sol de Inverno. Meteu a cabeça sob o arco do pátio, e imediatamente Jeanette apareceu a correr à porta da cozinha, que ficava justamente à esquerda do portão.

- Ide-vos! - gritou em francês. - Ide-vos!

Thomas, que cavalgava ao lado de sir Simon, ficou a olhá-la. Era, de fato, o Melro e tão bela de perto, como quando a vira ao longe, nas muralhas.

- Ide-vos todos! - Ali estava, aos gritos, de mãos nas ancas e cabeça descoberta.

Sir Simon ergueu a viseira do elmo.

- Esta casa está requisitada, senhora - disse com ar feliz. - Foi o conde que o ordenou.

- O conde prometeu-me que me deixariam em paz! - protestou Jeanette, em tom acalorado.

- Então, sua senhoria mudou de idéia - disse sir Simon. Ela insultou-o.

- Já me haveis roubado tudo o que me pertencia, quereis agora levar-me também a casa?

- Sim, madame - declarou sir Simon, picando o cavalo para que avançasse e lhe impedisse o caminho. - Sim, madame - repetiu, e puxou as rédeas obrigando o animal a voltar-se e a empurrar Jeanette, deitando-a ao chão. - Fico com a vossa casa - afirmou sir Simon - e com tudo o mais que quiser, madame.

Os arqueiros soltaram gritos de prazer, ao verem as longas pernas nuas de Jeanette. Esta puxou as saias para baixo e tentou soerguer-se, porém sir Simon fez o cavalo avançar mais uma vez, forçando a condessa a tomar uma posição pouco digna, no chão do pátio.

- Deixai que a mulher se levante - gritou Will Skeat, zangado.

- Ela e eu somos velhos amigos, mestre Skeat - respondeu sir Simon, continuando a ameaçar Jeanette com os cascos do cavalo.

- Disse-vos que a deixeis levantar e seguir em paz - repetiu Will, em tom de poucos amigos.

Sir Simon, ofendido por receber ordens de um homem do povo, diante dos arqueiros, voltou-se, zangado. Porém havia uma seriedade em Will Skeat que obrigou o cavaleiro a deter-se. Tinha o dobro da sua idade e, passara muitos anos em combate, de modo que o cavaleiro resolveu usar o seu bom senso para evitar um confronto.

- A casa é vossa, mestre Skeat - disse, condescendente. - Mas cuidai da senhora! Tenho planos para ela. - Afastou o cavalo de Jeanette, que chorava, envergonhada, picou-o e conduziu-o para fora do pátio.

Jeanette não compreendia inglês, mas apercebera-se que Will Skeat intercedera em sua defesa, de modo que ali ficou, para apelar para ele.

- Roubou-me tudo o que eu tinha - disse, apontando para o cavaleiro que se afastava. - Tudo!

- Sabes o que diz a mulher, Tom? - perguntou Skeat.

- Não gosta de sir Simon - respondeu Thomas, lacónico, encostado ao arção, a olhar para Jeanette.

- Acalma-a, por amor de Deus - implorou Skeat, voltando-se na sela. - Jake? Vê se há água e feno para os cavalos. Peter mata dois bezerros para que possamos comer, antes do pôr do Sol. E vós todos? Deixai de olhar para a mulher de boca aberta e tratai de vos instalardes!

- Ladrão! - gritou Jeanette, atrás de sir Simon, voltando-se logo para Thomas.

- E vós, quem sois?

- O meu nome é Thomas, madame - deslizou de cima da sela e atirou as rédeas a Sam. - O conde ordenou-nos que viéssemos viver para aqui - continuou. - E que vos protegêssemos.

- Que me protegessem!? - Jeanette olhou-a furiosa. - Sois todos ladrões! Como podereis proteger-me? Há um lugar no Inferno para os gatunos como vós, e é parecido com a Inglaterra. Sois ladrões, todos, agora ide! Ide!

- Não vamos! - disse Thomas em tom firme.

- Como podeis aqui ficar? - perguntou Jeanette. - Sou viúva! Não é próprio ter-vos aqui.

- Estamos aqui, madame - disse Thomas. - Teremos de tirar o melhor partido possível de tudo isto. Não nos vamos intrometer. Mostrai-me onde são os vossos aposentos privados e asseguro-vos que ninguém lá entrará.

- Vós? Assegurais-me? Ah! - Jeanette deu meia volta, mas arrependeu-se imediatamente. - Quereis que vos mostre os meus aposentos, não é verdade? Para saberdes onde se encontram os meus bens de valor? É isso? Quereis que vos mostre onde me podeis roubar? Porque será que não vos entrego tudo já?

Thomas sorriu.

- Pensei que tínheis dito que sir Simon já vos tinha roubado tudo.

- Levou tudo, tudo! Não é um gentil-homem. É um porco. É isso mesmo. - Jeanette fez uma pausa, para procurar um insulto apropriado. - É inglês! - Cuspiu para os pés de Thomas e abriu a porta da cozinha. - Vedes esta porta, inglês? Lá dentro é tudo privado. Tudo! - entrou, bateu com a porta para imediatamente a voltar a abrir de novo. - E o duque vem aí. O verdadeiro duque, não a criança ranhosa que vos serve de fantoche. Assim, haveis todos de morrer. Pronto! - A porta bateu de novo.

Will Skeat soltou uma gargalhada.

- Também não gosta de ti, Tom! Que dizia a mulher?

- Que havíamos todos de morrer.

- Pois, isso é verdade. Mas nas nossas camas, pela graça de Deus!

- E disse para não passarmos aquela porta.

- Há muito espaço cá fora - disse Skeat, placidamente, vendo um homem erguer um machado para matar um vitelo. O sangue correu pelo pátio, atraindo uma matilha de cães que imediatamente se puseram aos saltos enquanto dois arqueiros começavam a cortar o animal, que ainda estremecia.

- Escutai! - Skeat subira a um cepo que se encontrava junto ao estábulo e gritava agora a todos os seus homens. - O conde deu-nos ordens para que a mulher que cuspiu em cima de Tom não fosse molestada. Compreendem, filhos de uma cabra? Tratem de conservar os calções apertados, quando ela andar por perto, porque, senão, capo-vos! Tratem-na bem e não passem por aquela porta. Já gozaram bastante, de modo que agora podem dedicar-se um pouco a ser soldados.



O conde de Northumberland partiu uma semana depois, levando consigo a maior parte do seu exército, para a fortaleza de Finisterra, onde se aquartelavam os apoiantes do duque John. Deixara Richard Totesham a comandar a nova guarnição, mas também investira sir Simon Jekyll como seu delegado.

- O conde não quer esse bastardo - disse Will Skeat para Thomas. - Por isso no-lo impingiu.

Como Skeat e Totesham eram ambos capitães independentes, não havia invejas entre eles. Os dois homens respeitavam-se mutuamente e, enquanto Totesham e os seus homens ficavam em La Roche-Derrien para fortalecerem as suas defesas, Skeat percorria o campo, para castigar quem pagasse as rendas e prestasse vassalagem ao duque Charles. Os hellequin tornaram-se assim uma maldição no norte da Bretanha.

Não era difícil arruinar uma terra. As casas e celeiros podiam ser feitos de pedra, mas os telhados ardiam. O gado era capturado e, se houvesse demasiados animais que não pudessem ser transportados, matavam-nos e lançavam as carcaças para dentro dos poços, de modo a inquinarem a água. Os homens de Skeat queimavam tudo o que ardia, partiam tudo o que se quebrava e roubavam tudo o que pudesse ser vendido. Matavam, violavam e saqueavam. O medo que lhes tinham, levava as pessoas a abandonar as quintas, deixando a terra desolada. Eram os cavaleiros do demónio e cumpriam a vontade do rei Eduardo ao provocar a devastação na terra do inimigo.

Destruíam aldeia atrás de aldeia - Kervec e Lanvellec, Saint Laurent e Lês Sept Saints, Tonquedec e Berhet, bem como mais de uma vintena de lugares cujos nomes nunca souberam. Era Natal e, na pátria, arrastavam-se cepos de madeira pelos campos endurecidos pela geada, levando-os para os salões de tectos altos, onde os trovadores cantavam o rei Artur e os seus cavaleiros, os gentis guerreiros que aliavam a compaixão à força. Porém, na Bretanha, os hellequin combatiam numa verdadeira guerra. Os soldados não eram modelos de virtudes; eram homens marcados e cruéis, que tinham prazer na destruição. Lançavam archotes em chamas para o colmo dos telhados e derrubavam o que levara gerações a construir. Locais demasiado pequenos para terem nome, morriam simplesmente e apenas as quintas na larga península entre os dois rios, a norte de La Roche-Derrien, foram poupadas, pois eram necessárias para alimentar a guarnição. Alguns servos, arrancados à terra, foram encarregados de elevar as muralhas de La Roche-Derrien, de limpar o campo de morte diante dos parapeitos e de construir novas barreiras à beira-rio. Foi um Inverno da mais completa miséria para os bretões. As chuvas frias açoitavam a terra, vindas do Atlântico em fúria, e os ingleses destruíam as terras de cultivo.

De vez em quando, deparavam-se com alguma resistência. Um ou outro homem corajoso que disparava a besta atrás de uma sebe, porém os soldados de Skeat eram especialistas em encurralar e matar tais inimigos. Uma dezena de arqueiros desmontava e afastava-o pela frente, enquanto outros vinte lhe galopavam na retaguarda; em breve se ouvia um grito e outra besta era acrescentada aos despojos. O dono era despido, mutilado e enforcado numa árvore, para servir de aviso a outros que não se deveriam meter com os hellequin; as lições davam resultado, pois as emboscadas rareavam cada vez mais. Era o tempo da destruição, e os homens de Skeat enriqueciam. Eram dias difíceis, em que tinham de andar encharcados pela chuva fria, com as mãos gretadas e a roupa molhada e Thomas detestava quando os seus homens tinham de conduzir os cavalos e o gado capturado. Os gansos eram mais fáceis - torcia-se-lhes o pescoço e penduravam-se na sela - porém, as vacas eram lentas, as cabras caprichosas, as ovelhas estúpidas e os porcos obstinados. Felizmente havia sempre nas fileiras rapazes criados no campo, que conseguiam fazer chegar os animais em segurança a La Roche-Derrien. Uma vez lá, eram levados para uma pequena praça que se tinha transformado no matadouro e fedia a sangue. Will Skeat mandava também carradas de despojos para a cidade e muita coisa era enviada para Inglaterra, geralmente objetos humildes: panelas, facas, lâminas de arados, grades de lavoura, tamboretes, baldes, fusos, tudo o que pudesse ser vendido, até que se dissesse que não havia uma casa no sul do país que não possuísse pelos menos um objeto proveniente do saque da Bretanha.

Em Inglaterra cantavam Artur, Lancelote, Gawain e Percival, mas na Bretanha os hellequin andavam à solta.

E Thomas era um homem feliz.



Jeanette detestava ter de o admitir, mas a presença dos homens de Will Skeat só lhe trazia vantagens. Desde que se mantivessem no pátio, sentia-se em segurança dentro de casa e começara a detestar os longos períodos que passavam longe da cidade, pois nessa altura era perseguida por sir Simon Jekyll. Começara a considerá-lo um demónio, ainda por cima estúpido e sem remorsos, um homem grosseiro e insensível, que se convencera que Jeanette nada mais desejava do que ser sua esposa. Por vezes, esforçava-se por lhe fazer uma reverência desajeitada, embora a maior parte das vezes fosse pretensioso e cruel, olhando-a sempre como um cão para uma fatia de carne. Assistia à missa na igreja de São Renano só para a poder cortejar e a condessa tinha a sensação de não poder ir à cidade sem o encontrar. Uma vez, tendo-a visto na ruela junto à igreja da Virgem, saíra-lhe ao caminho, obrigando-a a encostar-se à parede para lhe acariciar os seios com os dedos fortes.

- Creio, madame, que estamos feitos um para o outro - disse-lhe com toda a sinceridade.

- Necessitais de uma mulher com dinheiro - disse-lhe ela, pois umas pessoas da cidade tinham-lhe dado a conhecer da situação financeira de sir Simon.

- Tenho o vosso dinheiro - declarou. - Paguei metade das minhas dívidas e o que receberei dos barcos pagará o resto. Mas não é o vosso dinheiro que desejo, meu amor, mas sim, a vós.

Jeanette tentou escapar-lhe, porém ele encurralara-a de encontro à parede.

- Precisais de um protector, minha querida - disse, beijando-a ternamente na testa. Tinha uma boca curiosamente grande, de lábios carnudos e sempre húmidos como se a língua não coubesse dentro deles. O beijo foi molhado e cheirava a vinho azedo. Poisou-lhe a mão no ventre e, embora Jeanette tentasse livrar-se com todas as suas forças, encostou o corpo ao dela garrando-lhe o cabelo por baixo da touca.

- Havíeis de gostar de Berkshire, minha querida.

- Preferia viver no Inferno.

Quis desatar-lhe as fitas do corpete e Jeanette tentava em vão afastá-lo, sendo salva apenas quando um grupo de homens entrou na rua e o comandante saudou sir Simon, que foi obrigado a voltar-se para lhe responder. Jeanette conseguiu então libertar-se. Deixou-lhe a touca na mão e correu para casa, onde trancou as portas, para se sentar a chorar, furiosa e impotente. Odiava-o.

Odiava todos os ingleses, porém, à medida que as semanas passavam, via que os habitantes da cidade acabavam por aceitar os ocupantes, e que estes gastavam muito dinheiro em La Roche-Derrien. Ao contrário da francesa, podia confiar-se na prata inglesa, que não estava misturada com chumbo ou com latão. A presença dos ingleses impedira o comércio habitual com Rennes e Guingamp, mas os donos dos barcos tinham agora liberdade para fazer trocas com a Gasconha e Inglaterra, de modo que os lucros aumentaram. Os navios dali eram fretados para importar flechas para as tropas inglesas e alguns dos seus proprietários traziam também rolos de lã inglesa que revendiam noutros portos bretões ainda leais ao duque Charles. Poucas pessoas se atreviam a viajar por terra para fora de La Roche-Derrien, pois precisavam de um salvo-conduto de Richard Totesham, o comandante da guarnição; embora o bocado de pergaminho os protegesse dos hellequin, o mesmo não se passava em relação aos fora-da-lei que viviam nas quintas saqueadas pelos homens de Skeat. Porém, os barcos de La Roche-Derrien e Tréguier estavam autorizados a navegar para Oriente até Paimpol ou para Ocidente até Lannion e a comerciar com os inimigos de Inglaterra. Era assim que as cartas saíam de La Roche-Derrien e Jeanette escrevia-as quase diariamente ao duque Charles, dando-lhe notícias das alterações que os ingleses estavam a fazer nas defesas da cidade. Nunca recebeu dele qualquer resposta, mas convencia-se de que os escritos eram úteis.

La Roche-Derrien prosperava, mas Jeanette sofria. O negócio do pai continuava a subsistir, mas, misteriosamente, os lucros desapareciam. Os barcos maiores tinham partido sempre dos cais de Tréguier, que ficava uma hora a montante, e embora Jeanette os enviasse para a Gasconha para trazer vinho para o mercado inglês, nunca tinham regressado. Tinham sido tomados pelos navios franceses ou, provavelmente, os capitães tinham decidido fazer negócio por conta própria. As quintas da família ficavam a sul de La Roche-Derrien, no campo destruído pelos homens de Will Skeat, de modo que as suas rendas tinham desaparecido. Plabennec, a propriedade do marido, estava situada em Finisterra e fora tomada pelos ingleses. Em três anos, Jeanette não vira de lá um tostão, e assim, nas primeiras semanas de 1346 estava desesperada e, mandou chamar a sua casa o advogado Belas.

Este sentiu um prazer perverso em recordar-lhe que ignorara os seus conselhos e que nunca deveria ter equipado os dois barcos para a guerra. Jeanette suportou-lhe a vaidade e depois pediu-lhe que redigisse uma petição de restituição que enviaria para a corte de Inglaterra. A petição solicitava que lhe devolvessem as rendas de Plabennec, de que os invasores se tinham apropriado. Irritava-a ter de pedir dinheiro ao rei Eduardo III de Inglaterra, mas não tinha outra alternativa. Sir Simon Jekyll tinha-a arruinado.

Belas sentou-se à mesa e tomou notas num bocado de pergaminho.

- Quantos moinhos há em Plabennec? - perguntou.

- Havia dois.

- Dois - repetiu, apontando o número. - Sabeis - acrescentou, cauteloso - que o duque reclamou essas rendas?

- O duque? - perguntou Jeanette desconcertada. - De Plabennec?

- O duque afirma que o feudo lhe pertence - disse Belas.

- Pode ser, mas o meu filho é o conde.

- O duque considera-se tutor do rapaz - afirmou Belas.

- Como tendes conhecimento de tais coisas? - perguntou Jeanette. Belas encolheu os ombros.

- Troquei correspondência com os administradores do duque, que estão em Paris.

- Que correspondência? - perguntou Jeanette bruscamente.

- Acerca de outros assuntos - disse Belas com ar terminante. - Assuntos totalmente diferentes. Presumo que as rendas de Plabennec fossem cobradas de três em três meses.

Jeanette suspeitou do advogado.

- Porque haveriam os homens do duque de vos falar em Plabennec?

- Perguntaram-me se conhecia a família. Naturalmente que nada revelei. Estava a mentir, pensou Jeanette. Devia dinheiro a Belas, estava mesmo endividada com metade dos comerciantes de La Roche-Derrien. Sem dúvida, o advogado pensara que as suas contas nunca seriam saldadas, de modo que procurara um acordo final com o duque Charles.

- Monsieur Belas - disse ela friamente. - Quereis dizer-me exactamente aquilo que haveis contado ao duque e porque razão o fizestes?

Belas encolheu os ombros.

- Nada tenho a dizer-vos.

- Como está a vossa esposa? - perguntou Jeanette, afectuosamente.

- As dores vão melhorando, à medida que o Inverno avança, graças a Deus. Está bem, madame.

- Talvez não estivesse tão bem - disse Jeanette maldosamente - se soubesse aquilo que fazeis com a filha do vosso escrivão. Que idade tem a menina, Belas? Doze anos?

- Madame!

- Qual madame, qual quê! - Jeanette bateu com o punho na mesa, quase entornando o tinteiro. - Que se passou então entre vós e os administradores do duque?

Belas suspirou. Tapou o tinteiro, poisou a pena e esfregou as faces magras.

- Sempre cuidei dos assuntos legais desta família - disse. - É meu dever, madame, e por vezes tenho de fazer coisas que não me agradam, mas tudo isso faz parte da minha função - esboçou um sorriso. - Estais endividada, madame. - Podíeis restabelecer as vossas finanças casando com um homem abastado, mas como pareceis relutante em seguir esse caminho, apenas vejo a ruína no vosso futuro. Ruína. Quereis um conselho? Vendei a casa e tereis dinheiro para viver durante dois ou três anos, entretanto, decerto que o duque expulsará os ingleses da Bretanha e restituir-vos-ão Plabennec a vós e a vosso filho.

Jeanette estremeceu.

- Pensais então que estes demónios serão derrotados com tanta facilidade? - ouviu os cascos no pátio e viu que os homens de Skeat tinham regressado. Riam, ainda a cavalo. Não pareciam homens prestes a sofrer uma derrota. De fato, Jeanette receava que fossem imbatíveis, já que notava neles uma confiança jovial que a fazia sentir humilhada..

- Creio, madame, que deveis decidir quem sois - disse Belas. - A filha de Louis Halevy ou a viúva de Henri Chenier? Mercadora ou aristocrata? Se sois mercadora, madame, casai então aqui e dai-vos por satisfeita. Se sois aristocrata, tendes de conseguir dinheiro para ir ter com o duque e arranjar outro marido titular.

Jeanette considerou o conselho impertinente, mas não deu parte de fraca.

- Quanto poderíamos fazer com esta casa? - perguntou então.

- Vou investigar, madame - disse Belas. Já conhecia a resposta, que sabia não poder agradar a Jeanette, já que uma casa na cidade, ocupada pelo inimigo angariaria apenas uma fração do seu verdadeiro valor. Mas não era aquela a altura apropriada para lhe dar tal notícia. Seria melhor, pensou o advogado, esperar até a ver verdadeiramente desesperada, para poder depois poder comprar a casa e as suas quintas arruinadas por quase nada.

- Há uma ponte para atravessar o rio em Plabennec? - perguntou ele, puxando o pergaminho para junto de si.

- Esquecei a petição - disse Jeanette.

- Como queirais, madame.

- Vou pensar nos vossos conselhos, Belas.

- Não vos arrependereis - disse, com ar sério.

Estava perdida, pensou. Perdida e derrotada. Ficar-lhe-ia com a casa e as quintas, o duque reclamaria Plabennec e ela ficaria sem nada. Que era o que bem merecia, por ser teimosa e orgulhosa e se ter querido erguer acima da sua condição.

- Estarei sempre ao serviço de vossa senhoria - disse Belas com humildade. Na adversidade, pensou, um homem inteligente pode sempre lucrar e Jeanette estava pronta para ser enganada. Basta pôr o gato de guarda ao rebanho, para que os lobos tenham um festim.

Jeanette não sabia o que fazer. Não lhe agradava ter de vender a casa, pois receava que o preço fosse muito baixo, mas também não sabia de que outro modo poderia arranjar dinheiro. O duque Charles recebê-la-ia? Nunca se interessara por ela e sempre se opusera ao seu casamento com o sobrinho; mas talvez agora o conseguisse comover. Talvez a protegesse. Decidiu ir rezar para obter orientação; assim, passou um xale em volta dos ombros, atravessou o pátio, ignorando os recém-chegados soldados, e entrou na igreja de São Renano. Lá dentro havia uma imagem da Virgem, tristemente desprovida do seu resplendor dourado, arrebatado pelos ingleses. Jeanette rezava muitas vezes à mãe de Cristo, crente de que ela sentia um amor especial pelas mulheres em apuros.

A princípio, pensou que a igreja mal iluminada estava vazia. Depois, viu um arco inglês encostado a um pilar e um arqueiro ajoelhado junto ao altar-mor. Era um homem bem-parecido, aquele que usava o cabelo apanhado numa trança presa com corda de arco. Tratava-se decerto de um irritante sinal de vaidade. A maior parte dos ingleses usava o cabelo cortado, mas alguns deixavam-no crescer de modo extravagante e pareciam ser esses os mais ostensivamente confiantes. Teve vontade de sair da igreja, porém sentiu-se intrigada pelo arco abandonado e pegou-lhe, espantada com o peso que tinha. A corda estava solta, o que a fez pensar na força necessária para dobrar o arco e atá-la à ponta de osso. Encostou uma das extremidades ao chão de pedra e tentou dobrar o arco; nesse momento uma flecha deslizou pelas lajes e chegou-lhe junto aos pés.

- Se sabeis atar a corda do arco - disse Thomas que continuava de joelhos no altar -, tendes direito a disparar uma flecha.

Jeanette era demasiado orgulhosa para querer que ele a visse sofrer um desaire e a raiva que sentia obrigava-a a tentar. Teve contudo de disfarçar o seu esforço, que mal curvou o arco de teixo. Afastou a flecha com um pontapé.

- O meu marido foi morto por um destes arcos - disse, com amargura.

- Já muitas vezes tenho perguntado a mim próprio - disse Thomas - qual será a razão pela qual vós, bretões ou os franceses, não aprendem a manejá-los. Iniciai vosso filho aos sete ou oito anos, madame, e daqui por dez anos será mortal.

- Há-de lutar como um cavaleiro, tal como o pai. Thomas soltou uma gargalhada.

- Nós matamos os cavaleiros. Ainda não fizeram uma armadura suficientemente forte para resistir a uma flecha inglesa.

Jeanette estremeceu.

- Por que rezais, inglês? - perguntou. - Quereis pedir perdão? Thomas sorriu.

- Dou graças, madame, pelo fato de termos andado seis dias em terreno inimigo, sem perder um único homem - ergueu-se e apontou para uma bela caixa de prata que se encontrava sobre o altar. Tratava-se de um relicário com uma tampa de cristal ornamentada com contas de vidro colorido. Thomas espreitara a tampa e nada vira, senão um vulto escuro do tamanho do polegar de um homem.

- O que é? - perguntou.

- A língua de São Renano - respondeu Jeanette, em tom de desafio. - Foi roubada quando viestes para a nossa cidade, mas Deus é grande, de modo que o ladrão morreu no dia seguinte e recuperámos a relíquia.

- Deus é de fato grande - disse Thomas secamente. - E quem foi São Renano?

- Um grande pregador - esclareceu ela. - Expulsou os nains e os qorics das nossas terras. Ainda existem nas que ficaram desertas, porém uma oração ao santo, afasta-os imediatamente.

- Nains e gorics? - perguntou Thomas.

- São espíritos - disse ela. - Malignos. Antigamente assombravam toda a terra e eu rezo todos os dias para que o santo afaste os hellequin como expulsou os nains. Sabeis o que são hellequin?

- Somos nós - respondeu Thomas orgulhoso. Ela franziu o rosto ao ouvir tal tom de voz.

- Os hellequin são os mortos sem alma - disse em voz gelada. - Tão maus em vida que o diabo não os quer castigar no Inferno, pois aprecia-os muito. Oferece-lhes cavalos e solta-os por entre os vivos - Jeanette ergueu o arco negro e apontou para a placa de prata pregada na curvatura. - Ten-des até a figura do diabo no vosso arco.

- É um yale - explicou Thomas.

- É um demónio - insistiu ela, atirando-lho.

Thomas apanhou-o, pois era demasiado jovem para resistir a exibir-se e atou naturalmente a corda. Pareceu fazê-lo sem o menor esforço.

- Rezai a São Renano que eu rezarei a São Guinefort - disse ele. - Veremos qual deles é mais forte.

- Guinefort? Nunca ouvi falar dela.

- Dele - corrigiu Thomas. - E vivia em Lyonnaise.

- Rezais a um santo francês? - perguntou Jeanette, intrigada.

- Sempre - disse Thomas, tocando na pata mumificada do cão que trazia ao pescoço. Nada mais disse a Jeanette acerca do santo que era o preferido do pai - que nos seus melhores momentos se rira da história. Segundo o pai de Thomas, Guinefort fora um cão, o único animal a ser canonizado. O animal salvara um bebé de um lobo, fora martirizado pelo dono, que pensara que o cão tinha comido a criança quando, afinal, este estava escondido atrás do berço. «Rezem ao bendito São Guinefort!» tinha sido a reação do padre Ralph a todas as crises domésticas e Thomas adoptara o santo como seu. Por vezes, interrogava-se se este não intercederia no céu, pois os ganidos e latidos de Guinefort talvez fossem tão eficazes como as súplicas de qualquer outro santo, mas tinha a certeza de que poucas pessoas usariam o cão como seu representante junto de Deus. Talvez por isso, ele recebesse uma protecção especial. O padre Hobbe ficara chocado ao ouvir falar de um cão sagrado, mas Thomas, embora partilhando o divertimento do pai, considerava agora genuinamente que o animal era o seu guardião.

Jeanette queria saber mais acerca do bendito São Guinefort, mas não tinha vontade de encorajar quaisquer intimidades com um dos homens de Skeat. Escondeu assim a sua curiosidade e dirigiu-se-lhe de novo num tom gelado.

- Queria falar convosco - disse. - Deveis dizer aos vossos homens e mulheres para não usarem o pátio como latrina. Vejo-os da minha janela. É repugnante! Talvez se costumem comportar assim em Inglaterra, mas estamos na Bretanha. Podeis servir-vos do rio.

Thomas acenou afirmativamente, mas nada disse. Pegou no arco e percorreu a nave, que tinha as paredes altas cobertas de redes de pesca a secar. Foi até ao extremo poente da igreja, lugubremente decorado com um quadro do juízo final. Os bons desapareciam por entre as traves, enquanto os pecadores condenados caíam num inferno de chamas, aclamados por anjos e santos. Thomas deteve-se diante do quadro.

- Já haveis notado que as mulheres mais bonitas caem sempre no Inferno e as feias vão para o céu? - perguntou.

Jeanette quase sorriu, já que muitas vezes se tinha interrogado acerca dessa mesma questão, mas calou-se e nada disse enquanto Thomas percorria a nave e recuava diante de um quadro de Cristo caminhando sobre um mar cinzento e com ondas brancas, como o oceano na Bretanha. Um cardume de cavalas mostravam a cabeça fora das águas, para observar o milagre.

- Tendes de entender, madame, que os nossos homens não gostam de se sentir mal recebidos - disse Thomas, olhando para a cavala curiosa. - Nem sequer os deixais usar a cozinha. Porque não? É suficientemente grande e gostariam de ter um sítio para secar as botas depois de cavalgarem numa noite de chuva.

- Porque haveria eu de ter ingleses na minha cozinha? Para também se servirem dela como se fosse uma latrina?

Thomas voltou-se e olhou-a.

- Não tendes respeito por nós, madame. Porque teremos então de respeitar a vossa casa?

- Respeito! - disse a palavra em tom trocista. - Como poderia respeitar-vos? Tudo o que para mim era precioso foi-me roubado. Roubado por vós!

- Por sir Simon Jekyll - corrigiu Thomas.

- Vós ou sir Simon, qual será a diferença? - perguntou Jeanette. Thomas pegou na flecha e meteu-a na aljava.

- A diferença, madame, é que, de vez em quando, eu falo com Deus, enquanto sir Simon pensa que é Deus. Pedirei aos rapazes que urinem no rio, mas duvido que vos queiram agradar assim tanto - sorriu-lhe e desapareceu.



A Primavera coloria a terra de verde, dando um brilho às árvores e enchendo de flores os atalhos serpenteantes. O musgo novo crescia no colmo, havia morugem branca nas sebes e os guarda-rios rodopiavam por entre as novas folhas amarelas dos salgueiros da margem. Os homens de Skeat tinham de se afastar cada vez mais de La Roche-Derrien para conseguirem novos saques e as longas cavalgadas faziam-nos aproximar perigosamente de Guingamp, quartel-general do duque Charles, apesar da guarnição da cidade raramente sair para desafiar os assaltantes. Guingamp ficava a sul e Lannion, a oeste, era uma cidade mais pequena, com uma guarnição muito mais beligerante, inspirada por sir Geoffrey de Pont Blanc, cavaleiro que jurara levar um dia os homens de Skeat acorrentados para lá. Anunciara que os ingleses arderiam na fogueira na praça da cidade, pois eram hereges, e criaturas do demónio.

Will Skeat não se preocupava com a ameaça.

- Talvez perdesse umas horas de sono, se o patife tivesse bons arqueiros - dissera a Thomas. - Mas não tem, por isso pode dizer disparates à vontade. É mesmo assim que se chama?

- Geoffrey da Ponte Branca.

- Bastardo imbecil. É bretão ou francês?

- Disseram-me que era francês.

- Terei então de lhe dar uma lição, não é verdade?

Sir Geoffrey mostrou ser um aluno pouco persistente. Will Skeat aproximava-se cada vez mais de Lannion, queimando casas à vista das muralhas, tentando atrair sir Geoffrey a uma emboscada de arqueiros. Mas este tinha visto o que as setas inglesas faziam aos cavaleiros, de modo que se recusava a conduzir os homens numa carga violenta que, inevitavelmente terminaria num monte de cavalos a relinchar e homens ensanguentados. Pelo contrário, perseguia Skeat, procurando um local para armar uma emboscada aos ingleses. Porém, tal como sir Geoffrey, Skeat não era imbecil e, durante três semanas, os dois exércitos andaram em círculos, atrás um do outro. A presença de sir Geoffrey obrigava Skeat a abrandar, mas não detinha a destruição. As duas forças defrontaram-se por duas vezes, e em ambas, sir Geoffrey fez avançar a pé os seus besteiros, na esperança que dessem cabo dos arqueiros de Skeat, mas os arcos grandes venceram das duas vezes e sir Geoffrey retirou, sem forçar uma luta que sabia ir perder. Depois do segundo choque inconclusivo, tentou mesmo apelar para a honra de Will Skeat. Avançou, sozinho, vestido com uma armadura tão bela como a de sir Simon Jekyll, embora o seu elmo fosse uma panela antiquada, com buracos para os olhos. A sua capa e o caparazão do cavalo eram azuis-escuros, com pontes brancas bordadas, a mesma insígnia que se via no escudo. Trazia uma lança pintada de azul, da qual pendia um lenço branco para mostrar que vinha em paz. Skeat avançou para ir ter com ele, levando Thomas como intérprete. Sir Geoffrey ergueu a viseira e passou a mão pelo cabelo molhado de suor. Era um homem jovem, loiro e de olhos azuis, com um rosto bem-humorado, que fez Thomas sentir que, se não se tratasse de um inimigo, teria gostado dele. Sir Geoffrey sorriu, enquanto os dois ingleses continham os cavalos.

- É muito aborrecido dispararmos flechas um ao outro por entre as sombras - disse. - Sugiro que venhais até ao meio do campo com os vossos homens-de-armas e que nos defrontemos em iguais condições.

Thomas nem se deu ao trabalho de traduzir, pois sabia qual seria a resposta de Skeat.

- Tenho uma idéia melhor - disse. - Trazeis vós os vossos homens-de-armas e nós os nossos arqueiros.

Sir Geoffrey pareceu desconcertado.

- Sois vós o comandante? - perguntou a Thomas. Pensara que o capitão fosse Skeat, o homem mais velho e grisalho, mas este mantinha-se em silêncio.

- Perdeu a língua no combate com os escoceses - disse Thomas. - Por isso falo por ele.

- Então dizei-lhe que desejo uma luta honrada - disse animadamente sir Geoffrey. - Deixai os meus cavaleiros competir com os vossos - sorriu, como se quisesse mostrar que a sua sugestão tinha tanto de razoável, como de cavalheiresca e ridícula.

Thomas traduziu para Skeat, que se voltou na sela e cuspiu para cima dos trevos.

- Ele diz que os nossos arqueiros se defrontarão com os vossos soldados - declarou Thomas. - Uma dúzia dos nosso arqueiros contra vinte dos vossos homens-de-armas.

Sir Geoffrey abanou tristemente a cabeça.

- Vós, ingleses, não tendes qualquer sentido desportivo - disse, enfiando na cabeça a panela forrada de couro, para depois se afastar.

Thomas contou a Skeat o que se tinha passado entre os dois.

- Que patife imbecil! - comentou Skeat. - O que queria ele? Um torneio? Quem pensa ele que somos? Os cavaleiros dessa tal Távola Redonda? Não sei o que acontece a algumas pessoas. Pões-lhes o sir a frente do nome e ficam com os miolos ocos. Lutam contra o ar! Quem já ouviu tal coisa? Quando se luta honestamente, perde-se. Que grande idiota!

Sir Geoffrey da Ponte Branca continuou a perseguir os hellequin, mas Skeat não lhe deu oportunidade para lutar. Havia sempre um enorme bando de arqueiros a vigiar as forças do francês e, sempre que os homens de Lannion se tornavam ousados demais, o mais provável era que lhes enfiassem flechas de penas brancas nos cavalos. Assim, sir Geoffrey ficou reduzido a uma sombra, mas uma sombra irritante e persistente, que seguia os homens de Skeat quase até às portas de La Roche-Derrien.

Os dissabores ocorreram da terceira vez que decidiu perseguir Skeat e aproximar-se da cidade. Sir Simon Jekyll ouvira falar de sir Geoffrey e, avisado pela sentinela da torre mais alta da igreja, da aproximação dos homens de Skeat, conduziu vinte soldados da guarnição ao encontro dos hellequin. Skeat estava a pouco mais de uma milha da cidade e sir Geoffrey com cinquenta soldados e outros tantos arqueiros a cavalo, cerca de meia milha mais atrás. Os franceses não tinham causado grandes problemas a Skeat e, se sir Geoffrey queria voltar para Lannion e dizer que tinha perseguido os hellequin até à sua toca, então Skeat estava disposto a dar-lhe essa satisfação.

Depois chegou sir Simon e tudo se transformou em exibição e arrogância. As lanças inglesas ergueram-se, as viseiras dos elmos fecharam-se e os cavalos empinaram-se. Sir Simon galopou ao encontro dos cavaleiros franceses e bretões, desafiando-os aos berros. Will Skeat seguiu-o, aconselhando-o a deixá-los em paz, mas o homem do Yorkshire gastava em vão o seu fôlego.

Os homens-de-armas de Skeat vinham à frente da coluna escoltando o gado capturado e três carroças cheias de despojos, enquanto que a retaguarda era formada por sessenta arqueiros a cavalo. Esses sessenta homens tinham acabado de chegar ao bosque frondoso, onde o exército acampara durante o cerco a La Roche-Derrien e, a um sinal de Skeat, separaram-se em dois grupos e cavalgaram em direcção às árvores, de ambos os lados da estrada. Aí desmontaram, prenderam as rédeas dos cavalos e deixaram-se ficar, empunhando os arcos à beira das árvores. A estrada ficava entre os dois grupos, ladeada por bermas de altas ervas.

Sir Simon colocou o cavalo diante de Will Skeat.

- Quero trinta dos teus soldados, Skeat - exigiu peremptório.

- Podeis querê-los - respondeu Will Skeat - mas não os levareis.

- Por amor de Cristo, homem, a minha patente é superior à tua! - Sir Simon parecia incrédulo, face à recusa de Skeat. - A minha patente é superior à tua, Skeat! Não estou a pedir-te, imbecil! Estou a ordenar.

Skeat olhou para o céu.

- Parece que vai chover, não é verdade? E não era mau. Os campos estão secos e há pouca água nos ribeiros.

Sir Simon estendeu a mão e agarrou o braço de Skeat, obrigando o outro a voltar-se para ele.

- Tem cinquenta cavaleiros - disse sir Simon, referindo-se a sir Geoffrey de Pont Blanc. - Eu tenho vinte. Dá-me trinta homens e faço-o prisioneiro. Só vinte! - implorava agora, tendo perdido toda a arrogância. Era esta a oportunidade que tinha de combater numa verdadeira escaramuça, cavaleiro contra cavaleiro e o vencedor teria o renome e o troféu de homens e cavalos capturados.

Todavia Will Skeat já conhecia aquela conversa.

- Não estou aqui para brincar - disse, sacudindo o braço para se libertar. - E podeis dar-me ordens até que nasçam asas às vacas, mas não levareis um único dos meus homens.

Sir Simon parecia angustiado, porém, nessa ocasião, sir Geoffrey de Pont Blanc decidiu o assunto. Viu que o número dos seus soldados era superior ao dos cavaleiros ingleses e ordenou então que trinta dos seus seguidores recuassem e se fossem juntar aos besteiros. Agora, os dois exércitos estavam iguais e sir Geoffrey aproximou-se, no seu garanhão negro coberto com o caparazão azul e com uma máscara de cabedal a proteger-lhe o focinho. Sir Simon cavalgou ao seu encontro, envergando a armadura nova, porém o seu cavalo não tinha caparazão nem máscara e ele queria consegui-las tanto como desejava combater. Durante todo o Inverno suportara a miséria de uma guerra de camponeses, feita só de estrume e assassínios, e agora, o inimigo oferecia-lhe honra, glória e a possibilidade de capturar bons animais, armaduras e belas armas. Os dois homens saudaram-se, baixando as lanças, declinaram os seus nomes e trocaram cumprimentos.

Will Skeat juntara-se a Thomas, no bosque.

- Podes ser um perfeito idiota, Tom - disse Skeat. - Mas há gente mais estúpida do que tu. Olha para aqueles bastardos imbecis! Entre os dois, não reúnem um cérebro que se aproveite. Se os sacudíssemos pelos tornozelos, só lhes sairia estrume seco pelas orelhas - cuspiu.

Sir Geoffrey e sir Simon acordaram as regras do combate. Verdadeiras regras de torneio, mas com a morte para dar tempero ao desporto. Concordaram em que um homem desmontado ficaria fora de combate, e seria poupado, mas poderia ser feito prisioneiro. Desejaram felicidades um ao outro e cavalgaram para junto dos seus homens.

Skeat prendeu o cavalo a uma árvore e enrolou a corda do arco.

- Há um sítio em York onde podemos ir ver os loucos - disse. - Estão metidos em jaulas e pagamos uma moeda para os podermos olhar e rir deles. Esses dois tontos deveriam lá estar.

- A dada altura o meu pai esteve louco - afirmou Thomas.

- Não me espanta nada, rapaz, não me espanta nada - disse Skeat. Enrolou a corda do arco na madeira trabalhada com cruzes.

Os seus arqueiros observavam os soldados à beira do bosque. Como espectáculo era assombroso, parecia um torneio, só que, naquele prado primaveril não havia juízes para pouparem a vida de um homem. Os dois, grupos de cavaleiros aprontaram-se. Os escudeiros apertavam as cintas, os homens ergueram as lanças e verificaram se as correias dos escudos estavam bem presas. As viseiras fechavam-se com um ruído metálico, transformando o mundo dos cavaleiros num local escuro, fendido apenas por riscos; de luz do dia. Soltaram as rédeas, pois, a partir daquele instante, os bem , treinados corcéis seriam guiados por toques de esporas e pressão dos joelhos; os cavaleiros precisavam de ambas as mãos para os escudos e para as armas. Alguns homens usavam duas espadas, uma, mais pesada, para cortar e outra mais fina, para apunhalar e ambas tinham de deslizar perfeitamente das bainhas. Outros entregaram as lanças aos escudeiros, para terem a mão livre e poderem fazer o sinal da Cruz, recuperando-as logo a seguir. Os cavalos batiam violentamente com as patas no solo, depois, sir Geoffrey baixou a lança para dar o sinal de que estava pronto e o mesmo fez sir Simon antes que os quarenta cavaleiros esporeassem as montadas, obrigando-as a avançar. Não eram estas as éguas leves e os cavalos castrados utilizados pelos arqueiros, mas sim pesados corcéis, todos eles garanhões, suficientemente fortes para poderem transportar o peso de um homem com a sua armadura. Os animais resfolegavam, abanavam as cabeças e partiram a trote, assim que os cavaleiros baixaram as lanças compridas. Um dos homens de sir Geoffrey cometeu o erro de principiante de baixar demasiado a sua, de modo que a ponta bateu na turfa seca, mas afortunadamente não caiu da montada. Deixou a arma para trás e empunhou a espada. Os cavaleiros puseram os cavalos num galope leve e um dos homens de sir Simon voltou à esquerda, provavelmente porque o animal estava mal treinado, e foi embater no seguinte. Houve um movimento de montadas a colidir por toda a linha, quando as esporas recuaram a exigir o galope. Depois atacaram.

O som das lanças de madeira a bater nos escudos e nas cotas de malha imitava bem o do rachar dos ossos. Dois cavaleiros foram derrubados das suas altas selas, mas os escudos apararam a maior parte dos golpes de lança e, depois, os cavaleiros deixavam cair as armas partidas, enquanto galopavam por entre os oponentes. Agitavam as rédeas e empunhavam as espadas, mas os arqueiros, que observavam o combate, apercebiam-se de que o inimigo tinha conseguido ganhar vantagem. Os dois cavaleiros derrubados eram ingleses e, como alinhamento dos homens de sir Geoffrey era muito mais apertado, quando se voltaram, para erguer as armas na refrega, fizeram-no como um grupo disciplinado, que atacou os homens de sir Simon, fazendo entrechocar espada contra espada. Um inglês saiu da refrega sem a mão. As patas dos cavalos cuspiam pó e turfa. Um cavaleiro sem montada afastou-se, a coxear. As espadas batiam como martelos em bigornas. Os homens gemiam, ao atacar. Um enorme bretão, sem qualquer insígnia no seu escudo liso, erguia um alfange, arma que era em parte espada em parte machado, usando a lâmina larga com extraordinária perícia. Um soldado inglês ficara com o capacete e o crânio cortados ao meio e cavalgava às cegas, afastando-se do combate, com o sangue a correr-lhe pela cota de malha. O cavalo deteve-se a alguns passos do turbilhão e o soldado inclinou-se lentamente, muito lentamente, até escorregar da sela. Ficou com um pé preso no estribo, mas o cavalo não pareceu notar e continuou a pastar na relva.

Dois homens de sir Simon renderam-se e foram retirados, como prisioneiros, pelos escudeiros bretões e franceses. O próprio sir Simon combatia selvaticamente, obrigando o cavalo a dar meia volta, de modo a derrubar dois oponentes. Um foi posto fora de combate com um braço inutilizado e o outro foi castigado pelos rápidos golpes da sua espada roubada. Os franceses tinham ainda quinze homens, mas os ingleses estavam reduzidos a dez, quando o enorme brutamontes decidiu usar o alfange para acabar com sir Simon. Rugia, ao mesmo tempo que carregava, porém o cavaleiro inglês aparou o alfange com o seu escudo e enfiou a espada na cota de malha, sob a axila do bretão. Arrancou-a depois, deixando o sangue a correr do rasgão na malha e na túnica de couro do inimigo. O homem enorme contorceu-se na sela e sir Simon bateu-lhe com a arma na nuca, voltando depois o cavalo para afastar outro assaltante. A seguir recuou para lançar a sua pesada arma contra a maçã de Adão do enorme bretão. O homem deixou cair o alfange e afastou-se, agarrado ao pescoço.

- Ele é muito bom, não achas? - perguntou francamente Skeat. - Tem sebo em vez de miolos, mas sabe combater.

Porém, apesar das proezas de sir Simon, o inimigo vencia e Thomas queria utilizar os arqueiros. Bastava-lhes avançar trinta passos para que os alvoroçados cavaleiros inimigos lhes ficassem ao alcance. Porém Will Skeat abanou a cabeça.

- Nunca mates dois franceses, se puderes matar uma dúzia, Tom - disse, com ar de reprovação.

- Os nossos homens estão a ser derrotados - protestou Thomas.

- É para aprenderem a não ser estúpidos, não achas? - perguntou Skeat, mas depois sorriu. - Espera rapaz, espera, para podermos esfolar o gato como deve ser.

Os soldados ingleses eram obrigados a recuar e apenas sir Simon combatia com coragem. Era de fato muito bom. Afastara do combate o enorme bretão, pondo em fuga, ao mesmo tempo e com enorme perícia, quatro inimigos. Porém os restantes soldados, ao verem que a batalha estava perdida e sem se puderem chegar a ele, já que havia demasiados cavaleiros inimigos à sua volta, acabaram por fugir.

- Sam! - gritou Will do outro lado da estrada. - Quando te fizer sinal, pegas numa dúzia de homens e começas a correr! Ouviste, Sam?

- Começo a correr - respondeu Sam.

Os soldados ingleses, a sangrar e metade deles quase a cair das selas altas, recuaram a toda a pressa pela estrada, em direcção a La Roche-Derrien. Os franceses e os bretões tinham rodeado sir Simon, porém sir Geoffrey da Ponte Branca era um homem sonhador e recusou-se a tirar a vida a um opositor tão valente, de modo que ordenou aos seus homens que poupassem o cavaleiro inglês.

Sir Simon, suando como um porco, sob a armadura de couro e ferro, ergueu a viseira do elmo.

- Não me rendo - disse a sir Geoffrey. A armadura ficara riscada, o fio da espada embotado, mas a boa qualidade das duas tinha-o auxiliado na luta. - Não me rendo - repetiu. - Continuai a combater!

Sir Geoffrey inclinou-se na sela.

- Saúdo a vossa valentia, sir Simon! - disse, magnânimo. - Liberto-vos com todas as honras. - Acenou aos soldados para que se afastassem e miraculosamente sir Simon, vivo e livre, pôde cavalgar de cabeça erguida. Conduzira os seus homens à desgraça e à morte, porém saíra do combate com todas as honras.

Sir Geoffrey viu que atrás do seu opositor, a longa estrada estava cheia de soldados em fuga e, atrás deles, o gado capturado e as carroças cheias de despojos, escoltadas pelos homens de Skeat. Depois, Will Skeat gritou para Sam e logo a seguir sir Geoffrey pôde ver um bando de arqueiros em pânico cavalgando para norte, a toda a velocidade.

- Vai cair na história - disse Skeat com ar entendido. - Vamos lá ver se não cai.

Nas últimas semanas, sir Geoffrey provara não ser um idiota, mas nesse dia perdeu a cabeça. Viu a oportunidade de fazer frente aos odiados arqueiros hellequin e de reaver três carroças de despojos. Assim, ordenou aos restantes trinta soldados que se juntassem a ele e, abandonando os seus quatro prisioneiros e nove cavalos capturados ao cuidado dos besteiros, acenou aos cavaleiros para que avançassem. Will Skeat esperara várias semanas por aquilo.

Sir Simon voltou-se, alarmado, ao ouvir o som de cascos. Ao ver quase cinquenta homens de armadura, montando enormes corcéis de batalha, que carregavam na sua direcção, pensou por um momento que o tentavam capturar e, assim, esporeou o cavalo em direcção ao bosque, mas viu que os cavaleiros franceses e bretões passavam por ele a galope rápido. Sir Simon baixou-se sob os ramos e praguejou na direcção de Will Skeat, que fingiu não o ver. Observava o inimigo.

Sir Geoffrey de Pont Blanc conduziu a carga, pensando apenas na glória. Esquecera os arqueiros no bosque ou então julgou que todos tinham fugido, depois da derrota dos homens de sir Simon. Estava na eminência de uma grande vitória. Recuperaria os despojos e, melhor ainda, conduziria os temíveis hellequin a um destino ardente na praça do mercado de Lannion.

- Agora! - gritou Skeat com as mãos em concha. - Agora!

Havia arqueiros de ambos os lados da estrada que avançaram por entre a folhagem e dispararam. A segunda flecha lançada por Thomas partira no ar ainda antes da primeira descer. Olha, dispara, não penses, pois não é necessário fazer pontaria, já que o inimigo se apresenta num grupo compacto e tudo o que havia a fazer era disparar flechas em direcção aos cavaleiros. Num abrir e fechar de olhos, a carga seria reduzida a um emaranhado de garanhões em fuga, homens derrubados, cavalos aos guinchos e sangue derramado. O inimigo não tinha possibilidades. Na retaguarda, alguns conseguiram voltar-se e partir a galope, porém, a maioria tinha sido encurralada dentro de um apertado anel de arqueiros que disparavam apontando inexoravelmente através das cotas de malha e do couro. Um homem que apenas estremecesse, convidava imediatamente três ou quatro flechas. O monte de ferro e carne estava trespassado por penas e, mesmo assim, as flechas continuavam a chegar, cortando as cotas de malha e enterrando-se na carne dos animais. Apenas uma mão-cheia de homens, na retaguarda, e um único, à frente da carga, conseguiram sobreviver.

Este último era o próprio sir Geoffrey. Encontrava-se dez passos adiante dos seus homens e talvez fosse por isso que fora poupado, ou talvez os arqueiros se tivessem sentido impressionados pelo modo como tratara sir Simon. Fosse porque fosse, adiantara-se à carnificina como uma alma enfeitiçada. Nem uma flecha se aproximou, mas, ao escutar os gritos e o estrépito atrás de si, abrandou a montada, para ver o horror. Incrédulo, olhou tudo aquilo por instantes, obrigando o garanhão a recuar até junto do monte espetado por setas que tinham sido os seus homens. Skeat gritou a alguns do seus arqueiros para se voltarem para os besteiros inimigos, mas estes, ao verem o destino dos soldados, não tinham vontade de enfrentar as flechas inglesas. Retiraram para Sul.

Nessa altura, espalhou-se uma estranha quietude. Os cavalos caídos estremeciam e alguns batiam na estrada com os cascos. Um homem gemeu, outro invocou Cristo e os restantes limitaram-se a chorar. Thomas, ainda com uma flecha metida no arco, ouvia as cotovias, o grito das tarambolas e o murmúrio do vento por entre as árvores. Caiu um pingo de chuva, espalhando o pó da estrada, mas foi apenas uma gota solitária, pertencendo a um aguaceiro que se afastava para Ocidente. Sir Geoffrey parou o cavalo junto aos seus mortos e moribundos, como se quisesse convidar os arqueiros a acrescentar o seu cadáver ao monte ensanguentado e raiado de penas de ganso.

- Estás a ver, Tom? - perguntou Skeat. - Basta esperar algum tempo e os idiotas fazem sempre o que desejas. Muito bem, rapazes! Dai cabo dos bastardos! - Os homens largaram os arcos, empunharam espadas e correram na direcção dos homens que estrebuchavam.

Porém, Skeat deteve Thomas.

- Vai dizer ao estúpido da ponte branca que se ponha a andar daqui. Thomas dirigiu-se ao francês, que deveria ter pensado que a sua rendição era aguardada, pois tirou o elmo e estendeu o punho da espada.

- A minha família não pode pagar um grande resgate - disse, como se o lamentasse.

- Não sois prisioneiro - afirmou Thomas.

Sir Geoffrey pareceu perplexo, ao ouvir tais palavras.

- Libertais-me?

- Não vos queremos - disse Thomas. - Porque não ides para Espanha? - sugeriu. - Ou para a Terra Santa? Não há hellequin nessas paragens.

Sir Geoffrey embainhou a espada.

- Devo lutar contra os inimigos do meu rei, de modo que terei de ficar por aqui. Mas agradeço-vos - pegou nas rédeas e, nesse preciso momento, sir Simon Jekyll saiu de entre as árvores, apontando a espada a sir Geoffrey.

- É meu prisioneiro! - exclamou para Thomas. - É meu prisioneiro!

- Não é prisioneiro de ninguém - afirmou Thomas. - Deixámo-lo partir.

- Havei-lo deixado partir? - perguntou sir Simon, em tom de desprezo. - Sabeis quem manda aqui?

- O que sei é que este homem não é prisioneiro - disse Thomas. Bateu com força na garupa do cavalo de sir Geoffrey, coberta pelo caparazão, e pôs o animal em movimento. - Espanha ou a Terra Santa - gritou ainda ao cavaleiro.

Sir Simon obrigou o cavalo a fazer meia volta para o seguir, mas viu que Will Skeat estava pronto a intervir para deter a sua perseguição. Voltou-se então para Thomas.

- Não tinhas o direito de o libertar! Não tinhas!

- Ele libertou-vos! - recordou-lhe Thomas.

- Porque foi imbecil. E como foi imbecil, também terei de o ser? - Sir Simon estremecia de raiva. Sir Geoffrey podia ter declarado ser um homem pobre, quase incapaz de conseguir um resgate, mas só o seu cavalo valia pelo menos cinquenta libras e Skeat e Thomas tinham enviado esse dinheiro a trote para sul. Sir Simon via-o partir e depois baixou a lâmina da espada, de modo a ameaçar a garganta de Thomas.

- Desde o primeiro momento em que te vi, que foste insolente - disse. - Sou o homem mais bem-nascido deste campo e sou eu quem decide o destino dos prisioneiros. Compreendes?

- Ele rendeu-se a mim - esclareceu Thomas. - Não a vós. Por isso, não importa em que cama haveis nascido.

- Sois um jovem presumido! - exclamou sir Simon. - Skeat! Quero a recompensa por aquele prisioneiro. Ouviste?

Skeat fingiu não ter ouvido, mas Thomas não teve a sensatez suficiente para o imitar.

- Jesus - disse com desagrado. - Esse homem poupou-vos a vida e não quereis devolver-lhe o favor? Não sois um cavaleiro, sois apenas um selvagem. Ide aquecer o traseiro!

A espada ergueu-se ao mesmo tempo que o arco de Thomas. Sir Simon olhou para a ponta cintilante da flecha, adornada de penas brancas e teve a prudência suficiente de não atacar. Preferiu embainhar a espada, com toda a força, obrigando depois o corcel a dar a volta e, picando-o com as esporas, partiu.

Os homens de Skeat ficaram então, para apartar os mortos do inimigo. Eram dezoito e mais vinte e três gravemente feridos. Havia também dezasseis cavalos a sangrar e vinte e quatro corcéis mortos, o que, conforme Skeat fez notar era um desperdício de boa carne de cavalo.

E sir Geoffrey aprendera a lição.



Houve um enorme alvoroço em La Roche-Derrien. Sir Simon Jekyll queixou-se a Richard Totesham que Will Skeat não lhe prestara apoio durante a batalha, afirmando, ao mesmo tempo, ter sido o responsável pela morte e pelos ferimentos de quarenta e um soldados inimigos. Gabou-se de ter vencido a escaramuça, para logo voltar ao assunto da perfídia de Skeat, mas Richard Totesham não esteve na disposição de aturar as queixas de sir Simon.

- Haveis ou não vencido a luta?

- É claro que vencemos! - Sir Simon pestanejava indignado. - Estão mortos, não estão?

- Então para que precisastes dos homens-de-armas de Will? - perguntou Totesham.

Sir Simon procurou em vão uma resposta.

- Foi impertinente comigo - queixou-se.

- Tereis de resolver vós o assunto com ele, não eu - disse Totesham, recusando-se abruptamente a falar mais do assunto. Porém, ficou a pensar na conversa e nessa noite falou com Skeat.

- Quarenta e um mortos e feridos? - perguntou em voz alta. - Deve ser um terço dos soldados de Lannion.

- Mais ou menos, sim.

O aquartelamento de Totesham ficava perto do rio e da janela da casa podia ver-se a água correr sob os arcos da ponte. Os morcegos esvoaçavam em volta da torre da barbacã que guardava o extremo mais afastado, enquanto que as casas para além do rio estavam iluminadas por um intenso quarto crescente.

- Vão ficar com falta de gente, Will - disse Totesham.

- Não estarão muito satisfeitos, isso com certeza.

- E o local deve estar cheio de coisas valiosas.

- Ai pois está! - concordou Skeat. Muita gente, temendo os hellequin, tinha levado os seus haveres para a fortaleza mais próxima e Lannion deveria estar repleta dessas mercadorias. E o mais importante é que Totesham encontraria aí alimentos. A guarnição recebia-os das quintas a norte de La Roche-Derrien, e também lhes chegavam de Inglaterra, do outro lado do Canal, mas a devastação do campo, provocada pelos hellequin trazia perigosamente a fome para bem perto.

- Deixar aqui cinquenta homens? - Totesham continuava a pensar em voz alta, mesmo sendo desnecessário explicar-se a um soldado tão experimentado como Skeat.

- Vamos precisar de novas escadas - disse este.

- O que aconteceu às velhas?

- Lenha. O Inverno foi frio.

- Um ataque nocturno? - sugeriu Totesham.

- A Lua cheia é daqui a cinco ou seis dias.

- Então, daqui a cinco dias - decidiu Totesham. - E quero os teus homens, Will.

- Se estiverem sóbrios, na ocasião.

- Bem merecem beber, depois do que fizeram hoje - afirmou calorosamente Totesham, sorrindo para Skeat. - Sir Simon queixou-se de ti. Diz que foste impertinente.

- Não fui eu, Dick, foi Tom, o meu rapaz. Disse ao patife que fosse aquecer o traseiro.

- Receio que sir Simon nunca aceite bons conselhos - disse Totesham, gravemente.

E os homens de Skeat também não. Deixara-os à solta na cidade, avisando-os de que passariam mal na manhã seguinte se bebessem demais mas, recusando-se a aceitar o conselho, foram festejar para as tabernas de La Roche-Derrien. Thomas acompanhado por cerca de duas dezenas de amigos e as suas mulheres dirigiram-se para uma estalagem onde cantaram, dançaram e tentaram provocar uma luta contra as ratazanas brancas do duque John, que tiveram a sensatez de não responder à provocação e desapareceram silenciosamente na noite. Momentos depois, entraram dois homens-de-armas, trajando ambos gibões com a insígnia do leão e das estrelas que pertencia ao duque de Northampton. Mesmo vaiados à chegada, suportaram-no com paciência e perguntaram se Thomas estava presente.

- É aquele patife horroroso ali - afirmou Jake, apontando Thomas, que dançava ao som da flauta e do tambor. Os homens-de-armas aguardaram até ele ter terminado a dança e explicaram-lhe que Will Skeat, o comandante da guarnição, queria falar com ele.

Thomas terminou a cerveja.

- O que é que se passa, que não conseguem tomar uma decisão sem mim - disse aos outros arqueiros. - Sou indispensável.

Os arqueiros troçaram, mas soltaram gritos de agrado quando Thomas saiu acompanhado pelos dois homens-de-armas.

Um deles era natural do Dorset e tinha realmente ouvido falar de Hookton.

- Os franceses não atacaram lá? - perguntou.

- Patifes, arrasaram tudo. Duvido que tenha restado alguma coisa - disse Thomas. - Porque razão me quer ver Will?

- Só Deus sabe, porque ele não disse - afirmou um dos homens. Conduziu Thomas na direcção dos aquartelamentos de Richard Totesham, mas depois apontou para um beco escuro. - Estão numa taberna, ali ao fundo. Um sítio que tem uma âncora à porta.

- Ainda bem - disse Thomas. Se não estivesse meio bêbado teria percebido a improbabilidade de Totesham e Skeat o terem mandado chamar a uma taberna, muito menos, à mais pequena que havia na cidade, ao fundo do beco mais escuro, perto do rio. Porém, Thomas de nada suspeitou até estar a meio de uma passagem estreita e ver dois homens saírem de uma porta. Só deu por eles quando recebeu uma pancada na nuca. Deixou-se cair de joelhos e o segundo desferiu-lhe um pontapé no rosto. Foi a seguir espancado por ambos, até não oferecer mais resistência e eles poderem pegar-lhe nos braços e arrastarem-no para dentro de uma pequena oficina. Thomas tinha sangue na boca e o nariz mais uma vez quebrado, uma costela rachada e o ventre a arder de cerveja.

Dentro da oficina, o lume ardia. Por entre os olhos semicerrados, Thomas via a forja. Depois rodearam-no mais homens, para o agredirem a pontapé, obrigando-o a enrolar-se numa vã tentativa de se proteger.

- Basta - disse uma.voz.

Thomas abriu os olhos e viu sir Simon Jekyll. Os dois homens que o tinham trazido da taberna e que tão simpáticos lhe tinham parecido, entravam agora pela porta da oficina e despiam as túnicas falsas, que mostravam a insígnia do duque de Northampton.

- Muito bem - disselhes sir Simon, olhando depois para Thomas. - Os simples arqueiros não mandam os cavaleiros aquecer o traseiro.

Um homem alto, um brutamontes enorme, com cabelo loiro e liso e dentes escuros, encontrava-se junto a Thomas, preparado para o agredir, se respondesse de modo insolente. Mas Thomas conteve-se, preferindo rezar em silêncio a São Sebastião, padroeiro dos arqueiros. Calculou que esta súplica seria demasiado grave para ser deixada à guarda de um cão.

- Despe-lhe os calções, Colley - ordenou sir Simon, aproximando-se do lume. Thomas viu uma enorme panela de três pés junto às brasas ardentes. Praguejou em surdina, apercebendo-se de que seria a ele que lhe aqueceriam o traseiro. Sir Simon espreitou para dentro da panela.

- Ides receber uma lição de cortesia - disse a Thomas, que gemeu quando o brutamontes louro lhe cortou o cinto e baixou os calções. Os outros revistaram-lhe os bolsos, roubando-lhe as moedas que encontraram, bem como uma boa faca e deitaram-no de barriga para baixo, de modo a poderem despejar-lhe água a ferver sobre o traseiro nu.

Sir Simon viu os primeiras penachos de vapor saírem da panela.

- Levem-na para junto dele - ordenou aos homens.

Três soldados do cavaleiro seguravam Thomas, que estava demasiado magoado e fraco para reagir, e que fez a única coisa que podia. Gritou que o queriam assassinar. Encheu os pulmões de ar e gritou o mais alto que foi capaz. Pensou que estava numa pequena cidade cheia de gente e que alguém haveria de o ouvir, de modo que berrou «Assassinos! Assassinos!» para dar o alarme. Um homem agrediu-o no ventre, mas Thomas continuou a gritar.

- Por amor de Deus, calem-no - disse sir Simon em tom de desprezo e Colley, o homem louro, ajoelhou ao lado de Thomas para tentar encher-lhe a boca de palha, que logo foi cuspida.

- Assassinos! - gritou. - Assassinos!

Colley praguejou, pegou numa mão-cheia de lama repugnante e enfiou-a na boca de Thomas, para abafar o alarido.

- Bastardo! - disse batendo-lhe na cabeça. - Bastardo! Sir Simon erguia-se agora junto a Thomas.

- Tens de aprender boas maneiras - disse e olhou para a panela a ferver que era trazida para o pátio da oficina.

Nesse momento abriu-se um portão e alguém apareceu.

- Em nome de Deus, que se passa aqui? - perguntou o homem e Thomas poderia ter entoado um Te Deum em louvor a São Sebastião, se a sua boca não estivesse cheia de lama. O seu salvador era o padre Hobbe que, ouvindo a aflitiva gritaria, viera a correr ao beco para investigar.

- Que fazeis? - perguntou o sacerdote a sir Simon.

- Não é da vossa conta, padre - respondeu este.

- Thomas, és tu? - voltou-se para o cavaleiro. - Por Deus, claro que é da minha conta! - O padre Hobbe tinha mau génio e dava-o agora a conhecer. - Quem diabo pensais ser?

- Cautela, padre - avisou sir Simon com desprezo.

- Cautela? Eu? Se não partirdes daqui imediatamente, enviar-vos-ei a alma para o Inferno - o pequeno padre agarrara o enorme atiçador da forja e empunhava-o como uma espada. - Mandarei para o inferno todas as vossas almas! Daqui para fora! Todos! Todos daqui para fora! Fora! Em nome de Deus, saí! Saí imediatamente!

Sir Simon recuou. Uma coisa era torturar um arqueiro, outra entrar numa contenda com um padre cuja voz era suficientemente alta para atrair ainda mais atenção. Sir Simon disse indelicadamente ao padre Hobbe que este era um patife, por interferir no que não lhe dizia respeito, mas, mesmo assim, retirou-se.

O padre Hobbe ajoelhou ao lado de Thomas e limpou-lhe da boca a maior parte da lama, juntamente com coágulos de sangue e um dente partido.

- Pobre rapaz - disse, ajudando-o a levantar-se. - Vou levar-te para casa, Tom. Levar-te daqui, para te poder lavar.

Thomas precisou de vomitar, mas depois, subindo as calças, caminhou vacilante até casa de Jeanette, apoiando-se sempre no padre. Foi recebido por uma dúzia de arqueiros que queriam saber o que tinha acontecido, porém o padre Hobbe afastou-os.

- Onde é a cozinha? - perguntou.

- Ela não nos deixa lá entrar - disse Thomas, em voz quase ininteligível, devido à boca inchada e às gengivas ensanguentadas.

- Onde é? - insistiu o padre Hobbe.

Um dos arqueiros fez um gesto com a cabeça em direcção à porta, o padre empurrou-a e meteu Thomas lá dentro, levando-o quase em braços. Sentou-o numa cadeira, puxando o castiçal para a extremidade da mesa, de modo a poder observar-lhe o rosto.

- Bom Deus - disse. - Que te fizeram? - Deu-lhe umas pancadinhas na mão, indo depois buscar água.

Jeanette entrou, furiosa, na cozinha.

- Não podeis aqui estar! Saí! - depois viu o rosto de Thomas e vacilou. Se alguém lhe tivesse dito que haveria de ver um arqueiro inglês espancado, sentir-se ia mais que feliz, mas, para sua surpresa, sentiu uma pontada de simpatia.

- Que aconteceu?

- Foi sir Simon Jekyll - conseguiu Thomas dizer.

- Sir Simon?

- É um homem cruel - o padre Hobbe ouvira o nome e vinha da copa com uma enorme tigela de água. - Cruel, muito cruel - falava em inglês. - Tendes panos? - perguntou a Jeanette.

- Ela não fala inglês - disse Thomas, com o sangue a escorrer-lhe pela face.

- Sir Simon atacou-vos? - perguntou. - Porquê?

- Porque o mandei aquecer o traseiro - explicou Thomas, que foi recompensado com um sorriso.

- Ainda bem - disse Jeanette.

Não convidou Thomas a ficar, mas também não lhe ordenou que partisse. Preferiu deixar-se ali ficar a ver o padre lavar-lhe o rosto e depois tirar-lhe a camisa, para lhe ligar a costela partida.

- Diz-lhe que me podia ajudar - sugeriu o padre Hobbe.

- É muito orgulhosa para o fazer - respondeu Thomas.

- Que mundo triste e pecador - declarou o sacerdote, ajoelhando. - Não te mexas, Tom - disse. - Isto vai doer-te como o demónio. - Agarrou-lhe o nariz partido e ouviu-se o som do raspar da cartilagem, antes de Thomas soltar um grito de dor. O padre Hobbe pôs-lhe um pano molhado sobre o nariz. - Deixa-o ficar aí, Tom, e a dor passa. Bom, não propriamente, mas vais habituar-te a ela - sentou-se numa barrica de sal vazia, abanando a cabeça. - Valha-me Deus, Tom, que vamos fazer contigo?

- Já haveis feito - respondeu Thomas. - Estou-vos muito grato. Um dia ou dois e já ando aos saltos como um borrego pelo campo.

- Há muito tempo que o fazes, Tom - disse o padre Hobbe com toda a franqueza. - Sem entender uma única palavra, Jeanette limitava-se a observar os dois homens. - Deus deu-te uma boa cabeça - continuou o padre. - Mas desperdiças o teu espírito, Tom, desperdiça-lo tanto.

- Quereis que eu seja padre? O padre Hobbe sorriu.

- Duvido que servisses de grande coisa à Igreja, Tom. Certamente, poderias acabar como arcebispo, pois és inteligente e desonesto, porém, penso que serás mais feliz como soldado. Mas tens dívidas para com Deus, Tom. Recorda a promessa que fizeste a teu pai! Fizeste-a numa igreja e seria bom para a tua alma que a cumprisses, Tom.

Thomas riu-se e imediatamente desejou não o ter feito, pois a dor percorreu-lhe as costelas. Praguejou, pediu desculpa a Jeanette e voltou os olhos para o padre.

- E, em nome de Deus, padre, como poderei cumprir tal promessa? Nem sei quem foi o patife que roubou a lança.

- Que patife? - perguntou Jeanette, pois reconhecera a palavra. - Sir Simon?

- É um patife - afirmou Thomas. - Mas não é o único - e contou-lhe da lança, do dia em que a sua aldeia fora destruída, a morte do pai e do homem que levava um pendão mostrando três falcões amarelos num campo azul. Contou-lhe a história lentamente, por entre os lábios ensanguentados e, quando terminou, Jeanette encolheu os ombros.

- Quereis então matar esse homem?

- Um dia.

- Merece ser morto - afirmou Jeanette.

Thomas fitou-a por entre os olhos semicerrados, espantado ao ouvir tais palavras.

- Conhecei-lo?

- Chama-se sir Guillaume d'Evecque - disse Jeanette.

- Que diz ela? - perguntou o padre Hobbe.

- Conheço-o - disse Jeanette com ar lúgubre. - Em Caen, de onde é natural, chamam-lhe por vezes o senhor do mar e da terra.

- Porque luta em ambos? - quis saber Thomas.

- É um cavaleiro - explicou Jeanette. - Mas faz também assaltos no mar. Um pirata. O meu pai tinha dezasseis navios e Guillaume d'Evecque roubou três deles.

- Combateu contra vós? - Thomas parecia surpreso.

Jeanette encolheu os ombros.

- Pensa que qualquer navio que não seja francês é inimigo. Nós somos bretões.

Thomas olhou para o padre Hobbe.

- Aí tendes, padre - afirmou alegremente. - Para manter a promessa, tudo o que tenho a fazer é combater contra o cavaleiro do mar e da terra.

O padre Hobbe não compreendera o que fora dito em francês, porém abanava a cabeça tristemente.

- É contigo, o modo como vais cumprir a promessa, Thomas. Mas Deus sabe bem que a fizeste e que ainda nada se passou a esse respeito - tocou na Cruz de madeira que usava ao pescoço, suspensa por uma fita de couro. - E que se há-de fazer com sir Simon?

- Nada - disse Thomas.

- Pelo menos terei de informar Totesham - insistiu o sacerdote.

- Nada, padre - Thomas falava no mesmo tom peremptório. - Prometei. O padre Hobbe olhou desconfiado para Thomas.

- Não estás a pensar vingar-te por tua conta, pois não? Thomas benzeu-se e gemeu por causa da dor na costela.

- A Santa Madre Igreja não nos ordena que mostremos a outra face? - perguntou.

- É verdade - respondeu o padre em tom dúbio. - Mas nunca aprovaria o que sir Simon te fez esta noite.

- Havemos de afastar a sua raiva de um modo mais suave - disse Thomas e o padre Hobbe, impressionado com esta exibição de verdadeira cristandade, acenou com a cabeça e aceitou a decisão de Thomas.

Jeanette seguia a conversa o melhor que podia e entendera pelo menos o sentido das palavras.

- Discutis o que ides fazer com sir Simon? - perguntou a Thomas.

- Vou assassiná-lo - respondeu Thomas em francês. Ela fez-lhe uma careta de desagrado.

- Que idéia tão interessante, inglês. Sereis um assassino e depois enforcam-vos. E então, pela graça de Deus, haverá dois ingleses mortos.

- Que diz ela, Thomas? - perguntou o padre Hobbe.

- Concorda que devo perdoar aos meus inimigos, padre.

- É muito boa mulher, muito boa - disse o padre Hobbe.

- Quereis realmente matá-lo? - perguntou Jeanette friamente.

Thomas estremeceu de dor, mas não estava tão mal, que não conseguisse apreciar a proximidade de Jeanette. Na sua opinião, era uma mulher dura, mas, mesmo assim, tão bela como a Primavera e, tal como todos os homens de Will Skeat, tinha acalentado sonhos impossíveis de a conhecer melhor. A pergunta deu-lhe a oportunidade.

- Matá-lo-ei, senhora - garantiu-lhe. - E, ao matá-lo, reaverei a armadura e a espada de vosso esposo.

Jeanette franziu a testa.

- Podereis fazê-lo?

- Se me ajudardes. Ela fez uma careta.

- Como?

Thomas disse-lhe então e, para seu espanto, ela não recusou a idéia horrorizada. Muito pelo contrário, acenou com a cabeça a sua concordância, um pouco ressentida.

- Deve dar resultado - disse, algum tempo depois. - Realmente, deve dar resultado.

Significava que sir Simon tinha conseguido unir dois inimigos e que Thomas encontrara uma aliada.



A vida de Jeanette estava rodeada de inimigos. Tinha o filho mas, as outras pessoas que amara já haviam morrido e detestava aquelas que lhe restavam. Havia os ingleses, claro, a ocuparem a sua cidade, mas também Belas, o advogado, e os comandantes dos barcos que a tinham enganado, os rendeiros que se tinham aproveitado da presença dos ingleses para não pagarem as rendas e os mercadores que lhe exigiam o dinheiro que não possuía. Era condessa, porém o título não lhe valia de nada. À noite, reflectindo sobre a sua situação, sonhava conhecer um belo campeão, talvez um duque que chegasse a La Roche-Derrien para castigar, um a um, os seus inimigos. Via-os gemer de medo, implorando misericórdia, sem a receber. Mas as manhãs nasciam sem que nenhum duque aparecesse ou os inimigos se encolhessem de terror e os problemas de Jeanette mantiveram-se, até Thomas lhe dizer que a ajudaria a matar o inimigo que, de todos, mais odiava.

Para tal, na manhã após esta conversa com Thomas, Jeanette foi ao aquartelamento de Richard Totesham. Foi muito cedo, na esperança que sir Simon Jekyll se encontrasse ainda na cama, embora fosse essencial que ele tivesse conhecimento da sua visita. Que a soubesse pelos outros, fora o que planeara.

O aquartelamento, tal como a sua própria casa, ficava em frente ao Jaudy e o pátio à beira-rio, apesar da hora matutina, continha já duas dezenas de peticionários que buscavam os favores dos ingleses. Disseram a Jeanette que esperasse junto aos outros.

- Sou a condessa de Armórica - afirmou ao escrivão.

- Deveis esperar, tal como os outros - respondeu-lhe este num mau francês, entalhando numa vara outra marca para contar os molhos de flechas que estavam a ser descarregados de uma barcaça que subira o rio, vinda do porto de Tréguier. Uma outra continha barricas de arenques vermelhos e o cheiro a peixe fez estremecer Jeanette. Comida inglesa! Nem sequer tiravam as tripas aos arenques antes de os fumarem e o peixe saía das barricas coberto com um bolor amarelo-esverdeado. Mesmo assim, os arqueiros comiam-no, deliciados. Tentou escapar ao fedor, atravessando o pátio até onde uma dezena de homens cortava madeira amontoada em cavaletes. Um dos carpinteiros era um homem que, por vezes, tinha trabalhado para o pai de Jeanette, embora se encontrasse quase sempre embriagado e não conseguisse manter um emprego por mais de alguns dias. Estava descalço, esfarrapado, era corcunda e tinha o lábio leporino, mas quando estava sóbrio era um dos melhores operários da cidade.

- Jacques! - chamou Jeanette. - Que estás a fazer? - Falou-lhe em bretão. Jacques afastou a franja dos olhos e cumprimentou-a com a cabeça.

- Estais muito bem, senhora - poucas pessoas entendiam o que dizia, pois o lábio fendido obrigava-o a misturar os sons. - Vosso pai dizia sempre que éreis o seu anjo.

- Perguntei o que estavas a fazer.

- Escadas, senhora, escadas - Jacques limpou um ribeiro de ranho do nariz. Tinha uma úlcera purulenta no pescoço e o cheiro era tão mau como o dos arenques. - Querem seis escadas altas.

- Porquê?

Jacques olhou à direita e à esquerda, para ter a certeza de que ninguém o poderia ouvir.

- O que ele diz - fez um gesto com a cabeça em direcção ao inglês que supostamente estava a vigiar o trabalho. - O que ele diz é que as vão levar para Lannion. E são bastante altas para essa grande muralha, não é verdade?

- Lannion?

- Gosta de cerveja, oh, se gosta - disse Jacques, para explicar a indiscrição do inglês.

- Hei! Oh, jeitoso! - gritou o supervisor para Jacques. - Toca a trabalhar! - Jacques sorriu a Jeanette e pegou nas ferramentas.

- Deixa os degraus soltos! - aconselhou-o Jeanette em bretão e logo se voltou pois ouvira chamar o seu nome.

Sir Simon Jekyll, de olhos pesados e sonolento, encontrava-se à porta e ao vê-lo, Jeanette sentiu-se esmorecer.

- Senhora - sir Simon inclinou-se diante dela. - Não deveríeis estar a espera juntamente com o povo.

- Dizei isso ao escrivão - respondeu Jeanette com frieza.

O escrivão que contava os molhos de flechas gritou, quando sir Simon lhe puxou uma orelha.

- Este escrivão? - perguntou.

- Disseme que esperasse aqui.

Sir Simon deu um tabefe no rosto do homem.

- É uma senhora, seu idiota! Tens de a tratar como uma senhora - mandou o homem embora com um pontapé e logo abriu a porta de par em par.

- Vinde, senhora - convidou.

Jeanette dirigiu-se à porta e ficou aliviada ao ver mais quatro escrivães que trabalhavam, sentados às mesas, dentro de casa.

- O exército tem quase tantos escrivães como arqueiros - disse sir Simon, enquanto a deixava passar. - Escrivães, ferradores, pedreiros, cozinheiros, pastores, carniceiros, tudo o que tenha duas pernas e possa extorquir dinheiro ao Rei. - Sorriu-lhe e depois acariciou com a mão a sua velha túnica de lã debruada a pele. - Senhora, se soubesse que hoje me honraríeis com a vossa visita, ter-me-ia arranjado a preceito.

Jeanette reparou satisfeita, que sir Simon estava de bom humor naquela manhã. Habitualmente, ou se mostrava aborrecido ou era desastradamente delicado e ela detestava qualquer dessas duas disposições. Pelo menos era mais fácil tratar com ele quando tentava impressioná-la com as suas boas maneiras.

- Vim cá - disse -, para solicitar um salvo-conduto a monsier Totesham. Os escrivães espreitaram-na sub-repticiamente, fazendo as penas arranhar o papel e espalhar a tinta no pergaminho rabiscado.

- Eu próprio vos posso dar um salvo-conduto - afirmou, galante, sir Simon. - Mas não acredito que desejeis abandonar permanentemente La Roche-Derrien.

- Apenas desejo visitar Louannec - afirmou Jeanette.

- E, minha querida senhora, onde fica Louannec?

- Junto à costa - explicou Jeanette. - A norte de Lannion.

- Com que então, Lannion - empoleirou-se numa mesa, balançando a perna nua. - Não vos posso deixar andar a passear perto de Lannion. Pelo menos esta semana. Talvez para a próxima, mas apenas se me convencerdes que tendes uma boa razão para viajar - alisou o bigode louro. - E eu, de boa vontade me deixo convencer.

- Desejo ir orar no santuário que lá existe - disse Jeanette.

- Longe de mim querer afastar-vos das vossas orações - garantiu sir Simon. Estava a pensar que a devia ter convidado para a sala, mas na verdade, naquela manhã, pouca disposição tinha para jogos amorosos. Consolara-se do seu desaire por não ter conseguido queimar o traseiro de Thorrtas, bebendo noite fora, e sentia o ventre líquido, a garganta seca e a cabeça a martelar como um timbale - Que santo terá o prazer de ouvir a vossa voz? - perguntou.

- O santuário é dedicado ao Santo Ivo que protege os doentes. O meu filho está com febre.

