Livros Jorge Luis Borges: Livro dos Sonhos, Ficções, O Aleph, O ouro dos tigres


JORGE LUIS BORGES



LIVRO DOS
SONHOS

4.a edição

Tradução de CLÁUDIO FORNARI



Título do original: LIBRO DE SUENOS
© 1976. Torres Agüero Editor S.R.L.
Rondeau 3278, Buenos Aires, Argentina











1986
Direitos para a língua portuguesa, no Brasil, adquiridos por:


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PRÓLOGO


Em um ensaio do Espectador (setembro de 1712), compilado neste volume, Joseph Addison observou que a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, a um tempo, o teatro, os atores e a platéia. Podemos acrescentar que é também a autora da fábula que está vendo. Existem textos semelhantes de Petrônio e de dom Luis de Góngora.
Uma leitura literal da metáfora de Addison poderia conduzir-nos à tese perigosamente atraente de que os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários. Esta curiosa tese, que não nos custa nada aprovar para a boa execução deste prólogo e para a leitura do texto, poderia justificar a composição de uma história geral dos sonhos e de seu influxo sobre as letras. A miscelânea apresentada neste volume, compilado para distrair o leitor curioso, ofereceria algum material. Essa história hipotética exploraria a evolução e a ramificação de um gênero tão antigo, desde os sonhos proféticos do Oriente até os sonhos alegóricos e satíricos da Idade Média e as puras diversões de Carrol e de Franz Kafka. E separaria, em seguida, os sonhos inventados pelo sono e os sonhos inventados pela vigília.
Este livro de sonhos que os leitores tornarão a sonhar abarca os sonhos da noite — os que eu assino, por exemplo — sonhos do dia, que são um exercício voluntário da nossa mente, e outros de raízes perdidas: digamos, o Sonho (anglo-saxão) da Cruz.
O sexto livro da Eneida segue uma tradição da Odisséia e declara que são duas as portas divinas através das quais nos chegam os sonhos: a de marfim, que é a dos sonhos enganadores, e a de chifre, que é a dos sonhos proféticos. Face aos materiais escolhidos, dir-se-ia que o poeta sentiu de uma forma obscura que os sonhos que se antecipam ao futuro são menos preciosos do que os enganadores, os quais são uma invenção espontânea do homem que dorme.
Há um tipo de sonho que merece nossa especial atenção. Refiro-me ao pesadelo, que leva em inglês o nome de nightmare, ou égua da noite, expressão que sugeriu a Victor Hugo a metáfora de cheval noire de Ia nuit, mas que, segundo os etimologistas, equivale a ficção ou fábula da noite. Alp, seu nome em alemão, faz alusão ao elfo ou incubo que oprime o sonhador que lhe impõe imagens horrendas. E Ephialtes, que é o termo grego, procede de uma superstição semelhante.
Coleridge deixou escrito que as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que no sonho os sentimentos inspiram as imagens (que sentimento misterioso e complexo lhe haverá inspirado o Kubla Khan, que foi dádiva de um sonho?). Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo; se sentimos medo no sonho, engendramos um tigre. Esta seria a razão visionária do nosso alarme. Falei em um tigre, porém como o medo precede à aparição improvisada para entendê-lo, podemos projetar o horror sobre uma figura qualquer, que durante a vigília não é necessariamente horrorosa. Pode ser um busto de mármore, um porão, a outra face de una moeda, um espelho. Não existe uma única forma no universo que não possa contaminar-se de horror. Daí, talvez, o sabor peculiar do pesadelo, que é muito diferente do espanto e dos espantos que é capaz de infligir-nos a realidade. As nações germânicas parecem ter sido mais sensíveis a esta vaga espreita do mal do que as de linhagem latina; recordemos as vozes intraduzíveis de eery, weird, uncanny, unheimlich 1. Cada idioma produz o que necessita.
As artimanhas da noite foram penetrando as artimanhas do dia. A invasão durou séculos; o doentio reinado da Divina Comédia não é um pesadelo, com exceção talvez do canto quarto, de reprimido mal-estar; é um lugar onde ocorrem fatos atrozes. A lição da noite não tem sido fácil. Os sonhos da Escritura não têm estilo de sonho: são profecias que manejam, de maneira demasiadamente coerente, um mecanismo de metáforas. Os sonhos de Quevedo parecem a obra de um homem que não tivesse sonhado jamais, como essa gente cimeriana mencionada por Plínio. Depois virão os outros. O influxo da noite e do dia será recíproco; Beckford e De Quincey, Henry James e Poe, têm sua raiz no pesadelo e costumam perturbar nossas noites. Não é improvável que mitologias e religiões tenham uma origem semelhante.
Quero deixar consignada minha gratidão a Roy Bartholomew, sem cujo estudioso fervor me teria resultado impossível compilar este livro.

J.L.B.

Buenos Aires, 27 de outubro de 1975












NOTA:
Os trechos da Bíblia selecionados pelo Autor para este livro, nesta edição em português foram transcritos completos, segundo a versão do Pe. Matos Soares para as Edições Paulinas.
C. F.

HISTÓRIA DE GILGAMESH


Gilgamesh, dois terços deus, um terço homem, vivia em Erech. Invencível entre os guerreiros, governava com mão de ferro; os jovens o serviam e ele não deixava incólume uma só donzela. O povo rogou a proteção divina, e o senhor do firmamento ordenou a Aruru (a deusa que havia modelado o primeiro homem com argila) que modelasse um ser capaz de enfrentar Gilgamesh e tranqüilizar seu povo.
Aruru formou uma criatura a quem deu o nome de Enkidu. Era peludo, tinha longas trancas, cobria-se com peles, vivia com as feras e comia erva. Dedicou-se, também, a destroçar armadilhas e a salvar animais. Quando Gilgamesh se inteirou disso, ordenou que se enviasse a ele uma donzela nua. Enkidu possuiu-a durante sete dias e sete noites, no final das quais as gazelas e as feras o desconheceram e ele notou que suas pernas já não eram tão ligeiras. Havia-se transformado em homem.
A menina achou que Enkidu se tinha tornado formoso. Convidou-o a conhecer o templo resplandecente onde o deus e a deusa se sentavam juntos, assim como toda a Erech, onde Gilgamesh imperava.
Na véspera do ano novo Gilgamesh preparava-se para a cerimônia da hierogamia quando apareceu Enkidu e o desafiou. A multidão, embora surpreendida, sentiu-se aliviada.
Gilgamesh havia sonhado que estava de pé sob as estrelas, quando do firmamento caía sobre ele um dardo que não se podia arrancar. Depois, uma tocha enorme se incrustava no centro da cidade.
Sua mãe lhe disse que o sonho previa a chegada de um homem mais forte do que ele e que se tornaria seu amigo. Lutaram os dois e Gilgamesh foi atirado ao pó por Enkidu, que compreendeu, todavia, que seu contendor não era um tirano jatancioso e sim um valente que não se desviava. Levantou-o, abraçou-o e ambos firmaram amizade.
Espírito aventureiro, Gilgamesh propôs a Enkidu cortar um dos cedros do bosque sagrado. "Não é fácil — respondeu-lhe este — pois está guardado pelo monstro Humbaba, de voz de trovão, e com um olho único cuja mirada petrifica a quem observa; vomita fogo e seu hálito é uma praga".
"Que dirás aos teus filhos quando eles te perguntarem o que fazias no dia em que tombou Gilgamesh?"
Isto convenceu Enkidu.
Gilgamesh contou seu plano aos anciãos, ao deus do sol, à sua própria mãe, à rainha celestial Ninsun, e todos o desaprovaram. Ninsun, que conhecia a teimosia de seu filho, pediu para ele a proteção do deus do sol e a obteve. Então, nomeou Enkidu seu guarda de honra.
Gilgamesh e Enkidu chegaram a floresta dos cedros. O sono venceu-os;
O primeiro sonhou que uma montanha desabava sobre ele, quando um homem bem apessoado liberou-o da pesada carga e ajudou-o a pôr-se de pé.
Disse Enkindu: — Está claro que derrotaremos Humbaba.
Enkidu por sua vez sonhou que o céu retumbava e a terra estremecia, que imperavam as trevas, que caía um raio e ocorria um incêndio e que a morte chovia do céu, até que a resplandecência diminuiu, apagou-se o fogo e as centelhas caídas se transformaram em cinza.
Gilgamesh interpretou isto como»uma mensagem adversa, porém convidou Enkindu a continuar. Derrubou um dos cedros, e Humbaba se preciptiou sobre eles. Pela primeira vez Gilgamesh sentiu medo. Os dois amigos, porém, dominaram o monstro e lhe cortaram a cabeça.
Gilgamesh limpou-se da poeira e vestiu suas roupas reais. A deusa Istar apresentou-se a ele e pediu que fosse seu amante, prometendo cobri-lo de riquezas e rodeá-lo de deleites. Mas Gilgamesh conhecia a traidora e inflexível Istar, assassina de Tammuz e de inumeráveis amantes. Despeitada, Istar pediu a seu pai que lançasse à terra o touro celestial, e ameaçou romper as portas do inferno e deixar que os mortos sobrepujassem os vivos.
— Quando o touro desça dos céus, sete anos de miséria e de fome cobrirão a terra. Previste isto?
Istar respondeu que sim.
O touro então foi lançado à terra. Enkidu torceu-o pelos chifres e lhe cravou a espada no pescoço. Junto com Gilgamesh, arrancou o coração do animal e ofertou-o ao deus do sol.
Das muralhas de Erech, Istar presenciava a luta. Saltou por cima dos baluartes e amaldiçoou Gilgamesh. Enkindu arrancou as nádegas do touro, atirando-as no rosto da deusa.
— Gostaria de fazer-te o mesmo!
Istar foi derrotada e o povo aclamou os matadores do touro celestial. Mas não é possível zombar dos deuses.
Enkidu sonhou que os deuses estavam reunidos em assembléia, deliberando sobre quem seria o maior culpado, se ele ou Gilgamesh, da morte de Humbaba e do touro celestial. O principal culpado morreria. Como não chegavam a um acordo, Anu, o pai dos deuses, disse que Gilgamesh, não apenas tinha matado o touro, como também tinha cortado o cedro. A discussão tornou-se violenta e os deuses se insultaram uns aos outros. Enkidu despertou sem conhecer o veredicto. Narrou seu sonho a Gilgamesh e durante a longa insônia que se seguiu recordou sua despreocupada vida animal. Mas lhe pareceu ouvir vozes que o consolavam.
Várias noites depois tornou a sonhar. Um forte grito chegava do céu até a terra e uma espantosa criatura com cara de leão e asas e garras de águia o apresava e o levava ao vazio. Saíram-lhe plumas dos braços e começou a parecer-se com o ser que o levava. Compreendeu que havia morrido e que uma harpia o arrastava por um caminho sem volta. Chegaram à mansão das trevas, onde as almas dos grandes da terra o rodearam. Eram desajeitados demônios com asas emplumadas, que se alimentavam de restos. A rainha do inferno lia em suas tábuas e pesava os antecedentes dos mortos.
Quando despertou, os dois amigos se inteiraram, do veredicto dos deuses. E Gilgamesh cobriu o rosto de seu amigo com um véu e, com grande dor pensou: Agora já vi o rosto da morte.
Em uma ilha nos confins da terra vivia Utnapishtin, um homem muito, muito velho, o único mortal que havia conseguido escapar da morte. Gilgamesh decidiu buscá-lo e aprender com ele o segredo da vida eterna.
Chegou ao fim do mundo, onde uma altíssima montanha elevava seus picos gêmeos ao firmamento e enfiava suas raízes nos infernos. Um portão era guardado por criaturas terríveis e perigosas, metade homem, metade escorpião. Avançou decidido e disse aos monstros que ia em busca de Utnapishtin.
— Ninguém jamais chegou até ele nem logrou conhecer o segredo da vida eterna. Guardamos o caminho do sol, que nenhum mortal pode transitar.
— Eu o farei — disse Gilgamesh. E os monstros, compreendendo que se tratava de um mortal não comum, deixaram-no passar.
Penetrou Gilgamesh; o túnel se fazia cada vez mais escuro, até que um ar lhe chegou ao rosto e entreviu uma luz. Quando saiu a elá, encontrou-se em um jardim encantado, onde resplandeciam pedras preciosas.
A voz do deus do sol chegou até ele. Encontrava-se nos jardins das delícias e desfrutava de uma graça que os deuses não haviam outorgado a nenhum mortal. "Não esperes alcançar mais".
Gilgamesh, porém avançou além do paraíso, até que, cansado, chegou a uma pousada. A estalajadeira Siduri confundiu-o com um vagabundo, mas o viajante se deu a conhecer e contou seu propósito.
— Gilgamesh, nunca encontrarás o que buscas. Os deuses criaram os homens e lhe deram a morte por destino; para eles mesmos reservaram a vida. Saberás que Utnapishtin vive em uma ilha longínqua, além do oceano da morte. Mas eis aqui Urshanabi, seu barqueiro, que se encontra na pousada.
Tanto insistiu Gilgamesh, que Urshanabi concordou em transportá-lo, não sem antes preveni-lo de que por nenhum motivo tocasse as águas do oceano.
Muniram-se de cento e vinte varas, mas foi necessário que Gilgamesh utilizasse sua camisa como vela.
Quando chegaram, Utnapishtin lhe disse:
— Ah, jovem, nada há de eterno na terra. A mariposa vive somente um dia. Tudo tem seu tempo e época. Mas eis aqui meu segredo, somente conhecido dos deuses.
E lhe contou a história do dilúvio. O bondoso Ea o havia prevenido, e Utnapishtin construiu uma arca na qual embarcou com sua família e seus animais. Em meio à tempestade navegaram sete dias, e a barca encalhou no topo de uma montanha. Soltou uma pomba para ver se as águas haviam baixado, porém a ave voltou por não encontrar onde pousar. O mesmo ocorreu com uma andorinha. O corvo, porém, não regressou. Desembarcaram e fizeram oferendas aos deuses, porém o deus dos ventos os fez reembarcar e os conduzir até onde estavam agora, para que aí morassem eternamente.
Gilgamesh compreendeu que o ancião não tinha nenhuma fórmula para lhe dar. Era imortal, mas somente por um favor único dos deuses. O que Gilgamesh buscava não poderia ser achado deste lado da sepultura.
Antes de despedir-se, o velho disse ao herói onde poderia achar uma estrela do mar com espinhos de rosa. A planta concedia a quem a saboreasse uma nova juventude! Gilgamesh obteve-a do fundo do oceano, porém quando descansava de seu esforço, uma serpente a roubou, comeu-a, desprendeu-se de sua velha pele e recobrou a juventude.
Gilgamesh compreendeu que seu destino não diferia do destino do resto da humanidade e regressou a Erech.