- Pobre criança - disse sir Simon, fingindo-se condoído, e logo ordenou peremptoriamente ao escrivão que passasse um salvo-conduto a sua senhoria. - Não viajareis só, senhora?

- Levo os criados.

- Irias melhor com soldados. Há bandidos por todo o lado.

- Não receio os meus compatriotas, sir Simon.

- Mas deveríeis - disse asperamente. - Com quantos criados?

- Dois.

Sir Simon disse ao escrivão que acrescentasse dois acompanhantes no salvo-conduto e a seguir voltou-se de novo para Jeanette.

- Estaríeis realmente muito mais segura levando uma escolta de soldados.

- Deus guardar-me-á - afirmou Jeanette.

Sir Simon ficou a olhar, enquanto cobriam de areia a tinta do pergaminho. Colocou o seu selo no lacre e depois entregou o documento a Jeanette.

- Talvez eu devesse ir convosco, não madame?

- Prefiro não viajar - disse Jeanette, recusando-se a aceitar o salvo-conduto.

- Então entrego os meus deveres a Deus - concluiu sir Simon. Jeanette recebeu o salvo-conduto, esforçou-se por lhe agradecer e partiu imediatamente. Quase esperou que sir Simon a seguisse, mas este deixou-a ir sem a incomodar. Sentia-se suja, mas também triunfante, por a armadilha já estar montada. Muito bem montada.

Não voltou imediatamente para sua casa, foi antes à de Belas, que tomava ainda o seu pequeno-almoço de chouriço de sangue com pão. O aroma do enchido atiçou-lhe a fome, mas Jeanette recusou o prato que ele lhe ofereceu. Era uma condessa e ele um mero advogado, não deveria rebaixar-se, comendo com ele à mesa.

Belas endireitou as vestes, pediu desculpa por a sala não estar aquecida e perguntou-lhe se decidira por fim vender a casa.

- Seria sensato da vossa parte, madame. As vossas dívidas acumulam-se.

- Digo-vos quando me decidir - disse. - Mas vim cá por outro assunto. Belas abriu os batentes da janela da sala.

- Os assuntos custam dinheiro, madame, e as vossas dívidas, perdoai, mas acumulam-se.

- E um assunto do duque Charles - explicou Jeanette. - Continuais a escrever aos seus administradores?

- De tempos a tempos - respondeu Belas, contido.

- Como chegais a eles? - perguntou Jeanette.

Belas desconfiou da pergunta, mas por fim, não viu qualquer impedimento em lhe responder.

- As mensagens seguem de barco, até Paimpol - disse. - Depois por terra até Guingamp.

- Quanto tempo leva?

- Dois, três dias? Depende se os ingleses cavalgam ou não pelos caminhos entre Paimpol e Guingamp.

- Escrevei então ao duque - pediu Jeanette. - Dizei-lhe da minha parte que os ingleses vão atacar Lannion no fim desta semana. Estão a construir escadas para escalar a muralha.

Decidira enviar o recado através de Belas, pois os seus próprios mensageiros eram dois pescadores que apenas vendiam a mercadoria em La Roche-Derrien à quinta-feira e qualquer mensagem enviada por eles chegaria atrasada. Por outro lado, os mensageiros de Belas poderiam chegar a Guingamp a tempo de contrariar os planos ingleses.

Belas limpou a barba fina, suja de ovo.

- Estais segura, senhora?

- Claro que estou! - Falou-lhe de Jacques, das escadas e do indiscreto supervisor inglês, bem como que sir Simon a obrigara a esperar uma semana antes de se aventurar a aproximar-se de Lannion, na sua expedição ao santuário de Louannec.

- O duque ficar-vos-á grato - afirmou Belas a Jeanette, enquanto a acompanhava à porta.

Belas enviou a mensagem nesse dia, embora omitindo que ia da parte da condessa. Pelo contrário reclamava o crédito para si. Entregou a carta ao mestre do navio que saía nessa mesma tarde e, na manhã seguinte, um cavaleiro partiu com ela de Paimpol em direcção ao sul. Não havia hellequin no campo deserto entre o porto e a capital do duque, de modo que a mensagem chegou em segurança.

Em Guingamp, onde se encontravam os aquartelamentos do duque Charles, os ferreiros começaram a verificar as ferraduras das montadas de guerra, os arqueiros a olear as armas, os escudeiros a esfregar as cotas de malha, para que brilhassem e mil espadas foram afiadas.

O ataque inglês a Lannion fora traído.



A curiosa aliança entre Jeanette e Thomas aliviara a hostilidade dentro da sua casa. Os homens de Skeat utilizavam agora o rio como latrina e não o pátio, e a condessa permitira-lhes o acesso à cozinha, o que acabara por lhe ser benéfico, já que traziam as suas rações e, assim, na sua casa comia-se agora melhor do que quando a cidade caíra. Mesmo assim, não conseguira ainda provar os arenques fumados com as suas escamas vermelho-vivo cobertas de bolor. O melhor de tudo fora o tratamento dado a dois importunos mercadores que tinham aparecido a exigir de Jeanette um pagamento, para serem tão maltratados por uma vintena de arqueiros, que os expulsaram dali, de cabeça descoberta, a coxear, ensanguentados e sem o dinheiro.

- Pago-lhes logo que possa - disse ela a Thomas.

- Sir Simon deve ter dinheiro consigo - respondeu ele.

- Terá?

- Apenas os imbecis deixam o dinheiro onde um criado o possa encontrar - disse Thomas.

Quatro dias depois de ter sido espancado, tinha ainda o rosto inchado e os lábios negros com coágulos de sangue. A costela doía-lhe e o corpo era uma massa de nódoas negras, porém insistira com Skeat que estava suficientemente bem para cavalgar até Lannion. Partiriam nessa tarde. Ao meio-dia, Jeanette encontrou-o na igreja de São Renano.

- Porque rezais? - perguntou-lhe.

- Faço-o sempre, antes de um combate.

- Haverá hoje um combate? Pensei que apenas partiríeis amanhã.

- Adoro um segredo bem guardado - disse Thomas, divertido. - Seguimos um dia antes. Se tudo está a postos, porquê esperar?

- E para onde ides? - perguntou Jeanette, embora o soubesse já.

- Para onde nos levarem - respondeu Thomas.

Jeanette fez uma careta e rezou em silêncio para que a sua mensagem tivesse chegado ao duque Charles.

- Tende cuidado - disse a Thomas, não por temer por ele, mas sim por ele ser o seu agente na vingança contra sir Simon Jekyll.

- Talvez matem sir Simon - sugeriu.

- Deus há-de poupá-lo para mim - respondeu Thomas.

- Talvez ele não me siga até Louannec.

- Vai seguir-vos como um cão - disse Thomas. - Mas será perigoso para vós.

- Vou reaver a armadura - disse Jeanette. - Nada mais importa. Rezais a São Renano?

- A São Sebastião - respondeu Thomas. - E a São Guinefort.

- Perguntei ao padre quem era São Guinefort - afirmou Jeanette em tom acusatório. - Disseme que nunca tinha ouvido falar dele.

- Provavelmente também nunca ouviu falar de Wilgefortis - disse Thomas.

- Wilgefortis? - Jeanette tinha dificuldade em pronunciar o nome desconhecido. - Quem é ele?

- Ela - esclareceu Thomas. - Era uma virgem piedosa que vivia na Flandres e deixou crescer uma comprida barba. Todos os dias rezava para que Deus a conservasse tão feia, que se pudesse manter casta.

Jeanette não resistiu e soltou uma gargalhada.

- Não pode ser verdade!

- É verdade, senhora - garantiu-lhe Thomas. - Uma vez, ofereceram ao meu pai um cabelo da sua santa barba, mas ele recusou-se a comprá-lo.

- Então vou rezar à santa barbuda para que escapeis com vida do ataque - prometeu Jeanette. - Apenas para que depois me possais ajudar contra sir Simon. De contrário, espero que morram todos.



A guarnição de Guingamp tinha os mesmos desejos e, querendo realizá-los reuniu uma forte tropa de besteiros e homens-de-armas para emboscar os ingleses a caminho de Lannion. Mas tal como Jeanette, também estes estavam convencidos de que a guarnição de La Roche-Derrien faria a sua investida na sexta-feira, de modo que não partiram senão já muito tarde, na quinta-feira e a essa hora já as forças de Totesham estavam a légua e meia do seu objectivo. A diminuída guarnição de Lannion não sabia que os ingleses estavam para chegar, pois os capitães do duque Charles, comandantes das forças em Guingamp, enquanto o duque se encontrava em Paris, tinham decidido não avisar a cidade. Se toda a gente tivesse conhecimento da traição, então os próprios ingleses poderiam vir a sabê-lo e abandonarem os planos, negando assim aos homens do duque a rara possibilidade de um êxito completo.

Os ingleses esperavam eles próprios a vitória. A noite estava seca e, perto da meia-noite, a Lua cheia saiu de trás de uma nuvem prateada, pondo em relevo as muralhas de Lannion. Os assaltantes estavam esconddos nos bosques, de onde observavam as poucas sentinelas sobre os parapeitos. Estas mostravam-se já sonolentas e, algum tempo depois, dirigiram-se para os bastiões, onde ardiam fogueiras, portanto não viram os seis grupos de homens com escadas que atravessavam os campos na noite, nem os cem arqueiros que os seguiam. E dormiam já, quando estes trepavam os degraus e a força principal de Totesham surgiu dos bosques, pronta para entrar pela porta nascente, que os arqueiros abririam.

As sentinelas morreram. Os primeiros cães acordaram na cidade, depois o sino de uma igreja começou a tocar e a guarnição de Lannion despertou, mas demasiado tarde, pois a porta fora aberta e os soldados de Totesham de cota de malha, gritavam já «Ao ataque!», pelas ruelas escuras. Entretanto, ainda mais homens-de-armas e arqueiros surgiam pela estreita porta.

Os homens de Skeat eram a retaguarda, de modo que esperavam do lado de fora da cidade, quando o saque começou. Os sinos das igrejas tocavam a rebate, à medida que as paróquias acordavam para aquele pesadelo. Mas, aos poucos, o dobre cessou.

Will Skeat olhava para os campos brilhantes ao luar, a sul de Lannion.

- Disseram-me que foi sir Simon Jekyll que te melhorou a beleza - disse para Thomas.

- Ele mesmo.

- Porque lhe disseste que fosse aquecer o traseiro? - Skeat sorriu. - Não o podes censurar por te ter esmurrado - afirmou Skeat. - Mas primeiro, deveria ter falado comigo.

- Que terias feito?

- Ter-me-ia assegurado que não te esmurrasse demais, evidentemente - disse Skeat, vigiando a paisagem com olhar firme. Thomas tinha adquirido o mesmo hábito, mas a terra para lá da cidade, estava em sossego. Erguia-se do chão uma leve bruma. - Que estás a pensar fazer a esse respeito? - perguntou Skeat.

- Falar contigo.

- Eu não entro nessas tuas batalhas, rapaz - resmungou Skeat. - Que pensas então fazer?

- Pedir-te que me emprestes Jake e Sam no sábado. E quero três bestas.

- Com que então, bestas! - disse Skeat simplesmente. Via que a restante força de Totesham tinha já entrado na cidade, de modo que levou dois dedos aos lábios e fez soar um penetrante assobio, sinal de que os seus homens podiam partir. - Para as muralhas! - gritou e os hellequin avançaram. - Para as muralhas! - Era aquela a função da retaguarda: guarnecer de soldados as defesas caídas da cidade. - Metade desses malditos imbecis vai embebedar-se - resmungou Skeat. - Por isso, fica comigo, Tom.

A maioria dos homens de Skeat cumpriu o seu dever e trepou pelos degraus de pedra até aos parapeitos das muralhas, mas alguns escaparam-se, em busca do saque e de bebida. Skeat, Thomas e meia dúzia de arqueiros percorreram a cidade, para descobrir os vadios e levá-los de volta para as muralhas. Duas dezenas de homens-de-armas de Totesham faziam exactamente o mesmo - arrastavam companheiros para fora das tabernas, para os obrigarem a carregar as múltiplas carroças que tinham sido escondidas na cidade, para que os hellequin lhes não chegassem. Totesham queria, em especial, comida para a sua guarnição e os seus homens-de-armas de maior confiança faziam os possíveis para afastar os soldados da bebida, mulheres ou qualquer outra coisa que atrasasse o saque.

A guarnição da cidade, acordada e surpreendida, fizera os possíveis para ripostar, mas reagira demasiado tarde e os seus corpos estavam agora estendidos pelas ruas iluminadas pelo luar. Porém, na parte poente da cidade, junto aos cais à beira do rio, em Léguer, a batalha continuava ainda e Skeat sentiu-se atraído pelo tumulto. A maior parte dos homens ignorava-o, demasiado preocupados em deitar abaixo as portas a pontapé e em saquear os armazéns, porém Skeat achava que ninguém estaria em segurança na cidade, antes de todos os defensores terem morrido.

Thomas seguiu-o e encontraram um grupo de homens-de-armas de Totesham que acabara de sair de uma rua estreita.

- Há ali um idiota completamente louco - disse um deles a Skeat. - E tem com ele uma dúzia de besteiros.

O idiota completamente louco e os seus besteiros já tinham matado a sua conta de ingleses, pois havia cadáveres com a cruz vermelha na curva da rua em direcção ao rio.

- Queimai-os - sugeriu um dos soldados.

- Nunca antes de revistarmos os edifícios - contrariou Skeat, enviando dois dos seus arqueiros para irem buscar uma das escadas usada para chegar aos parapeitos. Assim que esta surgiu, encostou-a à parede da casa mais próxima e olhou para Thomas, que sorriu, subiu os degraus, trepando logo para a íngreme cobertura de colmo. Doía-lhe a costela partida, mas chegou ao alto e aí retirou o arco do ombro e meteu uma flecha na corda. Caminhou pelo cimo do telhado, com a sombra do luar alongando-se sobre o colmo inclinado. O telhado terminava mesmo por cimo do sítio onde o inimigo aguardava e assim, antes de chegar ao ponto mais alto, retesou o arco ao máximo e avançou dois passos.

O inimigo avistou-o e ergueram-se uma dúzia de bestas e, do mesmo modo, o rosto nu de um homem louro, com uma longa espada na mão. Thomas reconheceu-o. Era sir Geoffrey de Pont Blanc e Thomas hesitou, porque o admirava. Mas depois, o primeiro virote rodopiou-lhe tão perto do rosto, que sentiu o vento da sua passagem numa das faces. Soltou então a flecha, sabendo que iria direita à boca aberta do cavaleiro que o olhava. Porém, não a viu acertar, pois tivera de se afastar quando as outras bestas vibraram e os virotes se ergueram na direcção da Lua.

- Está morto! - exclamou Thomas.

Ouviu-se um bater de pés, quando os homens-de-armas carregaram, antes dos besteiros poderem voltar a usar as suas desajeitadas armas. Thomas voltou a subir ao telhado e viu espadas e machados erguerem-se, para logo baixarem. Viu o sangue salpicar a frontaria branca das casas. Viu os homens erguerem o cadáver de sir Geoffrey, para terem a certeza de que estava de fato morto. Uma mulher gritou de dentro da casa que sir Geoffrey estivera a defender.

Thomas escorregou pelo colmo e saltou para a rua onde sir Geoffrey morrera. Aí, recolheu três bestas e uma bolsa de virotes, que entregou a Will Skeat.

O homem do Yorkshire sorriu.

- Com que então bestas? Significa que vais fingir ser o inimigo, mas não o podes fazer em La Roche-Derrien, de modo que vais surpreender sir Simon algures no exterior da cidade. Não tenho razão?

- Mais ou menos isso.

- Leio em ti como num maldito livro, rapaz. Isto se eu soubesse ler, mas não sei, porque tive muito juízo - Skeat dirigiu-se a rio, onde três embarcações estavam a ser saqueadas e mais duas, com os porões já vazios, ardiam violentamente. - Mas como conseguirás afastar o patife da cidade? - perguntou Skeat. - Também não é completamente idiota.

- Claro que é, quando se trata da condessa.

- Ah! - Skeat sorriu. - E, de repente, a condessa passou a ser simpática com todos nós. Com que então entendeste-te com ela, não é verdade?

- Não, não me entendi com ela, não.

- Mas em breve te entenderás, não achas? - perguntou Skeat.

- Duvido.

- Porquê? Porque se trata de uma condessa? É também uma mulher, rapaz. Mas eu, se fosse a ti, acautelava-me com ela.

- Acautelavas-te?

- É uma cabra difícil, essa. Parece muito bela por fora, mas por dentro é feita de pederneira. Vai partir-te o coração, rapaz.

Skeat detivera-se nos enormes cais de pedra, onde os homens esvaziavam os armazéns de peles, cereais, peixe fumado, vinho e rolos de tecido. Sir Simon encontrava-se entre eles, gritando aos seus homens que arranjassem mais carroças. A cidade rendia-lhes a sua enorme fortuna. Era um local muito maior do que La Roche-Derrien e, como tinha combatido sempre com êxito o cerco de Inverno do conde de Northampton, os bretões consideravam-na um sítio seguro para guardar os seus bens. Estava agora a ser esventrada. Um homem passou por Thomas a cambalear sob o peso de um carregamento de travessas de prata, outro arrastava uma mulher meio-nua, puxando-a pela camisa de dormir em tiras. Um grupo de arqueiros tinha aberto um tonel e mergulhavam nele o rosto para beber o vinho.

- Foi bastante fácil chegar aqui - disse Skeat. - Mas nem o diabo vai conseguir retirar estes imbecis.

Sir Simon bateu com a espada nas costas de dois bêbados que impediam o caminho aos seus homens, agora a esvaziarem um armazém de rolos de fazenda. Viu Thomas e pareceu surpreendido, mas como receava Will Skeat resolveu nada dizer. Limitou-se a dar meia volta.

- O patife deve já ter pago as suas dívidas - disse Skeat, sem tirar os olhos das costas de sir Simon. - A guerra é uma óptima maneira de se enriquecer, desde que não nos façam prisioneiros para pedir resgate.

Não que o fizessem comigo ou contigo, rapaz. Abriam-nos a barriga, arrancavam-nos os olhos, era o mais certo. Já alguma vez disparaste uma besta?

- Não.

- Não é tão fácil quanto parece. Nem tão difícil como manejar um verdadeiro arco, claro, mas é preciso prática. Essas malditas coisas podem disparar alto demais, quando não se está habituado a elas. Jake e Sam querem ajudar-te?

- Disseram-me que sim.

- Claro que querem, são uns bons patifes - Skeat continuava a olhar para sir Simon, que trazia a sua nova e cintilante armadura. - Julgo que esse idiota traz o dinheiro consigo.

- Sim, julgo que sim.

- Metade para mim, Tom, e no sábado não faço perguntas.

- Obrigado, Will.

- Mas faz tudo como deve ser, Tom - disse Skeat, violento. - Tudo como deve ser. Não quero ver-te enforcado. Não me importo de ver a maior parte dos imbecis fazerem a dança da corda com o mijo a escorrer-Ihes pelas pernas, mas seria pena ver-te estrebuchar a caminho do Inferno.

Voltaram para as muralhas. Nenhum deles tinha recolhido qualquer saque, pois já haviam tirado mais do que o suficiente dos assaltos às quintas na Bretanha do norte e era agora a vez dos homens de Totesham se encherem numa cidade capturada.

As casas foram revistadas uma a uma e esgotados os barris das tabernas. Richard Totesham queria que a sua força saísse de Lannion de madrugada, porém eram inúmeras as carroças capturadas que esperavam para atravessar a estreita porta oriental, sem que houvesse cavalos suficientes. Assim, eram os próprios homens que as puxavam, preferindo fazê-lo, a deixar para trás o que tinham capturado. Havia homens embriagados, completamente inconscientes e os soldados de Totesham percorriam a cidade em busca deles. Mas foi o fogo que afastou a maioria dos bêbados dos seus esconderijos. A gente da cidade fugiu para sul, quando os ingleses lhes incendiaram os telhados de colmo. O fumo inclinava-se na mesma direcção, numa vasta coluna escura, empurrada pela brisa marítima. Cintilava-lhe por baixo um brilho avermelhado e fora provavelmente essa visão que mostrara à força que então se aproximava de Guingamp, o fato de haverem chegado tarde demais para salvar a cidade. Tinham marchado durante a noite, esperando encontrar um lugar qualquer para montarem uma emboscada aos homens de Totesham, porém o mal já estava feito. Lannion ardia e a sua riqueza empilhava-se em carroças que ainda não tinham atravessado as portas. Mas se os odiados ingleses já não podiam ser emboscados a caminho da cidade, era possível surpreendê-los na saída, e assim os comandantes inimigos levaram as suas forças para Oriente, em direcção à estrada, de volta a La Roche-Derrien.

Foi o vesgo Jake quem primeiro viu o inimigo. Estava a olhar para Sul através da leve bruma que cobria a terra plana e avistou as sombras por entre a névoa. A princípio, pensou tratar-se de uma manada de vacas, depois concluiu serem refugiados da cidade. Mas, a seguir, divisou um nendão e uma lança, bem como a cor cinzenta de uma cota de malha e logo gritou a Skeat que havia cavaleiros à vista.

Skeat espreitou por sobre os parapeitos.

- Vês alguma coisa, Tom?

Era antes do nascer do Sol e o campo estava coberto de cinzento, raiado de bruma. Thomas olhava fixamente. Viu um bosque frondoso, a menos de um quarto de légua a sul, e um cume baixo erguendo-se acima da névoa. Depois avistou os pendões e as cotas cinzentas à luz baça e logo a seguir, uma floresta de lanças.

- Homens-de-armas - disse. - E são muitos, os bastardos!

Skeat praguejou. Os homens de Totesham estavam ainda na cidade ou espalhados pela estrada de La Roche-Derrien, já tão longe, que seria impensável levá-los de novo para dentro das muralhas de Lannion - mesmo que fosse possível, não seria muito prático, já que todo o lado poente da cidade ardia violentamente e as chamas espalhavam-se, velozes. Retirar para aí seria arriscar-se a ser assado vivo e, além do mais, os homens de Totesham não estavam em condições de combater, muitos deles embriagados e todos carregados com o saque.

- A sebe - gritou Skeat laconicamente, apontado uma linha quebrada de espinheiros negros e sabugueiros, que corria paralela à estrada por onde seguiam as carroças. - Os arqueiros para a sebe, Tom. Tomamos conta das vossas montadas. Só Deus sabe como vamos deter esses patifes - fez o sinal da Cruz. - Mas não temos outra alternativa.

Thomas forçou a passagem por entre a porta cheia de gente e conduziu quarenta arqueiros através de uma pastagem ensopada, até à sebe que parecia uma ténue barreira contra o inimigo amontoado na bruma prateada. Eram pelo menos trezentos cavaleiros. Ainda não avançavam, parecendo querer agrupar-se para uma carga e Thomas tinha apenas quarenta homens para se lhes opor.

- Espalhai-vos! - gritou. - Espalhai-vos! - ajoelhou rapidamente e fez o sinal da Cruz. - São Sebastião esteja connosco - implorou. - São Guinefort, protegei-me. - Tocou na pata de cão seca e fez de novo o sinal da Cruz.

Mais uma dúzia de arqueiros se juntou à sua força, mas era ainda muito pouco. Duas dezenas de pajens, montados em póneis e armados com espadas de brinquedo, poderiam ter dizimado os homens que seguiam pela estrada, pois a sebe de Thomas não lhes oferecia uma protecção completa, antes desaparecia a cerca de meia milha da cidade. Os cavaleiros teriam apenas de galopar em redor dessa extremidade desprotegida e nada os deteria. Thomas podia levar os seus arqueiros para campo aberto, porém cinquenta homens nunca poderiam deter trezentos. Podia tirar-se o melhor partido dos arqueiros em grupo, de modo a que as suas flechas formassem uma chuva forte de pontas de aço. Cinquenta homens poderiam provocar um aguaceiro, mas, mesmo assim, seriam atropelados e massacrados pelos cavaleiros.

- Besteiros - resmungou Jake e Thomas viu os homens de gibão verde e vermelho a saírem do bosque por trás dos soldados inimigos. A luz da madrugada reflectia o frio da malha, das espadas e dos capacetes.

- Os bastardos estão a fazer tempo - disse Jake, nervoso. Colocara uma dúzia de flechas na base da sebe, que era suficientemente espessa parai impedir os cavaleiros, mas não tão densa, que pudesse abrandar um virotel de besta.

Will Skeat juntara sessenta homens-de-armas dos lados da estrada, prontos a contra-atacar aquele inimigo, cujo número aumentava a cada minuto. Os homens do duque Charles e os seus aliados franceses cavalgavam agora para leste, procurando avançar para junto da extremidade aberta da sebe onde havia uma convidativa faixa de terreno verde e aberta, até a estrada. Thomas gostaria de saber de que diabo estariam à espera. Perguntava a si próprio se morreria ali. Meu Deus, pensava, os homens não são suficientes para deter o inimigo. Os incêndios continuavam a grassar em Lannion, lançando fumo no céu pálido.

Correu para a esquerda da linha, onde deu com o padre Hobbe, que empunhava um arco.

- Padre, não devíeis aqui estar - afirmou.

- Deus há-de perdoar-me - respondeu o sacerdote. Prendera a sotaina no cinto e metera algumas flechas na sebe. Thomas olhava para o campo aberto, perguntando a si próprio quanto tempo os seus homens se aguentariam naquela imensidão de relva. Era justamente o que o inimigo queria, pensou, uma faixa de terra plana onde os cavalos pudessem galopar com velocidade e a direito. Só que a terra não era inteiramente plana pois estava cheia de pequenas elevações de erva por entre as quais duas garças cinzentas de pernas muito direitas, procuravam sapos ou patinhos. Sapos, pensou Thomas, e patinhos. Deus Bendito! Era um pântano! A Primavera fora invulgarmente seca, porém Thomas tinha as botas encharcadas do campo húmido que atravessara para chegar à sebe. A idéia surgiu nele como um Sol nascente. A terra aberta era um pântano! Não admirava que o inimigo estivesse à espera. Viam os homens de Totesham em fila para a matança, mas não viam maneira de atravessar o chão lamacento.

- Por aqui! - gritou Thomas aos arqueiros. - Por aqui! Depressa! Depressa! Vamos, seus degenerados!

Conduziu-os para que contornassem o extremo da sebe, e entrassem no pântano, espalhando-se por entre as moitas onde saltavam fazendo espalhar a água de um emaranhado de sapais e arroios. Dirigiram-se para sul, direitos ao inimigo e, tendo-o ao seu alcance, Thomas espalhou os homens, dizendo-lhes que praticassem tiro ao alvo. O medo desaparecera, sendo substituído por júbilo. O pântano impedia o inimigo, pois os cavalos não avançavam. Mas os leves arqueiros de Thomas saltavam por sobre as moitas como demónios. Como hellequin.

- Matai esses bastardos! - gritou.

As flechas ornadas de penas brancas silvaram pelo sapal, para atingir homens e montadas. Alguns dos inimigos tentaram carregar sobre os arqueiros, mas os cavalos chafurdavam no terreno mole, tornando-se alvos das revoadas de setas. Os besteiros desmontaram e avançaram a pé, porém os arqueiros passaram então a alvejá-los. Chegavam ainda mais homens, enviados por Skeat e Totesham, de modo que o pântano ficou de súbito cheio de arqueiros ingleses e galeses, que despejavam um inferno de pontas de aço sobre o inimigo desorientado. Tudo se transformou num jogo. Os homens apostavam se conseguiam ou não acertar num alvo em particular. O Sol subia no céu, lançando sombras sobre os cavalos mortos. O inimigo afastava-se para junto das árvores. Um grupo corajoso tentou uma última carga, na esperança de contornar o pântano, mas os cavalos tropeçaram no terreno mole, ao mesmo tempo que eram atingidos pelas flechas cuspidas para cima deles. Homens e bestas gritavam, ao cair. Um cavaleiro tentou resistir, vergastando a montada com o punho da espada. Thomas meteu uma flecha no pescoço do cavalo e Jake espetou-lhe o quadril. O animal relinchou aflitivamente, invadido pelas dores, para cair dentro do pântano. O cavaleiro conseguiu retirar os pés dos estribos e cambaleou, a praguejar, em direcção aos arqueiros, com a espada em baixo e o escudo erguido, mas Sam meteu-lhe uma flecha na virilha, antes que outra dezena de arqueiros acrescentasse as suas setas, antes de se atirar ao inimigo caído. Empunharam facas, abriram gargantas e poderia então seguir-se a pilhagem. Os cadáveres foram despojados das suas cotas de malha, das suas armas e os cavalos das rédeas e selas. A seguir, o padre Hobbe rezou uma prece pela alma dos mortos, enquanto os arqueiros guardavam os despojos.

A meio da manhã, o inimigo partiu. Deixaram duas vintenas de cadáveres e duas vezes esse número de feridos, mas nem um único arqueiro inglês ou galês morrera.

Os homens do duque Charles partiram furtivamente para Guingamp. Tinham sido humilhados, Lannion fora destruída, e os homens de Will Skeat festejaram em La Roche-Derrien. Eram hellequin, eram os melhores e ninguém os conseguia derrotar.



Na manhã seguinte, Thomas, Sam e Jake saíram de La Roche-Derrien antes do dia nascer. Cavalgaram para poente, em direcção a Lannion, mas uma vez nos bosques, saíram da estrada e esconderam os cavalos no fundo da floresta. Depois, movendo-se como caçadores furtivos, voltaram para a entrada do bosque. Cada um tinha ao ombro o seu arco e transportava também uma besta. Enquanto esperavam, dedicavam-se a praticar com as armas a que não estavam habituados, num campo de campainhas, à entrada da floresta, de onde podiam ver a porta poente de La Roche-Derrien. Thomas trouxera consigo apenas uma dúzia de virotes, curtos e com penas, para que cada um deles disparasse duas vezes. Will Skeat tinha razão: as armas davam um coice quando os arqueiros as soltavam, de modo que os primeiros projécteis espetaram-se muito alto no tronco que lhes servia de alvo. O segundo tiro de Thomas foi mais certeiro, mas nada que se parecesse com uma verdadeira flecha lançada de bom arco. O fato de quase falhar tornou-o apreensivo dos riscos da manhã, porém Jake e Sam estavam os dois alegres com a perspectiva de roubo e assassínio.

- Não posso falhar - disse Sam, depois do segundo virote ter também acertado alto demais. - Talvez não atinja o patife na barriga, mas espetamo-lo noutra parte qualquer. - Puxou mais uma vez a corda para trás, gemendo com o esforço. Ninguém conseguia puxar, à força de braços, a corda de uma besta de modo que tinham de empregar um mecanismo. As bestas mais caras, as que tinham maior alcance, usavam um macaco de rosca. O arqueiro colocava uma manivela na ponta da rosca e enrolava a corda para trás, polegada a polegada, até que a lingueta sobre alavanca engrenasse o fio. Alguns besteiros usavam o corpo como alavanca. Traziam enormes cintos de couro, onde penduravam um gancho e, ao dobrarem-se, ligavam a corda a esse gancho e depois endireitavam-se. Assim, puxavam para trás as cordas torcidas. Porém, as bestas que Thomas trouxera de Lannion precisavam de uma alavanca com a forma da perna traseira de uma cabra, que forçava a corda e dobrava a estrutura da besta, que era feita de camadas de osso, madeira e cola. A alavanca seria provavelmente a maneira mais rápida de armar a besta, embora não oferecesse a mesma força do que as que utilizavam a rosca e, mesmo assim, esta arma era lenta comparada com um arco de teixo. Na verdade, não havia nada igual ao longo arco inglês e os homens de Skeat discutiam constantemente as razões pelas quais o inimigo não adoptava a arma.

- Porque são tolos - era a opinião simples de Sam, embora Thomas soubesse que, o problema estava em que as outras nações não iniciavam crianças suficientemente cedo. Para se ser arqueiro, tinha de se começar pequeno e depois praticar, praticar muito, até se ter o peito largo e a flecha parecer voar sem que o arqueiro pensasse no alvo.

Jake lançou o seu segundo virote a um carvalho e praguejou horrivelmente, quando falhou o alvo. Olhou para a besta.

- Bocado de trampa - disse. - Vamos aproximarmo-nos muito?

- O mais que pudermos - disse Thomas. Jake fungou.

- Se eu pudesse enfiar a ponta do arco na barriga desse patife, decerto não falhava.

- Dez, quinze metros, deve estar bem - calculou Sam

- Apontem-lhe às partes baixas - encorajou-o Thomas. - Assim, furamos-lhe as tripas.

- Vai correr tudo bem - disse Jake. - Somos três. Um de nós há-de espetar esse bastardo.

- Para a sombra, rapazes - disse Thomas, acenando-lhes para que se internassem mais na floresta.

Vira Jeanette sair a porta, onde os guardas lhe inspeccionaram o salvo-conduto e fizeram sinal para que passasse. Vinha sentada de lado num pequeno cavalo que Will Skeat lhe emprestara e seguia, acompanhada de um casal de criados já grisalhos; tendo ambos envelhecido ao serviço do pai dela, caminhavam agora ao lado da montada da sua ama. Se Jeanette tivesse verdadeiramente planeado seguir até Louannec, aquela escolta tão fraca e avançada em anos, teria sido um convite a grandes trabalhos, mas eram exactamente esses trabalhos que ela desejava. Assim que chegou junto das árvores, estes apareceram-lhe na pessoa de sir Simon Jekyll que saia da sombra de uma arcada, cavalgando com mais dois homens.

- E se os dois patifes ficam junto dele? - perguntou Sam.

- Não ficam - disse Thomas. Tinha a certeza disso, tal como ele e Jeanette a tinham tido a respeito de que sir Simon haveria de seguir a condessa, vestido com a rica armadura que lhe tinha roubado.

- É uma mulher valente - resmungou Jake.

- Tem coragem - disse Thomas. - E sabe odiar. Jake experimentou a ponta de uma seta quadrada.

- Tu e ela? - perguntou a Thomas. - Entendem-se, não é verdade?

- Não.

- Mas gostavas. Eu também.

- Não sei - respondeu Thomas. Pensava que Jeanette era muito bela, Skeat tinha razão, havia nela uma dureza que o repelia.

- Suponho que sim - admitiu.

- Claro que sim - disse Jake. - De contrário, serias tolo.

Assim que Jeanette entrou no bosque, Thomas e os seus companheiros seguiram-na, mantendo-se escondidos, sempre conscientes que sir Simon e os seus dois lacaios se aproximavam rapidamente. Esses três cavaleiros seguiram a trote, uma vez chegados à floresta, e conseguiram apanhar Jeanette num local quase perfeito para a emboscada de Thomas. A estrada contornava uma clareira, onde um regato serpenteante cortara a parte inferior de uma raiz de salgueiro. O tronco caído estava podre e cheio de fungos em forma de discos. Jeanette, fingindo dar passagem aos três cavaleiros de armadura, voltou para a clareira e esperou ao lado da árvore morta. Melhor ainda, junto ao tronco do salgueiro havia um tufo de pequenos amieiros que ofereciam cobertura a Thomas.

Sir Simon afastou-se da estrada, baixou-se sob os ramos e aproximou o cavalo de Jeanette. Um dos seus companheiros era Henry Colley, o louro violento que espancara brutalmente Thomas e o outro era o escudeiro de queixo caído de sir Simon, que sorria na expectativa do divertimento. Sir Simon retirou o elmo bicudo, pendurou-o no arção da sela e sorriu triunfante.

- Não é seguro, madame, viajar sem uma escolta armada.

- Estou em perfeita segurança - declarou Jeanette. Os dois criados esconderam-se junto ao cavalo da ama, mas o escudeiro impedia Jeanette de sair do lugar.

Sir Simon desmontou, fazendo entrechocar a armadura.

- Esperava, estimada senhora, que pudéssemos conversar a caminho de Louannec.

- Desejais orar ao Santo Ivo? - perguntou Jeanette. - Que lhe pediríeis? Que vos torne mais cortês?

- Falarei apenas convosco, madame - respondeu sir Simon.

- Falareis de quê?

- Da queixa que haveis feito de mim ao conde de Northampton. Haveis manchado a minha honra, senhora.

- A vossa honra? - Jeanette soltou uma risada. - Que honra tendes para ser manchada? Sabeis, por acaso, o significado dessa palavra?

Thomas, escondido atrás da moita de amieiros, traduzia em surdina as palavras para Jake e para Sam. As três bestas estavam carregadas, com os pequenos virotes na calha.

- Se não quereis falar comigo no caminho, madame, teremos então de ter a nossa conversa aqui - declarou sir Simon.

- Nada tenho a dizer-vos.

- Então será fácil ouvirdes - disse, estendendo a mão, para a obrigar a descer da sela. Jeanette bateu-lhe nas manoplas da armadura, mas nenhuma resistência da parte dela o impediria de a arrastar para o chão. Os dois criados gritavam os seus protestos, porém Colley e o escudeiro silenciaram-nos agarrando-os pelos cabelos e puxando-os para fora da clareira, para deixarem Jeanette e sir Simon a sós.

Jeanette recuara e encontrava-se agora junto da árvore caída. Thomas erguera o arco, mas Jake baixara-lho, pois a escolta de sir Simon estava ainda muito próxima.

Sir Simon empurrou-a com tanta força, que Jeanette caiu sentada, sobre o tronco apodrecido, retirou depois um comprido punhal do cinto da espada e meteu a lâmina fina pelas saias da condessa de modo a prendê-la ao salgueiro caído. Carregou no punho da faca com o pé calçado de ferro, para ter a certeza que penetrara fundo no tronco. Colley e o escudeiro tinham já desaparecido e o ruído dos cascos dos cavalos afastava-se por entre as árvores.

Sir Simon sorriu, depois aproximou-se e retirou a capa dos ombros de Jeanette.

- Quando vos vi pela primeira vez, senhora, confesso que pensei em casamento - disse. - Mas fostes perversa, de modo que mudei de idéia - meteu-lhe as mãos no decote do corpete e rasgou-lho, arrancando as fitas dos orifícios bordados. Jeanette gritou, ao mesmo tempo que tentava cobrir-se e Jake segurou mais uma vez o braço de Thomas.

- Espera que ele tire a armadura - murmurou. Sabiam que os virotes podiam espetar a cota de malha, mas todos ignoravam a resistência das placas da armadura.

Sir Simon batia nas mãos de Jeanette, para as afastar.

- Pronto, madame - disse, olhando-lhe os seios. - Podemos então conversar.

Sir Simon afastou-se e começou a despir a armadura. Retirou em primeiro lugar, as manoplas metálicas, desapertou o cinto da espada, depois ergueu sobre a cabeça as espaldeiras nas suas correias de couro. Teve alguma dificuldade com as fivelas laterais das placas do peito e das costas, que estavam ligadas a um forro de couro que também suportava os braçais e cotoveleiras, para a protecção dos braços. O colete tinha uma faldra que, devido ao peso do metal e da cota de malha, foi difícil sir Simon retirar pela cabeça. Vacilou, enquanto puxava a pesada armadura e de novo Thomas ergueu a besta, porém, o cavaleiro andava para trás e para diante, enquanto se tentava firmar. Assim, Thomas não podia ter a certeza do alvo e mantinha o dedo afastado do gatilho.

A armadura forrada de cabedal caiu no chão com um ruído surdo, deixando o cavaleiro com o cabelo em desalinho e de peito nu, e mais uma vez Thomas ergueu a besta ao ombro. Porém, sir Simon sentara-se agora para retirar coxotes, grevas, polainas e botas, e fizera-o de uma tal maneira as suas pernas ainda cobertas estavam voltadas na direcção da emboscada, interferindo com a pontaria de Thomas. Jeanette estrebuchava, tentando ver-se livre da faca, morta de medo que Thomas não estivesse ali perto, mas, por mais que puxasse, o punhal não se movia do lugar.

Sir Simon retirou as polainas que lhe cobriam os pés, viu-se depois, livre dos calções de couro onde estavam ligados os coxotes.

- Agora, madame - disse, erguendo-se nu e branco. - Já podemos; falar como é devido.

Jeanette fez um último esforço para se livrar da faca, esperando conseguir enfiá-la no ventre de sir Simon, mas nesse preciso momento, Thomas disparou.

O virote arranhou o peito do cavaleiro. Thomas fizera-lhe pontaria ao baixo-ventre, na esperança de lhe enterrar na barriga a seta curta, porém o virote passara por um dos compridos ramos do salgueiro e fora desviado. O sangue brotava da pele de sir Simon; este deixou-se cair no chão com tanta rapidez que o projéctil ainda lhe rodopiou sobre a cabeça. Tentou afastar-se, querendo apanhar primeiro a armadura que despira, mas apercebendo-se então que seria impossível salvá-la, correu antes para o cavalo. Foi nessa ocasião que o virote disparado por Sam lhe apanhou a carne da coxa direita, obrigando-o a soltar um grito e a quase cair; decidiu então que também não seria altura de tentar salvar o animal, de modo que, a coxear, a sangrar e nu, correu a esconder-se no bosque. Thomas soltou um segundo virote que passou mesmo junto a sir Simon, para se espetar numa árvore e, nessa altura, o cavaleiro nu desapareceu. Thomas praguejou. Quisera matá-lo, mas sir Simon ainda estava bem vivo.

- Pensei que não estaríeis aí! - gritou Jeanette, quando Thomas apareceu. Tentava cobrir os seios com a roupa rasgada.

- Não apanhamos o patife - disse Thomas furioso. Soltou-lhe as saias do punhal, enquanto Jake e Sam metiam a armadura dentro de duas sacas. Thomas viu-se livre da besta e retirou do ombro o arco negro. O que deveria fazer agora era seguir sir Simon por entre as árvores e matá-lo. Poderia arrancar a flecha com penas brancas e meter um virote de besta na ferida, para que quem o encontrasse acreditasse que os bandidos ou o inimigo o tinham morto.

- Revistai os alforges do desgraçado - ordenou a Jake e a Sam. Jeanette atara a capa ao pescoço e abriu desmesuradamente os olhos, quando viu ouro a sair dos sacos.

- Ficareis aqui com Jake e Sam - ordenou-lhe Thomas.

- Que ides fazer? - perguntou.

- Terminar o serviço - disse Thomas, com ar sinistro. Abriu os cordões da aljava e meteu um virote de besta entre as flechas mais compridas.

- Esperai aqui - disse a Jake e a Sam.

- Eu ajudo-te - disse Sam.

- Não - insistiu Thomas. - Espera aqui e olha pela condessa.

Estava furioso consigo próprio. Deveria ter logo usado o arco, retirado simplesmente a flecha denunciadora e disparado um virote para o cadáver de Simon. Acabara por malograr a emboscada. Pelo menos, sir Simon tinha fugido para poente, afastando-se dos seus dois homens-de-armas e estava nu, a sangrar e desarmado. Seria uma presa fácil, disse Thomas para consigo, seguindo o rasto de sangue por entre as árvores, que indicava o Ocidente e depois, à medida que se tornava mais ténue, o Sul. Sir Simon traçava obviamente o seu caminho de regresso para se ir encontrar com os companheiros, de modo que Thomas abandonou as cautelas e limitou-se a galopar, esperando interceptar o fugitivo. Logo, ao atravessar umas aveleiras, viu-o curvado, a coxear. Thomas puxou a corda do arco e nesse momento Colley e o escudeiro apareceram, ambos de espada em riste, esporeando os cavalos na sua direcção. Mudou o alvo para o que lhe estava mais próximo e soltou a corda sem pensar. Fê-lo como bom arqueiro que era e a flecha seguiu rápida e a direito, batendo no peito coberto de malha do escudeiro, que lançado para trás, tombou da sela. A espada caiu-lhe ao chão, enquanto o cavalo guinava para a esquerda, dirigindo-se para a frente de sir Simon.

Colley puxou as rédeas e estendeu a mão ao cavaleiro, que se agarrou ao braço estendido e foi transportado quase a correr para dentro do bosque. Thomas retirara uma segunda flecha da aljava mas, quando a disparou, os dois homens estavam já meio escondidos e esta resvalou num ramo e perdeu-se por entre as folhas.

Thomas praguejou. Colley olhara-o fixamente por uns instantes. Sir Simon também o vira, e Thomas com uma terceira flecha metida no arco, olhou para as árvores, compreendendo que tudo se desmoronava. Num instante. Tudo.

Seguindo o ribeiro, voltou à clareira.

- Levai a condessa para a cidade - disse a Jake e a Sam. - Mas, por amor de Deus, ide com cautela. Em breve andarão à nossa procura. Tereis de vos esconder.

Os companheiros olharam-no, sem compreender, e Thomas disselhes então o que se passava. Ao matar o escudeiro de sir Simon, transformara-se num assassino em fuga. Fora visto por sir Simon e pelo louro Colley, que seriam ambos testemunhas do seu julgamento e celebrantes da sua execução.

A Jeanette disse o mesmo, mas em francês.

- Confiai em Jake e em Sam - disse-lhe. - Mas não deveis ser apanhada de volta para casa. Acautelai-vos!

Jake e Sam argumentaram, mas Thomas conhecia bem as consequências da flecha mortal.

- Contai a Will o que se passou - pediu-lhes. - Dizei-lhe que assumo toda a culpa e que espero por ele em Quatre Vents - tratava-se de uma aldeia devastada pelos hellequin, a sul de La Roche-Derrien. - Dizei-lhe que preciso de um conselho seu.

Jeanette tentou convencê-lo de que aquele pânico era desnecessário.

- Talvez não vos tenham reconhecido - sugeriu.

- Reconheceram-me, senhora - disse Thomas, com ar sério. Sorriu depois, com ar arrependido. - Lamento, mas pelo menos tendes a armadura e a espada. Escondei-las bem. - Subiu para a sela de sir Simon. - Quatre Vents - repetiu a Jake e a Sam, picou o cavalo e seguiu para sul, por entre as árvores.

Era um assassino, um homem procurado, um fugitivo, o que significava que passara a ser uma presa para qualquer um, só, num deserto feito pelos hellequin. Não tinha a mínima ideia do que deveria fazer, ou para onde poderia ir, apenas que, se queria sobreviver precisava de galopar como o cavaleiro do demónio que era.

E foi o que fez.



Quatre Vents fora uma pequena aldeia, pouco maior que Hookton, com uma igreja estreita, semelhante a um celeiro, um grupo de cabanas, onde as vacas e as pessoas dividiam os mesmos telhados cobertos de colmo, uma azenha e algumas quintas nas imediações, aconchegadas em vales protegidos. Restavam apenas as paredes de pedra da igreja e da azenha, sendo o resto apenas cinzas, pó e ervas daninhas. As árvores de fruto, embora descuidadas, floriam agora, à chegada de Thomas montado num cavalo coberto de suor branco devido à longa jornada. Soltou o garanhão, para que pastasse num campo verdejante, protegido por sebes, e depois dirigiu-se ao bosque para lá da igreja. Estava abalado, assustado e nervoso, pois o que a princípio lhe parecera um jogo, enegrecera a sua vida. Poucas horas atrás era um arqueiro do exército inglês e, embora o seu futuro pudesse não parecer atraente para os jovens com quem se divertira em Oxford, Thomas tinha a certeza de que, pelo menos, chegaria ao posto de Will Skeat. Imaginara-se a chefiar um bando de soldados, a enriquecer, seguindo sempre o seu arco negro, até à fortuna e talvez a um posto, mas, agora, era apenas um homem perseguido. O pânico que sentia era de tal ordem, que começara mesmo a duvidar da reação de Will Skeat. Temia que este se sentisse tão desgostoso com o revés da emboscada, que prendesse Thomas e o levasse a uma dança na ponta de uma corda, na praça de La Roche-Derrien. Preocupava-se que Jeanette pudesse ter sido apanhada de volta para a cidade. Também a acusariam de assassínio? Estremeceu, quando viu que a noite caía. Tinha vinte e dois anos e fracassara por completo, estava só e perdido.

Acordou na madrugada fria e chuvosa. As lebres corriam pelo pasto, onde o alazão de sir Simon Jekyll pastava a erva. Thomas abriu a bolsa que guardava sob a cota de malha e contou as moedas. Havia o ouro do alforge da sela do cavaleiro e algumas moedas suas, de modo que não estava pobre roas, como quase todos os hellequin, deixara a maior parte do seu dinheiro a guarda de Will Skeat. Mesmo quando partiam para os assaltos, ficavam sempre alguns homens em La Roche-Derrien, para guardarem o saque. Que haveria de fazer? Tinha o arco e algumas flechas e talvez pudesse ir para a Gasconha, embora não fizesse a mínima idéia da distância a que ficava. Pelo menos, sabia que havia lá guarnições inglesas que dariam por certo as boas-vindas a mais um arqueiro experimentado. Talvez conseguisse arranjar maneira de atravessar o canal? Ir para a sua terra, arranjar outro nome, começar de novo - só que não tinha terra. Aquilo que nunca deveria, era encontrar-se com sir Simon Jekyll à distância de uma forca.

Os hellequin chegaram pouco depois do meio-dia. Os arqueiros entraram primeiro na aldeia, seguidos de homens-de-armas, que escoltavam uma carroça, com aros de madeira a prender uma cobertura larga de pano castanho, puxada por um cavalo. O padre Hobbe e Will Skeat cavalgavam ao lado do carro, fato que espantou Thomas, pois nunca vira os hellequin a usarem tal veículo. Mas depois, Skeat e o padre afastaram-se dos homens-de-armas e picaram os cavalos na direcção do campo onde pastava o garanhão.

Os dois homens pararam junto à sebe e Skeat gritou com as mãos em concha, na direcção do bosque.

- Sai daí, meu perfeito idiota!

Thomas pareceu bastante envergonhado, e foi recebido por uma irónica ovação da parte dos arqueiros. Skeat olhou-o amargurado.

- Valha-te Deus, Tom - disse. - O diabo fez um rico trabalho quando engravidou a tua mãe!

O padre Hobbe gemeu com a blasfémia e depois ergueu a mão para o abençoar.

- Perdeste um belo espectáculo, Tom - disse alegremente. - Sir Simon a chegar a La Roche-Derrien, meio nu e a sangrar como um porco pasmado. Antes de partires, quero ouvir-te em confissão.

- Não te rias, grande estúpido - zangou-se Skeat. - Por amor de Cristo, Tom, se queres fazer um serviço, tens de o fazer como deve ser. Como deve ser! Porque deixaste o patife vivo?

- Falhei.

- Então, em vez dele, matas um desgraçado de um escudeiro idiota! Valha-me Deus, se não és um completo imbecil!

- Não me querem enforcar? - perguntou Thomas.

- Oh, não - respondeu Skeat, fingindo surpresa. - Claro que não! Querem festejar-te, enfiar-te grinaldas no pescoço e oferecerem-te uma dúzia de virgens para te aquecerem o leito. Que diabo pensas que querem fazer contigo? Claro que te querem morto e eu jurei pela vida da minha mãe que te levaria de volta, se te encontrasse vivo. Padre, ele parece-vos vivo?l

O padre Hobbe examinou Thomas.

- A mim parece-me perfeitamente morto, mestre Skeat.

- Bem merece estar morto, o grande idiota.

- A condessa chegou em segurança? - perguntou Thomas.

- Chegou, está descansado - respondeu Skeat. - Mas que pensas tu que sir Simon quis no momento que conseguiu cobrir as sua encolhidas partes? Mandou revistar-lhe a casa, Tom, em busca de uma armadura e de uma espada que legitimamente lhe pertenciam. Também não é completamente imbecil; sabe que tu e ela estão os dois metidos nisto. - Thomas praguejou e Skeat repetiu a blasfémia. - Pressionaram os criados, que admitiram que a condessa planeara tudo.

- Fizeram o quê? - perguntou Thomas.

- Pressionaram-nos - repetiu Skeat, o que queria dizer que tinham deitado no chão o idoso casal, para lhe amontoarem pedras sobre peito.

- A velha contou tudo à primeira pedra, de modo que não ficaram muito magoados - continuou Skeat. - Agora, sir Simon quer acusar sua senhoria de assassinato. E, naturalmente, mandou revistar-lhe a casa em busca da espada e da armadura, mas nada encontraram, pois eu tinha-a bem escondida. Mas ela está tão atolada em trampa como tu. Não podes andar por aí a espetar cavaleiros com virotes e a matar escudeiros, Tom! Altera a ordem das coisas!

- Desculpa, Will! - disse Thomas.

- Então, para encurtar a história - disse Skeat. - A condessa vai em busca da protecção do tio do marido - apontou com um dedo para a carroça. - Está ali metida, juntamente com o rapaz, dois criados cheios de nódoas negras, uma armadura e uma espada.

- Jesus me valha! - disse Thomas, olhando a carroça.

- Foste tu que a meteste nisto - resmungou Skeat. - Não foi Jesus. E só eu sei o que passei para a esconder de Sir Simon. Dick Totesham suspeita que também estou envolvido e não aprova, embora, por fim, tenha aceite a minha palavra. Mesmo assim, tive de lhe prometer que te arrastava pelo teu miserável pescoço. Só que, não te encontrei, Tom.

- Desculpa, Will - repetiu Thomas.

- Bem podes pedir desculpa - disse Skeat, embora parecesse exultar de silenciosa satisfação, por ter conseguido limpar com tanta eficácia, o que Thomas tinha feito. Nem sir Simon, nem o seu homem-de-armas sobrevivente tinham visto Jake e Sam, de modo que estes estavam em segurança. Thomas era um fugitivo e Jeanette saíra, às escondidas, de La Roche-Derrien antes que sir Simon lhe conseguisse dar cabo da vida.

- Vai para Guingamp - continuou Skeat. - Mando uma dúzia de homens para a escoltar e só Deus sabe se o inimigo respeitará uma bandeira de tréguas. Se eu tivesse um pingo de juízo, esfolava-te vivo e, com a tua pele, fazia uma cobertura para o arco.

- Sim, Will - respondeu Thomas, envergonhado.

- Não me venhas com esses «sim, Will» - disse Skeat. - Que vais fazer nestes poucos dias que ainda tens de vida?

- Não sei.

Skeat fungou.

- Para começar, poderias crescer, embora acredite que haja poucas probabilidades de tal acontecer. Não é, rapaz? - tomou fôlego e atacou: - Tirei o teu dinheiro da arca e aqui está - entregou a Thomas uma bolsa de pele.

- E meti três molhos de flechas na carroça da senhora, para que te mantenhas uns dias. Se tivesses juízo, coisa que não tens, irias para Sul, ou para Norte. Poderias partir para a Gasconha, mas é longe como o raio. A Flandres é mais perto e tem muitas tropas inglesas que, se estiverem desesperadas, te aceitam logo. É esse o meu conselho, rapaz. Vai para o Norte e reza para que sir Simon nunca vá à Flandres.

- Obrigado - disse Thomas.

- Mas como irás para a Flandres? - perguntou Skeat.

- A pé? - sugeriu Thomas.

- Deus bendito - respondeu Will. - És mesmo um inútil, comido pelos vermes. A pé, vestido dessa maneira e com um arco ao ombro, mais valia cortares já o pescoço. Seria mais rápido do que se fossem os franceses a fazê-lo.

- Pode ser que isto te seja útil - interveio o padre Hobbe, oferecendo a Thomas um embrulho de fazenda negra que, desenrolado, mostrou ser o hábito de um frade dominicano. - Falas latim, Tom - disse o padre. - Podes passar muito bem por um pregador itinerante. Se te perguntarem, dizes que vais de Avinhão para Aachen.

Thomas agradeceu-lhe.

- Há muitos dominicanos a viajar com um arco?

- Rapaz - respondeu o padre Hobbe, tristemente. - Posso desabotoar-te os calções e pôr-te as partes ao vento, mas, nem mesmo com a ajuda do Senhor, poderei urinar por ti.

- Por outras palavras - explicou Skeat. - Arranja-te. Foste tu que te meteste em todo este sarilho, Tom, tens de ser tu a sair dele. Apreciei muito a tua companhia, rapaz. Quando te vi pela primeira vez, pensei que fosses um inútil e não eras, mas agora és. Mas, boa sorte, rapaz - estendeu a mão que Thomas apertou. - Podes até ir para Guingamp com a condessa - terminou Skeat. - Depois encontras o teu caminho. Mas o padre Hobbe quer primeiro salvar-te a alma. Só Deus sabe porquê.

O padre Hobbe desmontou e levou Thomas para a igreja sem telhado, onde a relva e as ervas daninhas cresciam por entre as lajes e onde insistiu em ouvir Thomas em confissão. Este sentia-se suficientemente abjecto e mostrava-se contrito.

O padre Hobbe fez-lhe sinal que estava preparado.

- Mataste um homem, Tom - disse, em tom grave. - É um grande pecado.

- Padre... - começou Thomas.

- Não, não, Tom, nada de desculpas. A Igreja diz que matar em combate é o dever de um homem para com o seu senhor, mas tu mataste à margem da lei. Que mal te tinha feito o pobre escudeiro? E ele tinha mãe, Tom? Pensa nela. Não. Pecaste gravemente e tenho de te dar uma penitência pesada.

Thomas, de joelhos, olhou para cima e viu um milhafre a voar por entre as nuvens esparsas sobre as paredes queimadas da igreja. Depois, o padre Hobbe aproximou-se mais, assomando-se por cima dele.

- Não te quero a resmungar padre-nossos, Tom - disse o padre. - Vai ser uma coisa difícil. Uma coisa muito difícil - poisou a mão na cabeça de Thomas. - A tua penitência é manteres a promessa que fizeste a teu pai - fez uma pausa, até ouvir a resposta de Thomas, mas o jovem nada disse.

- Ouviste? - perguntou furiosamente o padre Hobbe.

- Sim, padre.

- Vais encontrar a lança de São Jorge, Thomas, e devolvê-la a Inglaterra. É essa a tua penitência. E agora... - mudou para um latim execrável. - Absolvo-te em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - fez o sinal da Cruz. - Não desperdices a tua vida, Tom.

- Creio que já o fiz, padre.

- És muito jovem. Nessa idade é o que nos parece. Quando somos novos, a vida tem de ser tristeza ou alegria - ajudou Thomas a erguer-se.

- Não estás pendurado numa corda, pois não? Estás vivo, Tom, e há ainda muita vida em ti - sorriu. - Pressinto que nos vamos encontrar de novo.

Thomas fez as suas despedidas e depois viu Will Skeat recolher o cavalo de sir Simon Jekyll e levar os hellequin para a nascente, deixando a carroça e a sua pequena escolta na aldeia em ruínas.

O chefe da escolta chamava-se Hugh Boltby. Era um dos melhores soldados de Skeat e acreditava que seria possível encontrar o inimigo no dia seguinte, próximo de Guingamp. Entregaria a condessa e depois regressaria para ir ter com Skeat.

- O melhor era não estares vestido de arqueiro, Tom - acrescentou. Thomas caminhava ao lado da carroça conduzida por Pierre, o velho que fora pressionado por sir Simon. Jeanette não o convidou a entrar, fingindo até que ele nem existia, embora na manhã seguinte, depois de terem acampado numa quinta abandonada, tenha dado uma gargalhada, ao vê-lo com o hábito de frade.

- Lamento o que aconteceu - disse-lhe Thomas. Jeanette encolheu os ombros.

- Pode ter sido melhor assim. Já deveria ter ido ter com o duque Charles no Inverno passado.

- Porque não haveis ido, senhora?

- Nem sempre foi bom para mim - respondeu, pensativa. - Mas talvez agora já seja diferente.

Convencera-se de que a atitude do duque se poderia ter alterado devido às cartas que lhe enviara, cartas que o tinham ajudado, quando conduzira as suas tropas contra a guarnição de La Roche-Derrien. Também precisava de acreditar que o duque a receberia bem, pois necessitava desesperadamente de um lar seguro para o filho, Charles, que gozava agora a aventura de viajar numa carroça velha e desengonçada. Jeanette despertara cheia de optimismo acerca da sua nova vida e pensava que, juntos, poderiam começar vida nova em Guingamp. Vira-se forçada a sair de La Roche-Derrien numa pressa frenética, metendo na carroça a armadura recuperada, a espada e algumas roupas. Thomas suspeitava que Will lhe tivesse dado algum dinheiro, mas as suas verdadeiras esperanças recaíam sobre o duque Charles que, segundo disse a Thomas, decerto lhe arranjaria uma casa e emprestaria dinheiro de avanço sobre as rendas de Plabennec.

- De certeza que vai gostar de Charles, não é verdade? - perguntou a Thomas.

- Claro - disse Thomas, olhando para o filho de Jeanette que sacudia as rédeas e dava estalos com a língua num esforço vão de obrigar o cavalo a seguir mais depressa.

- E vós o que fareis? - perguntou Jeanette.

- Hei-de sobreviver - respondeu Thomas, sem querer admitir que não sabia. Provavelmente iria para a Flandres, se lá conseguisse chegar. Juntar-se-ia a qualquer outro grupo de arqueiros e rezaria todas as noites para que sir Simon Jekyll nunca mais lhe surgisse ao caminho. Quanto à penitência, a lança, não fazia a mínima idéia onde haveria de a encontrar ou, se a encontrasse, onde a devolver.

No segundo dia de viagem, Jeanette decidiu que, afinal, Thomas era amigo.

- Quando chegarmos a Guingamp - disse-lhe. - Encontrareis um sítio para ficar e convencerei o duque a dar-vos um salvo-conduto. Até um frade itinerante poderá lucrar com um salvo-conduto do duque da Bretanha.

Mas os frades não transportavam arcos, muito menos os longos arcos de guerra ingleses e Thomas não sabia o que fazer com o seu. Detestava ter de o abandonar, mas teve uma idéia ao ver umas tábuas queimadas, esquecidas na quinta. Partiu um bocado de pau enegrecido e pregou-o, atravessado, sobre o arco sem a corda, transformando-o assim numa cruz de peregrino. Lembrava-se de um dominicano que uma vez visitara Hookton e que tinha um bordão semelhante. Esse frade com o cabelo tão curto, que parecia careca, pregara um violento sermão no exterior da igreja, até que o pai de Thomas se cansou do discurso e o mandou embora. Thomas pensou que agora poderia imitar esse homem. Jeanette sugeriu que prendesse umas flores no bordão, para melhor o disfarçar, de modo que enrolou nele trevos que cresciam altos e ásperos pelos campos abandonados.

A carroça, puxada por um cavalo magro, proveniente do saque de Lannion, seguia aos solavancos em direcção ao Sul. Os homens-de-armas mostravam-se cada vez mais cautelosos, à medida que se aproximavam de Guingamp, temendo uma emboscada de besteiros proveniente dos bosques que rodeavam a estrada deserta. Um dos homens tinha uma trompa de caça que fazia soar constantemente, para avisar o inimigo da sua aproximação e para mostrar que vinham em paz, enquanto que Boltby amarrara um bocado de pano branco à ponta da lança. Não houve qualquer emboscada mas, a poucas milhas de Guingamp avistaram um vau onde um bando de soldados inimigos os aguardava. Dois homens-de-armas e uma dúzia de besteiros avançaram, com as armas prontas a disparar. Boltby chamou Thomas, que seguia na carroça.

- Fala com eles - ordenou. Thomas ficou nervoso.

- O que é que lhes digo?

- Dá-lhes a bênção, por amor de Deus - disse Boltby, com desagrado. - Depois, diz-lhes que estamos aqui em paz.

Assim, com o coração aos saltos e a boca seca, Thomas seguiu pela estrada. O hábito negro esvoaçava-lhe em volta dos tornozelos, enquanto acenava para os besteiros.

- Baixai as armas - gritava em francês. - Baixai as armas. Os ingleses vêm em paz.

Um dos cavaleiros picou a montada e avançou. Tinha no escudo, como insígnia, o mesmo arminho branco que o dos homens do duque John. Mas estes apoiantes do duque Charles tinham rodeado o animal com uma cercadura azul, com flores-de-lis pintadas.

- Quem sois, padre? - perguntou o cavaleiro.

Thomas ia responder, mas não lhe saíram palavras. Olhou de boca aberta para o cavaleiro que tinha um bigode ruivo e estranhos olhos amarelos. Um patife com ar perigoso, pensou Thomas, erguendo a mão para tocar na pata de São Guinefort. Talvez que o santo o tivesse inspirado, pois sentiu-se, de súbito, possuído de malícia e começou a apreciar o seu papel de padre.

- Sou apenas um dos mais humildes filhos de Deus - respondeu em tom untuoso.

- Sois inglês? - perguntou, desconfiado, o soldado. O francês de Thomas era quase perfeito, mas era o francês falado pelos governantes de Inglaterra e não a língua de França.

Thomas sentiu de novo o pânico a agitar-lhe o peito, mas ganhou tempo a fazer o sinal da Cruz e, à medida que a mão se movia, chegava-lhe a inspiração.

- Sou escocês, meu filho - disse, o que afastou as suspeitas do homem dos olhos amarelos, pois os Escoceses tinham sido sempre aliados de França. Thomas nada sabia da Escócia, mas duvidava que existissem muitos franceses e bretões que o soubessem, pois ficava longe e era, pelo que se dizia, um local pouco convidativo. Skeat sempre afirmara tratar-se de um país de pântanos, rochas e pagãos duas vezes mais difíceis de matar que qualquer francês.

- Sou escocês - repetiu Thomas. - E trago uma parente do duque, que arrebatei às mãos dos ingleses.

O homem-de-armas olhou para a carroça.

- Uma parente do duque Charles?

- Haverá por aí outro duque? - perguntou Thomas com ar inocente. - Trata-se da condessa de Armórica - prosseguiu. - O filho vem com ela, é sobrínho-neto do duque e conde por direito próprio. Os ingleses tinham-nos prisioneiros há seis meses, mas pela graça de Deus, concordaram em libertá-los. Sei que o duque a quererá receber.

Thomas apresentou o título de Jeanette e o seu parentesco com o duque como uma tigela de nata que o inimigo engoliu. Permitiram que a carroça prosseguisse e Thomas ficou a ver Hugh Boltby afastar-se para conduzir os seus homens num rápido galope, desejoso de se distanciar o mais possível dos besteiros. O chefe dos soldados inimigos falou com Jeanette e ficou impressionado com a sua altivez. Sentir-se-ia honrado de escoltar a condessa até Guingamp, embora a avisasse de que o duque não tinha ainda chegado, mas vinha já de regresso de Paris. Sabia-se que estava em Rennes, uma cidade que ficava a um dia de viagem, para nascente.

- Levais-me a Rennes? - perguntou Jeanette a Thomas.

- É o que desejais, senhora?

- Um jovem é sempre útil - disse. - Pierre é velho - apontou para o criado. - E já perdeu a força. Além do mais, se quereis ir para a Flandres, tereis de atravessar o rio em Rennes.

Assim, Thomas fez-lhe companhia durante os três dias que a velha carroça levou a fazer a viagem. Para lá de Guingamp, não era necessária escolta, pois havia pouco perigo de assaltos ingleses neste ponto da Bretanha e a estrada estava bem patrulhada pelas forças do duque. A região parecia estranha a Thomas, que se acostumara a campos verdejantes, pomares descuidados e aldeias desertas, mas aqui, as quintas estavam habitadas e pareciam prósperas. As igrejas eram maiores e com vitrais, e cada vez menos pessoas falavam bretão. Estavam ainda na Bretanha, mas a língua aí usada era o francês.

Ficaram em tabernas do campo que tinham pulgas na palha. Jeanette e o filho ocupavam o que passava por ser o melhor quarto, enquanto Thomas dividia o estábulo com os dois criados. Encontraram dois padres na estrada, mas nenhum deles desconfiou que Thomas fosse um impostor. Saudou-os em latim, que falava melhor que eles, e ambos lhe desejaram um bom dia e uma fervorosa bênção de Deus. Thomas quase lhes sentiu o alívio, por não terem de continuar a conversa. Os dominicanos não eram apreciados pelos padres das paróquias. Os frades eram também sacerdotes, mas estavam encarregados da supressão da heresia, de modo que uma visita dos dominicanos sugeria que o pároco não cumpria o seu dever; nem um frade rude, alegre e jovem, como Thomas, seria bem-vindo.

Chegaram a Rennes à tarde. Viam-se nuvens escuras a oriente, contra as quais a cidade parecia maior que qualquer terra em que Thomas tivesse estado. As muralhas eram duas vezes mais altas que as de Lannion ou de La Roche-Derrien e tinham torres com telhados pontiagudos, de poucos em poucos metros, para servirem de botaréus, de onde os besteiros podiam lançar virotes sobe qualquer força atacante. Sobre as muralhas, ainda mais alta que as ameias, as torres das igrejas ou da catedral, estava a cidadela, um bastião de pedra clara ornamentada com pendões. O cheiro da cidade, um fedor a fossa, curtumes e fumo, flutuava para poente, levado pelo vento frio.

Os guardas da porta poente ficaram entusiasmados ao descobrirem as flechas dentro da carroça, mas Jeanette convenceu-os de que se tratavam de troféus que queria entregar ao duque. Depois quiseram lançar um imposto sobre a bela armadura e Jeanette convenceu-os de novo, usando copiosamente o nome do nobre. Os soldados acabaram por ceder, permitindo que a carroça entrasse nas ruas estreitas, onde as tendas de comércio vinham até à estrada. Os pedintes corriam à volta e os soldados empurravam Thomas, que conduzia o cavalo. A cidade estava cheia de tropas. A maior parte dos homens-de-armas usava a insígnia do arminho branco dentro da cercadura, mas muitos apresentavam o graal verde de Génova nas suas túnicas. A presença de tantos soldados confirmava que o duque estava de fato na cidade, preparando-se para a campanha que haveria de expulsar os ingleses da Bretanha.

Encontraram uma taberna por baixo das enormes torres gémeas da catedral. Jeanette queria aprontar-se para a audiência com o duque e pediu um quarto particular, embora tudo o que conseguisse com o dinheiro fosse um compartimento cheio de aranhas, por baixo das traves do telhado da taberna. O estalajadeiro, um homem pálido, com um tique, sugeriu que Thomas ficaria mais bem instalado no convento dominicano, junto à igreja de São Germano, a norte da catedral. Porém, Thomas declarou que a sua missão era ficar entre os pecadores e não entre os santos, de modo que o estalajadeiro lhe disse, de má vontade, para dormir na carroça de Jeanette, estacionada no pátio.

- Mas nada de pregações, padre - acrescentou o homem. - Nada de pregações. Já há que chegue na cidade. Não é preciso virem estragar as Três Chaves.

A criada de Jeanette escovou o cabelo da sua ama e enrolou-lhe as tranças negras por cima das orelhas e a seguir envergou-lhe um vestido de veludo vermelho que escapara ao saque da casa. Tinha uma saia que saía justamente por baixo dos seios e chegava até ao chão, enquanto o corpete, cingido ao pescoço, mostrava um complicado bordado de flores de milho e margaridas. As mangas cheias, debruadas a pele de raposa caíam-lhe até aos sapatos vermelhos, com fivelas de osso. O toucado era idêntico ao vestido e estava debruado com a mesma pele, adornado com um véu de renda azul-escuro. Cuspiu no rosto do filho para lhe limpar a sujidade e depois levou-o para o pátio da taberna.

- Achais bem o véu? - perguntou ansiosamente a Thomas. Este encolheu os ombros.

- A mim parece-me bem.

- Não. A cor! Fica bem com o vermelho?

Ele acenou afirmativamente, escondendo a surpresa. Nunca a vira tão elegantemente vestida. Agora sim, parecia uma condessa, enquanto o filho vestira um fatinho limpo e tinha o cabelo húmido e penteado.

- Vais conhecer o teu tio-avô! - disse Jeanette a Charles, lambendo um dedo para lhe esfregar de novo a sujidade do rosto. - E ele é sobrinho do rei de França. Quer dizer que ainda és aparentado com o Rei! Claro que és! Não és um felizardo?

Charles encolheu-se para escapar aos carinhos da mãe, mas esta nem deu por isso, pois estava ocupada a instruir Pierre, o criado, de como haveria de meter a armadura e a espada numa saca enorme. Queria que o duque as visse.

- Quero que ele saiba - disse a Thomas - que quando o meu filho tiver idade, lutará por ele.

Pierre, que afirmava ter setenta anos, ergueu a saca e quase caiu sobre ela com o peso. Thomas ofereceu-se para a transportar até à cidadela, mas Jeanette nem quis ouvir tal coisa.

- Podeis passar por escocês por entre o povo, mas no séquito do duque pode haver alguém que já tenha estado nessas paragens - alisou as rugas da saia de veludo vermelho. - Esperai aqui - disse a Thomas. - Depois mando Pierre com um recado, talvez até com algum dinheiro. Decerto o duque há-de ser generoso. Vou exigir um salvo-conduto para vós. Que nome haveis de utilizar? Um nome escocês? Apenas Thomas, o frade? Assim que te vir - falava agora para o filho - vai imediatamente abrir a bolsa, não achas? Claro que sim.

Pierre conseguiu pôr ao ombro a saca da armadura, sem cair sobre ela, e Jeanette deu a mão ao filho.

- Mando-vos um recado - prometeu a Thomas.

- Deus te abençoe, minha filha - disse Thomas. - E que o bendito São Guinefort te proteja.

Jeanette franziu o nariz ao ouvi-lo mencionar São Guinefort, que soubera por Thomas ser realmente um cão.

- Prefiro confiar em São Renano - disse com ar reprovador e com essas palavras, saiu.

Pierre e a mulher seguiram-na e Thomas ficou à espera no pátio, oferecendo a sua bênção aos moços de estrebaria, gatos vadios e taberneiros. Se fores suficientemente louco, dissera-lhe o pai uma vez, ou te fecham no manicómio ou fazem de ti um santo.

A noite caiu, húmida e fria, com rajadas de vento suspirando por entre as torres da catedral e fazendo restolhar o tecto de colmo da estalagem. Thomas lembrou-se da penitência exigida pelo padre Hobbe.

A lança seria verdadeira? Teria realmente esmagado as escamas de um dragão, espetado as suas costelas e lacerado um coração pelo qual passava sangue frio? Pensava que fosse verdadeira. O pai acreditara e, embora pudesse ter sido louco, nunca fora tolo. E a lança parecia velha, muito, muito velha. Dantes, Thomas rezava a São Jorge, mas já não o fazia, o que lhe causava remorsos. Assim, ajoelhou ao lado da carroça e pediu ao santo que lhe perdoasse os pecados, que lhe perdoasse a morte do escudeiro e por estar a fingir ser frade. Não quero ser uma pessoa má, disse ao matador do dragão, mas é tão fácil esquecer o céu e os santos. E se desejardes, rezou, encontrarei a lança, mas deveis dizer-me o que fazer com ela. Deveria devolvê-la a Hookton, que, tanto quando sabia, tinha deixado de existir? Ou talvez a quem a possuísse antes do avô a ter roubado? E quem seria o seu avô? E porque se teria o pai escondido da família? E porque o teria a família perseguido para recuperar a lança? Thomas não o sabia e, durante os últimos três anos, pouco se importara, mas de súbito, ali, no pátio da taberna, sentiu-se consumido pela curiosidade. Tinha de fato uma família, algures. O avô fora soldado e ladrão, mas quem seria? Acrescentou mais uma oração a São Jorge para que lhe permitisse descobri-lo.

- Estais a rezar para que chova, padre? - perguntou um dos moços de estrebaria. - Parece que sim. Bem precisamos.

Thomas poderia ter comido na taberna, mas sentiu-se repentinamente nervoso por ter de se encontrar num aposento cheio de gente, onde os soldados do duque e as suas mulheres falavam com jactância, cantavam, e brigavam. Nem conseguia enfrentar as cínicas suspeitas do estalajadeiro. O homem ficara intrigado por Thomas não querer ir para o convento e ainda mais por ver um frade a viajar com uma mulher tão bela.

- E minha prima - dissera Thomas ao homem, que fingira acreditar na mentira, mas Thomas não tinha vontade de responder a mais perguntas, de modo que se deixou ficar no pátio, onde comeu uma pobre refeição de pão seco, cebolas ácidas e queijo duro, o único alimento que restava na carroça.

Começou a chover e Thomas retirou-se para dentro da carroça, escutando os pingos a bater na cobertura de lona. Pensou em Jeanette e no rapazinho, que deveriam estar a comer delícias açucaradas em pratos de prata antes de os mandarem deitar em lençóis de linho numa alcova de paredes cobertas de tapeçarias. Começou a ter pena de si próprio. Era um fugitivo, Jeanette a sua única aliada, era demasiado nobre e poderosa para ele.

Os sinos anunciaram o fecho das portas da cidade. Os guardas percorriam-na em busca de fogueiras que pudessem destruí-la em poucas horas. As sentinelas tremiam de frio sobre as muralhas e os pendões do duque Charles esvoaçavam no alto da cidadela. Thomas estava entre os seus inimigos, protegido apenas pela sua inteligência e por um hábito dominicano. E estava só.



Jeanette sentia-se cada vez mais nervosa, ao aproximar-se da cidadela, mas convencera-se de que Charles de Blois a aceitaria como sua dependente, uma vez que conhecesse a criança que recebera o seu nome. Além do mais, o marido de Jeanette sempre dissera que o duque gostaria dela, se a pudesse conhecer melhor. Era verdade que, no passado, sempre se mostrara frio, mas as cartas dela deveriam tê-lo convencido da sua fidelidade. Pelo menos, haveria certamente de ter a delicadeza de acudir a uma mulher em apuros.

Para sua grande surpresa foi mais fácil entrar na cidadela do que passar a porta da cidade. Com um aceno, as sentinelas mandaram-na atravessar a ponte levadiça e depois a arcada que a conduziu a um pátio todo à volta com estábulos, cocheiras e armazéns. Duas dezenas de homens-de-armas treinavam o manejo da espada, o que na semi-obscuridade do fim da tarde, gerava centelhas de luz. Mais centelhas saíam da forja onde um cavalo estava a ser ferrado e Jeanette sentiu o cheiro do casco queimado misturado com o fedor do estrume e de um cadáver em decomposição, suspenso por correntes no muro do pátio. Uma tabuleta lacónica e mal escrita informava que o homem fora um ladrão.

Um camareiro fê-la passar por uma segunda arcada e entrar numa câmara gelada, onde cerca de vinte peticionários esperavam para falar com o duque. Um escrivão anotou o seu nome, erguendo uma sobrancelha, num gesto de silenciosa surpresa, quando ela se fez anunciar.

- Sua graça será informada da vossa presença - disse o homem, numa voz enfadada, indicando depois um banco de pedra encostado às paredes altas do aposento.

Pierre poisou a armadura no chão e acocorou-se ao lado, enquanto Jeanette se sentou. Alguns dos peticionários andavam de um lado para outro, apertando contra si rolos de pergaminho, murmurando silenciosamente as palavras que utilizariam quando fossem recebidos pelo duque, enquanto que outros se queixavam aos escrivães que esperavam já havia três, quatro, ou até mesmo cinco dias. Quanto tempo mais? Um cão levantou a pata contra um pilar, depois dois rapazinhos de seis ou sete anos correram pelo aposento com espadas de madeira. Olharam uns segundos para os peticionários e depois subiram a correr a escadaria guardada por homens-de-armas. Jeanette gostaria de saber se seriam filhos do duque e já imaginava Charles a fazer amizade com os rapazes.

- Vais ser feliz aqui - disse-lhe.

- Tenho fome, mamã.

- Já vamos comer.

Esperou. Duas mulheres atravessaram a galeria no cimo das escadas, envergando pálidos vestidos de linho rico que parecia flutuar enquanto caminhavam, e Jeanette sentiu-se de súbito mal arranjada no seu amarrotado traje de veludo vermelho.

- Tens de se ser delicado na presença do duque - disse a Charles, que começava a ficar impertinente com fome. - Ajoelhas diante dele, sabes como é? Ajoelha para eu ver.

- Quero ir para casa - disse Charles.

- Mostra à mamã como sabes ajoelhar. Pronto!

Jeanette despenteou o cabelo do filho, num gesto de agrado e imediatamente o tentou assentar de novo. Lá de cima, chegava o som doce e leve de uma harpa e de uma flauta e Jeanette pensou, ansiosa, na vida que desejava. Uma vida adequada a uma condessa, cheia de música e homens bem-parecidos, elegância e poder. Reconstruiria Plabennec, embora não soubesse com quê, mas faria uma torre maior e uma escadaria como a daquele aposento. Passou uma hora e depois outra. Estava já escuro e o salão era fracamente iluminado por dois archotes que lançavam fumo na direcção ao tecto ornamentado de cercaduras. Charles mostrava-se cada vez mais impertinente e ela pegou-lhe ao colo, tentando embalá-lo para que adormecesse. Dois padres, de braço dado, desceram lentamente as escadas, rindo, e logo a seguir veio para baixo um criado, com a libré do duque. Todos os peticionários se ergueram e olharam-no ansiosamente. Este dirigiu-se à mesa do escrivão, falou uns instantes com ele, depois voltou-se e fez uma reverência a Jeanette.

Esta levantou-se.

- Esperem aqui - disse aos dois criados.

Os outros peticionários lançaram-lhe olhares cheios de ressentimento. Fora a última a entrar no aposento e era primeira a ser chamada. Charles arrastava os pés e Jeanette deu-lhe uma leve palmada na cabeça para lhe recordar as boas maneiras. O criado caminhava silenciosamente a seu lado.

- Sua graça está de boa saúde? - perguntou Jeanette nervosa.

O criado não respondeu, limitando-se a conduzi-la pelas escadas acima, voltando depois à direita, na galeria, por cujas janelas a chuva entrava. Passaram um arco, subiram mais um lanço de degraus no cimo dos quais um outro criado abriu uma porta de par em par.

- O conde de Armórica - anunciou. - E sua mãe!

O aposento circular estava por certo situado numa das torres da cidadela. Havia uma enorme lareira de um lado, enquanto que seteiras cruciformes se abriam para a enorme humidade escura para além das paredes. A câmara estava profusamente iluminada por quarenta ou cinquenta velas lançando a sua luz sobre as tapeçarias suspensas, uma enorme mesa polida, uma cadeira, um genuflexório com cenas da paixão de Cristo entalhadas e um divã coberto de peles. O chão estava atapetado com peles de veado. Dois escrivães trabalhavam numa mesa mais pequena, enquanto o duque, maravilhoso nas suas vestes azul forte debruadas a arminho, com uma touca a condizer, se sentava à mesa grande. Um padre de meia-idade, magro, grisalho e de rosto comprido, estava de pé, junto ao genuflexório e observava Jeanette com uma expressão de desagrado.

Esta inclinou-se diante do duque e empurrou o filho.

- Ajoelha - murmurou.

Charles começou a chorar escondendo o rosto nas saias da mãe.

O duque estremeceu ao ouvir o ruído da criança, mas nada disse. Era ainda jovem, mais perto dos trinta que dos vinte anos, com um rosto pálido e atento. Era magro, de barba e bigode louros e mãos longas e ossudas que apertava diante da boca contraída. Tinha reputação de homem sábio e piedoso, mas havia uma certa petulância na sua expressão, que fez com que Jeanette se acautelasse. Desejou ouvi-lo falar, mas os quatro homens que se encontravam no aposento, limitavam-se a observá-la em silêncio.

- Tenho a honra de apresentar a vossa graça, o vosso sobrinho-neto - disse Jeanette, empurrando o choroso filho para diante. - O conde de Armórica.

O duque olhou para o rapazinho. O seu rosto nada traía.

- Chama-se Charles - disse Jeanette, mas bem poderia ter ficado calada, pois o duque não lhe respondeu. O silêncio era apenas quebrado pelo choro da criança e o estalar das chamas na enorme lareira. - Julgo que vossa graça tenha recebido as minhas cartas - disse Jeanette nervosa.

De súbito o padre falou, sobressaltando a condessa.

- Haveis chegado com um criado que carrega um fardo - disse este em voz aguda. - De que se trata?

Jeanette apercebeu-se de que provavelmente o sacerdote teria pensado tratar-se de um presente para o duque e corou, por não se ter lembrado de o trazer. Mesmo uma coisa pequena seria um gesto tácito, mas olvidara simplesmente tal cortesia.

- Contém a armadura do meu defunto marido - respondeu. - Foi resgatada aos ingleses, que me deixaram sem nada. Nada. Guardo a armadura e a espada para o meu filho, para que ele um dia possa combater pelo seu legítimo senhor - inclinou a cabeça na direcção do duque.

Este ergueu os dedos. Pareceu a Jeanette que nunca pestanejava, o que era tão perturbador como o seu silêncio.

- Sua graça gostaria de ver a armadura - anunciou o padre, embora o duque não tivesse mostrado qualquer sinal de desejar o que quer que fosse. O padre estalou os dedos e um dos escrivães saiu do aposento. O segundo, armado de uma pequena tesoura percorreu a sala cortando os pavios das muitas velas nos seus candelabros de ferro. O duque e o padre ignoraram-no.

Este falou de novo.

- Dizíeis haver enviado cartas a sua graça. A respeito de quê?

- Escrevi a respeito das defesas de La Roche-Derrien, padre, e avisei sua graça do ataque inglês a Lannion.

- Vós o dizeis - respondeu o padre. - Sois vós que o dizeis. - Charles continuava a chorar e Jeanette apertou-lhe a mão com força, na esperança de o sossegar, porém apenas o fez soluçar ainda mais. O escrivão, de costas para o duque, ia de vela em vela. A tesoura estalava, uma leve baforada de fumo ondulava por um momento, depois a chama aumentava e ficava mais firme. Charles começou a chorar ainda mais.

- Sua graça não gosta de crianças birrentas - afirmou o sacerdote.

- Tem fome, padre - explicou Jeanette, nervosa.

- Haveis vindo com dois criados?

- Sim, padre - respondeu Jeanette.

- Podem ir comer com o rapaz na cozinha - disse o padre, fazendo estalar os dedos na direcção do escrivão que tratava das velas e que, abandonando a tesoura sobre o tapete, pegou na mão do assustado Charles. O rapazinho não queria deixar a mãe, mas foi arrastado e Jeanette estremeceu, quando o som do seu choro foi desaparecendo, à medida que descia as escadas.

O duque, para além de mexer os dedos, não se movera. Limitava-se a observar Jeanette com uma expressão enigmática.

- Dizeis que os ingleses vos deixaram sem nada? - O padre retomava o interrogatório.

- Roubaram-me tudo o que tinha!

O padre estremeceu ao escutar o tom apaixonado da sua voz.

- Se vos deixaram na penúria, senhora, porque não haveis antes buscado o nosso auxílio?

- Não desejava ser um fardo, padre.

- Mas agora já desejais ser um fardo?

Jeanette franziu a testa.

- Trouxe o sobrinho de vossa graça, o senhor de Plabennec. Ou preferireis que crescesse entre os ingleses?

- Não deveis ser impertinente, menina - disse o padre, pacientemente. O primeiro escrivão voltara a entrar no aposento transportando a saca, que esvaziou sobre as peles de veado diante da mesa do duque. Este olhou para a armadura durante alguns instantes e voltou a instalar-se na sua cadeira alta e entalhada.

- É muito bela - declarou o padre.

- Preciosa - concordou Jeanette.

O duque espreitou de novo a armadura. Não mexeu um único músculo do rosto.

- Sua graça aceita - disse o padre, fazendo logo depois um gesto com, a longa mão branca e o escrivão, que pareceu entender o que lhe era pedido e sem palavras, pegou na espada e na armadura e levou-os para fora do aposento.

- Ainda bem que sua graça aceita - disse Jeanette, fazendo outra reverência. Tinha uma idéia confusa de que o duque, apesar das suas anteriores palavras, concluíra que a armadura e a espada eram um presente, mas não quais certificar-se. Tudo seria aclarado mais tarde. Uma rajada de vento frio entrou pelas seteiras, trazendo pingos de chuva e fazendo estremecer violentamente a chama das velas.

- Então - continuou o padre -, o que desejais de nós?

- O meu filho precisa de abrigo, padre - disse Jeanette, nervosa. - Necessita de um lar, de um sítio para crescer e aprender a ser um guerreiro.

- Sua graça aceita de boa vontade o vosso pedido - respondeu o sacerdote.

Jeanette sentiu-se invadida por uma enorme sensação de alívio. A atmosfera no aposento era tão pouco acolhedora que temeu ser expulsa sem nada, tal como chegara, porém as palavras do padre, embora friamente pronunciadas, diziam-lhe agora que não houvera razão para se ter preocupado. O duque aceitava as suas responsabilidades; fez então uma terceira reverência.

- Fico muito grata a vossa graça.

O sacerdote preparava-se para responder, mas, para surpresa de Jeanette, o duque ergueu uma mão branca e o padre curvou-se.

- É um grande prazer - disse o duque, num estranho tom de voz. - O vosso filho é-nos muito querido e desejamos que cresça para ser um guerreiro, como o pai - voltou-se para o padre e inclinou a cabeça. O sacerdote curvou-se gravemente e saiu do aposento.

O duque ergueu-se e dirigiu-se ao lume onde estendeu as mãos para as pequenas chamas.

- Viemos a saber - disse com ar distante - que as rendas de Plabennec não foram pagas nos últimos doze trimestres.

- Saiba vossa graça que os ingleses estão na posse do domínio.

- E vós estais em dívida para comigo - disse o duque franzindo a testa para o lume.

- Se vossa graça proteger o meu filho, estarei eternamente em dívida para convosco - disse Jeanette, humildemente.

O duque retirou a touca e passou a mão pelo cabelo louro. Jeanette pensou que ele parecia mais novo e mais bondoso sem o chapéu, mas ficou gelada ao ouvir as palavras que seguidamente pronunciou.

- Não quis que Henri se casasse convosco - deteve-se, abruptamente. Por um instante, Jeanette ficou muda, diante de tanta franqueza.

- O meu marido sempre lamentou a reprovação de vossa graça - disse finalmente, em voz baixa.

O duque ignorou as palavras de Jeanette.

- Deveria ter-se casado com Lisette da Picardia. Tinha dinheiro, terras, rendeiros. Teria trazido enormes riquezas para a nossa família. Em tempos difíceis, a riqueza é... - fez uma pausa, tentando encontrar a palavra certa. - É uma almofada. Vós madame, não tendes almofada.

- Apenas a bondade de vossa graça - afirmou Jeanette.

- Encarrego-me de vosso filho - disse o duque. - Será educado na minha casa e treinado nas artes da guerra e da civilização, como compete à sua posição.

- Fico-vos muito grata - Jeanette estava cansada de tanta bajulação. Desejava um sinal de afecto da parte do duque, mas desde que se dirigira à lareira, este não a olhava de frente.

De repente voltou-se.

- Há um advogado chamado Belas em La Roche-Derrien?

- De fato, saiba vossa graça que há.

- Disseme que vossa mãe era judia - pronunciou a última palavra com o maior desprezo.

Jeanette olhou-o, de boca aberta. Por momentos foi incapaz de pronunciar palavra. Recusava-se a acreditar que Belas tivesse dito tal coisa, mas por fim conseguiu abanar a cabeça.

- Não era tal! - protestou.

- Também nos disse - continuou o duque - que haveis feito uma petição a Eduardo de Inglaterra para que as rendas de Plabennec vos fossem pagas.

- Que outra alternativa teria eu?

- E que vosso filho tinha sido colocado sob a tutela de Eduardo - acrescentou o duque intencionalmente.

Jeanette abriu e fechou a boca. As acusações vinham a tal velocidade, que não sabia como se defender. Era verdade que o filho tinha sido colocado sob a tutela do rei Eduardo, mas não por Jeanette. De fato, nem tinha estado presente, quando o duque de Northampton tomara tal decisão, mas antes de poder protestar ou explicar-se, o duque falou de novo.

- Belas disse-nos que muita gente na cidade de La Roche-Derrien se mostrava satisfeita com a ocupação inglesa.

- Algumas pessoas sim - admitiu Jeanette.

- E que vós, madame, tendes soldados ingleses em casa, para vos guardarem.

- Obrigaram-me a aquartelá-los! - exclamou, indignada. - Vossa graça terá de acreditar em mim! Não os quis lá!

O duque abanou a cabeça.

- Parece-nos, madame, que haveis dado as boas-vindas aos nossos inimigos. Vosso pai era vinhateiro, não é verdade?

Jeanette estava demasiado aturdida para dizer o que quer que fosse. Apercebia-se aos poucos de que Belas a traíra ignobilmente, porém agarrava-se ainda à esperança de que o duque se convenceria da sua inocência.

- Não lhes dei as boas-vindas - insistiu. - Opus-me a eles!

- Mercadores! - disse o duque. - Gentes apenas leais ao dinheiro. Não têm honra. A honra não se aprende, madame. Nasce-se com ela. Tal como se cria um cavalo pela bravura e velocidade, ou um cão pela sua agilidade e ferocidade, assim se cria um nobre pela honra. Não podíeis transformar um cavalo de lavoura num alazão, nem um mercador num gentil-homem. É contra a natureza e as leis de Deus - fez o sinal da Cruz. - Vosso filho é o conde de Armórica e educá-lo-emos na honra, mas vós, madame, sois a filha de um mercador e de uma judia.

- Não é verdade! - protestou Jeanette.

- Não me griteis, madame - disse o duque em tom gelado. - Sois um fardo para mim. Atreveis-vos a vir aqui, envolta em peles de raposa, esperando que vos desse abrigo? Que mais? Dinheiro? Oferecerei um lar a vosso filho, madame, mas a vós, dar-vos-ei um marido. - Encaminhou-se para ela, com passo silenciosos sobre os tapetes de pele de veado. - Não vos mostrais adequada a ser a mãe do conde de Armórica. Haveis acolhido o inimigo, não tendes honra.

- Eu... - Jeanette começou de novo a protestar, mas o duque esbofeteou-a com toda a força.

- Vós ficareis em silêncio, madame - ordenou. - Em silêncio - puxou-lhe os cordões do corpete e quando ela se atreveu a resistir, voltou a agredi-la. - Sois uma rameira, senhora - disse o duque e, depois, tendo perdido a paciência com as complicadas fitas cruzadas, agarrou na tesoura de cima do tapete e utilizou-a para as cortar e expor os seios de Jeanette. Esta estava tão desconcertada, atordoada e horrorizada que nem tentou proteger-se. Não se tratava de sir Simon Jekyll, mas do seu senhor, o sobrinho do rei e tio de seu esposo. - Sois uma bela rameira, senhora - disse o duque, em tom de desprezo. - Como haveis enfeitiçado Henri? Bruxaria de judeus?

- Não - chorou Jeanette. - Não, por favor!

O duque abriu as vestes e Jeanette viu que estava nu por baixo.

- Não! - exclamou mais uma vez. - Não!

O duque empurrou-a com tanta força que ela caiu no divã. O rosto dele continuava sem mostrar qualquer emoção - nem luxúria, nem prazer, nem raiva. Levantou-lhe as saias, ajoelhou sobre o divã e violou-a sem o menor sinal de deleite. Parecia vagamente raivoso e, quando terminou, deixou-se cair sobre ela e depois estremeceu. Jeanette chorava. Ele limpou-se à saia de veludo.

- Vou tomar esta experiência, como pagamento das rendas de Plabennec, que estão em falta - afirmou. Saiu de cima dela, pôs-se de pé e aconchegou as vestes puxando-as pelo debrum de arminho. - Sereis colocada numa alcova aqui, madame, e amanhã dada em casamento a um dos meus homens-de-armas. Vosso filho ficará cá, mas vós ireis para onde o vosso marido for enviado.

Jeanette chorava sobre o divã. O duque fez uma careta de desagrado, atravessou o aposento e ajoelhou no genuflexório.

- Componde o vosso vestido, madame - disse friamente. - E acalmai-vos. Jeanette conseguiu recuperar as fitas cortadas para apertar o corpete

e depois olhou para o duque por entre a chama das velas.

- Não tendes honra - disse num murmúrio. - Não tendes honra.

O duque ignorou-a. Fez soar uma campainha, depois pôs as mãos e fechou os olhos para rezar. Continuava a fazê-lo, quando o padre e o criado chegaram para, sem uma palavra, levarem Jeanette pelo braço, conduzindo-a um pequeno quarto no andar inferior ao dos aposentos do duque. Atiraram-na lá para dentro, fecharam a porta e ela ouviu correr uma tranca do outro lado. Havia um colchão de palha e uma molho de vassouras na improvisada cela, mas mais nada.

Deitou-se no colchão e soluçou até lhe doer o coração.

O vento uivava, a chuva batia na janela e Jeanette desejou estar morta.



Os galos da cidade acordaram Thomas por entre o vento forte e a chuva torrencial que batia e repassava a cobertura da carroça. Entreabriu o pano e sentou-se a olhar as poças que se formavam sobre o empedrado do pátio da estalagem. Não lhe chegara qualquer recado de Jeanette, mas também não esperara que tal acontecesse. Will Skeat tivera razão. Era dura como o aço e agora estava no local que lhe competia - e que naquela madrugada fria e húmida seria provavelmente um quarto aquecido com uma lareira acesa por um dos criados do duque - e já se teria esquecido da existência de Thomas.

Gostaria de saber de que recado estaria afinal à espera. De uma declaração de afecto? Sabia que era exactamente o que desejava, mas convencera-se de que apenas aguardava que Jeanette lhe enviasse o salvo-conduto assinado pelo duque, mesmo sabendo que não precisava dele. Poderia encaminhar-se para Oriente e para Norte, confiando na protecção do hábito dominicano. Não fazia a mínima idéia de como havia de chegar à Flandres, mas pensava que Paris ficasse mais ou menos perto dessa região, de modo que, o melhor seria começar a seguir o rio Sena desde Rennes até essa cidade. A sua maior preocupação era poder encontrar um verdadeiro dominicano pelo caminho, que rapidamente descobriria que Thomas mal tinha uma vaga idéia das regras da irmandade e desconhecia toda a sua hierarquia. Consolava-se a pensar que os dominicanos escoceses estavam provavelmente tão afastados da civilização que tal ignorância não seria de espantar. Disse para consigo que haveria de sobreviver.

Olhava para a chuva a cair nas poças de água. Nada esperes de Jeanette ordenou a si próprio e, para provar que acreditava nessa agoirenta profecia, aprontou a sua parca bagagem. Desagradava-lhe deixar ficar a cota de malha, mas pesava demasiado, de modo que a abandonou dentro da carroça, porém, meteu os três molhos de flechas numa saca. As setenta e duas setas eram pesadas, com as pontas ameaçando romper o pano, mas sentia-se relutante a viajar sem elas, amarradas com corda de cânhamo, também usada para atar a faca à perna esquerda e que, tal como a bolsa do dinheiro, escondia sob o hábito negro.

Estava pronto a seguir, mas a chuva martelava agora a cidade como uma tempestade de flechas. Os trovões ribombavam a oeste, a chuva caía como chumbos sobre o colmo, escorria em catadupas dos telhados, fazendo deitar por fora os barris de água que lavavam o pátio da sujidade da noite. Chegou o meio-dia, marcado pelo repique abafado dos sinos e a cidade afogava-se ainda. Nuvens negras empurradas pelo vento rodopiavam em volta das torres da catedral e Thomas disse para consigo que partiria no momento em que a chuva abrandasse, só que o temporal se limitou a piorar. Os raios cintilavam sobre a catedral e o estrondo dos trovões fazia estremecer a cidade. Thomas tremia assustado com a fúria dos céus. Via os relâmpagos reflectidos na grande janela do lado poente da catedral, assombrado com o espectáculo. Tantos vidros! Continuava a chover e receou ter de permanecer metido na carroça até ao dia seguinte. Depois, logo seguir ao ribombar de um trovão que parecia querer assustar toda a cidade com a sua violência, viu Jeanette.

A princípio não a reconheceu. Viu apenas uma mulher, junto ao arco que servia de entrada ao pátio da estalagem, com a água a correr-lhe junto aos sapatos. Toda a gente em Rennes procurara abrigo, mas aquela mulher aparecia-lhe de súbito encharcada e infeliz. O cabelo que tão cuidadosamente enrolara sobre as orelhas, pendia liso e escuro sobre o ensopado vestido de veludo vermelho, e foi esse que Thomas reconheceu, mesmo antes de lhe notar a tristeza do rosto. Saiu com dificuldade da carroça.

- Jeanette!

Ela chorava, a boca contorcida pelo desgosto. Parecia incapaz de pronunciar palavra, apenas estava ali a soluçar.

- Senhora! - disse Thomas. - Jeanette!

- Temos de ir - conseguiu ela dizer. - Temos de ir. - Usara fuligem em volta dos olhos como cosmético que agora escorrera, deixando-lhe traços cinzentos no rosto.

- Não podemos ir nisto! - afirmou Thomas.

- Temos de ir! - gritou-lhe zangada. - Temos de ir!

- Vou buscar o cavalo - respondeu Thomas.

- Não há tempo! Não há tempo - arrepanhava o vestido. - Temos de ir. Já! - Tentava puxá-lo, para o fazer sair para a rua.

Thomas soltou-se e correu para a carroça, de onde retirou o seu arco disfarçado e a pesada saca. Pegou também na capa de Jeanette, que lá se encontrava, e passou-lha em volta dos ombros, embora ela não parecesse reparar.

- Que se passa? - perguntou Thomas.

- Vão descobrir-me aqui, vão descobrir-me aqui! - afirmava Jeanette em pânico, puxando-o às cegas, para que saísse a arcada da taberna. Thomas conduziu-a para sul, metendo por uma rua íngreme que levava a uma bonita ponte de pedra sobre o Sena e depois à porta da cidade. Os portões principais estavam barrados, mas num deles havia uma portinha aberta e os guardas da torre não se preocuparam que um frade louco e encharcado quisesse levar uma maluca a soluçar para fora da cidade. Jeanette continuava a olhar para trás, temendo que a perseguissem mas, mesmo assim, não explicou a Thomas a razão do seu pânico e das suas lágrimas. Apenas caminhava a toda a pressa para Oriente, insensível à chuva, ao vento e à trovoada.

O temporal acalmou ao cair da noite, quando estavam já perto de uma aldeia onde encontraram o que parecia ser uma pobre taberna. Thomas curvou-se para passar a porta baixa e pediu abrigo. Pôs umas moedas sobre a mesa.

- Preciso de abrigo para a minha irmã - disse, calculando que um padre que viajasse com uma mulher poderia levantar suspeitas. - Abrigo, comida e lume - disse, acrescentando outra moeda.

- Vossa irmã? - o taberneiro, com o rosto marcado da varíola e cheio de quistos, espreitou Jeanette que se acocorara à porta.

Thomas tocou na cabeça para indicar que ela era louca.

- Vou levá-la ao santuário de São Guinefort - explicou.

O taberneiro olhou para as moedas, espreitou novamente Jeanette e resolveu que o estranho casal poderia usar um estábulo vazio.

- Podeis fazer lá o lume - disse num resmungo. - Mas não queimeis o colmo.

Thomas acendeu o lume com brasas da cozinha, indo depois buscar comida e cerveja. Obrigou Jeanette a comer sopa e pão e a aproximar-se do fogo. Levou quase duas horas a convencê-la, antes que ela lhe contasse a história, o que apenas a fez chorar de novo. Thomas escutou estupefato.

- Mas como haveis escapado? - quis saber quando ela terminou. Uma mulher destrancara o quarto para ir buscar uma vassoura. Ficara desorientada ao ver que Jeanette lá se encontrava e ainda mais, quando a viu sair a correr. Jeanette fugira da cidadela, receando que os soldados a impedissem, mas nenhum reparara e tornara-se agora numa fugitiva. Tal como Thomas, só que havia perdido muito mais que ele. O filho, a honra, o futuro.

- Odeio os homens - declarou. Tremia de frio, pois o miserável lume feito com palha húmida e madeira podre mal lhe secara as roupas. - Odeio os homens - repetiu, olhando para Thomas. - Que vamos fazer?

- Vamos dormir - respondeu ele. - Amanhã seguimos para Norte. Jeanette acenou afirmativamente, mas Thomas pensou que ela não entendera as suas palavras. Jeanette estava desesperada. A roda da fortuna que a tão alto a guindara, levava-a agora às profundezas.

Dormiu durante algum tempo, mas quando Thomas acordou, na madrugada cinzenta, ouviu-a chorar baixinho e ficou sem saber o que dizer ou fazer: Resolveu deixar-se ficar estendido na palha até ouvir o ranger da porta da taberna e poder lá ir buscar comida e água. A mulher do taberneiro cortou-lhe algum pão e queijo, enquanto o marido perguntou a Thomas se ia para muito longe.

- O santuário de São Guinefort é na Flandres - disse Thomas.

- Flandres! - disse o homem como se ele tivesse mencionado a outra face da Lua.

- A família já não sabe o que há-de fazer com ela - explicou Thomas. - E eu não sei como hei-de chegar à Flandres. Pensei em ir primeiro a Paris.

- A Paris, não - disse a mulher do taberneiro com ar de desprezo. - Deveis ir a Fougères.

O pai dela, disse, tinha muitas vezes feito trocas comerciais com os países do Norte e estava certa de que o caminho de Thomas se faria por Fougères e Ruão. Não conhecia as estradas para lá de Ruão, mas tinha a certeza de que teria de lá chegar. Para começar, aconselhou a mulher, deveriam tomar uma pequena estrada em direcção ao Norte, à saída da aldeia. Atravessava o bosque, acrescentou o marido e teriam de ter cuidado, pois as árvores serviam de esconderijo a homens terríveis que fugiam à justiça, mas algumas milhas adiante chegariam à estrada principal para Fougères, patrulhada pelos homens do duque.

Thomas agradeceu-lhes, abençoou a casa e levou a comida a Jeanette, que se recusou a comer. Parecia ter esgotado as lágrimas e até a vida, mas, de boa vontade, seguiu Thomas para Norte. A estrada, profundamente sulcada pelas rodas das carroças e escorregadia devido à lama provocada pela chuva do dia anterior, serpenteava pelo interior do bosque onde a água ainda pingava. Jeanette andou aos tropeções durante algumas milhas e logo começou a chorar.

- Tenho de voltar para Rennes - insistiu. - Quero voltar, para ir buscar o meu filho.

Thomas argumentou, mas não a demoveu. Por fim cedeu, mas quando deu meia volta para seguir para sul, ela começou a chorar ainda mais. Continuava a repetir que o duque dissera que ela não era capaz de ser mãe.

- Não sou capaz! Não sou capaz! - gritava aos céus. - Fez de mim uma rameira! - depois ajoelhou na berma da estrada e soluçou descontroladamente. Tremia de novo e Thomas pensou que se não morresse de sezões, o desgosto, decerto, acabaria com ela.

- Vamos voltar para Rennes - disse Thomas, tentando encorajá-la.

- Não posso! - gemeu ela. - Vai fazer de mim uma rameira! Uma rameira! - exclamou, balançando-se para trás e para diante a gritar num tom aflito e estridente.

Thomas tentou levantá-la, tentou obrigá-la a caminhar, mas ela recusou-se. Queria morrer, disse, só queria morrer.

- Uma rameira - gritava, arrancando a pele de raposa do vestido vermelho. - Uma rameira! Disse que não deveria usar peles. Fez de mim uma rameira - atirou com a pele arrancada para os arbustos.

Não chovera de manhã, mas as nuvens amontoavam-se de novo a Oriente e Thomas, nervoso, tinha diante de si a alma desesperada de Jeanette. Como se recusasse a caminhar, pegou-lhe ao colo e levou-a até encontrar um atalho muito utilizado, que se internava por entre as árvores. Seguiu-o até chegar a uma cabana tão baixa e com o colmo de tal modo coberto de musgo, que a princípio pensou que fosse apenas um monte de terra entre as árvores; mas depois, viu o fumo cinzento azulado da madeira queimada a sair por um buraco do telhado. Thomas estava preocupado com os fora-da-lei que deviam assolar a floresta, mas começava a chover e a cabana era o único refúgio à vista. Assim, Thomas poisou Jeanette no chão e gritou pelo que mais parecia a entrada de uma toca. Um velho, de cabelos grisalhos, olhos vermelhos e a pele escurecida pelo fumo, espreitou para ver quem era. Falava francês, com palavras e um sotaque da região, tão cerrado que Thomas quase não o entendia; calculou que se tratasse de um guarda-florestal que ali vivesse com a mulher; o homem olhou avidamente para as moedas que Thomas lhe ofereceu e disse que podiam utilizar a pocilga vazia. O lugar fedia a palha podre e a trampa, mas o colmo era quase impermeável e Jeanette não pareceu importar-se. Thomas remexeu a palha velha e fez para Jeanette uma cama de fetos. O guarda-florestal, tendo recebido o dinheiro, pouco pareceu incomodar-se mais com os hóspedes. Mas a meio da tarde quando a chuva parou, Thomas escutou a mulher falar em surdina com o marido e, momentos depois, o velho saiu em direcção à estrada, mas sem levar consigo qualquer das ferramentas da sua profissão: nem machado, nem podadeira, nem serra.

Exausta, Jeanette dormia, de maneira que Thomas retirou do seu arco negro os trevos murchos, desprendeu a travessa que fazia de cruz e colocou de novo as extremidades de osso. Retesou a corda no teixo, meteu meia dúzia de flechas no cinto e seguiu o velho até à estrada, para se esconder atrás de uma moita.

O guarda-florestal voltou perto da noite com dois jovens, que Thomas calculou serem os fora-da-lei, contra os quais o tinham prevenido. O velho deveria ter calculado que Thomas e a mulher eram fugitivos, pois embora transportassem sacos e dinheiro andavam à procura de um esconderijo, o que fora suficiente para levantar suspeitas. Um frade não necessitava esconder-se por entre as árvores e mulheres que usavam vestidos debruados com restos de pele não procuravam a hospitalidade de um guarda-florestal. Sem dúvida que os dois jovens tinham sido chamados para ajudar a cortar o pescoço a Thomas, podendo depois dividir as moedas que encontrassem nele. O destino de Jeanette seria semelhante, mas mais demorado.

Thomas lançou a primeira flecha para o chão, entre os pés do velho e a segunda, para uma árvore próxima.

- A seguinte mata - disse, sem que o pudessem ver, pois estava escondido nas sombras da moita. Com os olhos muito abertos, fitavam os arbustos, em que Thomas se escondia falando em voz lenta e profunda.

- Viestes com o assassínio na alma - disse. - Mas eu posso erguer os hellequin das profundezas do Inferno. Posso fazer com que as garras do demónio cortem o vosso coração e com que os mortos vos assombrem a existência. Deixareis em paz o frade e a irmã.

O velho caiu de joelhos. As suas superstições eram mais antigas do que o tempo e o Cristianismo mal lhes tinha tocado. Acreditava que havia duendes na floresta e gigantes na bruma. Sabia que existiam dragões. Ouvira falar de homens, de pele negra, que habitavam a Lua e que caíam na terra quando aquela encolhia, tomando a forma de foice. Tinha a certeza de que os fantasmas caçavam por entre as árvores. Conhecia tudo isto tão bem como os freixos, os lariços, os carvalhos e as faias, e não duvidava de que tivesse sido o demónio a cuspir a flecha estranhamente longa que saíra da moita.

- Ide-vos - disse aos companheiros. - Ide-vos! - Os dois fugiram e o velho tocou com a testa no monte de folhas. - Não foi por mal!

- Ide para casa! - ordenou Thomas

Esperou até o velho ter partido, depois arrancou a flecha da árvore e, nessa noite, dirigiu-se à cabana do guarda-florestal, baixou-se para entrar pela porta baixa e sentou-se junto à lareira, diante do velho casal.

- Vou ficar aqui até a minha irmã recuperar o juízo - disselhes. - Desejávamos esconder a sua vergonha do mundo, mais nada. Quando partirmos oferecer-vos-emos uma recompensa, mas se de novo tentarem matar-nos, chamarei os demónios para que vos atormentem e deixarei os vossos cadáveres a servir de festim aos animais selvagens, que se escondem nas árvores - poisou uma moeda pequena no chão da lareira. - Levai-nos de comer todas as noites - disse à mulher - e agradecereis a Deus por eu vos perdoar, apesar de saber ler nos vossos corações.

Depois disso não causaram mais problemas. Todos os dias, o velho metia-se pelo bosque, com a podadeira e o machado, e todas as noites a mulher levava aos hóspedes papas de aveia ou pão. Thomas mungiu a vaca, matou um veado e pensou que Jeanette fosse morrer. Durante muitos dias recusou-se a comer e, por vezes, ia encontrá-la balançando-se para trás e para diante no telheiro sujo, soltando um profundo lamento. Thomas receava que tivesse enlouquecido para sempre. O pai contava-lhe, às vezes, como eram tratados os loucos, como ele próprio fora tratado, e como a fome e a pancada eram as únicas curas.

- O diabo entra na alma - dissera o padre Ralph - e nunca poderá sair a bem. Só pela fome ou com pancadas. Pancadas e fome, rapaz, pancadas e fome, é o único tratamento que o diabo entende.

Mas Thomas não poderia, nem matar à fome, nem bater em Jeanette, e assim, tratou-a o melhor possível. Mantinha-a seca, convencia-a a beber leite quente, acabado de mungir, falava com ela durante a noite, penteava-a, lavava-lhe o rosto e, por vezes, enquanto ela dormia e ele estava sentado no telheiro a olhar para as estrelas, através do emaranhado das árvores, interrogava-se se ele e os hellequin teriam deixado algumas vez mulheres tão perturbadas como Jeanette. Rezou para obter perdão. Rezou muito nesses dias e não a São Guinefort, mas sim à Virgem e a São Jorge.

As orações deveriam ter resultado, pois acordou uma madrugada e viu Jeanette sentada, à entrada da pocilga, o corpo magro, recortado na luz do novo dia. Voltou-se para ele, que já não lhe leu a loucura no rosto, mas sim uma profunda tristeza. Olhou-o longamente antes de falar.

- Foi Deus que vos mandou para junto de mim, Thomas?

- Se assim foi, fez-me um grande favor - replicou Thomas.

Ela sorriu, o primeiro sorriso que lhe vira no rosto, desde Rennes.

- Terei de me conformar - disse com toda a franqueza. - Porque o meu filho está vivo e é bem tratado e um dia hei de encontrá-lo.

- Encontrá-lo-emos ambos - afirmou Thomas.

- Ambos?

Ele fez uma careta.

- Nunca cumpri as minhas promessas - disse. - A lança ainda está na Normandia, sir Simon está vivo e não sei como hei-de encontrar o vosso filho. Creio que as promessas nada valem. Mas vou fazer o que puder.

Ela estendeu-lhe a mão, para que ele lha tomasse, e assim se deixou ficar.

- Vós e eu fomos castigados - disse. - Provavelmente pelo pecado do orgulho. O duque tinha razão. Não sou aristocrata. Sou a filha de um mercador, mas pensei estar mais acima. Olhai agora para mim.

- Estais mais magra - disse Thomas. - Mas muito bela. Ela estremeceu ao cumprimento.

- Onde estamos?

- A um dia de viagem de Rennes.

- Só?

- Numa pocilga - acrescentou Thomas. - A um dia de viagem de Rennes.

- Há quatro anos, eu vivia num castelo - disse melancólica. - Plabennec não era grande, mas era muito bonito. Tinha uma torre, um pátio, dois moinhos, um ribeiro e um pomar de maçãs muito vermelhas.

- Haveis de ver tudo isso de novo - afirmou Thomas. - Vós e vosso filho.

Lamentou ter mencionado a criança, pois os olhos dela encheram-se de lágrimas, que rapidamente limpou.

- Foi o advogado - disse.

- O advogado?

- Belas. Mentiu ao duque - havia na voz dela uma espécie de assombro pela traição do homem. - Disse ao duque que eu apoiava o duque Jean. E é o que farei, Thomas, é o que farei. Passarei a apoiar o vosso duque. Se for essa a única maneira de recuperar Plabennec e encontrar o meu filho, então apoiarei o duque Jean - apertou a mão de Thomas. - Tenho fome.

Passaram ainda outra semana na floresta, enquanto Jeanette recuperava as forças. Durante algum tempo, como um animal que procura escapar a uma armadilha, imaginava artifícios para se vingar imediatamente do duque e recuperar o filho, mas estes eram fantasiosos e inúteis e, à medida que os dias passaram, acabou por aceitar o seu destino.

- Não tenho amigos - disse uma noite a Thomas.

- Tendes-me a mim, senhora.

- Morreram - continuou parecendo não o ter ouvido. - A minha família morreu. O meu marido morreu. Pensais que sou uma maldição para aqueles que amo?

- Penso que devemos partir para Norte - respondeu Thomas. Jeanette ficou irritada com a sensatez dele.

- Não tenho a certeza de querer ir para Norte.

- Tenho eu - disse Thomas teimoso.

Jeanette apercebera-se de que, quanto mais para norte fosse, mais se afastava do filho, mas também não sabia que mais fazer e, nessa noite, como se aceitasse que passaria a ser conduzida por Thomas, foi ter com ele à sua cama de fetos e tornaram-se amantes. Depois chorou, mas voltou a fazer amor com ele, desta vez mais violenta, como que para abandonar a tristeza nos consolos da carne.

Partiram para Norte na manhã seguinte. Chegara o Verão, cobrindo os campos de verde. Thomas disfarçara de novo o arco, pregando nele a ripa de madeira e enfeitando-o com bons-dias e salgueirinha em vez de trevo. O seu hábito negro estava esfarrapado e ninguém o tomaria já por um frade; entretanto Jeanette tinha arrancado os restos da pele de raposa do vestido de veludo vermelho, sujo, amarrotado e gasto. Pareciam os vagabundos, que afinal eram, e andavam como fugitivos, evitando as cidades e as aldeias maiores para escaparem a possíveis dissabores. Banhavam-se em regatos, dormiam debaixo das árvores e apenas se aventuravam a entrar em pequenas aldeias quando a fome lhes exigia a compra de alimentos e cidra numa qualquer taberna decrépita. Se lhes perguntavam, afirmavam ser bretões, irmão e irmã, de viagem ao encontro de um tio, carniceiro na Flandres. Se alguém desconfiava da história, também não se atrevia a enfrentar Thomas, alto e forte, sempre com a faca a postos. Porém, evitavam, de preferência, as aldeias e ficavam nos bosques, onde Thomas ensinou a Jeanette a pescar trutas nos ribeiros. Acendiam fogueiras, cozinhavam o peixe e cortavam fetos para fazer a cama.

Mantinham-se nas proximidades da estrada, embora fossem obrigados a dar uma volta enorme para escaparem à fortaleza de Saint-Aubin-du-Cormier e outra para evitarem a cidade de Fougères. Algures, a norte dessa cidade, entraram na Normandia. Mungiram vacas nos pastos, roubaram um queijo enorme de dentro de uma carroça, parada à porta de uma igreja, e dormiram sob um tecto de estrelas. Já não faziam a mínima ideia do dia da semana ou mesmo do mês em que se encontravam. Estavam os dois queimados do sol e endurecidos pela jornada. A tristeza de Jeanette dissolvera-se numa nova alegria que atingiu o seu extremo quando descobriram uma cabana em ruínas, abandonada - apenas paredes de lama e palha - sem telhado, num pequeno bosque de aveleiras. Limparam-na de urtigas e silvas e aí viveram mais de uma semana, sem verem ninguém, sem quererem ver ninguém, adiando o futuro porque o presente era tão feliz. Jeanette chorava ainda pelo filho e passava horas delineando extraordinários planos de vingança contra o duque, contra Belas e contra sir Simon Jekyll, mas gozava também a liberdade daquele Verão. Thomas preparara de novo o arco para caçar e Jeanette, agora mais forte, já conseguia puxá-lo quase até ao queixo.

Ignoravam ambos o local onde se encontravam, mas também não se importavam. A mãe de Thomas contara-lhe uma história quando era pequeno, em que duas crianças fugiam para a floresta e eram criadas pelos animais. «Cresceram-lhes pêlos por todo o corpo. Tinham garras, cornos e presas» dizia-lhe. Por vezes, Thomas examinava as mãos para ver se lhe cresciam demais as unhas, mas nada. Sentia-se satisfeito, mesmo que se estivesse a transformar num animal. Raramente fora tão feliz, mesmo sabendo que o Inverno, embora ainda longe, haveria de chegar. Assim, talvez cerca de uma semana depois do dia de São João, seguiram de novo para Norte em busca de qualquer coisa que nenhum dos dois conseguia imaginar.

Thomas sabia ter prometido recuperar a lança e o filho de Jeanette, mas ignorava como poderia fazê-lo. Sabia apenas que teria de chegar a um sitio onde alguém, como Will Skeat, o tomasse ao seu serviço, mas também não podia falar com Jeanette acerca de tal futuro. Ela não quereria saber de arqueiros, nem de exércitos, nem sequer de homens ou de cotas de malha.

Porem, tal como ele, sabia não poder manter-se escondida para sempre. - Vou para Inglaterra - disse-lhe. - Vou apelar ao teu rei. - De todos os artifícios com que sonhara, este era o único que fazia sentido. O conde de Northampton colocara o filho sob a protecção do rei de Inglaterra. Assim, deveria apelar para Eduardo, na esperança de que ele a apoiasse.

Dirigiram-se para Norte, sem nunca perder de vista a estrada para Ruão. Atravessaram um rio a vau e entraram numa região dividida em pequenos campos, profundos bosques e montes íngremes e algures nessa terra verde, de que nenhum dos dois ouvira falar, a roda da fortuna girou de novo. Thomas sabia que essa roda governava a humanidade, que girava no escuro para determinar o bem e o mal, os altos e baixos, a saúde e a doença, a felicidade e a tristeza. Thomas calculava que tivesse sido Deus a fabricá-la para ser o mecanismo, com o qual Ele governava o mundo. Estava ocupado no céu, mas nesse São João, quando as colheitas já se encontravam nas eiras, os gaivões no alto das árvores, as sorveiras-bravas estavam pejadas de bagas vermelhas e as pastagens brancas de margaridas, a roda girou para Thomas e Jeanette.

Um dia caminharam até à beira do bosque, para se certificarem de que ainda se avistava a estrada. Geralmente, pouco mais viam que um homem que levava vacas para a feira, seguido por um grupo de mulheres, com ovos e legumes para vender. Poderia passar um padre num cavalo velho e uma vez viram um cavaleiro com o seu séquito de criados e homens-de-armas. Todavia, na maior parte dos dias, a estrada lá estava, branca, poeirenta e vazia sob o sol do Verão. Porém, naquele dia estava cheia. As gentes caminhavam para Sul, conduzindo vacas, porcos, carneiros, cabras e gansos. Uns empurravam carros de mão, outros tinham carroças puxadas por bois ou cavalos e todas carregadas com tamboretes altos, mesas, bancos e camas. Thomas apercebeu-se de que eram fugitivos.

Esperaram até ficar escuro. Depois Thomas sacudiu o melhor que pôde o seu hábito dominicano e, deixando Jeanette escondida por entre as árvores, avançou até à estrada, onde alguns viajantes tinham montado o acampamento, junto a pequenas fogueiras fumacentas.

- A paz de Deus esteja convosco - disse Thomas a um grupo.

- Não temos comida para partilhar, padre - respondeu um homem, olhando-o desconfiado.

- Já comi, meu filho - disse Thomas e acocorou-se junto ao lume.

- Sois padre, ou vagabundo? - perguntou o homem. Tinha um machado que puxou para si, para se proteger, pois o cabelo emaranhado e sujo de Thomas estava demasiado comprido e tinha o rosto queimado como o de um fora-da-lei.

- Sou as duas coisas - disse Thomas, com um sorriso. - Venho a pé desde Avinhão - explicou. - Para cumprir uma penitência no santuário de São Guinefort.

Nenhum dos refugiados tinha ouvido falar do bendito Guinefort, mas as palavras de Thomas convenceram-nos, pois a idéia de peregrinação explicava o seu estado desolado, enquanto que o deles, afirmaram, era triste e fora causado pela guerra. Vinham da costa da Normandia, apenas a um dia de viagem e de manhã, deveriam meter-se de novo à estrada para fugir ao inimigo.

Thomas fez o sinal da Cruz.

- Que inimigo? - perguntou, esperando ouvir que dois senhores normandos se tivessem desentendido e andassem a atacar os domínios um do outro.

Porém, a pesada roda da fortuna girara inesperadamente. O rei Eduardo III de Inglaterra atravessara o canal. Tal expedição era aguardada, havia muito, porém o rei não se dirigira para as suas terras na Gasconha, como muitos pensavam, nem para a Flandres, onde combatiam outros ingleses, tendo, sim, vindo para a Normandia. O exército estava apenas a um dia de viagem. Ao ouvir as novas, Thomas ficou de boca aberta.

- Deveis fugir deles, padre - avisou-o uma da mulheres. - São impiedosos, até mesmo para com os frades.

Thomas garantiu-lhe que assim faria, agradeceu-lhes as novidades e voltou para o monte onde Jeanette o aguardava. Tudo tinha mudado. O seu rei viera à Normandia.



Nessa noite discutiram. Jeanette convencera-se subitamente de que deveria voltar para a Bretanha e Thomas limitava-se a olhá-la assombrado.

- Para a Bretanha? - perguntou-lhe em voz fraca.

Ela não o olhava de frente, fitando teimosamente as fogueiras do acampamento, que ardiam ao longo da estrada, enquanto mais para Norte, no horizonte nocturno, enormes clarões avermelhados indicavam haver aí fogueiras maiores. Thomas sabia que os soldados ingleses deveriam ter devastado os campos da Normandia, tal como os hellequin tinham feito na Bretanha.

- Se estiver na Bretanha, fico perto de Charles - afirmou Jeanette. Thomas abanou a cabeça. Estava vagamente consciente que a idéia da destruição causada pelo exército, os tinha obrigado a voltar a uma realidade, da qual andavam fugidos naquelas últimas semanas de liberdade, porém não conseguia relacioná-lo com o súbito desejo de Jeanette regressar à Bretanha.

- Podes estar perto de Charles - disse ele, cauteloso. - Mas poderás vê-lo? O duque permitirá que te aproximes dele?

- Talvez mude de idéia - disse Jeanette, sem grande convicção.

- E talvez te viole mais uma vez - disse Thomas, brutalmente.

- E se não for, talvez não volte a ver o meu filho - continuou ela com veemência. - Nunca mais!

- Então por quê teres vindo até aqui?

- Não sei, não sei - estava zangada, como era seu hábito, quando Thomas a conhecera em La Roche-Derrien. - Porque estava louca - disse amuada.

- Disseste que querias apelar ao rei - afirmou Thomas. - Ele está cá! - Apontou direito ao lívido clarão das fogueiras. - Apela para ele, aqui.

- Talvez não me creia - disse Jeanette, teimosa.

- E que faremos na Bretanha? - perguntou Thomas, mas Jeanette não lhe respondeu. Parecia amuada e continuava a evitar-lhe o olhar. - Podes casar-te com um dos soldados do duque - continuou Thomas. - Não era isso que ele queria? Uma mulher complacente, de um seguidor complacente, para que possa servir-se, a seu prazer, quando lhe apeteça.

- Não é o que tu fazes? - perguntou-lhe em tom de desafio, olhando-o por fim no rosto.

- Amo-te - disse Thomas.

Jeanette não pronunciou palavra.

- Amo-te - repetiu Thomas e sentiu-se um imbecil, pois ela nunca lhe tinha dito o mesmo.

Jeanette olhava para o brilho do horizonte, semi-oculto pelas folhas da floresta.

- O rei acreditará em mim? - inquiriu.

- Como poderá não o fazer?

- Pareço uma condessa?

Estava esfarrapada, pobre, mas muito bela.

- Falas como uma condessa - disse Thomas. - E os escrivães do rei poderão inquirir junto do conde de Northampton - ignorava se era ou não possível, mas queria dar-lhe alento.

Jeanette sentou-se cabisbaixa.

- Sabes o que o duque me disse? Que a minha mãe era judia! - olhou-o na esperança de que ele partilhasse a sua indignação.

Thomas franziu a testa.

- Não conheci nenhum judeu - afirmou.

Jeanette quase explodiu.

- E pensas que eu conheci? Será preciso conhecer o demónio para saber que é mau? Ou um porco para descobrir que cheira mal? - Começou a chorar. - Não sei que fazer.

- Vamos ter com o rei - disse Thomas.

Na manhã seguinte, partiu para Norte, e Jeanette, depois de algumas hesitações, seguiu-o. Tentara limpar o vestido, embora este estivesse tão sujo, que tudo o que conseguiu, foi sacudir os raminhos e as folhas do veludo. Apanhou o cabelo e segurou-o com pequenas ripas de madeira.

- Que tipo de homem é o rei? - perguntou a Thomas.

- Dizem que é bom homem.

- Quem diz?

- Todos. Que é franco.

- Mesmo assim é inglês - disse Jeanette em voz baixa, mas Thomas fingiu não ouvir. - É bondoso? - perguntou-lhe.

- Nunca ouvi ninguém dizer que era cruel - disse Thomas, erguendo a mão para lhe pedir silêncio.

Vira cavaleiros de cota de malha.

Muitas vezes Thomas pensara ser estranho que, quando os monges e os escrivães faziam os livros, pintassem a guerra com cores garridas. Os seus pincéis de pêlo de esquilo, mostravam homens com túnicas e saiotes muito coloridos e cavalos de arreios brilhantes. Porém, na maioria das vezes, a guerra era cinzenta, até que as pontas das flechas a manchassem de vermelho. Cinzento era a cor das cotas de malha e fora essa a cor que Thomas vira por entre as folhas verdes. Não sabia se eram franceses ou ingleses, mas receava ambos. Os franceses eram seus inimigos, mas também o seriam os ingleses até se convencerem de que era um deles e não um desertor do seu exército.

Das árvores distantes saíam mais cavaleiros armados e, como traziam arcos, teriam de ser ingleses. Mesmo assim, Thomas hesitou, relutante em enfrentar o problema de os convencer de que não era desertor. Atrás dos cavaleiros, escondido pelas árvores, deveria estar uma casa incendiada, pois o fumo começava a subir por sobre as folhas de Verão. Os cavaleiros olhavam agora em direcção a Thomas e a Jeanette, que estavam, ambos escondidos num valado, coberto de giestas; algum tempo depois, satisfeitas por não haver qualquer ameaça inimiga, as tropas deram meia volta e partiram para leste.

Thomas esperou que desaparecessem, antes de, com Jeanette, atravessar o campo aberto, entrar no bosque e chegar ao sítio em que ardia uma quinta. As chamas pareciam pálidas com o brilho do sol. Não havia ninguém à vista. Era apenas uma quinta incendiada, com um cão estendido junto ao charco dos patos, rodeado de penas. O cão gania e Jeanette gritou por ver que o tinham apunhalado na barriga. Thomas inclinou-se para o animal, fez-lhe uma festa na cabeça e acariciou-lhe as orelhas e o cão moribundo lambeu-lhe a mão e tentou abanar a cauda. Thomas meteu-lhe a faca no coração, para que morresse mais depressa.

- Não teria sobrevivido - explicou a Jeanette que nada dizia, limitando-se a olhar para o colmo e para as traves a arder. Thomas retirou a faca e tocou na cabeça do cão. - Vai ter com São Guinefort - disse, limpando a lâmina. - Sempre quis ter um cão, quando era criança - disse a Jeanette. - Mas o meu pai não os suportava.

- Porquê?

- Porque era um homem estranho - embainhou a faca e ergueu-se. Um atalho, marcado pelos cascos dos animais, saía da quinta em direcção ao norte; seguiram-no cautelosamente por entre sebes cobertas de flores do milho, margaridas e cornizo. Estavam numa região de pequenos campos, altos valados, bosques e colinas, uma região própria para emboscadas, que não viram, até que, do cimo de um outeiro, divisaram a torre de uma pequena igreja, no interior de um vale, depois os telhados intactos de uma aldeia e a seguir, soldados. Eram centenas, acampados por detrás das cabanas e mais ainda, dentro da própria aldeia. Tinham erguido tendas enormes junto à igreja e haviam ornamentado a entrada com pendões nobres. Thomas hesitava ainda, relutante em terminar os dias felizes com Jeanette, mas sabendo não ter escolha. Assim, de arco ao ombro, levou-a até à aldeia. Os soldados viram-nos chegar e uma dúzia de arqueiros conduzidos por um homem corpulento de lorigão de malha, aproximou-se.

- Quem diabos sois? - foi a primeira pergunta do homem corpulento. Os arqueiros sorriram com avidez, ao verem o vestido rasgado de Jeanette.

- Ou sois um maldito padre que roubou um arco - continuou o homem - ou um arqueiro que se apoderou do hábito de um frade.

- Sou inglês - afirmou Thomas.

O homem enorme não pareceu impressionar-se.

- E a quem servis?

- Estive com Will Skeat, na Bretanha - disse Thomas.

- Na Bretanha! - O homem franziu a testa, sem saber se havia ou não de acreditar.

- Diz-lhes que sou condessa - insistiu Jeanette, dirigindo-se a Thomas em francês.

- Que diz ela?

- Nada - respondeu Thomas.

- Que estais aqui a fazer? - perguntou o homem.

- Perdi-me das minhas tropas na Bretanha - disse Thomas em voz fraca. Não se atrevia a contar a verdade, que era um fugitivo da justiça, mas também não tinha outra história preparada. - Limitei-me a meter pernas ao caminho.

Era uma fraca explicação e o homem corpulento tratou-a com o devido desprezo.

- Estás a dizer-me, rapaz, que és um maldito desertor.

- Se o fosse não teria aqui vindo, não é verdade? - respondeu Thomas em tom de desafio.

- Seria difícil teres cá chegado, vindo da Bretanha, se só te tivesses perdido! - declarou o homem e a seguir cuspiu. - Terás de ir ter com Scoresby para que ele resolva quem és.

- Scoresby? - perguntou Thomas.

- Já ouviste falar dele? - perguntou o homem corpulento, em tom beligerante.

Thomas ouvira falar de Walter Scoresby que, tal como Skeat, conduzia o seu próprio bando de homens-de-armas e arqueiros, sem ter porém a boa reputação do outro. Dizia-se que era um homem mal-humorado, mas evidentemente seria ele a decidir o destino de Thomas, pois os arqueiros rodeavam-no já, para conduzirem o casal em direcção à aldeia.

- É a tua mulher? - perguntou um deles a Thomas.

- É a condessa de Armórica - respondeu este.

- E eu sou o conde de Londres - retorquiu o arqueiro.

Jeanette agarrou-se ao braço de Thomas, aterrorizada com tantas caras de poucos amigos. Thomas sentia-se igualmente infeliz. Na Bretanha, quando as coisas estavam mal, quando os hellequin resmungavam por haver frio e chuva, Skeat gostava de dizer «dêem-se por felizes por não estarem com Scoresby», o que, agora, para Thomas já não parecia ser verdade.

- Costumamos enforcar os desertores - disse o homem corpulento com satisfação.

Thomas reparou que os arqueiros, como todas as tropas que avistara na aldeia, usavam nas túnicas a cruz vermelha de São Jorge. Uma enorme multidão de soldados reunia-se agora num pasto por detrás da igreja e de um mosteiro ou priorato da ordem de Cister que, pelos vistos, escapara à destruição pois havia monges de hábito branco a ajudar o sacerdote que dizia missa para os soldados.

- Será domingo? - perguntou Thomas a um dos arqueiros.

- Terça-feira - respondeu o homem tirando o chapéu em presença dos Sacramentos. - É dia de São Tiago.

Esperaram à beira da pastagem, junto à igreja da aldeia, onde uma fila de recentes sepulturas indicava que alguns dos aldeãos tinham morrido à chegada do exército, mas que a maior parte provavelmente fugira para sul ou para ocidente. Tinham ficado alguns. Um velho, curvado do trabalho e com uma barba branca que quase lhe chegava ao chão, respondia ao padre, entre dentes e de longe, enquanto um rapazinho, talvez de seis ou sete anos, tentava disparar um arco inglês, para divertimento do dono.

A missa terminou e os homens de cota de malha que a tinham ouvido ajoelhados, ergueram-se para se dirigirem às tendas e às casas. Um dos arqueiros da escolta de Thomas fora até junto da multidão que dispersava, para aparecer de novo acompanhado por um grupo de homens. Destacava-se um deles por ser mais alto que os outros e ter uma cota de malha nova, tão polida que parecia cintilar. Calçava botas altas, uma capa verde e uma espada de punho dourado, com uma bainha coberta de tecido vermelho. Os ornamentos não pareciam de acordo com o seu rosto zangado e sinistro. Era calvo, mas tinha uma barba dupla, cujas pontas entrançara.

- É Scoresby - murmurou um dos arqueiros e Thomas não precisou adivinhar a qual dos soldados, que se aproximavam, se referia.

Scoresby deteve-se a uns passos dele e o arqueiro enorme, que prendera Thomas, sorriu com desprezo.

- Um desertor - anunciou orgulhoso. - Diz que veio a pé desde a Bretanha.

Scoresby lançou a Thomas um olhar duro e a Jeanette outro, mas muito mais demorado. O vestido rasgado revelava-lhe uma parte da coxa e o colo e Scoresby desejava sem dúvida ver mais. Tal como Will Skeat, tinha começado a sua vida militar como arqueiro, subindo à força de argúcia e, por isso, Thomas duvidava que na sua alma houvesse lugar para a piedade.

Scoresby encolheu os ombros.

- Se se trata de um desertor - disse - enforcai o degenerado. - Depois , sorriu. - Mas ficamos-lhe com a mulher.

- Não sou um desertor - afirmou Thomas. - Esta mulher é a condessa de Armórica, aparentada com o conde de Blois, sobrinho do rei de França.

A maioria dos arqueiros vaiou esta ofensiva declaração, porém Scoresby era um homem cauteloso e tinha consciência da pequena multidão que se juntara perto da igreja. Entre os espectadores havia dois sacerdotes e alguns homens-de-armas com brasão nobre, de modo que a confiança de Thomas instalara-lhe a dúvida no espírito. Franziu a testa, ao olhar para Jeanette que, à primeira vista não passava de uma camponesa mas, apesar da face queimada do sol, era indiscutivelmente bela e os restos do vestido sugeriam que já conhecera a elegância.

- Ela é quem? - perguntou Scoresby.

- Já vos disse quem era - respondeu Thomas em tom beligerante. - Mas vou dizer-vos mais. Roubaram-lhe o filho, que estava sob a tutela do nosso rei. Veio em busca do auxílio de Sua Majestade - Thomas traduziu apressadamente a Jeanette o que acabara de dizer e, para seu alívio, esta acenou a sua concordância.

Scoresby fitava-a e qualquer coisa nela lhe aumentou as dúvidas.

- Que lhe sois vós a ela? - perguntou a Thomas.

- Salvei-a - respondeu ele.

- Ele diz - uma voz soou em francês no meio da multidão, sem que Thomas pudesse perceber a quem pertencia. Certamente o dono estava rodeado de homens-de-armas, todos eles de libré verde e branca. - Ele diz que vos salvou, madame. É verdade?

- Sim - respondeu Jeanette. Franziu a testa, incapaz de ver quem a interrogava.

- Dizei-nos quem sois - exigiu o homem, ainda sem se deixar ver.

- Sou Jeanette, condessa viúva de Armórica.

- Quem era vosso marido? - O tom de voz sugeria um jovem, mas um jovem muito confiante.

Jeanette empertigou-se ao ouvir o tom da pergunta, mas respondeu.

- Henri Chenier, conde de Armórica.

- E porque vos encontrais aqui, madame?

- Porque Charles de Blois raptou o meu filho! - respondeu Jeanette zangada. - Uma criança que foi colocada sob a protecção do rei de Inglaterra.

Durante algum tempo, o jovem nada disse. Alguns de entre a multidão afastavam-se nervosamente dos homens-de-armas de libré verde e branca que o rodeavam e Scoresby parecia apreensivo.

- Quem o colocou sob essa protecção? - perguntou por fim a voz.

- William Bohun - respondeu Jeanette. - Conde de Northampton.

- Acredito nela - disse a voz, e os homens-de-armas afastaram-se para que Thomas e Jeanette pudessem ver quem falara e que pouco mais era que um rapazinho.

De fato, Thomas pensou mesmo que ainda nem sequer tinha barba, embora estivesse perfeitamente desenvolvido e fosse muito alto - até mesmo mais do que Thomas - conseguindo ficar escondido, apenas porque os seus homens-de-armas usavam plumas verde e brancas nos elmos. Era um jovem louro, com o rosto levemente crestado pelo sol, vestido com uma capa verde, calções lisos, uma camisa de linho e nada, excepto a sua altura, podia explicar a razão pela qual os homens se tinham subitamente ajoelhado na relva.

- Para baixo - sussurrou Scoresby a Thomas que, perplexo, pôs um joelho em terra. Agora apenas Jeanette, o rapaz e a sua escolta de oito homens-de-armas se mantinham de pé.

O rapaz olhou para Thomas.

- Viestes realmente a pé desde a Bretanha? - perguntou em inglês, embora tal como muitos nobres, o falasse com um leve toque francês.

- Viemos ambos, senhor - respondeu Thomas, em francês.

- Por quê? - perguntou asperamente.

- Em busca da protecção do rei de Inglaterra, que é o guardião do filho da minha senhora - respondeu Thomas. - E que foi traiçoeiramente aprisionado pelos inimigos de Inglaterra.

O rapaz olhou para Jeanette quase com a mesma avidez e apreço mostrados por Scoresby. Poderia não ter barba, mas reconhecia à primeira vista uma mulher bela.

- Sois muito bem-vinda, senhora - sorriu. - Conheço a reputação de vosso esposo, admirei-o e lamento nunca ter tido oportunidade de me defrontar com ele em combate - curvou-se diante de Jeanette, depois desapertou a sua capa verde e dirigiu-se a ela. Colocou-lha sobre os ombros para lhe cobrir o vestido rasgado. - Vou assegurar-me, senhora que sejais tratada com a cortesia que a vossa posição exige e juro manter todas as promessas que a Inglaterra fez, em defesa do vosso filho - inclinou-se mais uma vez.

Jeanette, maravilhada e satisfeita com os modos do jovem, fez a pergunta que Thomas queria ver respondida.

- Quem sois, meu senhor? - perguntou com uma reverência.

- Sou Eduardo de Woodstock, senhora - respondeu, oferecendo-lhe o braço.

Para Jeanette nada significava, mas Thomas ficou aturdido.

- É o filho mais velho do rei - sussurrou-lhe.

Ela caiu de joelhos, mas o rapaz de rosto macio obrigou-a a erguer-se e conduziu-a ao priorato. Tratava-se de Eduardo de Woodstock, Conde de Chester, Duque da Cornualha e Príncipe de Gales. A roda da fortuna tinha mais uma vez elevado Jeanette.



A roda parecia indiferente à existência de Thomas. Foi deixado em paz, mas abandonado. Jeanette partira pelo braço do príncipe e mal olhara para trás, para o ver. Thomas escutou-lhe o riso e ficou a olhá-la. Tratara-a, alimentara-a, transportara-a e amara-a e agora, ela dispensava-o. Ninguém mais se interessou por ele. Scoresby e os seus homens, defraudados por terem perdido um enforcamento, tinham partido para a aldeia e Thomas perguntava agora a si próprio o que haveria de fazer.

- Raios! - exclamou em voz alta, sentindo-se um perfeito imbecil no seu velho hábito. - Raios! - repetiu. Erguia-se nele a raiva, espessa como o negro humor que provocava doenças nos homens, mas como o poderia evitar? Não passava de um tolo, com um hábito feito em tiras, e o príncipe era filho do rei.

O príncipe levara Jeanette para o valado coberto de relva onde, numa fileira colorida tinham erguido as tendas grandes. Cada uma delas possuía um mastro e no mais alto esvoaçava o pendão esquartelado do Príncipe de Gales, mostrando os leões doirados de Inglaterra nos dois quartos vermelhos e as flores-de-lis da mesma cor nos dois azuis. As flores-de-lis serviam para mostrar que era a do rei que reclamava o trono francês, enquanto que toda a bandeira, que pertencia ao rei de Inglaterra, estava atravessada por uma branca faixa denteada, com saliências, mostrando tratar-se do pendão do filho mais velho do rei.

Thomas sentiu-se tentado a seguir Jeanette, para exigir o auxílio do príncipe, mas nessa ocasião um dos pendões inferiores, o que estava mais afastado dele, foi agitado ao de leve pelo vento e endireitou lentamente as suas dobras. Thomas olhou-o fixamente.

O pendão tinha um campo azul, cortado na diagonal por uma risca branca. Três leões amarelos erguiam-se de ambos os lados da risca, decorada com três estrelas vermelhas de centros verdes. Era uma bandeira que Thomas bem conhecia e mal se atrevia a acreditar que a via aqui na Normandia. Eram as armas de William Bohun, conde de Northampton, delegado do Rei na Bretanha. Porém a sua bandeira era inconfundível e Thomas dirigiu-se para lá, temendo que, afinal, acabasse por ser uma cota de armas apenas semelhante à do conde, que ele confundira por causa do vento.

Todavia tratava-se realmente do pendão do conde e a sua tenda, que em contraste com os outros elegantes pavilhões da colina, era ainda o mesmo abrigo sujo feito com duas velas já gastas. Meia dúzia de homens-de-armas, com a libré do nobre, barraram o caminho quando Thomas se aproximou.

- Haveis vindo ouvir sua senhoria em confissão ou meter-lhe uma flecha na barriga? - perguntou um deles.

- Queria falar com sua senhoria - disse Thomas, mal conseguindo esconder a raiva provocada pelo abandono de Jeanette.

- Mas quererá ele falar contigo? - perguntou o homem divertido com as pretensões do esfarrapado arqueiro.

- Há-de querer - disse Thomas com uma confiança que não sentia inteiramente. - Dizei-lhe que está aqui o homem que lhe entregou La Roche-Derrien.

O homem-de-armas ficou desconcertado. Franziu a testa, mas justamente nessa ocasião, o pano da tenda ergueu-se e apareceu o próprio conde, em tronco nu, revelando um corpo musculoso, coberto de pelos ruivos. Chupava um osso de ganso e espreitava o céu, como se receasse a chuva. O homem-de-armas voltou-se para ele, indicando Thomas e encolhendo os ombros, como que para se livrar da responsabilidade de lhe ter aparecido um louco, sem se fazer anunciar.

O conde olhou para Thomas. - Bom Deus - disse algum tempo depois - Tomaste o hábito?

- Não, meu senhor.

O conde arrancou, com os dentes, um bocado de carne do osso.

- Thomas, não é verdade?

- Sim, meu senhor.

- Nunca esqueço uma cara - afirmou o conde. - E tenho boas razões para me recordar da tua, embora nunca esperasse ver-te por aqui. Vieste a pé?

Thomas acenou com a cabeça.

- Assim é, senhor. - Qualquer coisa o confundia na atitude do conde que quase parecia não estar surpreendido por ver Thomas na Normandia.

- Will contou-me o que se passou contigo - afirmou. - Contou-me tudo. Com que então Thomas, o meu modesto herói de La Roche-Derrien é um assassino, não é verdade? - falava com ar sinistro.

- Sim, meu senhor - respondeu Thomas humildemente.

O conde deitou fora o osso descarnado e logo a seguir, fez estalar os dedos e um criado atirou-lhe uma camisa de dentro da tenda. Vestiu-a e meteu-a nas calças.

- Com os diabos, rapaz, esperas que te salve da vingança de sir Simon? Sabes que veio para cá?

Thomas olhou para o conde de boca aberta. Nada disse. Sir Simon Jekyll estava ali? E Thomas que trouxera Jeanette para a Normandia. Sir Simon nada lhe poderia fazer, desde que estivesse sob a protecção do príncipe, mas poderia prejudicar Thomas. E com enorme satisfação.

O conde viu Thomas empalidecer e acenou com a cabeça.

- Está com os homens do Rei, porque eu não o quis, mas, mesmo assim, insistiu em viajar pois calcula poder conseguir saques melhores, aqui na Normandia do que na Bretanha e atrevo-me a dizer que terá razão. Mas o que verdadeiramente lhe dará alegria será ver-te. Já foste enforcado, Thomas?

- Enforcado, meu senhor? - perguntou Thomas em tom vago. Ainda não se recompusera da notícia de que sir Simon tinha vindo para a Normandia. Teria percorrido aquele longo caminho para encontrar o inimigo à sua espera?

- Sir Simon enforca-te - disse o conde mostrando uma indecente satisfação. - Vai deixar-te sufocar, pendurado na corda e não haverá nenhuma alma caridosa que te puxe pelos tornozelos para te apressar a morte. Poderás durar uma hora, duas, na mais completa agonia. Podes até aguentar muito mais tempo. Uma vez enforquei um homem, que durou das matinas às primas, e mesmo assim conseguiu amaldiçoar-me. Suponho então que queiras que te ajude, não é verdade?

Embora com algum atraso, Thomas pôs o joelho em terra.

- Haveis-me oferecido uma recompensa depois de La Roche-Derrien, meu senhor. Poderei reclamá-la agora?

O criado trouxe um tamborete de dentro da tenda e o conde sentou-se com as pernas abertas.

- Assassínio é assassínio - disse, palitando os dentes, com uma lasca de madeira.

- Metade dos homens de Will Skeat são assassinos, meu senhor - declarou Thomas.

O conde reflectiu naquelas palavras e depois acenou afirmativamente, mas com certa relutância.

- Mas são assassinos perdoados - respondeu suspirando. - Quem me dera que Will aqui estivesse - disse, iludindo o pedido de Thomas. - Quis que viesse, mas não pode até que Charles de Blois seja reconduzido à sua jaula - olhou para Thomas, com ar zangado. - Se eu te perdoar, tenho um inimigo em sir Simon - continuou. - Não que neste momento seja meu amigo, mas mesmo assim, porque hei-de poupar-te?

- Por La Roche-Derrien - respondeu Thomas.

- Que é uma grande dívida - concordou o conde. - Mesmo muito grande. Teríamos feito figura de imbecis, se não tivéssemos tomado aquela cidade, por mais desgraçada que fosse. Que raio, rapaz! Porque não decidiste ir para sul? Há muitos patifes para matar na Gasconha - olhou para Thomas durante algum tempo, nitidamente irritado pela dívida inegável que tinha para com o arqueiro e pelo incómodo de ter de a pagar. Por fim encolheu os ombros. - Vou falar com sir Simon, ofereço-lhe dinheiro e, se for suficiente, vai fingir que não estás cá. Quanto a ti - fez uma pausa, franzindo a testa e recordando os seus primeiros encontros com Thomas. - Tu és aquele que não me quis dizer quem era o seu pai, não é verdade?

- Não vo-lo disse, senhor porque o meu pai era um sacerdote.

O conde achou que era uma boa ironia.

- Com mil raios! Um sacerdote? Então és uma cria do diabo, não é verdade? Em Guiena dizem que os filhos dos padres são as crias dos demónio - olhou Thomas de alto a baixo, mais uma vez achando graça ao seu hábito rasgado. - Dizem que as crias do diabo dão bons soldados - afirmou. - Bons soldados e melhores rameiras. Suponho que tenhas perdido o teu cavalo?

- Sim, meu senhor.

- Todos os meus arqueiros têm montada - disse o conde, voltando-se em seguida para um dos seus homens-de-armas. - Arranja aqui para este patife uma pileca qualquer, até ele conseguir rapinar um cavalo melhor, a seguir dá-lhe uma túnica e entrega-o a John Armstrong - olhou de novo para Thomas. - Vais passar a fazer parte dos meus arqueiros, o que quer dizer que usarás a minha insígnia. És um dos meus homens, cria do demónio, e talvez isso te proteja, se sir Simon quiser exigir um pagamento alto demais pela tua miserável alma.

- Tentarei retribuir a vossa senhoria - disse Thomas.

- Retribui-me, rapaz, fazendo-nos entrar em Caen. Conseguiste meter-nos em La Roche-Derrien, mas essa terrinha nada é comparada com Caen. Caen é verdadeiramente difícil. Vamos amanhã para lá, mas duvido que possamos ver as muralhas por dentro durante mais de um mês, se é que alguma vez lá entramos. Leva-nos a Caen, rapaz e eu perdoo-te duas dezenas de assassínios - ergueu-se, despediu-o com um aceno e voltou para a tenda.

Thomas ficou imóvel. Caen, pensou. Caen. Caen era a cidade onde vivia sir Guillaume d'Evecque. Fez o sinal da Cruz, pois sabia que o destino de tudo se encarrega. Determinara que a sua flecha não atingisse sir Simon Jekyll e trouxera-o para perto de Caen. O destino queria que cumprisse a penitência que o padre Hobbe lhe exigira. Deus, concluiu Thomas arrebatara-lhe Jeanette por ele ser tão lento a cumprir a promessa.

Mas agora chegara a altura de o fazer, já que Deus o levara para Caen.





Segunda Parte

Normandia



O conde de Northampton fora chamado da Bretanha para ser um dos conselheiros do Príncipe de Gales. Este tinha apenas dezasseis anos embora, na opinião de John Armstrong, fosse tão competente como um adulto.

- Não há nada de errado com o jovem Eduardo - disse a Thomas. - Conhece as armas. Talvez seja teimoso, mas é valente.

Aquilo, no mundo de John Armstrong era um importante louvor. Este homem-de-armas, que conduzia os arqueiros privativos do conde, tinha quarenta anos e era um daqueles vulgares soldados que o amo tanto apreciava. Armstrong, tal como Skeat vinha da região norte e era conhecido por ter combatido contra os escoceses, desde que fora desmamado. A sua arma pessoal era o alfange, uma espada curva, de lâmina larga como a de um machado, mas sabia também disparar um arco, como os melhores dos seus arqueiros. Comandava três vintenas de hobelars, uma cavalaria ligeira, montada em póneis peludos e empunhando lanças.

- Não são muito respeitadores - disse a Thomas que olhava fixamente os pequenos cavaleiros, todos de cabelo comprido e pernas arqueadas. - Mas são especiais como batedores. Enviamos enxames deles para que encontrassem o inimigo nos montes escoceses. De contrário, estaríamos mortos.

Armstrong estivera em La Roche-Derrien e recordava o feito de Thomas quando derrubara as defesas do rio, junto à cidade, por isso, aceitou-o imediatamente. Entregou-lhe um gibão cheio de piolhos - um casaco acolchoado que conseguia impedir pequenos cortes de espada - uma camisa de tela curta, uma túnica com as estrelas e os leões do conde, no peito, e a cruz de São Jorge na manga direita. O gibão e a túnica, bem como os calções e a aljava que completavam o traje de Thomas, tinham pertencido a um arqueiro que morrera de uma febre, pouco depois de chegar à Normandia.

- Poderás arranjar coisa melhor em Caen - disselhe Armstrong. - Se alguma vez lá chegarmos.

Deram a Thomas uma égua cinzenta, de dorso demasiado baixo, boca dura e andar desajeitado. Molhou o animal, esfregou-o com palha e depois comeu arenques vermelhos e feijões secos, com os homens de Armstrong.

Descobriu um ribeiro e lavou o cabelo, enrolando-o a seguir, ainda molhado, numa trança com a corda do arco. Pediu uma navalha emprestada e barbeou-se, lançando os pêlos duros para o ribeiro com medo que alguém fizesse um feitiço com eles. Parecia-lhe estranho passar a noite no acampamento de soldados e dormir sem Jeanette. Sentia-se ainda amargurado pelo que ela lhe tinha feito e, quando acordou a meio da negra noite, sentiu esse azedume, como uma lasca de ferro no coração. Sentia-se só, gelado e indesejado, quando os arqueiros deram início à marcha. Pensou em Jeanette, na tenda do príncipe, e recordou o ciúme que sentira em Rennes quando ela partira ao encontro do duque Charles. Fazia-lhe lembrar uma borboleta de traça, voando em direcção à vela mais brilhante do aposento. Apesar de ter já queimado as asas, a chama ainda a atraía.

O exército avançou sobre Caen com três batalhões, cada um com cerca de quatro mil homens. O rei comandava o primeiro, o Príncipe de Gales o segundo, enquanto o terceiro avançava sob o comando do bispo de Durham, que preferia mil vezes a matança à santidade. O príncipe deixara o acampamento de manhã cedo para deter o cavalo na beira da estrada, de onde podia ver os seus homens passar na madrugada estival. Envergara uma armadura negra, com uma juba de leão no elmo e acompanhava-o uma escolta de uma dezena de padres e cinquenta cavaleiros. Quando Thomas se aproximou, viu que Jeanette se encontrava entre os cavaleiros com a insígnia verde e branca. Usava essas mesmas cores, um vestido de pálido tecido verde, debruado a branco com punhos e corpete da mesma cor e montava um palafrém com freio de prata, a crina entrançada com fitas verdes e brancas e uma sela branca com os leões de Inglaterra bordados. Tinha o cabelo lavado, escovado e recolhido, enfeitado com flores de milho e, quando Thomas se aproximou viu que o seu aspecto era magnífico. Lia-se-lhe no rosto uma felicidade radiosa e tinha os olhos brilhantes. Estava ao lado do príncipe, cerca de um passo mais atrás e Thomas não pôde deixar de notar as muitas vezes que o jovem se voltava para falar com ela. À sua frente, os homens descobriam-se de elmos e chapéus para saudar o príncipe, que afastava os olhos de Jeanette para lhes responder acenando com a cabeça ou chamando com um ou outro cavaleiro, que reconhecia.

Thomas, cavalgando a montada emprestada, tão pequena que as suas longas pernas quase chegavam ao chão, ergueu a mão para saudar Jeanette. Esta fitou-lhe o rosto sorridente e afastou os olhos, sem mostrar a mínima expressão. Falava com um sacerdote que era por certo o capelão do Príncipe. Thomas baixou a mão.

- Quando se é príncipe - disse um homem ao lado de Thomas - fica-se com a nata, não é verdade? Nós ficamos com os piolhos e ele com o melhor.

Thomas nada disse. A recusa de Jeanette deixara-o embaraçado. As últimas semanas teriam sido um sonho? Voltou-se na sela para a ver rir de um comentário do príncipe. És um imbecil, disse Thomas para consigo, um imbecil, e gostaria de saber porque razão se sentiria tão magoado. Jeanette nunca lhe declarara o seu amor, porém, o abandono mordia-lhe o coração como uma serpente. A estrada descia para uma cova, onde cresciam sícamoros e freixos. Voltando-se de novo, já não conseguiu ver a condessa.

- Haverá muitas mulheres em Caen - afirmou um arqueiro, encantado.

- Se alguma vez lá chegarmos - comentou outro, usando as cinco palavras, sempre utilizadas, quando se nomeava a cidade.

Na noite anterior, Thomas escutara a conversa, sempre acerca de Caen, junto à fogueira do acampamento. Dela concluiu que se tratava de uma cidade muito grande, umas das maiores em França, defendida por um enorme castelo e uma imensa muralha. Parecia que os franceses tinham adoptado a estratégia de se recolher nestas cidadelas, preferindo fazê-lo a enfrentar os arqueiros ingleses em campo aberto. Estes receavam ficar durante várias semanas encalhados diante de Caen. A cidade não poderia ser ignorada, se não fosse tomada, pois a sua enorme guarnição poderia ameaçar as linhas de abastecimento dos ingleses. Assim, Caen teria de cair, mas ninguém acreditava que fosse fácil, embora alguns homens achassem que as novas armas que o rei trouxera de França derrubariam as ameias da cidade com a mesma facilidade que as trompetas de Josué tinham deitado abaixo as muralhas de Jericó.

O próprio rei deveria ter duvidado da eficiência de tais armas, pois decidira assustar a cidade e levá-la a render-se, apenas pelo número imenso de homens no seu exército. Os três batalhões ingleses avançavam para Leste em todas as estradas, veredas ou prados que lhes servissem de atalho, mas uma ou duas horas depois do nascer do Sol, os homens-de-armas que serviam de marechais-de-campo, começavam a mandar parar os vários contingentes. Cavaleiros suados galopavam para trás e para diante, ao lado das massas de homens, gritando-lhes que formassem uma linha imperfeita. Thomas, pelejando contra a sua égua teimosa, percebeu que todo o exército iria formar uma enorme meia-lua. Diante havia um pequeno monte e uma leve bruma traía os milhares de fumos das cozinhas de Caen. Quando fosse dado o sinal, a meia-lua de homens, de cota de malha, avançaria até ao alto da colina, de modo a que os defensores, em vez de verem uns quantos batedores ingleses a sair dos bosques, teriam de se defrontar com uma hoste avassaladora e, para fazer parecer que o exército tinha o dobro das suas verdadeiras dimensões, os marechais-de-campo empurravam aos gritos, as pessoas que acompanhavam o exército para a linha curva. Cozinheiros, escrivães, mulheres, pedreiros, ferradores, carpinteiros, moços de cozinha, todas aqueles que pudessem andar, rastejar, cavalgar ou manter-se de pé eram acrescentados à meia-lua, e uma hoste de coloridas bandeiras erguia-se sobre essa multidão confusa. Era uma manhã quente e o couro e a malha obrigava os homens a suar. O vento levantava pó. O conde de Warwick, marechal das hostes, galopava de um lado para o outro da meia-lua, de rosto vermelho e praguejando; lentamente a linha irregular ia tomando forma, a seu contento.

- Quando soar a trombeta - gritou um cavaleiro para os homens de Armstrong -, avançai até ao cimo do monte! Só quando a trombeta soar! Antes não!

O exército de Inglaterra parecia ser constituído por vinte mil homens, quando as trombetas rasgaram o céu de Verão, com o seu ruidoso desafio. Para os defensores de Caen foi um pesadelo. O horizonte estava vazio, embora por detrás, o céu mostrasse, havia muito, nuvens de pó, levantadas por cascos e botas. De repente, apareceu uma hoste, uma horda, um mar de homens de ferro a cintilar ao sol, encimado por uma floresta de lanças e bandeiras erguidas. A norte e a oriente Caen estava rodeada de homens que, ao avistarem a cidade, soltaram um forte rugido de incoerente desprezo. Esperava-os a pilhagem de uma cidade rica, toda inteira, para ser tomada.

Era uma cidade bela e famosa, mesmo superior a Londres, que era a maior de Inglaterra. De fato, Caen era uma das maiores cidades de França. O Conquistador dotara-a com a riqueza que roubara de Inglaterra e que ainda era patente. Dentro das muralhas da cidade os pináculos e as torres das igrejas estavam tão próximos como as bandeiras e as lanças do exército de Eduardo, enquanto que, de cada lado da cidade se podiam ver duas enormes abadias. O castelo estava situado a norte e, nas suas ameias, tal como na pedra pálida das altas muralhas da cidade, estavam suspensos os pendões de guerra. O rugido inglês obteve por resposta uma ovação de desafio da parte dos franceses que se encontravam agrupados em grande número, junto às ameias. Tantas bestas, pensou Thomas, recordando os pesados virotes que voavam das seteiras de La Roche-Derrien.