Conto babilônico do segundo milênio A.C.

SONHO INFINITO DE PAO YU


Pao Yu sonhou que estava em um jardim idêntico ao de sua casa. Será possível — disse — que haja um jardim idêntico ao meu? Acercaram-se a ele umas donzelas. Pao Yu, atônito, disse a si mesmo: "Alguém terá donzelas iguais a Hsi-Yen, a Pin-Erh e a todas as da casa?" Uma das donzelas exclamou: "Aí está Pao Yu. Como terá chegado até aqui?" Pao Yu pensou que o haviam reconhecido. Adiantou-se e lhes disse: "Estava caminhando, e por casualidade cheguei até aqui. Caminhemos um pouco". As donzelas riram. "Que desatino! Te confundimos com Pao Yu, nosso amo, porém não és tão garboso como ele". Eram donzelas de outro Pao Yu. "Queridas irmãs" — lhes disse — "eu sou Pao Yu. Quem é vosso amo?" "É Pao Yu" — responderam. "Seus pais lhe deram esse nome, composto dos caracteres Pao (precioso) e Yu (jade), para que sua vida fosse longa e feliz. Quem és tu para usurpar seu nome?" E se foram, rindo.
Pao Yu ficou abatido. "Nunca me trataram tão mal. Porque me detestaram estas donzelas? Existirá, de fato, um outro Pao Yu? Tenho que averiguar". Movido por estes pensamentos, chegou até um pátio que lhe era familiar. Subiu a escada e entrou no seu quarto. Viu um jovem deitado; ao lado da cama, rindo, umas mocinhas faziam trabalhos domésticos. O jovem suspirava. Uma donzela lhe disse: "Que sonhas, Pao Yu? Estás aflito?". "Tive um sonho muito esquisito. Sonhei que estava em um jardim e que vocês não me reconheciam e me deixavam só. Eu as segui até a casa e me encontrei com outro Pao Yu dormindo em minha cama". Ao ouvir o diálogo, Pao Yu não se conteve e exclamou: "Vim em busca de um Pao Yu; és tu". O jovem levantou-se e o abraçou, gritando: "Não era um sonho; tu és Pao Yu". Do Jardim uma voz chamou: "Pao You! Os dois Pao Yu estremeceram. O sonhado se foi; o outro dizia: "Volta logo, Pao Yu". Pao Yu se despertou. Sua donzela Hsi-Yen lhe perguntou: "Que sonhavas, Pao Yu? Estás aflito?". Tive um sonho muito esquisito. Sonhei que estava em um jardim e que vocês não me reconheciam. .."

Tsao Hsue-King, Sonho do aposento vermelho (c. 1754)




DEUS DIRIGE OS DESTINOS DE JOSÉ, FILHO DE JACÓ, E, POR SEU INTERMÉDIO. OS DE ISRAEL

Ora, Israel amava José mais que todos os seus outros filhos, porque o gerara na velhice; fez-lhe uma túnica talar. Vendo, pois, seus irmãos que ele era amado pelo pai mais que todos os outros filhos, odiaram-no, e não lhe podiam falar com bom modo. Sucedeu também que ele referiu a seus irmãos um sonho que tivera; o que foi causa de maior ódio. Disse-lhes: Ouvi o sonho que eu tive: Parecia-me que atávamos no campo os feixes, e que o meu feixe como que se erguia, estava direito, e que os vossos feixes, estando em roda, se inclinavam diante do meu, adorando-o. Responderam seus irmãos: Porventura serás nosso rei? ou seremos sujeitos ao teu domínio? Estes sonhos, pois, e estas conversas acenderam mais a inveja e o ódio. Teve ainda outro sonho, o qual referiu a seus irmãos, dizendo: Vi em sonhos que o sol, a lua e onze estrelas como que me adoravam. Ora, tendo ele contado isto a seu pai e aos irmãos, seu pai repreendeu-o, e disse: Que quer dizer este sonho que tiveste? Porventura eu, tua mãe e teus irmãos te adoraremos, prostrados por terra? Seus irmãos, portanto, tinham-lhe inveja; porém, o pai meditava a coisa em silêncio.
Gênese, 37, 3-11


JOSÉ, O CHEFE DOS COPEIROS E OS CHEFES DOS PADEIROS DO FARAÓ


Depois disto, aconteceu que dois eunucos, o copeiro do rei do Egito e o padeiro, pecaram contra o seu senhor. O Faraó, irado contra eles (porque um presidia aos copeiros, outro aos padeiros), mandou-os lançar no cárcere do general do exército no qual estava também preso José.
O guarda do cárcere entregou-os a José que também os servia. Tinha decorrido algum tempo, desde que eles estavam encarcerados na prisão. Ambos, numa mesma noite, tiveram um sonho, que por sua interpretação se referia a eles. Tendo ido José junto deles pela manhã, e vendo-os tristes, interrogou-os, dizendo: Por que razão está hoje o vosso semblante mais triste que o costumado? Eles responderam: Tivemos um sonho, e não há quem no-lo interprete. José disse-lhes: Porventura não pertence a Deus a interpretação? Contai-me o que vistes. O copeiro-mor foi o primeiro que contou o seu sonho: Eu via diante de mim uma cepa, na qual havia três varas, crescer pouco a pouco em gomos, e, depois, dar flores, amadurecerem as uvas; e eu tinha a taça do faraó na minha mão; tomei as uvas, espremi-as na taça, que tinha na mão, e apresentei de beber ao faraó. José respondeu: A interpretação do sonho é esta: As três varas são três dias ainda, depois dos quais se lembrará o faraó dos teus serviços, e te restituirá ao antigo cargo; tu lhe apresentarás a taça conforme o teu ofício, como costumavas fazer antes. Somente lembra-te de mim, e usa para comigo de compaixão, quando fores feliz, e solicita ao faraó que me tire deste cárcere, porque, por fraude, fui tirado da terra dos hebreus, e, estando inocente, fui lançado nesta fossa. Vendo p padeiro-mor que tinha interpretado sabiamente o sonho, disse: Também eu tive um sonho: (Parecia-me) ter três cestos de farinha sobre a minha cabeça, e que, no cesto que estava mais alto, levava todos os manjares, que a arte do padeiro pode preparar, e que as aves comiam dele.
José respondeu: A interpretação do sonho é esta: Os três cestos são três dias ainda, depois dos quais o faraó mandará tirar-te a cabeça, e te suspenderá em uma forca e as aves devorarão as tuas carnes.
Com efeito, três dias depois, era o dia do nascimento do faraó, o qual, dando um grande banquete aos seus criados, se lembrou à mesa do copeiro-mor e do padeiro--mor. Restituiu um ao seu lugar, para lhe ministrar a taça; e mandou suspender o outro num patíbulo, pelo que foi comprovada a verdade do intérprete. E, não obstante sucederam-lhe prosperamente as coisas, o copeiro-mor esqueceu-se do seu intérprete.

Gênese, 40, 1-23




JOSÉ INTERPRETA OS SONHOS
DO FARAÓ


Dois anos depois, o faraó teve um sonho. Parecia-lhe que estava na margem do rio, do qual saíam sete vacas, muito formosas e gordas, as quais pastavam nos lugares palustres. Saíam também outras sete do rio, desfiguradas e consumidas de magreza, as quais pastavam na mesma margem do rio, em lugares cheios de erva; e estas devoraram aquelas que eram belas de aspecto e gordas de corpo. Tendo o faraó despertado, adormeceu novamente, e teve outro sonho: Sete espigas saíam do mesmo caule, cheias de grãos e formosas; nasciam também outras tantas espigas delgadas e queimadas do suão, as quais devoravam todas as primeiras que eram tão belas. Despertando o faraó do sono, e tendo amanhecido, cheio de pavor, mandou chamar todos os adivinhos do Egito, e todos os sábios; e, estando reunidos, contou-lhes o sonho e não havia quem lho explicasse.