A cidade espalhara-se para lá dos seus muros, mas em vez de se construírem casas junto às ameias, como na maior parte das urbes, aqui tinham sido erguidas sobre uma ilha que se espalhava a sul da velha cidade. Formada no centro de um emaranhado de afluentes que alimentava os dois rios principais de Caen, a ilha não tinha muralhas, por estar protegida pelos canais. Tal protecção era necessária, pois, mesmo do cimo do monte, Thomas pôde ver que era nela que se encontrava a riqueza de Caen. A cidade antiga, dentro das suas altas muralhas, seria certamente um labirinto de ruelas estreitas e casas apertadas, mas a ilha estava repleta de enormes mansões, grandes igrejas e largos jardins. Mas mesmo sendo a parte mais abastada de Caen não parecia estar defendida. Não se viam tropas no local. Pelo contrário, estavam todas nos parapeitos da cidade antiga. Os barcos estavam ancorados na orla da ilha, do lado oposto à muralha e Thomas interrogou-se se algum deles pertenceria a Sir Guillaume d'Evecque.

O conde de Northampton, liberto do séquito do príncipe, juntou-se a John Armstrong à frente dos arqueiros e olhou para as muralhas da cidade.

- Que lugar impressionante, John! - exclamou o conde, satisfeito.

- Formidável, meu senhor - resmungou Armstrong.

- A ilha recebeu o teu nome - disse o conde com humor.

- O meu? - Armstrong pareceu desconfiado.

- É a Ile Saint-Jean - afirmou o conde, apontando depois para a mais próxima das duas abadias, um mosteiro enorme rodeado pelas suas próprias ameias que se uniam às das muralhas mais altas da cidade.

- A Abbaye aux Hommes - disse o conde. - Sabes o que aconteceu quando enterraram aqui o Conquistador? Deixaram-no tempo demais dentro da abadia e quando chegou a altura de o meterem na cripta, estava podre e inchado. O cadáver rebentou e o fedor fez a congregação fugir de dentro da igreja.

- Foi a vingança de Deus, meu senhor - afirmou Armstrong com valentia.

O conde lançou-lhe um olhar intrigado.

- Talvez - disse com alguma dúvida.

- Ninguém gosta de Guilherme na região do norte - afirmou Armstrong.

- Foi há muito tempo, John.

- Não há tanto, que não lhe possa cuspir na sepultura - declarou Armstrong e depois explicou-se: - Pode ter sido o nosso rei, meu senhor, mas não era inglês.

- Suponho que não - condescendeu o conde.

- Chegou a altura da vingança - disse Armstrong em voz suficientemente sonora para ser ouvido pelos arqueiros que se encontravam mais próximo. - Vamos conquistá-lo, vamos conquistar a sua cidade e as suas malditas mulheres!

Os arqueiros aplaudiram, embora Thomas não estivesse a ver como poderia o exército tomar Caen. As muralhas eram enormes e bem apoiadas por torres, os parapeitos largos e cheios de defensores que pareciam tão valentes como os atacantes. Thomas procurava os pendões, em busca dos três falcões amarelos num campo azul, mas havia tantas bandeiras e o vento agitava-as com tanta força que não conseguia distinguir as três aves de sir Guillaume d'Evecque naquela ondulação colorida por baixo das seteiras.

- E tu o que és, Thomas? - O conde deixou-se atrasar para ficar junto dele. Montava um enorme corcel, de modo que, apesar de ser muito mais baixo que Thomas, ficava acima dele. Falava-lhe em francês. - Inglês ou norrnando?

Thomas fez uma careta.

- Inglês, meu senhor. Até ao meu dorido traseiro - havia tanto tempo que cavalgava que tinha as coxas feridas.

- Somos todos ingleses, não é verdade? - O conde parecia levemente surpreendido.

- Desejaríeis ser outra coisa? - perguntou Thomas, olhando para os arqueiros em redor. - Só Deus sabe, meu senhor que eu não gostaria de combater contra eles.

- Nem eu - resmungou o conde. - E poupei-te uma luta contra sir Simon. Ou antes, salvei a tua miserável vida. Ontem à noite falei com ele. Não posso dizer que estivesse muito disposto a poupar-te à forca e nem sequer o posso censurar por isso - o conde deu uma palmada para matar um moscardo. - Mas por fim a ganância dele ultrapassou o ódio que sente por ti. Custou-me a minha parte no dinheiro dos dois barcos da condessa, jovem Thomas. Um navio pelo seu escudeiro morto e, o outro, pelo buraco que lhe fizeste na perna.

- Muito obrigado, meu senhor - disse Thomas, efusivo. Sentia o alívio invadi-lo. - Muito obrigado - repetiu.

- És agora um homem livre - disse o conde. - Sir Simon apertou-me a mão, um escrivão tomou nota e um padre serviu de testemunha. Agora, por amor de Deus não lhe vás matar outro dos companheiros.

- Não vou, não, senhor - prometeu Thomas.

- E agora estás em dívida para comigo - afirmou o conde.

- Eu sei, senhor.

O conde soltou uma exclamação de dúvida, sugerindo ser pouco provável que Thomas alguma vez lhe pagasse tal dívida, e depois lançou um olhar desconfiado ao arqueiro.

- E, por falar da condessa - continuou. - Não me tinhas dito que a tinhas trazido para Norte.

- Não me pareceu importante, senhor.

- Ontem à noite - continuou o conde - depois de ter discutido com Jekyll por tua causa, encontrei sua senhoria nos aquartelamentos do príncipe. Diz que a trataste com a maior delicadeza. Parece que te comportaste com discrição e respeito. Será mesmo verdade?

Thomas corou.

- Se ela assim o diz, meu senhor, então deverá ser verdade. O conde riu-se, depois picou o corcel com as esporas.

- Comprei a tua alma - disse satisfeito. - Luta bem por mim! - Afastou-se para se ir juntar aos seus homens-de-armas.

- O nosso Billy é boa pessoa - disse um arqueiro fazendo um sinal com a cabeça na direcção do conde. - Muito boa.

- Se ao menos fossem todos como ele - concordou Thomas.

- Como é que tu falas francês? - perguntou o arqueiro desconfiado.

- Aprendi na Bretanha - disse vagamente Thomas.

A vanguarda do exército chegara nesse momento ao espaço vazio diante das muralhas e, como aviso, um virote de besta espetou-se na turfa. Aqueles que seguiam o exército, que tinham ajudado a dar a ilusão de força avassaladora, armavam as tendas nas colinas a norte, enquanto que os soldados se espalhavam na planície que rodeava a cidade. Os marechais galopavam entre as unidades, gritando que os homens do príncipe deveriam dirigir-se para junto das muralhas até à Abbaye aux Dames, no outro lado da cidade. Era ainda cedo, estava-se mais ou menos a meio da manhã, e o vento trazia o aroma dos cozinhados de Caen, enquanto os homens do conde marchavam pelas quintas desertas. O castelo elevava-se acima deles.

Dirigiram-se para o lado poente da cidade. O Príncipe de Gales, montado num enorme cavalo e seguido por um porta-estandarte e por um bando de homens-de-armas, galopou até ao convento quê, por ficar bem fora das muralhas da cidade, fora abandonado. Faria dele a sua casa, enquanto durasse o cerco e Thomas, desmontando no local do acampamento dos homens de Armstrong, viu Jeanette atrás do príncipe. Seguia-o como um cãozinho, pensou amargurado, mas logo se censurou por ter ciúmes. Por quê ter ciúmes de um príncipe? O mesmo seria ofender-se com o Sol ou amaldiçoar o oceano. Há outras mulheres, disse para consigo, enquanto levava o cavalo para uma das pastagens da abadia.

Um grupo de arqueiros explorava os edifícios desertos que se situavam junto ao convento. A maior parte eram cabanas, mas uma delas fora uma carpintaria, agora cheia de aparas de madeira e serradura, enquanto por trás ficava uma oficina de curtumes, fedendo ainda a urina, cal e estrume, utilizados para secar o couro. Por trás, havia apenas um terreno baldio, cheio de cardos e urtigas, que levava directamente à grande muralha da cidade. Thomas viu que dezenas de arqueiros se aventuravam por entre as ervas para olhar para os parapeitos. O dia estava quente e o ar diante das muralhas parecia tremer. Uma leve brisa do Norte empurrava as nuvens altas e fazia ondular a erva que crescia dentro do fosso, na base das ameias. Cerca de uma centena de arqueiros encontrava-se agora no solo, ao alcance das bestas, embora nenhum francês tivesse ainda disparado. As duas dezenas de atrevidos arqueiros levavam consigo machados para cortar lenha, mas a curiosidade mórbida conduzira-os em direcção às ameias e não aos bosques; Thomas seguia-os agora, querendo julgar por si que horrores enfrentavam os sitiantes. Foi obrigado a voltar-se pelo ranger de eixos não oleados, de duas carroças de camponeses, que eram puxadas para o convento. Continham ambas armas, coisas enormes, arredondadas com inchados ventres metálicos e bocas enormes. Gostaria de saber se a magia dessas armas conseguiria abrir um buraco nos parapeitos, mas mesmo que assim fosse, então os homens teriam de continuar a combater através da brecha. Fez o sinal da Cruz. Talvez arranjasse uma mulher dentro da cidade. Tinha quase tudo o que um homem necessitava: um cavalo, um gibão, o arco e a aljava. Precisava apenas de uma mulher.

Não via como um exército, mesmo com o dobro do tamanho, pudesse atravessar as enormes muralhas de Caen. Erguiam-se, como rochedos, do fosso lamacento e a cada cinquenta passos havia um bastião cónico, coberto para dar aos besteiros da guarnição a possibilidade de lançarem os seus virotes no flanco dos atacantes. Seria uma carnificina, pensou Thomas, muito pior que a matança que ocorrera, de cada vez que os homens do conde de Northampton tinham assaltado a muralha sul de La Roche-Derrien.

No terreno baldio, apareciam cada vez mais arqueiros, a olhar para cidade. A maior parte estava ao alcance das bestas, mas os franceses continuavam a ignorá-los. Pelo contrário, os defensores começavam a erguer os alegres pendões, suspensos das seteiras. Thomas procurou os três falcões de sir Guillaume, sem conseguir encontrá-los. A maioria estava decorada com cruzes e figuras de santos. Um mostrava as chaves do céu, outro o leão de São Marcos e um terceiro um anjo de asas abertas ceifando as tropas inglesas com uma espada flamejante. Esse pendão desapareceu.

- Mas que raio estarão os malditos bastardos a fazer? - perguntou um arqueiro.

- Os bastardos estão a preparar-se para fugir! - respondeu outro homem. Olhava para a ponte de pedra que levava da cidade antiga à Ile de Saint Jean.

Essa ponte estava cheia de soldados, uns a cavalo, a maioria apeados, todos saindo da cidade murada, dirigindo-se para a ilha das casas grandes, igrejas e jardins. Thomas deslocou-se uns passos mais para sul, de modo a obter uma vista melhor e apercebeu-se de que os besteiros e os homens-de-armas apareciam nas ruelas por entre as casas da ilha.

- Vão defender a ilha - disse, para quem o podia ouvir.

Nesta ocasião, havia carroças puxadas sobre a ponte e podiam ver-se mulheres e crianças escoltadas por homens-de-armas.

Restavam apenas meia dúzia de pendões nas muralhas, depois dos defensores terem atravessado a ponte. As grandes bandeiras dos senhores nobres continuavam a flutuar das torres mais altas do castelo e os pendões religiosos suspensos das altas paredes da torre de menagem, mas os parapeitos da cidade estavam quase vazios, observados agora por quase um milhar de arqueiros do batalhão do Príncipe de Gales. Deveriam ter ido cortar lenha, construir abrigos ou escavar latrinas, mas começavam aos poucos a suspeitar de que os franceses não planeavam defender a cidade e a ilha, mas sim unicamente esta última. Queria isto dizer que a cidade fora abandonada. Parecia tão improvável que ninguém se atrevia a mencioná-lo. Limitavam-se a observar os habitantes e defensores da cidade a atravessar a ponte de pedra e depois, quando o último pendão desapareceu dos parapeitos, alguém se encaminhou para a porta mais próxima.

Ninguém deu ordens. O príncipe, o conde, os oficiais ou os cavaleiros, nenhum deles mandou os arqueiros avançar. Estes decidiram simplesmente abordar a cidade, de modo próprio. A maior parte usava a libré verde e branca do Príncipe de Gales, mas outros, como Thomas, tinham as estrelas e os leões do conde de Northampton. Thomas quase esperava ver aparecer os besteiros para receberem o avanço disperso com uma terrível revoada de virotes; todavia as seteiras mantinham-se vazias, e os arqueiros sentiram-se animados ao ver que os pássaros se tinham atrevido a pousar nas ameias, sinal seguro de que os defensores as tinham abandonado. Os soldados, empunhando machados começaram a estilhaçar a madeira da porta, sem que fossem atingidos por virotes dos bastiões adjacentes. A gigantesca cidade murada de Guilherme, o Conquistador, tinha sido deixada sem guarda.

Os homens, armados de machados, racharam a madeira, com pregos de ferro, ergueram a tranca e abriram de par em par os enormes portões para revelarem uma rua vazia. Sobre as pedras havia um carro de mão abandonado, com uma roda partida, mas nada de franceses. Houve uma pausa, enquanto os arqueiros olhavam incrédulos, mas depois a gritaria começou: «Ao ataque! Ao ataque!» A idéia principal era a pilhagem, e os homens metiam-se ávidos pelas casas adentro, para encontrar unicamente cadeiras, mesas e armários. Para a ilha tinha ido tudo, de verdadeiro valor, bem como as pessoas.

Mesmo assim, mais arqueiros entravam na cidade. Alguns subiram até ao campo aberto que rodeava o castelo, onde dois morreram de virotes de besta disparados dos altos parapeitos, mas o resto espalhou-se pela cidade para a encontrar nua; assim, cada vez mais homens eram atraídos para a ponte que ligava as duas margens do rio Odon e conduzia à Ile de Saint Jean. No extremo sul, onde aquela chegava à ilha, havia uma torre de barbacã cheia de bestas. Mas, não querendo que os ingleses se aproximassem dela, os franceses ergueram apressadamente uma barricada no lado norte da ponte com um monte de carroças e restos de móveis, guarnecendo a barreira com duas dezenas de homens-de-armas, reforçados por outros tantos besteiros. Havia outra ponte no lado oposto da ilha, mas os arqueiros ignoravam a sua existência e, além do mais, ficava longe e a barricada era o caminho mais próximo para as riquezas do inimigo.

Começaram a voar as primeiras setas de penas brancas. Depois ouviram-se os ruídos mais sonoros das bestas inimigas a descarregar e o estalo dos virotes a bater nas pedras da igreja, por baixo da ponte. Morreram os Primeiros homens.

Mesmo assim, não chegavam ordens. Nenhum responsável entrara ainda na cidade, apenas uma massa de arqueiros, tão estúpidos como lobos ao cheiro de sangue. Lançavam setas para a barricada, obrigando os seus defensores a esconder-se por trás das carroças voltadas até que o primeiro grupo de ingleses soltou uma ovação e carregou contra a barricada com espadas, machados e lanças. Seguiram-nos mais homens, enquanto os primeiros tentavam ultrapassar o tosco amontoado. As bestas disparavam da barbacã e os homens eram obrigados a recuar pelos pesados projécteis. Os homens-de-armas franceses ergueram-se para repelir os sobreviventes e as espadas entrechocaram-se com os machados. O sangue corria pelo acesso à ponte, fazendo um arqueiro escorregar e cair, para ser pisado pelos companheiros que se dirigiam ao combate. Os ingleses berravam, os franceses gritavam, uma trombeta soava na barbacã e todos os sinos das igrejas da Ile de Saint Jean tocavam a rebate.

Thomas, sem espada, mantinha-se escondido sob o pórtico de uma igreja, situada por baixo da ponte, de onde disparava setas para a torre da barbacã, porém o seu alvo era difícil de distinguir, já que, na cidade antiga, um telhado de colmo começara a arder e o fumo subia pelo rio, numa nuvem baixa. Os franceses mantinham todas as vantagens. Os besteiros podiam disparar a partir da barbacã e do abrigo da barricada e, para atacar, os ingleses tinham de se afunilar, no estreito acesso à ponte, coberto de cadáveres, sangue e virotes. Mesmo assim, havia mais besteiros inimigos estacionados junto à linha dos barcos ancorados na orla da ilha, aí encalhados na baixa-mar. Os defensores, ocultos pelas fortes amuradas de madeira, podiam disparar em direcção aos arqueiros imbecis, que se atrevessem a aparecer nestas partes da muralha da cidade, não totalmente ocultas pelo fumo. Cada vez mais besteiros chegavam à ponte e, tantos eram os virotes lançados, que o céu, por cima do rio, parecia coberto por um bando de estorninhos. Outra onda de arqueiros carregou, vinda das azinhagas, para encher a rua estreita que conduzia à barricada. Atacavam aos berros. Não utilizavam arcos no combate, mas sim machados, espadas, podões e lanças. Estas últimas eram empunhadas pelos hobelars, muitos deles galeses, que soltavam, um uivo agudo, enquanto corriam na companhia dos arqueiros. Pelo menos uma dúzia destes novos atacantes deveriam ter caído, vítimas dos virotes, mas os sobreviventes empilhavam os cadáveres e chegavam-se à barricada agora defendida por, pelo menos, trinta homens-de-armas e outros tantos besteiros. Thomas correu para apanhar a aljava de um morto. Os atacantes juntavam-se contra a barricada, furada pelas setas, com pouco espaço para brandir machados espadas e lanças. Os soldados franceses espetavam com as lanças, agrediam com espadas e malhavam com clavas, mas quando os arqueiros da primeira fila morreram, a segunda foi empurrada para as armas inimigas, enquanto que os virotes das bestas voavam das ameias da torre da barbacã e subiam dos barcos ancorados no rio. Thomas viu um homem despenhar-se da ponte com um virote de besta metido no elmo. O sangue corria-lhe pelo rosto e soltava um miado estranho e incoerente antes de cair de joelhos, para depois, lentamente, tombar na estrada, onde foi pisado por nova onda de atacantes. Alguns arqueiros ingleses abriram caminho para o telhado da igreja e mataram meia dúzia de defensores da barricada antes dos besteiros da barbacã os terem varrido com os seus virotes. O acesso à ponte estava agora coberto de corpos, tantos que obstruíam a carga dos ingleses, obrigando meia dúzia de homens a atirá-los pelo parapeito. Um arqueiro alto, armado com um machado, de cabo comprido, conseguiu chegar ao cimo da barricada, onde brandindo várias vezes a enorme lâmina, abateu um francês com fitas no elmo; foi depois derrubado por dois virotes de besta que o obrigaram a dobrar-se agarrado ao ventre e deixando cair a arma. Os franceses içaram-no para o seu lado da barricada, onde três homens o espetaram com as suas espadas, usando a seguir o seu próprio machado para lhe cortarem a cabeça. Espetaram o troféu ensanguentado numa lança e acenaram com ele por sobre a barricada, numa provocação aos atacantes.

Um homem-de-armas a cavalo, ostentando a insígnia do conde de Warwick com um urso e uma lança partida, gritavam para que os arqueiros retirassem. O próprio conde encontrava-se na cidade, enviado pelo rei para fazer recuar os seus arqueiros, afastando-os da luta desigual, mas estes não se mostraram dispostos a escutá-lo. Os franceses vaiavam-nos, matavam-nos, mas mesmo assim, os arqueiros queriam quebrar as defesas da ponte e saciarem-se com a riqueza de Caen. Assim, ainda mais homens enlouquecidos pelo sangue carregaram contra a barricada - tantos que enchiam a estrada, enquanto os virotes rodopiavam, vindos do céu fumacento. Os atacantes da retaguarda avançaram e os homens da frente morriam, de encontro às lanças e às espadas francesas.

Os franceses venciam. Os virotes das suas bestas batiam no amontoado de homens; os da frente começaram a recuar para escapar à matança, enquanto os da retaguarda continuavam a empurrar para diante; os que se encontravam no meio, ameaçados por uma morte por esmagamento, quebraram uma forte sebe de madeira que lhes permitiu espalharem-se, saindo do acesso à ponte, para uma estreita faixa de terreno entre o rio e as muralhas da cidade. Mais homens os seguiram.

Thomas continuava acocorado no pórtico da igreja. De vez em quando lançava uma flecha directamente para a barbacã, mas o fumo, cada vez mais espesso, pairava como um nevoeiro, quase o impedindo de ver o alvo. Viu os homens saírem da ponte, para a estreita margem do rio, mas não quis segui-los, pois apenas lhe pareceu um modo de cometer suicídio. Estavam ali encurralados, com a alta muralha da cidade por trás, o rio serpenteando pela frente e a margem oposta com uma linha de barcos de onde os besteiros lançavam virotes para aqueles alvos novos e convidativos.

O retirar dos cadáveres pelo parapeito da ponte abriu de novo o caminho para a barricada e os recém-chegados, que não tinham experimentado a carnificina dos primeiros ataques, retomaram o combate. Um hobelar conseguiu subir a uma carroça voltada, apunhalando todos com a sua curta lança. Tinha já virotes de besta espetados no peito, mas continuava a gritar e a apunhalar e tentou continuar a combater mesmo depois de esventrado por um homem-de-armas francês. As tripas saíram-lhe, mas mesmo assim, conseguiu energia apara erguer a lança e desferir um último golpe antes de cair entre os defensores. Meia dúzia de arqueiros tentavam desmantelar a barricada, enquanto outros lançavam os mortos da ponte para limpar a estrada. Pelo menos um ferido, ainda vivo, foi também lançado ao rio. Gritava enquanto caía.

- Para trás, cães! Para trás! - o conde de Warwick chegara ao caos e brandia a sua lança de marechal em todas as direcções. Mandou um trombeteiro tocar as quatro últimas notas da retirada, enquanto que o lado francês lançava o sinal de ataque, bruscos grupos de notas que agitavam o sangue; os ingleses e os galeses obedeciam mais à trombeta francesa do que à que lhes competia. Mais homens - às centenas - entravam na cidade antiga, esquivando-se aos oficiais do conde de Warwick e aproximando-se da ponte onde, incapazes de ultrapassar a barricada, seguiam os homens até à margem e disparavam os arcos, para os besteiros das barcaças. Os homens do conde de Warwick começaram a expulsar os arqueiros da rua que levava à ponte, mas por cada um que de lá retiravam passavam dois sem serem impedidos. Uma multidão de gente de Caen, alguns armados com pouco mais do que paus, esperava depois da barbacã, prometendo um novo combate, se a barricada fosse vencida. A loucura apoderara-se do exército inglês, uma loucura que os levava a atacar a ponte, extraordinariamente bem defendida. Os homens morriam a gritar e, atrás deles, surgiam outros. O conde de Warwick berrava-lhes que recuassem, mas todos pareciam surdos aos seus apelos. Um enorme rugido de desafio soava na margem do Odon e Thomas saiu do pórtico para ver que grupos de homens tentavam agora passá-lo a vau. E conseguiam. O Verão fora seco, o rio corria ainda mais baixo na vazante, havia pouca água que, na parte mais profunda, apenas chegava ao peito de um homem. Dezenas de soldados mergulhavam agora. Thomas, evitando dois oficiais do conde, saltou os restos da sebe e deslizou pela margem agora coberta de virotes de bestas, enterrados. O local cheirava a trampa, pois era aqui que a cidade fazia os despejos da noite. Uma dúzia de hobelars galeses passava o rio e Thomas juntou-se-lhes, erguendo o arco acima da cabeça para manter a corda seca. Os besteiros tiveram de sair do seu abrigo atrás das amuradas das barcaças, para poderem disparar contra os atacantes dentro do rio e, uma vez erguidos, tornaram-se um alvo fácil para os arqueiros, que se encontravam na margem, do lado da cidade.

A corrente era forte e Thomas apenas conseguia dar passos curtos. Os projécteis caíam na água, à sua volta. O homem que justamente o precedia, foi atingido na garganta e arrastado pelo peso da cota de malha nada mais deixando atrás de si do que um remoinho na água ensanguentada. As amuradas dos navios tinham espetadas uma multidão de flechas de penas brancas. Um francês estava caído sobre a amurada de um barco e o corpo estremecia de cada vez que se lhe espetava uma nova flecha. O sangue escorria de um embornal.

- Matai os bastardos, matai os bastardos! - resmungava um homem junto de Thomas, que viu tratar-se de um dos oficiais do conde de Warwick, que concluindo não poder terminar o ataque, decidira juntar-se aos outros. Levava consigo um alfange curvo, meio espada, meio cutelo de carniceiro.

O vento afastava o fumo das casas incendiadas, afazendo-o baixar até junto do rio e enchendo o ar de fragmentos de palha incandescente. Alguns desses fragmentos tinham-se metido por entre as velas recolhidas de dois dos barcos que agora ardiam violentamente. Os seus defensores tinham escapado para terra a muito custo. Outros arqueiros inimigos fugiam dos primeiros soldados ingleses e galeses que, cobertos de lama, trepavam para a margem entre os barcos ancorados. O ar estava cheio do rápido zumbido das flechas a voar por cima das cabeças. Os sinos da ilha continuavam a tocar. Um francês gritava da torre da barbacã, ordenando que os homens se espalhassem ao longo do rio e atacassem os grupos de galeses e ingleses que, aos tropeções, escorregavam na lama do rio.

Thomas continuava a andar. A água chegava-lhe ao peito para depois começar a baixar. Lutava contra a lama mole do leito do rio, ignorando os virotes que caíam na água em seu redor. Um besteiro ergueu-se de trás da amurada de um barco, e apontou-lhe ao peito. Porém, nesse momento, duas flechas atingiram o homem que caiu para trás. Thomas continuava, e subia agora para a margem. De súbito viu-se fora do rio, quase caindo na lama escorregadia, ao abrigo da proa alta da barcaça mais próxima. Via que os homens continuavam a lutar na barricada, mas também que o rio estava agora cheio de arqueiros e hobelars que, salpicados de lama e encharcados, começaram a içar-se para os barcos. Os restantes defensores poucas armas tinham, para além das bestas, enquanto os arqueiros estavam na posse de espadas ou machados. O combate sobre os barcos ancorados foi unilateral, a matança breve e, a seguir, as massas de atacantes, desorganizadas e sem chefe, elevaram-se sobre os ensanguentados conveses dos barcos e subiram do rio para a ilha.

O homem-de-armas do conde de Warwick adiantou-se a Thomas. Subiu com dificuldade a margem inclinada e coberta de erva e foi imediatamente atingido no rosto por um virote de besta, sendo obrigado a recuar quando uma onda de sangue que lhe cobriu o elmo. O virote atravessara-lhe a cana do nariz, matando-o instantaneamente e deixando-o com uma expressão ofendida. O alfange aterrou na lama aos pés de Thomas que logo lhe pegou, pondo o arco ao ombro. Era surpreendentemente pesado. Nada havia de sofisticado num alfange; era um simples instrumento de morte, com um gume destinado a cortar em profundidade, servindo-se do peso da enorme lâmina. Era uma boa arma para usar numa refrega. Will Skeat dissera uma vez a Thomas, ter visto um cavalo escocês decapitado com um único golpe de alfange e só de olhar para uma lâmina tão brutal, fazia-o sentir o terror nas entranhas.

Os hobelars galeses, que entravam na barcaça, acabaram com os defensores e soltaram um grito na sua estranha língua, saltando depois para terra. Thomas seguiu-os, para se encontrar numa linha pouco unida de atacantes enlouquecidos, que corriam em direcção a uma fileira de casas ricas, defendidas por homens, fugidos dos barcos, e por cidadãos de Caen. Os besteiros tiveram tempo de disparar cada um deles um virote, mas estavam nervosos e a maior parte apontou para longe demais, pelo que, os atacantes atiraram-se logo a eles como cães a um veado ferido.

Thomas brandiu o alfange com as duas mãos. Um besteiro tentou defender-se com a sua besta, mas a pesada lâmina caiu sobre a parte inferior da outra arma como se esta fosse feita de marfim. Thomas enterrou o alfange no pescoço do francês. Um esguicho de sangue espirrou-lhe para a cabeça, enquanto tentava soltar a pesada arma, dando ao besteiro um pontapé entre as pernas. Um galês metia a lâmina da lança por entre as costelas de um francês. Thomas tropeçou no homem que tinha abatido, tentou equilibrar-se e soltou o grito de guerra inglês: «São Jorge!» Brandiu de novo a lâmina, cortando o braço de um homem que erguera um pau. Estava suficientemente próximo dele, para lhe sentir o hálito e o mau cheiro das roupas. Um francês brandia a espada, enquanto outro batia nos galeses com uma clava com incrustações de metal. Parecia uma luta de taberna, de foras-da-lei, e Thomas gritava como um demónio. Malditos, todos eles. Salpicado de sangue descia a rua desferindo pontapés, arranhando e cortando quem lhe aparecesse pela frente. O ar estava invulgarmente carregado, húmido e quente; cheirava a sangue. Uma clava, com pregos de metal incrustados, falhou-lhe a cabeça por um dedo, atingindo antes uma parede, Thomas ergueu o alfange e cortou as partes baixas do homem. Este gritou e Thomas carregou com o pé, para que a lâmina se enterrasse mais.

- Bastardo! - disse, voltando a carregar. - Bastardo!

Um galês espetou a lança no homem e mais outros dois assaltaram-lhe em cima e, com as barbas e os longos cabelos manchados de sangue, espetaram as longas lanças de lâminas vermelhas, na fileira seguinte de defensores.

Deveria haver vinte ou mais inimigos na azinhaga, enquanto que Thomas, com os seus companheiros, eram menos de uma dúzia, mas os franceses estavam nervosos e os atacantes com mais confiança, de modo que se atiraram a eles de lança, espada e alfange em riste, e agredindo, apunhalando, cortando e insultando, matavam num tumulto de ódio estival. Um enxame cada vez maior de ingleses e galeses subia o rio, causando um ruído fúnebre, um uivo sedento de sangue e um gemido de desprezo pelo abastado inimigo. Eram estes os cães de guerra fugidos dos canis para tomarem a grande cidade que os senhores do exército tinham calculado poder aguentar o avanço dos ingleses durante um mês.

Os defensores da azinhaga cederam e fugiram. Thomas atingiu um homem pelas costas e soltou a lâmina com um raspar de aço no osso. Os hobelars abriram uma porta a pontapé, reclamando a casa como propriedade sua. Uma onda de arqueiros, com a libré verde e branca do Príncipe de Gales, entrou na rua, atrás de Thomas, seguindo-o até um jardim comprido e muito bonito onde cresciam pereiras em canteiros bem tratados. Thomas sentiu-se perturbado pela incongruência de um sítio tão belo, sob um céu cheio de fumo e gritos horríveis. O jardim tinha uma orla de violetas, goivos e peonias, bem como bancos sob uma latada e pareceu-lhe por instantes um bocado de céu, mas logo os arqueiros pisaram as plantas, deitaram abaixo o canto da vinha e correram por cima das flores.

Um grupo de franceses tentou conduzir os invasores para fora do jardim. Aproximaram-se vindos de leste, saídos da massa de homens que aguardavam atrás da barbacã da ponte. Eram conduzidos por três homens-de-armas a cavalo, todos eles com as camisas azuis, decoradas com as estrelas amarelas. Obrigavam os cavalos a saltar as sebes baixas e gritavam, erguendo as longas espadas, prontos a atacar.

As flechas espetaram-se nos cavalos. Thomas não tinha ainda tirado o arco do ombro, mas dois arqueiros do príncipe já tinham as flechas prontas, para apontar às montadas e não aos cavaleiros. As setas enterraram-se profundamente nos aramais que relincharam, recuaram e caíram, e os arqueiros correram sobre os homens caídos, com machados e espadas. Thomas seguiu para a direita, decapitando os franceses apeados, a maior parte dos quais parecia ser gente da cidade, armada com tudo desde pequenos machados a ganchos do feno, até antigas espadas, que eram manobradas com as duas mãos. Cortou um casaco de couro com o alfange, soltou a lâmina com um pontapé, sacudiu-a, para que o sangue caísse dela em gotas e depois atacou de novo. Os franceses vacilaram ao ver mais arqueiros vindos da azinhaga e fugiram em direcção à barbacã.

Os arqueiros atacavam quem estivesse apeado. Um dos homens caídos gritava, enquanto as lâminas lhe cortavam os braços e o tronco. As camisas de tela azuis e amarelas estavam ensopadas em sangue. Logo a seguir, Thomas viu que não se tratava de estrelas amarelas num campo azul, mas sim de falcões. Falcões de asas abertas e garras saídas. Os homens de sir Guillaume d'Evecque! Talvez o próprio sir Guillaume! Porém, ao olhar para os rostos contraídos, salpicados de sangue, Thomas viu que todos três eram jovens. Porém, sir Guillaume estava ali em Caen e a lança, pensou Thomas, deveria andar por perto. Atravessou a sebe e dirigiu-se para outra rua. Atrás dele, na casa em que os hobelars tinham entrado, uma mulher gritava, a primeira de muitas. Os sinos das igrejas calavam-se agora.

Eduardo III, rei de Inglaterra, pela Graça de Deus, conduziu perto de doze mil soldados e, nessa ocasião, um quinto deles encontrava-se na ilha e mais se aproximavam. Ninguém os conduzira para lá. As únicas ordens recebidas tinham sido de retirada. Todavia, desobedeceram e assim, tinham capturado Caen, mesmo que o inimigo detivesse a barbacã da ponte de onde continuavam a lançar virotes de besta.

Thomas saiu da azinhaga para a rua principal, onde se tinha reunido um grupo de arqueiros para invadir a torre das ameias. Juntamente, vinha também uma multidão uivante de galeses e ingleses, que avassalaram os franceses, escondidos sob o arco da barbacã, antes de carregarem sobre os defensores da barricada da ponte, já invadida de ambos os lados. Os franceses, apercebendo-se da sua condenação, largavam as armas e gritavam que se rendiam, mas os arqueiros não estavam com disposição para tréguas. Uivaram e atacaram. Os franceses foram atirados ao rio e depois, dezenas de homens desfizeram a barricada, lançando os móveis e as carroças pelo parapeito da ponte.

A grande massa de franceses, que esperava atrás da barbacã, espalhou-se pela ilha, a maior parte deles, calculava Thomas, para acudir às mulheres e às filhas. Foram perseguidos pelos vingativos arqueiros, que esperavam no lado oposto da ponte e a agoirenta multidão passou por Thomas, internando-se no coração da Ile Saint-Jean, onde os gritos eram agora constantes. O grito de ataque ouvia-se por todo o lado. Os franceses detinham ainda a torre da barbacã, embora já não disparassem as bestas por temerem a retaliação das flechas inglesas. Ninguém tentou tomar a torre, embora um pequeno grupo de arqueiros se mantivesse no centro da ponte a olhar para os pendões suspensos nos parapeitos.

Thomas estava prestes a seguir para o centro da ilha, quando ouviu o estrondo dos cascos sobre o empedrado e olhou para trás. Viu uma dúzia de cavaleiros franceses, que possivelmente se tinham ocultado por trás da barbacã. Esses homens surgiam agora de uma porta e, com as viseiras fechadas e as lanças deitadas, picavam os cavalos em direcção à ponte. Queriam simplesmente carregar pela cidade antiga e chegar ao castelo, onde ficariam mais seguros.

Thomas avançou uns passos na direcção dos franceses, depois pensou melhor. Ninguém poderia resistir a doze cavaleiros de armadura completa. Porém, viu a túnica azul e amarela e os falcões sobre o escudo de um cavaleiro. Pegou então no arco e retirou uma flecha da aljava. Retesou a corda. Os franceses galopavam justamente junto à ponte quando Thomas gritou:

- Evecque! Evecque! - Queria sir Guillaume, se é que era ele, queria ver o assassino.

O homem de túnica azul e amarela voltou-se na sela, embora Thomas não lhe conseguisse divisar o rosto, pois mantinha a viseira descida. Disparou, mas assim que sentiu o estalo da corda, percebeu que a seta estava empenada. Voara baixo, batendo na perna esquerda do cavaleiro e não nos rins, para onde Thomas tinha feito pontaria. Puxou de um segunda, mas o grupo de cavaleiros já se encontrava na ponte, e os cascos dos cavalos soltavam faíscas sobre as pedras; os homens da frente baixaram as lanças, para afastar um pequeno grupo de arqueiros e depois seguiram a galope pelas ruas, em direcção ao castelo. A flecha de penas brancas sobressaía ainda da coxa do cavaleiro, onde se espetara. Thomas acabou por lançar uma segunda, mas essa desapareceu no fumo, enquanto que os fugitivos franceses desapareciam nas estreitas ruas da cidade antiga.

O castelo não caíra, mas a cidade e a ilha pertenciam aos ingleses. Não ainda ao rei, pois os grandes senhores - condes e barões - não haviam capturado nenhum dos locais. Eram sim, dos arqueiros e dos hobelars que agora se dispunham a pilhar a riqueza de Caen.

A Ile de Saint Jean era, exceptuando Paris, a cidade mais bela, rica e elegante do norte de França. Possuía casas magníficas, jardins flagrantes, ruas largas, igrejas ricas, e os seus cidadãos eram adequadamente civilizados. Naquele local aprazível entrava agora uma horda selvagem de homens enlameados e ensanguentados, que iam encontrar riquezas, muito para além dos seus sonhos. Aquilo que os hellequin tinham feito em inúmeras aldeias bretãs, acontecia agora numa grande cidade. Era o tempo de matar, violar e praticar a crueldade gratuita. Qualquer francês era inimigo e os inimigos eram mortos. Os chefes da guarnição da cidade, magnatas franceses, estavam a salvo nos andares superiores da torre da barbacã e ali ficaram até reconhecerem senhores ingleses, a quem se pudessem render em segurança. Entretanto, uma dezena de cavaleiros tinha fugido para o castelo. Outros senhores e cavaleiros tinham conseguido galopar e escapar aos inimigos ingleses, pela ponte do lado sul da ilha. Todavia, pelo menos, uns quantos nobres titulares, cujos resgates poderiam ter enriquecido principescamente uma centena de arqueiros, foram cortados, como cães e reduzidos a um indistinto monte de carne e sangue. Os cavaleiros e homens-de-armas, que poderiam ter pago cem ou duzentas libras pela sua liberdade, foram mortos com setas ou com paus, no meio da raiva enlouquecida, que possuía o exército. Quanto aos homens mais humildes, cidadãos armados com bocados de madeira, picaretas ou simples facas, foram simplesmente mortos.

Caen, a cidade do Conquistador, que enriquecera com o saque inglês, morreu nesse dia e a riqueza foi devolvida aos primeiros donos.

Não apenas a riqueza, as mulheres também. Nesse dia, ser mulher em Caen foi provar o inferno. O fogo não era extenso, pois os soldados preferiram saquear as casas a incendiá-las, mas os demónios eram muitos. Os homens que imploravam pelas mulheres e pelas filhas, eram forçados a assistir à sua desonra. Muitas se esconderam, mas em breve eram encontradas por homens habituados a descobri-las em sótãos ou sob as escadas. As mulheres eram puxadas para as ruas, desnudadas e passeadas como troféus. A mulher de um mercador, monstruosamente gorda, foi atada a uma pequena carroça e chicoteada, nua, para trás e para diante, na rua principal que passava a todo o comprimento da ilha. Durante mais de uma hora os arqueiros obrigaram-na a correr, com alguns homens a rir até às lágrimas do espectáculo dos enormes rolos de gordura e, quando se aborreceram, lançaram-na ao rio, onde a infeliz se acocorou, chorando e chamando pelos filhos: por fim, um arqueiro, que experimentava uma besta capturada, fazendo pontaria aos cisnes, enfiou-lhe um virote na garganta. Homens carregados de prata, vacilavam a atravessar a ponte, outros ainda, em busca de riquezas, encontravam antes cerveja, cidra ou vinho, de modo que os excessos aumentaram. Um padre foi enforcado na tabuleta de uma taberna depois de ter tentado impedir uma violação. Alguns homens-de-armas, muito poucos, tentavam deter o horror, mas eram largamente ultrapassados e obrigados a recuar até à ponte. A igreja de São João, conhecida por guardar os ossos dos dedos de São João Divino, um casco do cavalo montado por São Paulo na estrada de Damasco e um dos cestos que tinham contido os pães e os peixes do milagre de Jesus, foi transformada num bordel, onde as mulheres que lá se tinham refugiado eram vendidas a sorridentes soldados. Os homens exibiam-se com sedas e rendas e lançavam os dados pelas mulheres a quem tinham roubado as roupas finas.

Thomas não participou, mas era-lhe impossível impedir o que estava a acontecer. Nem cem homens o conseguiriam, quanto mais um. Outro exército poderia ter evitado a violação em massa, mas por fim, Thomas apercebeu-se de que seria o estupor da embriaguez que terminaria toda aquela violência. Resolveu antes revistar a casa do seu inimigo. Foi de rua em rua, até encontrar um francês moribundo, a quem deu um gole de água, antes de perguntar onde morava sir Guillaume d'Evecque. O homem revirou os olhos, tentou recuperar o fôlego e gaguejou que a casa ficava na parte sul da ilha.

- Não há engano possível - garantiu. - É de pedra, toda de pedra, e tem três falcões gravados por cima da porta.

Thomas dirigiu-se para sul. Os bandos dos soldados do conde de Warwick chegavam em força à ilha, para restabelecer a ordem, mas lutavam ainda com os arqueiros, junto à ponte. Thomas ia para a parte sul que não sofrera tanto como as ruas e azinhagas da outra zona. Viu a casa de pedra, por cima dos telhados de algumas lojas saqueadas. Quase todos os outros edifícios eram feitos de madeira até meio, e tinham telhado de colmo, enquanto a mansão de dois andares de sir Guillaume quase parecia uma fortaleza. Tinha paredes de pedra, telhado de telhas e pequenas janelas, mas mesmo assim, alguns arqueiros tinham lá entrado e Thomas conseguia ouvir os gritos. Atravessou uma pequena praça, onde crescia um carvalho por entre as pedras, subiu a correr os degraus da casa e, passou por baixo de um arco, encimado pelos três falcões gravados. Surpreendeu-o a violência da raiva que sentiu à vista do brasão. Seria a vingança, disse para consigo, por Hookton.

Atravessou o vestíbulo e encontrou um grupo de arqueiros e hobelars a discutir por causa das panelas da cozinha. Estavam dois criados mortos junto à lareira, onde o fogo ainda ardia. Um dos arqueiros rosnou a Thomas, com ar de desprezo, que tinham chegado à casa em primeiro lugar, e que o seu conteúdo lhe pertencia, mas antes que este pudesse responder, ouviu um grito do andar de cima, que o fez dar meia volta e subir a correr a enorme escada de madeira. Dois quartos abriam-se para um corredor e Thomas empurrou uma das portas, para ver um arqueiro com a libré do Príncipe de Gales a lutar com uma jovem. O homem já lhe tinha rasgado parte do vestido azul-pálido, mas ela lutava como uma megera, arranhando-lhe o rosto e dando-lhe pontapés nas pernas. Mas, no preciso momento em que Thomas entrava, o homem conseguira dominá-la com uma enorme pancada na cabeça. A rapariga gemeu e caiu na enorme lareira vazia, enquanto o arqueiro se voltava para Thomas.

- É minha - limitou-se a dizer. - Vai arranjar outra para ti. Thomas olhou para a jovem. Era loura, magra e chorava. Recordou-se da angústia de Jeanette, depois de ter sido violada pelo duque e não aguentou ver dor igual infligida noutra jovem, nem mesmo dentro da mansão de sir Guillaume d'Evecque.

- Penso que já a magoaste o suficiente - afirmou. Persignou-se, recordando os seus pecados na Bretanha. - Deixa-a ir - acrescentou.

O arqueiro, um homem de barbas com mais uma dezena de anos que Thomas, sacou da espada. Era velha, de lâmina larga e forte e o homem erguia-a confiante.

- Escuta, rapaz - disse. - Quero ver-te porta fora e, se não fores, estico-te as tripas de parede a parede.

Thomas ergueu o alfange.

- Fiz um juramento sagrado a São Guinefort, que protegeria todas as mulheres - disse ao homem.

- Maldito imbecil.

O homem investiu, saltando para Thomas, que recuou e aparou o golpe. As lâminas fizeram saltar faíscas, ao entrechocarem-se. O homem barbudo recuperou rapidamente, investiu de novo, mas Thomas deu mais um passo atrás e afastou a espada para o lado, com o alfange. A rapariga observava-os da lareira, com os olhos azuis, muito abertos. Thomas brandiu de novo o alfange, falhou e a espada quase o atingiu, mas afastou-se a tempo para o lado e deu um pontapé nos joelhos do homem das barbas, obrigando-o a soltar um gemido de dor. Depois brandiu a pesada arma num golpe terrível e cortou-lhe o pescoço. O sangue espirrou pelo quarto, enquanto o homem, caía no chão sem soltar um som. O alfange quase lhe separara a cabeça do corpo e o sangue ainda brotava da ferida aberta quando Thomas se ajoelhou junto à sua vítima.

- Se alguém perguntar - disse à jovem em francês - foi o teu pai que o matou e depois fugiu. - Já lhe bastavam os trabalhos depois de ter assassinado o escudeiro, na Bretanha e não queria aumentar o crime com mais a morte de um arqueiro. Retirou quatro moedas da bolsa do morto e depois sorriu para a jovem, que se mantivera invulgarmente calma, mesmo com um soldado a ser quase decapitado, diante dos seus olhos.

- Não te vou fazer mal - prometeu.

Ela olhou-o da lareira.

- Não?

- Hoje não - afirmou, com delicadeza.

Ela levantou-se, sacudindo a cabeça para se livrar de uma tontura. Ajeitou o vestido no pescoço e juntou as partes rasgadas com os fios soltos.

- Podeis não me fazer mal - disse ela. - Mas outros o farão.

- Não, se ficares comigo - disse Thomas. - Olha - tirou do ombro o enorme arco negro, soltou a corda e lançou-lha. - Leva isto e toda a gente saberá que és a mulher de um arqueiro - disselhe. - Ninguém te tocará.

Ela franziu a testa com o peso do arco.

- Ninguém me fará mal?

- Se levares isto, não - prometeu-lhe de novo Thomas. - A casa é tua?

- Trabalho aqui - respondeu.

- Para sir Guillaume d'Evecque? - perguntou ele e ela acenou afirmativamente. - Está cá?

Ela abanou a cabeça.

- Não sei onde ele está.

Thomas calculou que o seu inimigo se encontraria no castelo onde, àquela hora, estaria provavelmente a tentar extrair uma flecha da coxa.

- Ele guarda aqui uma lança? - perguntou. - Uma lança grande com uma lâmina de prata?

Ela abanou rapidamente a cabeça. Thomas franziu a testa. Via que a rapariga tremia. Mostrara valentia, mas talvez o sangue que saía do pescoço do morto a perturbasse. Notou também que era bonita apesar das nódoas negras no rosto e do cabelo sujo e emaranhado. Tinha o rosto comprido, solene devido aos olhos grandes.

- Tens cá família? - perguntou-lhe Thomas.

- A minha mãe morreu. Não tenho ninguém excepto sir Guillaume.

- E ele deixou-te aqui sozinha? - perguntou Thomas com desprezo.

- Não! - protestou ela. - Pensou que ficaríamos em segurança na cidade, mas depois, quando o exército chegou, os homens resolveram antes defender a ilha. Abandonaram a cidade! Porque as casas boas estão todas aqui. - Parecia indignada.

- Que fazes então para sir Guillaume? - perguntou-lhe Thomas.

- Limpo a casa - disse ela. - Munjo as vacas do outro lado do rio - estremeceu, quando ouviu os homens aos gritos, lá fora na praça.

Thomas sorriu.

- Está muito bem, ninguém te fará mal. Agarra o arco. Se alguém olhar para ti diz: «Sou mulher de um arqueiro.» - Repetiu a frase lentamente e obrigou-a a dizê-la várias vezes até estar satisfeito. - Muito bem! - sorriu-lhe. - Como te chamas?

- Eleanor.

Duvidava que servisse de muito revistar a casa, embora o tivesse feito. Não encontrou a lança de São Jorge escondida em nenhum armário. Não havia móveis, nem tapeçarias, nada de valor, excepto os espetos, as panelas e os pratos da cozinha. Tudo o que era bom, disse Eleanor, fora levado para o castelo na semana anterior. Thomas olhou para os pratos partidos sobre as lajes do chão.

- Há quanto tempo trabalhas para ele? - perguntou.

- Toda a minha vida - disse Eleanor e depois acrescentou timidamente: - Tenho quinze anos.

- E nunca viste uma grande lança que ele tenha trazido de Inglaterra?

- Não - respondeu ela, com os olhos muito abertos, expressão que fez com que Thomas desconfiasse que estava a mentir, embora não insistisse. Decidira interrogá-la mais tarde, quando aprendesse a ter confiança nele.

- É melhor que fiques comigo - disse a Eleanor. - Assim, ninguém te faz mal. Vou levar-te para o acampamento e, quando o exército partir, podes voltar para aqui.

O que lhe estava a dizer era que poderia ficar com ele e tornar-se a verdadeira mulher de um arqueiro, mas isso, tal como a lança, poderia esperar mais um ou dois dias.

Ela acenou com a cabeça, aceitando o destino com serenidade de espírito. Deveria ter rezado para ser poupada à violação que torturava Caen e Thomas era a resposta às suas preces. Ele entregou-lhe a aljava, para que se parecesse ainda mais ser a mulher de um arqueiro.

- Teremos de atravessar a cidade - disse a Eleanor levando-a pelas escadas. - Por isso não te afastes.

Desceram os degraus exteriores da casa. A pequena praça estava agora cheio de homens-de-armas a cavalo, com a insígnia do urso e da lança partida. Tinham sido enviados pelo conde de Warwick, para acabar com a pilhagem e com os roubos e olhavam duramente para Thomas, que ergueu as mãos, mostrando que nada levava consigo. Depois, passou por entre os cavalos. Tinha talvez dado uma dezena de passos, quando se apercebeu de que Eleanor não estava com ele. Ficara aterrorizada com os cavaleiros, de sujas cotas de malha e rostos escuros, emoldurados pelo aço e hesitara em sair a porta de casa.

Thomas abriu a boca para chamar por ela e, nesse preciso momento, um cavaleiro que se encontrava por baixo dos ramos do carvalho, picou a montada na sua direcção. Thomas ergueu os olhos e sentiu a aresta lisa de uma espada bater-lhe do lado da cabeça, obrigando-o a cair para a frente, e a bater nas pedras, com a orelha a sangrar. O alfange caiu-lhe da mão, depois as patas do cavalo pisaram-lhe a cabeça e Thomas sentiu a visão atra-vessada por relâmpagos.

O homem desceu da sela e bateu com a bota da armadura na cabeça de Thomas. Este sentiu a dor, ouviu os protestos dos outros homens-de-armas e já não sentiu um segundo pontapé. Porém, nos breves instantes, antes de perder a consciência, reconheceu o assaltante.

Sir Simon Jekyll, apesar do acordo com o conde, queria vingança.



Talvez Thomas tivesse sorte. Talvez o seu santo protector, cão ou homem, se ocupasse realmente dele, pois se tivesse ficado consciente teria sofrido torturas. Na noite anterior, sir Simon bem poderia ter aposto a sua assinatura no acordo com o conde mas, ao ver Thomas, toda a idéia de misericórdia lhe desaparecera do espírito. Recordou-se da humilhação de ter sido perseguido nu, no meio do bosque e a dor causada pelo virote de besta enterrado na perna, ferimento que ainda o obrigava a coxear. Essas lembranças provocaram-lhe apenas o desejo de oferecer a Thomas um longo e lento sofrimento que o deixasse a gritar. Porém, este perdera os sentidos ao ser agredido com a espada e com os pontapés na cabeça, e nem deu por que os dois homens-de-armas o tivessem arrastado até ao carvalho. A princípio, os homens do conde de Warwick tentaram protegê-lo de sir Simon, mas quando este lhes garantiu que Thomas era um desertor, e também ladrão e assassino, mudaram de idéia. Iam enforcá-lo.

Sir Simon permitiu. Se aqueles homens matassem Thomas como desertor, ninguém o poderia acusar da execução do arqueiro. Teria mantido a sua palavra e o conde de Northampton haveria de lhe adiantar a sua parte do dinheiro dos barcos. Thomas estaria morto e sir Simon mais rico e mais feliz.

Os homens-de-armas dispuseram-se a fazê-lo, logo que souberam que Thomas era um criminoso. Tinham ordens para enforcar desordeiros, ladrões e violadores para acalmar os ardores do exército, mas este lado da cidade, o mais distante da parte antiga, não vira as mesmas atrocidades que a zona norte, de modo que aqueles homens-de-armas não tinham tido oportunidade de fazer uso das cordas fornecidas pelo conde. Agora que tinham um vítima, um deles lançou a corda sobre um ramo do carvalho.

Thomas de pouco teve consciência. Nada sentiu, enquanto sir Simon o revistava e lhe subtraía a bolsa de dinheiro que tinha debaixo da túnica, e não se apercebeu quando lhe ataram a corda em redor do pescoço, mas teve a leve percepção do cheiro a urina de cavalo, quando sentiu que lhe apertavam o pescoço e a visão, que lentamente recuperava, ficou manchada de vermelho. Sentiu-se içado no ar, tentou gemer, apesar do horrível aperto na garganta, mas não foi capaz, tal como lhe foi impossível respirar; tinha apenas uma sensação de queimadura e asfixia, enquanto o ar cheio de fumo lhe entrava na respiração. Queria gritar de terror, mas os pulmões apenas lhe ofereciam uma lenta agonia. Teve um instante de lucidez, ao aperceber-se que estava pendurado e às voltas e, apesar de se agarrar ao pescoço com os dedos enclavinhados, não conseguiu alargar o nó da corda que o estrangulava. Depois, aterrorizado, deixou-se urinar.

- Patife cobarde - disse sir Simon, em tom de desprezo, e bateu com a espada em Thomas, embora o golpe pouco mais fizesse que abrir-lhe um corte na carne da cintura e fazer o corpo balançar na corda.

- Deixai-o - disse um dos homens-de-armas. - Já está morto. - E viram os movimentos de Thomas tornar-se espasmódicos. Depois montaram e seguiram. Um grupo de arqueiros ficara a olhar de uma das casas da praça e sir Simon receou que pudessem ser amigos de Thomas, de modo que, quando os soldados do conde saíram da praça, acompanhou-os. Os seus próprios seguidores pilhavam a vizinha igreja de São Miguel e sir Simon apenas se chegara até à praça, porque vira a alta casa de pedra e quisera saber se conteria alguma coisa digna de ser saqueada. Mas encontrara antes Thomas que fora enforcado. Não era a vingança com que sir Simon sonhara, mas dera-lhe um certo prazer, o que já era uma compensação.

Thomas já nada sentia. Tudo era escuridão, a dor não existia. Dançava na corda a caminho do inferno, com a cabeça de lado, o corpo a balançar, as pernas torcidas, as mãos arrepanhadas e os pés a pingar.



O exército ficou cinco dias em Caen. Cerca de trezentos franceses, todos homens de estirpe, que podiam pagar resgate, foram feitos prisioneiros e escoltados para norte, onde embarcariam para Inglaterra. Os soldados ingleses e galeses feridos foram levados para a Abbaye aux Dames e ficaram nos claustros, com as feridas a cheirar tão mal, que o príncipe e o seu séquito tiveram de se mudar para a Abbaye aux Hommes, onde o rei tinha os seus aposentos. Os corpos dos cidadãos massacrados foram retirados das ruas. Um padre da casa real tentou enterrar decentemente os mortos, como competia aos cristãos, mas a vala comum aberta no cemitério de Saint Jean apenas pôde conter quinhentos cadáveres e ninguém teve tempo ou pás que chegassem para enterrar o resto. Assim, quatro mil e quinhentos mortos foram lançados aos rios. Os sobreviventes da cidade rastejaram para fora dos seus esconderijos logo que a loucura da pilhagem terminou, e percorriam as margens em busca dos familiares, por entre os cadáveres que apareciam na maré vazia. As buscas perturbavam os cães selvagens, os ruidosos bandos de corvos e as gaivotas que gritavam enquanto se saciavam com a carne inchada dos mortos.

O castelo continuava ainda nas mãos dos franceses. As paredes eram altas e grossas e não havia escada que as pudesse escalar. O rei enviou um arauto para exigir a rendição da guarnição, mas os senhores franceses na grande fortaleza, recusaram delicadamente e convidaram os ingleses a fazer o seu pior, confiando em que nenhum tipo de catapulta poderia lançar uma pedra a altura suficiente para abrir uma brecha naqueles imponentes muros. O rei deu-lhes razão, e logo ordenou aos seus artilheiros que quebrassem as pedras do castelo, para o que, os cinco maiores trons do exército atravessaram a cidade antiga nas suas carroças. Três deles tinham a forma de longos tubos, feitos de tiras de ferro forjado ligadas por anéis de aço, enquanto os outros dois eram de bronze fundido por fabricantes de sinos e pareciam recipientes bojudos, com barrigas ovais e inchadas, pescoços estreitos e bocas enormes. Tinham todos cerca de cinco pés de comprimento e precisaram de tripés para passarem das carroças para os suportes de madeira.

Os suportes estavam apoiados em pranchas também de madeira. O chão por baixo das carretas dos canhões tivera de ser inclinado, para que estes pudessem apontar para a porta do castelo. Deitem a porta abaixo, ordenara o rei e poderia soltar os seus arqueiros e homens-de-armas num assalto ao castelo. Os artilheiros, a maioria homens vindos da Flandres ou de Itália e especialistas neste trabalho, misturavam a pólvora. Faziam-na com salitre, enxofre e carvão, mas o salitre era mais pesado que os outros ingredientes e assentava sempre no fundo dos barris, enquanto que o carvão vinha ao de cima. Por isso, os artilheiros tinham de misturar tudo, cuidadosamente, antes de despejarem o pó mortífero dentro das barrigas dos trons. Colocavam uma camada de greda feita de água e terra barrenta, na parte estreita do pescoço do canhão, antes de o carregarem com as bolas de pedra rudemente esculpidas, que faziam as vezes de projécteis. A greda servia para selar a câmara de fogo, para que não se perdesse a potência da explosão, antes de toda a pólvora estar incendiada. Metia-se ainda mais greda em volta das bolas de pedra, para preencher o espaço entre as bolas e os canos e depois os artilheiros tinham de esperar que a greda secasse e se transformasse num isolamento firme.

Os outros três trons eram mais fáceis de carregar. Cada tubo de ferro era amarrado a um enorme suporte de madeira, a todo o comprimento do canhão e depois voltado, em ângulo recto, para que a culatra da arma ficasse encostada a uma trave de sólida madeira de carvalho. Essa culatra, com um quarto do comprimento do canhão, ficava separada do cano e erguia-se acima do suporte, podendo manter-se direita, no chão, para se encher com o precioso pó negro. Uma vez cheias, as três câmaras eram seladas, com tampões de salgueiro que continham a explosão, e depois colocadas de novo nos seus apoios. Os três canos cilíndricos já tinham sido carregados, dois com bolas de pedra e um terceiro com um garro, uma gigantesca flecha, de uma jarda de comprimento.

As três câmaras da culatra tinham de ser firmemente encostadas ao cano de modo a que a potência da explosão não se escapasse por entre a união das duas partes do trom. Os artilheiros usavam cunhas de madeira que martelavam entre a culatra e a madeira, na parte posterior do suporte para que, a cada pancada do malho, as juntas ficassem imperceptivelmente mais apertadas. Outros artilheiros metiam a pólvora nas restantes câmaras da culatra, a fim de se poderem disparar os tiros seguintes. Tudo aquilo levava o seu tempo - bem mais de uma hora, para a greda dos dois canhões bojudos ficar bem firme - e o trabalho atraía uma enorme multidão de curiosos, que se mantinham a uma judiciosa distância, para não serem atingidos pelos fragmentos, se alguma daquelas estranhas máquinas se lembrasse de explodir. Os franceses, igualmente curiosos, observavam das ameias do castelo. De vez em quando, um defensor lançava um virote de besta, mas a distância era demasiada. Um projéctil ficou a uma dúzia de jardas dos trons, mas o resto caiu muito longe e cada revés provocava uma vaia da parte dos arqueiros. Por fim, os franceses desistiram da provocação e limitavam-se a olhar.

Os três canhões tubulares, poderiam ter sido disparados em primeiro lugar, pois não precisavam de greda, mas o rei desejava que a primeira rajada fosse simultânea. Esperava que os cinco projécteis estilhaçassem a porta do castelo, com enorme estrondo e, uma vez esta aberta, os seus artilheiros dariam conta do arco da entrada. O artilheiro-mor, um italiano alto e lúgubre, declarou finalmente as armas prontas, e que fossem trazidas as mechas. Tratava-se de pequenas extensões de palha oca, cheia de pólvora, com as extremidades tapadas com barro, que eram metidas em pequenos orifícios chamados ouvidos. O artilheiro-mor carregou no selo de barro de cada uma das extremidades da mecha, fazendo a seguir o sinal da Cruz. Um padre tinha já abençoado os trons, salpicando-os com água benta, e assim, o artilheiro-mor ajoelhou e olhou para o rei, que montava um enorme garanhão cinzento.

O monarca, de barba loira e olhos azuis, ergueu os olhos para o castelo. Havia um novo pendão suspenso dos parapeitos, mostrando a mão de Deus, a abençoar uma flor-de-lis. Era tempo, pensou, de mostrar aos franceses de que lado Deus realmente estava.

- Podeis disparar - ordenou solenemente.

Cinco artilheiros armados de bota-fogos - varas compridas, com uma extensão de linho incandescente. Mantinham-se ao lado dos trons e, a um sinal do italiano, tocavam com o lume nas mechas expostas. Houve um breve borbulhar, um sopro de fumo dos bota-fogos e depois as cinco bocas desapareciam numa nuvem de fumo acinzentado, no qual cinco monstruosas chamas se agitavam e contorciam, enquanto os próprios canhões, bem firmes nos seus suportes, batiam nas traves de madeira e chocavam contra os montes de terra erguidos atrás de cada culatra. O estrondo das armas ribombou mais que o mais forte dos trovões. Bateu fisicamente nos tímpanos e ecoou nas pálidas paredes do castelo; quando, por fim, desapareceu, o vapor continuou a pairar em farrapos diante dos canhões, agora tortos nos suportes e com as bocas levemente fumegantes.

O barulho assustara um milhar de pássaros, com ninhos nos telhados da cidade antiga, e nas torres mais altas do castelo, porém a porta não parecia ter sofrido qualquer dano. As bolas de pedra despedaçaram-se contra as paredes, enquanto que o garro nada fizera, excepto abrir um sulco no caminho de acesso. Os franceses, que se tinham escondido atrás das ameias quando do estrondo e do fumo, levantavam-se agora, lançando impropérios, enquanto os artilheiros recomeçavam estoicamente a alinhar as suas armas.

O rei, com trinta e quatro anos e menos confiante do que a sua atitude aparentava, franziu a testa, quando o fumo se desfez.

- Teremos usado pólvora suficiente? - perguntou ao artilheiro-mor. A pergunta teve de ser traduzida para italiano por um padre.

- Se usarmos mais pólvora, senhor, os canhões estilhaçam-se - respondeu o italiano, em tom lamentoso. Os homens esperavam sempre que as máquinas fizessem milagres e estava já cansado de explicar que, mesmo a pólvora negra, necessitava de tempo e paciência para fazer o seu efeito.

- Vós é que sabeis - respondeu rei em tom dúbio. - Decerto que vós é que sabeis - escondia o seu desapontamento, pois tinha algumas esperanças de que todo o castelo se estilhaçasse como vidro, quando os projécteis o atingissem. O seu séquito era formado quase exclusivamente por homens mais velhos que olhavam com ares de desprezo, pois tinham pouca fé nos canhões e, ainda menos, nos artilheiros italianos.

- Quem é aquela mulher que está com o meu filho? - perguntou o rei a um companheiro.

- A condessa de Armórica, senhor. Fugiu da Bretanha.

O rei estremeceu, não por causa de Jeanette, mas porque o mau cheiro da pólvora era incomodativo.

- Cresceu depressa - disse, com alguma inveja na voz. Levava para a cama uma camponesa qualquer, que era bastante agradável e percebia do que estava a fazer, mas não era tão bela como a condessa de negros cabelos que via junto ao príncipe.

Jeanette sem se aperceber que o rei a observava, olhava para o castelo, em busca de uma prova de que tivesse sido atacado por canhões.

- Afinal o que aconteceu? - perguntou ao príncipe.

- Leva tempo - disse o príncipe, escondendo a sua surpresa, por a porta do castelo não ter desaparecido por magia numa erupção de fragmentos de madeira. - Dizem que, de futuro, combateremos apenas com canhões. Mas não o consigo imaginar.

- São engraçados - disse Jeanette, enquanto um artilheiro transportava um balde de greda lamacenta, para o canhão mais próximo. A erva diante dos trons ardia em vários lugares e o ar estava cheio de um fedor a ovos podres, ainda mais repugnante que o dos cadáveres no rio.

- Se vos diverte, minha querida, então ainda bem que temos estas máquinas - disse o príncipe e depois franziu a testa, ao ver que um grupo de arqueiros, vestidos de verde e branco, vaiava os artilheiros. - Que aconteceu ao homem que vos trouxe para a Normandia? - perguntou. - Gostaria de lhe agradecer pelos serviços que vos prestou.

Jeanette receou poder corar.

- Não o vi desde que viemos para aqui - respondeu num tom descuidado.

O príncipe voltou-se na sela.

- Bohun! - gritou para o conde de Northampton. - O arqueiro pessoal da minha senhora, não se juntou aos vossos homens?

- Assim foi, senhor

- E onde está ele?

O conde encolheu os ombros.

- Desapareceu. Pensamos que tenha morrido, ao atravessar o rio.

- Pobre homem - disse o príncipe. - Pobre homem.

E Jeanette, para sua surpresa, sentiu uma punhalada de desgosto. Depois pensou que provavelmente seria melhor assim. Era viúva de um conde e agora amante de um príncipe e Thomas, se estava no fundo do rio, nunca poderia contar a verdade.

- Pobre homem - disse em tom despreocupado. - Comportou-se comigo de uma forma tão galante - desviou o olhar do príncipe, não querendo que ele a visse corar e deu por si a olhar fixamente, completamente desconcertada, para sir Simon Jekyll que, com um grupo de cavaleiros, viera assistir ao espectáculo dos canhões. Sir Simon ria, evidentemente divertido por tanto barulho e fumo terem produzido tão pouco efeito. Jeanette, não querendo acreditar nos seus olhos, limitava-se a fitá-lo. Empalidecera. O estar a ver sir Simon, trouxera-lhe de volta recordações dos seus piores dias em La Roche-Derrien, dias de medo, de pobreza, de humilhação e da incerteza em relação a para quem se voltar para pedir ajuda.

- Receio que nunca o possamos recompensar - afirmou o príncipe continuando a falar de Thomas, mas depois reparou que Jeanette não estava a tomar atenção. - Minha querida? - insistiu o príncipe, mas continuava a olhar para outro lado. - Minha senhora? - O príncipe falava mais alto, tocando-lhe no braço.

Sir Simon reparara que havia uma mulher junto do príncipe, mas não se apercebera de que se tratava de Jeanette. Viu apenas uma senhora esguia, com um pálido vestido dourado, sentada de lado na sela de um rico parlafrém, enfeitado com fitas verde e brancas. Usava um chapéu alto com um véu que ondulava ao vento, escondendo-lhe o perfil. Mas percebeu que, naquele momento, olhava de frente para ele, apontando mesmo para a sua pessoa e, para seu horror, reconheceu a condessa. Reconheceu também o pendão do jovem a seu lado, apesar de, a princípio, nem querer acreditar que ela estava com o príncipe. Depois viu o séquito agoirento dos homens de cota de malha, atrás do jovem louro e o seu primeiro impulso foi fugir, mas por fim, sem forças, caiu de joelhos. Quando o príncipe, Jeanette e os outros cavaleiros se aproximaram dele, estendeu-se ao comprido no chão. Tinha o coração a bater desordenadamente e o espírito num redemoinho de pânico.

- O vosso nome? - perguntou rapidamente o príncipe. Sir Simon abriu a boca, mas dela não saíram palavras.

- O nome dele é sir Simon Jekyll - esclareceu Jeanette, vingativa. - Tentou desnudar-me, senhor e ter-me-ia violado se não tivesse sido resgatada. Roubou o meu dinheiro, a minha armadura, os meus cavalos, os meus barcos e ter-me-ia arrebatado a honra com a mesma delicadeza com que um lobo arrebata um cordeiro.

- É verdade? - perguntou o príncipe.

Sir Simon ainda não conseguia falar, porém o conde de Northampton interveio.

- Os barcos, armadura e cavalos, senhor, eram despojos de guerra. Fui eu que lhe conferi autorização para os tomar.

- E o resto, Bohun?

- O resto, senhor? - o conde encolheu os ombros. - O resto terá o próprio sir Simon de explicar.

- Mas parece ter ficado sem fala - disse o príncipe. - Haveis perdido a língua, Jekyll?

Sir Simon ergueu a cabeça e viu que Jeanette o fitava com um ar tão triunfante que teve de a baixar de novo. Sabia que deveria dizer qualquer coisa, o que quer que fosse, mas a língua aparecia não lhe caber na boca e receava apenas conseguir gaguejar disparates. Assim, manteve o silêncio.

- Haveis tentado manchar a honra de uma senhora - acusou o príncipe, dirigindo-se a sir Simon.

Eduardo de Woodstock tinha idéias elevadas, provenientes do código de cavalaria, pois os seus tutores sempre o tinham ensinado a partir dos romances. Sabia que a guerra não era tão delicada, como os livros escritos gostavam de sugerir, mas acreditava que, quem estivesse em lugares de honra, deveria mostrá-la, mesmo que um homem vulgar pudesse comportar-se de outro modo. O príncipe estava também apaixonado, outro ideal encorajado pelos romances. Jeanette cativara-o e ele determinara que a sua honra fosse confirmada. Falou de novo, mas as palavras foram abafadas pelo som do canhão a disparar. Todos se voltaram para olhar para o castelo, mas a bola de pedra apenas se estilhaçara contra a torre da entrada, sem causar danos.

- Quereis combater comigo, pela honra da senhora? - perguntou o príncipe a sir Simon.

Sir Simon ficaria satisfeito por combater contra o príncipe, desde que tivesse a certeza de que a sua vitória não traria represálias. Sabia que o jovem tinha a reputação de ser um guerreiro, porém não era ainda um adulto e nem por sombras tão forte e experiente como sir Simon. Apenas um louco combateria contra um príncipe com esperanças de o vencer. Era verdade que o rei entrava em torneios, mas fazia-o disfarçado, com uma simples armadura, sem capa, para que os seus opositores não tivessem idéia da sua identidade, mas, se sir Simon combatesse contra o príncipe, nunca se atreveria a usar toda a sua força, pois qualquer ferimento seria vingado mil vezes pelos seus apoiantes. De fato, enquanto sir Simon hesitava, os homens sinistros, atrás de sua alteza, picavam os cavalos e aproximavam-se como se se viessem oferecer como campeões para a luta. Sir Simon, ultrapassado pela realidade, abanou a cabaça.

- Se não quereis combater - concluiu o príncipe na sua voz estridente e clara - terei de vos assumir como culpado e exijo uma compensação. Deveis a esta senhora a armadura e a espada.

- A armadura foi tomada com justiça, senhor - disse o conde de Northampton.

- Nenhum homem pode roubar, com justiça, uma armadura e as armas a uma simples mulher - exclamou o príncipe. - Onde está a armadura, Jekyll?

- Perdi-a, senhor - sir Simon falou pela primeira vez. Queria contar toda a história ao príncipe, como Jeanette lhe tinha armado a emboscada, mas a história terminava com a sua própria humilhação e teve a sensatez de se manter calado.

- Então essa cota de malha será suficiente - declarou o príncipe. - Despi-a. E deixai também a espada.

Sir Simon olhou para o príncipe de boca aberta, mas viu que este falava a sério. Desapertou o cinto da espada e deixou-o cair, depois retirou a cota de malha, pela cabeça, ficando apenas de camisa e calções.

- Que tendes na bolsa? - perguntou o príncipe, apontando para o pesado saco de couro, suspenso do pescoço de sir Simon.

Este procurou uma resposta e não encontrou senão a verdade, que era que a bolsa estava cheia com o dinheiro roubado a Thomas.

- É dinheiro, senhor.

- Então entregai-o à sua senhoria.

Sir Simon retirou a bolsa pela cabeça e entregou-a a Jeanette que esboçou um doce sorriso.

- Muito obrigada, sir Simon.

- O vosso cavalo está também confiscado - decretou o príncipe. - Deixareis este acampamento ao meio-dia, pois não sois bem-vindo na nossa companhia. Podeis ir embora, Jekyll, mas em Inglaterra não tereis o nosso favor.

Pela primeira vez, sir Simon fitou o príncipe nos olhos. Miserável cachorro danado, pensou, que o leite da tua mãe azede nos teus lábios imberbes; depois abanou a cabeça como se tivesse sido atingido pela frieza dos olhos do outro. Fez uma reverência, sabendo que estava a ser banido, sabia que era injusto, mas nada mais poderia fazer senão apelar ao rei; porém, o rei não lhe devia qualquer favor, nenhum homem importante no reino lhe falaria e era realmente um proscrito. Poderia regressar a Inglaterra, mas aí, em breve, todos saberiam que tinha incorrido no desagrado real e a sua vida seria uma interminável desgraça. Inclinou-se, deu meia volta e afastou-se com a sua camisa suja, enquanto em silêncio, os homens abriam caminho para que passasse.

O trom continuava a disparar. Quatro vezes nesse dia e oito no seguinte e, no final dos dois dias, havia uma racha na porta do castelo que poderia dar entrada a um pardal esfomeado. Os canhões nada tinham feito, para além de ensurdecer os artilheiros e partir as bolas de pedra contra os parapeitos do castelo. Nem um francês fora atingido, embora um artilheiro e um arqueiro tivessem morrido, quando um dos canhões de bronze explodira numa miríade de fragmentos de metal, incandescentes. O rei, apercebendo-se de que as tentativas eram ridículas, ordenou a retirada dos trons e o cerco ao castelo foi abandonado.

No dia seguinte todo o exército saiu de Caen. Marcharam para Oriente, em direcção a Paris e, atrás dele, seguiram as carroças, os seguidores, as manadas de gado e, por muito tempo, o céu a Oriente ficou branco, marcado pela nuvem de poeira que levantaram no ar. Por fim, o pó assentou, e a cidade, devastada e saqueada, foi deixada em paz. As gentes que tinham conseguido fugir da ilha voltaram aos poucos para as suas casas. A porta rachada do castelo foi aberta e a guarnição saiu, para ver o que restava de Caen. Durante uma semana, os padres transportaram uma imagem de São João pelas ruas sujas enquanto as salpicavam com água benta, para se verem livres da sujidade do inimigo. Disseram-se missas pelas almas dos mortos e orou-se fervorosamente para que os malditos ingleses encontrassem o rei de França para que a ruína também caísse sobre ele.

Todavia, e pelo menos, os ingleses tinham partido e a cidade violada e arruinada poderia voltar a viver.



Primeiro chegou a luz. A princípio enevoada, manchada, na qual Thomas pensou poder ver uma enorme janela, mas a sombra movia-se junto a ela e a luz desapareceu. Ouviu vozes, que depois se foram. In pascuis herbanmi addinavit me. Ouvia as palavras dentro da cabeça. Ele faz-me deitar em verdes pastagens. Um salmo, o mesmo salmo do qual o pai citara as suas últimas palavras. Cálix meus inebrians. A minha taça embriaga-me. Só que não estava embriagado. Doía-lhe respirar e sentia no peito uma pressão como a da tortura das pedras. Depois de novo a bendita escuridão e, com ela, o esquecimento.

A luz regressou uma vez mais, mas vacilava. Lá estava a sombra, a sombra aproximava-se e uma mão fresca poisou-lhe na testa.

- Creio que haveis de sobreviver - disse a voz surpreendida de um homem.

Thomas tentou falar, mas apenas conseguiu extrair de dentro de si um som estrangulado e rouco.

- Fico assombrado com o que os jovens conseguem suportar - continuou a voz. - E os bebés também. A vida é maravilhosamente forte. Só é pena que a desperdicemos.

- É bastante plena - disse outro homem.

- A voz dos privilegiados - respondeu o primeiro homem, cuja mão se mantinha ainda sobre a testa de Thomas. - Tomais a vida - disse. - Por isso avalia-la como um ladrão avalia as suas vítimas.

- E sois uma vítima?

- Claro. Uma vítima sabedora, uma vítima entendida, uma vítima valiosa, até. Mas sempre uma vítima. E este jovem, quem é?

- Um arqueiro inglês - disse a segunda voz, com azedume. - Se tivéssemos juízo, matá-lo-íamos imediatamente.

- Creio que será melhor tentarmos dar-lhe algum alimento. Ajudai-me a erguê-lo.

Umas mãos puxaram Thomas, para o endireitar no leito e uma colher de sopa quente entrou-lhe na boca. Porém não conseguiu engoli-la e cuspiu para cima dos cobertores. A dor invadiu-o e a escuridão voltou.

A luz apareceu por uma terceira vez, ou talvez pela quarta, não sabia. Talvez tivesse sonhado, mas, desta vez, havia um velho recortado contra a janela iluminada. Usava longas vestes, mas não era padre nem monge, pois o fato não estava preso na cintura e tinha o cabelo branco com um pequeno chapéu negro e quadrado.

- Meu Deus - tentou Thomas dizer, embora apenas lhe saísse um gemido gutural.

O velho voltou-se. Tinha uma longa barba de duas pontas e segurava um vaso de cama. Era um frasco de gargalo estreito e bojudo, cheio de um líquido amarelo pálido que observava à contraluz. Espreitou-o, agitou-o e depois cheirou a boca do frasco.

- Estais acordado?

- Sim.

- E podeis falar! Que belo físico sou! A minha inteligência assombra-me. Se ao menos conseguisse convencer os doentes a pagarem-me. Mas a maioria pensa que lhes deveria estar agradecida por não me cuspirem. Diríeis que esta urina está límpida?

Thomas acenou afirmativamente, para logo se arrepender, pois a dor percorreu-lhe o pescoço e a espinha.

- Não a considerais túrgida? Nem escura? Não, de fato, não. Tem um cheiro e um sabor saudável. Não há melhor sinal de saúde que um belo frasco de límpida urina amarela. Infelizmente não vos pertence - o físico abriu a janela e despejou a urina. - Engoli - ordenou a Thomas.

Thomas tinha a boca seca mas obedeceu e tentou engolir, mas soltou imediatamente um gemido de dor.

- Creio que o melhor será experimentarmos uma papa de aveia muito fina. Muito fina, com um pouco de azeite, creio, ou talvez melhor, manteiga. À volta do pescoço tendes uma tira de pano fino, embebido em água benta. Não foi idéia minha, mas não o proibi. Vós cristãos acreditais em magia, afinal não se pode ter fé, sem confiar na magia, de modo que tenho de aceitar as vossas crenças. É uma pata de cão que usais em redor do pescoço? Deixai estar, de certo não vou querer saber. Porém, quando recuperardes, confio que entendereis que não foram patas de cão nem panos molhados que vos curaram, mas sim a minha perícia. Sangrei-vos, apliquei-vos cataplasmas de estrume, musgo e alho e provoquei-vos suadouros. Mesmo assim, Eleanor insiste em que foram as suas orações e esse espalhafatoso pano molhado que vos ressuscitaram.

- Eleanor?

- Foi ela que cortou a corda para vos descer, meu rapaz. Quase havíeis morrido. Quando eu cheguei, estáveis mais morto que vivo e aconselhei-a mesmo a deixar-vos expirar em paz. Disselhe que vos encontráveis a meio caminho daquilo a que chamais o inferno e que era velho demais para entrar em competição com o demónio, mas Eleanor insistiu e sempre achei muito difícil resistir às suas súplicas. Papa de aveia com manteiga rançosa, penso eu. Estais fraco, meu rapaz, muito fraco. Tendes nome?

- Thomas.

- O meu é Mordecai, embora me possais chamar Doutor. Claro que não o fareis. Haveis de me chamar judeu maldito, assassino de Cristo, adorador secreto de porcos e raptor de crianças cristãs - disse tudo isto em tom satisfeito. - Que absurdo! Quem quereria raptar crianças cristãs ou quaisquer outras? Que coisas tão horrorosas! A única graça das crianças está em que crescem, tal como aconteceu com o meu filho, mas depois, tragicamente, geram mais crianças. Não sabemos aprender com as lições da vida.

- Doutor? - disse Thomas em voz rouca.

- Thomas?

- Muito obrigado.

- Um inglês com maneiras! Ainda há maravilhas neste mundo. Esperai aqui, Thomas, e não tenhais a indelicadeza de morrer enquanto me ausento. Vou buscar a papa.

- Doutor?

- Ainda aqui estou.

- Onde estou eu?

- Em casa do meu amigo e em completa segurança.

- Vosso amigo?

- Sir Guillaume d'Evecque, cavaleiro do mar e da terra, e o maior imbecil que conheço, mas um imbecil de bom coração. Pelo menos paga-me.