Gênese, 40, 1-23



JOSÉ INTERPRETA OS SONHOS
DO FARAÓ


Então, finalmente, lembrando-se o copeiro-mor de José, disse: Confesso a minha falta: Tendo-se o rei irado contra os seus servos, mandou que eu e o padeiro-mor fossemos lançados no cárcere do general do exército; aí uma noite, ambos nós tivemos um sonho que pressagiava o futuro. Achava-se lá um jovem hebreu, servo do mesmo general do exército; e, tendo-lhe nós referido os sonhos, ouvimos tudo o que depois os fatos comprovaram; porque eu fui restituído ao meu ofício, e o outro foi pendurado em uma forca. Imediatamente José foi tirado do cárcere por mandado do rei; barbearam-no, mudaram-lhe os vestidos, e apresentaram-lho. E este disse-lhe: Tive uns sonhos, e não há quem os interprete; ouvi dizer que tu sabes explicá-los sapientissimamente. José respondeu: Não eu, mas Deus responderá favoravelmente ao faraó. O faraó, pois, contou o que tinha visto: Parecia-me estar sobre a margem do rio, e que saíam do rio sete vacas, em extremo formosas, e muito gordas, as quais pastavam a erva verde nos lugares palustres. E eis que, atrás destas, vinham outras sete vacas tão disformes e magras, que nunca as vi semelhantes na terra do Egito; as quais, devoradas e consumidas as primeiras, não deram nenhum sinal de ficar fartas; mas ficaram tão macilentas e feias como dantes. Acordei, fui novamente oprimido pelo sono, e tive este sonho: Sete espigas saíam do mesmo caule, cheias e formosas. Outras sete, delgadas e queimadas do suão, nasciam doutro caule, as quais devoraram as primeiras, que eram tão belas. Referi aos adivinhos o sonho, e não há quem o explique. José respondeu: O sonho do rei reduz-se a um só: Deus mostrou ao faraó o que está para fazer.
As sete vacas formosas e as sete espigas cheias são sete anos de abundância; e no sonho têm a mesma significação. As sete vacas magras e macilentas, que subiram (do rio) após as primeiras, e as sete espigas delgadas e queimadas do suão são sete anos de fome que estão para vir. Isto cumprir-se-á por esta ordem. Eis que virão sete anos de grande fertilidade por toda a terra do Egito; depois dos quais seguirão outros sete anos de tanta esterilidade, que será esquecida toda a abundância passada; porque, a fome há de consumir toda a terra, e a grandeza da penúria há de absorver a grandeza da abundância. Quanto ao segundo sonho que tiveste, que se refere à mesma coisa, é um sinal certo de que se há de executar a palavra de Deus, e prontamente se cumprirá.
Agora, pois, escolha o rei um homem sábio e ativo, a quem dê autoridade sobre a terra do Egito; este (homem) estabeleça superintendentes por todas as províncias; e a quinta parte dos frutos nos sete anos de fertilidade, que já estão para começar, seja recolhida nos celeiros; e guarde-se todo o trigo debaixo do poder do faraó, e conserve-se nas cidades. E tenha-se preparado para a futura fome dos sete anos, que há de oprimir o Egito; assim o país não será consumido pela fome.


JOSÉ NOMEADO SUPERINTENDENTE
DO EGITO

— Agradou o conselho ao faraó e a todos os seus ministros; e disse-lhes: Poderemos nós encontrar um homem como este, que esteja cheio do espírito de Deus? Disse, pois, a José: Visto que Deus te manifestou tudo o que disseste, poderei eu encontrar alguém mais sábio e semelhante a ti? Tu governarás a minha casa, e ao mando de tua voz obedecerá todo o povo; eu não terei sobre ti outra precedência além do trono. O faraó disse mais a José: Eis que te dou autoridade sobre toda a terra do Egito. Tirou o anel da sua mão, e colocou-o na mão dele; vestiu-lhe um vestido de linho fino e pôs-lhe ao pescoço um colar de ouro. E fê-lo subir para o seu segundo coche, clamando o pregoeiro que todos se ajoelhassem diante dele, e soubessem que era o superintendente de toda a terra do Egito. Disse também o rei a José: Eu sou o faraó; sem teu mando ninguém moverá mão ou pé em toda a terra do Egito. Mudou-lhe o nome, e chamou-o na língua egípcia Salvador do Mundo. Deu-lhe por mulher a Asenet, filha de Putifar, sacerdote de On. Saiu, portanto, José a correr a terra do Egito.

Gênese, 41, 1-45



DEUS SE COMUNICA EM SONHO
COM SEUS SERVOS


Ouvi as minhas palavras: Se entre vós algum é profeta do Senhor, eu lhes aparecerei em visão, ou lhe falarei em sonhos.
(Números, 12, 6)
Aproximando-se Gedeão, um deles contava ao camarada o seu sonho, e deste modo lhe referia o que tinha visto: Tive um sonho e parecia-me ver como que um pão de cevada cozido debaixo do rescaldo, que rolava, e ia cair sobre o acampamento de Madian; e, tendo chocado com uma tenda, sacudiu-a com a pancada, e a lançou de todo por terra. O outro, a quem ele falava, respondeu: Isto não é outra coisa senão a espada de Gedeão, filho de Joás, homem israelita; porque o Senhor lhe entregou nas mãos Madian e todo o seu acampamento.
Juizes, 7, 13-14

Enquanto Nicanor, na sua orgulhosa segurança, tinha assentado consigo erigir um troféu (em memória da derrota) de Judas e de toda a sua gente, Macabeu esperava sempre, com toda a confiança, que Deus o havia de assistir com o seu auxílio. Exortava os seus a que não temessem o ataque das nações, mas que se lembrassem dos auxílios recebidos do céu no passado e esperassem também agora que o Todo-poderoso lhes daria a vitória. Animou-os com a lei e os profetas, recordou-lhes os combates sustentados, e, assim, infundiu-lhes novo ardor. Depois de lhes ter levantado o espírito, representou-lhes ao mesmo tempo a perfídia das nações e a violação dos seus juramentos. Armou cada um deles, não tanto com a prevenção de escudos e lanças, como com palavras e exortações excelentes. Contou-lhes também um sonho digno de fé, uma espécie de visão, que encheu a todos de alegria.
Eis a visão que teve: Parecia-lhe que Onias, sumo sacerdote, que tinha sido homem de bem e afável, de feitio retraído mas de modos delicados, distinto no falar, desde menino exercitado nas virtude, orava de mãos estendidas por todo o povo judaico; depois disto, apareceu-lhe outro varão respeitável pelos seus cabelos todos brancos e pela sua glória, de aspecto majestoso. Onias apontando para ele, disse: Este é o amigo de seus irmãos e do povo de Israel, é Jeremias, profeta de Deus, que ora muito pelo povo e por toda a cidade santa. Depois Jeremias, estendendo a sua mão direita, deu a Judas uma espada de ouro, dizendo-lhe: Toma esta santa espada como um presente de Deus, com a qual deitarás por terra os teus inimigos.

Macabeus, 15, 6-16




DANIEL E OS SONHOS DE NABUCODONOSOR

A VISÃO DA ESTÁTUA

No décimo-segundo ano do seu reinado teve Nabucodonosor um sonho e o seu espírito ficou em extremo atemorizado; depois esqueceu-se inteiramente deste sonho. Mandou, pois, o rei convocar os adivinhos e os magos, os encantadores e os caldeus, para que lhe fizessem conhecer qual tinha sido o seu sonho. Eles, tendo chegado, apresentaram-se diante do rei. O rei disse-lhes: Tive um sonho, mas o meu espírito está perturbado e já não sei o que vi. A isto os caldeus responderam ao rei — em aramaico —: ó rei, vive eternamente! Dize a teus servos o sonho que tiveste, e nós o interpretaremos. Respondendo o rei, disse aos caldeus: O meu sonho fugiu-me da memória; e, se vós não me declarardes o sonho e a sua significação, todos perecereis e as vossas casas serão confiscadas. Mas, se expuserdes o sonho e o que ele significa, recebereis de mim prêmios e dons e grandes honras. Exponde-me, pois, o sonho e a sua interpretação. Eles segunda vez responderam e disseram: Diga o rei a seus servos o sonho que teve e nós lhe daremos a sua interpretação. Respondeu o rei e disse: Conheço bem que procurais ganhar tempo, pois sabeis que o sonho o esqueci. Se vós, pois, me não disserdes o que sonhei, o conceito único que formarei de vós é que também forjareis uma interpretação falsa e cheia de ilusão, para me entenderdes com palavras, até. que tenha passado o tempo. Dizei, pois, qual foi o meu sonho, para que eu também saiba que a interpretação que lhes destes é verdadeira. Dando, pois, a sua resposta os caldeus na presença do rei, disseram: Não há homem, ó rei, sobre a face da terra, que possa executar a tua ordem; nenhum rei há, por grande e poderoso que seja, que pergunte semelhante coisa a um adivinho, a um mago, ou a um caldeu. Porque o que tu perguntas, ó rei, é difícil; nem se achará pessoa alguma que declare isso diante do rei, exceto os deuses, os quais hão têm comércio com os homens.
Ao ouvir isto, o rei, todo enfurecido e cheio de uma grande ira, ordenou que fossem mortos todos os sábios de Babilônia. Publicada que foi esta sentença, ia-se fazendo matança dos sábios e andava-se em busca de Daniel e dos seus companheiros para também perecerem.
Então, Daniel informou-se de Arioc, general dos exércitos do rei, que tinha saído para fazer matar os sábios de Balbilônia, sobre que lei e sentença era!esta. Perguntou ao que tinha recebido a ordem do rei, por que causa havia pronunciado o rei uma sentença tão cruel. Tendo Arioc declarado a Daniel o que havia sobre isso, apresentou-se Daniel ao rei e suplicou-lhe que lhe concedesse algum tempo para dar solução ao que o rei desejava.
E (Daniel) foi para sua casa e contou o que sé passava aos seus companheiros Ananias, Misael e Azarías, a fim de que eles implorassem a misericórdia do Deus do céu acerca deste segredo, e para qual Daniel e seus companheiros não perecessem com os outros sábios de Babilônia.
Então foi descoberto este segredo a Daniel numa visão durante a noite; e Daniel bendisse o Deus do céu e disse: Seja bendito o nome do Senhor de século em século, porque dele são a sabedoria e a fortaleza. É ele que muda os tempos e as idades, que transfere e estabelece os reinos, que dá a sabedoria aos sábios e a ciência aos inteligentes. É ele que revela as coisas profundas e escondidas, que conhece o que está nas trevas; e a luz está com ele. A ti, ó Deus de nossos pais, eu dou graças e te louvo, porque me deste a sabedoria è a fortaleza, e agora me mostraste o que tínhamos pedido, porque nos descobriste o que o rei desejava saber.
Depois disto, Daniel foi ter com Arioc, a quem o rei tinha ordenado que fizesse matar os sábios de Babilônia, e falou-lhes desta maneira: Não mates os sábios de Babilônia; acompanha-me à presença do rei e eu lhe darei a solução que deseja. Então Arioc apresentou logo Daniel ao rei e disse-lhe: Encontrei um homem dentre os cativos dos filhos de Judá, que dará ao rei a solução que deseja. O rei respondeu e disse a Daniel, que tinha por nome Baltasar: Julgas tu que me poderás dizer verdadeiramente o que eu vi em sonho e dar-me a sua interpretação? Respondendo Daniel perante o rei, disse: Os sábios, os magos, os adivinhos e os agoureiros não podem descobrir ao rei o mistério que o rei deseja descobrir. Mas no céu há um Deus que revela os mistérios, o qual mostrou, ó rei Nabucodonosor, as coisas que hão de acontecer nos últimos tempos.
O teu sonho e as visões que a tua cabeça teve no teu leito, são as seguintes. Tu, ó rei, começaste a pensar, estando na tua cama, no que havia de acontecer depois destes tempos; e aquele que revela os mistérios te descobriu as coisas que hão de vir. A mim também me foi revelado este segredo, não porque a sabedoria, que há em mim, seja maior que a que se acha em todos os outros viventes, mas para que ficasse manifesta ao rei a interpretação do seu sonho e para que soubesses os pensamentos do teu espírito. Tu, ó rei, estavas olhando e parecia-te que vias como que uma grande estátua; e esta estátua grande e de altura extraordinária, estava de pé diante de ti e o seu aspecto era espantoso. A cabeça desta estátua era de ouro finíssimo; porém o peito e os braços eram de prata; o ventre e as coxas eram de cobre; as pernas eram de ferro; uma parte dos pés era de ferro e a outra de barro. Estavas a olhá-la, quando uma pedra se desprendeu dum monte sem intervirem mãos, a qual feriu a estátua nos seus pés de ferro e de barro e os fez em pedaços. Então se quebraram a um tempo o ferro, o barro, o cobre, a prata e o ouro, e ficaram reduzidos como a miúda palha que o vento leva para fora da eira no tempo do estio; não ficou nada deles; porém a pedra que tinha dado na estátua tornou-se um grande monte que encheu toda a terra.
Este é o sonho. Diremos também na tua presença, ó rei, a sua interpretação. Tu és o rei; o Deus do céu deu-te o reino, a força, o império e a glória; e (sujeito ao teu poder) todos os lugares em que habitam os filhos dos homens e os animais do campo; entregou também nas tuas mãos as aves do céu, e todas as coisas submeteu ao teu domínio; tu, pois, és a cabeça de ouro. Depois de ti, se levantará outro reino, menor que o teu, que será de prata; é outro terceiro reino, que será de cobre, o qual mandará em toda a terra. O quarto reino será como ferro; assim como o ferro quebra e doma todas as coisas, assim ele quebrará e fará todos os outros em migalhas. E, quanto o que viste dos pés e dos dedos serem uma parte de barro de oleiro e outra parte de ferro, esse reino, que terá com tudo isso a sua origem da veia do ferro, será dividido, segundo tu viste que o ferro estava misturado com a terra e com o barro. Os dedos dos pés, em parte de ferro e em parte de barro, dão a entender que esse mesmo reino será em parte firme e em parte frágil. E como tu viste que o ferro estava misturado com a terra e com o barro, também eles se misturarão por meio de parentescos contraídos, mas não formarão um corpo único entre si, assim como o ferro se não pode ligar com o barro. No tempo, porém, daqueles reinos suscitará o Deus do céu um reino que não será jamais destruído, e este reino não passará a outro, povo; antes esmigalhará e aniquilará todos estes reinos e ele subsistirá para sempre. Segundo o que viste, que uma pedra foi arrancada do monte sem intervir mão de (homem) e esmigalhou o barro, o ferro, o cobre, a prata, o ouro, com isto mostrou o grande Deus ao rei o que está para vir nos tempos futuros. É verdadeiro o sonho e fiel esta interpretação.
Então o rei Nabucodonosor, prostrou-se com o rosto em terra, adorou Daniel e mandou que lhe fizessem sacrifícios de vítimas e lhe queimassem incenso. O rei, pois, falando a Daniel, disse-lhe: Verdadeiramente o vosso Deus é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis, o que revela os mistérios, pois que pudeste descobrir este segredo.

Daniel, 2, 1-47





A VISÃO DA ÁRVORE


Eu, Nabucodonosor, estava tranqüilo em minha casa e feliz no meu palácio. Tive um sonho que me atemorizou; e, estando na minha cama, os meus pensamentos e as visões da minha imaginação perturbaram-me.
Por esta causa publiquei um decreto para que viessem a minha presença os adivinhos, os magos, os caldeus e os agoureiros, aos quais contei o meu sonho na sua presença; mas eles não me deram a sua interpretação; até que se apresentou diante de mim o seu colega Daniel, que tem por nome Baltasar, segundo ò nome do meu deus, o qual tem em si mesmo o espírito dos deuses santos; expus diante dele assim o meu sonho: Baltasar, príncipe dos adivinhos, como eu sei que tens em ti o espírito dos deuses santos e que nenhum segredo te é impenetrável, expõe-me as visões dos sonhos que tive e da--me a sua interpretação.
A visão da minha imaginação, estando eu na minha cama, foi esta: Parecia-me ver no meio da terra uma árvore e a sua altura era desmarcada. Era uma árvore grande e forte, e a sua altura chegava até ó céu; via-se das extremidades de toda a terra. As suas folhas eram formosíssimas e os seus frutos copisosíssimos; dela todos se podiam sustentar.
Os animais domésticos e selvagens habitavam debaixo dela, as aves do céu pousavam sobre os seus ramos, e dela se sustentava toda a carne.
Eu estava vendo isto na visão da minha imaginação sobre o meu leito, e eis que um dos que velam e que são santos, desceu do céu. Chamou com voz forte, e disse: Deitai abaixo esta árvore, cortai-lhe os ramos, fazei-lhe cair as folhas e dispersar seus frutos; fujam os animais que estão debaixo dela e as aves que estão sobre os seus ramos. Deixai todavia na terra o tronco com as suas raízes; seja ele atado com cadeias de ferro e de bronze entre as ervas dos campos, seja molhado com o orvalho do céu e a sua sorte seja com as feras entre a erva da terra. Mude-se-lhe o seu coração de homem, dê-se-lhe um coração de fera e passem sete tempos por cima dele. Por sentença dos que velam, assim foi decretado, e esta é a palavra e a petição dos santos, até que conheçam os viventes que o Altíssimo é quem tem o domínio sobre os reinos dos homens, dá-los-á a quem quiser, e porá nele o mais humilde dos homens. Eis o sonho que eu, rei Nabucodonosor, tive. Tu, pois, Baltasar, apressa-te a interpretar--mo, porque nenhum dos sábios do meu reino me pode dizer o que significa; tu, porém, podes, porque o espírito dos deuses santos está em ti.
Então, Daniel, por outro nome Baltasar, começou a pensar consigo mesmo em silêncio durante quase uma hora, e os seus pensamentos perturbavam-no. Mas o rei, tomando a palavra, disse-lhe: Baltasar, não te turbe o sonho, nem a sua interpretação. Baltasar respondeu-lhe e disse:
Meu senhor, (oxalá que) o sonho seja contra os que têm ódio e. a sua interpretação seja contra os teus inimigos. A árvore que tu viste alta e robusta, cuja altura chega até o céu, e que se via de toda a terra, (essa árvore) cujos ramos eram formosíssimos e cujos frutos muito abundantes, na qual todos achavam com que se sustentar, sob a qual os animais do campo habitavam, e em cujos ramos as aves do céu pousavam, és tu, ó rei, que tens sido engrandecido e que te fizeste poderoso; cresceu a tua grandeza e chegou até o céu, o teu poder estendeu--se até as extremidades de toda a terra. E quanto ao ter o rei visto o que vela e que é santo baixar do céu e dizer: Deitai abaixo esta árvore e cortai-lhe os ramos, deixai todavia na terra o tronco com as suas raízes, seja ele atado com cadeias de ferro e de bronze entre as ervas dos campos, seja molhado com o orvalho do céu e o seu pasto seja com as feras, até se terem passado sete tempos por cima dele; eis a interpretação da sentença do Altíssimo, que foi pronunciada contra o rei, meu senhor: Lançar-te-ão fora da companhia dos homens, a tua habitação será com os animais e feras, comerás feno como boi e serás molhado com o orvalho do céu; passar-se-ão assim sete tempos por cima de ti, até que reconheças que o Altíssimo domina sobre o reino dos homens c o dá a quem lhe apraz. Quanto à ordem de deixar o germe das raízes da árvore, (isso significa que) o teu coração se ficará conservando para se tornar a dar, depois que tiveres reconhecido que o teu poder vem do céu. Portanto segue, ó rei, o conselho que te dou, e resgata os teus pecados com esmolas e as tuas iniqüidades com obras de misericórdia para com os pobres; talvez que o Senhor te perdoe os teus delitos.
Todas estas coisas aconteceram ao rei Nabucodonosor.

Daniel, 4, 1-25



O SONHO DE MARDOQUEU


No quarto ano, reinando Ptolomeu e Cleópatra, Dosileu, que se dizia sacerdote e da linhagem de Levi, e Ptolomeu, seu filho, trouxeram esta carta a respeito dos Purim, que disseram ter sido traduzida em Jerusalém por Lisímaco, filho de Ptolomeu.
Este princípio estava também na edição Vulgala, o qual não se encontra nem no hebraico, nem tampouco em algum dos intérpretes.
No ano segundo, reinando o mui grande Artaxerxes (ou Assuero), no primeiro dia do mês de Nisan, Mardoqueu, filho de Jair, filho de Semei, filho de Cis, da tribo de Benjamim, teve um sonho. Ele era um homem judeu, que morava na cidade de Susa, varão grande e dos primeiros da corte do rei. Era do número dos cativos que Nabucodonosor, rei da Babilônia, levara de Jerusalém, com Jeconias, rei de Judá.
O seu sonho foi este: Pareceu-lhe ouvir vozes, estrondos, trovões, terremotos e perturbações sobre a terra; e eis que apareceram dois grandes dragões, prontos para combater um contra o outro. Ao ruído deles alvoroçaram-se todas as nações para combater contra a nação dos justos. E foi aquele um dia de trevas e de perigo, de tributação e de angústia, e houve grande temor sobre a terra. Conturbou-se a nação dos justos, temendo os seus males, e preparou-se para a morte. Clamaram a Deus; e, quando levantaram o grito, uma pequena fonte tornou-se um rio muito grande, que derramou água em grandíssima abundância. A luz e o sol brilharam, os humildes foram exaltados e devoraram os grandes. Quando Mardoqueu viu isto, levantou-se do leito e pôs-se a pensar no que Deus queria fazer; tinha o sonho fixo no espírito, desejando saber o que significaria.

Ester, 11, 1-12

Mardoqueu disse: Deus ó quem fez isto. Lembro-me de um sonho que tive, o qual significava isto mesmo; e nada (do que sonhei) ficou por cumprir. A pequena fonte, que cresceu até se tornar um rio, que se transformou em luz e em sol, e derramou águas em grandissíssima abundância, é Ester, a qual o rei tomou por mulher e quis que fosse rainha. Os dois dragões sou eu e Aman. As gentes, que se juntaram, são aqueles que intentaram apagar o nome dos judeus. E a minha gente é Israel, o qual chamou ao Senhor: o Senhor salvou o seu povo e nos livrou de todos os males, e fez grandes milagres e prodígios no meio das nações; ordenou que houvesse duas sortes. uma para o povo de Deus e outra para todas as gentes

(Ester, 10, 4-10).