Thomas fechou os olhos. Não compreendera bem o que o físico lhe dissera, ou pelo menos não acreditara. Doía-lhe a cabeça. Sentia dores por todo o corpo desde a cabeça até aos dedos dos pés que latejavam. Pensou na mãe, porque o reconfortava mas depois, lembrou-se de que o tinham içado para a árvore e estremeceu. Desejou poder adormecer mais uma vez, pois no sono não sentia dor, mas foi obrigado a sentar-se e o físico meteu-lhe à força na boca uma papa oleosa e acre que, porém, conseguiu não a cuspir nem vomitar. Deveria conter cogumelos, ou talvez uma infusão de folhas de cânhamo, a que os aldeãos de Hookton chamavam salada-de-anjo, porque depois de comer teve sonhos muito reais, mas menos dores. Quando acordou, estava escuro e encontrava-se só, mas conseguiu sentar-se e depois pôr-se de pé, mas cambaleou e teve de voltar a sentar-se.

Na manhã seguinte quando os pássaros cantavam nos ramos do carvalho em que quase tinha morrido, um homem alto entrou-lhe no quarto. Vinha de muletas e tinha a coxa esquerda enfaixada em ligaduras. Voltou-se para Thomas e mostrou-lhe a face cheia de terríveis cicatrizes. Uma lâmina cortara-o da testa até ao queixo, levando-lhe o olho esquerdo, num golpe selvagem. Tinha o cabelo louro e comprido, espesso e volumoso, que fez Thomas pensar que teria sido um belo homem, mas que agora parecia saído de um pesadelo.

- Mordecai disse-me que sobrevivereis - resmungou o homem.

- Com a ajuda de Deus - respondeu Thomas.

- Duvido que Deus se interesse muito por vós - disse o homem com amargura. Parecia ter menos de quarenta anos, as pernas arqueadas de cavaleiro e o peito largo de quem pratica muito com as armas. Dirigiu-se à janela, apoiado nas muletas, e sentou-se no parapeito. Tinha fios brancos na barba, onde a lâmina lhe cortara o queixo, e a voz invulgarmente profunda e áspera. - Mas conseguireis viver com a ajuda de Mordecai. Não há físico que se lhe compare em toda a Normandia, embora só Cristo saiba como o consegue. Há uma semana que espreita o meu mijo. Estou aleijado, judeu tonto, não fui ferido na bexiga, mas ele manda-me calar e extrai mais umas gotas. Em breve começará convosco. - O homem, que nada mais vestia para além de uma longa camisa branca, contemplava Thomas com ar rabugento. - Tenho uma vaga idéia - resmungou - de que sois vós o maldito degenerado que me meteu uma flecha na perna. Lembro-me de ver o filho de uma rameira, com o cabelo comprido como o vosso e depois, fui atingido.

- Sois sir Guillaume?

- Sou.

- Queria matar-vos - disse Thomas.

- Então porque será que não vos mato eu? - ripostou o outro. - Estais deitado na minha cama, haveis comido a minha papa de aveia e respirado o meu ar. Bastardo inglês. E pior ainda, sois um Vexille.

Thomas voltou a cabeça para olhar para o assustador sir Guillaume. Nada disse, pois as últimas palavras tinham-no surpreendido.

- Mas preferi não vos matar - disse sir Guillaume. - Haveis impedido a violação da minha filha.

- Da vossa filha?

- Eleanor, imbecil. É uma filha bastarda, claro - disse sir Guillaume. - A mãe dela era criada do meu pai, mas Eleanor é tudo o que me resta e gosto dela. Disse-me que haveis sido bom e foi por isso que cortou a corda para vos descer, e é por isso que estais deitado na minha cama. Sempre foi exageradamente sentimental - franziu a testa. - Mas ainda tenho idéia de vos cortar esse maldito pescoço.

- Durante quatro anos sonhei em cortar o vosso - disse Thomas. Sir Guillaume lançou-lhe um terrível olhar.

- Claro que sim, sois um Vexille.

- Nunca ouvi falar de Vexilles - disse Thomas. - Chamo-me Thomas de Hookton.

Thomas esperava ver sir Guillaume franzir o sobrolho, ao tentar recordar-se de Hookton, mas o homem reconheceu imediatamente o nome da terra.

- Hookton - disse. - Hookton. Bom Deus, Hookton! - ficou em silêncio por alguns instantes. - E claro que sois um maldito Vexille. Tendes a insígnia no arco.

- No meu arco?

- Havei-lo dado a Eleanor para que o levasse! Ela guardou-o. Thomas fechou os olhos. Doíam-lhe, as costas e a cabeça.

- Creio que se trata da insígnia de meu pai - disse. - Mas não tenho a certeza, pois nunca falava da família. Sei que odiava o seu próprio pai. Também eu não gostava lá muito do meu, mas os vossos homens mataram-no e eu jurei vingar-me.

Sir Guillaume voltou-se para olhar para janela.

- É verdade que nunca haveis ouvido falar dos Vexilles?

- Nunca.

- Então sois afortunado - ergueu-se. - São crias do demónio, e vós, suspeito bem, sois um deles. Matar-vos-ia, meu rapaz, com os mesmos remorsos com que pisaria uma aranha, mas haveis sido bom para a minha filha bastarda e por isso agradeço-vos - saiu a coxear do quarto.

E deixou Thomas cheio de dores e completamente aturdido.



Thomas convalesceu no jardim de sir Guillaume, protegido do sol por dois marmeleiros, sob os quais aguardava o veredicto diário do doutor Mordecai a respeito da cor, consistência, sabor e cheiro da sua urina. Para o físico, parecia não ter importância que o inchaço do pescoço de Thomas diminuísse, nem o fato de já poder engolir de novo pão e carne. O que lhe interessava era o estado da urina. Não havia, declarava o físico, melhor método de diagnóstico.

- A urina tudo trai. Se cheira mal, ou se é escura, se sabe a vinagre ou está turva é sinal que é necessário um grande tratamento. Mas uma boa urina, pálida, de cheiro agradável, como esta, é o pior que pode haver.

- O pior? - perguntou Thomas alarmado.

- Significa menos dinheiro para o físico, meu rapaz.

O físico sobrevivera ao saque de Caen, escondendo-se na pocilga de um vizinho.

- Mataram os porcos, mas não chegaram ao judeu. Sabei que me partiram todos os instrumentos, espalharam as drogas, partiram todos os meus frascos, excepto três e incendiaram-me a casa. E por isso que sou obrigado a viver aqui - estremeceu como se morar em casa de sir Guillaume fosse uma coisa terrível. Cheirou a urina de Thomas e depois, hesitando no seu diagnóstico, deixou cair uma gota num dedo e provou-a.

- Muito boa - afirmou. - Infelizmente - despejou o conteúdo do frasco num canteiro de alfazema onde as abelhas se afadigavam. - Assim, perdi tudo. E isto depois dos nossos grandes senhores nos terem garantido que a cidade era segura! - O físico tinha já dito a Thomas que os chefes da guarnição tinham insistido em defender apenas a cidade murada e o castelo, mas precisavam da ajuda dos habitantes para controlar as muralhas. Estes insistiram para que a Ile de Saint Jean fosse defendida, pois era aí que se encontrava a riqueza da cidade e assim, no último minuto, a guarnição atravessara a ponte para se desgraçar. - Loucos - exclamou Mordecai com desprezo. - Loucos pelo aço e pela glória. Loucos.

Thomas e Mordecai partilharam casa, enquanto sir Guillaume visitou os seus domínios em Evecque, cerca de dez léguas a sul de Caen, onde fora contratar mais homens.

- Vai continuar a combater, com a perna ferida ou não.

- Que irá fazer comigo?

- Nada - confidenciou-lhe o físico. - Aprecia-vos apesar das suas ameaças. Haveis salvo Eleanor, não é verdade? Sempre gostou dela. A mulher não, mas ele sim.

- O que aconteceu à mulher?

- Morreu - disse Mordecai. - Morreu e pronto.

Thomas já conseguia comer bem e recuperava tão rapidamente as forças que já conseguia passear na Ile Saint Jean com Eleanor. A ilha parecia ter sido atacada pela peste, com metade das casas vazias e as ocupadas, ainda destruídas pela pilhagem. Faltavam os batentes das janelas, as portas estavam desfeitas e, nas lojas, não havia mercadoria. Alguns camponeses vendiam feijão, ervilhas e queijo em carroças e uns rapazinhos ofereciam percas acabadas de pescar nos rios, mas mesmo assim eram tempos de fome. E também de nervosismo, pois os sobreviventes da cidade receavam que os odiados ingleses pudessem regressar e a ilha estava ainda assolada pelo fedor doentio dos cadáveres lançados aos dois rios, onde engordavam as gaivotas, as ratazanas e os cães.

Eleanor detestava passear ali, preferindo ir para Sul, para o campo, onde voavam libelinhas azuis sobre os lírios de água e os ribeiros serpenteavam por entre cearas maduras de cevada, centeio e trigo.

- Adoro o tempo das ceifas - disse a Thomas. - Costumávamos vir ajudar aqui no campo. - A ceifa seria fraca naquele ano, sem gente para a fazer; os trigueirões comiam o grão das espigas e os pombos disputavam as sobras. - Deveria haver uma festa no fim das ceifas - disse Eleanor melancólica.

- Também nós fazíamos uma festa - afirmou Thomas. - E costumávamos pendurar bonecos na igreja.

- Bonecos de milho?

Thomas fez-lhe um pequeno boneco de palha.

- Costumávamos pendurar treze como este por cima do altar - disse. - Um por Cristo e um por cada Apóstolo. - Apanhou umas flores do milho e ofereceu-as a Eleanor que as meteu no cabelo. Tinha uma cabeleira muito loira, como oiro ao sol.

Falavam sem cessar e, um dia, Thomas voltou a perguntar-lhe pela lança. Dessa vez Eleanor acenou com a cabeça.

- Menti-vos - disse ela. - Ele teve-a, mas foi roubada.

- Quem a roubou?

Ela levou a mão ao rosto.

- O homem que lhe tirou o olho.

- Um homem chamado Vexille?

Ela acenou com a cabeça e ar solene.

- Creio que sim. Mas não estava cá em casa, estava em Evecque. É lá que ele realmente vive. Arranjou a casa em Caen quando se casou.

- Fala-me dos Vexilles - insistiu Thomas.

- Não sei nada a respeito deles - respondeu Eleanor e ele acreditou. Estavam sentados junto a um ribeiro onde nadavam dois cisnes e uma garça apanhava sapos no canavial. Thomas falara já em se afastar de Caen para ir ter com o exército inglês, mas as suas palavras deviam ter preocupado Eleanor, que franzia o sobrolho.

- Ireis realmente?

- Não sei - queria voltar para o exército, pois era lá que pertencia, embora não soubesse onde o encontrar, nem como sobreviver num país onde os ingleses se tinham feito odiar; e, ao mesmo tempo, queria ficar. Queria saber mais dos Vexilles e apenas sir Guillaume lhe poderia satisfazer essa ansiedade. E, queria, cada vez mais, estar com Eleanor. Havia nela uma calma doçura que Jeanette nunca possuíra, uma delicadeza que o fazia querer tratá-la com ternura, como se receasse que, de contrário, a pudesse partir. Nunca se cansava de lhe olhar para o rosto longo, de faces levemente cavadas, nariz alto e olhos grandes. Ela ficava embaraçada com o escrutínio, mas não lhe dizia que não o fizesse.

- Sir Guillaume disse-me que me pareço com a minha mãe - afirmou. - Mas não me lembro muito bem como ela era.

Sir Guillaume voltou para Caen com uma dezena de homens-de-armas que contratara a norte, em Alençon. Levá-los-ia para a guerra, afirmou, juntamente com a meia dúzia dos seus homens que sobrevivera à queda de Caen. Ainda lhe doía a perna, mas já podia andar sem muletas e, no dia do seu regresso, ordenou sumariamente a Thomas que o acompanhasse à igreja de Saint Jean. Eleanor, que estava na cozinha, veio ter com eles à saída de casa e sir Guillaume não a proibiu de os acompanhar.

O povo inclinava-se à passagem do cavaleiro e muitos procuravam assegurar-se junto dele, que os ingleses tinham de fato partido.

- Marcham em direcção a Paris - respondia. - O nosso rei vai apanha-los e matá-los.

- É isso que pensais? - perguntou Thomas depois de o ouvir dizer tal coisa.

- Rezo para que sim - resmungou sir Guillaume. - É para isso que serve o rei. Não tem de proteger o seu povo? E só Deus sabe como necessitamos de protecção. Disseram-me que se subirmos a essa torre - apontou com o queixo para a igreja de Saint Jean, onde se dirigiam - podemos ver o fumo das cidades que o vosso exército incendiou. Conduzem uma chevauchée.

- Chevauchée? - perguntou Eleanor. O pai suspirou.

- Chevanchée, menina, é uma marcha a direito pelo país do inimigo, durante a qual se vai incendiando, destruindo e arruinando tudo o que aparece à frente. O objectivo de tal barbaridade é obrigar o inimigo a sair da sua fortaleza e combater, e creio que o nosso rei fará a vontade aos ingleses.

- E os arcos ingleses - avisou Thomas - ceifam-lhe o exército como se fosse feno.

Sir Guillaume fez um ar zangado, mas depois encolheu os ombros.

- Um exército em marcha, acaba por se desgastar - disse. - Os cavalos ficam coxos, as botas gastam-se e acabam-se as flechas. E nunca haveis visto o poder de França, meu rapaz. Por cada cavaleiro vosso, nós temos seis. Podeis disparar as vossas flechas até mais não, mas continuaremos a ter homens suficientes para vos matarem.

Sacou da bolsa que trazia à cintura e entregou algumas moedas aos pedintes que se mantinham à porta da igreja, junto à nova sepultura, com os quinhentos cadáveres. Não passava agora de um monte de terra remexida, salpicada de dentes de leão e com um cheiro terrível, pois quando os ingleses abriram a vala, tinham atingido o lençol de água a poucos metros da superfície, de modo que ficou pouco profunda e a terra era fina demais para conter a corrupção que a sepultura escondia.

Eleanor levou a mão à boca e apressou-se a subir os degraus da igreja, onde os arqueiros tinham leiloado as esposas e as filhas da cidade. Os padres haviam já exorcizado três vezes a igreja com preces e água benta, mas a atmosfera continuava triste, pois as imagens estavam partidas e as janelas estilhaçadas. Sir Guillaume ajoelhou no altar-mor, conduzindo depois Thomas e Eleanor por uma nave lateral, onde um fresco, na parede caiada mostrava São João fugindo ao caldeirão de azeite a ferver, que o imperador Domiciano lhe tinha preparado. O santo apresentava-se na sua forma etérea, meio fumo, meio homem, flutuando no ar, enquanto os soldados romanos o olhavam perplexos.

Sir Guillaume aproximou-se de um altar lateral, onde caiu de joelhos diante de uma enorme laje negra e, para sua grande surpresa, Thomas viu que o francês chorava do seu único olho.

- Trouxe-vos aqui, para vos dar uma lição acerca da vossa família - disse Sir Guillaume.

Thomas não o contradisse. Não sabia que era um Vexille, porém o yale na insígnia de prata assim o sugeria.

- Sob esta pedra jazem a minha mulher e os meus dois filhos - disse sir Guillaume. - Um rapaz e uma rapariga. Ele tinha seis anos e ela oito e a mãe vinte cinco. A casa, aqui, pertencia ao pai dela. Deu-me a filha para resgatar um barco que eu capturara. Foi um mero acto de pirataria, não de guerra, mas ganhei dele uma boa esposa - as lágrimas corriam-lhe pelo rosto e fechou o seu único olho. Eleanor mantinha-se a seu lado, poisando-lhe uma mão no ombro, enquanto Thomas aguardava.

- Sabeis porque fomos a Hookton? - perguntou algum tempo depois.

- Pensamos ter sido por a maré vos ter afastado de Poole.

- Não. Fomos lá propositadamente. Um homem, que dava a si próprio o nome de Harlequin, pagou-me para lá ir.

- Como hellequin? - perguntou Thomas.

- A palavra é a mesma, apenas usada na sua forma italiana. Uma alma diabólica, troçando de Deus e até se parecia convosco - disse sir Guillaume, fazendo o sinal da Cruz e passando a seguir o dedo por cima da pedra. - Fomos buscar um relíquia a uma igreja. Decerto já o sabíeis?

- E jurei devolvê-la.

Sir Guillaume pareceu desprezar tal ambição.

- Pensei que fosse uma loucura, mas nesses tempos pensava que a vida era de fato assim. Porque haveria uma miserável igreja de uma insignificante aldeia inglesa ter uma relíquia preciosa? Porém, o Harlequin insistia que assim era e, quando tomamos a aldeia, encontramo-la.

- A lança de São Jorge - disse Thomas, simplesmente.

- A lança de São Jorge - concordou sir Guillaume. - Tinha um contrato com o Harlequin. Pagou-me algum dinheiro e o restante foi guardado por uma monge, aqui da abadia. Era um monge em quem toda a gente confiava, um sábio, um homem terrível, que todos diziam ser um santo mas, quando regressei, descobri que o Irmão Martin fugira, levando consigo o meu dinheiro. Assim, recusei-me a entregar a lança ao Harlequin. Trazei-me as novecentas libras em prata de lei e a lança é vossa, mas ele não quis pagar. Portanto, guardei a lança. Guardei-a em Evecque. Os meses passaram, nada mais ouvi sobre o assunto e pensei que a lança tivesse sido esquecida. Mas, há dois anos, na Primavera, o Harlequin regressou. Vinha acompanhado de homens-de-armas e invadiu o domínio. Matou toda a gente, toda a gente, e levou a lança.

Thomas olhou para a laje negra.

- Haveis sobrevivido?

- Mal - disse sir Guillaume. Ergueu o gibão negro e mostrou uma terrível cicatriz no ventre. - Fez-me três feridas - continuou. - Uma na cabeça, uma no ventre e outra na perna. Disse-me que a da cabeça era por ser um imbecil sem miolos, a das tripas era uma recordação da minha ganância e a da perna para poder coxear, a caminho do inferno. Depois deixou-me a olhar para os cadáveres da minha mulher e dos meus filhos enquanto morria. Contudo, graças a Mordecai, sobrevivi. - Ergueu-se, estremecendo, quando assentou o peso do corpo sobre a perna esquerda. - Sobrevivi - acrescentou tristemente. - E jurei encontrar o homem que o tinha feito - apontou para a laje. - Quero mandar a sua alma aos gritos para a cova. Levei um ano para descobrir quem era e sabeis como foi? Quando veio a Evecque mandara cobrir os escudos dos seus homens com panos negros, mas eu rasguei um deles com a minha espada e vi o yale. Perguntei a toda agente o que era. Perguntei em Paris e em Anjou, na Borgonha e em Dauphiné e por fim obtive resposta. E onde a encontrei? Depois de investigar em toda a França, descobria aqui em Caen. Um homem aqui, reconheceu a insígnia. O Harlequin é uma homem chamado Vexille. Não conheço o seu primeiro nome, não sei qual é a sua posição. Só sei que se trata de um demónio chamado Vexille.

- Então os Vexilles têm a lança?

- Têm. E o homem que matou a minha família, matou o vosso pai - sir Guillaume pareceu envergonhado por uns instantes. - Matei a vossa mãe. Creio que era ela, seja como for. Mas atacou-me e eu estava raivoso - encolheu os ombros. - Mas não matei o vosso pai e, ao matar a vossa mãe, nada mais fiz do que o que vós haveis feito na Bretanha.

- É verdade - admitiu Thomas. - Fitou o olho de sir Guillaume e não sentiu ódio pela morte da mãe. - Quer dizer que temos o mesmo inimigo - disse Thomas.

- E esse inimigo é o demónio - afirmou sir Guillaume.

Disse-o em tom lúgubre, fazendo logo o sinal da Cruz. Thomas sentiu-se subitamente gelado, pois descobrira o seu inimigo e o seu inimigo era Lúcifer.



Nessa noite, Mordecai esfregou um unguento no pescoço de Thomas.

- Creio que esteja quase curado - disse. - A dor vai desaparecer, embora fique sempre alguma coisa para vos recordar o próximo que haveis estado da morte - aspirou os aromas do jardim. - Então sir Guillaume contou-vos a história da sua esposa?

- Sim.

- E sois aparentado com o homem que a matou?

- Não sei - disse Thomas. - Realmente não sei, mas o yale sugere que o seja.

- Provavelmente, sir Guillaume matou vossa mãe e o homem que lhe matou a mulher matou também vosso pai e sir Simon Jekyll tentou matar-vos - Mordecai abanou a cabeça. - Todas as noites lamento não ter nascido cristão. Poderia trazer comigo uma arma e juntar-me à diversão - entregou uma garrafa a Thomas.

- Fazei - ordenou. - E, a propósito, o que é um yale?

- Um animal heráldico - explicou Thomas. O físico fungou.

- Deus, na sua infinita sabedoria, criou os peixes e as baleias no quinto dia e, no sexto os animais da terra e olhou para o que tinha feito e viu que era bom. Mas não suficientemente bom para os brasões que tiveram de acrescentar asas, cornos, presas e garras à Sua imperfeita obra. Não conseguis fazer mais?

- De momento...

- Conseguiria mais sumo se espremesse uma avelã - resmungou e afastou-se, arrastando os pés.

Eleanor deveria ter estado à espreita da sua partida, pois apareceu debaixo da pereira, que crescia ao fundo do jardim, e apontou para a porta do lado do rio. Thomas seguiu-a até à beira do Orne, onde ficaram ambos a ver um entusiasmado trio de rapazinhos tentar apanhar um lúcio, com flechas inglesas abandonadas após a captura da cidade.

- Ajudareis o meu pai? - perguntou Eleanor.

- Ajudá-lo?

- Haveis dito que o vosso inimigo era o dele. Thomas sentou-se sobre a relva e ela a seu lado.

- Não sei - respondeu. Ainda não acreditava em tudo aquilo. Sabia que havia uma lança e um mistério na sua família, mas sentia-se relutante em admitir que a lança e o mistério deveriam governar toda a sua vida.

- Significa que quereis voltar para o exército inglês? - perguntou Eleanor, em voz baixa.

- Quero ficar aqui - disse Thomas depois de uma pausa. - Para ficar contigo.

Ela deveria estar à espera que ele dissesse tal coisa. Mesmo assim corou e olhou para a água revolta, onde os peixes se erguiam para os enxames de insectos e os três rapazes tentavam pescar, em vão.

- Deveis ter uma mulher - disse em voz baixa.

- Tive - respondeu Thomas e contou-lhe o que se passara com Jeanette, como ela conhecera o Príncipe de Gales e o abandonara, sem um simples olhar.

- Nunca a entenderei - admitiu.

- Mas amai-la? - perguntou Eleanor directamente.

- Não - respondeu Thomas.

- Dizeis isso, porque estais comigo - declarou Eleanor. Ele abanou a cabeça.

- O meu pai tinha um livro com citações de Santo Agostinho e havia uma que sempre me intrigou - franziu a testa, tentando lembrar-se do latim - Nondum amabam, et amare amabam. Não amava, mas ansiava amar.

Eleanor lançou-lhe um olhar céptico.

- Um modo muito elaborado de dizerdes que estais só.

- Sim - concordou Thomas.

- Que fareis, então? - perguntou.

Thomas ficou em silêncio, por algum tempo. Pensava na penitência imposta pelo padre Hobbe.

- Suponho que um dia terei de encontrar o homem que matou o meu pai - disse, depois.

- E se for o demónio? - perguntou ela muito séria.

- Então começarei a usar alho - disse Thomas em tom ligeiro. - E rezarei a São Guinefort.

Ela olhou para a água escura.

- Santo Agostinho disse realmente isso?

- Nondum amabam, et amare amabam? - perguntou Thomas. - Disse, pois.

- Sei como se sentia - continuou Eleanor, descansando a cabeça no ombro de Thomas.

Este manteve-se imóvel. Não tinha escolha. Seguir a lança ou voltar com o arco negro para o exército. Na verdade ignorava o que fazer. Mas o corpo de Eleanor encostava-se morno ao seu, tão reconfortante e, de momento, bastava-lhe. Assim, também de momento, iria ficar.



Na manhã seguinte, sir Guillaume, agora escoltado por meia dúzia de homens, conduziu Thomas à Abbaye aux Hommes. Havia uma multidão de peticionários que aguardavam na escadaria, para pedir comida e roupa que os monges não tinham, embora a abadia em si tivesse escapado à pilhagem mais grave, já que servira de aquartelamento ao rei e ao Príncipe de Gales. Os próprios monges tinham fugido à aproximação do exército inglês. Alguns tinham morrido na Ile de Saint Jean mas, a maior parte fora para sul para uma casa irmã e entre estes estivera o Irmão Germain que, quando sir Guillaume chegou, acabava de regressar do seu breve exílio.

O Irmão Germain era pequeno, velho e curvado, um homem de aspecto insignificante, de cabelos brancos, olhos míopes e mãos delicadas com as quais aparava uma pena de pato.

- Os ingleses usam estas penas nas suas flechas - disse o velho. - Nós usamo-la para escrever a palavra de Deus. - Tinham dito a Thomas que o Irmão Germain estava encarregado do scriptorhim do mosteiro havia mais de trinta anos.

- Quer se queira, quer não, enquanto se copiam os livros, descobre-se sabedoria - explicou o monge. - A maior parte é perfeitamente inútil, claro. Como está Mordecai? Sobreviveu?

- Sobreviveu - garantiu sir Guillaume. - E envia-vos isto. - Poisou um pote de barro, selado com cera, na superfície inclinada da escrivaninha. O pote deslizou até o Irmão Germain o conseguir apanhar e o meter numa bolsa.

- Um unguento, para as articulações do Irmão Germain - explicou sir Guillaume a Thomas.

- Que me doem - afirmou o monge. - E só Mordecai as consegue aliviar. É uma pena que vá arder no inferno, mas no céu, tenho a certeza, de que não vou precisar de pomadas. Quem é este? - perguntou a olhar para Thomas.

- Um amigo, que me trouxe isto - respondeu sir Guillaume. Carregava o arco de Thomas, que poisara agora sobre a escrivaninha, apontando a placa de prata. O Irmão Germain inclinou-se para inspeccionar a insígnia e Thomas ouviu-o respirar fundo.

- O yale - disse o Irmão Germain. Empurrou o arco e depois assoprou as aparas da pena, de cima do tampo. - O animal foi introduzido na heráldica no século passado. Claro que, nesses tempos, havia do mundo verdadeira sabedoria. Não era como hoje. Recebo jovens de Paris com as cabeças cheias de cotão, porém afirmam ter doutoramentos.

Retirou de uma prateleira uma folha de pergaminho, poisou-a na escrivaninha e mergulhou a pena num pote de vermelhão. Deixou cair uma gota cintilante no pergaminho e, a seguir, com a perícia adquirida durante toda uma vida, usou a tinta com traços rápidos. Mal parecia reparar no que estava a fazer, mas Thomas, para seu assombro, via o desenho de um yale tomar forma no pergaminho.

- Diz-se que é um animal mítico - explicou o monge, movimentando rapidamente a pena para desenhar uma presa. - E talvez seja. A maior parte dos animais heráldicos parecem ser invenções. Quem já viu um unicórnio? - deixou cair outra gota de tinta no pergaminho, fez uma leva pausa e depois começou as patas erguidas do animal. - Porém surgiu a idéia de que o yale existe na Etiópia. Não posso garanti-lo, pois nunca viajei para lá de Ruão, nem conheci nenhum viajante que lá tivesse estado, se é que a Etiópia existe - franziu a testa. - Porém, Plínio menciona o yale. O que sugere que os Romanos o deveriam conhecer, embora só Deus saiba como essa raça era crédula. Diz-se que o animal possui chifres e presas, o que me parece muito extravagante, e é geralmente representado como sendo prateado com manchas amarelas. Ai de mim, os nossos pigmentos foram roubados pelos ingleses; porém deixaram-nos o vermelhão, o que suponho, tenha sido muita bondade da parte deles. Disseram-me que provinha do cinábrio. Será uma planta? O padre Jacques, Deus lhe tenha a alma em descanso, afirmou sempre que crescia na Terra Santa e talvez seja verdade. Parece-me notar que coxeais, sir Guillaume.

- Um degenerado arqueiro inglês meteu-me uma flecha na perna - disse sir Guillaume. - Rezo todas as noites para que a sua alma arda no Inferno.

- Pelo contrário, deveríeis dar graças por lhe ter falhado a pontaria. Porque me trazeis um arco de guerra inglês, adornado com um yale?

- Porque pensei que vos poderia interessar - respondeu sir Guillaume.

- E porque aqui, o meu jovem amigo - tocou no ombro de Thomas - quer saber coisas dos Vexilles.

- Faria melhor se os esquecesse - resmungou o Irmão Germain. Estava empoleirado numa cadeira alta e observava agora a sala, onde um grupo de monges limpava a sujidade deixada pelos ocupantes ingleses do mosteiro. Alguns conversavam durante o trabalho, o que obrigou o Irmão Germain a franzir a testa.

- Não estamos no mercado de Caen! - exclamou aborrecido. - Se quereis dar à língua deveis ir para as retretes. Quem me dera ir também. Haveis de perguntar a Mordecai se não tem também um unguento para os intestinos, está bem? - Lançou um breve olhar furioso pela sala e depois pegou a custo no arco, que encostara à escrivaninha. Olhou atentamente para o yale e logo poisou a arma. - Sempre houve rumores de que um ramo da família Vexille tinha ido para Inglaterra. Isto parece confirmá-lo.

- Quem são? - perguntou Thomas.

O Irmão Germain pareceu irritar-se com uma questão tão directa, ou talvez que o assunto dos Vexilles o incomodasse.

- Eram senhores de Astarac - disse. - Um condado que faz fronteira com o Languedoque e o Agenais. Isso, claro, deverá dizer-vos tudo o precisais de saber a respeito deles.

- Não me diz nada - confessou Thomas.

- Então talvez seja melhor arranjardes um doutoramento em Paris! - disse o velho, rindo da sua própria graça. - Os condes de Astarac, jovem, eram cátaros. O sul de França estava infestado por essa maldita heresia e Astarac era o centro do mal - fez o sinal da Cruz com os dedos manchados pelos pigmentos. - Habere non potest - disse solenemente. - Deum pairem qni ecdesiam non habet matrem.

- São Cipriano - disse Thomas. - Não pode ter Deus por pai quem não tem a Igreja por mãe.

- Vejo que afinal não vindes de Paris - disse o Irmão Germain. - Os Cátaros rejeitaram a Igreja, buscando a salvação dentro das suas negras almas. Que seria da igreja se todos fizéssemos o mesmo? Se todos perseguíssemos os nossos caprichos? Se Deus está dentro de nós, então não precisamos de Igreja nem de Santo Padre para nos conduzir à Sua misericórdia. Essa idéia é a mais perniciosa das heresias e até onde conduziu os cátaros? A uma vida de dissipação, de prazeres da carne, de orgulho e perversão. Negaram a divindade de Cristo! - o Irmão Germain persignou-se mais uma vez.

- E os Vexilles eram cátaros?

- Suspeito que fossem adoradores do demónio - retorquiu o Irmão Germain. - Mas o fato é que os condes de Astarac protegiam os cátaros, eles e mais uma dezena de senhores. Chamavam-lhes os senhores negros e muito poucos entre eles eram perfeitos. Os perfeitos eram os chefes da seita, os heresiarcas, abstinham-se de vinho, de relações amorosas e de carne e nenhum Vexille abandonaria de bom grado estes três prazeres. Todavia os cátaros permitiam que estes pecadores entrassem para as suas fileiras e prometiam-lhes as alegrias do céu, se abjurassem antes de morrer. Os senhores negros gostaram dessa promessa e, quando a heresia foi atacada pela igreja, ripostaram violentamente - abanou a cabeça. - Tudo isto se passou há cem anos! O Santo Padre e o rei de França destruíram os cátaros e Astarac foi uma das últimas fortalezas a cair. O combate foi terrível, com inúmeros mortos, mas os heresiarcas e os senhores negros foram finalmente travados.

- Mas escaparam alguns - sugeriu, delicadamente, sir Guillaume. O Irmão Germain ficou algum tempo em silêncio, olhando o vermelhão que secava já.

- Contava-se que alguns senhores cátaros sobreviveram - disse. - Levaram as suas riquezas para outros países da Europa. Há mesmo um rumor de que a heresia ainda subsiste, escondida nas terras onde a Borgonha faz fronteira com os estados italianos - fez o sinal da Cruz. - Creio que uma parte da família Vexille foi esconder-se em Inglaterra, pois foi lá, sir Guillaume, que haveis encontrado a lança de São Jorge. Vexille... - repetiu pensativamente o nome. - É claro que deriva de vexillaire, porta-estandarte, e diz-se que um antigo Vexille descobriu a lança, quando estava nas Cruzadas e depois a trouxe consigo como se fosse um estandarte. Certamente que, nesses tempos antigos, se tratava de um símbolo de poder. Quanto a mim, sou muito céptico dessas relíquias. O abade garantiu-me ter visto três prepúcios do Menino Jesus e, até eu, que O venero acima de todas as coisas, duvido que fosse tão ricamente dotado. Mas, quanto à lança, já andei a fazer inquirições. Há uma lenda ligada a ela. Diz que quem a usar em combate, nunca será derrotado. Uma simples lenda, evidentemente, mas a crença nessas coisas inspira os ignorantes e há quem seja mais ignorante que os soldados. O que mais me preocupa é a intenção deles.

- A intenção de quem? - perguntou Thomas.

- Conta-se - disse o Irmão Germain, ignorando a pergunta -, que antes da queda da última fortaleza herética, os senhores negros que escaparam fizeram um juramento. Sabiam que a guerra estava perdida, sabiam que os seus bastiões cairiam e que a Inquisição e as forças de Deus, destruiriam a sua gente. Assim, juraram vingar-se dos seus inimigos. Um dia, garantiam, derrubariam o trono de França e a Santa Madre Igreja e para isso usariam o poder das suas mais sagradas relíquias.

- A lança de São Jorge?

- Ela também - respondeu o Irmão Germain.

- Ela também? - sir Guillaume repetiu as palavras, confuso.

O Irmão Germain, mergulhou a pena e deixou cair outra gota brilhante sobe o pergaminho. Depois, terminou habilmente a cópia da insígnia que adornava o arco de Thomas.

- Já antes tinha visto o yale - disse. - Porém, a insígnia que me haveis mostrado é diferente. O animal segura um cálice. Mas não é um cálice qualquer, sir Guillaume. Tendes razão, o arco interessa-me e causa-me receios, pois o yale segura o Graal. O santo, bendito e precioso Graal. Correu sempre o rumor de que os cátaros o possuíam. Há um espalhafatoso bocado de vidro verde na catedral de Génova que se diz ser o Graal, mas duvido que o Nosso Senhor alguma vez tenha bebido naquela bugiganga. Não. O verdadeiro Graal existe e, quem o possui, tem poder sobre todos os homens deste mundo - poisou a pena. - Receio, sir Guillaume, que os senhores negros queiram vingança. Reúnem as forças. Mas continuam escondidos e a Igreja ainda não deu por eles. Nem dará, até o perigo ser óbvio e, nesse momento, será tarde demais - o Irmão Germain baixou a cabeça e Thomas viu-lhe a calva rosada por entre o cabelo branco. - Está nas profecias - disse o monge. - Está tudo nos livros.

- Que livros? - perguntou sir Guillaume.

- Ei confortabitur rex austri et de principibus eius praevalebit super eiim - disse o Irmão Germain em voz baixa.

Sir Guillaume olhou intrigado para Thomas.

- E o rei do sul será poderoso - traduziu Thomas com alguma relutância. - Mas um dos seus príncipes será mais forte que ele.

- Os cátaros são do sul - disse o Irmão Germain. - E o profeta Daniel tudo previu - ergueu as mãos manchadas de pigmento. - A luta será terrível, pois estará em causa a alma do mundo, e usarão qualquer arma. Até mesmo uma mulher, filiaque regis austri veniet ad regem aquilonis facere amicitiam.

- A filha do rei do sul virá fazer um tratado com o rei do norte - disse Thomas.

O Irmão Germain percebeu o tom de desagrado na voz de Thomas.

- Não credes? - sussurrou. - Porque achais que escondemos as Escrituras dos ignorantes? Contêm todo o tipo de profecias, jovem, e todas elas directamente recebidas de Deus, mas tal conhecimento é confuso para os leigos. Os homens enlouquecem quando sabem demais - persignou-se. - Agradeço a Deus poder morrer em breve e ser levado para o céu, enquanto vós tereis de combater na escuridão.

Thomas dirigiu-se à janela e avistou duas carroças de grão a serem descarregadas pelos noviços. Os homens-de-armas de sir Guillaume jogavam aos dados no claustro. Aquilo era real, pensou, não as palavras loucas de um profeta. O pai sempre o tinha posto de sobreaviso em relação a profecias. Distorcem as mentes dos homens, dissera. Teria sido o que acontecera à sua?

- A lança - disse Thomas, tentando agarrar-se a fatos e não a fantasias - foi levada para Inglaterra pela família Vexille. O meu pai era um deles, mas incompatibilizou-se com a família, roubou a lança e escondeu-a na sua igreja. Lá o mataram e foi antes de expirar que me disse que, quem o atacara, fora o filho do seu irmão. Creio que é esse homem, meu primo, que diz chamar-se Harlequin - voltou-se para o Irmão Germain. - O meu pai era um Vexille, mas não era herético. Era um pecador, sim, mas lutava contra o seu pecado, odiava o seu próprio pai, mas era um filho leal da Igreja.

- Era padre - explicou sir Guillaume ao monge.

- E vós sois seu filho? - perguntou o Irmão Germain em tom reprovador. Os outros monges tinham abandonado a limpeza e escutavam avidamente.

- Sou filho de um padre - disse Thomas. - E um bom cristão.

- Então a família descobriu onde estava escondida a lança - sir Guillaume retomava a história. - Contrataram-me para a recuperar, mas esqueceram-se de me pagar.

O Irmão Germain pareceu não ter ouvido. Olhava para Thomas.

- Sois inglês?

- O arco pertence-me - admitiu Thomas.

- Então sois um Vexille? Thomas encolheu os ombros.

- Parece que sim.

- Sois então um dos senhores negros - afirmou o Irmão Germain. Thomas abanou a cabeça.

- Sou cristão - disse com firmeza.

- Então tendes um dever conferido por Deus - disse o pequeno monge, com uma força surpreendente. - Terminai o trabalho que ficou incompleto há cem anos. Matai-os a todos! Matai-os a todos! E matai a mulher. Escutai, rapaz! Matai a filha do rei do sul, antes que seduza a França para a heresia e para a maldade.

- Se nós conseguirmos ainda encontrar os Vexilles - disse sir Guillaume em tom dúbio e Thomas notou o uso de «nós». - Não mostram a sua insígnia. Duvido até que usem o nome Vexille. Escondem-se.

- Mas agora estão na posse da lança - disse o Irmão Germain - e vão utilizá-la para a primeira das suas vinganças. Vão destruir a França, e no caos que se seguirá, atacarão a Igreja - gemeu, como se sentisse uma dor física. - Tereis de lhes retirar o poder, e o poder deles é o Graal.

Assim, não era apenas a lança que Thomas teria de salvar. À penitência do padre Hobbe fora acrescentada a de toda a Cristandade. Teve vontade de rir. O catarismo morrera havia cem anos, destruído, queimado e desenraizado como as ervas daninhas arrancadas de um campo! Senhores negros, filhas de reis e príncipes das trevas eram invenções dos trovadores, não coisas de arqueiros. Só que quando olhou para sir Guillaume viu que o francês não troçava da incumbência. Olhava para o crucifixo suspenso na parede do scriptorium e murmurava uma prece silenciosa. Deus me ajude, pensava Thomas, Deus me ajude, porque estão a pedir-me que faça aquilo que nenhum dos grandes cavaleiros do rei Artur conseguiu: encontrar o Graal.



Filipe de Valois, rei de França, ordenou que todos os franceses em idade militar se reunissem em Ruão. As exigências chegaram aos vassalos e os apelos levados até aos aliados. Esperara que as muralhas de Caen tivessem contido os ingleses durante várias semanas, porém a cidade caíra num único dia e os sobreviventes em pânico espalhavam-se pelo norte de França com histórias terríveis de demónios à solta.

A cidade de Ruão, aninhada numa ampla curva do Sena, enchia-se de guerreiros. Milhares de besteiros genoveses vinham de galera, ancorando os navios na margem do rio e enchendo as tabernas da cidade, enquanto cavaleiros e homens-de-armas chegavam de Anjou, da Picardia, de Alençom, da Champagne, do Maine, da Touraine e de Berry. Qualquer forja de ferrador se transformara num armeiro, qualquer casa num aquartelamento, qualquer taberna num bordel. Chegavam cada vez mais homens, até a cidade mal os poder conter e as tendas terem de ser montadas nos campos a sul. As carroças atravessavam a ponte, carregadas de feno e cereais recém-ceifados nas ricas searas a norte do rio, enquanto que, da margem sul do Sena, chegavam rumores. Os ingleses teriam tomado Evereux, ou talvez Bernay? Fora visto fumo em Lisieux e os arqueiros infestavam a floresta de Brotonne. Uma freira, em Louviers, teve um sonho, no qual o dragão matara São Jorge. O rei Filipe ordenou que trouxessem a mulher a Ruão, mas esta tinha o lábio leporino, era corcunda e gaga e, ao ser levada à presença do rei, não conseguiu contar o sonho a Sua Majestade e, muito menos, a estratégia de Deus. Tremia e chorava e o rei, zangado, mandou-a embora, consolando-se, porém, com o astrólogo do bispo que lhe disse estar Marte ascendente, o que significava vitória certa.

Um rumor dizia que os ingleses marchavam para Paris, depois outro afirmava que se dirigiam para Sul, para proteger os seus territórios na Gasconha. Dizia-se que morrera toda a gente em Caen, que o castelo era um monte de pedras; logo a seguir correu a história de que os ingleses estavam a morrer de uma doença. O rei Filipe sempre nervoso, tornava-se petulante e exigia notícias, mas os conselheiros convenceram o seu irritável amo de que, onde quer que os ingleses estivessem, deveriam em breve morrer de fome, se os mantivessem a sul do grande rio Sena, que ondulava como uma serpente entre Paris e o mar. Os homens de Eduardo destruíam a terra, portanto teriam forçosamente de continuar em movimento para arranjar provisões e se o Sena estivesse bloqueado, não haveria maneira de seguirem para Norte, em direcção aos portos da costa do canal da Mancha, onde deveriam chegar mantimentos de Inglaterra.

- Gastam flechas como uma mulher gasta dinheiro - era o que Charles, conde de Alençon e irmão mais novo do rei, dizia a Filipe. - E não podem arranjá-las em França. Chegam-lhes por mar e, quanto mais se afastarem dele, maiores serão os seus dissabores.

Assim, se os ingleses fossem mantidos a sul do Sena, acabariam por ter de fugir, ou de fazer uma infame retirada através da Normandia.

- E então Paris? Paris? E Paris? - perguntava o rei.

- Paris não cairá - garantia o conde ao irmão.

A cidade ficava a norte do Sena, de modo que os ingleses teriam de atravessar o rio para assaltar as maiores muralhas da Cristandade e entretanto a guarnição cobri-los-ia com uma chuva de virotes de besta, lançando igualmente projécteis de centenas de pequenas armas de ferro, montadas nos parapeitos da cidade.

- E se foram para Sul? - preocupava-se Filipe. - Para a Gasconha?

- Se marcharem para a Gasconha, não terão botas quando lá chegarem - disse o conde. - Além do mais, terão esgotado a reserva de flechas. Vamos rezar para que, de fato, sigam para a Gasconha, mas sobretudo para que não cheguem à margem norte do Sena.

Se os ingleses atravessassem o Sena, seguiriam para o porto mais próximo do canal para receberem reforços e mantimentos, e o conde sabia que nessa altura já deveriam estar bem necessitados deles. Um exército em movimento cansa-se, os homens adoecem e os cavalos coxeiam. Um exército que marcha demasiado tempo acaba por se gastar, como uma besta muito usada.

Por isso, os franceses reforçaram a grande fortaleza que guardava as travessias do Sena e onde uma ponte que não podia ser guardada, tal como a de Poissy, com dezasseis arcos, foi simplesmente derrubada. Uma centena de homens, armados de malhos, partiam os parapeitos e martelavam a pedra dos arcos, fazendo-a cair dentro de água; deixaram à tona, os quinze coutos dos pilares partidos que atravessavam o Sena como as pedras do atalho de um gigante. A cidade de Poissy, a sul do rio e considerada indefensável, foi abandonada e a sua gente evacuada para Paris. O largo Sena foi, assim, transformado numa barreira intransponível para emboscar os ingleses, numa zona onde os alimentos acabariam por lhes escassear. Depois, quando os demónios estivessem enfraquecidos, os franceses castigá-los-iam pelos terríveis estragos causados no país. Os ingleses continuavam a incendiar cidades e a destruir quintas, de modo que, nesses longos dias de Verão, o céu, a poente e a sul, parecia manchado por colunas de fumo, quais nuvens permanentes, na linha do horizonte. A noite parecia incandescente e as pessoas que fugiam dos incêndios, chegavam a Ruão, onde como não podiam ser alojadas e alimentadas, recebiam ordens para atravessar o rio e para se dirigirem onde conseguissem abrigo.

Sir Simon Jekyll e o seu homem-de-armas, Henry Colley, encontravam-se entre os fugitivos, mas não lhes recusaram a entrada, pois ambos cavalgavam alazões e traziam cotas de malha. Colley usava a sua e montava o seu próprio cavalo, porém, a montada e o equipamento de sir Simon tinham sido roubados a um dos seus homens-de-armas, antes de fugir de Caen. Ambos transportavam escudos, mas tinham arrancado a cobertura de couro da madeira do salgueiro, para que não mostrassem qualquer insígnia, declarando-se assim livres para serem contratados. Dezenas como eles chegavam à cidade, procurando senhor que lhes desse de comer e lhes pagasse, mas nenhum tão cheio de raiva como sir Simon.

Amargurava-o a injustiça. Queimava-lhe a alma, enchendo-o de desejos de vingança. Estivera muito perto de pagar todas as suas dívidas - de fato, quando lhe foi entregue em Inglaterra o dinheiro da venda do barco de Jeanette esperara ver-se livre de todos os seus incómodos - mas agora era um fugitivo. Sabia que poderia ter voltado furtivamente para o seu país, mas qualquer homem, desfavorecido pelo rei ou pelo seu filho mais velho, podia esperar que o tratassem como um rebelde e considerar-se afortunado se mantivesse uma faixa de terra, quanto mais a liberdade. Assim, preferiu fugir, confiando que a sua espada lhe devolveria os privilégios que perdera para a cabra bretã e para o seu amante desmamado; Henry Colley acompanhara-o acreditando que um homem tão hábil com as armas como sir Simon não poderia falhar.

Ninguém lhes questionou a presença em Ruão. O francês de sir Simon tinha o sotaque da nobreza inglesa, mas o mesmo acontecia com o de outros normandos. Sir Simon necessitava agora de um amo, de um homem que lhe desse de comer e a possibilidade de lutar contra os seus perseguidores, e havia muitos homens poderosos em busca de quem os apoiasse. Nos campos a sul de Ruão, onde as curvas do rio estreitavam a terra, uma pastagem fora destinada para campo de torneio onde, diante de uma multidão de homens-de-armas experientes, qualquer pessoa podia entrar nas liças para exibir as suas proezas. Não seria um verdadeiro torneio - as espadas não tinham corte e as pontas das lanças estavam protegidas por bocados de madeira - mas tratava-se da possibilidade de homens sem amo mostrarem as suas proezas com as armas diante de uma dezena de cavaleiros, campeões dos duques, condes, viscondes e simples senhores que faziam de juízes. Vários homens entravam nas liças, cheios de esperança e, qualquer cavaleiro que conseguisse manter-se mais de alguns minutos a combater contra os campeões bem montados e soberbamente armados, tinha, por certo, lugar no séquito de um importante nobre.

Sir Simon, no seu cavalo roubado e empunhando a sua antiga espada, era um dos que menos impressão causava ao cavalgar pela pastagem. Não tinha lança, e logo um dos campeões sacou da espada e se aproximou para acabar com ele. A princípio, ninguém se interessou pelos dois homens, pois realizavam-se outros combates, mas quando o campeão ficou estendido sobre a erva e sir Simon, incólume, continuou a cavalgar, passaram a dar-lhes atenção. Um segundo campeão desafiou sir Simon e ficou desconcertado com a fúria com que teve de se confrontar. Gritou que o combate não era de morte, mas apenas uma exibição com a espada, porém, sir Simon rangeu os dentes e desferiu uma ataque tão violento que o campeão esporeou a montada e se afastou para não ser ferido. Sir Simon voltou o cavalo para o centro da pastagem, desafiando outro homem para que o enfrentasse. Nessa ocasião, apareceu um escudeiro a trote numa égua e, em silêncio ofereceu-lhe uma lança.

- Quem a mandou? - perguntou sir Simon

- O meu senhor.

- Quem é?

- Está ali - disse o escudeiro, apontando para o extremo da pastagem, onde um homem alto, de armadura negra, montando um cavalo da mesma cor, esperava de lança em riste.

Sir Simon embainhou a espada e pegou na lança. Era pesada, não estava bem calibrada e ele não tinha na armadura apoio para o longo cabo, de modo a poder manter a ponta erguida. Mas era um homem forte e raivoso e calculou que conseguiria manobrar a desajeitada arma, durante o tempo suficiente para poder quebrar a confiança do desconhecido.

Ninguém mais lutava no campo. Limitavam-se a olhar. Faziam-se apostas, todas elas a favor do homem de negro. A maior parte dos assistentes já o vira combater e o cavalo, a armadura e as armas era declaradamente superiores. Usava uma cota de prata e o cavalo era pelo menos um palmo mais alto que a triste montada de sir Simon. Tinha a viseira descida, de modo que não se lhe podia ver o rosto, enquanto sir Simon não possuía qualquer protecção para a cara, apenas um elmo velho e de má qualidade, como os usados pelos arqueiros ingleses. Apenas Henry Colley apostou nele, apesar das dificuldades com que falava francês. Por fim, aceitaram-lhe o dinheiro.

O escudo do desconhecido era negro e adornado com uma simples cruz branca, insígnia desconhecida de sir Simon, enquanto o cavalo tinha um negro caparazão que arrastou pelo pasto quando o animal começou a andar. Foi o único sinal dado pelo desconhecido e, sir Simon reagiu baixando a lança e picando a montada. Estavam a cem passos de distância e ambos passaram rapidamente a meio galope. Sir Simon observou a lança do adversário, avaliando a firmeza com que a segurava. O homem era bom, pois a ponta mal vacilava mesmo com o movimento irregular do cavalo. O escudo cobria-lhe o tronco, como era devido.

Se se tratasse de uma batalha, se o homem com o estranho escudo não tivesse oferecido a sir Simon uma possibilidade de avanço, poderia ter baixado a sua lança para atacar o cavalo do adversário. Ou, num golpe mais difícil, meter-lhe a ponta no alto arção da sela. Sir Simon vira já uma lança atravessar a madeira e o couro da sela, para se enfiar no baixo-ventre do cavaleiro e era sempre um golpe mortífero. Porém, naquela momento, tinha de mostrar perícia de cavaleiro, atacando bem e com força e, ao mesmo tempo, defender-se da arma, que se aproximava. A habilidade estava em afastar a investida que, tendo o peso do cavalo por detrás, lhe poderia partir a espinha, lançando-o sobre a alta patilha do arção. O choque de dois pesados cavaleiros, com todo o peso concentrado nas pontas das lanças, era como ser atingido pelo projéctil de um trom.

Sir Simon não pensava em nada disto. Olhava para a lança que se aproximava e para a cruz branca do escudo, para onde apontava a sua, enquanto guiava o cavalo com a pressão dos joelhos. Treinara-se para o fazer, desde a primeira vez que montara um pónei. Passara horas a apontar a uma quintana, no pátio do pai, e ainda mais a adestrar garanhões para suportarem o ruído e o caos da batalha. Levou o cavalo ligeiramente para a esquerda, como se quisesse aumentar o ângulo de ataque das lanças e assim desviar alguma força e notou que o desconhecido não seguia o movimento para se alinhar, parecendo contentar-se em aceitar um risco menor. Os dois cavaleiros fizeram rolar as esporas e os alazões partiram a galope. Sir Simon tocou o flanco direito do cavalo, para endireitar o alinhamento, carregando agora com toda a força em direcção ao desconhecido e inclinando-se para a frente, a fim de se preparar para o embate. O adversário tentava oscilar na sua direcção, mas era demasiado tarde. A lança de sir Simon partiu-se contra o escudo negro e branco, com uma pancada que o obrigou a recuar, mas a do adversário não estava centrada, chocou contra o escudo liso de sir Simon e desviou-se.

A lança de sir Simon partiu-se em três bocados e ele deixou-a cair, enquanto fazia pressão com um joelho para voltar o cavalo. A do adversário atravessava-se diante do corpo do cavaleiro de armadura negra, dificultando-lhe os movimentos. Sir Simon sacou da espada e, enquanto o outro ainda tentava livrar-se da lança, fez um movimento para trás que atingiu o outro como o golpe de um martelo.

O campo ficou em silêncio. Henry Colley estendeu a mão para receber os ganhos. O homem fingiu não perceber o seu mau francês, mas viu a faca que o inglês, de olhos amarelos, fez subitamente aparecer e as moedas surgiram com a mesma rapidez.

O cavaleiro de armadura negra não continuou o combate. Deteve antes o cavalo e ergueu a viseira.

- Quem sois?

- O meu nome é sir Simon Jekyll.

- Inglês?

- Era.

As duas montadas estavam lado a lado. O desconhecido deixou cair a lança e pendurou o escudo no arção. Tinha um rosto pálido, com um fino bigode, olhos inteligentes e o nariz partido. Era um homem jovem, já não um rapaz, mas um ou dois anos mais velho que sir Simon.

- Que desejais? - perguntou a sir Simon.

- Uma oportunidade para matar o Príncipe de Gales.

O homem sorriu.

- Mais nada?

- Dinheiro, comida, terra e mulheres - respondeu sir Simon. O homem fez um gesto para o lado da pastagem.

- Há aqui importantes senhores, sir Simon, que poderão oferecer-vos paga, comida e mulheres. Também vos posso pagar, mas não tão bem; posso alimentar-vos, mas a comida será vulgar; e as mulheres tereis vós mesmo de encontrar. O que vos prometo é equipar-vos com um cavalo melhor, armadura e armas. Conduzi os melhores cavaleiros deste exército e fazemos um juramento para capturar homens que nos possam fazer enriquecer. Nenhum deles, penso eu, tão rico como o rei de Inglaterra e a sua cria. Reparai que não é matar, mas sim capturar.

Sir Simon encolheu os ombros.

- Contento-me em capturar o bastardo - afirmou.

- E o pai - disse o homem. - Também quero o pai.

Havia um tom vingativo na voz do outro, que intrigou sir Simon.

- Por quê? - perguntou.

- A minha família vivia em Inglaterra - disse. - Mas, quando este rei tomou o poder, nós apoiamos a mãe dele.

- Haveis então perdido a vossa terra? - perguntou sir Simon. Era demasiado jovem para se recordar desses tempos tumultuosos em que a mãe do rei tentara reter o poder para si própria e para o seu amante e o jovem Eduardo combatera contra ela, para se libertar. Vencera, e alguns dos seus inimigos não o tinham podido esquecer.

- Perdemos tudo - declarou o homem. - Mas tudo haveremos de reaver. Quereis ajudar?

Sir Simon hesitou, perguntando a si próprio, se não se daria melhor com um senhor mais rico; porém, ficara intrigado com a calma e determinação do homem em arrancar o coração de Inglaterra.

- Quem sois? - perguntou

- Por vezes chamam-me o Harlequin - respondeu. O nome nada significava para sir Simon.

- E contratais apenas os melhores? - perguntou.

- Já vos disse que sim.

- Então o melhor será mesmo contratares-me - disse sir Simon. - Com o meu homem - apontou para Henry Colley.

- Muito bem - disse o Harlequin.

Assim, sir Simon arranjara um novo amo e o rei de França reunira o exército. Os grandes senhores: Alençon, John de Hainault, Aumale, o conde de Blois, irmão do ambicioso duque da Bretanha, o duque da Lorena, o conde de Sancerre - todos se encontravam em Ruão com os seus enormes séquitos de homens pesadamente armados. Os números do exército eram tão elevados que não se conseguiam contar as fileiras, mas os escrivães calculavam que haveria pelo menos oito mil homens-de-armas e cinco mil besteiros em Ruão, o que significava que o exército de Filipe de Valois ultrapassava já as forças de Eduardo de Inglaterra e, mesmo assim, continuavam a chegar mais homens. John, conde do Luxemburgo e rei da Boémia, amigo de Filipe de França, trazia os seus formidáveis cavaleiros. O rei de Maiorca chegou com as suas famosas lanças e o duque da Normandia recebeu ordens para abandonar o cerco de uma fortaleza inglesa no sul e trazer o seu exército para norte. Os padres abençoavam os soldados, prometendo-lhes que Deus reconheceria a virtude da causa francesa e esmagaria impiedosamente os ingleses.

O exército não podia ser alimentado em Ruão, portanto acabou por atravessar a ponte para a margem norte do Sena, deixando atrás de si uma formidável guarnição a defender a travessia do rio. Uma vez fora da cidade e nas longas estradas que se estendiam pelos campos recém-ceifados, os homens mal podiam aperceber-se de quão vasto era o exército. Estendia-se por longas distâncias, em enormes colunas de homens armados, tropas de cavaleiros, batalhões de besteiros e, na retaguarda, a infindável hoste de infantaria, armada de machados, podadeiras e lanças. Era esse o poder francês e os amigos de França tinham-se juntado à causa. Havia um batalhão de cavaleiros escoceses - homens enormes, de aspecto selvagem que alimentavam um raro ódio pelos ingleses. Havia mercenários da Alemanha e da Itália, bem como cavaleiros, cujos nomes se tinham tornado famosos nos torneios da cristandade, elegantes assassinos, enriquecidos no desporto da guerra. Os cavaleiros franceses falavam, não apenas em derrotar Eduardo de Inglaterra, mas também em levar a guerra ao seu reino, prevendo conseguir condados no Essex e ducados no Devonshire. O bispo de Meaux encorajava o seu cozinheiro a preparar uma receita de dedos de arqueiro, talvez um estufado, temperado com tomilho? O bispo insistia que haveria de meter a iguaria pela garganta de Eduardo de Inglaterra.

Sir Simon montava agora um belo corcel cinzento, de sete anos, que deveria ter custado ao Harlequin perto de uma centena de libras. Trajava um lorigão de malha apertada, com uma túnica com a cruz branca. O cavalo tinha uma protecção para o focinho, feita de couro endurecido, e um caparazão negro, enquanto que, à cinta, sir Simon, trazia suspensa uma espada feita em Poitiers. Henry Colley estava quase tão bem equipado, embora, em lugar da espada levasse uma barra de madeira de carvalho, tendo na ponta uma bola de metal com bicos.

- São um grupo muito solene - queixou-se a sir Simon acerca dos outros homens que seguiam o Harlequin. - Os malditos parecem monges.

- Sabem combater - disse sir Simon, embora também ele estivesse assombrado pela sinistra concentração dos homens do Harlequin.

Estavam todos confiantes, porém nenhum deles tomava os ingleses com a mesma leveza que o resto do exército, convencido de que qualquer batalha seria vencida apenas por números. O Harlequin questionou sir Simon e Hemy Colley acerca do modo de combater inglês, e as suas perguntas foram suficientemente inteligentes para obrigarem os dois homens a esquecer os habituais empolamentos e a reflectir.

- Vão combater a pé - concluiu sir Simon. Ele, como todos os cavaleiros sonhava com uma batalha conduzida a cavalo, com homens a rodopiar e lanças erguidas, mas os ingleses tinham aprendido a sua arte nas guerras contra os escoceses e sabiam que, homens apeados defendiam o território muito melhor que os cavaleiros. - Até os cavaleiros vão lutar a pé - previu sir Simon. - E por cada homem-de-armas, terão dois ou três arqueiros. São esses patifes que é preciso vigiar.

O Harlequin acenou afirmativamente.

- Mas como derrotar os arqueiros?

- Deixai-os ficar sem flechas - disse sir Simon. - Acabará por acontecer. Deixai que todos os exaltados do exército ataquem e aguardai que esvaziem as aljafas. Depois podereis vingar-vos.

- Quero mais do que vingança - disse calmamente o Harlequin.

- O quê?

O Harlequin, um belo homem, esboçou um sorriso pouco caloroso na direcção de sir Simon.

- Poder - respondeu muito calmo. - Com o poder, sir Simon, vêm os privilégios e, com os privilégios a riqueza. O que são os reis - perguntou - senão homens que se ergueram mais alto? Assim faremos, e usaremos a derrota dos reis como degraus da nossa escada.

Aquela conversa impressionou sir Simon, embora não a tivesse entendido totalmente. Parecia-lhe que o Harlequin era um homem de grandes fantasias, o que não importava, pois era também inabalavelmente dedicado à derrota dos inimigos de sir Simon. Este sonhava acordado com a batalha, via o rosto assustado do príncipe inglês, escutava os seus gritos e gozava a idéia de fazer prisioneira aquela cria insolente. Jeanette também. O Harlequin poderia ser discreto e subtil à sua vontade, desde que conduzisse sir Simon à realização desses simples desejos.

E assim marchava o exército francês, crescendo em número, pois chegavam homens das partes mais longínquas do reino e dos estados vassalos, fora das fronteiras de França, marchava para fechar o Sena e assim emboscar os ingleses. A confiança aumentou, ao saber-se que o rei fizera a sua peregrinação à Abadia de São Dinis, para ir buscar a auriflama. Tratava-se do símbolo francês mais sagrado, um pendão escarlate, guardado pelos beneditinos na abadia em que os reis de França estavam sepultados e todos sabiam que, quando a auriflama era desfraldada, não seriam dadas tréguas. Dizia-se que tinha sido levada pelo próprio Carlos Magno e a sua seda era vermelha como o sangue, prometendo a carnificina aos inimigos de França. Os ingleses tinham vindo combater, a auriflama fora erguida e a dança dos exércitos começara.



Sir Guillaume deu a Thomas uma camisa de linho, uma boa cota de malha, um elmo forrado de cabedal e uma espada.

- É antiga, mas boa - disse da espada. - É melhor a cortar, que a espetar. Ofereceu-lhe um cavalo, uma sela, arreios e dinheiro. Thomas tentou recusar este último presente, mas sir Guillaume não deu atenção aos seus protestos.

- Já que haveis tomado de mim o que desejáveis, bem podeis levar o resto.

- Tomado? - Thomas ficou desconcertado, ofendido até, com a acusação.

- Eleanor.

- Não a tomei - protestou Thomas.

O rosto esfacelado de sir Guillaume abriu-se num sorriso.

- Mas haveis de tomar, meu rapaz, haveis de tomar.

Partiram no dia seguinte para Oriente, na esteira do exército inglês, que agora estava muito afastado. A Caen chegavam notícias de cidades incendiadas, mas ninguém sabia onde se encontrava o inimigo, portanto sir Guillaume planeava conduzir os seus doze homens-de-armas, o escudeiro e o criado até Paris.

- Alguém há-de saber onde está o rei - disse. - E vós, Thomas, que pensais fazer?

Thomas tentava decidir isso mesmo, desde que acordara para a luz, em casa de sir Guillaume, mas agora tinha de se resolver e para sua grande surpresa, não sentiu qualquer conflito.

- Irei ter com o meu rei - afirmou.

- E esse tal sir Simon? Se vos enforcar outra vez?

- Tenho a protecção do conde de Northampton - disse Thomas, embora já tivesse pensado que esta de nada lhe servira até ali.

- E Eleanor? - Sir Guillaume voltou-se para olhar para a filha que, para surpresa de Thomas os acompanhava. O pai dera-lhe um pequeno parlafrém e, pouco habituada a montar, a jovem sentava-se desajeitadamente na sela, agarrada ao arção. Desconhecia a razão porque o pai a tinha trazido, sugerindo a Thomas que talvez fosse para cozinhar para ele.

A pergunta fez Thomas corar. Sabia não poder lutar contra os amigos, mas não queria deixar Eleanor.

- Virei buscá-la - disse a sir Guillaume.

- Se ficardes vivo - resmungou o francês. - Porque não combateis por mim?

- Porque sou inglês.

Sir Guillaume deixou escapar uma exclamação de desprezo.

- Sois cátaro, sois francês, sois do Languedoque, quem sabe o que sois? Sois filho de um padre, um bastardo rafeiro de uma raça de hereges.

- Sou inglês - repetiu Thomas.

- Sois cristão - retorquiu sir Guillaume. - E Deus deu-me a mim e a vós uma incumbência. Como podeis cumprir esse dever, juntando-vos ao exército inglês?

Thomas não respondeu logo. Deus tinha-lhe dado uma incumbência? E se não a quisesse aceitar, pois fazê-lo seria acreditar nas lendas dos Vexilles? Na noite a seguir a ter conhecido o Irmão Germain, Thomas falara com Mordecai no jardim de sir Guillaume e perguntara ao velho se havia lido alguma vez o livro de Daniel.

Mordecai suspirara, como se achasse a pergunta enfadonha.

- Há muitos anos - respondeu. - Muitos mesmo. Faz parte do Ketuvim, as escrituras que todos o judeus têm de ler. Porquê?

- É um profeta, não é verdade? Diz-nos o futuro.

- Essa agora! - exclamara Mordecai, sentado no banco e metendo os dedos pela barba. - Vós os cristãos insistis que os profetas previram o futuro, mas não foi isso que eles fizeram. Avisaram Israel. Disseram-nos que seríamos visitados pela morte, pela destruição e pelo horror se não nos emendássemos. Eram pregadores, Thomas, meros pregadores, embora só Deus saiba porquê, tiveram razão no que diz respeito à morte, destruição e horror. Quanto a Daniel... é estranho, muito estranho. Tinha a cabeça cheia de sonhos e visões. Estava embriagado de Deus.

- Mas pensais - perguntara Thomas - que Daniel pode ter previsto o que acontece agora?

Mordecai franzira a testa.

- Se Deus assim o quisesse, sim, mas porque haveria Deus de desejar tal coisa? Parece-me, Thomas, que pensas que Daniel pôde prever o que acontece aqui e agora em França. Mas que interesse poderia isso ter para o Deus de Israel? O Ketuvim está cheio de fantasias, visões e mistérios e vós cristãos, vedes mais nele do que nós, alguma vez. Terei de tomar uma decisão, só porque Daniel comeu uma ostra estragada e teve esses sonhos reais há tantos anos? Não, não, não - levantou-se, erguendo bem alto um vaso de cama. - Confiai no que tendes diante dos olhos, Thomas, no que podeis cheirar, ouvir, provar, tocar e ver. O resto é perigoso.

Thomas olhava agora para sir Guillaume. Acabara por vir a gostar do francês, cujo exterior endurecido pela guerra escondia uma riqueza de bondade. E Thomas sabia estar apaixonado pela sua filha, porém, mesmo assim, tinha uma lealdade maior.

- Não posso combater contra Inglaterra - disse. - Tal qual como vós não ergueríeis uma lança contra o rei Filipe.

Sir Guillaume encolheu os ombros.

- Então lutai contra os Vexilles.

Contudo, Thomas não podia cheirar, ouvir, provar, tocar ou ver os Vexilles. Não acreditava que o rei do sul fosse enviar a sua filha para o norte. Não acreditava que o Santo Graal estivesse escondido, na posse de um qualquer herege. Acreditava na força do seu arco de teixo, na tensão de uma corda de cânhamo e no poder de uma flecha com penas brancas, para matar os inimigos do rei. Pensar em senhores negros e heresiarcas era cortejar a loucura que ceifara o seu próprio pai.

- Se encontrar o homem que matou o meu pai, acabo com ele - iludiu assim o pedido de sir Guillaume.

- Mas não o buscareis?

- Onde hei-de procurá-lo? Onde? - perguntou Thomas, oferecendo, logo a seguir, a sua resposta. - Se os Vexilles, de fato, existem, se realmente querem destruir França, então onde começariam? No exército inglês. Por isso, será lá que os hei-de procurar - a resposta era uma evasiva, mas quase convenceu sir Guillaume que, de má vontade, aceitou que os Vexilles poderiam, de fato, oferecer as suas forças a Eduardo de Inglaterra.

Nessa noite, abrigaram-se nas ruínas de uma quinta incendiada e juntaram-se em redor de uma pequena fogueira para assarem os quartos traseiros de um javali caçado por Thomas. Os homens-de-armas tratavam-no com cautela. Afinal, era um dos odiados arqueiros ingleses, cujas armas podiam furar até as malhas de metal. Se não fosse amigo de sir Guillaume, ter-lhe-iam cortado os dedos que usava para disparar o arco, como vingança pela dor que as flechas de penas brancas tinham causado aos cavaleiros, franceses. Porém, preferiam tratá-lo com uma curiosidade distante. Depois da refeição, sir Guillaume fez um gesto para que Eleanor e Thomas o acompanhassem lá fora. O escudeiro estava de guarda e sir Guillaume afastou-os do rapaz, dirigindo-se à margem de um ribeiro onde, com estranha formalidade, olhou para Thomas.

- Então ides deixar-nos - disse. - Combatereis por Eduardo de Inglaterra.

- Sim.

- Mas se virdes o meu inimigo, se virdes a lança, que fareis?

- Mato-o - respondeu Thomas. Eleanor estava ligeiramente à parte, observando-os e à escuta.

- Não estará só - acautelou-o sir Guillaume. - Mas garantis-me que é vosso inimigo?

- Juro - afirmou Thomas, espantado por a pergunta ter sido feita. Sir Guillaume tomou a mão direita de Thomas.

- Haveis ouvido falar em irmãos em armas?

Thomas acenou afirmativamente. Os nobres faziam frequentemente tais pactos, jurando ajudar-se uns aos outros nas batalhas e dividindo a pilhagem.

- Então juro ser vosso irmão - disse sir Guillaume. - Mesmo que combatamos em campos opostos.

- Também juro - disse Thomas, pouco à vontade. Sir Guillaume soltou-lhe a mão.

- Pronto - disse para Eleanor. - Já estou a salvo de um maldito arqueiro. - continuou a olhá-la. - Casarei de novo - disse abruptamente. - Terei mais filhos que serão meus herdeiros. Sabes o que te digo, não é verdade?

Eleanor baixara a cabeça, mas ergueu-a então para olhar para o pai. Depois voltou à mesma posição, sem nada dizer.

- E se Deus quiser que eu tenha mais filhos - perguntou sir Guillaume - que restará para ti, Eleanor?

A jovem encolheu levemente os ombros, como que para demonstrar que a questão não era de grande interesse para ela.

- Nunca vos pedi nada.

- Mas o que terias pedido?

Ela olhou para a ondulação do ribeiro.

- Aquilo que me haveis dado - disse uns momentos depois. - Bondade.

- Nada mais?

Ela fez uma pausa

- Gostaria de vos chamar pai.

Sir Guillaume pareceu pouco à vontade com a resposta. Fixou o olhar no Norte.

- Sois ambos bastardos - disse, algum tempo depois. - E eu invejo-vos.

- Invejais-nos?

- Uma família é como as margens de um ribeiro. Mantém-nos no lugar, mas os bastardos vão por onde querem. Nada levam, mas podem seguir qualquer caminho - franziu a testa e depois lançou à água uma pequena pedra. - Sempre pensei, Eleanor, que te casaria com um dos meus homens-de-armas. Benoit pediu-me a tua mão e o mesmo fez Fossat. E já é mais que tempo que te cases. Quantos anos tens? Quinze?

- Quinze - confirmou ela.

- Vais apodrecer, rapariga, se esperares mais - disse sir Guillaume, impaciente. - Então quem há-de ser? Benoit? Fossat? - fez uma pausa. - Ou preferes Thomas?

Eleanor nada disse e Thomas, embaraçado, continuou em silêncio.

- Querei-la? - perguntou-lhe bruscamente sir Guillaume.

- Sim.

- Eleanor?

Ele olhou para Thomas e a seguir, de novo para o ribeiro.

- Sim - disse, com simplicidade.

- O cavalo, a cota, a espada e o dinheiro são o dote da minha filha bastarda - disse sir Guillaume a Thomas. - Tomai bem conta dela, ou sereis de novo meu inimigo - e voltou-lhe as costas.

- Sir Guillaume! - chamou Thomas. O francês voltou-se. - Quando estivestes em Hookton, fizestes prisioneira uma jovem de cabelo escuro - continuou Thomas, sem saber porque estava a fazer a pergunta. - Estava grávida. Chamava-se Jane.

Sir Guillaume acenou afirmativamente.

- Casou com um dos meus homens. Depois morreu de parto. O bebé também. Porquê? - Franziu a testa. - A criança era vossa?

- Era só uma amiga - respondeu Thomas, evitando a pergunta.

- Era uma amiga muito bonita - disse sir Guillaume. - Lembro-me bem. E quando morreu, mandamos dizer doze missas pela sua alma inglesa.

- Obrigado.

Sir Guillaume olhou para Thomas, depois para Eleanor e de novo para Thomas.

- Uma bela noite para dormir sob as estrelas - disse. - Partiremos de madrugada - afastou-se.

Thomas e Eleanor sentaram-se junto ao ribeiro. O céu ainda não estava completamente escuro, mas tinha um tom luminoso, como a chama de uma vela por trás de uma placa de osso. Uma lontra deslizou da outra margem, com a pele a brilhar por cima da água. Ergueu o focinho, olhou um momento para Thomas e mergulhou de novo, desaparecendo da vista, deixando um rasto de bolhas prateadas sobre a superfície escura.

Eleanor quebrou o silêncio, dizendo as únicas palavras que sabia em inglês.

- Sou a mulher de um arqueiro. Thomas sorriu.

- Sim.

E, partiram, nessa manhã e na noite seguinte avistaram uma mancha de fumo no horizonte a Norte, e souberam que era o sinal de que o exército inglês andava fazer das suas. Separaram-se na outra madrugada.

- Não sei como chegareis até esses bastardos - disse sir Guillaume -, mas quando estiver tudo acabado, procurai-me.

Abraçou Thomas, beijou Eleanor e subiu para a sela. O cavalo estava coberto por um longo caparazão azul decorado com falcões amarelos. Meteu o pé direito no estribo, pegou nas rédeas e picou a montada.

Um atalho conduzia a norte através da charneca perfumada do tomilho e, sobre a qual, esvoaçavam borboletas azuis. Thomas, com o elmo suspenso do arção da sela e a espada a bater ao lado, cavalgou na direcção do fumo. Eleanor, que insistia em levar o arco, porque era mulher de um arqueiro, acompanhou-o. Voltaram-se para trás, no meio da charneca, mas sir Guillaume já se distanciara meia milha para Ocidente, sem olhar para trás, em direcção à auriflama.

Assim, Thomas e Eleanor continuaram o seu caminho.



Os ingleses marchavam para Oriente, afastando-se ainda mais do mar, em busca de um local para atravessarem o Sena, mas encontravam as pontes todas destruídas ou guardadas por uma fortaleza. Continuavam a destruir tudo aquilo em que tocavam. A sua chevanchée era uma linha de oito léguas e para trás ficava um rasto queimado de mais de trinta. Todas as casas incendiadas, todos os moinhos destruídos. O povo de França fugia do exército, levando consigo o gado e a ceifa recém-feita, de modo que os homens de Eduardo tinham de avançar ainda mais para arranjar alimentos. Atrás deles ficava a desolação, enquanto que, à sua frente, se erguiam as formidáveis muralhas de Paris. Havia quem pensasse que o rei atacaria esta cidade, outros achavam que não iria desperdiçar as suas tropas nessas enormes muralhas, preferindo assaltar uma das pontes, fortemente guardadas, que o levariam a norte do rio. De fato o exército tentara capturar a ponte de Meulan, mas o bastião que guardava o extremo sul, era demasiado massivo e os besteiros numerosos, de modo que o assalto falhou. Os franceses mantiveram-se nos parapeitos, desnudaram os traseiros e insultaram os derrotados ingleses. Dizia-se que o rei, confiante de que atravessaria o rio, ordenara que lhe enviassem mantimentos para o porto de Lê Crotoy, mais a norte, para lá do Sena e do Somme. Porém, se os abastecimentos os aguardavam, eram inatingíveis, pois o Sena era uma muralha atrás da qual os ingleses se tinham encerrado numa terra que eles próprios haviam esvaziado de comida. Os primeiros cavalos começavam a coxear e os homens, com as botas feitas em tiras pela marcha, já caminhavam descalços.

Os ingleses aproximavam-se mais de Paris, entrando nos vastos montados dos reis franceses. Tomaram os pavilhões de caça de Filipe, arrancando-lhes as tapeçarias e as pratas, e foi enquanto caçava o seu veado real, que o rei francês enviou a Eduardo um convite formal para a batalha. Era um acto cavalheiresco que terminaria, com a graça de Deus, com a destruição das terras de cultivo. Assim, Filipe de Valois enviou o bispo aos ingleses, sugerindo de modo cortês que aguardava com o seu exército a sul de Paris. O rei inglês aceitou graciosamente a proposta e assim os franceses fizeram o exército atravessar a cidade e espalharam-no pelos vinhedos numa encosta, junto a Bourg-la-Reine. Fariam com que os ingleses os atacassem daí, obrigando os arqueiros e homens-de-armas a subir com dificuldade o monte e a combater contra os numerosos besteiros genoveses. Os nobres de França calculavam já o valor dos resgates que pediriam pelos seus prisioneiros.

A linha de batalha francesa aguardou, mas assim que o exército de Filipe tomou as suas posições, os ingleses, deram meia volta e, num gesto traiçoeiro, marcharam na direcção oposta, dirigindo-se a Poissy, onde a ponte sobre o Sena fora destruída e a cidade evacuada. Alguns soldados da infantaria francesa, homens pobres, armados com lanças e machados, tinham ficado a guardar a margem norte, mas nada puderam fazer para impedir o enxame de arqueiros, carpinteiros e pedreiros que, usando a madeira roubada dos telhados de Poissy, construíram uma nova ponte sobre os quinze pilares cortados da antiga. Levaram dois dias a repará-la e os franceses continuavam à espera da batalha combinada, por ente as uvas maduras de Bourg-la-Reine, enquanto os ingleses atravessavam o Sena, iniciando a sua marcha para norte. Os demónios tinham escapado à cilada e estavam de novo à solta.

Foi em Poissy que Thomas, com Eleanor a seu lado, se juntou ao exército. E foi aí, pela graça de Deus, que começaram os tempos difíceis.



Eleanor ficara apreensiva por se ir juntar ao exército inglês.

- Não hão-de gostar de mim, porque sou francesa - disse.

- O exército está cheio de franceses - dissera-lhe Thomas. - Há gascões, bretões, até alguns normandos e metade das mulheres são também francesas.

- As mulheres dos arqueiros? - perguntou com um tímido sorriso. - Mas não são boas mulheres?

- Umas são boas, outras más - disse Thomas, vagamente. - Mas de ti, vou fazer a minha mulher e todos saberão que és especial.

Eleanor não deu mostras de que isto lhe tivesse agradado, mas estavam agora nas ruas destruídas de Poissy, onde uma retaguarda de arqueiros ingleses lhes gritava que se apressassem. A improvisada ponte ia ser desmontada e os retardatários do exército mandavam avançar rapidamente por cima das tábuas. A ponte não tinha parapeitos e fora apressadamente construída com toda a madeira encontrada pelos soldados na cidade abandonada, pelo que, as pranchas balançavam instáveis, estalavam e dobravam-se enquando Thomas e Eleanor conduziam as montadas pelo tabuleiro, e, de tal forma, que o parlafrém de Eleanor ficou tão assustado com o piso incerto que se recusou a avançar. Thomas teve de lhe vendar os olhos e, mesmo assim, o animal tremia, ao pisar vagarosamente as tábuas cheias de fendas, através das quais se conseguia ver correr o rio. Foram dos últimos a atravessar. O exército abandonara algumas carroças em Poissy, tendo distribuído a sua carga por centenas de cavalos, capturados a sul do Sena.

Uma vez que os últimos vagabundos tinham já atravessado a ponte, os arqueiros puderam começar a empurrar as pranchas para dentro do rio, quebrando a frágil ligação que permitira aos ingleses atravessarem-no. Agora o rei Eduardo esperava que encontrassem nova terra para destruir nas amplas planícies entre o Sena e o Somme, e os três batalhões espalharam-se numa linha de seis léguas da chevauchée e avançaram para Norte acampando naquela noite, a pouca distância do rio.

Thomas olhou para as tropas do Príncipe de Gales, enquanto Eleanor tentava ignorar os arqueiros sujos, esfarrapados e queimados do sol que mais pareciam foras-da-lei que soldados. Deveriam estar a preparar os abrigos para a noite, mas preferiam olhar para as mulheres e incomodá-las com convites obscenos.

- Que dizem eles? - perguntou Eleanor a Thomas.

- Que és a mais bela criatura em toda a França - respondeu.

- Estás a mentir - retorquiu ela, estremecendo quando um homem lhe gritou. - Nunca viram uma mulher?

- Como tu, não. Provavelmente julgam-te uma princesa.