O SONHO DE ABIMELEC


— E Abraão partiu dali para a parte do meio dia, habitou entre Cades e Sur, e viveu como peregrino em Gerara. E, falando de Sara sua mulher, disse: É minha irmã. Mandou, pois, Abimelec, rei de Gerara, buscá-la. Mas Deus apareceu de noite em sonhos a Abimelec, e disse-lhe: Eis que morrerás por causa da mulher que roubaste, porque ela tem marido. Ora Abimelec não a tinha tocado, e disse: Senhor; matarás tu um povo ignorante e justo? Porventura não me disse ele: Ela é minha irmã; e não me disse ela: Ele é meu irmão? Fiz isto na simplicidade do meu coração, e com pureza das minhas mãos. E Deus disse-lhe: Sei que procedeste com um coração simples; e, por isso, te preservei de pecar contra mim, e não permiti que a tocasses. Agora, pois, entrega a mulher a seu marido, porque ele é profeta; e rogará por ti, e tu viverás; se, porém, não quiseres restituí-la, sabe que morrerás indubitavelmente, tu e tudo o. que é teu. E Abimelec, levantando-se logo, sendo ainda noite, chamou todos os seus servos e contou-lhes todas estas coisas, e todos ficaram muito atemorizados. Depois Abimelec chamou também Abraão, e disse-lhe: Que nos fizeste tu? Que mal te fizemos nós para atraíres sobre mim e sobre o meu reino tão grande pecado? Fizeste-nos o que não deveras fazer. E, continuando ainda as suas queixas, disse: O que tiveste em vista fazendo isto? Abraão respondeu-lhe: Pensei comigo mesmo, e disse: Talvez nesta terra não há temor de Deus, e me matarão por causa de minha mulher. Por outra parte ela é verdadeiramente minha irmã, filha de meu pai, (embora) não filha de minha mãe e eu a recebi por mulher. Mas depois que Deus me tirou da casa de meu pai, eu disse-lhe: Faze-me esta graça: em qualquer lugar onde entrarmos, dirás que eu sou teu irmão. Tomou, Abimelec ovelhas e bois e escravos e escravas, e deu-os a Abraão; e restituiu-lhe Sara, sua mulher, e disse-lhe: Esta terra está diante de ti, habita onde te agradar.
Gênese, 20, 1-15



O SONHO DE JACÓ


Jacó, pois, tendo partido de Bersabéia, ia para Haran. Tendo chegado a certo lugar, e, querendo nele descansar depois do sol posto, tomou uma das pedras que ali estavam, e, pondo-a debaixo da cabeça, dormiu naquele mesmo lugar. Viu. em sonhos uma escada posta sobre a terra, cujo cimo tocava o céu, e os anjos de Deus subindo e descendo por ela, e o Senhor apoiado na escada, que lhe dizia: Eu sou o Senhor Deus de Abraão, teu pai; e Deus de Isaac; darei a ti e a sua descendência a terra em que dormes. A tua posteridade será como o pó da terra; dilatar-te-ás para o ocidente, para o oriente, para o setentrião e para o meio-dia; serão abençoadas em ti e na tua geração todas as tribos da terra. Eu serei o teu protetor para onde quer que fores, reconduzir-te-ei a esta terra, e não te abandonarei sem cumprir tudo o que disse. Tendo Jacó despertado do sono, disse: Na verdade o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia. Cheio de pavor, disse: Quão terrível é este lugar! Não há aqui outra coisa senão a casa de Deus e a porta do céu.

Gênese, 28, 10-17



O SONHO DE SALOMÃO


Foi Salomão, pois, a Gabaão, para lá sacrificar, porque este era o mais considerável entre todos os lugares altos; e ofereceu mil hóstias em holocausto sobre aquele altar. Em Gabaão apareceu o Senhor a Salomão, em sonhos, de noite, dizendo: Pede-me o que quiseres que eu te dê. Salomão disse: Tu usaste de grande misericórdia com meu pai Davi, teu servo, segundo a verdade e justiça com que ele andou na tua presença, e segundo a retidão de coração para contigo: tu lhe conservaste a sua grande misericórdia, e lhe deste um filho que se sentasse sobre o seu trono, como hoje se verifica. Agora, ó Senhor Deus, tu me fizeste reinar a mim, teu servo, em lugar de Davi, meu pai; mas eu sou (como) um menino pequenino, e não sei por onde hei de sair nem por onde hei de entrar. O teu servo está no meio do povo que tu escolheste, povo infinito, que não pode contar-se nem reduzir-se a número, pela multidão. Tu, pois, darás ao teu servo um coração dócil, para poder julgar o teu povo, e discernir entre o bem e o mal, porque quem poderá julgar este povo tão numeroso?
Agradou ao Senhor esta oração por ter Salomão pedido tal coisa.
O Senhor disse a Salomão: Pois que esta foi a petição que me fizeste, e não pediste para ti muitos dias, nem riquezas, nem a morte de teus inimigos, mas pediste-me para ti a sabedoria a fim de discernires o que é justo; eis pois te fiz o que me pediste, e te dei um coração tão cheio de sabedoria e de inteligência, que nenhum antes de (i te foi semelhante nem se levantará outro depois de ti: Além disso dei-te também o que me não pediste, a saber: riquezas e glória em tal grau, que não se encontrará semelhante a ti entre os reis de todos os séculos passados. E, se tu andares nos meus caminhos, e guardares os meus preceitos e os meus mandamentos, como teu pai os guardou, eu prolongarei os teus dias.
Então despertou Salomão e compreendeu que era sonho; e, tendo ido a Jerusalém, pôs-se diante da arca da aliança do Senhor, ofereceu holocaustos, imolou vítimas pacíficas e deu a Iodos os seus servos um grande banquete.

I Reis, 3, 4-15


O VAZIO DOS SONHOS


É próprio do homem insensato sustentar-se das vãs esperanças e de mentira; e os sonhos dão asas à fantasia dos imprudentes.
Como quem se abraça com uma sombra e vai atrás do vento, assim é o que atende a enganosas visões.
As visões dos sonhos são a semelhança das coisas; são como a imagem de um homem diante do seu próprio rosto.
Que coisa será limpa para um imundo? É por um mentiroso que a verdade será dita?
A adivinhação errônea, os agouros falsos, e os sonhos dos malfeitores são vaidade.
E o teu coração, como o da mulher que está de parto, padecerá imaginações. Se pelo Altíssimo não te foi enviada alguma destas visões, não ponhas nela teu coração.

Eclesiastes, 34, 1-6



DA PARCIMÔNIA


Não digas inconsideradamente, nem o teu coração se apresse a proferir palavras diante de Deus. Porque Deus está no céu e tu sobre a terra; portanto sejam poucas as tuas palavras. Os muitos cuidados produzem sonhos e no muito falar achar-se-á a loucura.

Eclesiastes, 5,1-2
VISÕES PROFÉTICAS

AS QUATRO BESTAS


No primeiro ano de Baltasar, rei da Babilônia, teve Daniel uma visão em sonhos. Esta visão teve-a o seu espírito, estando na sua cama; e, escrevendo o seu sonho, resumiu-o em poucas palavras, e, apontando-o em suma, disse: Eu estava na minha visão noturna, e eis que os quatro ventos do céu pelejavam uns contra os outros no mar grande. E quatro grandes animais, diferentes uns dos outros, saíam do mar. O primeiro era como uma leoa e tinha asas de águia; quando eu estava olhando para ela, foram-lhe arrancadas as asas, foi levantada da terra e pôs-se sobre os seus pés, como um homem, e foi-lhe dado um coração de homem. Vi outro animal semelhante a um urso, que se pôs ao seu lado, o qual tinha três ordens de dentes na sua boca, e diziam-lhe assim: Levanta-te, come carne em abundância. Depois disto estava eu olhando e vi outro (animal), que era como um leopardo, tinha em cima de si quatro asas, como asas dum pássaro; este animal tinha quatro cabeças e foi-lhe dado o poder. Depois disto, eu contemplava esta visão noturna, e eis que vi um quarto animal, terrível e espantoso e extraordinariamente forte; tinha uns grandes dentes de ferro; devorava, despedaçava e calcava aos pés o que sobejava; era diferente dos outros animais que eu tinha visto antes dele, e tinha dez chifres. Estava eu contemplando os chifres, e eis que vi outro chifre pequeno, que nascia do meio deles; três dos primeiros chifres foram arrancados diante dele; reparei que neste chifre havia uns olhos como olhos de homem, e uma boca que falava com insolência.



O ANCIÃO E O JULGAMENTO


Eu estava atento ao que via, até que foram postos uns tronos, e o Ancião dos (muitos) dias sentou-se; o seu vestido era branco como a neve e os cabelos da sua cabeça como a pura lã; o seu trono era de chamas de fogo e as rodas deste trono um fogo ardente. De diante dele saía um impetuoso rio de fogo; eram milhares de milhares os que assistiam diante dele. Assentou-se para julgar e foram abertos os livros. Eu olhava atentamente por causa do ruído das palavras arrogantes que este chifre proferia; e vi que o animal tinha sido morto e que o seu corpo perecera e fora entregue ao fogo para ser queimado; vi também que tinha sido tirado o poder aos outros animais, e que a duração da sua vida lhes tinha sido assinalada até um tempo e um tempo.



O FILHO DO HOMEM


Eu estava, pois, observando estas coisas durante a visão noturna, e eis que vi um que parecia o filho do homem, que vinha com as nuvens do céu, e que chegou até ao Ancião' dos (muitos) dias; e o apresentaram diante dele. E ele deu-lhe o poder, a honra e o reino; todos os povos, tribos e línguas o serviram; o seu poder é um poder eterno que lhe não será tirado; o seu reino não será jamais destruído.
O meu espírito encheu-se de horror; eu, Daniel, fiquei atemorizado com estas coisas, e as visões da minha cabeça perturbaram-me. Aproximei-me dum dos assistentes e perguntei-lhe a verdadeira significação de todas estas coisas. Ele deu-me a interpretação destas visões e ensinou-me: Estes quatro grandes animais são quatro reinos, que se levantarão da terra. Mas os sonhos do Deus altíssimo receberão o reino e entrarão na posse do mesmo reino até ao fim dos séculos, e por todos os séculos dos séculos.
Depois disto, quis eu diligentemente informar-me do quarto animal, que era muito diferente de todos os outros, sobremaneira temeroso, cujos dentes e unhas eram de ferro, e que devorava, despedaçava e calcava com os pés o que sobejava. E quis (também informar-me) dos dez chifres que tinha na cabeça, do outro que lhe viera de novo, na presença do qual tinham caído três dos outros chifres, deste chifre, que tinha olhos e tinha uma boca que falava com insolência e que se tinha tornado maior do que os outros. Estava eu observando e eis que aquele chifre fazia guerra contra os santos, sobre os quais prevalecia, até que veio o Ancião dos (muitos) dias, sentenciou a favor dos santos do Excelso, chegou o tempo e os santos obtiveram o reino.



O QUARTO REINO


Ele falou assim: O quarto animal será na terra o quarto reino, que será maior do que todos os outros reinos, devorará toda a terra, calca-la-á aos pés, e a despedaçará. Os dez chifres deste reino serão dez reis; depois deles se levantará outro: será mais poderoso do que os primeiros e humilhará os três reis. E falará insolentemente contra o Excelso, atropelará os santos do Altíssimo e imaginará que pode mudar os tempos e as leis; os santos serão entregues nas suas mãos até um tempo, dois tempos e metade dum tempo. E (depois) se realizará o juízo, a fim de que lhe seja tirado o poder, seja ele destruído e pereça para sempre, e seja dado o reino, o poder e a grandeza, do reino, que está debaixo de todo o céu, ao povo dos santos do Altíssimo, cujo reino é um reino eterno, e ao qual servirão e obedecerão todos os reis.
Aqui terminou o que me foi dito. Eu, Daniel, fiquei muito perturbado com estes meus pensamentos e todo o meu semblante se mudou; mas conservei no meu coração esta, visão.



O CARNEIRO E O BODE


No terceiro ano do reinado do rei Baltasar, tive uma visão. Eu, Daniel, depois do que tinha visto no princípio, vi uma visão que tive, encontrando-me no castelo de Susa, que está no país de Elam; vi, pois, nesta visão que eu estava à porta de Ulai.
Levantei os meus olhos e olhei; e eis que estava em pé diante duma lagoa um carneiro que tinha uns chifres elevados, um dos quais era mais alto do que o outro, e crescia pouco a pouco. Depois vi que o carneiro dava marradas contra o ocidente, o aquilão e o meio-dia, e nenhuma besta lhe podia resistir, nem livrar-se do seu poder; fez quanto quis e tornou-se poderoso.
Estava eu considerando isto, e eis que um bode vinha do ocidente sobre a face de toda a terra, e (tão rapidamente que) não tocava na terra; este bode tinha um grande chifre entre os seus olhos. Dirigiu-se contra aquele carneiro que tinha chifres, o qual eu tinha.visto em pé diante da porta; e correu para ele com todo o ímpeto de sua força. Tendo chegado perto do carneiro, atacou-o com fúria, feriu-o, quebrou-lhe os dois chifres, sem que o carneiro lhe pudesse resistir; e, tendo-o lançado por terra, pisou-o aos pés, e não houve quem pudesse livrar o carneiro do seu poder. O bode tornou-se extraordinariamente grande; e, tendo crescido, quebrou-se o seu grande chifre, por baixo do qual formaram-se quatro chifres para os quatro ventos do céu. Porém, dum destes saiu um chifre pequeno, que se tornou grande contra o meio-dia, contra o oriente e contra a terra forte. Elevou--se até contra a fortaleza do céu; deitou abaixo muitas estrelas e pisou-as aos pés. Elevou-se até contra o príncipe da força, tirou-lhe o sacrifício perpétuo e destruiu o lugar do seu santuário. Foi-lhe dado poder contra o sacrifício perpétuo, por causa dos pecados; a verdade será abatida sobre a terra, e ele empreenderá tudo, e tudo lhe sucederá conforme seu desejo.
Então ouvi um dos santos que falava; e um santo perguntou a outro, não sei qual, que lhe falava: Até quando durará (o que) a visão (anuncia) quanto ao sacrifício perpétuo e ao pecado da desolação que foi feita; e até quando será calcado aos. pés o santuário e a fortaleza? Ele respondeu-lhe: Até dois mil e trezentos dias compostos de tarde e manhã; e depois o santuário será purificado.
Ora, enquanto eu, Daniel, tinha esta visão, e procurava a sua inteligência, eis que se apresentou diante de mim uma como figura de homem. Ouvi a voz dum homem no meio de Ulai, o qual gritou e disse: Gabriel, explica-lhe esta visão. Veio e parou junto do lugar onde eu estava; e, quando ele chegou, caí espavorido com o rosto por terra, e ele disse-me: Entende, filho do homem, porque esta visão se cumprirá no tempo fixado. E, enquanto me estava falando, tornei a cair com o rosto por terra; ele, porém, tocou-me e fez-me pôr em pé. Depois disse-me: Eu te mostrarei o que há de suceder no fim da maldição, porque o tempo tem o seu fim.



A EXPLICAÇÃO


O carneiro que viste, e que tinha chifres, é o rei dos medos e dos persas. O bode é o rei dos gregos; o grande chifre, que ele tinha entre os seus dois olhos, é o primeiro dos seus reis. Quanto aos quatro chifres, que, depois de quebrado aquele primeiro, se levantaram em seu lugar, são os quatro reis, que se levantarão da sua nação, mas sem terem a sua força. Depois do seu reinado, quando tiverem crescido as iniqüidades, levantar-se-á um rei descarado e compreendedor de enigmas; o seu poder se firmará, mas não pelas suas próprias forças; devastará tudo, além de quanto se pode imaginar, tudo lhe correrá bem e fará tudo o que quiser; matará os robustos e o povo dos santos, segundo a sua vontade; terão bom êxito os dolos que urdir, tornar-se:á arrogante o seu coração, e, vendo-se na abundância de todas as coisas, matará muitíssimos, e levantar-se-á contra (Deus) o príncipe dos príncipes, porém será aniquilado sem intervir mão de homem. £ aquela visão da tarde e da manhã, que te foi representada, é verdadeira. Sela esta visão, porque ela não sucederá senão depois de muitos dias.
Depois disto, eu, Daniel, perdi as forças e fiquei doente alguns dias; tendo-me levantado, trabalhava nos negócios do rei e estava pasmado da visão, sem haver quem a pudesse interpretar.



AS SETENTA SEMANAS


No primeiro ano de Dario, filho de Assuero, da estirpe dos medos, que reinou no império dos caldeus; no primeiro ano do seu reinado, eu, Daniel, pela lição dos livros (santos), compreendi, segundo o número dos anos de que o Senhor tinha falado ao profeta Jeremias, que a desolação de Jerusalém devia durar setenta anos. Voltei o meu rosto para o Senhor meu Deus, para lhe rogar e suplicar com jejuns, saco e cinza.
Orei ao Senhor meu Deus, fiz confissão das faltas e disse:


ORAÇÃO E CONFISSÕES DE DANIEL

Digna-te ouvir-me, ó Senhor Deus grande e terrível, que guardas a tua aliança e a tua misericórdia para com os que te amam e que observam os teus mandamentos. Nós pecamos, cometemos a iniqüidade, procedemos impiamente, apostatamos e afastamo-nos dos teus preceitos e das tuas leis. Não temos obedecido aos profetas, teus servos, que falaram em teu nome aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos pais, e a todo o povo do país. Tua é, ó Senhor, a justiça; a nós, porém, não nos resta senão a confusão do nosso rosto, como sucede hoje a todo homem de Judá, aos habitantes de Jerusalém e a todo o Israel, aos que estão perto e aos que estão longe em todos os países, para onde tu os lançaste, por causa das iniqüidades que cometeram contra ti. Para nós, Senhor, a confusão do rosto, para os nossos reis, para os nossos príncipes e para os nossos pais, que pecaram. Mas de ti, ó Senhor nosso Deus, é própria a misericórdia e a propiciação; porque nos retiramos de ti, e não ouvimos a voz do Senhor nosso Deus, para andarmos segundo a sua lei, que nos prescreveu por meio dos seus servos, os profetas. Todos os de Israel violaram a tua lei, desviaram-se para não ouvirem a tua voz e choveu sobre nós a maldição e a execração que está escrita no livro de Moisés servo de Deus, porque pecamos contra Deus. Cumpriu a sentença que proferiu contra nós e contra os nossos príncipes que nos julgaram, para fazer vir sobre nós esta calamidade grande, qual nunca se viu debaixo de todo o céu, como o que aconteceu a Jerusalém. Todo este mal caiu sobre nós, segundo está escrito na lei de Moisés, e nós não recorremos a ti, ó Senhor nosso Deus, de maneira a nos afastarmos das nossas iniqüidades e a nos aplicarmos ao conhecimento da tua verdade. Assim o Senhor vigiou sobre a malícia e fez cair sobre nós o castigo dela; o Senhor nosso Deus é justo em todas as obras que fez, porque nós não ouvimos a sua voz.
Agora, Senhor nosso Deus, que tiraste o teu povo da terra do Egito com mão poderosa, e que adquiriste então um nome que dura até ao dia de hoje, (confessamos que) temos pecado, que temos cometido a iniqüidade. Senhor, por toda a tua justiça, suplico-te que aplaques a tua ira e o teu furor contra a cidade de Jerusalém e contra o teu santo monte; porque Jerusalém e o teu povo são hoje o escárnio de todos os que nos cercam, por causa dos nossos pecados e das iniqüidades de nossos pais. Atende, pois, agora, Deus nosso, à oração do teu servo e às suas preces; sobre o teu santuário, que está deserto, faze brilhar a tua face, por amor de ti mesmo. Inclina, Deus meu, o teu ouvido e ouve; abre os teus olhos e vê a nossa desolação, e a da cidade, na qual se invocava o teu nome; porque nós, prostrando-nos em terra diante da tua face, não fazemos estas súplicas fundados em alguns merecimentos da nossa justiça, mas sim na multidão das tuas misericórdias. Ouve, Senhor, aplaca-te, Senhor; atende-nos e põe mãos à obra; não dilates mais, Deus meu, por amor de ti mesmo, porque esta cidade e este teu povo tem a glória de se chamarem do teu nome.
E, quando eu ainda falava, orava, e confessava os meus pecados e os pecados do meu povo de Israel, e, quando prostrado apresentava as minhas súplicas na presença do meu Deus a favor do santo monte do meu Deus.



GABRIEL TRAZ A RESPOSTA


Quando eu, digo, ainda não tinha bem acabado as palavras da minha súplica, eis que Gabriel, aquele varão que eu tinha visto no princípio da visão, voando rapidamente, me tocou no tempo do sacrifício da tarde; instruiu-me, falou-me e disse: Daniel, eu vim agora para te ensinar e para que tu entendas (os desígnios de Deus). Desde o princípio das tuas preces, foi dada esta ordem, e eu vim para cá descobrir, porque tu és um varão de desejos; toma, pois, bem sentido no que vou dizer-te e compreende a visão.
Setenta semanas de anos foram decretadas sobre o teu povo e sobre a tua cidade santa a fim de que as prevaricações se consumassem, o pecado tenha o seu fim, a iniqüidade se apague, a justiça eterna seja trazida, as visões e profecias se cumpram e o Santo dos santos seja ungido. Sabe, pois, isto e adverte-o bem: Desde a saída da ordem para Jerusalém ser reedificada até o Cristo chefe, passarão sete semanas e sessenta e duas semanas; e serão reedificadas as praças e os muros nos tempos de angústia. Depois das sessenta e duas semanas, será morto o Cristo, e o povo que o há de negar não será mais seu. Um povo com o seu capitão, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário; o seu fim será uma ruína total, e, depois do fim da guerra virá a desolação decretada. E (o Cristo) confirmará com muitos a sua aliança durante uma semana; no meio da semana fará cessar a hóstia e o sacrifício; estará no templo a abominação da desolação; e a desolação durará, até à consumação e até o fim.

Daniel 7,1-28; 8,1-27; 9,1-27 2





SONHO DUPLO

Ora, em Damasco havia um discípulo chamado Ananias, ao qual o Senhor, numa visão, disse-lhe: Ananias. Ele respondeu: Eis-me aqui. Senhor. O Senhor disse-lhe: Levanta-te, vai à rua chamada Direita, e busca em casa de Judas um (homem) de Tarso, chamado Saulo; porque ei-lo que está orando. (E, neste mesmo tempo Saulo, em uma visão viu um homem, chamado Ananias, que entrava, e lhe impunha as mãos para recobrar a vista). Ananias respondeu: Senhor, tenho ouvido dizer a muitos quantos males este homem fez aos teus santos em Jerusalém: e aqui ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender todos os que invocam o teu nome. Mas o Senhor disse-lhe: Vai, porque este é um instrumento escolhido por mim para levar o meu nome diante.das gentes, dos reis e dos filhos de Israel. Porque eu lhe mostrarei quanto deve sofrer pelo meu nome. Foi Ananias, e entrou na casa è, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, enviou-me para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo. Imediatamente, lhe caíram dos olhos umas como escamas e recuperou a vista. Levantando-se, foi batizado.