Ela riu-se, mas não lhe desagradou o que ouviu. Reparou que havia mulheres por todo o lado. Apanhavam lenha, enquanto os homens montavam os abrigos e apercebeu-se de que a maioria falava francês.

- Vai haver muitos bebés para o ano - disse.

- É verdade.

- Vão voltar para Inglaterra? - perguntou.

- Alguns, talvez - Thomas não estava bem certo. - Ou regressarão às suas guarnições na Gasconha.

- Se me casar contigo, passo a ser inglesa? - perguntou.

- Sim - respondeu Thomas.

Estava a fazer-se tarde e, pelos campos, via-se já o fumo das fogueiras embora muito pouco houvesse para cozinhar. Em cada pastagem havia duas dezenas de cavalos e Thomas sabia que deveriam descansar e alimentar e dar água aos animais. Tinha perguntado a muitos soldados onde se encontravam os homens do Príncipe de Gales, mas uns mandavam-nos para poente, outros para nascente, e Thomas dirigiu simplesmente os seus cansados cavalos para a aldeia mais próxima, pois não sabia onde mais ir. A terra estava cheia de tropas, mas Thomas e Eleanor encontraram um local bastante sossegado no extremo de um campo, onde ele acendeu uma fogueira, enquanto ela, com o arco negro ao ombro para mostrar que pertencia ao exército, levara as montadas a beber num ribeiro. Cozinharam o resto da comida e depois sentaram-se sob uma sebe e ficaram a olhar para as estrelas que brilhavam sobre um bosque escuro. Chegavam vozes da aldeia, onde as mulheres entoavam uma canção francesa e Eleanor cantarolou os versos em voz baixa.

- Lembro-me da minha mãe ma cantar - disse pegando em folhas de erva que entrançou numa pequena pulseira. - Não fui a sua única bastarda - disse com alguma tristeza. - Que eu saiba havia mais dois. Uma morreu muito pequena e o outro é agora soldado.

- É teu irmão.

- Meio-irmão - encolheu os ombros. - Não o conheço. Foi-se embora - meteu a pulseira no braço fino. - Porque andas com uma pata de cão ao pescoço? - perguntou.

- Porque sou tolo - disse. - E troço de Deus.

Era essa a verdade, pensou infeliz. Arrancou num gesto brusco a pata seca, partindo o cordão e atirando-a depois para o meio do campo. Não acreditava realmente em São Guinefort; era um fingimento. Um cão não o ajudaria a recuperar a lança e essa incumbência fazia-o estremecer e sentir na consciência e na alma, o peso da penitência.

- Troças realmente de Deus? - perguntou-lhe Eleanor preocupada.

- Não, mas brincamos com aquilo de que temos medo.

- Tens medo de Deus?

- Claro - respondeu Thomas e depois ficou rígido, pois tinha ouvido um restolhar na sebe atrás de si e sentira uma lâmina fria subitamente encostada à nuca. O metal parecia muito afiado.

- O que deveríamos fazer era enforcar este bastardo como deve ser - disse uma voz. - E ficávamos-lhe com a mulher. É muito bonita.

- Bem bonita - concordou outro homem. - Mas ele não presta para nada.

- Seus imbecis! - disse Thomas, voltando-se para olhar para dois rostos sorridentes. Eram Jake e Sam. A princípio não acreditou e fitou-os durante algum tempo.

- Sois vós! Que fazeis aqui?

Jake abriu a sebe com o seu podão, passou através dela e lançou a Eleanor o que pensava ser um sorriso tranquilizador, embora, com o seu rosto marcado e olhos tortos, parecesse ter acabado de sair de um pesadelo.

- Charlie Blois levou no focinho - disse Jake. - Por isso, Will trouxe-nos para aqui para partirmos o nariz ao rei de França. É a tua mulher?

- É a Rainha do Sabá, raios! - respondeu-lhe Thomas.

- E ouvi dizer que a condessa anda metida com o príncipe - Jake sorriu. - Will já te tinha visto, só que tu não nos viste. Andavas de nariz no ar. Ouvimos dizer que tinhas morrido.

- Quase.

- Will quer ver-te.

Só de pensar em Will Skeat, Jake e Sam, Thomas ficou imensamente aliviado, pois aqueles homens viviam num mundo muito distante de lúgubres profecias, lanças roubadas e senhores negros. Disse a Eleanor que aqueles homens eram seus amigos, os seus melhores amigos, e que podia confiar neles, apesar de a terem assustado com a irónica ovação com que presentearam Thomas à entrada da taberna. Os arqueiros levaram as mãos ao pescoço e contorceram as caras para imitar um enforcado, enquanto Will Skeat abanava a cabeça, com desespero fingido.

- Valha-me Deus - disse. - Não conseguiram enforcar-te como deve ser - olhou para Eleanor. - Outra condessa?

- A filha de sir Guillaume d'Evecque, cavaleiro do mar e da terra - disse Thomas. - Chama-se Eleanor.

- É tua? - perguntou Skeat.

- Vamos casar.

- Com todos os raios do Inferno - disse Skeat. - Continuas tolo corno uma cenoura! Não é preciso casar com elas, Tom, não é para isso que servem. Mesmo assim não é feia de todo, pois não? - Com toda a cortesia, arranjou espaço para que Eleanor se sentasse no banco. - Não havia muita cerveja - continuou - e nós bebemos o resto - olhou em redor da taberna. Estava tão nua, que nem mesmo um molho de ervas pendia das traves do tecto. - Os patifes limparam tudo antes de partirem - disse com azedume. - Aqui, o que se consegue pilhar é igual aos cabelos que se arrancam da cabeça de um careca.

- Que aconteceu na Bretanha? - perguntou Thomas. Will encolheu os ombros.

- Não teve que ver conosco. O duque Charles conduziu os homens para o nosso território e emboscou Tommy Dugdale no cimo de um monte. Três mil deles e trezentos de Tommy mas, no fim do dia, o duque Charles corria como uma lebre escaldada. Flechas, rapaz, flechas.

Thomas Dugdale recebera as responsabilidades do conde de Northampton na Bretanha e andava a viajar entre as fortalezas inglesas, quando o exército do duque o apanhou, mas os seus arqueiros e homens-de-armas escondidos atrás da enorme sebe de uma pastagem no cimo de um monte, fizeram o inimigo em tiras.

- Combateram todo o dia - disse Skeat. - De manhã à noite e os bastardos não quiseram aprender a lição e continuaram a mandar os homens subir o monte. Calculavam que Tommy em breve esgotaria as flechas, mas ele transportava canadas delas para as fortalezas, portanto tinha que chegassem até ao dia do Juízo Final. Assim, o duque Charles perdeu os seus melhores homens, as fortalezas estão a salvo, até ele tomar mais algumas e nós estamos aqui. O conde mandou-nos vir. Traz só cinquenta arqueiros, disse-me e eu assim fiz. E o padre Hobbe, claro. Fomos de barco para Caen e juntámo-nos ao exército, quando este começou a marcha. E que diabo te aconteceu?

Thomas contou a sua história. Skeat abanou a cabeça quando o ouviu falar do enforcamento.

- Sir Simon partiu - disse. - Provavelmente juntou-se aos franceses.

- Juntou-se a quem?

- Desapareceu. A tua condessa ajustou as contas com ele e, pelo que ouvi, tratou-lhe bem da saúde - Skeat sorriu.- Tens uma sorte dos diabos. Só Deus sabe porque te guardei isto - pôs sobre a mesa uma caneca de barro cheia de cerveja e depois apontou para o arco que Eleanor trazia.

- Ainda sabes disparar? Isto é, como te passeias há tanto tempo na companhia da aristocracia, talvez te tenhas esquecido daquilo para que Deus te pôs na terra.

- Ainda sei usá-lo.

- Então podias juntar-te a nós - disse Skeat, logo confessando ignorar o que andava o exército a fazer. - Ninguém me diz - disse despeitado. - Mas consta que há outro rio a norte e teremos de o atravessar. Quanto mais cedo melhor, acho eu, pois os «franciús» levaram tudo desta terra. Nem se consegue dar de comer a um gatinho.

Era de fato uma terra nua. Thomas viu-o por si próprio no dia seguinte, quando os homens de Will Skeat se dirigiram lentamente para norte atravessando campos ceifados. No entanto, o grão, em vez de armazenado nos celeiros fora já levado pelo exército francês e o gado já também desaparecera. A sul do Sena, os franceses tinham ceifado campos abandonados e a sua guarda avançada movimentara-se rapidamente para capturar milhares de rezes, porcos e cabras. Aqui a terra fora totalmente arrasada por um exército ainda maior e o rei ordenara rapidez. Queria que os homens atravessassem o outro rio, o Somme, para lá do qual, o exército francês poderia não ter ainda despojado a terra e onde, em Lê Crotoy, esperava encontrar uma frota com o abastecimento. Porém, apesar das ordens reais, o exército marchava com dolorosa lentidão. Havia cidades fortificadas que prometiam mantimentos e os homens insistiam em assaltar-lhes as muralhas. Capturaram algumas, foram repelidos por outras, mas tudo isso levava o tempo que o rei não tinha, e enquanto tentava disciplinar um exército mais interessado na pilhagem, do que no avanço, o rei de França conduzia o seu para que atravessasse o Sena, e a cidade de Paris e seguisse em direcção ao Norte, para o Somme.

Foi armada uma nova emboscada, ainda mais mortífera, pois os ingleses estavam agora encurralados numa terra despojada de alimentos. O exército de Eduardo chegou por fim ao Somme, para o encontrar bloqueado tal como o Sena o fora. As pontes estavam destruídas ou guardadas por fortificações sinistras, com pesadas guarnições que, para serem desalojadas, necessitariam de semanas que os ingleses não tinham. Enfraqueciam de dia para dia. Tinham marchado desde a Normandia até à entrada de Paris, depois haviam atravessado o Sena, deixando um rasto de destruição até à margem sul do Somme e a longa jornada tinha desgastado o exército. Havia agora centenas de homens descalços, enquanto que outros se arrastavam com sapatos em tiras. Tinham bastantes cavalos, mas poucas ferraduras e cravos e, assim, os homens conduziam os animais apeados, para lhes pouparem os cascos.

A erva era abundante para alimentar as montadas, mas pouco cereal havia para os homens. Os grupos tinham pois, de se afastar muito em busca de alimento, procurando aldeias em que os camponeses tivessem escondido parte da ceifa. Os franceses tornavam-se agora mais ousados e havia freqüentes escaramuças à margem do exército, quando sentiam a vulnerabilidade dos ingleses. Os homens comiam fruta verde que lhes azedava o estômago e soltava os intestinos. Alguns diziam não ter outra alternativa senão voltar à Normandia, mas outros sabiam que o exército se desintegraria muito antes de conseguirem abrigar-se nos portos normandos. O único caminho seria atravessar o Somme e marchar para os bastiões ingleses na Flandres, mas as pontes tinham desaparecido ou tinham guarnição e, quando o exército passou pelos sapais desolados querendo encontrar um vau, descobriu o inimigo à espera na margem oposta. Tentaram por duas vezes forçar uma passagem, mas de ambas os franceses, em segurança num terreno seco e mais elevado, conseguiram interceptar os arqueiros, no rio, enchendo a margem de bestas genovesas. Assim, os ingleses retiraram e marcharam para Ocidente, chegando ainda mais perto da foz e reduzindo, a cada passo, o número de possíveis pontos para a travessia, à medida que o rio se tornava mais largo e mais profundo. Marcharam durante oito dias, entre esses cursos de água, oito dias cada vez com mais fome e mais frustrados.

- Poupai as flechas - aconselhava Will Skeat, preocupado, uma tarde aos seus homens. Acampavam perto de uma pequena aldeia deserta, tão nua como qualquer outra que tinham encontrado desde a travessia do Sena. - Precisamos de todas as que temos para a batalha - prosseguiu Skeat. - Só Deus sabe que não as podemos desperdiçar.

Uma hora depois, quando Thomas procurava bagas numa sebe, uma voz chamou-o lá do alto.

- Thomas, traz os teus ossos do inferno até cá acima! - Thomas vol-tou-se e viu Will Skeat na pequena torre da igreja da aldeia. Correu para lá, subiu a escada e passou a trave onde estivera pendurado o sino, até os aldeãos o terem levado, para impedir que os ingleses o roubassem. Depois içou-se pelo alçapão, até ao telhado direito da torre, onde se encontravam meia dúzia de homens, sendo um deles o conde de Northampton, que lançou a Thomas um olhar muito estranho.

- Ouvi dizer que tinhas sido enforcado!

- Escapei, senhor - disse Thomas, num tom lúgubre.

O conde hesitou, desejando saber se o autor fora sir Simon Jekyll, mas não valia a pena continuar tal questão. Sir Simon fugira e o acordo do conde com ele, era nulo. Preferiu fazer uma careta.

- Ninguém consegue matar a cria do demónio, não é verdade? - perguntou apontando para Oriente e Thomas lançando os olhos nessa direcção, viu, ao crepúsculo, um exército em movimento.

Estava muito distante, na margem norte do rio, que corria entre vastos canaviais, mas viu também que as filas de cavaleiros, carroças, infantaria e besteiros enchiam todos os atalhos e trilhos da margem distante. O exército aproximava-se de uma cidade murada, Abbeville, disse o conde, onde havia uma ponte sobre o rio e Thomas, ao fitar as filas negras que serpenteavam em direcção a ela, sentia como se as portas do inferno se tivessem aberto para cuspir uma gigantesca horda de lanças, espadas e bestas. Depois ao recordar-se de que sir Guillaume se encontrava ali, fez o sinal da Cruz e murmurou uma prece silenciosa, para que o pai de Eleanor sobrevivesse.

- Cristo na Cruz! - exclamou Will Skeat, tomando por receio o gesto de Thomas. - Querem mesmo as nossas almas.

- Sabem que estamos cansados - disse o conde. - Sabem também que, por fim, as flechas hão-de esgotar-se e que têm mais homens do que nós. Muitos mais - voltou-se para poente. - E não podemos avançar muito mais - apontou de novo e Thomas viu a extensão lisa do mar. - Apanharam-nos - afirmou o conde. - Vão atravessar em Abbeville e atacam amanhã.

- E nós far-lhe-emos frente - resmungou Will Skeat.

- Neste terreno, Will? - perguntou o conde. A terra era plana, ideal para a cavalaria e com algumas sebes ou moitas altas para esconder os arqueiros. - E contra tantos? - acrescentou, a olhar fixamente o inimigo distante. - São muito mais do que nós, muito mais. Meu Deus, se são - encolheu os ombros. - É tempo de partirmos.

- Partirmos para onde? - perguntou Skeat. - Porque não havemos de encontrar um poiso e ficar por aí?

- A Sul? - o conde parecia indeciso. - Crês que possamos atravessar o Sena de novo e ir de barco para a Normandia? Só Deus sabe que nos é impossível passar o Somme - pôs a mão em pala sobre os olhos para observar o rio. - Cristo! - blasfemou. - Porque demónio não existe um vau? Podíamos ter perseguido esses bastardos até à nossa fortaleza na Flandres e deixar Filipe derrotado, como imbecil maldito que é.

- E não combatíamos? - perguntou Thomas, em ar de espanto. O conde abanou a cabeça.

- Ferimo-lo. Roubámos-lhe tudo. Marchámos pelo seu reino e deixámo-lo a arder, para quê combater contra ele? Gastou uma fortuna a contratar cavaleiros e besteiros, porque não deixá-lo desperdiçar a riqueza? Depois voltamos para o ano e fazemos o mesmo - encolheu os ombros. - A menos que não possamos fugir-lhe - com essas agoirentas palavras desceu do telhado, seguido do seu séquito e deixando Thomas e Skeat sós.

- A verdadeira razão porque não querem combater, é o recearem ser feitos prisioneiros - disse Skeat com azedume, quando o conde já não o podia ouvir. - Um resgate pode limpar a fortuna de uma família, num abrir e fechar de olhos - cuspiu por cima do parapeito, e depois levou Thomas para o lado oriental. - Porém, a verdadeira razão porque aqui te trouxe, Tom, é porque os teus olhos são melhores que os meus. Consegues ver uma aldeia ali? - apontou para Norte.

Thomas levou algum tempo, mas acabou por divisar um grupo de telhados baixos por entre os canaviais.

- Que aldeia tão pobre - disse em tom azedo.

- Mas ainda não fomos lá procurar comida - afirmou Skeat. - E como fica num pântano, talvez tenham enguias fumadas. Gosto muito de enguias fumadas, oh se gosto! Melhor que maçãs azedas e sopa de urtigas. Podias ir lá ver.

- Esta noite?

- Porque não para a semana? - perguntou Skeat, passando para o telhado de colmo. - Ou talvez para o ano? Claro que é esta noite, meu sapo. Despacha-te.

Thomas levou vinte arqueiros. Nenhum deles queria ir, pois era tarde e receavam que as patrulhas francesas pudessem estar à espera no atalho que serpenteava por entre dunas e canaviais, em direcção ao Somme. Era uma região desolada. Os pássaros voavam por entre as canas, enquanto os cavalos abriam caminho ao longo de um atalho tão baixo que em certos sítios havia sarrafos de colmo para permitir a passagem e, em seu redor, a água gorgolejava e rodopiava por entre margens de lama esverdeada.

- A maré está a descer - comentou Jake.

Thomas sentia o cheiro a sal, vindo da água. Estavam suficientemente próximos do mar e as marés exerciam a sua influência naquele emaranhado de canaviais e sapais, embora nalguns pontos a estrada fosse mais firme, e atravessasse grandes bancos de areia inclinados, onde cresciam ervas secas e pálidas. No Inverno, pensou Thomas, deve ser um sítio esquecido por Deus com ventos frios a fazerem voar a espuma sobre o pântano gelado.

Era quase noite quando chegaram à aldeia, que era afinal um miserável aglomerado deserto, apenas com uma dezena de cabanas de tecto de cana. Os habitantes deveriam ter fugido justamente antes de Thomas lá ter chegado com os arqueiros, pois ardiam ainda fogueiras baixas, nas pequenas lareiras de pedra.

- Procurai comida - ordenou Thomas. - Principalmente enguias fumadas.

- Mais depressa pescávamos as enguias e as defumávamos nós - afirmou Jake.

- Faz o que te digo - ordenou Thomas, dirigindo-se a seguir para o extremo da aldeia, onde havia uma pequena igreja de madeira que empurrada pelo vento, tomara uma permanente posição inclinada. A igreja pouco mais era que um telheiro - talvez o altar de algum santo daqueles pântanos esquecidos - mas Thomas calculou que a estrutura aguentaria o seu peso. Com alguma dificuldade, desmontou do cavalo para cima do telhado coberto de musgo, e depois trepou até ao cimo, onde se agarrou à cruz que decorava uma das empenas.

Não viu qualquer movimento pelos sapais embora, na semi-obscuridade do céu a norte de Abbeville, avistasse uma mancha de fumo proveniente das fogueiras dos acampamentos franceses. Amanhã, pensou, os franceses vão atravessar a ponte e entrar pelas portas da cidade, para se defrontarem com o exército inglês, cujos fogos ardiam a sul e, pelas dimensões das colunas de fumo, se percebia quão inferior era, comparado com o outro. Jake apareceu, vindo de uma cabana próxima, com uma saca na mão.

- O que é isso? - perguntou Thomas.

- Grão - Jake ergueu o saco. - Todo molhado, a germinar.

- Não há enguias?

- Claro que não há enguias - resmungou Jake. - As enguias têm juízo e não vêem habitar sítios desgraçados como este.

Thomas sorriu e olhou para o mar que, a Ocidente, parecia a lâmina de uma espada manchada de sangue. Via-se uma vela distante, uma mancha branca, no horizonte cheio de nuvens. As gaivotas rodopiavam e pairavam sobre o rio, que aqui se transformara num largo canal, interrompido por canaviais e bancos de areia, deslizando para o mar. Era difícil distinguir entre rio e sapal, tão emaranhada parecia a paisagem. Depois Thomas interrogou-se sobre a razão que levava as gaivotas a mergulhar, soltando gritos agudos. Olhou para elas, e viu aquilo que a princípio lhe pareceu ser uma dezena de cabeças de gado na margem do rio. Abriu a boca para gritar a novidade a Jake, mas depois viu que havia homens com o gado. Homens e mulheres, talvez duas dezenas? Franziu a testa e ficou a olhar, pensando estar a ver os habitantes daquela aldeia. Provavelmente teriam visto os arqueiros aproximarem-se e tinham fugido com os animais, mas para onde? Para o sapal? Seria o mais provável, pois o terreno húmido teria certamente múltiplos atalhos secretos, onde se podiam esconder; mas porque se teriam arriscado a subir à duna, onde Thomas os podia avistar? Apercebeu-se então de que os aldeãos não se queriam ocultar, mas sim fugir e que entravam na água mais funda, para chegar à margem norte.

Meu Deus, afinal havia um vau! Ficou a olhar sem se atrever a acreditar no que os seus olhos viam. As pessoas atravessavam o rio com passos firmes, arrastando as vacas atrás de si. Era um vau baixo e calculou que apenas poderia ser atravessado na maré baixa, mas pelo menos existia.

- Jake! - gritou. - Jake!

Jake correu para a igreja e Thomas inclinou-se e içou-o para o colmo podre do telhado. A construção balançou perigosamente, sob o peso de ambos, enquanto Jake subia e se agarrava à cruz de madeira manchada do sol, para olhar na direcção apontada por Thomas.

- Com mil raios! - exclamou. - Há ali um maldito vau.

- E malditos franceses - disse Thomas, pois na margem do rio, onde do emaranhado de sapais e de água, se erguia terra mais firme, surgiam agora homens de cota de malha cinzenta. Tinham acabado de chegar, de contrário Thomas já os teria visto e as primeiras fogueiras para cozinhar cintilavam por entre o escuro grupo de árvores, onde tinham acampado. A sua presença mostrava que os franceses conheciam a existência do vau e queriam evitar a travessia dos ingleses, mas isso não era da conta de Thomas. O seu dever era dar a conhecer ao exército que existia uma passagem, um caminho possível para escaparem à emboscada.

Thomas deslizou de cima do colmo que cobria a igreja e saltou para o chão.

- Vai ter com Will e diz-lhe que há um vau - disse a Jake. - Diz-lhe também que vou queimar uma cabana de cada vez para se poderem orientar. - Em breve seria noite e, sem uma luz que os guiasse, não conseguiriam encontrar a aldeia.

Jake levou seis homens e cavalgou de volta para o sul. Thomas aguardou. De vez em quando voltava a subir ao telhado da igreja, olhava para o outro lado do vau e, de cada vez, via mais fogueiras por entre as árvores. Calculava que os franceses tivessem colocado aí uma força formidável, o que não admirava pois era a última rota de fuga e tinham de a obstruir. Porém Thomas incendiava as cabanas, uma a uma, para mostrar aos ingleses onde poderia estar esse caminho.

As chamas rugiam na noite, lançando fagulhas pelos sapais. Os arqueiros tinham encontrado algum peixe seco, escondido na parede de uma cabana que, juntamente com água salobra, lhes serviu de ceia. Não admirava que se sentissem desconsolados.

- Deveríamos ter ficado na Bretanha - disse um.

- Vão encurralar-nos - sugeriu outro. Tinha feito uma flauta com uma cana seca e tocava uma ária melancólica.

- Temos flechas - disse um terceiro.

- Suficientes para matar os patifes?

- Têm de chegar.

O tocador de flauta soltou mais algumas notas, depois aborreceu-se e lançou o instrumento para a fogueira mais próxima. Thomas, com a noite a arrastar-se-lhe na paciência, voltou para a igreja. Mas em vez de subir ao telhado, abriu a porta apodrecida e os batentes de uma das janelas para deixar entrar a luz das fogueiras. Viu então que não se tratava de uma verdadeira igreja, mas sim de um santuário de pescadores. Continha um altar feito de tábuas manchadas pela água salgada, equilibrado sobre dois barris partidos e tendo em cima, uma imagem rude, uma boneca vestida com farrapos de pano branco e coroada com uma tira de algas marinhas. Os pescadores de Hookton tinham erigido altares assim, principalmente quando se perdia um barco no mar, mas o pai de Thomas sempre os odiara. Queimara completamente um deles, chamando-lhe altar de ídolos, mas Thomas acreditava que os pescadores precisassem de santuários. O mar era cruel e a boneca, que lhe parecia ser do sexo feminino, talvez representasse um santo daquela região. As mulheres dos pescadores há muito saídos para o mar podiam vir aqui orar-lhe, implorando o regresso do barco. O telhado do santuário era baixo e, de joelhos estava-se melhor. Thomas murmurou uma prece. Deixai-me viver, implorou, deixai-me viver, e deu por si a pensar na lança, a pensar no Irmão Germain, em sir Guillaume e nos seus receios de que um novo mal, vindo dos senhores negros, estivesse a nascer no Sul. Não é da tua conta, disse para consigo. É superstição. Os cátaros morreram já, queimados, em fogueiras, ateadas pela igreja, que os mandou para o Inferno. Acautela-te com os loucos, dissera-lhe o pai e quem melhor que ele para conhecer a verdade? Mas seria um Vexille? Baixou a cabeça e orou a Deus para que o guardasse da loucura.

- E agora, estás a rezar para quê? - perguntou subitamente uma voz. Sobressaltado, Thomas voltou-se imediatamente, para dar de caras com o padre Hobbe que lhe sorria da porta baixa. Conversara com ele durante os últimos dias, mas nunca se tinham encontrado a sós. Thomas nem tinha a certeza de o desejar, pois a presença do padre fazia-lhe sentir a consciência pesada.

- Estou a rezar para que cheguem mais flechas, padre.

- Queira Deus que a prece seja atendida - respondeu-lhe o padre Hobbe, sentando-se depois no chão de terra batida da igreja. - Foi um trabalho dos demónios dar com o caminho para atravessar o pântano, mas preciso ter uma conversa contigo. Tenho a sensação de que me andas a evitar.

- Padre! - respondeu Thomas com ar reprovador.

- Eis-te aqui, e com uma linda rapariga! Só te digo, Thomas, que se te obrigassem a lamber o traseiro de um leproso, saber-te-ia a mel. Enfeitiçado é o que estás. Nem te conseguem enforcar.

- Conseguem, mas não como deve ser - disse Thomas.

- Graças a Deus por isso - respondeu o padre e depois sorriu. - Então, que tal vai a penitência?

- Não encontrei a lança - disse Thomas simplesmente.

- Mas incomodaste-te em procurá-la? - perguntou o padre Hobbe, tirando um pequeno pão da sua bolsa. Partiu-o e entregou metade a Thomas. - Não me perguntes como o arranjei, mas não foi roubado. Lembra-te, Thomas que podes não cumprir uma penitência, mas mesmo assim seres absolvido, se tiveres feito um esforço sincero.

Thomas fez uma careta, não devida às palavras do padre Hobbe, mas Porque mordera uma lasca da mó, que ficara metida no pão. Cuspiu-a.

- A minha alma não é tão negra como a quereis fazer parecer, padre.

- Como sabes? Todas as almas são negras.

- Fiz um esforço - disse Thomas e deu por si a contar-lhe toda a história, de como fora para Caen e procurara a casa de sir Guillaume, de como ficara seu hóspede, acerca do padre Germain, dos Vexilles cátaros, da profecia de Daniel e do conselho de Mordecai.

O padre Hobbe fez o sinal da Cruz, quando Thomas lhe falou de Mordecai.

- Não podes aceitar a palavra desse homem - disse o padre seriamente. - Pode ser ou não um bom médico, mas os judeus sempre foram inimigos de Cristo. Se está do lado de alguém, deve ser do demónio.

- É um bom homem - insistiu Thomas.

- Thomas! Thomas! - disse tristemente o padre Hobbe e depois franziu a testa durante algum tempo. - Ouvi dizer que a heresia catara continua viva - disse depois.

- Mas não pode desafiar França e a Igreja.

- Porque não? - perguntou o padre Hobbe. - Chegou ao outro lado do mar para roubar a lança a teu pai e dizes que atravessou a França para matar a mulher de sir Guillaume. O demónio faz as suas coisas na escuridão, Thomas.

- Há mais - disse Thomas, e contou ao padre a história de que os cátaros tinham o Graal. A luz vinda das cabanas incendiadas cintilava nas paredes, dando à imagem coroada de algas no altar um ar sinistro. - Não creio em nada disso - concluiu Thomas.

- E porque não?

- Porque se a história fosse verdadeira eu não me chamava Thomas de Hookton, mas sim Thomas Vexille - disse Thomas. - Não sou inglês, sou metade francês. Não sou um arqueiro, nasci nobre.

- Ainda é pior - disse o padre Hobbe, com um sorriso. - Significa que tens uma incumbência.

- Não passam de histórias - disse Thomas em tom de desprezo. - Dai-me outra penitência, padre. Faço uma peregrinação por vós. Vou de joelhos a Cantuária, se assim o desejardes.

- Não quero nada de ti, Thomas, mas Deus sim, quer muito.

- Dizei então a Deus que escolha outra pessoa.

- Não tenho por costume dar conselhos ao Altíssimo - disse o padre Hobbe. - Porém, oiço os que vêm d'Ele. Pensas que o Graal não existe?

- Há mil anos que os homens o procuram e ninguém o encontrou - disse Thomas. - A menos que o que está em Génova seja verdadeiro.

O padre Hobbe encostou a cabeça à parede de juncos.

- Ouvi dizer que o verdadeiro Graal é feito de barro vulgar - disse em voz baixa. - Uma simples taça rústica, como aquela de que a minha mãe tanto gostava, Deus lhe tenha a alma em descanso, porque era a única que se podia dar ao luxo de possuir. E um dia, eu, estúpido e desastrado partilha. Mas disseram-me que o Graal não se pode partir. Poderias metê-lo num desses trons que divertiram toda a gente em Caen e não se quebraria, mesmo sendo lançado contra a muralha de um castelo. E quando na Missa se coloca o pão e o vinho, o corpo e o sangue, nesse simples bocado de barro, este transforma-se em ouro, Thomas. Ouro puro e brilhante. É esse o Graal e, assim Deus me ajude, existe realmente.

- Quereis então que percorra a terra, em busca de uma rústica taça de barro? - perguntou Thomas.

- Deus quer - disse o padre Hobbe. - E com boas razões. - Parecia triste. - Há heresia por toda a parte, Thomas. A Igreja está sitiada. Os bispos, os cardeais e os abades corrompem-se com a riqueza, os padres de aldeia são completamente ignorantes, o demónio cozinha o seu mal. Porém, há alguns de nós, poucos, que acreditam que a Igreja pode ser renovada, que pode brilhar de novo, com a glória de Deus. Creio que o Graal o poderia fazer. Creio que Deus te escolheu.

- Padre!

- E talvez eu - disse o padre Hobbe, ignorando o protesto de Thomas. - Quando tudo isto terminar - acenou com a mão, para abranger o exército e a sua luta - creio que me juntarei a ti. Procuraremos juntos a tua família.

- Vós? - perguntou Thomas. - Por quê?

- Porque Deus chama-nos - disse, com simplicidade, o padre Hobbe. Depois abanou fortemente a cabeça. - Tens de ir Thomas, tens de ir. Rezarei por ti.

Thomas teve de ir porque a noite fora perturbada pelo som dos cascos dos cavalos e pelas vozes estridentes dos homens. Pegou no arco, baixou a cabeça para sair da igreja, e viu que duas dezenas de homens tinham chegado à aldeia. Os escudos mostravam os leões e as estrelas do conde de Northumberland e o seu comandante exigia saber quem estava encarregado dos arqueiros.

- Estou eu - respondeu Thomas.

- Onde fica esse tal vau?

Thomas fez para si um archote, atando um bocado de colmo a um pau e, enquanto a chama durou, conduziu-os através do sapal, na direcção do vau distante. Algum tempo depois a chama apagou-se, mas ele estava perto de encontrar o caminho por onde vira seguir o gado. A maré subira novamente e a água negra infiltrava-se, inundando tudo em redor dos cavaleiros agrupados numa estreita faixa de areia.

- Podeis ver onde está o inimigo - disse Thomas aos homens-de-armas, apontando para as fogueiras dos franceses, talvez a cerca de dois quilómetros de distância.

- Os bastardos estão à nossa espera?

- E são muitos.

- De qualquer modo atravessamos - disse o comandante dos homens-de-armas. - O rei já o decidiu e fazemo-lo, quando a maré vazar - voltou-se para os seus homens: - Descei dos cavalos, encontrai o atalho Marcai-o - apontou para uns salgueiros cortados. - Cortai estacas e marcai o atalho com elas.

Thomas retomou o caminho para a aldeia, por vezes andando com a água até à cintura. Uma leve bruma erguera-se na enchente e, se não fossem as cabanas a arder, ter-se-ia certamente perdido.

A aldeia, construída na parte de terra mais elevada de todo o pântano, atraíra já uma multidão de cavaleiros, quando Thomas regressou. Arqueiros e homens-de-armas aí se juntaram e alguns tinham já deitado abaixo o santuário para fazer uma fogueira com as suas tábuas.

Will Skeat viera com o resto dos seus arqueiros.

- As mulheres estão com a bagagem - disse a Thomas. - Que belo caos ficou lá atrás. Esperam atravessar toda a gente de manhã.

- Primeiro vai haver luta - disse Thomas.

- Se não for isso, teremos de nos defrontar mais tarde com todo o exército. Encontraram enguias?

- Comemo-las.

Skeat sorriu, depois voltou-se ao ouvir uma voz chamá-lo. Era o conde de Northampton, com o caparazão do cavalo salpicado de lama até à sela.

- Muito bem, Will!

- Não fui eu, meu senhor, foi este patife esperto - Skeat apontou com o polegar para Thomas.

- Fez-te bem ser enforcado, não? - perguntou-lhe o conde e ficou a olhar a fila de homens-de-armas, que seguiam para a faixa de areia da aldeia. - Prepara-te para avançar de madrugada, Will, vamos atravessar na vazante. Quero os teus rapazes à frente. Deixa aqui os cavalos. Vou mandar que os homens os vigiem bem.

Pouco dormiram naquela noite, embora Thomas dormitasse de fato, deitado na areia, à espera da madrugada que trouxe consigo uma luz pálida e brumosa. Os salgueiros erguiam-se na névoa, enquanto os homens-de-armas se baixavam junto à água e olhavam para norte, para onde o nevoeiro aumentava, juntando-se ao fumo do acampamento inimigo. O rio corria ilusoriamente rápido, apressado pela maré vazante, mas mesmo assim, ainda muito alto, para se poder atravessar.

Sobre o banco de areia, junto ao vau, viam-se agora os cinquenta arqueiros de Skeat e mais cinquenta comandados por John Armstrong. Havia o mesmo número de homens-de-armas, todos apeados, conduzidos pelo conde de Northampton que recebera a incumbência de conduzir a travessia. O Príncipe de Gales quisera ser ele a comandar o combate, mas o pai proibira-lho. O conde, muito mais experiente, ficara com uma responsabilidade que pouco lhe agradava. Gostaria de ter consigo muito mais homens, mas o banco de areia não os comportava e os atalhos através do sapal eram estreitos e traiçoeiros, tornando difícil trazer reforços.

- Sabeis o que fazer? - perguntou o conde a Skeat e a Armstrong,

- Sabemos.

- Talvez mais duas horas?

- O conde calculava a maré. O tempo passou lentamente e, através da bruma, os ingleses podiam ver o inimigo formar uma linha de batalha do outro lado do vau. Ao recuar, a água permitiu a passagem a mais soldados para o banco de areia, mas a força do conde era tristemente reduzida - talvez duzentos homens no máximo - enquanto que os franceses tinham o dobro só em homens-de-armas. Thomas contou-os, o melhor que pôde, utilizando o método que Will Skeat lhe ensinara: dividir o inimigo em dois, dividir novamente, depois contar essa pequena unidade e multiplicá-la por quatro. Desejou não o ter feito, pois eram muitos e juntamente com os homens-de-armas, havia também quatrocentos ou quinhentos soldados de infantaria, provavelmente recrutados na região a norte de Abbeville. Não eram uma grave ameaça pois, como a maior parte da infantaria, estariam mal treinados e mal equipados com armas antigas e instrumentos de lavoura. Mas mesmo assim poderiam causar embaraços, se os homens do conde se vissem em dificuldades. A única coisa boa que Thomas encontrava na enevoada madrugada era o fato de os franceses parecerem ter muito poucos besteiros, mas para que precisariam deles com tantos homens-de-armas? E a formidável força, que agora se juntava na margem norte do rio, combateria sabendo que, se repelisse o ataque inglês, o inimigo seria barrado pelo mar junto ao qual o exército francês, muito superior, o poderia esmagar.

Duas bestas de carga traziam os preciosos feixes de flechas que foram distribuídos pelos arqueiros.

- Ignorai os malditos camponeses - disse Skeat aos seus homens. - Matai os homens-de-armas. Quero os bastardos a berrar pelas cabras, a quem chamam mães.

- Há comida do outro lado - disse John Armstrong, aos seus esfomeados arqueiros. - Esses malditos têm carne, pão e cerveja e tudo isso será vosso se derem cabo deles.

- E não desperdicem flechas - berrou Skeat. - Atirai bem! Apontai, rapazes, apontai. Quero ver os bastardos cobertos de sangue.

- Cautela com o vento! - gritou John Armstrong. - Vai levar as flechas para a direita.

Duzentos homens-de-armas franceses estavam apeados na margem do rio, enquanto outros tantos, montados, aguardavam uma centena de passos mais atrás. A turba de infantaria dividiu-se em dois grandes grupos, um para cada flanco. Os homens-de-armas apeados estavam ali para deter os ingleses, à beira de água e os homens a cavalo carregariam se alguns conseguissem passar; entretanto, a infantaria estava presente para aparentar grande número e ajudar no massacre que se seguiria à vitória francesa. Os franceses deveriam sentir-se muito confiantes, pois tinham impedido todas as outras tentativas para passar o Somme a vau.

Só que nos outros pontos o inimigo possuíra besteiros capazes de manter os arqueiros dentro de água, onde não podiam usar convenientemente os arcos, receando molhar as cordas. Mas não havia bestas.

O conde de Northampton, a pé como os seus homens, cuspiu para o rio.

- Deveria ter deixado para trás a tropa apeada e trazido um milhar de genoveses - afirmou a Will Skeat. - Se assim fosse estávamos em apuros.

- Têm algumas bestas - afirmou Skeat.

- Não chegam, Will, não chegam - o conde usava um velho elmo, sem viseira. Estava acompanhado por um homem-de-armas de barba grisalha, com o rosto profundamente enrugado e trajando uma cota de malha muito remendada.

- Conheces Reginald Cobham, Will? - perguntou o conde.

- Já ouvi falar de vós, mestre Cobham - disse Will, respeitoso.

- E eu de vós, mestre Skeat - respondeu Cobham. Por entre os arqueiros de Skeat, passou a palavra de que Reginald Cobham se encontrava no vau e os homens voltaram-se para ver o homem da barba grisalha, cujo nome era célebre no exército. Um homem vulgar, como eles, mas velho na guerra e temido pelos inimigos dos ingleses.

O conde olhava para a vara que marcava o extremo do vau.

- Creio que a água já baixou o suficiente - disse, e bateu no ombro de Skeat. - Vai lá matar uns quantos, Will.

Thomas olhou para trás e viu que todos os pontos secos do sapal estavam cheios de soldados, cavalos e mulheres. O exército inglês viera para as terras baixas e dependia do conde para efectuar a travessia.

Para nascente, embora ninguém o soubesse no vau, o principal exército francês atravessava a ponte em Abbeville, pronto a cair sobre a retaguarda inglesa.

Do mar vinha um vento forte que trazia o frio matinal e um cheiro salgado. As gaivotas soltavam gritos desesperados, sobre os pálidos canaviais. O principal canal do rio tinha meia milha de largura e os cem arqueiros pareciam uma minúscula força quando formaram em linha e se meteram à água. Os homens de Armstrong estavam à esquerda, os de Skeat à direita, enquanto atrás deles vinham os primeiros homens-de-armas do conde. Vinham todos apeados e deveriam esperar até as flechas terem enfraquecido o inimigo, carregando depois sobre os franceses com espadas, machados e alfanges. O inimigo tinha dois tambores que começaram a bater nas peles de cabra; a seguir, um trombeteiro sobressaltou os pássaros das árvores, junto às quais os franceses tinham acampado.

- Atenção ao vento - gritou Skeat, aos seus homens. - As rajadas são fortes, oh se são! Mesmo muito fortes.

O vento soprava contra a maré vazante, criando sobre o rio pequenas ondas agitadas, coroadas por cristas brancas. A infantaria francesa gritava. Nuvens cinzentas corriam no céu sobre a terra verde. Os tambores mantinham um ritmo ameaçador. Os pendões ondulavam por cima dos homens-de-armas estacionados e Thomas sentiu-se aliviado por nenhum deles exibir os falcões amarelos num campo azul. A água estava fria e chegava-lhe às coxas. Segurou o arco com força, observou o inimigo e aguardou que os primeiros virotes de besta surgissem sobre a água

Mas tal não aconteceu. Os arqueiros estavam já a distância de poder disparar, mas Will Skeat queria-os mais próximo. Um cavaleiro francês sobre um cavalo negro, coberto com um caparazão verde e azul, passou pelos companheiros apeados, girou para o lado e meteu-se pelo rio.

- O imbecil quer exibir-se - disse Skeat. - Jake! Dan! Peter! Sosseguem-no. - Três arcos foram puxados atrás para dispararem três flechas.

O cavaleiro francês foi lançado para trás na sua sela, numa queda que provocou a fúria dos compatriotas. Soltaram o seu grito de guerra, «Montjoie Saint Denis!» e os homens-de-armas meteram-se imediatamente no rio, prontos a desafiar os arqueiros que retesavam já as cordas dos seus arcos.

- Aguentem! - gritava Skeat. - Aguentem! Mais perto, avancem mais! - Os tambores soavam mais fortes. O cavaleiro morto era arrastado pelo cavalo, enquanto outros franceses recuavam para terra. Nesse momento, a água chegava apenas aos joelhos de Thomas e o seu raio de ação era mais curto. Apenas mais cem passos e Will Skeat deu-se por satisfeito.

- Comecem a dar cabo deles! - gritou.

As cordas foram puxadas atrás, até às orelhas dos arqueiros, que logo as soltaram. As flechas voaram e, enquanto a primeira revoada sussurrava ainda sobre a água agitada pelo vento, dispararam a segunda; só quando os homens meteram a terceira flecha na corda é que a primeira atingiu o alvo. Ouvia-se um som de metal contra metal, como o bater de uma centena de leves martelos, e as fileiras francesas ficaram de súbito escondidas atrás de escudos levantados.

- Escolham os alvos! - gritava Skeat. - Escolham os alvos! - Usava também o seu arco, disparando-o de vez em quando, mas sempre aguardando que o inimigo baixasse o escudo antes de disparar a flecha. Thomas observava a turba da infantaria à sua direita. Pareciam prontos a fazer uma violenta carga e queria meter-lhes umas quantas flechas nos ventres, antes que se aproximassem da água.

Duas dezenas de homens-de-armas franceses morreram ou ficaram feridos e o comandante gritava para que os outros erguessem os escudos. Uma dezena dos homens-de-armas da retaguarda desmontou e apressou-se a vir reforçar a margem.

- Firmes, rapazes, firmes - exclamava John Armstrong. - Aproveitem as flechas.

Os escudos dos inimigos estavam cobertos de setas. Os franceses confiavam neles, por serem suficientemente grossos, para resistir ao avanço das flechas. Mantinham-se abrigados na esperança que estas se esgotassem ou que os homens-de-armas ingleses se aproximassem mais. Thomas calculava que talvez algumas setas os tivessem atravessado, causando ferimentos, mas a maior parte tinham sido desperdiçadas. Olhou para trás, para a infantaria e viu que continuava imóvel. Os arcos ingleses disparavam com menor frequência, aguardando os alvos; porém, o conde de Northampton talvez cansado da demora, ou receando a subida da maré, mandou avançar os homens.

- São Jorge! São Jorge!

- Espalhai-vos! - gritava Will Skeat, aguardando que os seus arqueiros se situassem nos flancos do ataque do conde, de modo a poderem usar as flechas, quando os franceses se erguessem para receber a carga. Contudo, a água subia rapidamente à medida que Thomas se dirigia para montante, impedindo-o de chegar aonde queria.

- Matai-os! Matai-os! - o conde estava agora a chegar à margem.

- Mantenham-se nos vossos postos - gritava Reginald Cobham.

Os homens-de-armas franceses soltaram uma ovação, pois a proximidade da carga dos ingleses significava que o alvo dos arqueiros ficaria oculto. Thomas conseguiu ainda disparar duas flechas, quando os defensores se ergueram e antes dos dois grupos de soldados se encontrarem à beira do rio, fazendo entrechocar armas e escudos. Os homens soltavam os seus gritos de guerra, Saint Denis contra São Jorge.

- Atenção à direita! Atenção à direita! - gritava Thomas, pois os camponeses da infantaria avançavam já. Disparou então duas flechas que assobiaram nessa direcção. Retirava-as da aljava, o mais rapidamente que podia.

- Atacai os cavaleiros! - berrou Will Keat e Thomas mudou o alvo para enviar uma flecha sobre as cabeças dos combatentes, e atingir os cavaleiros franceses que avançavam já pela margem, para ajudar os companheiros. Alguns cavaleiros ingleses entravam agora no vau, mas não podiam apressar-se para se defrontar com os adversários, pois a saída norte da passagem estava impedida por uma violenta refrega entre homens-de-armas.

Desferiam cortes e golpes. Espadas e machados chocavam entre si. Os alfanges abriam elmos e crânios. O barulho era o de uma forja do inferno e a água arrastava o sangue pelos baixios. Um inglês berrou ao ser atingido e lançado à água, e gritou de novo quando dois franceses dirigira os machados para lhe cortar as pernas e o tronco. O conde manobrava a espada em golpes curtos e violentos, ignorando as pancadas que lhe atingiam o escudo.

- Aproximem-se! Aproximem-se! - gritava Richard Cobham. Um homem tropeçou num cadáver, abrindo uma fenda na linha inglesa e três franceses aos gritos tentaram explorá-la. Porém, ao seu encontro, veio um homem com um machado de duas cabeças, desferindo golpes tão violentos que a arma arrancou a um deles o elmo e a cabeça, da nuca à garganta.

- Ataquem-nos de flanco! Ataquem-nos o flanco! - gritava Skeat e os arqueiros aproximavam-se da margem, para enfiar as flechas nos lados da formação francesa. Duzentos cavaleiros franceses combatiam contra oitenta ou noventa homens-de-armas ingleses, num alarido de espadas e escudos que se entrechocavam com um monstruoso eco. Os homens gemiam, ao brandir as espadas no ar. Combatiam as duas filas da frente, escudos contra escudos, e os que vinham atrás completavam a matança, brandido as armas sobre a fila da frente, para matar os homens que os defrontavam. A maior parte dos arqueiros despejava as flechas nos flancos franceses enquanto alguns, conduzidos por John Armstrong, se tinham colocado por detrás dos homens-de-armas, para disparar no rosto dos inimigos.

A infantaria francesa, pensando ter detido a carga inglesa, lançou um grito e começou a avançar.

- Matai-os! Matai-os! - gritava Thomas. Usara um feixe inteiro de flechas, vinte e quatro ao todo, e tinha apenas mais outro. Puxou a corda atrás, soltou-a, puxou-a de novo. Alguns soldados da infantaria francesa tinham gibões almofadados, que não lhes serviam de protecção contra as flechas. A melhor defesa era simplesmente o número; soltavam violentos gritos de guerra, pisando a margem. Mas depois, duas dezenas de cavaleiros ingleses apareceram por trás dos arqueiros, empurrando-os para fazer frente à violenta carga. De cota de malha dizimavam as primeiras fileiras da infantaria, brandindo as espadas à direita e à esquerda, enquanto os camponeses recuavam. Os cavalos mordiam o inimigo, sempre em movimento para que ninguém lhes atingisse os tendões do jarrete. Um homem-de- -armas foi arrancado à sela e gritou terrivelmente, enquanto era ferido até à morte, nos baixios. Enquanto Thomas e os seus arqueiros lançavam flechas para o tumulto, mais cavaleiros se aproximavam para os ajudar, mas mesmo assim a turba em fúria enchia a margem. De súbito, Thomas viu-se sem flechas, de modo que pendurou o arco ao pescoço, desembainhou a espada e correu para a beira do rio.

Um francês atacou-o com um lança. Thomas aparou-a e encostou o cintilante gume da sua espada ao pescoço do homem. O sangue espirrou da cor da madrugada e diluiu-se no rio. Agrediu outro homem. Sam, com cara de bebé, estava junto dele com um podão que lhe servira para abrir um crânio. Ali ficara preso e Sam, frustrado, afastou o morto com um pontapé, abandonou a arma onde estava, e pegou no machado da vítima, fazendo-o descrever um enorme arco para obrigar o inimigo a recuar. Jake ainda tinha flechas e disparava-as com toda a rapidez.

Uma ovação e salpicos de água anunciaram a chegada de mais soldados montados, que se atiraram à infantaria, com pesadas lanças. Os cavalos enormes, treinados para esta carnificina, passavam por cima de vivos e mortos, enquanto os homens-de-armas largavam as lanças e começavam a atacar com espadas. Chegavam mais arqueiros, com novas flechas e disparavam do centro do rio.

Thomas encontrava-se agora na margem, com a parte da frente da cota de malha vermelha de sangue, que não era seu. A infantaria retirava. Depois, Will Skeat soltou um grito enorme, para avisar que tinham chegado mais setas e Thomas e os arqueiros correram para dentro do rio onde encontraram o padre Hobbe com uma mula carregada com dois cabazes, cheios de feixes de flechas.

- Faz o trabalho do Senhor - disse o padre Hobbe, atirando um a Thomas, que imediatamente o desfez para meter as flechas na aljava. Soou uma trombeta na margem norte, que o fez dar meia volta para ver que os cavaleiros franceses vinham juntar-se ao combate.

- Acaba com eles! - gritava Skeat. - Acaba com esses bastardos!

As flechas atingiam e feriam os cavalos. Mais homens-de-armas ingleses atravessavam o rio, para engrossar a força do conde e, passo a passo, avançavam pela margem mas, nessa altura, os cavaleiros inimigos atiraram-se para a refrega, com lanças e espadas. Thomas meteu uma flecha na cota de malha que cobria a garganta de um francês e outra na protecção do focinho do cavalo, de modo que o animal recuou, relinchou e derrubou o cavaleiro.

- Mata! Mata! Mata!

- O conde de Northampton, ensanguentado desde o elmo às botas, brandia a espada uma e outra vez. Estava cansado até aos ossos e ensurdecido pelo estrondo do metal, mas subia para a margem, com os seus homens junto a si. Cobham matava com uma calma certeza, com anos de experiência atrás de cada golpe. Os cavaleiros ingleses entravam agora na refrega, usando as lanças sobre as cabeças dos compatriotas, para fazer recuar os cavalos do inimigo, mas bloqueavam também o alvo aos arqueiros. De novo Thomas pendurou o arco ao pescoço e sacou da espada.

- São Jorge! São Jorge!

O conde encontrava-se agora sobre a erva, fora dos canaviais, junto à marca da praia-mar e, atrás dele, a margem do rio era uma vala de homens mortos e feridos, sangue e gritos.

O padre Hobbe, com as saias da sotaina presas à cintura combatia com uma vara enorme, brandindo-a no rosto dos franceses.

- Em nome do Pai - gritava, e um francês caiu para trás com um olho esfacelado - do Filho - rosnou o padre Hobbe, enquanto partia o nariz do homem - e do Espírito Santo!

Outro cavaleiro francês meteu-se por entre as fileiras inglesas, mas uma dezena de arqueiros atiraram-se à montada, estropiaram-na e derrubaram o soldado para a lama, onde o atacaram com um machado, um podão e uma espada.

- Arqueiros! - gritou o conde. - Arqueiros!

- Os últimos cavaleiros franceses tinham-se formado para uma carga que ameaçava varrer para o rio toda a confusa massa de homens aos gritos, ingleses e franceses. Porém, duas dezenas de arqueiros, os únicos a quem ainda restavam flechas, dispararam para a margem e derrubaram toda a fila de cavaleiros, que imediatamente se transformou num emaranhado de patas de cavalo e armas caídas.

Soou outra trombeta, agora do lado inglês e os reforços atravessaram subitamente o vau e picaram os cavalos para se dirigirem a terreno mais alto.

- Estão a ceder! Estão a ceder!

- Thomas não sabia quem gritava a boa-nova, mas era verdade. Os franceses recuavam penosamente. A infantaria com a vontade de combater refreada pelas mortes sofridas, retirara já, mas agora os cavaleiros e os homens-de-armas franceses recuavam perante a fúria do assalto inglês.

- Matem-nos! Matem-nos! Nada de prisioneiros! Nada de prisioneiros! - gritava o conde de Northampton em francês e os seus homens-de-armas, ensanguentados, molhados, cansados e zangados, percorriam a margem e atacavam de novo os franceses que recuavam mais um passo.

Depois o inimigo cedeu. Foi de repente. As duas forças envolvidas no combate gemiam, empurravam, lutavam e, de súbito, os franceses fugiram e o vau ficou repleto de homens-de-armas a cavalo, que atravessavam vindos da margem sul, para perseguir o inimigo derrotado.

- Jesus! - exclamou Will Skeat, caindo de joelhos e fazendo o sinal da Cruz. Um francês moribundo gemia perto dele, mas Skeat ignorou-o. - Jesus! - repetiu. - Ainda tens flechas, Tom?

- Sobraram-me duas.

- Jesus! - Skeat ergueu-se. Tinha sangue nas faces. - Grandes bastardos - disse raivoso. Falava dos recém-chegados homens-de-armas ingleses que pisavam os restos da batalha para saquear o inimigo em fuga. - Grandes bastardos! Entram primeiro no acampamento, não é verdade? Vão ficar com a comida toda!

Mas o vau fora tomado, a emboscada vencida e os ingleses atravessaram o Somme.





Terceira Parte

Crécy



O exército inglês completou a travessia antes da maré encher de novo. Cavalos, carroças, homens e mulheres - todos passaram em segurança, e assim, as tropas francesas, que marchavam vindas de Abbeville, para os emboscar, encontraram vazio aquele bocado de terra, entre o rio e o mar.

Durante todo o dia seguinte, os exércitos enfrentaram-se, cada um do seu lado do vau. Os ingleses estavam prontos para o combate com os seus quatro mil arqueiros alinhados na margem do rio e, por trás deles, três enormes blocos de homens-de-armas, situados em terreno mais elevado. Porém, os franceses, colocados nos atalhos que levavam ao vau, não se mostravam tentados a forçar a travessia. Alguns cavaleiros entraram na água e gritavam desafios e insultos, porém, o rei não permitiu que nenhum soldado inglês lhes respondesse e, os arqueiros, sabendo que deveriam poupar as flechas, suportaram os impropérios sem reagir.

- Deixem gritar os bastardos - rosnava Will Skeat. - Os gritos nunca fizeram mal a ninguém - sorriu para Thomas. - Depende do homem, claro. Perturbaram sir Simon, não é verdade?

- Era apenas um bastardo.

- Não Thomas - corrigiu-o Skeat. - O bastardo és tu, ele é um gentil-homem. - Skeat olhou para os franceses do outro lado, que não davam sinal de querer disputar o vau. - A maior parte deles são boas pessoas - continuou, falando, evidentemente, de cavaleiros e nobres. - Uma vez que lutem algum tempo com arqueiros, aprendem a respeitar-nos, pois somos nós os patifes nojentos que os conservamos vivos, mas, há sempre uns quantos imbecis. O nosso Billy, não, claro - voltou-se e olhou para o conde de Northampton que andava de um lado para outro, nos baixios, desejando que os franceses viessem combater. - É um perfeito gentil-homem. Sabe matar os malditos franceses.

Na manhã seguinte, estes tinham desaparecido e o único sinal da sua presença era uma nuvem de poeira sobre a estrada, por onde o gigantesco exército seguia para Abbeville. Os ingleses iam para Norte, atrasados pela fome e pelos cavalos coxos que tinham relutância em abandonar. O exército subia dos sapais do Somme para uma região densamente arborizada que não lhes cedeu cereais, gado ou pilhagem, enquanto que o tempo, que estivera seco e quente, se tornava frio e húmido durante a manhã. A chuva caía sem cessar vinda de Leste, pingava das árvores para aumentar a tristeza dos homens, de tal forma que, o que fora uma campanha vitoriosa a sul do Sena, parecia agora uma ignóbil retirada. E era exactamente disso que se tratava, pois os ingleses fugiam dos franceses e todos o sabiam, tal como também tinham consciência que, a menos que arranjassem de comer, a sua fraqueza transformá-los-ia em presa fácil para o inimigo.

O rei enviara uma poderosa força até à foz do Somme onde, no pequeno porto de Lê Crotoy deveriam aguardá-los reforços e mantimentos, mas o porto estava afinal protegido por uma guarnição de besteiros genoveses. Como as muralhas se apresentavam em mau estado e os atacantes esfomeados, os genoveses morreram sob uma chuva de setas e uma tempestade de homens-de-armas. Os ingleses esvaziaram de alimentos os armazéns do porto e encontraram uma manada destinada a fornecer a carne para o exército francês. Mas quando treparam à torre da igreja não viram barcos ancorados na foz do rio, nem qualquer frota que os esperasse no mar. As flechas, os arqueiros e os cereais que teriam reabastecido o exército, encontravam-se ainda em Inglaterra.

A chuva caiu mais forte na primeira noite e as tropas acamparam na floresta. Segundo os rumores que corriam, o rei e os seus homens estavam numa aldeia próxima, mas a maior parte dos soldados foram forçados a abrigar-se debaixo das árvores molhadas e a comer o pouco que tinham conseguido arranjar.

- Guisado de bolotas - resmungou Jake.

- Já comemos pior - declarou Thomas.

- E há um mês comemo-lo em pratos de prata - Jake cuspiu a mistura granulosa. - Mas porque raio não combatemos contra esses bastardos?

- Porque são muitos - disse Thomas, desconsolado. - Porque não temos flechas que cheguem. Porque estamos desgastados.

O exército marchara escondido. Jake, tal como mais uma dezena de arqueiros de Will Skeat, já não tinha botas. Os feridos coxeavam porque não havia carroças suficientes e os doentes, que não podiam caminhar ou arrastar-se, eram deixados para trás. Os vivos cheiravam mal.

Thomas fizera para si e para Eleanor um abrigo de ramos e turfa. Mantinham-se secos dentro da cabana com uma pequena fogueira que tinham acendido e que lançava um fumo espesso.

- Se perderdes, o que me acontece? - perguntou-lhe Eleanor.

- Não perdemos - respondeu Thomas, embora com pouca convicção na voz.

- Que me vai acontecer? - perguntou ela de novo.

- Agradeces aos franceses que te encontrarem - disse. - Dizes-lhes que foste obrigada a marchar conosco, contra tua vontade. Depois mandas chamar o teu pai.

Eleanor reflectiu algum tempo sobre estas respostas, mas não pareceu ficar tranqüila. Aprendera em Caen que, depois de uma vitória, os homens não são dados à razão, mas sim escravos dos seus apetites. Encolheu os ombros.

- E o que te acontece a ti?

- Se ficar vivo? - Thomas abanou a cabeça. - Sou feito prisioneiro. Ouvi dizer que nos mandavam para as galés. Se nos deixarem com vida.

- E porque não haveriam de deixar?

- Não gostam de arqueiros. Detestam-nos - empurrou um monte de fetos húmidos para junto do lume, tentando secar a folhagem que depois lhes serviria de cama. - Talvez nem haja batalha, porque lhes roubamos um dia de marcha.

Dizia-se que os franceses tinham voltado a Abbeville para lá atravessarem o rio, o que queria dizer que vinham a caminho, mas os ingleses tinham, mesmo assim, um dia de avanço sobre eles e talvez conseguissem alcançar as fortalezas da Flandres. Talvez.

Eleanor pestanejou por causa do fumo.

- Viste algum cavaleiro com a lança? Thomas abanou a cabeça.

- Nem sequer reparei - confessou. A última coisa de que nessa noite se lembrara fora do mistério dos Vexilles. Nem mesmo esperara ver a lança. Era a fantasia de sir Guillaume e, agora, o entusiasmo do padre Hobbe, mas não uma obsessão sua. O que o consumia era ter de se manter vivo e arranjar de comer.

- Thomas! - chamou Will Skeat lá de fora.

Thomas espreitou pela abertura da cabana e viu uma figura embuçada junto a Skeat.

- Estou aqui - respondeu

- Tens uma visita - disse Skeat em tom azedo, e deu meia volta. A figura baixou-se para entrar na cabana e, para sua surpresa, Thomas viu que se tratava de Jeanette.

- Não devia estar aqui - disse, saudando-o e entrando no interior cheio de fumo, onde ao retirar o capuz da cabeça, viu Eleanor.

- Quem é esta?

- A minha mulher - respondeu Thomas em inglês.

- Diz-lhe que se vá - ordenou Jeanette em francês.

- Fica - disse Thomas a Eleonor. - Esta é a condessa de Armórica. Jeanette irritou-se ao ser contrariada por Thomas, mas não insistiu para que Eleanor saísse. Preferiu entregar ao arqueiro um saco que continha um presunto, um pão e uma botija de pedra com vinho. Thomas percebeu que se tratava de pão branco e fino, que apenas os ricos podiam dar-se ao luxo de comer, enquanto o presunto estava temperado com cravinho e coberto de mel.

Entregou o saco a Eleanor.

- Comida digna de príncipes - disse-lhe.

- Queres que a leve a Will? - perguntou Eleanor, pois os arqueiros tinham concordado em partilhar toda a comida.

- Sim, mas pode esperar - respondeu Thomas.

- Vou levá-la já - disse Eleanor e, cobrindo-se com uma capa, desapareceu na noite chuvosa.

- É muito bonita - disse Jeanette em francês.

- Todas as minhas mulheres são bonitas - afirmou Thomas. - Dignas de príncipes, não é verdade?

Jeanette tinha uma expressão zangada, ou talvez fosse apenas o fumo da pequena fogueira que a irritava. Tocou na parede da cabana.

- Faz-me lembrar a nossa viagem.

- Não chovia nem fazia frio - respondeu Thomas. E estavas louca, teve vontade de acrescentar, e eu tratei de ti, e tu abandonaste-me sem olhar para trás.

Jeanette percebeu-lhe a hostilidade no tom de voz.

- Ele pensa que me vim confessar - afirmou.

- Dizei então os vosso pecados e não tereis mentido a Sua Alteza.

Jeanette fingiu não ter ouvido.

- Sabes o que vai acontecer agora?

- Fugimos, perseguem-nos e, ou nos apanham, ou não - falava bruscamente. - Se nos alcançarem vai haver derramamento de sangue.

- Vão alcançar-nos - disse Jeanette em tom de confidência. - E vai travar-se uma batalha.

- Como o sabeis?

- Escuto o que contam ao príncipe - disse. - E os franceses avançam por estradas boas. Nós não.

Fazia sentido. O vau, por onde o exército inglês tinha atravessado o Sena levava apenas a uma região de sapais e florestas. Era uma ligação entre aldeias, longe das grandes vias de comércio, por isso não havia bons caminhos a partir das margens. Porém, os franceses tinham atravessado o rio em Abbeville, cidade de mercadores, com estradas largas para apressar a marcha para a Picardia. Estavam bem alimentados, descansados e podiam agora marchar rapidamente.

- Então, haverá batalha - disse Thomas, tocando no arco negro.

- Tem de haver batalha - confirmou Jeanette. - Já está decidido. Provavelmente amanhã ou no dia seguinte. O rei diz que há um monte a saída da floresta, onde se pode combater. Diz que é melhor isso que deixar os franceses avançarem e cortarem-nos a estrada. Mas seja como for... - fez uma pausa. - Hão-de vencer.

- Talvez - concedeu Thomas.

- Hão-de vencer - insistiu Jeanette. - Oiço as conversas, Thomas. São muitos.

Thomas fez o sinal da Cruz. Se Jeanette estivesse certa, e não tinha razões para pensar que ela o queria enganar, então os comandantes do exército tinham já perdido a esperança, o que não significava que fosse um caso perdido.

- Primeiro, terão de nos vencer - disse, teimoso.

- E é o que farão - disse Jeanette bruscamente. - E o que me vai acontecer depois?

- O que vos vai acontecer? - perguntou Thomas surpreso. Encostou-se com cautela à frágil parede do abrigo. Percebeu que Eleanor já entregara a comida e se apressara para poder ficar à escuta. - Porque me haveria de importar com o que vos possa acontecer?

Jeanette lançou-lhe um olhar malévolo.

- Uma vez juraste que haverias de me ajudar a reaver o meu filho. Thomas fez de novo o sinal da Cruz.

- Assim foi, senhora - admitiu, reflectindo que prometia com demasiada facilidade. Uma promessa seria suficiente para uma vida inteira e ele já nem se lembrava de quantas fizera, mas eram, decerto, mais do que as que poderia cumprir.

- Então ajuda-me a encontrá-lo - exigiu Jeanette. Thomas sorriu.

- Primeiro há uma batalha a vencer, senhora.

Jeanette franziu a cara, devido ao fumo, que ardia no pequeno abrigo.

- Se me encontrarem no acampamento inglês depois da batalha, Thomas, nunca mais vejo Charles. Nunca mais.

- Porque não? - perguntou Thomas. - Não correis perigo, senhora. Não sois uma mulher vulgar. Pode não haver muita cortesia quando os exércitos se defrontam, mas esta chega sempre às tendas da realeza.

Jeanette abanou a cabeça impaciente.

- Se os ingleses vencerem - disse - talvez volte a ver Charles, pois o duque desejará cair nas boas graças do rei. Mas se forem derrotados, não precisará de fazer qualquer gesto. E se assim for, Thomas, perco tudo.

Isso seria provavelmente verdade, pensou Thomas. Se os ingleses perdessem, então Jeanette arriscava-se a ficar sem a riqueza que acumulara nas últimas semanas, riqueza essa que provinha dos presentes de um príncipe. Via um colar feito com o que parecia serem rubis, quase escondido sob a enorme capa, e não tinha dúvidas de que teria dezenas de outras pedras encastoadas em ouro.

- Que quereis então de mim? - perguntou. Ela inclinou-se e baixou a voz.

- Vós e alguns homens - respondeu. - Para me levarem para Sul. Posso arranjar um navio em Lê Crotoy para navegar até à Bretanha. Agora tenho dinheiro. Posso pagar as minhas dívidas em La Roche-Derrien e até negociar com aquele maldito advogado. Ninguém precisa sequer de saber que aqui estive.

- O príncipe sabe - disse Thomas. Ela irritou-se.

- Pensas que me vai querer para sempre?

- Que sei eu dele?

- Vai cansar-se de mim - disse Jeanette. - É um príncipe. Tem aquilo que quer e quando se farta das coisas, segue em frente. Mas tem sido bom para mim, não posso queixar-me.

Thomas nada disse, durante algum tempo. Reflectiu que ela não era assim tão dura nos calmos dias de Verão em que tinham vivido como vagabundos.

- E vosso filho? - perguntou. - Como pensais reavê-lo? Quereis pagar para isso?

- Arranjarei maneira - disse, de modo evasivo. Provavelmente tentará raptar o rapaz, pensou Thomas, e porque não?

Se conseguisse arranjar alguns homens, seria possível. Talvez esperasse que o próprio Thomas o fizesse e, no momento em que o pensamento lhe ocorreu, Jeanette fitou-o nos olhos.

- Ajuda-me - pediu. - Por favor.

- Não - respondeu Thomas. - Agora, não - ergueu a mão para evitar os protestos dela. - Um dia, se Deus o permitir, ajudar-vos-ei a encontrar o vosso filho - continuou. - Mas, agora, não vou deixar o exército. Se houver uma batalha, senhora, entro nela como todos os outros.

- Imploro-te!

- Não.

- Então, maldito sejas - exclamou. Cobriu a cabeça com o capuz e saiu para a escuridão. Houve uma curta pausa e, depois, Eleanor entrou.

- Que pensas disto? - perguntou Thomas.

- Acho-a muito bonita - disse Eleanor, num tom evasivo para depois franzir a testa. - E acho que amanhã na batalha, alguém te pode prender pelos cabelos. Deverias cortá-los.

Thomas estremeceu.

- Queres ir para Sul? Fugir à batalha? Eleanor lançou-lhe um olhar censura.

- Sou a mulher de um arqueiro - disse. - Tu não irás para Sul. Will diz que és louco varrido - disse as últimas palavras num inglês desajeitado. - Porque entregaste uma comida tão boa, mas, mesmo assim, manda agradecer. E o padre Hobbe vai dizer missa amanhã de manhã e espera que lá estejas.

Thomas sacou da faca e entregou-lha, baixando em seguida a cabeça. Ela cortou-lhe a trança e lançou no fogo as mãos cheias de cabelo negro. Entretanto Thomas manteve-se em silêncio a pensar na missa do padre Hobbe. Uma missa de defuntos, lembrou-se, ou por aqueles que se preparavam para morrer.

Porque na noite chuvosa para lá da floresta, as forças francesas aproximavam-se. Os ingleses tinham por duas vezes fugido ao inimigo, atravessando rios considerados intransponíveis, mas não poderiam escapar uma terceira. Os franceses tinham-nos, por fim, apanhado.



A aldeia ficava a curta distância da saída da floresta, da qual estava separada por um pequeno rio que serpenteava através de plácidas campinas. Era um local vulgar: um lago com patos, uma pequena igreja e duas dezenas de cabanas com grandes telhados de colmo, pequenos jardins e enormes montes de estrume. A aldeia, tal como a floresta, chamava-se Crécy.

Os campos erguiam-se sobre um extenso monte que ia de norte a sul. Uma estrada rural, marcada pelas carroças, passava pelo cume e ligava Crécy a outra aldeia, também vulgar, chamada Wadicourt. Se um exército tivesse marchado desde Abbeville, contornando a floresta de Crécy, entraria pelo lado poente em busca dos ingleses e, algum tempo depois, veriam erguer-se na sua frente o monte entre Crécy e Wadicourt. Avistariam as torres baixas nas igrejas das duas pequenas aldeias e entre elas, mas muito mais perto de Crécy, quase no cimo da encosta, onde as velas podiam aproveitar o vento, havia um moinho. A vertente, do lado dos franceses, era longa e suave, livre de sebes ou valas, um perfeito pátio de recreio para homens a cavalo.

O exército foi acordado antes do nascer do Sol. Era sábado, 26 de agosto, e os homens resmungaram do frio despropositado. Enquanto esperavam, espevitaram as fogueiras, cujas chamas se reflectiam nas cotas de malha e nas armaduras. A aldeia de Crécy fora ocupada pelo rei e pelos grandes senhores, alguns dos quais tinham dormido dentro da igreja. Armavam-se ainda quando um capelão da casa real entrou para dizer missa. Acenderam-se as velas, soou uma campainha e o padre, ignorando o eco do entrechocar das armaduras dentro da pequena nave, solicitou o auxílio de São Zéfiro, São Gelasino e de dois santos chamados Genésio, cujas festas se celebravam nesse mesmo dia. Invocou ainda em seu socorro o pequeno sir Hugh de Lincoln, uma criança assassinada pelos judeus também nessa data, duzentos anos atrás. Dizia-se que o rapazinho, que demonstrara notável piedade, fora encontrado morto e ninguém entendia como Deus pudera permitir que tal modelo de perfeição tivesse sido arrebatado tão jovem deste mundo, mas como havia judeus em Lincoln, a sua presença forneceu a resposta conveniente. O sacerdote orou a todos eles. São Zéfiro, rezou, concedei-nos a vitória. São Gelasino, implorou, acompanhai os nossos homens. São Genésio, olhai por nós e São Genésio, dai-nos força. Pequeno sir Hugh, implorou, embora sejais apenas uma criança nos braços de Deus, intercedei por nós. Meu Deus, rezou, na vossa grande misericórdia, poupai-nos. Os cavaleiros vieram junto ao altar, nas suas camisas de linho, para receber os sacramentos.

Na floresta, os arqueiros ajoelhavam junto de outros padres. Confessaram-se e tomaram o pão seco e ázimo que era o corpo de Cristo. Persignaram-se. Ninguém sabia se se iria ou não travar uma batalha, mas sentia-se que a campanha tinha chegado ao fim e que haveriam de combater naquele dia ou no seguinte. Dai-nos flechas suficientes, rezavam os arqueiros, e cobriremos a terra de vermelho, e erguiam os arcos de teixo para que os padres os tocassem e dissessem as suas orações.

Descobriram-se as lanças. Estas tinham sido transportadas por bestas de carga ou em carroças e mal haviam sido utilizadas na campanha. Porém, todos os cavaleiros sonhavam com uma batalha em que homens e montadas rodopiassem, tocados pelo choque das lanças contra os escudos. Os mais velhos e sensatos sabiam que deveriam lutar apeados e que as suas armas seriam principalmente espadas, machados e alfanges. Mesmo assim, as lanças pintadas foram retiradas das suas capas de pano ou de couro onde as haviam abrigado do sol, para que não as queimasse, ou da chuva para que não as fizesse empenar.

- Podemos usá-las como piques - sugerira o conde de Northampton.

Escudeiros e pajens armaram os seus cavaleiros, ajudando-os a envergar as pesadas cotas de couro, malha e metal. Ataram com força as correias. Os corcéis foram esfregados com palha, enquanto os ferreiros afiaram as longas espadas dos cavaleiros com as suas pedras de amolar. O rei, que começara a armar-se às quatro horas da manhã, ajoelhou, beijou um relicário que continha uma pena da asa do Arcanjo São Gabriel e, depois de se persignar, disse ao padre que levasse o relicário ao filho. Depois, com a coroa de ouro a rodear-lhe o elmo, foi ajudado a montar uma égua cinzenta e cavalgou para o norte da aldeia.

De madrugada, o monte entre as duas aldeias estava vazio. O moinho, com as suas velas de linho bem dobradas e amarradas, rangia ao vento que fazia ondular a erva alta, onde pastavam lebres. Estas espetavam as orelhas e fugiam, à medida que os cavaleiros subiam o atalho.

O rei comandava, montado na égua, coberta por um caparazão de cores vivas e com as armas reais. A bainha da espada era de veludo vermelho com flores-de-lis douradas, enquanto que o punho tinha incrustados doze enormes rubis. Transportava uma longa haste branca e, como escolta, trouxera consigo doze companheiros e duas dezenas de cavaleiros. Porém, como todos eram grandes senhores, tinham se ser lentamente acompanhados pelos seus séquitos, e, assim, cerca de trezentos homens subiam o sinuoso atalho. Quanto mais elevada era a estirpe do nobre, mais perto este cavalgava do rei. Entretanto, os pajens e escudeiros vinham na retaguarda, onde mesmo assim, tentavam escutar as conversas dos seus melhores.

Um homem-de-armas desmontou e entrou no moinho. Subiu as escadas, abriu a pequena porta, que dava acesso às velas e aí, trepou ao eixo e montou-o para olhar para nascente.

- Vedes alguma coisa? - perguntou o rei em tom animado, mas o homem ficou tão atordoado por o soberano se lhe dirigir, que apenas conseguiu abanar a cabeça em silêncio.

O céu estava meio coberto de nuvens e o campo parecia escuro. Do alto do moinho, o homem-de-armas avistava a longa encosta, que descia até aos pequenos campos e depois uma outra que subia até um bosque, para lá do qual se encontrava uma estrada vazia em direcção a Leste. O rio, onde bebiam inúmeros cavalos ingleses, descrevia uma curva à direita, marcando a orla da floresta. Era o que o rei, com a viseira erguida, junto da coroa, avistava. Um aldeão, encontrado no bosque confirmara que a estrada de Abbeville vinha de leste, o que significava que os franceses teriam de atravessar os pequenos campos no sopé da encosta, se quisessem levar a cabo um ataque frontal ao monte. Os campos não tinham sebes, apenas valas baixas que não seriam obstáculo para um cavaleiro montado.

- Se eu fosse Filipe, contornaria o nosso flanco norte, senhor - sugeriu o conde de Northampton.

- Não o sois e agradeço-o a Deus - respondeu Eduardo de Inglaterra. - Filipe não é inteligente.

- E eu sou? - O conde parecia surpreendido.

- Sois inteligente na guerra, William - disse o rei, ficando, durante algum tempo a olhar para o fundo da encosta. - Se eu fosse Filipe - disse por fim - sentir-me-ia fortemente tentado por aqueles campos - apontou nessa direcção. - Principalmente se visse os nossos homens à espera lá em cima.

A longa encosta, coberta por uma pastagem verdejante e aberta, parecia perfeita para uma carga de cavalaria. Era um convite às lanças e à glória, um local feito por Deus para os senhores de França poderem desfazer um desvergonhado inimigo.

- O monte é íngreme, senhor - avisou o conde de Warwick.

- Garanto-vos que, a partir da base, não o parece - respondeu o rei. A seguir voltou a montada e esporeou-a em direcção ao norte, ao longo do cume. A égua trotava com facilidade, gozando o ar da manhã.

- É espanhola - disse o rei ao conde. - Comprei-a a Grindley. Não usais os serviços dele?

- Não posso pagar os seus preços.

- Claro que podeis, William! Um homem rico, como vós? Vou cruzá-la. Talvez dê bons corcéis.

- Se assim for, senhor, compro-vos um.

- Se não podeis pagar os preços de Grindley - troçou o rei -, como podereis pagar os meus?

Picou a égua para galope, fazendo entrechocar a armadura, e o longo cortejo de homens apressou-se a segui-lo, em direcção a norte, pelo atalho do cimo do monte. Rebentos de trigo e cevada, condenados a morrer no Inverno, cresciam no local em que tinham caído das carroças que traziam o grão para o moinho. O rei deteve-se no cume, mesmo por cima da aldeia de Wadicourt e ficou a olhar para norte. O primo tinha razão, pensou. Filipe deveria marchar por aquele campo vazio, para lhe impedir o caminho para a Flandres. Os franceses, embora não o soubessem, eram aqui senhores e amos. O seu exército era maior, as tropas estavam mais frescas e podiam dançar de roda em volta dos cansados inimigos, até estes os obrigarem a realizar um ataque desesperado, para não ficarem encurralados num ponto que não lhes trazia qualquer vantagem. Mas Eduardo sabia que não havia necessidade de deixar o medo invadir-lhe o espírito. Também os franceses estavam desesperados. Tinham sofrido a humilhação de ver o exército inimigo devastar a sua terra e não estavam na disposição de serem inteligentes. Queriam vingança. Se lhes fosse oferecida a possibilidade, provavelmente aproveitavam-na. Assim, o rei afastou os seus receios e cavalgou até à aldeia de Wadicourt. Uns quantos habitantes tinham-se atrevido a ficar e, ao verem a coroa de ouro, em redor do elmo do rei, e o freio de prata da sua égua, caíram de joelhos.

- Não queremos fazer-vos mal - disse o rei com ar petulante, sabendo perfeitamente que, no fim da manhã, as casas teriam sido completamente saqueadas.

Voltou-se de novo para sul, cavalgando pelo terreno junto ao sopé do monte. A turfa do vale era mole, mas não traiçoeira. Um cavalo não se atolaria ali, seria possível uma carga e - melhor ainda, tal como calculara - daquele ângulo, o monte dava a ilusão de não ser tão íngreme. A longa extensão de ervas altas parecia até suave, mas a verdade é que haveria de esgotar os pulmões dos cavalos antes destes chegarem junto dos homens-de-armas ingleses. Se alguma vez chegassem.

- Quantas flechas temos? - perguntou a todos os que o podiam ouvir.

- Mil e duzentos feixes - disse o bispo de Durham.

- Duas carroças cheias - respondeu o conde de Warwick.

- Oitocentos e sessenta feixes - disse o conde de Northampton.

Fez-se silêncio durante algum tempo.

- Os homens terão algumas consigo? - perguntou o Rei.

- Talvez um feixe cada um - respondeu o conde de Northampton com ar lúgubre.

- Terá de bastar - disse o rei friamente. Teria gostado de ter duas vezes mais flechas, mas também de muitas outras coisas. Poderia desejar duas vezes mais homens, um monte duas vezes mais íngreme e um inimigo conduzido por um homem duas vezes mais nervoso do que Filipe de Valois que, só Deus sabia, já o era bastante. Mas de nada lhe serviriam tais anseios. Tinha de lutar e vencer. Franziu o sobrolho, olhando para o lado sul do monte, onde a encosta começava a descer para a aldeia de Crécy. Seria o local mais fácil para os franceses atacarem e também o mais próximo, o que significava um combate renhido naquele local.

- Os trons, William - disse para o conde de Northampton.

- Os trons, senhor?

- Colocaremos os trons nos flancos. As malditas armas terão de ser úteis alguma vez!

- Talvez os possamos fazer rolar pelo monte abaixo, senhor? Talvez esmaguem um ou dois homens.

O rei riu-se e prosseguiu a cavalgada.

- Parece que vai chover.

- Deveria aguentar mais um pouco - respondeu o conde de Warwick. - E os franceses também, senhor.

- Pensais que não vêm, William? O conde abanou a cabeça.

- Vêm senhor, mas vão levar algum tempo. Muito tempo. Talvez vejamos a vanguarda ao meio-dia, mas a retaguarda estará ainda a atravessar a ponte em Abbeville. Aposto que esperam até amanhã de manhã, para começar o combate.