Apóstolos, 9, 10-18



O ANJO DO SENHOR NOS
SONHOS DE JOSÉ


A geração de Jesus Cristo foi deste modo: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, achou-se ter concebido (por obra) do Espírito Santo, antes de coabitarem. José, seu esposo, sendo justo, e não a querendo difamar, resolveu repudiá-la secretamente. Andando ele com isto no pensamento, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, e lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa, porque o que nela foi concebido é (obra) do Espírito Santo. Dará à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.
Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta, que diz: Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porão o nome de Emanuel, que quer dizer "Deus conosco".
Ao despertar José do sono, fez como lhe tinha mandado o anjo do Senhor, e recebeu em sua casa (Maria), sua esposa. Não a conheceu até que deu à luz um filho, e pos-lhe o nome de Jesus.
Tendo, pois, nascido Jesus em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos chegaram do Oriente a Jerusalém, dizendo: Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo.
Ao ouvir isto, o rei Herodes turbou-se, e toda a Jerusalém com ele. E, convocando todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Messias. .E eles disseram-lhe: Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta. E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais (cidades) de Judá, porque de ti sairá um chefe, que apascentará Israel, meu povo. Então, Herodes, tendo chamado secretamente os magos, inquiriu deles cuidadosamente acerca do tempo em que lhes tinha aparecido- a estrela; e, enviando-os a Belém, disse: Ide e informai-vos bem acerca do menino, e, quando o encontrardes, comunicai-mo, a fim de que também eu o vá adorar.
Eles, tendo ouvido as palavras do rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até que, chegando sobre (o lugar) onde estava o menino, parou. Vendo (novamente) a estrela, ficaram possuídos de grandíssima alegria. E, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus* tesouros, lhe ofereceram presentes (de) ouro, incenso e mirra. E, avisados por Deus em sonhos para não tornarem a Herodes, voltaram por outro caminho para a sua terra.
Tendo eles partido, eis que um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e lhe disse: Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para lhe tirar a vida. E ele, levantando-se de noite, tomou o menino e sua mãe, e retirou-se para o Egito; lá esteve até á morte de Herodes, cumprindo deste modo o que tinha dito pelo Senhor por meio do profeta que disse: "Do Egito chamei o meu filho".
Então Herodes, vendo que tinha sido enganado pelos magos, irou-se em extremo, e mandou matar todos os meninos, que havia em Belém e em todos os seus arredores, da idade de dois anos para baixo, segundo a data que tinha averiguado dos magos. Então se cumpriu o que estava predito pelo profeta Jeremias: "Uma voz se ouviu em Rama, pranto e grande lamentação, Raquel chorando os seus filhos, sem admitir consolação, porque já não existem".
Morto Herodes, eis que o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José no Egito, dizendo: Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e vai para a terra de Israel, porque morreram os que procuravam (tirar) a vida do menino. E ele, levantando-se, tomou o menino e sua mãe e entrou na terra de Israel.

Evangelho de São Mateus, 1, 1.8-25; 2, 1-21






HISTÓRIA DE KESSI


O pai havia morrido. Kessi vivia com sua mãe, e era o melhor caçador. Cada dia recolhia peças de caça abatida para a mesa materna e alimentava os deuses com suas oferendas. Kessi enamorou-se de Shintalimeni, a mais jovem de sete irmãs. Esqueceu a caça, e entregou-se ao ócio e ao amor. A mãe repreendeu-o: O melhor caçador, caçado! O filho tomou a lança, chamou sua matilha e partiu. Porém o homem que esquece os deuses, pelos deuses é esquecido.
As feras se haviam escondido e ele vagou durante três meses. Exausto, dormiu ao pé de uma árvore. Ali habitavam os duendes do bosque, e eles decidiram devorar o jovem. Mas esta era também a terra onde viviam os espíritos dos mortos, e o pai de Kessi imaginou um estratagema. "Gnomos! Por que vão matá-lo? Roubem sua capa para que sinta frio e se vá". Os gnomos são gatunos e Kessi acordou com o vento que lhe assoviava nos ouvidos e lhe flagelava as costas. Dirigiu-se encosta abaixo, até uma luz que bruxoleava solitária no meio do vale.
Teve sete sonhos: Viu-se diante de uma enorme porta, que em vão tentou abrir. Viu-se nos fundos de uma casa onde trabalhavam as criadas, e uma enorme ave arrebatou uma delas. Viu-se em uma vasta pradaria que um grupo de homens percorria placidamente; brilhou um relâmpago, e um raio caiu sobre eles. Mudou a cena, e os antepassados de Kessi estavam reunidos em redor do fogo, e o avivavam. Viu-se com as mãos atadas e os pés presos com correntes, como colares de mulher. Estava pronto para sair a caçar, e viu de um lado da porta um dragão, e do outro horrendas harpias.
Contou à sua mãe o ocorrido. A mãe o animou ("O junco se inclina sob a chuva e o vento, porém torna a erguer-se") e lhe entregou uma meada de lã azul, cor que protege de feitiços e danos.
Kessi partiu em direção da montanha.
Os deuses continuavam ofendidos: não havia feras para caçar. Kessi vagou sem rumo até cansar-se. Achou--se em frente a uma grande porta que era guardada por um dragão e horrendas harpias. Não conseguiu abrir a porta, ninguém respondeu aos seus chamados e decidiu esperar. O sono apoderou-se dele. Quando despertou, anoitecia e ele viu uma luz intermitente que se aproximava, se agigantava e terminou por cegá-lo: dela surgiu um homem alto e luminoso. Disse que aquela era a porta do ocaso, e que por trás dela se achava o reino dos mortos. O mortal que a transpusesse não poderia voltar. "Como podes tu, então, passar por ela?" "Eu sou o sol", respondeu o deus, e entrou.
Do outro lado, os espíritos dos mortos esperavam para dar as boas vindas ao deus sol em sua visita noturna. Encontrava-se aí Udipsharri, pai de Shintaliméni. Ao ouvir a voz de seu genro, regozijou-se de que fosse ele o primeiro mortal a vir visitar os mortos. Suplicou ao sol que permitisse sua entrada.
— Muito bem, que passe a porta e me siga pelo caminho escuro; não regressará ao reino dos vivos. Atem suas mãos e seus pés para que não possa escapar. Quando tenha visto tudo, eu o matarei.
Kessi encontrou-se diante de um túnel comprido e estreito. O deus sol se distanciava e se reduzia a um ponto. Udipsharri atou as mãos e os pés de Kessi e convidou-o a seguir a luz mortiça. Kessi viu os espíritos dos mortos, que avivavam o fogo: eram os ferreiros do deus, que forjam os raios que ele arroja à terra. Sentiu que milhares de pássaros revoavam em torno. "Estas, disse Udipsharri, são as aves da morte, que levam ao mundo subterrâneo as almas dos mortos". Kessi reconheceu a ave gigantesca de seus sonhos. Finalmente chegaram à porta do amanhecer. Kessi devia morrer, porém pediu perdão. O deus sol lembrou como Kessi se levantava na alvorada, caçava e fazia oferendas aos deuses. "Bem, determinou, irás junto com tua esposa e suas seis irmãs ao céu, de onde juntos contemplarão as estrelas eternas".
Nas noites claras se vê, nas pradarias do céu, o Caçador, que tem as mãos atadas e os pés ligados com cadeias como colares de mulher. Junto do caçador resplandecem sete estrelas.

Conto hitita do segundo milênio a.C. 3



OS SONHOS PROCEDEM DE ZEUS


Durante nove dias aumentaram gradativamente as flechas do deus. No décimo, Aquiles convocou o povo à guerra. "Átridas! Creio que teremos que retroceder, voltando a ser errantes se escaparmos de morrer; se não, a guerra e a peste acabarão com os aqueus. Antes, porém, consultemos um adivinho, sacerdote ou intérprete de sonhos, para que nos diga porque se irritou tanto Febo.Apolo, pois também o sonho procede de Zeus".

Ilíada, I



AS DUAS PORTAS

I

Disse a discreta Penélope: Forasteiro! Há sonhos inescrutáveis e de linguagem obscura, e não se realiza tudo quanto eles anunciam aos homens. Há duas portas para os leves sonhos: Uma, construída de chifre; outra, de marfim. Os que vêm através do brunido marfim nos enganam, trazendo-nos palavras sem finalidade; as que saem pelo polido chifre anunciam, ao mortal que os vê, coisas que realmente vão acontecer.

Odisséia, XIX

II

Gêmeas são as portas do sonho, das quais se diz que uma é de chifre e através dela se dá saída fácil às verdadeiras sombras; a outra, reluzente, primorosamente lavrada em branco marfim, é aquela pela a qual as almas enviam à terra os falsos sonhos.

Eneida, VI



O SONHO DE PENÉLOPE


Penélope a Odisseu (sem saber que era ele quem havia regressado a Itaca depois de vinte anos de ausência): Ouve, pois, meu sonho: Na casa há vinte gansos que comem trigo macerado em água e eu me regozijo em contemplá-los; mas eis que desceu da montanha uma águia de bico curvo que, rompendo-lhes o pescoço, matou-os todos. E eu, entre sonhos, chorei e dei gritos; e as aquéias de formosas trancas foram se juntando ao meu redor, enquanto eu continuava me lamentando de que a águia houvesse matado meus gansos. A ave voltou, pousou na beira do telhado e devolveu-me a calma ao dizer com voz humana: "Anima-te, filha do famosíssimo Ícaro; não se trata de um sonho, e sim de uma visão verdadeira que se há de cumprir! Os gansos são os pretendentes; e eu, que me apresentei sob a forma de uma águia, sou teu esposo que chegou e que dará a eles todos uma morte ignominiosa".

Odisséia, XIX



OS IDOS DE MARÇO


Ao que parece, não foi tão inesperado quanto precavido o destino de César, porque se diz ter sido precedido de maravilhosos sinais e prodígios. No que se refere aos resplendores e fogos do céu, às imagens noturnas que por muitas partes divagavam e às aves solitárias que voavam pela praça, parece que tudo isto não merece ser considerado como indícios de tão grande acontecimento. Estrabão, o filósofo (e geógrafo), refere-se a numerosos homens de fogo que foram vistos correndo pelo céu, e ao escravo de um soldado que lançou muitas chamas de sua mão, de modo que os que o viam pensavam que ele estava pegando fogo — mas quando a chama se extinguiu viu-se que ele não tinha a menor lesão. Tendo César feito um sacrifício, desapareceu o coração da vítima, coisa que se tomou como terrível agouro, isto porque, por natureza, nenhum animal pode existir sem coração. Todavia muitos dizem que um agoureiro lhe anunciou que o aguardava um grande perigo no dia (15) do mês de março, dia que os romanos chamavam de idos (idus). Chegou o dia, e indo César ao Senado, saudou o agoureiro e gracejou: "Já chegaram os idos de março"; ao que contestou este com grande tranqüilidade: "Sim, mas ainda não passaram". No dia anterior, ao jantar com Marco Aurélio, escrevia César umas cartas como era seu costume. Recaindo a conversa sobre qual seria a melhor morte, disse César, antecipando-se a todos: "A não esperada". Mais tarde, deitado com sua mulher como costumava fazer, repentinamente abriram-se todas as portas e janelas de seu quarto. Perturbado pelo ruído e pela luz — pois que havia um luar muito claro — observou que Calpúrnia dormia profundamente, porém entre sonhos prorrompia em palavras mal pronunciadas e soluços não articulados. Em seu sonho, a mulher de César viu-o destruído no auge de sua glória e majestade— com todas as honrarias decretadas pelo senado, segundo Tito Lívio — e por isso se angustiava e chorava. Quando veio o dia, pediu a César que se houvesse sessão no Senado, que lá não fosse, adiando sua ida para o dia seguinte; e se não acreditava em seus sonhos, que examinasse, por meio de sacrifícios e outros meios de adivinhação, o que seria mais conveniente para ele.