- Hoje ou amanhã - disse o rei, sem cuidados. - Será o mesmo.

- Podíamos continuar a marcha - sugeriu o conde de Warwick.

- E encontraríamos um monte melhor? - O rei sorriu. Era mais jovem e menos experiente do que muitos condes, mas era também o rei e assim a decisão seria sempre sua. Na verdade, estava cheio de dúvidas, mas sabia que tinha de aparentar confiança. Combateriam ali. Disse-o, e fê-lo em tom firme.

- Travaremos aqui mesmo o combate - repetiu, olhando para a encosta. Imaginava o exército, vendo-o já como os franceses o veriam, e sabia que as suas suspeitas estavam certas e que a parte inferior do cume, perto de Crécy, seria terreno perigoso. Aí colocaria o seu flanco direito, logo abaixo do moinho.

- O meu filho comandará à direita - disse apontando. - Vós, William, acompanhá-lo-eis.

- Sim, senhor - concordou o conde de Northampton.

- E vós, meu senhor, à esquerda - disse o rei, ao conde de Warwick. - Vamos formar a nossa linha ocupando até dois terços da subida do monte, com arqueiros à frente e nos flancos.

- E vós, senhor? - perguntou o conde de Warwick.

- Vou ficar no moinho - respondeu o rei e logo conduziu o cavalo para subir o monte. Desmontou depois de ter percorrido dois terços da encosta e aguardou que um escudeiro lhe tomasse as rédeas da égua para começar o verdadeiro trabalho daquela manhã. Percorreu o monte, marcando os locais, picando a turfa com a lança branca e dando instruções aos nobres que o acompanhavam para que os homens ficassem em tal ou tal sítio. Esses senhores mandaram vir os seus comandantes, para que quando o exército marchasse em direcção à longa encosta verdejante, soubessem para onde ir.

- Trazei para aqui os pendões - ordenou o rei. - Colocai-os onde os homens têm de se reunir.

Manteve o exército dividido nos três batalhões que tinham vindo da Normandia. Dois deles, os maiores, formariam uma longa linha de soldados, estendendo-se até aos pontos mais altos da encosta.

- Vão combater apeados - ordenou o rei, confirmando aquilo que todos esperavam, embora um ou dois nobres mais jovens resmungassem que seria mais honrado combater a cavalo. Mas Eduardo estava mais preocupado com a vitória, do que com a honra. Sabia perfeitamente que, se os seus homens-de-armas estivessem montados, carregariam, assim que os franceses atacassem, e a batalha acabaria por degenerar numa refrega no sopé do monte, que os inimigos venceriam com a vantagem de serem mais numerosos. Porém, se os seus homens estivessem apeados, podiam não carregar sobre os cavaleiros e aguardariam o ataque atrás dos escudos.

- Os cavalos ficarão na retaguarda, para lá do cume - ordenou. Ele próprio comandaria o batalhão mais pequeno no cimo do monte, onde ficaria de reserva.

- Ficareis comigo, meu senhor bispo - disse o rei ao bispo de Durham. Este, armado dos pés à cabeça e com uma enorme clava com pontas de ferro, irritou-se.

- Ides negar-me a possibilidade de partir a cabeça a uns franceses, senhor?

- Prefiro que insistais junto de Deus com as vossas preces - disse o rei e os nobres riram. - E os nossos arqueiros - continuou o monarca - ficarão aqui, aqui e aqui. - Andava de um lado para outro e, de poucos em poucos passos, batia com força com a lança branca na erva. Cobriria a linha com arqueiros e reuniria outros nos flancos. Eduardo sabia que estes eram a sua única vantagem. As longas flechas, com penas brancas, matariam naquele lugar, que convidava os cavaleiros inimigos a uma gloriosa carga. - Aqui - avançou e bateu de novo na turfa. - E aqui.

- Quereis abrir buracos, senhor? - perguntou o conde de Northampton.

- Tantos quantos queirais, William - respondeu o rei. Uma vez reunidos os arqueiros nos seus grupos, ao longo da linha, dir-lhes-iam que abrissem covas na turfa, pela encosta abaixo. Não teriam de ser fundas, apenas o suficiente para partir as pernas aos cavalos que não as vissem. Fazendo bastantes, conseguiriam abrandar e desbaratar a carga. - E aqui colocaremos umas carroças vazias - o rei tinha chegado ao lado sul do cume. - Metade dos trons aqui, a outra metade no outro extremo. E quero cá mais arqueiros.

- Se ainda sobrarem alguns - resmungou o conde de Warwick.

- Carroças? - perguntou o conde de Northampton.

- Não se pode obrigar um cavalo a carregar sobre uma linha de carroças, William - disse o rei animadamente e depois mandou avançar a montada mas, como a armadura era tão pesada, dois pajens tiveram quase de o erguer e empurrar para a sela, num esforço pouco digno. Uma vez instalado, voltou-se para lançar os olhos sobre o cume e viu que este já não estava vazio, mas sim salpicado com os primeiros pendões, a indicar onde os homens se deveriam reunir. Dentro de uma ou duas horas, pensou, todo exército estaria ali para atrair os franceses de encontro às flechas dos arqueiros. Limpou a terra da lança e, a seguir, picou o cavalo em direcção a Crécy.

- Vamos lá ver se arranjamos mantimentos - disse.

As primeiras bandeiras flutuavam já no cume deserto. O céu era pesado e cinzento sobre campos e bosques distantes. A chuva caía a norte e o vento era frio. A leste, a estrada, pela qual os franceses deveriam chegar, estava ainda deserta. Os padres rezavam.

Tende piedade de nós, Senhor, na vossa infinita misericórdia, tende piedade de nós.



O homem que dizia chamar-se Harlequin estava no bosque, no monte a leste do cume, entre Crécy e Wadicourt. Saíra de Abbeville a meio da noite, obrigando as sentinelas a abrirem a porta norte e conduzira os seus homens por entre a escuridão, auxiliado por um padre que conhecia bem as estradas daquelas paragens. Depois, escondido pelas faias, observara o rei de Inglaterra a cavalo e a pé sobre o cume mais afastado. Já tinha partido, mas a turfa verde ficara salpicada de pendões e as primeiras tropas inglesas subiam agora da aldeia.

- Estão à espera que combatamos aqui - afirmou.

- É um local como qualquer outro - observou sir Simon Jekyll, de mau humor. Não gostava que o obrigassem a levantar-se a meio da noite.

Sabia que o estranho homem, vestido de negro, que dizia chamar-se Harlequin, se oferecera como batedor ao exército francês, mas nunca pensara que todos os seus seguidores tivessem de desistir do pequeno-almoço, para atravessar o campo escuro e vazio durante seis geladas horas.

- É um local ridículo para uma batalha - respondeu o Harlequin. - Vão alinhar os arqueiros naquele monte e teremos de cavalgar directamente contra eles. Deveríamos contornar-lhes os flancos - apontou para norte.

- Dizei-o a Sua Majestade - disse sir Simon despeitado.

- Duvido que me dê atenção - o Harlequin escutou-lhe o desprezo na voz, mas não reagiu. - Ainda não. Quando nos tornarmos conhecidos, então ouvir-nos-á - bateu no pescoço do cavalo. - Só uma vez enfrentei as flechas inglesas e apenas as de um mero arqueiro, mas vi que podem penetrar numa cota de malha.

- Já vi uma flecha entrar duas polegadas dentro de um carvalho - afirmou sir Simon.

- Três polegadas - corrigiu Henry Colley. Tal como sir Simon, também ele poderia ter de enfrentar essas flechas naquele dia, mas continuava orgulhoso do que as armas inglesas eram capazes de fazer.

- É uma arma perigosa - reconheceu o Harlequin, sem se mostrar preocupado. Parecia nunca ter cuidados, mostrava-se sempre confiante e perpetuamente calmo. Aquele autodomínio irritava sir Simon e mais ainda o exasperavam os olhos fundos do Harlequin que, conforme se apercebia, lhe faziam lembrar os de Thomas de Hookton. Tinha a mesma beleza, mas pelo menos o outro estava morto e era menos um que teria de enfrentar naquele dia. - Mas os arqueiros podem ser derrotados - acrescentou o Harlequin.

Sir Simon espantou-se que um francês, que apenas tivera de enfrentar um único arqueiro em toda a sua vida, soubesse já como os poderia derrotar.

- Como?

- Haveis-me dito como - recordou o Harlequin a sir Simon. - Obrigamo-los a esgotar as flechas, claro. Enviamos-lhes menos alvos, deixamos que matem camponeses, imbecis e mercenários, durante uma ou duas horas e depois libertamos a força principal. - O que faremos - obrigou o cavalo a dar meia volta - é carregar com a segunda linha. Não importa as ordens que recebamos, esperaremos até que se acabem as flechas. Quem quer ser morto por um sujo camponês? Não há qualquer glória nisso, sir Simon.

Sir Simon tinha de reconhecer que era verdade. Seguiu o Harlequin para o lado oposto do bosque de faias, onde aguardavam escudeiros e criados com as bestas de carga. Enviaram-se dois mensageiros com as notícias das posições inglesas, enquanto o resto desmontava e tirava a sela aos cavalos. Havia tempo para homens e animais descansarem e comerem, tempo para envergarem a armadura e para rezar.

O Harlequin orava freqüentemente, embaraçando sir Simon que se considerava um bom cristão, mas daqueles que não tinham a alma completamente dependente de Deus. Confessava-se uma ou duas vezes por ano, ia à missa e descobria-se diante dos sacramentos mas, de contrário, pouco tempo perdia com devoções. Por outro lado, o Harlequin confiava-se todos os dias a Deus, embora raramente entrasse numa igreja e pouco tempo perdesse com padres. Era como se tivesse uma relação privada com o céu, o que, ao mesmo tempo, parecia a sir Simon, aborrecido e reconfortante. Aborrecia-o porque parecia indigno de um homem que se prezasse e reconfortava-o pois se Deus servia de alguma coisa a um combatente, seria no dia da batalha.

Esse dia, porém, parecia especial para o Harlequin, pois depois de ter posto o joelho em terra e orado em silêncio, durante algum tempo, ergueu-se e ordenou ao escudeiro que lhe trouxesse a lança. Sir Simon, desejando poder terminar com aquela piedosa patetice para ir comer, concluiu que deveriam ter de se armar e enviou Colley em busca da sua, porém, o Harlequin deteve-o.

- Esperai - ordenou.

As lanças, envolvidas em couro, tinham sido transportadas numa besta de carga porém, o escudeiro do Harlequin trouxe uma outra, separada, que viajara sobre o seu próprio cavalo e estava também enrolada num pano de linho. Sir Simon concluíra tratar-se de uma lança pessoal e, no entanto, quando desenrolaram da haste a cobertura de linho, viu que a arma, muito antiga e feita de madeira, era tão velha e escura que se quebraria sujeita à menor força. A lâmina parecia ser de prata, uma tolice, já que esse metal era demasiado fraco para a transformar numa arma mortífera.

Sir Simon sorriu.

- Não ides lutar com isso!

- Lutamos todos com isto - disse o Harlequin e, para espanto de sir Simon, o cavaleiro vestido de negro, caiu uma vez mais de joelhos. - Para baixo! - ordenou a sir Simon.

Este ajoelhou, sentindo-se um imbecil.

- Sois um bom soldado, sir Simon - disse o Harlequin. - Conheci poucos homens que soubessem manejar as armas com vós e não desejaria lutar ao lado de nenhum outro, mas o combate não é feito apenas de espadas, lanças e flechas. É preciso pensar e, sobretudo, orar, pois se Deus estiver do nosso lado, nenhum homem nos vencerá.

Sir Simon, vagamente consciente de que estava a ser criticado, fez o sinal da Cruz.

- Eu rezo - disse para se defender.

- Então dai graças a Deus por poderdes levar esta lança para a batalha.

- Por quê?

- Porque é a lança de São Jorge e o homem que combate sob a sua protecção, será recebido nos braços de Deus.

Sir Simon ficou a olhar para a lança, que fora poisada na relva com toda a reverência. Poucas vezes durante a sua vida, provavelmente só quando se embriagava, se apercebera dos mistérios de Deus. Uma vez, vira-se reduzido às lágrimas por um feroz dominicano, embora o efeito não tivesse perdurado para além da visita que a seguir fizera à taberna. Sentira-se também diminuído da primeira vez que entrara numa catedral e olhara para a abóbada fracamente iluminada pelas velas. Todavia, tais momentos tinham sido poucos, raros e desagradáveis. Porém, agora e subitamente o mistério de Cristo tocava-lhe o coração. Fitou a lança e não viu nela a velha arma baça, com uma impraticável lâmina de prata, mas um objeto detentor de um poder conferido por Deus. Viera do Céu para tornar invencíveis os homens da terra e sir Simon ficou desconcertado por sentir as lágrimas arderem-lhe nos olhos.

- A minha família trouxe-a da Terra Santa - disse o Harlequin. - E afirmava que os homens que combatiam sob a sua protecção não poderiam ser derrotados, o que, porém, não é verdade. Foram-no, mas sobreviveram quando todos os seus aliados pereceram, quando os próprios fogos do Inferno se acenderam para fazer arder até à morte os seus seguidores. Saíram de França, levando a lança com eles, mas o meu tio roubou-a e ocultou-a. Mais tarde, descobria e agora abençoará a nossa batalha.

Sir Simon nada disse. Limitou-se a fitar a lança com um olhar de quase assombro.

Henry Colley, alheio a esse momento de fervor, puxava o nariz.

- O mundo está podre - disse o Harlequin. - A Igreja é corrupta e os reis fracos. Está no nosso poder, sir Simon, fazermos um mundo novo, amado por Deus. Porém, para que assim seja, será necessário destruir o antigo. Teremos de tomar nós o poder e depois devolvê-lo a Deus. É por isso que lutamos.

Henry Colley pensou que o francês estava simplesmente louco, mas sir Simon tinha uma expressão maravilhada.

- Dizei-me - o Harlequin olhava para sir Simon -, qual é a bandeira de batalha do rei inglês.

- É o pendão do dragão - respondeu sir Simon.

O Harlequin ofereceu-lhe um dos seus raros sorrisos.

- Não será um presságio? - perguntou e, a seguir fez uma pausa. - Vou dizer-vos o que acontecerá hoje - continuou. - O rei de França chegará impaciente e quererá atacar sem demora. O dia correrá mal para o nosso lado. Os ingleses vão escarnecer de nós, pois não conseguiremos romper as suas fileiras, mas depois, levarei a lança para a batalha e veremos Deus alterar o combate. Arrebataremos a vitória a partir de um desaire. Ides fazer prisioneiro o filho do rei inglês e talvez mesmo capturemos o próprio Eduardo. A nossa recompensa será o favor de Filipe de Valois. É por isso que combatemos, sir Simon, pelo favor do rei, um favor que significa poder, riquezas e terras. Partilhareis dessa riqueza, mas apenas desde que entendeis ter de usar esse poder para purgar a Cristandade daquilo que está podre. Seremos um flagelo contra o mal.

Louco varrido, pensou Henry Colley. Completamente tonto. Viu o Harlequin erguer-se e dirigir-se ao cesto de uma besta de onde retirou um quadrado de pano que, depois de desdobrado, mostrou ser afinal um pendão vermelho, no qual um estranho animal com chifres, presas e garras, se erguia nos quartos traseiros para tocar, com as patas da frente numa taça.

- É este o pendão da minha família - disse o Harlequin, prendendo a bandeira com fitas negras, à longa lança de prata. - Durante muitos anos, sir Simon, este pendão esteve proibido em França, pois os seus donos combateram contra o rei e contra a Igreja. As nossas terras foram destruídas e o castelo está ainda danificado, mas hoje seremos heróis e este pendão receberá de novo os devidos favores - enrolou a bandeira na lança para esconder o yale. - Hoje, a minha família ressuscitará - declarou com fervor.

- Qual é a vossa família? - perguntou sir Simon.

- Chamo-me Guy de Vexille - admitiu o Harlequin. - E sou conde de Astarac.

Sir Simon nunca ouvira falar de Astarac, mas gostou de saber que o seu amo era um digno nobre e, para demonstrar a sua obediência, ergueu as mãos em homenagem a Guy de Vexille.

- Não vos desapontarei, senhor - afirmou sir Simon com humildade pouco habitual.

- Deus não nos desapontará hoje - afirmou Guy de Vexille. Tomou nas suas as mãos de sir Simon. - Hoje - ergueu a voz para falar a todos os cavaleiros -, destruiremos Inglaterra.

Porque tinha a lança.

E aproximava-se o real exército francês.

E os ingleses tinham-se oferecido para a matança.



- Flechas - disse Will Skeat. Encontrava-se à entrada do bosque, junto a um monte de feixes acabados de descarregar de uma carroça, mas logo se deteve. - Deus do Céu! - olhava para Thomas. - Parece que uma ratazana te comeu o cabelo - franziu a testa. - Mas fica-te bem. Finalmente parece que cresceste. Flechas! - repetiu. - Não as desperdicem - atirou os feixes, um a um, aos arqueiros. - Parecem muitas, mas a maior parte de vós, leprosos malditos, nunca entraram numa batalha como deve ser, e as batalhas engolem flechas como as rameiras engolem... Bom dia, padre Hobbe!

- Arranjas-me um feixe, Will?

- Não o desperdiceis com pecadores, padre - disse Will, lançando um molho ao padre. - Matai uns franceses, tementes a Deus.

- Não existe tal coisa. São todos crias de Satanás.

Thomas desfez o feixe e meteu as flechas na aljava, prendendo outro ao cinto. Tinha duas cordas no elmo, a salvo da chuva que ameaçava cair.

Ao acampamento dos arqueiros, viera um ferreiro, martelar as lâminas das espadas, machados, facas e podões e a seguir afiar-lhes os gumes com a sua pedra de amolar. O homem, que tinha percorrido o exército, afirmou que o rei fora para Norte, procurar um campo de batalha, mas que ele próprio calculava que os franceses não viriam naquele dia.

- Tanto trabalho para nada - resmungara ao afiar a espada de Thomas. - Isto é um trabalho francês - disse, espreitando a comprida lâmina.

- De Caen.

- Podias vender isto por bom dinheiro - elogiou de má vontade. - Aço bom. Antigo, claro, mas muito bom.

Agora, já fornecidos de flechas, os arqueiros meteram os seus haveres numa carroça que se juntaria ao resto da equipagem do exército. Um homem, doente da barriga, guardá-la-ia durante aquele dia, enquanto um segundo inválido serviria de sentinela às montadas. Will Skeat ordenou que levassem a carroça e depois fitou os arqueiros reunidos.

- Os bastardos vêm aí - rosnou. - Se não for hoje é amanhã, e são muito mais do que nós, não têm fome, todos possuem boas botas e pensam que a sua trampa cheira a rosas, só por serem franceses, mas morrem como toda a gente. Atirai-lhes aos cavalos e estareis vivos para ver o pôr do Sol. Lembrai-vos de que não têm bons arqueiros, de modo que não vão vencer. Não é difícil de perceber. Mantende a calma, apontai aos cavalos, não desperdiceis flechas e escutai as ordens. Vamos, rapazes.

Atravessaram o rio baixo, mais um dos muitos bandos de arqueiros que saíam de entre as árvores para entrar na aldeia de Crécy, onde os cavaleiros andavam de um lado para outro, batendo com os pés e chamando escudeiros e pajens para lhes apertarem uma correia ou soltarem uma fivela para tornarem a armadura mais confortável. Inúmeros cavalos, ligados uns aos outros pelos arreios, eram conduzidos para trás do monte, juntamente com as mulheres, as crianças e a equipagem do exército, que deveriam instalar-se dentro de um círculo de carroças. O Príncipe de Gales, armado da cintura para baixo, comia uma maçã verde junto à igreja, acenando distraidamente com a cabeça aos homens de Skeat que respeitosamente se descobriam. Não havia sinais de Jeanette e Thomas perguntava a si próprio se teria fugido sozinha. Depois achou que não se importava.

Eleanor caminhava a seu lado. Tocou-lhe na aljava.

- Tens flechas suficientes?

- Depende de quantos franceses vierem - respondeu Thomas.

- Quantos ingleses há? - Os rumores falavam de oito mil homens, metade dos quais arqueiros, e Thomas calculava que fosse verdade. Foi o número que adiantou a Eleanor, fazendo-a franzir a testa.

- E quantos são os franceses? - perguntou.

- Só o Senhor sabe - disse Thomas, calculando que seriam bem mais do que oito mil, muitos mais, mas nada poderia fazer, de modo que tentou esquecer a disparidade dos números enquanto os arqueiros subiam ao monte em direcção ao moinho.

Passaram para o lado de lá do cume e viram diante de si a longa encosta. Por instantes, Thomas teve a impressão de que uma enorme feira estava a ser montada. Alegres bandeiras, pontilhavam o monte, com grupos de homens passeando entre elas, faltando apenas os ursos a dançar e alguns malabaristas para ser semelhante à feira de Dorchester.

Will Skeat detivera-se em busca do pendão do conde de Northampton, depois deu por ele no lado direito da encosta, mesmo abaixo do moinho. Desceu com os seus homens e um soldado mostrou-lhe a marca do local de onde os arqueiros deveriam combater.

- E o conde quer que escavem buracos para os cavalos - disse o homem-de-armas.

- Ouviram todos? - gritou Will Skeat. - Toca a cavar!

Eleanor ajudou Thomas a abrir as covas. O solo estava duro e tiveram de usar as facas para soltar a terra que depois retiravam com as mãos.

- Porque abris buracos? - perguntou Eleanor.

- Para fazer cair os cavalos - respondeu Thomas, afastando com os pés a terra, antes de começar a abrir outro. Perto da encosta do monte os arqueiros dedicavam-se a abrir covas idênticas, a vinte passos das suas posições. Os cavaleiros inimigos poderiam carregar num galope rápido, mas os buracos haveriam de os impedir. Poderiam atravessá-los, mas lentamente, o que lhes quebraria o ímpeto da carga. Enquanto tentassem ultrapassar as covas traiçoeiras, ficariam sob o ataque dos arqueiros.

- Pronto - disse Eleanor, apontando e Thomas viu um grupo de cavaleiros no cimo do monte. Tinham chegado os primeiros franceses e olhavam para o vale, onde o exército inglês se reunia lentamente sob os seus pendões.

- Ainda vai levar horas - afirmou Thomas. Aqueles franceses eram apenas a vanguarda enviada para observar o inimigo, enquanto o corpo principal viria ainda a marchar de Abbeville. Os besteiros, que certamente conduziriam o ataque, estariam todos apeados.

À direita de Thomas, onde a encosta descia até ao rio e à aldeia, erguia-se uma improvisada fortaleza de carroças vazias. Tinham-nas juntado para formar uma barreira contra os cavaleiros e entre elas tinham sido colocados os trons. Não os que se tinham demonstrado incapazes de deitar abaixo o castelo de Caen, mas outros muito mais pequenos.

- Ribaldos - disse Will Skeat a Thomas.

- Ribaldos?

- Ribaldos, é assim que se chamam - acompanhou Thomas e Eleanor pela encosta para verem os trons, que mais pareciam estranhos feixes de tubos de ferro.

Os artilheiros remexiam a pólvora, enquanto outros desfaziam os feixes de garros, os longos projécteis de ferro, semelhantes a flechas que seriam metidos dentro dos tubos. Alguns ribaldos tinham oito canos, outros sete e ainda outros, apenas quatro.

- Malditas coisas inúteis - exclamou Skeat, com despeito. - Mas talvez assustem os cavalos - fez um aceno aos arqueiros que escavavam os buracos diante dos ribaldos. Havia ali vários, Thomas contou trinta e quatro e estavam ainda outros a ser arrastados. Porém, continua a ser necessária a protecção dos arqueiros.

Skeat encostou-se a uma carroça e ficou a olhar o monte distante. Não estava calor, mas sentia-se a transpirar.

- Estás doente? - perguntou Thomas.

- Tenho as entranhas a arder - admitiu Skeat. - Mas não vale a pena fazeres uma festa. - Havia agora cerca de quatrocentos cavaleiros franceses sobre o monte e mais outros apareciam por entre as árvores. - Pode não acontecer - disse Skeat em voz baixa.

- A batalha?

- Filipe de França está nervoso - respondeu Skeat. - Tem o costume de marchar para combater, e depois decidir que prefere ficar a divertir-se em casa. - É o que tenho ouvido dizer. Bastardo nervoso - encolheu os ombros. - Mas se pensar que hoje tem possibilidades, então, Tom, a coisa vai ser feia.

Thomas sorriu.

- E as covas? E os arqueiros?

- Não sejas imbecil, rapaz - retorquiu Skeat. - Nem todos os buracos vão partir pernas, nem todas as flechas vão acertar no alvo. Podemos impedir a primeira carga, talvez a segunda, mas continuarão a avançar e por fim, hão-de conseguir. São muitos. Vão ficar por cima de nós, Tom, e terão de ser os homens-de-armas a dar-lhes uma boa coça. Mantém a calma, rapaz e lembra-te que têm de ser os soldados a fazer o trabalho mais perto deles. Se os bastardos conseguirem passar os buracos, então pega no arco, espera por um alvo e tenta ficar vivo. Se perdermos? - encolheu os ombros. - Foge para a floresta e esconde-te lá.

- Que diz ele? - perguntou Eleanor.

- Que hoje vai ser fácil.

- Não sabes mentir, Thomas.

- São muitos - continuou Skeat, quase falando sozinho. - Tommy Dugdale enfrentou piores trabalhos na Bretanha, Tom, mas tinha muitas flechas. Aqui são escassas.

- Vai tudo correr bem, Will.

- Sim, sim. Talvez - Skeat desencostou-se da carroça. - Vão andando. Preciso de encontrar um lugar sossegado por uns minutos.

Thomas e Eleanor dirigiram-se para norte. A linha inglesa formava-se agora, com as bandeiras a serem recolhidas pelos homens-de-armas agrupados em bloco. Os arqueiros ficavam adiante de cada formação, enquanto os marechais, armados com hastes brancas, se asseguravam de que existiam fendas na linha, através das quais, os arqueiros pudessem escapar, se os cavaleiros se aproximassem demasiado. Tinham ido à aldeia buscar feixes de lanças, que eram entregues aos homens-de-armas da primeira fila para que, se os franceses ultrapassassem as covas e as flechas, elas pudessem ser usadas como piques.

A meio da manhã todo o exército se reunira no monte. Parecia muito maior do que realmente era, pois as mulheres tinham ficado com os seus companheiros e estavam agora sentadas sobre a erva ou então deitadas a dormir. O Sol fraco apareceu e desapareceu fazendo correr sombras pelo vale. Os buracos tinham sido escavados e os trons carregados. Talvez uns mil franceses olhavam do monte distante, mas nenhum se aventurava a descer a encosta.

- Pelo menos é melhor que marchar - disse Jake. - Assim podemos descansar, não é?

- Vai ser um dia fácil - alvitrou Sam e apontou com a cabeça para o monte. - Afinal não são assim tantos.

- É apenas a vanguarda, idiota - respondeu Jake.

- Vão vir mais? - Sam parecia verdadeiramente surpreendido.

- Vão aparecer todos os bastardos que há em França - disse Jake. Thomas manteve-se em silêncio. Imaginava o exército a percorrer a estrada de Abbeville. Todos os franceses saberiam que os ingleses tinham deixado de fugir, que estavam à espera e, apressavam-se sem dúvida para não perderem a batalha. Estariam confiantes. Fez o sinal da Cruz e Eleanor, sentindo o seu receio, tocou-lhe no braço.

- Não te vai acontecer nada - disse.

- A ti também não, meu amor.

- Lembras-te da promessa que fizeste ao meu pai? - perguntou. Thomas acenou com a cabeça, mas não conseguiu convencer-se de que veria a lança de São Jorge naquele dia. Aquele dia era real, enquanto que a lança pertencia a um mundo misterioso do qual Thomas não queria verdadeiramente fazer parte. Pensou que todos se preocupavam apaixonadamente com a relíquia e apenas ele, que até tinha algumas razões para querer saber a verdade, ficava indiferente. Desejou nunca ter visto a lança, desejou que o homem que dava pelo nome de Harlequin nunca tivesse ido a Hookton. Porém, se os franceses não tivessem lá desembarcado, não carregaria agora o arco negro, não estaria naquela encosta verdejante, nem sequer teria conhecido Eleanor. Disse para consigo que não poderia voltar as costas a Deus.

- Se vir a lança, lutarei por ela - prometeu a Eleanor. Era essa a sua penitência, embora continuasse a ter esperança de não ser obrigado a cumpri-la.

Comeram pão bolorento à refeição do meio-dia. Os franceses eram uma massa negra no monte distante, demasiados para se poderem contar e a primeira parte da infantaria chegara já. Um aguaceiro obrigou os arqueiros a recolher apressadamente as cordas que tinham já penduradas da ponta do arco e a guardarem-nas debaixo do elmo ou do chapéu até a chuva passar. O vento fazia ondular a erva.

E os franceses continuavam a chegar ao monte. Eram uma horda e tinham vindo a Crécy em busca de vingança.



Os ingleses aguardaram. Dois arqueiros de Skeat tocavam flautas de cana, enquanto os hobelardos, que ajudavam a proteger os trons nos flancos do exército, cantavam canções que falavam de bosques verdes e regatos serpenteantes. Alguns homens executavam danças como se se encontrassem nas festas da sua aldeia, outros tinham adormecido, alguns lançavam dados e todos, excepto os que estavam a dormir, lançavam continuamente o olhar para o outro lado do vale, até ao cume longínquo, que se enchia de homens.

Jake fazia passar pelos outros arqueiros um bocado de cera de abelha embrulhado em linho, para que todos pudessem polir os arcos. Não que fosse necessário, apenas porque lhes ocupava o tempo.

- Onde arranjaste a cera? - perguntou-lhe Thomas.

- Roubei-a, claro, a um homem-de-armas imbecil. Creio que é polimento para selas.

Iniciaram uma discussão, a respeito da melhor madeira para fazer flechas. Era uma antiga quezília, mas assim o tempo passava mais depressa. Todos sabiam que as melhores eram de freixo, mas alguns homens gostavam de dizer que as de vidoeiro, de faia-branca ou até mesmo de carvalho também davam bons resultados. O amieiro, embora pesado, era bom para matar veados, mas exigia uma cabeça pesada e não tinha alcance suficiente numa batalha.

Sam retirou uma das novas flechas da aljava e mostrou a todos como estava empenada.

- Deve ter sido feita de um maldito espinheiro negro - queixou-se amargamente. - Esta até dá a volta a uma esquina.

- Já não fazem flechas como antigamente - disse Will Skeat, e os arqueiros troçaram pois a queixa já era antiga.

- É verdade - continuou Will. - Hoje em dia faz-se tudo à pressa e nada com arte. Quem se importa? Os patifes são pagos ao feixe, os feixes são mandados para Londres e ninguém olha para eles até que nos chegam às mãos. Depois, que havemos nós de fazer? Olhem para isto! - Pegou na flecha de Sam e fê-la girar por entre os dedos. - Isto não é uma pena de ganso!

É do raio de um pardal. Não serve senão para coçar o traseiro - atirou-a a Sam. - Não. Um arqueiro que se preze faz as suas próprias flechas.

- Eu costumava fazê-las.

- Mas agora és um preguiçoso, não é verdade, Tom? - Skeat sorriu mas ficou imediatamente sério ao olhar para o vale. - Quantos bastardos malditos - resmungou, olhando para os franceses que se reuniam e logo fez uma careta, quando um solitário pingo de chuva lhe caiu sobre as botas gastas.

- Quem me dera que chovesse para acabar já com tudo. É o que vai acontecer. E se nos chover em cima quando os bastardos atacarem, o melhor será fugirmos para casa, pois os arcos não disparam.

Eleanor estava sentada junto de Thomas e olhava o monte distante. Naquele momento, havia lá, pelo menos, tantos homens quantos os que faziam parte do exército inglês e o principal batalhão francês só agora começara a chegar. Homens-de-armas a cavalo espalhavam-se pelo monte, organizando-se em conrois. Um conroi era a unidade básica de combate para um cavaleiro ou homem-de-armas e a maior parte tinha entre doze e vinte homens, mas aqueles que formavam a guarda pessoal dos grandes senhores eram muito maiores. Havia agora tantos cavaleiros no cume distante que alguns tinham já de se espalhar pela encosta, transformada numa onda de cor. Os homens-de-armas usavam túnicas bordadas, com as insígnias dos seus amos, e os cavalos estavam cobertos por coloridos caparazões, enquanto que os pendões franceses acrescentavam mais azul, vermelho, amarelo e verde. Porém, apesar das cores, continuava a predominar o cinzento do aço e da malha. Em frente dos cavaleiros estavam os primeiros gibões verdes e vermelhos dos besteiros genoveses. Eram ainda poucos, mas muitos mais percorriam já o monte para se juntarem aos seus camaradas.

Soou uma ovação no centro inglês. Thomas inclinou-se e viu que os arqueiros tentavam pôr-se de pé. O seu primeiro pensamento foi que os franceses deveriam ter atacado, contudo, não viu cavaleiros inimigos, nem flechas a voar.

- De pé! - gritou Will Skeat de repente. - Já de pé!

- Que se passa? - perguntou Jake.

Foi então que Thomas viu os cavaleiros. Não eram franceses, mas sim uma dezena de ingleses que cavalgavam ao longo da linha de batalha, mantendo cuidadosamente os cavalos afastados dos buracos dos arqueiros. Três deles transportavam pendões e uma das bandeiras era um enorme estandarte com lírios e leopardos emoldurados a ouro.

- É o rei - disse um homem e os arqueiros de Skeat soltaram gritos de entusiasmo.

O rei deteve-se e falou com os soldados no centro da linha, para depois partir a trote em direcção à direita inglesa. A sua escolta estava montada em enormes corcéis mas o rei cavalgava uma égua cinzenta. Envergara a sua túnica colorida e estava de cabeça descoberta, tendo pendurado no arção da sela o elmo com a coroa. O estandarte real, vermelho, dourado e azul adiantava-se às bandeiras e, logo atrás, via-se a insígnia pessoal do rei, ostentando um flamejante sol nascente; em terceiro lugar, e provocando a maior ovação, surgiu o galhardete com o dragão de Wessex a cuspir fogo. Era a bandeira de Inglaterra, dos homens que tinham combatido contra o Conquistador e o descendente deste rei, cavalgando a sua égua cinzenta, fazia-a agora flutuar, mostrando que era inglês, tal como os homens que, entretanto, o aclamavam.

Deteve-se junto aos homens de Will Skeat e ergueu a lança branca para silenciar os gritos. Os arqueiros haviam tirado os elmos da cabeça e alguns tinham mesmo ajoelhado. O rei parecia ainda jovem, de cabelo e barba tão loiros como o sol do seu estandarte.

- Sinto-me grato - começou numa voz rouca, que o obrigou a fazer uma pausa, para de novo recomeçar. - Sinto-me grato por aqui estardes. - Recomeçaram as aclamações e Thomas, que gritava juntamente com os outros, nem perguntou a si próprio se teriam tido outra alternativa. O rei ergueu a lança branca a pedir silêncio. - Como vedes, os franceses, decidiram reunir-se a nós! Talvez se sintam sós! - Não tivera grande graça, mas provocara gritos e risos que se transformaram em vaias ao inimigo. O rei sorriu, enquanto esperava que os gritos terminassem. - Viemos aqui - prosseguiu - apenas para procurar os direitos, as terras e os privilégios que são nossos, pelas leis de Deus e dos homens. O meu primo francês desafia-nos e ao fazê-lo, desafia Deus - os homens estavam agora em silêncio, escutando com toda a atenção. Os corcéis da escolta do Rei batiam com as patas no solo, mas os homens continuavam imóveis. - Deus não suportará a falta de pudor de Filipe - continuou o rei. - Castigará a França e vós - ergueu a mão para apontar os arqueiros - sereis o Seu instrumento. Deus está convosco e prometo-vos, juro-vos diante de Deus e pela minha vida, que não abandonarei este campo, até que o último homem do meu exército tenha marchado para sair daqui. Ficaremos juntos neste monte, combateremos juntos e venceremos juntos, por Deus, por São Jorge e pela Inglaterra!

Os gritos de aclamação recomeçaram e o rei sorria e acenava com a cabeça, voltando-se depois, quando o conde de Northampton saiu da linha. O rei inclinou-se na sela e escutou-o por momentos, depois endireitou-se e sorriu mais uma vez.

- Há aqui um mestre Skeat?

Skeat corou imediatamente, mas não quis denunciar a sua presença. O conde sorria, o rei aguardava e, por fim, duas dezenas de arqueiros apontaram o seu chefe.

- Está aqui!

- Vinde cá! - ordenou o rei, muito sério.

Will Skeat parecia embaraçado ao passar em frente aos arqueiros, para se aproximar do cavalo do rei, junto ao qual pôs um joelho em terra. Sua Majestade ergueu a espada de punho de rubis e tocou com ela no ombro de Skeat.

- Disseram-nos que éreis um dos nossos melhores arqueiros, assim, e a partir de agora, sereis sir William Skeat.

Os arqueiros gritaram ainda mais. Will Skeat, agora sir William, manteve-se ajoelhado, enquanto o rei picou o cavalo e avançou, para poder fazer o mesmo discurso aos últimos homens da linha e àqueles que manobravam os trons no círculo das carroças. O conde de Northampton que fora, simplesmente, o responsável pela investidura de Skeat como cavaleiro, fê-lo erguer-se e conduziu-o de volta aos seus homens, que o aclamaram. Skeat continuava ruborizado enquanto os arqueiros batiam-lhe nas costas.

- Que grande disparate - disse a Thomas.

- Bem o mereces, Will - disse Thomas, mas depois sorriu. - Sir William.

- Só que vou ter de pagar ainda mais caros os malditos impostos, não é verdade? - disse Skeat, mesmo assim satisfeito. Depois, franziu a testa quando um pingo de chuva lhe caiu na cabeça descoberta. - As cordas dos arcos! - gritou.

A maior parte dos homens mantinha ainda as cordas guardadas, mas alguns tiveram de as enrolar quando a chuva começou a cair com mais força. Um dos homens-de-armas do conde foi ter com os arqueiros, e ordenou que as mulheres voltassem para junto da equipagem no cimo do monte.

- Ouvistes o que disse! - gritou Will Skeat. - As mulheres para junto da equipagem!

Algumas delas choravam, porém, Eleanor agarrou-se a Thomas apenas mais um momento.

- Vive - disse simplesmente e depois afastou-se à chuva, passando pelo Príncipe de Gales que, com mais seis homens a cavalo, se dirigia ao seu posto entre os soldados, por trás dos arqueiros de Will Skeat. O príncipe decidira combater a cavalo, para poder ver por cima das cabeças dos homens apeados; para marcar a sua chegada, o pendão, maior que qualquer outro, fora içado debaixo da forte chuvada, no lado direito do campo.

Thomas já não conseguia ver o outro extremo do vale, porque as pesadas cortinas de chuva vindas de Norte o varriam, e obscureciam o ar. Nada mais havia a fazer senão sentar-se à espera, enquanto as costas de couro da sua cota de malha iam ficando frias e moles. Encolhia-se desanimado, olhando para o dia cinzento, sabendo que nenhum arco poderia disparar com precisão se aquela chuva não terminasse.

- O que eles deveriam fazer era carregar já - alvitrou o padre Hobbe, que se sentara ao lado de Thomas.

- Não encontram o caminho nesta bruma, padre - disse Thomas. Viu que o sacerdote tinha um arco e uma aljava, mas mais nenhum equipamento para a batalha. - Deveríeis arranjar uma cota de malha - disse. - Ou pelo menos um gibão almofadado.

- Estou armado com a minha fé, meu filho.

- Onde estão as cordas do vosso arco? - perguntou Thomas, pois o padre não tinha nem elmo, nem barrete.

- Enrolei-as em redor do meu... ora, não interessa. Tem de servir para mais alguma coisa que não seja urinar, não achas? E, ao menos lá, ficam secas - o padre Hobbe parecia indecentemente alegre. - Percorri as linhas, Tom, procurei a tua lança. Não está lá.

- Não me surpreende nada, com mil demónios - respondeu Thomas. - Nunca pensei que estivesse.

O padre Hobbe ignorou a blasfémia.

- Tive uma conversa com o padre Pryke. Conhece-lo?

- Não - disse Thomas, sem desperdiçar palavras. A chuva caía em bátegas diante do seu elmo e batia-lhe na cana do nariz. - Como raio haveria eu de conhecer o padre Pryke?

O padre Hobbe não desanimou, diante do mau humor de Thomas.

- E o confessor do rei e um grande homem. Em breve será bispo. Perguntei-lhe o que sabia dos Vexilles - o padre Hobbe fez uma pausa, mas Thomas nada disse. - Lembra-se da família - continuou. - Disseme que tinham terras no Cheshire, mas que apoiavam os Mortimers no começo do reinado de Sua Majestade, por isso foram ilegalizados. Disse mais uma coisa. Sempre foram considerados piedosos, mas o seu bispo suspeitava que tivessem idéias estranhas. Um toque de gnosticismo.

- Cátaros - respondeu Thomas.

- Parece provável, não achas?

- E se é uma família piedosa, então decerto não lhe pertenço - ripostou Thomas. - Não é bom?

- Não te escapas, Thomas - disse o padre Hobbe em voz baixa. O seu cabelo geralmente despenteado estava colado à cabeça com a chuva. - Prometeste a teu pai. Aceitaste a penitência.

Thomas abanou a cabeça, zangado.

- Há aqui muitos patifes, padre, que assassinaram mais homens do que eu - apontou os arqueiros acocorados, açoitados pela chuva. - Ide tratar das almas deles e deixai a minha em paz.

O padre Hobbe abanou a cabeça.

- Foste escolhido, Thomas e eu sou a tua consciência. Ocorre-me, vê lá, que se os Vexilles apoiaram os Mortimers não podem amar o nosso rei. Provavelmente hoje estarão ali em frente - apontou com o queixo para o outro lado do vale, ainda oculto pela chuva torrencial.

- Então viverão mais um dia, não é verdade? - perguntou Thomas. O padre Hobbe franziu a testa.

- Pensas que vamos perder? - perguntou sério. - Não!

Thomas estremeceu.

- Parece que a tarde está a avançar, padre. Se não atacarem agora, vão esperar até amanhã de manhã, o que lhes dará um dia inteiro para nos dizimarem.

- Ah, Thomas! Como Deus te ama.

Thomas nada disse, mas pensou que tudo o que desejava era ser arqueiro, e tornar-se sir Thomas de Hookton, tal como Will se tornara sir William. Sentia-se feliz a servir o rei e não precisava de um amo celeste, que o levasse para estranhas batalhas, contra senhores negros.

- Permiti que vos dê um conselho, padre.

- Será sempre bem-vindo, Thomas.

- Ficai com o elmo e a cota de malha do primeiro bastardo que cair. Olhai por vós.

O padre Hobbe bateu nas costas de Thomas.

- Deus está do nosso lado. Ouviste o próprio rei dizê-lo - ergueu-se e foi falar com outros homens, deixando Thomas sentado, sozinho, a ver a chuva diminuir, por fim. Já via as árvores ao longe, as cores dos pendões e das túnicas francesas e agora, a massa vermelha e verde dos arqueiros, do outro lado do vale. Calculou que não sairiam dali, pois as cordas das bestas eram tão susceptíveis à humidade, como quaisquer outras.

- Vai ser amanhã - disse para Jake. - Amanhã repetiremos tudo.

- Esperemos que haja sol - respondeu Jake.

O vento trouxe as últimos pingos de chuva, vindos do Norte. Era tarde. Thomas pôs-se de pé, espreguiçou-se e bateu com os pés. Um dia desperdiçado, pensou, tendo por diante uma noite de fome.

E no dia seguinte, a sua primeira batalha.



Um grupo de entusiasmados cavaleiros juntara-se em volta do rei francês, que se encontrava ainda a meia milha do monte, onde se reunira a maior parte do seu exército. Pelo menos dois mil homens-de-armas marchavam ainda à retaguarda, mas os que tinham chegado ao vale eram em número muito superior aos ingleses que os aguardavam.

- Dois para um, senhor! - disse veementemente Charles, conde de Alençon e irmão mais novo do rei. Como o resto dos cavaleiros, tinha a túnica encharcada e a cor da insígnia a debotar para o linho branco. O elmo estava coberto de gotas de água. - Temos de os matar já! - insistia o conde.

Mas o instinto de Filipe de Valois ordenava-lhe que aguardasse. Pensou que seria mais sensato, deixar que todo o exército se reunisse, para fazer o devido reconhecimento e depois atacar na manhã seguinte. Porém, tinha consciência de que os seus companheiros, principalmente o irmão, pensavam que exagerava nas cautelas. Julgavam-no mesmo tímido, já que evitara até ali um combate com os ingleses. A proposta de mais um dia de espera poderia levá-los a pensar que não tinha coragem suficiente para a sua elevada função de rei. Mesmo assim atreveu-se a fazer a sugestão de que a vitória seria mais completa, se adiada por mais um dia.

- Mas se esperardes - disse Alençon, sarcástico -, Eduardo escapa-se durante a noite e amanhã enfrentaremos um monte vazio.

- Estão encharcados, têm frio e fome, estão prontos a ser dizimados - insistiu o duque da Lorena.

- E se não partirem, senhor - avisou o conde da Flandres. - Terão ainda mais tempo para cavar trincheiras e covas.

- E os sinais são bons - acrescentou John Hainault, companheiro do rei e senhor de Beaumont.

- Os sinais? - perguntou o rei.

John Hainault fez sinal a um homem de longa barba branca, abrigado numa capa negra, para que se aproximasse. Este assim o fez e logo se inclinou numa profunda reverência.

- Senhor, o Sol está em conjunção com Mercúrio e oposto a Saturno - disse. - E o melhor, nobre senhor, é que Marte se encontra na casa da Virgem. Indica vitória e não poderia ser mais propício.

Filipe gostaria de saber quanto ouro teria sido pago ao astrólogo para avançar com aquela profecia mas, mesmo assim, sentia-se também tentado a acreditar. Considerava insensato fazer o que quer que fosse, sem um horóscopo, mas não sabia onde se encontrava o seu próprio astrólogo. Provavelmente ainda na estrada de Abbeville.

- Avancemos agora! - Alençon insistia com o irmão.

Guy Vexille, conde de Astarac, levou o cavalo por entre a multidão que rodeava o rei. Viu um besteiro de gibão vermelho e verde, que era evidentemente o comandante dos genoveses, e dirigiu-se-lhe em italiano.

- A chuva afectou as cordas?

- Muito - admitiu Cario Grimaldi, chefe genovês. As cordas das bestas não podiam ser soltas como as dos vulgares arcos, pois a tensão era demasiado forte. Os homens tinham simplesmente tentado abrigar as armas sob os seus pouco apropriados gibões. - Deveríamos esperar até amanhã - insistiu Grimaldi. - E não podemos avançar sem os paveses.

- Que diz ele? - perguntou Alençon.

O conde de Astarac traduziu, para benefício de Sua Majestade e o rei, de longo rosto pálido, franziu a testa ao ouvir dizer que ainda não tinham chegado os enormes escudos ao abrigo dos quais, os besteiros ficavam protegidos das flechas inimigas, enquanto carregavam as suas desajeitadas armas.

- Quanto tempo demorarão ainda? - perguntou num lamento, mas ninguém sabia. - Quem sois? - perguntou finalmente o rei ao conde.

- Astarac, senhor - respondeu Guy de Vexille.

- Ah - era evidente que o rei não tinha a mínima idéia do que ou de quem era Astarac. Também não reconhecera o escudo de Vexille que exibia apenas o simples símbolo da Cruz. Todavia a montada e a armadura do conde eram ricas e o rei não negava a um homem o direito de lhe oferecer conselho. - Dizíeis, então, que as bestas não disparam?

- Claro que disparam! - interrompeu o conde de Alençon. - Os malditos genoveses não querem combater. Bastardos! - exclamou. - Os arcos ingleses também estarão molhados - acrescentou.

- As bestas ficarão mais fracas, senhor - explicou cuidadosamente Vexille, ignorando a hostilidade do irmão mais novo do rei. - As bestas disparam, mas sem o seu pleno alcance e força.

- Seria melhor aguardar? - perguntou o rei.

- Seria avisado, senhor - respondeu Vexille. - E principalmente deveríamos esperar pelos paveses.

- Qual o horóscopo para amanhã? - perguntou John Hainault ao astrólogo.

O homem abanou a cabeça.

- Amanhã, Neptuno aproxima-se das curvaturas, senhor. Não será uma conjunção benéfica.

- Ataquemos já! Estão molhados, cansados e com fome - insistiu Alençon. - Ataquemos já.

O rei continuava na dúvida, mas a maior parte dos grandes senhores mostrava-se confiante e insistiam nos seus argumentos. Os ingleses estavam encurralados e a demora de mais um dia sequer, poderia dar-lhes a possibilidade de fuga. Talvez que a sua frota tivesse mesmo chegado a Lê Crotoy? Ide, insistiam, mesmo com o dia já tão avançado. Ide e matai. Ide e vencei. Mostrai à Cristandade que Deus está do lado dos franceses. Ide, já. E o rei, porque era fraco e porque desejava parecer forte, rendeu-se aos desejos dos outros.

Assim, a auriflama foi retirada do rolo de couro e transportada para o seu lugar de honra, à frente dos homens-de-armas. Não era permitido a nenhuma outra bandeira marchar adiante do longo pendão vermelho que ondulava no seu pau cruzado, guardado por trinta cavaleiros escolhidos, com fitas vermelhas no braço direito. Os cavaleiros receberam as suas longas lanças e fechou-se o conrois, de modo que estes e homens-de-armas ficassem lado a lado. Os tambores retiraram as coberturas para a chuva das suas enormes caixas e Grimaldi, o comandante genovês, recebeu ordens peremptórias para avançar e matar os arqueiros ingleses. O rei persignou-se, enquanto duas dezenas de sacerdotes caíam de joelhos, sobre a erva molhada, e começavam a rezar.

Os nobres de França cavalgaram para o cimo do monte, onde os aguardavam os seus cavaleiros de cota de malha. Ao cair da noite teriam todos usado as espadas e haveria prisioneiros que bastassem para derrotar para sempre a Inglaterra.

Porque a auriflama se dirigia para a batalha.



- Com mil raios! - gritou Will Skeat assombrado, enquanto se levantava do chão. - Os bastardos vêm aí! - Justificava-se a sua surpresa pelo avanço da tarde, hora a que camponeses começavam a pensar regressar a casa, depois de terminada a sua lida.

Os arqueiros ergueram-se e ficaram a olhar. O inimigo não avançava ainda, mas uma horda de besteiros espalhava-se pelo fundo do vale enquanto, mais acima, cavaleiros e homens-de-armas franceses se armavam com as lanças.

Thomas pensou que se tratasse de uma simulação. Mais duas ou três horas e seria de noite, mas talvez os franceses se sentissem suficientemente confiantes da rápida derrota do adversário. Os besteiros avançavam por fim. Thomas retirou o elmo, para de lá tirar a corda, enrolou um extremo à ponta de osso, dobrou o arco para a fixar no outro entalhe. Teve de fazer um esforço e, só à terceira tentativa conseguiu ter a postos a arma negra. Jesus do Céu, pensou, avançavam realmente! Calma, disse para consigo, calma, mas sentia-se tão nervoso, como quando dera por si na encosta sobranceira a Hookton e, pela primeira vez, se atrevera a matar um homem. Abriu os cordões da aljava.

Os tambores começaram a soar do lado francês do vale e seguiu-se um enorme e inexplicável clamor; os homens-de-armas não se moviam e os besteiros continuavam muito distantes. As trombetas inglesas respondiam doces e claras, no moinho onde o rei estacionara uma reserva de soldados. Os arqueiros esticavam-se e batiam com os pés no chão por toda a encosta. Quatro mil arcos ingleses estavam retesados e prontos, mas uma vez e meia esse número de besteiros avançava já em direcção a eles; atrás desses seis mil genoveses, havia milhares de cavaleiros de cota de malha.

- Não têm paveses! - exclamou Will Skeat. - E as cordas devem estar húmidas.

- Não terão de se aproximar muito - o padre Hobbe apareceu de novo, junto de Thomas.

Este acenou com a cabeça, mas tinha a boca seca e não conseguiu responder. Uma besta em boas mãos, e as melhores eram certamente as dos genoveses, deveria ter mais alcance que um arco direito, mas não com a corda húmida. Esse alcance superior não seria grande vantagem, pois levava muito tempo a recarregar e, entretanto, um arqueiro poderia avançar e disparar seis ou sete flechas, antes do inimigo estar preparado para lançar o segundo virote; mesmo ciente desse desequilíbrio, Thomas sentia-se nervoso. O inimigo aparecia ser em tão grande número, os tambores franceses eram enormes panelas com peles grossas que faziam ressoar um eco infernal por todo o vale. Os cavaleiros inimigos avançavam, desejosos de picar as montadas, em direcção à linha inglesa que, esperavam, estivesse já profundamente ferida pelo assalto das bestas; entretanto os soldados ingleses reuniam-se, fechando a linha de modo a conseguir sólidas fileiras de escudos e aço. A malha tinia e chocalhava.

- Deus está convosco! - gritou um padre.

- Não desperdiceis flechas - ordenou Will Skeat. - Apontai bem, rapazes, apontai bem! Não vão aguentar muito - repetiu a mensagem enquanto avançava pela linha. - Parece que viste um fantasma, Tom.

- Dez mil fantasmas - respondeu este.

- Os bastardos são ainda mais - afirmou Will Skeat. Voltou-se para olhar para o monte. - Talvez doze mil cavaleiros? - sorriu. - São doze mil flechas, rapaz.

Havia seis mil besteiros e duas vezes mais homens-de-armas, reforçados pela infantaria, que surgia de ambos os flancos franceses. Thomas duvidava que aqueles soldados apeados pudessem tomar parte num qualquer combate, a menos que o quisessem transformar numa debandada. Apercebeu-se de que os besteiros poderiam provavelmente ser obrigados a recuar, pois apareciam sem paveses e empunhavam armas deterioradas pela chuva. Mas, para que tal acontecesse, seriam necessárias flechas, muitas flechas, que depois fariam falta para a massa de cavaleiros, cujas lanças pintadas e erguidas formavam uma floresta sobre o cume distante.

- Precisamos de mais flechas - disse para Skeat.

- Terás de te arranjar com as que tens - respondeu este. - Todos teremos de o fazer. Não podemos desejar o impossível.

Os besteiros fizeram uma pausa no sopé da encosta inglesa e formaram a linha, ainda antes de colocarem os virotes nas calhas. Thomas pegou na primeira flecha e beijou-lhe supersticiosamente a cabeça, formada por uma seta de aço, levemente ferrugento, com uma ponta afiada e duas farpas aguçadas. Assentou-a na palma da mão esquerda e enfiou o entalhe da parte de trás no centro da corda, protegida do desgaste com um fio de cânhamo.

Começou retesar o arco, sentindo-se satisfeito com a sua resistência. A flecha estava já em posição à esquerda do punho. Soltou a tensão, segurou a flecha com o polegar esquerdo e dobrou os dedos da mão direita.

Sobressaltou-o um súbito toque de trombeta. Todos os trombeteiros e tambores franceses tinham entrado em ação, fazendo uma ruidosa cacofonia que obrigara os genoveses a avançar de novo. Trepavam a encosta inglesa, os seus rostos, manchas brancas, emolduradas pelo cinzento dos elmos. Os cavaleiros franceses desciam a encosta mas, lentamente e aos arranques, como se tentassem antecipar a ordem de carga.

- Deus está connosco! - exclamou o padre Hobbe. - Mantinha uma posição de arqueiro, com o pé esquerdo à frente, e Thomas viu que o sacerdote estava descalço.

- Que aconteceu às vossas botas, padre?

- Um pobre rapaz precisava mais delas do que eu. Já arranjo um par francês.

Thomas alisou as penas da sua primeira flecha.

- Esperai! - gritou Will Skeat. - Esperai! - Um cão saíra a correr da linha inglesa e o dono gritava-lhe que voltasse e, num segundo, metade dos arqueiros chamava o animal pelo nome.

- Biter! Biter! Vem cá, patife! Biter!

- Silêncio - rosnou Will Skeat, enquanto o cão, completamente confundido corria em direcção às linhas inimigas.

À direita de Thomas, os artilheiros, com os bota-fogos a fumegar, estavam acocorados junto às carroças. Os arqueiros encontravam-se dentro destas, com as armas preparadas. O conde de Northampton viera para o meio deles.

- Não devíeis estar aqui, meu senhor - disse Will Skeat.

- O rei arma-o cavaleiro - disse o conde - e ele pensa já poder dar-me ordens! - Os arqueiros sorriram. - Não mates todos os homens-de-armas, Will - continuou. - Deixa alguns para nós, que só temos espadas.

- Tereis a vossa oportunidade - respondeu, lúgubre, Will Skeat. - Esperai! - gritou para os arqueiros. - Esperai!

Os genoveses gritavam, à medida que vinham avançando, mas as suas vozes eram abafadas pelo violento troar dos tambores. O Biter voltava a correr para os ingleses e ouviu-se um clamor quando, por fim, o cão ficou ao abrigo da linha de batalha.

- Não desperdiceis as malditas flechas - gritava Will Skeat. - Apontai bem, como vos ensinaram as vossas mães!

Os genoveses estavam, por fim, ao alcance dos arcos, mas as flechas não voavam e os homens de gibão encarnado e verde continuavam a avançar, inclinando-se levemente enquanto desciam a encosta. Não vinham direitos aos ingleses, mas num ligeiro ângulo, o que significava que a direita da linha inglesa, onde Thomas se encontrava, seria atingida em primeiro lugar. Era também o local onde a encosta era mais íngreme e Thomas, com o coração aflito, apercebeu-se de que estaria provavelmente no centro do combate Depois os genoveses detiveram-se, formaram uma linha e soltaram o seu grito de guerra.

- Demasiado cedo - resmungou o conde.

As bestas tomaram posição. Estavam erguidas, pois os genoveses esperavam lançar uma grossa chuva de morte sobre a linha inglesa.

- Disparai! - disse Skeat e Thomas sentiu o coração acelerado ao puxar a corda dura, até junto da orelha direita. Escolheu um homem na linha inimiga, colocou a ponta da flecha directamente entre ele e o seu olho direito, inclinou o arco para a direita, para compensar o ângulo da arma, depois ergueu a mão esquerda e inclinou-o, para esse lado, pois era essa a direcção do vento, que nem era muito. Não pensara enquanto apontara a arma, era tudo instinto, mas estava ainda nervoso e um músculo estremecia-lhe na perna direita. A linha inglesa estava completamente silenciosa enquanto os besteiros gritavam e os tambores e as trombetas francesas faziam ouvir o seu toque ensurdecedor. A linha genovesa parecia formada por estátuas vermelhas e verdes.

- Vamos, seus bastardos! - resmungou um homem e os genoveses obedeceram-lhe. Seis mil virotes de besta descreveram uma curva no céu.

- Agora - disse Will, com calma surpreendente. E as flechas voaram.



Eleanor escondera-se junto à carroça que continha a equipagem dos arqueiros. Encontravam-se ali trinta ou quarenta mulheres, muitas delas com crianças e todas estremeciam ao ouvirem as trombetas, os tambores e os gritos distantes. Na sua maioria eram francesas ou bretãs, mas nenhuma desejava a vitória do lado oposto, com os seus homens a combater no monte verde.

Eleanor rezou por Thomas, por Will Skeat e pelo pai. As carroças da equipagem tinham sido estacionadas logo abaixo do cume do monte, de modo que não podia ver o que se passava; porém, ouvia a nota profunda e aguda do retesar das cordas dos arcos ingleses e depois a agitação do ar através das penas de milhares de flechas em voo. Estremeceu. Um cão, um dos muitos vadios adoptados pelos arqueiros, aproximou-se da carroça, a ganir. Afagou-o.

- Esta noite temos carne - disse ao animal. Corriam notícias de que o gado capturado em Lê Crotoy chegaria naquele dia ao exército. Se dele restasse alguém capaz de comer. Os arcos soavam de novo, mais espaçados. As trombetas continuavam a tocar e o troar dos tambores era constante. Olhou para cima, para o cume do monte, esperando ver as flechas no ar, mas apenas divisou uma nuvem cinzenta contra a qual se recortavam dezenas de cavaleiros. Esses homens faziam parte da pequena reserva de tropas do rei e Eleanor sabia que se os visse picar os cavalos e avançar, seria porque a linha principal fora ultrapassada. O estandarte do rei ondulava na vela mais alta do moinho, agitando-se na brisa para mostrar o doirado, o carmesim e o azul.

O vasto recinto da equipagem estava guardado apenas por duas dezenas de soldados doentes ou feridos, que não durariam mais de um minuto se os franceses irrompessem pela linha inglesa. A equipagem do rei, amontoada em três carroças, pintadas de branco, tinha uma dúzia de homens-de-armas a guardar as jóias reais mas, de contrário, havia apenas o grupo de mulheres e crianças e alguns dos jovens pajens, armados de curtas espadas. Os milhares de cavalos do exército também ali se encontravam, presos à entrada da floresta e vigiados por alguns aleijados. Eleanor reparou que a maior parte dos animais estavam selados como se homens-de-armas e arqueiros os quisessem a postos, no caso de terem de fugir.

Um padre estivera junto à equipagem real, mas quando soaram os arcos apressara-se a partir para o cume e Eleanor sentiu-se tentada a segui-lo. Pensou que seria melhor ver o que se passava, do que esperar ali, junto à entrada da floresta, temendo o que poderia acontecer. Fez uma festa ao cão e levantou-se, para se dirigir ao cimo do monte mas, nesse momento, viu a mulher que fora ter com Thomas naquela noite húmida na floresta de Crécy. A condessa de Armórica. Ricamente vestida, com um fato vermelho e o cabelo apanhado numa rede de prata, cavalgava uma pequena égua branca de um lado para outro, junto às carroças do príncipe. Fazia de vez em quando uma pausa para fitar o cimo do monte, lançando depois os olhos para a floresta de Crécy-Grange, a poente.

Um estrondo sobressaltou Eleanor, obrigando-a a voltar-se. Nada explicava o terrível ruído que misteriosamente soara como um trovão, sem que, no entanto, se tivesse visto o relâmpago ou que chovesse e o moinho continuava intacto. Depois, uma coluna de fumo branco acinzentado apareceu sobre as velas dobradas e Eleanor percebeu que os trons tinham sido disparados. Lembrou-se que se chamavam ribaldos e imaginava as suas flechas de ferro enferrujadas a cortarem a encosta.

Olhou de novo para a condessa, mas Jeanette desaparecera. Tinha cavalgado para a floresta, levando as jóias consigo. Eleanor viu o fato vermelho serpentear por entre as árvores. Assim, a condessa fugira, temendo as consequências da derrota e Eleanor, suspeitando que a mulher do príncipe pudesse saber mais que os arqueiros das perspectivas inglesas, fez o sinal da Cruz. Depois, sem poder aguentar a espera, subiu o monte. Se o seu amante morresse, pensou, queria estar junto a ele.

Outras mulheres a seguiram. Nenhuma falou. Ficaram apenas a olhar. E a rezar pelos seus homens.



A segunda flecha de Thomas estava no ar antes da primeira ter chegado ao ponto mais alto e começado a descer. Pegou na terceira, depois apercebeu-se de que disparara a segunda em pânico e fez uma pausa. Olhou para o céu nublado, estranhamente coberto com as negras flechas, densas como um bando de estorninhos e mais mortíferas que falcões. Não viu virotes de bestas, pegou depois na terceira flecha com a mão esquerda e escolheu um homem na linha dos genoveses. Ouviu-se uma estranha pancada que o sobressaltou e viu uma revoada de virotes genoveses baterem na turfa, junto às covas.

Um instante depois a primeira nuvem de flechas inglesas atingiu o alvo. Dezenas de besteiros foram obrigados a recuar, incluindo aquele que Thomas escolhera para o seu terceiro disparo; mudou então o alvo para outro homem, puxou a corda até à orelha e deixou a flecha voar.

- Estão a falhar! - exclamou exultante o conde de Northampton e alguns dos arqueiros soltaram impropérios, pensado que falava deles. Mas o nobre referia-se aos virotes genoveses que, enfraquecidos pela chuva, não tinham conseguido chegar aos arqueiros ingleses. Estes, por sua vez, ao verem a possibilidade de uma matança, soltaram uma ruidosa ovação e correram alguns passos pela encosta abaixo.

- Matai-os! - gritou Will Skeat.

Mataram-nos. Os enormes arcos soltaram-se mais uma vez e ainda outra e as flechas de penas brancas voavam pela encosta, para se espetarem na malha e no pano, transformando a parte inferior do monte num campo de morte. Alguns besteiros fugiam a coxear, outros rastejavam e os que se mantinham incólumes recuavam, em vez de disparar as suas armas.

- Apontai bem! - gritava o conde.

- Não desperdiceis flechas! - ordenava Will Skeat.

Thomas disparou de novo, retirou nova flecha da aljava, procurou outro alvo, pois a flecha anterior voara baixo e atingira a perna de um homem. A erva junto à linha genovesa estava cheia de setas que não tinham atingido o alvo mas, haviam acertado mais do que suficientes. A linha genovesa era agora muito mais débil e silenciosa, exceptuando os gritos dos que eram atingidos e os gemidos dos feridos. Os arqueiros avançaram uma vez mais até à beira das covas e uma nova onda de aço despejou-se pela encosta.

Os besteiros fugiram.

A princípio eram uma linha quebrada, ainda com muitos homens por trás dos corpos dos camaradas, depois uma turba em fuga para escapar às setas.

- Deixai de atirar! - gritou Will Skeat. - Basta!

- Basta! - gritou John Armstrong, cujos homens se encontravam à esquerda do bando de Skeat.

- Muito bem! - exclamou o conde de Northampton.

- Para trás rapazes, para trás! - ordenou Will Skeat aos arqueiros. - Sam! David! Ide rapidamente recuperar as flechas - apontou para a encosta onde, por entre genoveses, mortos e moribundos, as flechas de ponta branca estavam espetadas na erva. - Rápido, rapazes! John! Peter! Ide ajudá-los! Ide!

Os arqueiros corriam ao longo da linha, para as recuperarem mas, logo a seguir, um grito de aviso chegou dos homens que se tinham mantido nos seus postos.

- Para trás! Para trás! - gritou Will Skeat. Os cavaleiros avançavam.



Sir Guillaume d'Evecque comandava um conroi de doze homens, no extremo esquerdo da segunda linha de cavaleiros franceses. Diante de si havia a massa da cavalaria, pertencente ao primeiro batalhão e, à sua esquerda, espalhavam-se os homens de infantaria sentados na relva. Atrás deles, o pequeno rio serpenteava pelos prados junto à floresta. À direita, havia apenas um ajuntamento de cavaleiros, a aguardar que os besteiros enfraquecessem a linha inimiga.

Esta parecia tristemente pequena, talvez porque os homens-de-armas estivessem apeados e ocupassem menos espaço que os cavaleiros. Mesmo assim, sir Guillaume reconheceu de má vontade que o rei inglês tinha escolhido bem a sua posição. Os cavaleiros franceses poderiam não assaltar qualquer dos flancos, que estavam ambos bem protegidos por uma aldeia. Não poderiam cavalgar em redor da direita inglesa, guardada pelas terras húmidas, junto ao rio, enquanto que percorrer em círculo à esquerda de Eduardo, implicaria percorrer um longo caminho em redor de Wadicourt. No momento em que de novo os avistassem, já os arqueiros estariam decerto recolocados em linha, para seguirem de encontro à força francesa, entretanto espaçada pela volta enorme. Significava que apenas um ataque frontal poderia trazer-lhes uma rápida vitória, o que, por sua vez, significava cavalgar de encontro às flechas.

- Cabeças baixas, escudos ao alto e mantende-vos juntos - disse aos seus homens, antes de fechar a viseira do elmo. Depois, sabendo que não iria carregar tão depressa, voltou a erguê-la. Os homens-de-armas mudaram a posição dos cavalos até se encontrarem lado a lado. Dizia-se que o vento não deveria conseguir soprar por entre as lanças durante a carga de um conroi.

- Vai demorar ainda um pouco - avisou sir Guillaume.

Os besteiros fugitivos corriam pelo monte dominado pelos franceses. Sir Guillaume vira-os avançar e murmurara uma prece silenciosa para que Deus estivesse por trás daqueles genoveses. Que matem alguns dos malditos arqueiros, mas que poupem Thomas. Os tambores martelavam as enormes caixas, agitando os paus como se pudessem derrotar os ingleses só com barulho e sir Guillaume, emocionado pelo momento, poisara o cabo da lança no chão e utilizara-o como apoio para se erguer nos estribos e poder ver, sobre as cabeças dos homens, o que se passava na frente. Vira os genoveses soltarem os virotes, vira os projécteis, como uma rápida neblina no céu; depois os ingleses haviam disparado, as suas flechas pareciam uma mancha negra contra a verde encosta e as nuvens cinzentas e sir Guillaume apercebera-se de que os genoveses vacilavam. Olhara nessa direcção, para poder ver cair os arqueiros, mas pelo contrário, estes avançavam, continuando a disparar. Depois, os dois flancos da pequena linha inglesa tinham-se erguido numa onda branca, enquanto os trons juntavam os seus projécteis à nuvem de setas que girava pela encosta abaixo. O cavalo agitou-se com o eco dos canhões a ressoar pelo vale e sir Guillaume fez estalar a língua e sentou-se de novo na sela. Não podia afagar o animal, pois tinha a lança na mão direita e, com o braço esquerdo, sustentava o escudo com os três falcões amarelos num campo azul.

Os genoveses tinham desbaratado. A princípio sir Guillaume não quis acreditar, julgando que talvez o comandante tentasse enganar os arqueiros inimigos, provocando uma indisciplinada perseguição, que os espalharia pelo sopé do monte, onde as bestas se voltariam contra eles. Porém, os ingleses não se moveram e os genoveses em fuga não se detiveram. Corriam, deixando atrás uma densa linha de mortos e moribundos, trepando agora em pânico, na direcção dos cavaleiros franceses.

Entre estes soou um grito de fúria que logo se transformou num enorme clamor.

- Cobardes! - gritou um homem junto de sir Guillaume.

O conde de Alençon sentiu invadi-lo uma onda de pura raiva.

- Foram pagos! - disse em tom de desprezo para um companheiro. - Bastardos, aceitaram um suborno!

- Derrubai-os! - exclamou o rei, do seu posto, à entrada do bosque de faias. - Derrubai-os!

O irmão ouviu-o e imediatamente lhe quis obedecer. O conde encontrava-se na segunda linha, não na primeira, mas picou o cavalo, meteu-se por uma abertura entre dois homens do conroi principal e gritou aos seus homens que o seguissem.

- Derrubai-os! - gritou. - Derrubai os bastardos!

Os genoveses encontraram-se condenados entre os cavaleiros e a linha inglesa, pois por todo o monte os franceses começavam a avançar. Homens raivosos do segundo batalhão envolviam-se no conrois da primeira linha, formando uma massa irregular de pendões, lanças e cavalos. Deveriam ter conduzido as montadas pelo monte abaixo, para se manterem em ordem e todos juntos, até chegarem à encosta do outro lado, mas, pelo contrário, partiram a toda a pressa, conduzidos pelo ódio aos seus próprios aliados e tentando ultrapassar-se uns aos outros, para os matar.

- Nós ficamos! - gritou aos seus homens Guy Vexille, conde de Astarac.

- Esperai! - exclamou sir Guillaume. Seria melhor deixar terminar a primeira carga desenfreada, sem se juntar à loucura.

No monte ficaram talvez metade dos cavaleiros franceses. O resto, conduzido pelo irmão do rei, cavalgou atrás dos genoveses. Os besteiros tentavam fugir. Corriam pelo vale numa tentativa de atingir os extremos sul ou norte, mas a massa de cavaleiros atropelou-os e não houve saída possível. Alguns, mais sensatos, atiraram-se ao chão e enrolaram-se, outros acocoraram-se nas valas baixas, mas a maioria morreu ou ficou ferida quando os cavaleiros carregaram sobre eles. Os corcéis eram animais enormes, com cascos como martelos, treinados para derrubar homens. Os genoveses gritavam, ao serem atingidos e pisados.

Alguns cavaleiros atacavam os besteiros com lanças que, com o peso do cavalo e de um homem armado facilmente atravessavam as suas vítimas; porém, essas armas foram todas perdidas, deixadas nos troncos contorcidos dos mortos e obrigando depois os cavaleiros a erguerem as espadas. Por momentos houve o caos no fundo do vale, com os cavaleiros a perseguir os besteiros por mil atalhos. Depois ficaram apenas os restos mutilados dos mercenários genoveses, com os gibões verdes e vermelhos encharcados em sangue e as armas destruídas na lama.

Os cavaleiros, já com uma vitória fácil nas mãos, aclamavam-se uns aos outros.

- Montjoie Saint Denis! - gritavam. - Montjoie Saint Denis! Centenas de bandeiras avançavam, transportadas pelos cavaleiros, ameaçando ultrapassar a auriflama. Contudo, os cavaleiros das fitas vermelhas, que guardavam o pendão sagrado, picaram os cavalos para a frente da carga, gritando o seu desafio, ao partirem pela encosta em direcção aos ingleses, subindo do fundo do vale agora cheio de cavaleiros. As restantes lanças foram recolhidas, as esporas recuaram, mas alguns dos homens mais sensatos, que tinham ficado para trás, aguardando o assalto seguinte, não escutaram o troar dos cascos proveniente de uma enorme carga.

- Estão a pisar a lama - disse sir Guillaume sem, se dirigir a ninguém em particular.

No terreno baixo, amolecido pela chuva, a lama, espalhada pelos cascos, salpicava caparazões e túnicas. Por momentos a carga pareceu vacilar, depois os cavaleiros que a comandavam saíram do fundo húmido do vale e encontraram melhor terreno no monte inglês. Afinal, Deus estava com eles e podiam soltar o seu grito de guerra.

- Montjoie Saint Denis!

O som dos tambores era mais rápido que nunca, as trombetas berravam ao céu e os cavalos subiam em direcção ao moinho.

- Imbecis - disse Guy Vexille.

- Pobres almas - disse sir Guillaume.

- Que se passa? - perguntou o rei, interrogando-se porque seria que o seu cuidadoso ordenamento das linhas de batalha fora quebrado, mesmo antes do início do combate.

Porém, ninguém lhe respondeu. Limitaram-se a olhar.



- Jesus, Maria e José! - exclamou o padre Hobbe, parecendo-lhe que metade dos cavaleiros da cristandade vinha a subir o monte.

- Em linha! - gritou Will Skeat.

- Deus esteja convosco! - exclamou o conde de Northampton, retirando-se para se reunir com os seus homens-de-armas.

- Apontai aos cavalos! - ordenou John Armstrong, aos seus homens.

- Os bastardos atropelaram os próprios besteiros - disse Jake com assombro.

- Então vamos matar esse malditos! - exclamou Thomas, vingativo. A carga aproximava-se da linha dos genoveses mortos na tempestade de flechas. Para Thomas, que olhava o monte, o ataque parecia uma agitação de caparazões garridos, escudos coloridos, lanças pintadas e numerosos pendões e agora, como os cavalos tinham já saído do solo molhado, os arqueiros ouviam os cascos ainda mais ruidosos que os tímbales do inimigo. O solo estremecia fazendo Thomas sentir a vibração através das solas gastas das suas botas, presente de sir Guillaume. Procurou os três falcões mas, não os vendo, esqueceu imediatamente o cavaleiro, ao mesmo tempo que a sua perna esquerda avançava e o braço direito recuava. Sentiu junto à boca as penas da flecha e beijou-as, depois fixou o olhar num homem que transportava um escudo negro e amarelo.

- Agora! - gritou Will Skeat.

As flechas subiram, assobiando. Thomas meteu outra na corda, puxou-a e disparou. Uma terceira, desta vez escolhendo um soldado com um elmo em forma de focinho de porco, decorado com fitas vermelhas. Apontava sempre aos cavalos, esperando conseguir enfiar as setas afiadas através dos caparazões almofadados, e fazê-las penetrar fundo no peito dos animais. Uma quarta flecha. Via os bocados de terra e erva saltarem atrás das patas dos primeiros cavalos. A primeira flecha estava ainda no ar quando começou a retirar a quarta da aljava e procurou outro alvo. Fixou-se num homem sem túnica com um armadura de metal polido. Disparou mas, nessa altura o homem caiu para diante, enquanto o cavalo era atingido por outra flecha. Ao longo da encosta havia apenas cavalos a relinchar, cascos a bater e homens caídos; as flechas inglesas tinham atingido o alvo. Uma lança girou, subindo a encosta, um grito soou, por sobre o barulho dos cascos, um cavalo tropeçou noutro animal morto e partiu uma perna e os cavaleiros apertavam os joelhos de encontro às montadas, para as afastar das que já estavam mortas. Uma quinta flecha, uma sexta e, para os homens de armas por trás da linha de arqueiros, parecia que o céu estava repleto de um nunca acabar de setas de ponta branca, mais escuras que as nuvens, erguendo-se sobre a encosta, para depois mergulharem, ferindo os agitados soldados. Dezenas de cavalos tinham caído, os cavaleiros presos nas altas selas, eram pisados no chão, impotentes. Mesmo assim, chegavam outros e os homens na retaguarda apercebiam-se de que havia intervalos entre os montes de moribundos que se contorciam, para logo morrerem.

- Montjoie Saint Denis! Montjoie Saint Denis!

As esporas recuavam e faziam sangue. Para Thomas, a encosta era um pesadelo de agitados cavalos, de dentes amarelos e olhos brancos, de longas lanças e escudos espetados pelas setas, de lama, de pendões e de elmos cinzentos, com fendas para os olhos e orifícios para o nariz. Agitavam-se as bandeiras, conduzidas por uma enorme flâmula vermelha. Disparou uma e outra vez lançando as flechas para aquela loucura, porém, por cada cavalo caído outro tomava o seu lugar e ainda mais outro, lá atrás. Havia setas espetadas nos caparazões, nos cavalos nos homens, até nas lanças, as penas brancas estremecendo à medida que a carga estava mais próxima.

Depois a primeira ala francesa encontrou-se entre as covas; estalou o osso da perna de um corcel e o relincho do animal foi mais sonoro que os tambores, as trombetas, o entrechocar da malha e o bater dos cascos. Alguns homens contornavam os buracos, mas outros caíam levando os cavalos atrás de si. Os franceses tentavam acalmar as montadas e voltá-las, mas a carga estava agora em curso e os homens de trás empurravam os da frente de encontro às covas e às flechas. O arco bateu na mão de Thomas e a flecha que lançara enfiou-se na garganta de um homem, cortando-lhe a malha da cota como se fosse linho e obrigando-o a recuar e a erguer a lança ao céu.

- Para trás! - gritava Will Skeat. A carga estava muito próxima. Demasiado próxima. - Para trás! Para trás! Para trás! Agora! Vão!

Os arqueiros correram para as aberturas deixadas por entre os homens-de-armas e os franceses vendo desaparecer aqueles que os atormentavam, soltaram uma enorme ovação.

- Montjoie Saint Denis!

- Escudos! - gritou o conde de Northampton e os homens-de-armas ingleses juntaram-nos e ergueram as lanças para formar uma barreira de pontas.

- São Jorge! - gritou o conde. - São Jorge!

- Montjoie Saint Denis!

- Muitos cavaleiros tinham ultrapassado as flechas e as covas e mais homens-de-armas subiam o monte.

E agora, por fim, a carga atingia o seu alvo.



Dizem os entendidos que, se lançasse uma ameixa de encontro a um conroi, esta seria atravessada por uma lança. Era assim que os cavaleiros se deveriam manter unidos durante uma carga, pois desse modo haveria a possibilidade de que sobrevivessem. Porém, se o conroi se dividisse, cada um dos homens acabaria rodeado pelos inimigos. Os mais experientes contavam aos mais jovens que o vizinho numa carga de cavalaria, deveria ser-lhes mais próximo que uma esposa. Mais ainda, do que uma rameira. Porém, a primeira carga francesa fora um violento galope, e os homens espalharam-se depois de terem dizimado os genoveses e a confusão foi ainda maior enquanto subiam o monte para enfrentarem o inimigo.

A carga não deveria ser um violento galope, mas sim um assalto assustador, com ordem e disciplina. Os homens alinhados lado a lado, deveriam ter partido lentamente, todos juntos e só no último minuto terem picado as montadas para espetar ao mesmo tempo todas as lanças no alvo. Era assim que homens e corcéis estavam treinados para carregar. O instinto do cavalo, ao ter de enfrentar uma linha cerrada de homens ou de cavalaria era recuar, mas os enormes garanhões tinham sido violentamente treinados para continuarem a correr, atirando-se contra o inimigo e mantendo-se em movimento, esmagando, mordendo e escoiceando. Uma carga de cavaleiros deveria ser uma morte trovejante sobre cascos, um malhar de metal conduzido por um imenso peso de homens, cavalos e armaduras e, devidamente realizada, produzia um vasto número de viúvas.

Porém, os homens do exército de Filipe que tinham sonhado fazer o inimigo em tiras, dizimando os assombrados sobreviventes, não tinham contado com arqueiros e covas. Quando a primeira carga indisciplinada de franceses atingiu os homens-de-armas ingleses, estava já fragmentada e fora depois reduzida a passo devido à longa encosta, suave e convidativa, que acabara por se transformar numa corrida de obstáculos sobre cavalos mortos, cavaleiros derrubados, flechas sibilantes e poços que, escondidos na relva, partiam as pernas às montadas. Apenas uma meia dúzia de homens conseguiu aproximar-se do inimigo.

Estes aceleraram nos últimos metros, apontando as lanças aos homens-de-armas apeados, para serem recebidos por armas idênticas que se apoiavam no chão e se ergueram para espetar os peito dos animais. Os garanhões atiraram-se de encontro às lanças, deram meia volta e derrubaram os franceses. Os soldados ingleses avançaram com machados e espadas para acabar com eles.

- Mantende-vos em linha - gritou o conde de Northampton. Mais cavalos tropeçavam nas covas, sem arqueiros na frente para lhes abrandar a marcha. Eram as terceira e quarta alas da carga francesa. Tinham sofrido menos danos das flechas e vinham ajudar os companheiros no ataque a linha inglesa que ainda lhes respondia com lanças. Soltavam gritos de batalha, investiam com espadas e machados e os cavalos moribundos arrastavam as lanças inimigas, para que os franceses pudessem, enfim, cercar os homens-de-armas. O aço batia no aço, mas cada cavaleiro tinha de enfrentar dois ou três soldados e os franceses estavam a ser arrastados das selas e esquartejados no chão.

- Nada de prisioneiros! - gritou o conde de Northampton. - Nada de prisioneiros!

Eram aquelas as ordens do rei. Fazer um prisioneiro, significava uma possível riqueza, mas também um momento de cortesia para perguntar se o inimigo de fato se rendia e os ingleses não tinham tempo para tais delicadezas. Precisavam apenas de matar os cavaleiros que continuavam a aparecer no monte.

O rei, assistindo por baixo das velas do moinho que rangiam quando o vento torcia as suas cordas, viu que os franceses tinham ultrapassado os arqueiros apenas à direita, onde o filho combatia, onde a linha mais se aproximava do inimigo e onde a encosta era mais suave. A grande carga fora impedida por flechas, mas tinham sobrevivido cavaleiros mais do que suficientes que avançavam agora a toda pressa para o local onde já soavam espadas. Quando a carga começara, os franceses tinham-se espalhado por todo o campo, mas depois iam-se juntando, para formar uma cunha, à medida que os homens que enfrentavam a esquerda inglesa se afastavam dos arqueiros e acrescentavam o seu peso aos cavaleiros e homens-de-armas que atacavam o batalhão do Príncipe de Gales. Centenas de cavaleiros andavam ainda em círculo pelo fundo lamacento do vale, nada desejosos de enfrentar pela segunda vez uma tempestade de setas. Porém, os marechais franceses obrigaram-nos a formar de novo e enviavam-nos pelo monte acima, em direcção à refrega cada vez mais violenta, que se travava sob os pendões de Alençon e do Príncipe de Gales.

- Deixai-me ir até lá, senhor - implorou o bispo de Durham, deselegante na sua pesada cota de malha e empunhando a enorme clava com espigões.

- Não vão passar - disse Eduardo, em voz baixa. A sua linha de homens-de-armas tinha quatro alas e apenas as primeiras duas combatiam, mas combatiam bem. A maior vantagem de um cavaleiro sobre a infantaria era a rapidez, mas a carga francesa fora destituída de velocidade. Os cavaleiros eram forçados a seguir a passo, para ultrapassarem os cadáveres e as covas, e não havia espaço em frente, para pôr a trote as montadas antes de se defrontarem com a cruel defesa de machados, espadas, clavas e lanças. Os franceses investiam, mas os ingleses erguiam bem alto os escudos, metendo as lâminas nos ventres dos cavalos ou passando-lhes as espadas pelos jarretes. Os corcéis caíam, relinchando e escoiceando, partindo as pernas dos homens com os movimentos bruscos mas, cada cavalo por terra era mais um obstáculo acrescentado e, embora violento, o assalto francês não conseguia ultrapassar a linha. Nenhum pendão inglês caíra ainda por terra, embora o rei temesse pela colorida bandeira do filho, que era a que mais próxima estava de um combate violento.

- Haveis visto a auriflama? - perguntou aos membros do seu séquito.

- Caiu, senhor - disse um cavaleiro da casa real, apontando para a encosta, onde um monte de cavalos mortos e homens feridos era tudo o que restava do primeiro ataque francês.

- Algures por ali. Flechas.

- Deus abençoe as flechas - respondeu o rei.

Um conroi de catorze franceses conseguiu ultrapassar ileso todos os buracos.

- Montjoie Saint Denis! - gritavam, com as lanças em riste, enquanto picavam os cavalos para entrar na refrega, sendo recebidos pelo conde de Northampton e por mais uma dezena de homens.

O conde usava uma lança quebrada como pique e, metendo a haste partida no peito de um cavalo, sentiu-a deslizar na armadura escondida pelo caparazão, o que instintivamente o fez erguer o escudo. Uma clava chocou contra ele fazendo penetrar um dos espigões no couro e na madeira de salgueiro. Mas o conde deixou cair a lança pois tinha a espada presa a uma correia, agarrou-lhe o punho e enfiou-a na pata do cavalo, obrigando o animal a girar sobre si. Libertou o escudo do espigão da clava, brandiu a espada em direcção ao cavaleiro que aparou o golpe, mas depois, um soldado agarrou na arma do francês e puxou. Este fez o mesmo, mas o conde ajudou e o francês soltou um grito ao ser derrubado aos pés dos ingleses. Uma espada entrou-lhe na armadura no sítio do baixo-ventre obrigando-o a dobrar-se; depois uma clava bateu-lhe no elmo, deixando-o a estrebuchar, enquanto o conde e os seus homens lhe passavam por cima do corpo, para atacar o cavaleiro seguinte e a sua montada.

O Príncipe de Gales picou o cavalo para entrar na refrega e tornou-se notado pelo filete dourado que lhe rodeava o elmo escuro. Tinha apenas dezasseis anos, era bem constituído, forte, alto e soberbamente treinado. Afastou um machado com o escudo e cortou com a espada a cota de malha de outro cavaleiro.

- Desmontai do maldito cavalo! - gritou o conde de Northampton. - Desmontai do maldito cavalo! - Correu em direcção ao Príncipe, pegou-lhe nas rédeas e afastou o animal do combate. Um francês picou a sua montada, tentando atingir com a lança as costas de Eduardo, mas um homem-de-armas com a libré verde e branca bateu com o escudo no focinho do corcel, o animal deu uma volta e afastou-se.

O conde obrigou o príncipe a recuar.

- Vêem um homem a cavalo, senhor - exclamou - e pensam logo que é francês.

O príncipe acenou com a cabeça. Neste momento já os cavaleiros da sua casa real tinham chegado junto dele e ajudavam-no a descer da sela. Nada disse. Se se sentiu ofendido pelo conde, escondeu-o por trás da viseira e voltou para o combate.

- São Jorge! São Jorge! - O porta-estandarte do príncipe esforçava-se por acompanhar os seu amo e a bandeira ricamente bordada atraía ainda mais franceses em fúria.

- Em linha - gritava o conde. - Em linha! - Porém, os cavalos mortos e os homens esquartejados transformavam-se em obstáculos que nem os franceses, nem os ingleses conseguiam ultrapassar, obrigando os homens-de-armas, conduzidos pelo príncipe a tropeçarem nos corpos para chegar ao inimigo. Um cavalo esventrado arrastou as tripas em direcção aos ingleses, depois dobrou os quartos dianteiros, lançando o seu cavaleiro na direcção do príncipe que imediatamente bateu com a espada no elmo do homem, lacerando-lhe a viseira e fazendo jorrar o sangue das fendas dos olhos.

- São Jorge! - o Príncipe exultava, com a armadura negra manchada de sangue do inimigo. Combatia com a viseira erguida, pois de contrário não conseguia ver bem e estava a adorar aquele momento. Provavam ter valido a pena as horas e horas de treino de armas, os dias estafantes em que os sargentos o tinham exercitado, batendo-lhe no escudo e soltando impropérios por ele não erguer bem alto a ponta da espada. Não queria mais nada da vida: uma mulher no acampamento e o inimigo aparecendo às centenas para ser morto.

A cunha francesa alargava-se, à medida que mais homens subiam o monte. Não tinham ultrapassado a linha, mas tinham puxado as duas primeiras alas inglesas sobre um amontoado de mortos e feridos, dividindo os soldados em grupos de homens que se defendiam contra uma turba de cavaleiros. O príncipe encontrava-se entre eles. Alguns franceses, sem cavalo, mas incólumes, lutavam apeados.

- Avante! - gritou o conde de Northampton para a terceira ala.

Já não era possível manter a apertada muralha de escudos. Tinha de entrar no meio do horror para proteger o príncipe e os homens seguiram-no para dentro do turbilhão de cavalos, lâminas e carnificina. Tropeçavam nos cavalos mortos, tentavam evitar os cascos dos animais moribundos e enfiavam as espadas nos vivos para derrubar os cavaleiros que depois esquartejavam no chão.

Cada francês tinha dois ou três peões ingleses contra quem combater e apesar dos cavalos arreganharem os dentes e baterem com os cascos e os cavaleiros brandirem as espadas à direita e à esquerda, os ingleses apeados acabavam por mutilar, invariavelmente, os corcéis, fazendo com que cada vez mais franceses caíssem sobre a erva pisada, para serem mutilados ou apunhalados até à morte. Alguns franceses, embora reconhecendo a futilidade, recuavam para trás dos buracos para formar novos conrois entre os sobreviventes. Os escudeiros trouxeram-lhes novas lanças e os cavaleiros, de novo armados e sedentos de vingança, voltavam para a luta, cavalgando sempre em direcção à colorida bandeira do príncipe.

O conde de Northampton estava agora próximo do pendão. Bateu com o escudo no focinho de um animal, cortou-lhe as pernas e apunhalou a coxa do cavaleiro. Da direita surgiu um novo conroi, com três homens, ainda empunhando as lanças, e outros com espadas bem erguidas. Batiam nos escudos da guarda pessoal do príncipe, obrigando esses homens a recuar, mas outros, de verde e branco, vieram em seu auxílio e o príncipe afastou dois deles para atingir o pescoço de um corcel. O conroi recuou deixando para trás dois cavaleiros mortos.

- Formai linha! - gritou o conde. - Formai linha!

Houve uma acalmia na luta em redor do estandarte do príncipe, enquanto os franceses se reagrupavam.

E, nesse momento, o segundo batalhão francês, tão grande como o primeiro, começou a descer o monte. Vinham a passo, lado a lado, com as lanças tão juntas que o vento não poderia passar entre elas.

Mostravam o que era uma formação.

Os trovejantes tambores impeliam-nos. As trombetas enchiam o céu.

E os franceses chegavam para terminar a batalha.



- Oito - disse Jake.

- Três - disse Sam a Will Skeat.

- Sete - disse Thomas.

Contavam as flechas. Nenhum arqueiro tinha ainda morrido, pelo menos no bando de Will Skeat, mas as flechas eram perigosamente escassas. Skeat continuava a olhar sobre as cabeças dos homens-de-armas, temendo que os franceses passassem, mas a linha aguentava. De vez em quando, quando não havia no caminho qualquer cabeça ou pendão inglês, um arqueiro soltava uma das preciosas flechas em direcção a um cavaleiro, mas quando a seta era desperdiçada por embater num elmo, Skeat dizia-lhes que poupassem as que ainda tinham. Um rapaz trouxera da equipagem uma dezena de odres com água e os homens passavam-nos entre si.

Skeat contou as flechas e abanou a cabeça. Ninguém tinha mais que dez, enquanto que o padre Hobbe, que admitia ter começado com menos que os outros, não tinha nenhuma.

- Ide ao cimo do monte, padre - pediu Skeat ao sacerdote. - Vede se guardaram flechas. Pode ser que os arqueiros do rei tenham algumas que nos possam dispensar. O capitão chama-se Hal Crowley e é meu conhecido. De qualquer forma, perguntai-lhe - não parecia ter grandes esperanças. - Pronto rapazes, por aqui! - disse para os outros, e conduziu-os ao extremo sul da linha inglesa, que os franceses não tinham bloqueado e depois para a frente dos homens-de-armas, para reforçar outros arqueiros que, com tão poucas flechas como os restantes, mantinham um desorganizado assédio a qualquer grupo de cavaleiros que lhes ameaçassem as posições. Os trons continuavam a disparar intermitentes, junto ao campo de batalha, cuspindo um ruidoso fedor a fumo de pólvora. Porém, Thomas poucas provas via de que os ribaldos matassem franceses, embora o ruído e o assobio dos seus projécteis de ferro, mantivesse o inimigo montado, bem longe do flanco.

- Vamos esperar aqui - disse Skeat, praguejando em seguida, ao ver a segunda linha francesa abandonar o cume do monte distante. Não se aproximava como a primeira, num caos entrecortado, mas com firmeza e em boa ordem. Skeat fez o sinal da Cruz.

- Rezai para que venham flechas - disse.

O rei observava o filho a combater. Ficara em cuidados, ao vê-lo avançar montado, mas acenou uma silenciosa aprovação quando viu que o jovem tivera o bom senso de desmontar. O bispo de Durham insistia para ser autorizado a partir em auxílio de Eduardo, mas o rei abanou a cabeça.

- Tem de aprender a vencer um combate - fez uma pausa. - Eu aprendi. O rei não tinha a mínima intenção de se meter naquele horror, não por temer a luta, mas porque, uma vez misturado com os cavaleiros franceses, não poderia observar o resto da sua linha. O seu dever era ficar junto ao moinho e enviar reforços às partes mais ameaçadas do exército. Os homens da sua reserva imploravam continuamente que lhes permitisse entrar na refrega, mas o rei recusava-se obstinadamente, mesmo depois de os ouvir queixarem-se de que ficariam com a honra manchada por não combaterem. O monarca não se atrevia a deixá-los ir, pois observava o segundo batalhão francês a descer o monte e sabia que os devia conservar para o caso de uma forte invasão de cavaleiros lhe danificar a linha.

A segunda linha francesa, com quase uma milha de largura e com três ou quatro alas de fundo, descia a encosta, com os cavalos pisando os mutilados cadáveres genoveses.

- Formai! - gritavam os chefes do conroi, depois de terem ultrapassado os corpos dos besteiros e os homens obedeceram formando, de novo, lado a lado, cavalgando no terreno mais mole. Os cascos não se ouviam praticamente sobre o solo húmido, de modo que os maiores ruídos da carga eram apenas o tinir das cotas de malha, o bater das bainhas e o varrer dos caparazões sobre a erva alta. Os tambores continuavam a tocar no monte, mas as trombetas ficaram mudas.

- Vedes o pendão do príncipe? - perguntou Guy Vexille a sir Simon Jekyll, que cavalgava a seu lado.

- Ali - Jekyll apontava com a arma para o local onde a refrega parecia mais violenta. Todo o conroi de Vexille tinha virolas nas lanças, colocadas a seguir à ponta, para que as hastes de madeira não se enfiassem no corpo das vítimas. Uma lança com virola podia ser arrancada de um moribundo e usada novamente. - A bandeira mais alta - acrescentou sir Simon.

- Segui-me! - gritou Vexille, fazendo sinal a Henry Colley, que recebera a incumbência de ser porta-estandarte. Sentia-se descontente com tal função, pensando que deveria ter sido autorizado a combater com lança e espada, mas sir Simon afirmara-lhe ser um privilégio transportar a lança de São Jorge e Colley viu-se forçado a aceitar. Assim que entrasse na refrega, planeava ver-se livre da haste inútil com a sua bandeira vermelha mas, por enquanto, erguia-a bem alto, enquanto cavalgava à frente da bem organizada linha. Os homens de Vexille seguiam o seu pendão e a partida do conroi deixou uma abertura na formação francesa. Alguns homens gritaram furiosos, acusando mesmo Vexille de cobardia, mas o conde de Astarac ignorou os insultos ao atravessar a traseira da linha até ao ponto em que julgou estarem os seus cavaleiros precisamente em posição oposta aos homens do príncipe e, encontrando aí uma abertura fortuita, meteu a montada nesse espaço e deixou que os homens o seguissem, o melhor que podiam.

Trinta passos à esquerda de Vexille, um conroi com insígnias mostrando falcões amarelos num campo azul, trotava subindo a encosta inglesa. Vexille não viu o pendão de sir Guillaume, nem este divisou o yale da insígnia inimiga. Observavam ambos o monte em frente, interrogando-se quando disparariam os arqueiros e admirando a bravura dos sobreviventes das primeiras cargas, que repetidamente se afastavam uns passos, formavam de novo e investiam sobre a teimosa linha inglesa. Nenhum deles parecia ameaça para o inimigo, mas, mesmo assim, tentavam, apesar de feridos e das montadas coxas. Depois, quando a segunda carga francesa se aproximou da linha dos genoveses mortos pelos arqueiros ingleses, soaram as trombetas no monte francês, os cavalos espetaram as orelhas e tentaram passar a galope. Os homens contiveram os corcéis e voltaram-se desajeitadamente nas suas selas para espreitarem pelas fendas da viseira e saberem a razão dos toques. Viram então que o último dos cavaleiros franceses, o rei e os guerreiros da sua casa, bem como o rei cego da Boémia e os seus companheiros, avançavam a trote, juntando à matança o seu peso e as suas armas. O rei de França cavalgava sob o seu pendão azul, salpicado de flores-de-lis douradas, enquanto a bandeira do rei da Boémia mostrava três plumas brancas num campo vermelho-escuro. Todos os cavaleiros de França estavam agora envolvidos. Os tambores transpiravam, os padres rezavam e os trombeteiros reais tocavam uma grande fanfarra como presságio de morte para o exército inglês.

O conde de Alençon, irmão do rei, que dera início à carga enfurecida que tantos franceses deixara mortos na distante encosta, tinha morrido, com uma perna partida, ao cair do cavalo, e o crânio esmagado por uma machado inimigo. Os homens que comandava, e que tinham sobrevivido estavam desorientados, picados pelas flechas, cobertos de suor e cansados, mas continuavam a combater, voltando os cavalos estafados para agredir com espadas, clavas e machados homens-de-armas que aparavam os golpes com escudos e agrediam com as suas espadas as patas dos animais. Depois uma nova trombeta soou, muito mais perto da refrega. Alguns cavaleiros, ouvindo as notas umas a seguir às outras, três a três e apressadas, registaram o aviso e perceberam que lhes davam ordem de se afastarem. Não ordem de retirar, mas de abrir caminho, pois o maior ataque estava ainda para vir.

- Deus salve o rei - disse severamente Will Skeat, já que lhe restavam dez flechas e meia França avançava na sua direcção.



Thomas notou o invulgar ritmo da batalha, nos estranhos abrandamentos de violência e na súbita ressurreição do horror. Os homens combatiam como demónios e pareciam invencíveis e depois, quando os cavaleiros se afastavam para se reagruparem, encostavam-se aos escudos e armas, parecendo próximos da morte. Os cavalos mexiam-se de novo, as vozes inglesas gritavam avisos e os homens-de-armas endireitavam-se e erguiam as espadas amolgadas. O barulho no monte era espantoso: de vez em quando, soavam os canhões, que pouco mais faziam que encher o campo de batalha com o negro fedor do inferno; ouviam-se relinchar os cavalos, o eco do bater do ferreiros nas armas e os homens ofegantes, aos gritos, a gemer. Os cavalos moribundos mostravam os dentes e batiam na erva. Thomas limpou o suor dos olhos e fitou a longa encosta coberta de animais mortos, às dezenas, talvez mesmo ás centenas. Por trás, já junto aos corpos dos genoveses que tinham morrido sob o ataque das flechas, ainda mais cavaleiros se aproximavam sob uma nova onda de coloridas bandeiras. Sir Guillaume? Onde estaria? Estaria vivo? Depois Thomas apercebeu-se de que a primeira carga tão terrível, em que as flechas tinham morto tantos cavalos e homens, fora apenas um prelúdio. A verdadeira batalha ia agora começar.

- Will! Will! - a voz do padre Hobbe chamava, vinda de algures, por trás dos homens-de-armas. - Sir William!

- Aqui, padre!

Os homens-de-armas abriram caminho para o padre, que trazia uma braçada de feixes de flechas e vinha acompanhado por um assustado rapazinho que transportava ainda mais.

- Uma oferta dos arqueiros reais - disse o padre Hobbe e espalhou os feixes sobre a erva. Thomas viu que tinham as penas vermelhas dos arqueiros do rei. Pegou na faca, cortou o cordão que as prendia e meteu-as na aljava.

- Em linha! Em linha! - gritava o conde de Northampton já rouco. Tinha uma profunda mossa no elmo, sobre a têmpora direita e a túnica manchada de sangue. O Príncipe de Gales gritava insultos aos franceses, que retiravam os cavalos, recuando por entre um emaranhado de mortos e feridos.

- Arqueiros! - chamou o conde, enviando de novo o príncipe para junto dos homens-de-armas que se incorporavam lentamente na formação. Dois deles recuperavam as lanças caídas do inimigo, para armarem de novo a ala da frente.

- Arqueiros! - chamou de novo o conde.

Will Skeat fez voltar os homens à sua antiga posição, diante do conde.

- Aqui estamos, meu senhor.

- Tendes flechas?

- Algumas.

- Serão bastantes?

- Algumas - respondeu Skeat, teimoso.

Thomas afastou uma espada partida que se lhe metera debaixo dos pés. Dois ou três passos à sua frente estava um cavalo morto, com moscas a cobrirem-lhe os enormes olhos brancos e o sangue brilhando-lhe no focinho negro. O caparazão era branco e amarelo e o cavaleiro que o montara estava debaixo dele, com a viseira erguida. Muitos franceses e quase todos os ingleses lutavam assim. Thomas viu fitarem-no os olhos do morto que, de repente, pestanejaram.

- Meu Deus - disse Thomas, como se tivesse visto um fantasma.

- Tende piedade - murmurou o homem em francês. - Por amor de Cristo, tende piedade.

Thomas não conseguia ouvi-lo, pois o ar estava cheio do troar dos cascos e do clamor da trombetas.

- Deixai-os! Estão derrotados! - gritou Will Skeat, porque alguns dos seus homens erguiam já os arcos contra esses cavaleiros que tinham sobrevivido à primeira carga e se tinham afastado para voltar a alinhar as suas alas ao alcance dos arcos. - Esperai! - gritou Skeat. - Esperai!

Thomas olhou à esquerda. Havia mortos e cavalos a cobrir mais de uma milha da encosta, mas parecia que os franceses tinham penetrado na linha inglesa apenas no local onde se encontrava. Agora voltavam. Limpou o suor da testa e ficou a ver a carga subir a encosta. Desta vez vinham lentamente, mantendo a disciplina. Um cavaleiro francês da ala da frente, usava no elmo plumas extravagantes, amarelas e brancas, como se participasse num torneio. Thomas pensou que era um homem morto, pois nenhum arqueiro resistiria a um alvo tão flamejante.

Thomas voltou-se para olhar a carnificina. Haveria ingleses entre os mortos? Parecia impossível que não os houvesse, mas não via nenhum. Um francês com uma flecha enfiada numa perna, andava em círculo por entre os cadáveres, e depois caiu de joelhos. Tinha a cota de malha cortada na cintura e a viseira do elmo presa apenas por um cravo. Por uns instantes, com as mãos enclavinhadas sobre o punho da espada, parecia estar em oração, depois caiu lentamente para a frente. Um cavalo ferido relinchou. Um homem tentou erguer-se e Thomas viu-lhe a cruz vermelha de São Jorge no braço, bem como as cores vermelha e amarela do conde Oxford no saiote. Afinal, havia também baixas inglesas.

- Esperai! - gritou Will Skeat e Thomas ergueu os olhos, para ver que os cavaleiros estavam mais perto, muito mais perto. Retesou o arco negro. Tinha disparado tantas flechas que os dois dedos calejados da sua mão direita estavam efectivamente feridos, e o lado da mão esquerda avermelhado do movimento das penas de ganso a roçarem-lhe a pele. Doíam-lhe os longos músculos das costas e dos braços. Tinha sede.

- Esperai! - gritou de novo Skeat e Thomas aliviou o arco umas polegadas. A ordem da segunda carga fora quebrada pelos corpos dos besteiros, mas os cavaleiros formavam de novo e estavam já ao alcance dos arcos. Porém Will Skeat, sabendo as poucas flechas que tinham, queria aproveitar todas elas.

- Apontai bem, rapazes - gritava. - Não as podemos desperdiçar, portanto apontem bem! Matem os malditos cavalos.

Os arcos esticavam-se ao máximo e a corda mordeu como fogo os dedos feridos de Thomas.

- Já! - gritou Skeat, e uma nova revoada de flechas partiu da encosta, desta vez com algumas penas vermelhas por entre as brancas. A corda do arco de Jake partiu-se e ele praguejou enquanto procurava substitui-la.

Partiu uma segunda revoada, com as penas a assobiar e, depois, as terceiras flechas estavam já na corda quando as primeiras atingiram o alvo. Os cavalos relinchavam e recuavam. Os cavaleiros estremeciam, apertavam as esporas como se percebessem que o caminho mais rápido para fugir às flechas era derrubar os arqueiros com a montada. Thomas disparava continuamente, sem pensar, procurando apenas um cavalo para atingir com a seta de aço, soltando a corda do arco. Pegou numa, de penas brancas e viu-a manchada de vermelho. Soube que tinha os dedos a sangrar pela primeira vez, desde a infância. Mesmo assim, voltou a disparar até ficar com eles em carne viva e quase chorar de dor. Entretanto, a segunda carga perdia coesão, à medida que as pontas aguçadas torturavam as montadas e os cavaleiros tropeçavam nos corpos, deixados pelo primeiro ataque. Os franceses viam-se impedidos, incapazes de investir contra a revoada de setas, mas sem querer retirar. Caíam cavalos e homens, os tambores continuavam a soar e os cavaleiros da retaguarda empurravam as alas da frente para o chão ensanguentado, onde as covas os esperavam e as flechas os atingiam. Thomas disparou uma vez mais, viu as penas vermelhas entrarem no peito de um cavalo, depois procurou mais na aljava, e encontrou apenas uma. Praguejou.

- Flechas? - perguntou Sam, mas ninguém as podia dispensar. Thomas disparou a última, depois deu meia volta para procurar, em vão, uma fenda entre os homens-de-armas por onde pudesse escapar aos cavaleiros, que certamente viriam agora que as flechas se tinham esgotado. Sentiu-se invadido por puro terror. Não havia fuga possível e os franceses avançavam. A seguir, quase sem pensar, meteu a mão direita por baixo da ponta de osso do arco e ergueu-o bem alto sobre os homens-de-armas ingleses para que caísse atrás deles. A arma transformara-se agora num incómodo de que tinha de se livrar; pegou num escudo caído, pedindo a Deus que tivesse uma insígnia inglesa e enfiou o braço esquerdo nas correias apertadas. Sacou da espada e recuou entre duas lanças erguidas por homens-de-armas. Os outros arqueiros faziam o mesmo.

- Deixai entrar os arqueiros! - gritou o conde de Northampton. - Deixai-os entrar! - Porém, os soldados temiam o rápido avanço dos franceses e não queriam abrir fileiras.

- Prontos! - gritou um homem. - Prontos! - Ouvia-se-lhe uma nota de histeria na voz. Agora que se tinham esgotado as flechas, os cavaleiros franceses subiam a encosta por entre cadáveres e covas. Tinham baixado as lanças e faziam rolar as esporas para conseguirem um último arranco dos animais antes de atacarem o inimigo. Os caparazões estavam manchados de sangue e picados pelas flechas. Thomas viu uma lança, ergueu o escudo que não lhe pertencia e pensou que os rostos de aço do inimigo pareciam monstruosos.

- Vai correr tudo bem, rapaz - disse atrás dele uma voz calma. - Segura bem o escudo e avança para o cavalo.

Thomas lançou-lhe um olhar e viu tratar-se do grisalho Reginald Cobham, o velho campeão, em pessoa, que se encontrava na ala da frente.

- Preparai-vos! - gritou Cobham.

Os cavalos estavam quase em cima deles, enormes e altos, com as lanças em riste, o ruído dos cascos e o som da malha a tinir em redor. Ao mesmo tempo que atacavam, os franceses cantavam vitória.

- Agora matai-os! - gritou Cobham.

As lanças bateram nos escudos e Thomas foi lançado para trás, sentiu um casco bater-lhe num ombro, mas um homem empurrou-o com força de encontro ao cavalo do inimigo. Não tinha espaço para usar a espada e o escudo esmagava-se-lhe contra a anca. Sentiu nas narinas o fedor do suor e do sangue do cavalo. Qualquer coisa lhe atingiu o elmo, fazendo-lhe estremecer o crânio e obscurecer a visão. Depois, a pressão desapareceu milagrosamente, divisou a luz do dia e avançou hesitante, brandindo a espada na direcção em que pensava estar o inimigo.

- Levantai o escudo! - gritou uma voz que o levou a obedecer instintivamente, para logo sentir a pancada sobre ele, porém tinha já a visão mais nítida e viu à sua esquerda, um caparazão de cores vivas e um pé coberto de malha, num enorme estribo de couro. Enfiou a espada pelo caparazão, direita à barriga do cavalo e o animal torceu-se. Thomas foi arrastado, mas conseguiu libertar a lâmina com um forte puxão, que o obrigou a chocar contra um escudo inglês.

A carga não abrira a linha, mas chocara com ela como uma onda contra um rochedo. Os cavalos recuaram e os homens-de-armas ingleses avançaram de encontro aos cavaleiros, que abandonavam as lanças e sacavam das espadas. Thomas foi empurrado para o lado pelos homens-de-armas. Estava ofegante, desorientado e o suor caía-lhe para os olhos e não o deixava ver. Doía-lhe a cabeça. Viu um arqueiro morto à sua frente com a cabeça esmagada pela pata de um cavalo. Porque não teria elmo? Depois, os homens-de-armas recuavam à medida que os cavaleiros se metiam por entre os mortos, engrossando a luta, chegando-se todos eles ao alto pendão do Príncipe de Gafes. Thomas agrediu fortemente o focinho de um cavalo com o escudo, sentiu uma pancada de raspão na espada e enfiou a lâmina no flanco do animal. O cavaleiro combatia contra um homem do outro lado da montada, permitindo que Thomas lhe visse uma pequena abertura entre o alto arção da sela e a cota de malha, por onde enfiou a lança atingindo-o no ventre. Depois ouviu o furioso rugido do cavaleiro transformar-se num grito e o cavalo caiu para cima dele. Conseguiu escapar com algum esforço, empurrando o homem do seu caminho, antes que o animal caísse num estrondo de armadura e cascos. Os homens-de-armas ingleses correram por cima da montada moribunda, tentando ir de encontro ao inimigo mais próximo. Um cavalo, com um enorme garro de ferro enfiado na garupa, escoiceava tentando atacar com as patas. Outro tentou morder Thomas que lhe bateu com o escudo e atacou o cavaleiro com a espada, porém, o homem afastou-se e Thomas procurou desesperado outro soldado inimigo.

- Nada de prisioneiros! - berrava o conde, vendo que um soldado tentava retirar um francês da refrega. O conde perdera o escudo e brandia a espada com ambas as mãos, como se se tratasse de um machado, desa-fiando os franceses a virem ter com ele. E foi o que fizeram. Cada vez mais cavaleiros entravam naquele horror que parecia não ter fim. O céu estava cheio da cor das bandeiras e manchado do aço, a erva arrancada pelo ferro e escorregadia do sangue. Um francês bateu com a extremidade inferior do escudo num elmo inglês, fez rodar o cavalo, enfiou uma espada nas costas de um arqueiro, girou mais uma vez a montada e atacou o homem ainda desorientado pela pancada do escudo.

- Montjoie Saint Denis! - gritou.

- São Jorge! - O conde de Northampton, com a viseira erguida e o rosto manchado de sangue, enfiou a espada numa fenda da protecção do focinho do cavalo e arrancou um olho ao animal. Este recuou e o cavaleiro caiu, sendo pisado pela montada que vinha atrás. O conde procurou o príncipe, não o viu, mas não pôde continuar a busca, pois um novo conroi com cruzes brancas e escudos negros avançava por entre a refrega, empurrando amigos e inimigos para os afastar do caminho, lanças em riste em direcção ao estandarte do príncipe.

Thomas viu aproximar-se uma lança perdida e atirou-se para o chão, onde se enrolou sobre si mesmo, deixando passar os cascos dos cavalos.

- Montjoie Saint Denis! - gritavam as vozes sobre ele ao mesmo tempo que o conroi do conde de Astarac atingia o seu alvo.



Sir Guillaume d'Evecque nunca vira nada igual. E esperava não o voltar a ver. Era um enorme exército, contra uma linha de homens apeados.

Na verdade, a batalha não estava ainda perdida e sir.Guillaume convencera-se de que a poderiam vencer, mas tinha também consciência da estranha lentidão que o invadia. Gostava da guerra. Adorava a libertação da batalha, o impor da sua vontade ao inimigo e sempre aproveitara do combate, porém, de súbito, não teve vontade de carregar monte acima, pois aquele local estava condenado. Tentou esquecer essa ideia e fez rolar as esporas.

- Montjoie Saint Denis! - gritou, sabendo porém que o entusiasmo era fingido.

Mais ninguém nas fileiras parecia afectado pela dúvida. Os cavaleiros começavam a empurrar-se uns aos outros, ao tentarem atirar as lanças para as fileiras inglesas. Muito poucas flechas voavam já e nenhuma proveniente do caos, mais adiante, onde a bandeira do Príncipe de Gales flutuava bem alta. Os cavaleiros carregavam agora ao longo da linha, atacando as fileiras inglesas com espadas e machados, mas cada vez mais homens apareciam na encosta para se juntarem à fúria da ala direita inglesa. Era ali, pensou sir Guillaume, que a batalha seria ganha e os inimigos derrotados. Evidentemente que o ataque às tropas do príncipe seria duro e com enorme derramamento de sangue, mas uma vez que os cavaleiros franceses estivessem na retaguarda da linha inglesa, esta cairia como madeira podre e nenhum reforço do alto do monte poderiam deter o pânico. Por isso luta, disse para consigo, luta, mas mesmo assim sentia ainda dentro de si um teimoso receio de cavalgar de encontro à desgraça. Nunca sentira nada daquilo e detestava-o, amaldiçoando-se por ser tão cobarde!

Um cavaleiro francês, apeado, com a viseira do elmo arrancada e o sangue a escorrer-lhe da mão, que segurava a espada partida, enquanto na outra agarrava os restos de um escudo feito em dois, vacilava monte abaixo, caindo depois de joelhos para vomitar. Um cavalo sem cavaleiro, com os estribos a bater, galopava de olhos em alvo, pela linha da carga, com o caparazão rasgado a arrastar pela erva. A turfa estava salpicada de penas brancas das flechas caídas e parecia um campo de flores.

- Ide! Ide! Ide! - gritou sir Guillaume aos seus homens, sabendo que era a si que se dirigia. Nunca enviava homens para o campo de batalha, pedia-lhes, sim, que viessem, que o acompanhassem. Amaldiçoou-se por usar aquelas palavras e procurou uma vítima para a sua lança. Olhou para as covas e tentou ignorar a confusão que havia à sua direita. Planeava alargá-la entrando pela linha inimiga num local um pouco mais calmo. Morre como um herói, disse para consigo, ergue bem alto essa maldita lança, sobe o monte e não deixes que nenhum homem possa dizer que sir Guillaume d'Evecque era um cobarde.

Depois, um enorme clamor ergueu-se à direita e ele atreveu-se a olhar, afastando-se das covas. Viu o enorme pendão do Príncipe de Gales sobre os combatentes. Os franceses aclamavam e a tristeza de sir Guillaume desapareceu como por magia, pois era um pendão francês que avançava, dirigindo-se ao local onde flutuava a bandeira do príncipe. Sir Guillaume viu-a e ficou a olhar. Viu o yale segurando a taça, e fez pressão com o joelho para voltar o cavalo e gritar aos homens que o seguissem.

- Para a guerra! - exclamou. - Para matar! - E não mais sentiu lentidão ou dúvidas. Sir Guillaume encontrara o seu inimigo.



O rei olhou os cavaleiros inimigos, empunhando escudos com cruzes brancas atacarem o batalhão do filho e derrubarem-lhe o pendão. Não viu a armadura negra do príncipe, mas o seu rosto nada traiu.

- Deixai-me ir! - exigiu o bispo de Durham.

O rei afastou uma mosca do pescoço da sua montada.

- Rezai por ele - ordenou ao bispo.

- De que servem agora as orações? - perguntou o bispo, erguendo a temível clava. - Deixai-me ir, senhor!

- Preciso aqui de vós - disse o rei calmamente. - O rapaz tem de aprender como eu. - Tenho outros filhos, disse para consigo Eduardo de Inglaterra, apesar de nenhum ser como este. Aquele seria, um dia, um grande rei, um rei guerreiro, um flagelo para os nossos inimigos. Se sobreviver. E terá de aprender a viver no caos e no terror da batalha. - Ficareis - afirmou o rei com firmeza, chamando depois um oficial de armas. - Aquela insígnia - disse, apontando para o pendão vermelho com o yale. - De quem é?

O oficial olhou fixamente o pendão, por muito tempo. Depois franziu a testa, hesitando dar a sua opinião.

- Então? - insistiu o rei.

- Há dezasseis anos que não o via, senhor - disse o oficial, duvidoso ainda da sua opinião. - Mas creio bem tratar-se da insígnia da família Vexille, senhor.

- Os Vexilles? - perguntou o rei.

- Os Vexilles! - rugiu o bispo. - Os Vexilles! Traidores malditos. Fugiram de França no reinado do vosso bisavô, senhor, e ele deu-lhes terras no Cheshire. Depois apoiaram Mortimer.

- Ah - disse o rei, esboçando um sorriso. Então os Vexilles tinham apoiado a sua mãe e Mortimer, o amante desta, quando juntos o tinham tentado afastar do trono. Não admirava que combatessem tão bem. Tentavam vingar a perda dos seus domínios no Cheshire.

- O filho mais velho nunca saiu de Inglaterra - afirmou o bispo, olhando para o combate que se alargava na encosta. Teve de erguer a voz para se fazer ouvir sobre o estrondo do aço. - Era um homem estranho. Fez-se padre! Podeis acreditar? O filho mais velho? Afirmava não gostar do pai, mas, mesmo assim, prendemo-lo.

- Por minha ordem? - perguntou o rei.

- Éreis ainda muito jovem, senhor. Por isso, um membro do vosso concelho assegurou-se de que o padre Vexille não causasse problemas. Foi encerrado num mosteiro, espancado e obrigado a passar fome até estar convencido de que era santo. Depois tornou-se inofensivo e foi mandado apodrecer numa paróquia rural. Já deve ter morrido - o bispo franziu a testa, pois a linha inglesa recuava, empurrada pelo conroi dos cavaleiros de Vexille.

- Deixai-me ir lá abaixo senhor - implorou. - Suplico-vos, deixai-me levar os meus homens.

- Pedi-vos que suplicasses a Deus e não a mim.

- Tenho dezenas de padres a rezar - retorquiu o bispo. - E os franceses também. Estamos a ensurdecer Deus com as nossas preces. Por favor, senhor! Imploro-vos!

O rei cedeu.

- Ide apeados - disse ao bispo. - E apenas com um conroi.

O bispo soltou um grito de triunfo e deslizou com dificuldade de cima do seu corcel.

- Barratt! - gritou para um dos seus homens-de-armas. - Traz os teus companheiros! Vamos! - O bispo ergueu a temível clava e correu monte abaixo, berrando aos franceses que chegara a hora de morrerem.

O oficial de armas contou os elementos do conroi que seguia o bispo pela encosta abaixo.

- Vinte homens farão muita diferença, senhor? - perguntou ao rei.

- Farão pouca diferença para o meu filho - declarou o rei, esperançoso que o príncipe estivesse ainda vivo. - Mas muita para o bispo. Creio que ficaria para sempre com um inimigo na Igreja se não o deixasse seguir a sua paixão. - Viu o bispo abrir caminho por entre as fileiras inglesas, gritando e metendo-se na refrega. Não havia sinal da armadura negra do príncipe, nem do seu estandarte.

O oficial afastou o seu palafrém do rei, que fez o sinal da Cruz, girando a espada de punho de rubis para verificar se a chuva do dia anterior lhe tinha enferrujado a lâmina dentro da bainha de metal. A arma moveu-se com facilidade. O rei sabia quer talvez a tivesse de a usar mas, de momento, cruzou as mãos enluvadas sobre o arção da sela e ficou a assistir à batalha.

Resolveu deixar que o príncipe a vencesse. Ou então perderia o filho.

O oficial de armas lançou ao rei um olhar furtivo e viu que Eduardo de Inglaterra tinha os olhos fechados. O rei estava a rezar.



A batalha espalhara-se pelo monte. Todo o exército inglês estava agora envolvido, embora na maior parte dos locais o combate não fosse muito duro. As armas haviam atingido o seu alvo, mas tinham-se já esgotado, de modo que os franceses podiam aproximar-se dos soldados apeados. Alguns tentaram passar, mas a maior parte contentava-se em gritar insultos, na esperança de atrair alguns peões ingleses para fora da muralha de escudos. Porém, a disciplina destes manteve-se. Devolviam insulto por insulto, convidando o inimigo a vir morrer sob as suas espadas.

O combate era feroz apenas no local onde o Príncipe de Gales erguera o seu pendão e aí, e por numa centena de passos para cada lado, os dois exércitos tinham ficado inextrincavelmente emaranhados. A linha inglesa fora aberta, mas não penetrada. As fileiras da retaguarda continuavam a defender o monte, enquanto as da vanguarda se espalhavam por entre o inimigo e combatiam contra os cavaleiros que as rodeavam. Os condes de Northampton e Warwick tentavam firmar a linha, mas o Príncipe de Gales quebrara a formação, com a sua ansiedade por continuar a combater o inimigo e a sua guarda pessoal encontrava-se agora mais abaixo na encosta, junto às covas, onde tantos cavalos jaziam com as pernas partidas. Fora aí que Guy Vexille espetara a lança no porta-estandarte do príncipe de modo que a bandeira com as flores-de-lis, leopardos e franja dourada jazia pisada pelas ferraduras de metal do seu conroi.

Thomas encontrava-se a poucos metros de distância, agarrado ao ventre ensanguentado de um cavalo e estremecendo sempre que outro corcel se aproximava. O ruído aturdia-o mas, por entre os gritos e o martelar das patas, ouvia ainda vozes inglesas a gritar em tom de desafio. Ergueu a cabeça e viu Will Skeat com o padre Hobbe, mais uns arqueiros e hornens-de-armas que se defendiam dos cavaleiros franceses. Sentiu-se tentado a ficar naquele refúgio a cheirar a sangue, mas com algum esforço, passou por cima do corpo do cavalo e correu para o lado de Skeat. Uma lança francesa quase lhe atingiu o elmo, teve de se afastar da garupa de um cavalo e depois tropeçou vindo cair junto ao pequeno grupo.

- Ainda estás vivo, rapaz? - perguntou Skeat.

- Jesus - exclamou Thomas.

- Esse não se interessa. Anda cá, patife, anda cá! - gritava Skeat para um francês, porém o inimigo preferia dirigir a sua lança ainda intacta para a refrega, em torno do estandarte caído.

- Continuam a vir - disse Skeat, em tom de assombro. - Estes malditos parecem não ter fim.

Um arqueiro com a libré verde e branca do príncipe, sem elmo e sangrando de uma profunda ferida no ombro aproximou-se do grupo de Skeat. Um francês viu-o, fez voltar naturalmente o cavalo e atacou com o seu machado.

- Maldito! - exclamou Sam e, antes que Skeat o pudesse deter correu, afastando-se do grupo e saltou para o cavalo do francês. Rodeou o pescoço do cavaleiro com o seu braço e deixou-se simplesmente cair para trás, arrastando o homem da alta sela. Dois homens-de-armas inimigos tentaram intervir, mas o cavalo da vítima fugira.

- Protegei-o! - gritou Skeat, conduzindo o grupo para o local em que Sam esmurrava a armadura do francês. Skeat empurrou Sam, ergueu a couraça o suficiente para deixar entrar a espada e fez deslizar a lâmina no peito do homem.

- Bastardo - exclamou Skeat. - Não tens o direito de matar arqueiros, bastardo! - remexeu a espada, carregou mais e depois soltou-a.

Sam ergueu o machado e sorriu.

- Bela arma - disse e depois voltou-se ao ver aproximarem-se dois cavaleiros que vinham socorrer o companheiro.

- Bastardos! Bastardos! - gritava Sam brandindo o machado junto ao animal mais próximo. Skeat e outro homem-de-armas erguiam as espadas na direcção do outro cavalo. Thomas tentou protegê-los, ao mesmo tempo que apunhalava o francês e sentia a espada aparada por um escudo ou por uma armadura; depois os dois cavalos, ambos a sangrar, afastaram-se.

- Não vos separeis - disse Skeat. - Não vos separeis. Atenção às traseiras, Tom - Thomas não respondeu.

- Tom! - gritou Skeat.

Mas Thomas vira a lança. Havia milhares no campo, a maioria pintada de várias cores, enquanto esta era negra, empenada e frágil. Era a lança de São Jorge que durante a sua infância vira suspensa das teias de aranha da nave da igreja e que agora era usada como pau de bandeira. O pendão ligado à lâmina de prata era vermelho como o sangue e tinha bordado um yale. Sentiu o coração estremecer. A lança estava aqui! Todos os mistérios que tanto tentara evitar, encontravam-se neste campo de batalha. Os Vexilles estavam aqui. O assassino do pai, provavelmente também.

- Tom! - gritou de novo Skeat.

Thomas limitou-se a apontar para a bandeira.

- Tenho de os matar.

- Não sejas louco, Tom - disse Skeat, recuando quando um cavaleiro atacou, vindo de baixo. O homem tentou desviar-se do grupo de infantaria, mas o padre Hobbe, o único que levava um arco, meteu a arma por entre as patas dianteiras do cavalo que tropeçou quando sentiu a pancada. O cavalo caiu com estrondo junto a eles e Sam enfiou o machado na espinha do cavaleiro aos berros.

- Vexille! - gritou Thomas o mais alto que pôde. - Vexille!

- Perdeu completamente a cabeça - disse Skeat ao padre Hobbe.

- Não - respondeu este. Já não tinha arma, mas assim que Sam deixou de brandir o seu novo machado, atravessando malha e couro, o padre pegou no alfange do francês morto e ergueu-o com ar apreciador.

- Vexille! Vexille! - gritava Thomas.

Um dos cavaleiros junto ao estandarte do yale ouviu o grito e voltou o elmo em forma de focinho de porco. Pareceu a Thomas que o homem o observara durante muito tempo através das fendas da viseira, embora pudesse apenas ser por uns momentos, pois o cavaleiro estava a ser atacado por peões. Defendia-se habilmente, com a montada a executar os passo devidos, para não ser estropiada, porém, o cavaleiro aparou a espada de um inglês e lançou a espora esquerda no rosto do outro, antes de obrigar o cavalo a voltar-se rapidamente e matar o primeiro homem de um só golpe de espada. O segundo recuou e o cavaleiro, com o elmo de focinho de porco, deu meia volta e trotou em direcção a Thomas.

- Estás a pedir sarilhos - resmungou Skeat, mas foi para o lado de Thomas. O cavaleiro voltou-se no último momento e agrediu-o com a espada. Thomas aparou o golpe e ficou chocado com a força que lhe atingiu o braço até ao ombro. O animal desaparecera, dera meia volta, girara e o cavaleiro atacava-o de novo. Skeat investiu para a montada, porém o corcel tinha uma cota de malha por baixo do caparazão e a espada escorregou. Thomas aparou novo golpe e quase foi derrubado, ficando de joelhos. Depois o cavaleiro ficou a três passos de distância, o corcel girou rapidamente e o homem ergueu a mão que empunhava a espada e abriu a viseira. Thomas viu que se tratava de sir Simon Jekyll.

A raiva subiu-lhe na garganta, como bílis e, ignorando o grito de aviso de Skeat, Thomas avançou a correr com a espada na mão. Sir Simon aparou o golpe com desprezível facilidade, o cavalo treinado afastou-se ligeiramente para o lado e sir Simon investiu a toda a velocidade. Thomas teve de dar meia volta e, mesmo com a sua rapidez, a lâmina bateu-lhe no elmo com uma força espantosa.

- Desta vez, morres - disse sir Simon, avançando com a espada num forte golpe em direcção ao peito de Thomas, coberto pela cota de malha. Porém este tinha tropeçado num cadáver e caía já de costas. O golpe empurrou-o mais para baixo e viu-se estendido no chão, com a cabeça à roda, da pancada desferida no elmo. Já ninguém o podia ajudar, pois afastara-se do grupo de Skeat que se defendia de uma nova onda de cavaleiros. Thomas tentou erguer-se, mas a dor invadia-lhe a cabeça e sentia-se fraco do golpe que recebera no peito. Sir Simon inclinou-se da sela procurando com a sua longa espada o rosto desprotegido de Thomas.

- Maldito bastardo! - disse mas, logo a seguir, abriu a boca, como se bocejasse. Olhou para Thomas e atingiu-o no rosto, cuspindo um jorro de sangue. Uma lança entrara-lhe pela anca e Thomas, sacudindo o sangue dos olhos, viu que um francês tinha enfiado uma haste azul e amarela. Um cavaleiro? Apenas os franceses estavam montados, mas Thomas vira um deles usar a lança que estava enfiada no corpo de sir Simon. Este balançou na sela, sufocado e morreu. A seguir, Thomas conseguiu aperceber-se de que o caparazão do cavaleiro que passava por ele, tinha os falcões amarelos num campo azul.

Thomas pôs-se de pé, vacilante. Deus do céu, tinha de aprender a manejar uma espada, pois o escudo não bastava. Os homens de sir Guillaume passavam por ele atacando o conroi dos Vexilles. Will Skeat gritou a Thomas que voltasse, mas este seguia teimosamente aqueles homens. Franceses contra franceses! Os Vexilles quase haviam quebrado a linha inglesa, mas tinham agora de defender a traseira, enquanto os homens-de-armas ingleses tentavam derrubá-los de cima das selas.

- Vexille! Vexille! - gritava sir Guillaume, sem saber qual era o seu inimigo, escondido atrás da viseira. Agrediu várias vezes o escudo de um homem, obrigando-o a dobrar-se na sela, depois bateu com a espada no pescoço do cavalo e o animal caiu, enquanto um inglês, um padre, abria a cabeça do cavaleiro com um alfange.

Uma centelha de cor obrigou sir Guillaume a olhar para a direita. O pendão do Príncipe de Gales fora resgatado e erguido. Voltou a olhar em busca de Vexille, mas viu apenas meia dúzia de cavaleiros, com a cruz branca nos escudos negros. Picou o cavalo nessa direcção, ergueu o escudo para se defender do golpe de um machado e enfiou a espada na perna de um homem; retirou-a, sentiu um golpe nas costas, voltou o cavalo com o joelho e aparou a pancada de uma espada. Os homens gritavam-lhe, exigindo saber porque combatia contra o seu próprio lado, depois o porta-estandarte dos Vexilles começou a cair, quando alguém lhe estropiou a montada. Dois arqueiros golpeavam as pernas do animal e o yale de prata tombou durante a refrega quando Henry Colley largou a antiga lança, para erguer a sua espada.

- Bastardos! - gritou para os homens que lhe tinham estropiado a montada. - Bastardos! - brandia a lâmina, atingindo um ombro coberto por uma cota de malha. Depois, um enorme rugido obrigou-o a voltar-se para ver um homem enorme de armadura e cota de malha com um crucifixo ao pescoço, brandindo uma clava. Colley, ainda sobre o cavalo caído, brandiu a espada direita ao bispo, que aparou o golpe com o escudo, antes de lhe deixar cair pesadamente a clava sobre o elmo.

- Em nome de Deus! - exclamou o bispo libertando a clava do elmo amolgado. Colley estava morto, com o crânio esmagado e o bispo brandia a clava em direcção a um caparazão amarelo e azul, mas o cavaleiro afastou-se no último instante.

Sir Guillaume não chegou a ver o bispo com a clava. Apercebera-se, porém, de que um homem do conroi dos Vexilles tinha uma armadura melhor do que os outros e fez rolar as esporas para ir ter com ele. Sentiu que o cavalo vacilava, voltou-se para olhar para trás e viu, por entre as limitadas fendas da viseira, que os ingleses lhe atacavam os quartos traseiros do animal. Defendeu-se das espadas, mas o animal caiu enquanto alguém vociferava.

- Abram caminho! Quero matar esse bastardo. Em nome de Cristo, abram caminho!

Sir Guillaume não entendia as palavras, mas sentiu de súbito um braço em redor do pescoço e foi arrastado da sela. Gritou de raiva e ficou sem fôlego quando bateu no chão. Um homem segurava-o. Sir Guillaume tentava defender-se com a sua espada, mas o cavalo ferido estrebuchava a seu lado ameaçando rolar para cima dele. O assaltante libertou o cavaleiro e levou-lhe a espada.

- Ficai aí! - gritou-lhe uma voz.

- Esse maldito está morto? - perguntou o bispo com voz de trovão.

- Está morto! - respondeu Thomas.

- Graças a Deus! Avante! Avante! Á morte!

- Thomas? - sir Guillaume estrebuchava.

- Não vos movais! - respondeu Thomas.

- Quero o Vexille!

- Já se foram embora! - gritou Thomas. - Foram-se embora! Deixai-vos ficar!

Guy Vexille, assaltado dos dois lados e com o pendão vermelho por terra, levara os três homens que lhe restavam, para se juntar aos outros cavaleiros franceses. O próprio rei, com o seu amigo rei da Boémia entrara na refrega. Embora João da Boémia fosse cego insistira em combater e assim a sua guarda pessoal atara as rédeas dos seus cavalos, metendo o corcel do rei no centro de modo a não o perderem.

- Praga! - era o seu grito de guerra. - Praga! - O filho do rei, o príncipe Charles, estava também unido ao grupo.

- Praga! - gritava enquanto os cavaleiros da Boémia conduziam a última carga. Porém, tratou-se apenas de um avanço às cegas, por entre um emaranhado de cadáveres, corpos feridos e cavalos aterrorizados.

O Príncipe de Gales estava vivo. O filete de ouro fora-lhe arrancado do elmo e a extremidade do escudo rachada em meia dúzia de sítios, mas agora comandava a contra-carga seguido de uma centena de homens que, por entre gritos e exclamações, nada mais desejavam que acabar com os últimos inimigos que apareciam, ao crepúsculo, no campo onde tantos franceses tinham morrido. O conde de Northampton que andara a reunir as alas da retaguarda do batalhão do príncipe para as manter em linha, apercebeu-se da reviravolta da batalha. Enfraquecia a enorme pressão contra os homens-de-armas ingleses e, apesar de os franceses tentarem de novo, os melhores homens estavam feridos ou mortos e os novos aproximavam-se com demasiada lentidão. Assim, gritou aos seus peões que o seguissem.

- Matai-os! - gritou. - Matai-os, já!

Arqueiros, homens-de-armas e até mesmo hobelardos que tinham vindo dos seus postos dentro dos círculos das carroças, que protegiam os trons, nos flancos da linha, atacavam os franceses. Para Thomas, que se baixara junto a sir Guillaume era como se visse repetida a fúria violenta da ponte de Caen. Era a loucura à solta, sedenta de sangue, que os franceses sofreriam. Os ingleses tinham aguentado aquela longa tarde de Verão e queriam vingar-se do terror de verem os enormes cavalos vir contra eles, de modo que atacavam, batiam e mutilavam os cavaleiros reais. Conduzia-os o Príncipe de Gales, que combatia lado a lado com arqueiros e homens-de-armas, derrubando cavalos e esquartejando quem os montava num sangrento frenesim.

O rei de Maiorca, o conde de Saint Pol, o duque da Lorena e o conde da Flandres tinham morrido. A bandeira da Boémia, com as suas três plumas brancas, caíra por terra e o rei cego fora arrastado, atingido por machados, clavas e espadas. O resgate real morrera com ele e o filho sangrou até à morte sobre o corpo do pai. Os homens da sua guarda pessoal, arrastados pelos cavalos mortos ainda ligados aos vivos foram dizimados, uns a seguir aos outros pelos ingleses. Já não soltavam o seu grito de guerra, mas sim um uivo próprio de almas perdidas. Estavam cobertos de sangue, manchados, salpicados, encharcados nele, mas o sangue era francês. O Príncipe de Gales amaldiçoava os boémios moribundos que o impediam de se aproximar do rei francês, cujo pendão azul e ouro continuava a ondular. Dois homens-de-armas ingleses atacaram o cavalo do rei, a guarda real perseguiu-os para os matar, avançavam mais homens, com a libré inglesa para derrubar Filipe e o príncipe queria também lá estar, para ser ele a levar o rei cativo. Porém, um dos cavalos da Boémia, moribundo, caiu para o lado, e o príncipe que ainda trazia as esporas, prendeu uma delas no caparazão do animal. Vacilou, tropeçou e foi nesse momento que Guy de Vexille viu a armadura negra, a túnica real e o filete de ouro arrancado e viu também que o príncipe se desequilibrara por entre os cavalos moribundos.

Guy de Vexille voltou-se e investiu.

Thomas viu-o dar meia volta. Não conseguia alcançá-lo com a sua espada, pois teria de tropeçar nos mesmos cavalos que prendiam o príncipe, mas, sob a sua mão direita, estava uma haste negra de freixo com ponta de prata; arrebatou a lança e correu contra o homem. Skeat também lá estava, esforçando-se por passar por cima dos cavalos com a sua velha espada.

A lança de São Jorge atingiu Guy de Vexille no peito. A lâmina de prata dobrou-se e enrolou-se no pendão vermelho, mas a bela haste de madeira tinha força suficiente para derrubar o cavaleiro e afastar a sua espada do príncipe, agora liberto por dois dos seus homens-de-armas. Vexille investiu de novo, erguendo-se da sela, mas Will Skeat berrou e enfiou-lhe a espada com toda a força no peito. Porém, o escudo negro aparou o golpe e o cavalo treinado voltou-se instintivamente para o ataque; o cavaleiro desferiu um forte golpe.

- Não! - gritou Thomas, brandindo de novo a lança. Porém, a arma era fraca e a madeira seca partiu-se de encontro ao escudo de Vexille. Will Skeat caía, com o sangue a escorrer da fenda aberta no elmo. Vexille ergueu a espada para atingir Skeat uma segunda vez, enquanto Thomas tropeçava e caía para a frente. A espada caiu abrindo a cabeça de Skeat e depois a máscara negra da viseira de Vexille avançou em direcção a Thomas. Will Skeat estava imóvel, no chão. O cavalo de Vexille voltou-se para levar o dono onde este pudesse matar com maior eficiência e Thomas viu a morte na espada brilhante do francês. Nesse momento, desesperado e em pânico, enfiou o bocado partido da lança negra na boca aberta do corcel, carregando com toda a força a madeira partida sobre a língua do animal. O garanhão guinou, relinchando, recuou e Vexille bateu com força contra o arção da sela. O cavalo, com os olhos brancos por trás da protecção do focinho e a boca a escorrer sangue, voltou-se para Thomas, mas o Príncipe de Gales, já liberto do animal moribundo levou os dois homens-de-armas a atacarem o outro flanco de Vexille. O cavaleiro aparou o golpe do príncipe, depois viu que ia ser vencido, fez rolar as esporas e afastou o cavalo por entre a refrega, afastando-se do perigo.

- Cálix meus inebrians! - gritou Thomas, sem saber porquê. As palavras tinham-lhe surgido, as últimas de seu pai antes de morrer, obrigando Vexille a voltar-se para olhar, por entre as fendas da viseira, o jovem moreno que empunhava o seu pendão. Mas, nesse momento, uma nova onda de ingleses vingativos corria já pela encosta abaixo, obrigando-o a enfiar a montada por entre a carnificina, os moribundos e os sonhos desfeitos de França.

Soou uma aclamação no cimo do monte inglês. O rei ordenara à sua reserva de cavaleiros montados que carregasse sobre os franceses e, enquanto estes homens baixavam as lanças, surgiam mais cavalos do recinto da equipagem, para que mais homens pudessem montar e perseguir o inimigo derrotado.

John de Hainault, senhor de Beaumont, pegou nas rédeas do rei francês e arrastou Filipe da refrega. O cavalo não era o seu, pois a montada real fora morta e o rei recebera um ferimento no rosto, pois insistira em combater com a viseira erguida para que os seus homens soubessem que estava no campo.

- É altura de partir, senhor - disse, delicadamente, o senhor de Beaumont.

- Terminou? - perguntou Filipe. Tinha lágrimas nos olhos e um tom incrédulo na voz.

- Terminou, senhor - respondeu o senhor de Beaumont. Os ingleses uivavam como cães e a cavalaria de França estrebuchava e sangrava sobre a colina. John de Hainault não sabia como pudera acontecer, apenas que a batalha, a auriflama e o orgulho de França se tinham perdido. - Vinde, senhor - disse, arrastando o cavalo do rei. Em grupo, os cavaleiros franceses, com os caparazões dos cavalos, picados pelas flechas atravessavam o vale até ao bosque já escuro, ao princípio da noite.

- Esse astrólogo, John - disse o rei francês.

- Senhor?

- Mandai-o matar. Cruelmente. Ouvistes? Cruelmente! - O rei chorava, ao partir com os poucos homens da sua guarda pessoal.

Cada vez mais franceses fugiam em busca da segurança da noite e a sua retirada transformou-se num galope, logo que os primeiros cavaleiros ingleses da batalha surgiram, por entre os restos da sua desgastada linha deram início à perseguição.

A encosta inglesa parecia estremecer, quando os homens-de-armas começaram a vaguear por entre os mortos e os feridos. O movimento era o estrebuchar dos moribundos e dos cavalos. O chão do vale estava coberto de genoveses, mortos por quem os tinha contratado. De súbito, fez-se silêncio. Não se ouvia o bater do aço, os gritos roucos ou o troar dos tambores. Havia choros e gemidos, por vezes um estertor, mas tudo parecia calmo. O vento fazia ondular os pendões caídos e agitava no chão as penas brancas das setas que tinham feito lembrar a sir Guillaume um campo de flores.

E tudo terminara.



Sir William Skeat sobrevivera. Não podia falar, não havia vida nos seus olhos e parecia surdo. Não podia andar, embora parecesse tentar quando Thomas o ergueu, mas depois as pernas cederam-lhe e deixou-se cair no solo ensanguentado.

O padre Hobbe retirou o elmo a Skeat com extraordinária delicadeza. O sangue brotava por entre o cabelo grisalho do arqueiro deixando Thomas mudo, ao ver que a espada lhe cortara o couro cabeludo. Havia bocados de osso, fios de cabelo e o cérebro de Skeat estava à vista.

- Will? - Thomas ajoelhou junto dele. - Will?

Skeat olhou-o, parecendo não o ver. Esboçava um sorriso e tinha os olhos vazios.

- Will! - disse Thomas.

- Vai morrer, Thomas - disse o padre Hobbe em voz baixa.

- Não vai! Maldito! Não vai! Ouvistes? Vai viver. Tratai de rezar por ele!

- Vou rezar e só Deus sabe como - o padre Hobbe acalmou Thomas. - Mas, primeiro, teremos de lhe arranjar um físico.

Eleanor ajudou. Banhou a cabeça de Will Skeat, depois ela e o padre Hobbe colocaram os bocados de osso como peças de um mosaico partido. A seguir, Eleanor rasgou uma tira de pano do seu vestido azul e atou-a em redor à cabeça de Will Skeat, prendendo-lha debaixo do queixo, de forma que, quando terminou, parecia uma velha com um lenço. Nada dissera enquanto Eleanor e o padre o tinham ligado e, se sentia dores, a expressão rosto não o deixava entrever.

- Bebe, Will - disse Thomas, segurando o odre de água tomado a um francês morto, porém Skeat ignorou a oferta. Eleanor pegou no cantil e chegou-lho à boca, mas a água escorreu-lhe pelo queixo. Era já noite. Sam e Jake tinham feito uma fogueira usando o machado de batalha para cortar as lanças francesas que lhes serviram de lenha; Will Skeat ficou sentado junto ao lume. Respirava, mais nada.

- Já vi casos destes - disse sir Guillaume. Mal falara depois da batalha, mas agora sentava-se ao lado de Thomas. Vira a filha tratar de Skeat, aceitara dela de comer e de beber, mas evitara conversar.

- Será que recupera? - perguntou Thomas. Sir Guillaume encolheu os ombros.

- Já vi um homem com o crânio cortado. Viveu mais quatro anos, mas apenas porque as freiras da abadia tomaram conta dele.

- Vai viver! - disse Thomas.

Sir Guillaume ergueu uma das mãos de Skeat, segurou-a durante uns segundos e depois largou-a.

- Talvez - parecia céptico. - Gostas muito dele?

- É como um pai - respondeu Thomas.

- Os pais morrem - disse sir Guillaume em tom lúgubre. Parecia esgotado, como um homem que tinha voltado a espada contra o seu rei e falhado naquilo que fora incumbido de fazer.

- Vai viver - repetiu Thomas teimosamente.

- Dorme - disse sir Guillaume. - Eu olho por ele.

Thomas dormiu entre os mortos, na linha de batalha onde os feridos gemiam e o vento da noite agitava as penas brancas que manchavam o vale. De manhã, o estado de Will Skeat não se alterara. Continuava sentado, com os olhos vagos, sem nada fixar e cheirando mal porque tinha defecado.

- Vou procurar o conde - disse o padre Hobbe. - Temos de mandar Will para Inglaterra.

O exército começou a mexer-se lentamente. Quarenta homens-de-armas ingleses e outros tantos arqueiros foram enterrados no cemitério da igreja de Crécy, mas as centenas de cadáveres franceses, excepto os dos príncipes e grandes nobres, foram deixados no monte. As gentes de Crécy enterrá-los-iam se assim o desejassem. Eduardo de Inglaterra não queria saber.

O padre Hobbe procurou o conde de Northampton, mas dois soldados de infantaria franceses tinham chegado de madrugada para reforçar o exército, já derrotado e, na luz húmida, tinham pensado que os cavaleiros que os receberam eram amigos. Porém, viram-nos baixar as viseiras, e rolarem as esporas de lança em riste. O conde comandava-os.

A maior parte dos cavaleiros ingleses vira negada a possibilidade de combaterem montados na batalha do dia anterior. Agora, naquela manhã de domingo, chegara a sua hora, e os enormes corcéis abriram fendas sangrentas por entre as alas de peões e depois investiram para atacar os aterrorizados sobreviventes. Os franceses fugiram, perseguidos pelos implacáveis cavaleiros, que os golpeavam e atacavam, até sentirem os braços cansados da matança.

No monte entre Crécy e Wadicourt foram recolhidos os pendões inimigos. As bandeiras estavam rasgadas e algumas ainda húmidas de sangue. A auriflama foi levada a Eduardo que a dobrou e ordenou aos padres que dessem graças. O filho estava vivo, a batalha fora ganha e toda a cristandade saberia que Deus favorecia a causa inglesa. Declarou que passaria todo aquele dia no campo, para marcar a vitória e depois seguiria marcha. O exército estava cansado, mas agora tinha botas e poderia alimentar-se. O gado uivava, ao ser morto pelos arqueiros e outros soldados traziam comida do monte, onde o exército francês guardara os seus mantimentos. Outros ainda apanhavam as flechas do campo e atavam-nas em feixes, enquanto as mulheres saqueavam os mortos.

O conde de Northampton regressou ao monte de Crécy vociferando e a sorrir.

- Mortos como carneiros! - afirmava exultante, depois percorria a linha de um lado para o outro tentando reviver as emoções dos dois últimos dias. Deteve-se junto a Thomas e sorriu aos arqueiros e às suas mulheres.

- Estás diferente, jovem Thomas! - disse com ar feliz, mas depois viu Will Skeat sentado como um criança com o lenço azul a ligar-lhe a cabeça. - Will - disse admirado. - Sir William?

Skeat manteve-se na mesma posição.

- Abriram-lhe a cabeça, senhor - explicou Thomas.

A expressão satisfeita do conde desvaneceu-se como o ar de dentro de uma bexiga. Ficou sentado na sela, abanando a cabeça.

- Não - protestou. - Não. Will, não! - Tinha ainda a espada ensanguentada na mão, mas limpava agora a lâmina na crina do cavalo e guardava-a na bainha. - Vou mandá-lo regressar à Bretanha - disse. - Conseguirá sobreviver?

Ninguém respondeu.

- Will - chamou o conde, depois desmontou desajeitadamente da sela pegajosa e acocorou-se junto ao homem do Yorkshire. - Will, fala comigo, Will!

- Deve ir para Inglaterra, senhor - disse o padre Hobbe.

- Claro - respondeu o conde.

- Não - disse Thomas. O conde franziu a testa.

- Não?

- Há um físico em Caen, senhor - Thomas falava agora em francês. - Quero levá-lo lá. Esse físico faz milagres, senhor.

O conde sorriu tristemente.

- Caen está de novo na mão dos franceses, Thomas - disse. - Duvido que te recebam bem.

- Hão-de recebê-lo - disse sir Guillaume e, pela primeira vez, o conde reparou no francês e na sua libré desconhecida.

- Trata-se de um prisioneiro, senhor - explicou Thomas. - Mas é também um amigo. Servimo-vos, portanto o resgate é vosso, mas só ele poderá levar Will para Caen.

- É um resgate grande? - perguntou o conde.

- Imenso - respondeu Thomas.

- Então, o vosso resgate, senhor, será a vida de Will Skeat - disse o conde a sir Guillaume. Ergueu-se e tomou as rédeas das mãos de um arqueiro, depois voltou-se para Thomas. O rapaz parecia diferente, pensou, parecia um homem. Cortara o cabelo, era isso. Cortara-o mesmo. Agora parecia um soldado, um homem que poderia conduzir arqueiros em combate.

- Quero-te na Primavera, Thomas - disse. - Haverá arqueiros para comandares e se Will não o puder fazer, terás de ser tu. Agora, olha por ele, mas na Primavera voltas a servir-me, estás a ouvir?

- Sim, meu senhor.

- Espero que o vosso físico faça milagres - disse o conde e logo prosseguiu o seu caminho.

Sir Guillaume percebera o que tinha sido dito em francês, mas não o resto e olhava agora para Thomas.

- Vamos para Caen? - perguntou.

- Vamos levar Will ao doutor Mordecai - disse Thomas.

- E depois?

- Volto para o conde - disse Thomas, sem desperdiçar palavras. Sir Guillaume estremeceu.

- E Vexille, que fazemos com ele?

- Que fazemos com ele? - perguntou brutalmente Thomas. - Perdeu a maldita lança - olhou para o padre Hobbe e falou em inglês. - Cumpri a minha penitência, padre?

O padre Hobbe acenou afirmativamente. Retirara a lança partida a Thomas e confiara-a ao confessor do rei que lhe prometera levar a relíquia para Westminster.

- Cumpriste a tua penitência - respondeu.

Sir Guillaume não falava inglês, mas devia ter entendido o tom do padre Hobbe, pois lançou a Thomas um olhar magoado.

- Vexille ainda está vivo - disse. - Matou o teu pai e a minha família. Até Deus o deseja ver morto! - Havia lágrimas nos seus olhos. - Quereis deixar-me tão quebrado como a lança? - perguntou a Thomas.

- Que quereis que faça? - perguntou Thomas.

- Que encontres Vexille. Que o mateis - falava em tom raivoso, mas Thomas nada disse. - Tem o Graal! - insistiu o francês.

- Não o sabemos - disse Thomas, zangado. Deus do céu, pensou, poupai-me! Posso ser comandante de arqueiros. Posso ir para Caen para que Mordecai faça um milagre e depois conduzir os homens de Skeat em combate. Podemos vencer por Deus, por Will, pelo rei e por Inglaterra. Voltou-se para o francês. - Sou um arqueiro inglês - disse asperamente. - Não um cavaleiro da Távola Redonda.

Sir Guillaume sorriu.

- Diz-me, Thomas - pediu delicadamente. - O teu pai era o filho mais velho ou um segundo?

Thomas abriu a boca. Ia dizer que o padre Ralph era sem dúvida um filho segundo, depois apercebeu-se de que não sabia. O pai nunca lho dissera, o que significava que escondera a verdade, como o fizera com tantas outras coisas.

- Pensai bem, senhor - disse sir Guillaume, contundente. - Pensai bem. Lembrai-vos de que foi o Harlequin que mutilou o vosso amigo e que continua vivo.

Sou um arqueiro inglês, pensou Thomas, e nada mais quero. Mas Deus quer mais, pensou, embora não desejasse aquele fardo. Bastava-lhe que o Sol brilhasse sobre os campos estivais, sobre as penas brancas e sobre os mortos.

E que Hookton tivesse sido vingada.





Nota Histórica



Apenas duas acções do livro são pura invenção: o ataque inicial a Hookton (embora os franceses tivessem levado a cabo muitas destas invasões na costa inglesa) e o combate entre os homens de sir Simon Jekyll e os soldados de sir Geoffrey de Pont Blanc, nos arredores de La Roche-Derrien. À parte estes, todos os cercos, batalhas e escaramuças são retirados da história, tal como a morte de sir Geoffrey, em Lannion. La Roche-Derrien caiu sendo as suas muralhas escaladas e não devido a um ataque vindo da margem do rio, mas, como quis atribuir um feito a Thomas, tomei algumas liberdades em relação à empresa do conde de Northampton. Este realizou tudo o que lhe é atribuído no romance: a captura de La Roche-Derrien, o êxito da travessia do Somme no vau de Blanchetaque, bem como os seus feitos na batalha de Crécy. A conquista e o saque de Caen aconteceram conforme são descritos na obra, e o mesmo acontece com a famosa batalha de Crécy. Em resumo, tratou-se de um período histórico horrível e assustador, hoje em dia reconhecido como o início da Guerra dos Cem Anos. Quando comecei a ler e a investigar para escrever o romance, pensei que me preocuparia com as regras de cavalaria e galantaria cortês. Tais coisas devem de fato, ter existido, mas não nestes campos de batalha, onde tudo era brutal, inclemente e cruel. A epígrafe do livro cita o rei João II de França e serve de correctivo: «...muitas batalhas mortíferas se travaram, com muitos seres humanos dizimados, igrejas roubadas, almas destruídas, donzelas e virgens desfloradas, respeitadas esposas e viúvas desonradas; cidades, pro-priedades e edifícios incendiados, e assaltos, crueldades e emboscadas levados a cabo nas estradas e caminhos.» Estas palavras, escritas catorze anos depois da batalha de Crécy, justificaram as razões pelas quais o rei João entregou quase um terço do território francês aos ingleses; a humilhação era preferível a prosseguir de uma guerra tão sinistra e horrenda.

As batalhas, seguindo o padrão da de Crécy, foram comparativamente raras nas longas guerras anglo-francesas, talvez por serem tão destruidoras; mesmo assim, o número de baixas de Crécy mostra que foram os franceses quem mais sofreu. As perdas são difíceis de calcular mas estes perderam, no mínimo, dois mil homens, embora o número provavelmente se aproxime mais dos quatro mil, na sua maioria cavaleiros e homens-de-armas. As baixas genovesas foram muito numerosas e pelo menos metade foi dizimada pelo lado por que combatiam. As inglesas foram insignificantes, talvez menos de cem. O crédito deverá ir quase todo para os arqueiros, pois mesmo quando os franceses ultrapassaram a cortina de flechas, sofreram pesadas baixas. Um cavaleiro que perdesse o movimento da carga e não fosse apoiado por outros, era uma presa fácil para os peões; foi assim que a cavalaria francesa foi dizimada na refrega. Depois da batalha, quando os franceses procuraram explicações para a sua derrota, acusaram os genoveses, o que provocou verdadeiros massacres destes mercenários em muitas cidades francesas. Porém, o verdadeiro erro foi o ataque apressado, ao fim da tarde de sábado, em vez de ter sido realizado no domingo, com o exército mais bem organizado. Depois de ter sido tomada a decisão de atacar, a disciplina não foi respeitada, o que desperdiçou a primeira leva de cavaleiros, tendo os restantes dessa carga obstruído a segunda, mais bem comandada.

Tem havido grandes discussões acerca das disposições inglesas na batalha, a maior parte das quais centradas no local em que os arqueiros se encontravam. A maioria dos historiadores coloca-os nas pontas, mas decidi seguir a opinião de Robert Hardy que sugere que tenham sido dispostos ao longo da linha, e também nos extremos. Quando se trata de arcos, de arqueiros e das suas façanhas, podemos confiar em Mr. Hardy.

Os combates eram raros, mas a chevauchée, expedição que partia para deliberadamente devassar o território inimigo, era vulgar. Tratava-se, evidentemente de uma campanha económica, o equivalente do século XIV a um bombardeamento massivo. Os contemporâneos que descrevem o campo francês depois da passagem da chevauchée inglesa relatam que a França estava «mas-sacrada e pisada», «à beira da mais completa ruína» ou «atormentada e devastada pela guerra». Não se respeitavam aqui as leis da cavalaria, e pouca ou nenhuma galantaria e cortesia. França acabaria por recuperar e expulsar os inimigos, mas apenas depois de ter aprendido a lidar com a chevauchée e, ainda mais, com os arqueiros ingleses (e galeses).

O arco é assim designado, pois a palavra longbow (arco longo) não era usada no século XIV (pela mesma razão Eduardo de Woodstock, Príncipe de Gales não aparece como Príncipe Negro, codnome que recebeu mais tarde). O arco era, simplesmente, um arco, ou talvez um arco grande ou um arco de guerra. Muita tinta tem corrido em discussões acerca da origem do longbow, se galesa ou inglesa, se se tratava de invenção medieval ou era já proveniente do neolítico, mas o fato importante é que se salientou como arma de combate algum tempo antes da Guerra dos Cem Anos. Tornava-a tão eficiente a possibilidade de numerosos arqueiros se reunirem no mesmo exército. Um ou dois arcos produziam alguns danos, mas milhares, conseguiam destruir um exército e, na Europa, apenas os ingleses eram capazes de juntar esse número. Porquê? A tecnologia não poderia ser mais simples, mas mesmo assim os outros países não produziam arqueiros. A resposta está, em parte, nas grandes dificuldades de treinar arqueiros competentes. Eram necessárias horas e anos de prática, apenas levada a cabo nalgumas regiões de Inglaterra e do País de Gales. Na Grã-Bretanha terão existido provavelmente estes especialistas, desde o período neolítico (encontraram-se arcos de teixo, de dimensões semelhantes aos utilizados em Crécy, em sepulturas deste período), mas é igualmente provável que fossem pouco numerosos. Porém, fosse porque razão fosse, surgiu na Idade Média um grande entusiasmo por esta prática nalgumas regiões de Inglaterra e do País de Gales que conduziram à sua maior utilização como arma de guerra; do mesmo modo assim que o entusiasmo se desvaneceu o arco rapidamente desapareceu do arsenal inglês. Seria sensato dizer que foi substituído pelo mosquete, mas talvez fosse mais correcto afirmar que o arco deixou de ser usado, apesar do mosquete.

Benjamin Franklin, que não era tolo, afirmava que os rebeldes americanos teriam ganho a guerra com maior rapidez se tivessem arqueiros experientes e é certo que um batalhão destes homens teria conseguido derrotar facilmente um batalhão de veteranos de Wellington, armados com espingardas de alma lisa. Porém, o mosquete (ou a besta) eram mais fáceis de manobrar. Resumindo, o arco foi um fenómeno provavelmente alimentado por uma gosto popular pela prática de tiro com flechas e traduziu-se na criação de uma arma de combate utilizada pelos reis de Inglaterra. Promoveu, do mesmo modo o estatuto dos homens da infantaria e até os menos inteligentes nobres ingleses acabaram por entender que a sua vida dependia dos arqueiros. Assim, não é de admirar que estes fossem em número muito superior aos homens-de-armas dos exércitos ingleses deste período.

Tenho de mencionar a minha enorme dívida a Jonathan Sumption, autor de Trial by Battle, the Hundred Years War, volume 1. É uma tremenda ofensa para os escritores a tempo inteiro como eu que, um advogado de sucesso possa escrever livros de tal modo soberbos durante o seu tempo livre. Mesmo assim, sinto-me muito grato que o tenha feito e recomendo a sua história a todos aqueles que desejem aprender mais sobre este período. Os erros que mesmo assim surgirem, são da minha inteira responsabilidade.






A Busca do Graal 1 - O Arqueiro - Bernard Cornwell

Sinopse
Aos 18 anos apenas, Thomas vê o pai morrer em seus braços após um ataque-surpresa à aldeia de Hookton. Um lugar simples que escondia um grande segredo: a lança usada por São Jorge para matar o dragão, uma das maiores relíquias da cristandade. Em busca de vingança contra um homem conhecido apenas como Arlequim, o rapaz, um arqueiro habilidoso, se junta ao exército inglês em campanha na França, onde se envolve em batalhas e aventuras que, sem perceber, lançam-no na busca do lendário Santo Graal. Com este romance, o autor usa o cenário da Guerra dos Cem Anos para dar início a uma saga empolgante.
 
Yolanda Corte Real Delgado
 (62) 84262765
"Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos"
Salmo 19:1

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