Plutarco, Vidas Paralelas,
Caio Júlio César, LXIII (c. 100)








DO DIÁRIO EPISTOLAR DE CÉSAR
PARA LÚCIO MAMÍLIO TURRINO,
NA ILHA DE CAPRI

(Na noite de 27 para 28 de outubro)

1013, (Sobre a morte de Catulo). Estou velando à cabeceira de um amigo agonizante: o poeta Catulo. De tempo em tempo adormece e, como de costume, tomo a pena, talvez para evitar a reflexão.
Acaba de abrir os olhos. Pronunciou o nome de seis Plêiades, e me perguntou o sétimo.
Agora dorme.
Passou uma outra hora. Conversamos. Não sou novato nisto de velar à cabeceira dos moribundos. Aos que. sofrem, deve-se falar sobre eles mesmos; aos de mente lúcida, elogiar-lhes o mundo que abandonam. Não há dignidade alguma em abandonar um mundo desprezível, e aqueles que morrem soem temer que a vida talvez não tenha compensado os esforços que lhes custou. Pessoalmente, jamais me faltam motivos para elogiá-la.
No transcurso desta hora paguei uma velha dívida. Durante minhas campanhas, muitas vezes visitou-me um sonho persistente: caminhava de cá para lá frente a minha tenda, no meio da noite, improvisando um discurso.. Imaginava ter congregado um auditório seleto de homens e mulheres, quase todos eles jovens, aos quais eu desejava ardentemente revelar tudo o quanto havia aprendido na poesia imortal de Sófocles — em minha adolescência, em minha maturidade, como soldado, como estadista, como pai, como filho e como homem enamorado, através de alegrias e de vicissitudes —. Queria, antes de morrer, descarregar meu coração (tão rapidamente transbordante!) de toda esta gratidão e louvor.
Ah, sim! Sófocles foi um homem; e sua obra totalmente humana. Eis aqui a resposta a uma velha pergunta. Os deuses nem lhe deram apoio, nem se negaram a ajudá-lo; não é esta sua forma de proceder. Porém se eles não tivessem estado ocultos, Sófocles não teria lutado tanto para encontrá-los.
Assim, viajei: sem poder ver a um pé de distância, entre os Alpes mais elevados, porém jamais com passo tão seguro. A Sófocles bastava viver como se os Alpes tivessem estado sempre ali.
E agora, também Catulo estava morto.

Thorton Wilder. Os idos de março (1945)



O INCESTO


César informa que, antes de cruzar o Rubicón e marchar sobre Roma, sonhou que coabitava com sua mãe.
Como é sabido, os atrevidos senadores que liquidaram César a golpes de punhal, não conseguiram impedir o que estava disposto pelos deuses. Porque a cidade ficou grávida do Amo ("filho de Rômulo e descendente de Afrodite"), e o prodigioso botão pronto desabrochou no Império Romano.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que
nolo son (1964)




O SONHO DE CIPIÃO


Entre os textos de Cícero destaca-se como único por seu alcance religioso, ou melhor dito, filosófico-religioso, o chamado Somnium Scipionis (O sonho de Cipião). Trata-se da narração — posta na boca de Cipião Émiliano — de um sonho, no qual aparece a Cipião seu pai, Cipião o Africano. Do alto, o pai mostra Cartago a seu filho, e vaticina a vitória deste sobre a cidade dentro de dois anos (e posteriormente a vitória sobre Numância). Acrescenta que o filho regressará em triunfo ao Capitólio, e que encontrará uma cidade completamente sublevada. Será necessário, então, aportar a luz da alma, da inteligência e da prudência. Para animá-lo, o Africano mostra a Cipião Émiliano o destino das almas que serviram bem a sua pátria e praticaram a piedade e a justiça. Estas almas moram na Via-Láctea presididas pelo princips deus, ou deus soberano. É um universo magnífico e admirável, dividido em nove esferas, as quais produzem com seus movimentos uma harmonia divina. Na esfera celeste — a mais externa, que circunda todas as demais e onde estão fixadas as estrelas — vive o deus soberano. Sob esta esfera há outras sete que se movem em sentido inverso ao do céu. No círculo inferior gira a Lua; debaixo dela há o mundo sublunar, onde não existe nada que não seja mortal e decrépito, exceto as almas dos homens. Estas vivem na nona e última esfera, a Terra, que não se move e é concêntrica às demais. Agora, para alcançar a piedade e a justiça é mister voltar a vista ao plano superior, às esferas supralunares, onde nada é decrépito ou mortal. A alma se acha ligada por sua parte superior a estas esferas, e somente poderá regressar efetivamente a elas, como sua verdadeira pátria, quando esqueça a caducidade dos bens materiais e das falsas glórias terrenas, ou seja quando se dê conta de que estar encerrada em um corpo mortal não quer dizer que ela mesma seja mortal. A alma imortal move o corpo mortal como Deus move um mundo sob certos aspectos destinados à morte. É preciso exercitar, pois, a alma nas mais nobres ocupações, e as mais nobres de todas são as orientadas no sentido da salvação da pátria. As almas que cumpram esta sublime missão serão recompensadas com a ascenção às esferas celestes, enquanto que as que se entregam aos prazeres dos sentidos permanecerão na superfície da terra e não ascenderão senão depois de serem atormentadas durante séculos.
Discutiu-se muito a origem destas idéias. Alguns autores assinalam que se originam de Pocidônio; outros negam semelhante procedência. O quadro de Cícero (com a única exceção do motivo cívico a serviço da cidade) corresponde a muitas das idéias que em sua época foram abrindo caminho, e que têm, por um lado, pontos de contato com as religiões astrais; por outro, pontos de contato com a tendência a elaborar as concepções platônicas; e por outro, ainda, com uma visão do cosmo como sendo uma grande harmonia, como um templo, no qual habitam como cidadãos as almas virtuosas. Semelhantes idéias exerceram bastante influência sobre autores posteriores, entre os quais se destacou Macróbio.
É mister observar que um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da vida individual neste mundo, comparada com a imensidade do cosmo. O tema está igualmente desenvolvido no Livro VI da Eneida (revelação de Eneas a Anquises) e cm alguns escritos estóicos (por exemplo, em Sêneca, Ad Mareiam de consolatione, XXI).

José Ferrater Mora,
Diccionario de filosofia (ed. de 1958)





DE ONDE E COMO SE ORIGINAM
OS SONHOS


Quando o fogo exterior se retira pela noite, o fogo interior se encontra separado dele; então, se sai dos olhos, cai sobre um elemento diferente, se modifica e extingue, uma vez que deixa de ter uma natureza comum com o ar que o rodeia, que já não tem fogo. Deixa de ver, e conduz ao sono. Esses aparatos protetores da visão dispostos pelos deuses, as pálpebras, quando se fecham freiam a força do fogo interior. Este, por sua vez, acalma e aquieta os movimentos internos. E assim que estes se tenham apaziguado, sobrevém o sonho; e se o repouso é completo, um sono quase sem sonhos se abate sobre nós. Por outro lado, quando subsistem em nós movimentos mais acentuados, de acordo com sua natureza e segundo o lugar em que se encontrem, dele resultam imagens de diversos tipos, mais ou menos intensas, semelhantes a objetos interiores ou exteriores, e das quais conservamos alguma lembrança ao despertar.

Platão, Timeo, XLV



DO DIÁRIO EPISTOLAR DE CÉSAR PARA LÚCIO MAMILIO TURRINO, NA ILHA DE CAPRI


(As notas que seguem parecem ter sido escritas durante os meses de janeiro e fevereiro)
1020. Certa vez me perguntaram, em tom de broma, se eu alguma vez havia experimentado o horror do vácuo. Respondi que sim, e desde então vez por outra sonho com ele.
Talvez por uma posição acidental do corpo adormecido, talvez uma indigestão ou, qualquer outra classe de distúrbio interno, mas o fato é que o terror que paralisa a mente não é menos real. Não é, como me pareceu durante certo tempo, a imagem da morte e o esgar de uma caveira, mas sim o estado em que se percebe a finalidade de todas as coisas. Esta nada se apresenta como ausência ou silêncio, mas sim como o mal absoluto desmascarado: engano e ameaça que reduz ao ridículo todo o prazer, que enfraquece e murcha todo o esforço. Este pesadelo é a réplica da visão que sucede os paroxismos de minha doença4. Neles me parece captar a clara harmonia do universo, me invade uma felicidade e uma confiança inefáveis, e eu queria gritar a todos os vivos e aos mortos que não há lugar do mundo que não tenha sido alcançado pela mão da benção.

(O texto continua em grego)

Os dois estados derivam de certos humores que atuam no organismo, porém em ambos se afirma a consciência de que "eu saberei isto de agora em diante". Como rechaçá-los com ilusões vãs se a memória os corrobora com testemunhas inumeráveis, radiantes ou terríveis? Impossível negar um sem negar o outro; mas desejaria eu distribuir a cada um, como um simples pacificador de aldeia, sua minguada porção de verdade.

Thorton Wilder, Os idos de março





O SONHO MAL INTERPRETADO


Huayna Cápac teve medo da peste. Encerrou-se e, em seu isolamento, teve um sonho no qual três anões vinham a ele e lhe diziam: "Inca, viemos buscar-te". A peste alcançou a Huayna Cápac e este ordenou que o oráculo de Pachacámac interpretasse que coisa deveria ser feita para que ele recuperasse a saúde. O oráculo declarou que o pusessem ao sol, que assim sararia. Saiu o Inca ao sol e em seguida morreu.

Bernabé Cobo, Historia del Nuevo Mundo



SONHOS CASEIROS


O escritor latino do século V Ambrósio Teodósio Macróbio, autor das Saturnais, escreveu um difundido Comentário ao Sonho de Cipião, capítulo VI d'A República (de Cícero), onde se recomenda o sistema de Governo que imperava em Roma na primeira metade do século I a.C. e se descreve uma cosmogonia de origem platônica e pitagórica. Macróbio alerta sobre os sonhos comuns ou domésticos, ecos da vida cotidiana — o amor, a comida, os amigos, os inimigos, a roupa, o dinheiro —, os quais não vale a pena interpretar, pois carecem do sopro divino que anima os grandes sonhos. No século XIII Albert von Bollstadt (?-1280), mais conhecido por São Alberto Magno, iniciou a conciliação escolástica entre a filosofia grega é a doutrina cristã, e teve por discípulo, em Paris, a São Tomás de Aquino. Em seu tratado Da alma coincide com Macróbio sobre a irrelevância dos sonhos menores e a sublimidade dos que estão animados por um sopro divino. Alberto foi um grande viageiro, interessou-se pelas propriedades dos minerais, dos elementos, dos animais e dos meteoros, e, em seu Tratado da Alquimia, logrou cercar-se de uma aura de magia. Não obstante, chegou a ser bispo de Ratisbona, dignidade que renunciou para reiniciar suas viagens. Não viu cumprido o sonho de todo o mestre: ser superado no tempo (já que não no saber) por seu melhor discípulo. Por ocasião da morte de Tomás de Aquino (1274), regressou a Paris para exaltar sua doutrina.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son



A PROVA


Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e lhe dessem uma flor como prova que havia estado ali, e se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... então o quê?

S. T. Coleridge



UM SONHO HABITUAL


O Nilo sombreado
as belas morenas
vestidas de água
zombando do trem

Fugitivos
Giuseppe Ungaretti, Primevas (1919)



DA NATUREZA DOS SONHOS


Quando o sonho por fim os membros ata
com um doce torpor, e quando o corpo
em profundo repouso está estirado,
então nos parece estar despertos,
e também fazer de nossos membros uso;
cremos ver o Sol e a luz do dia
em meio à noite tenebrosa;
e, em uma peça estreita e bem fechada,
mudar de climas, mares, montes, rios,
e atravessar a pé grandes planícies;
e no profundo e completo silêncio
da noite parece-nos ouvir sons,
e em silêncios responder acordes.
Vemos, de certa maneira surpreendidos,
semelhantes fenômenos, que tendem
todos a destruir a confiança
devida aos sentidos, mas é em vão:
o engano provém de nossa parte,
dos julgamentos da alma que nós todos
pintamos com aquelas relações
dos sentidos, supondo termos visto
aquilo que não viram nossos órgãos;
porque a distinção de relações
evidentes de incertas conjeturas
que nos associa à própria alma,
é a coisa mais extraordinária e excelente.
...................................................................

Ora, quero dizer a ti, com brevidade,
quais os corpos que dão à alma movimento
e de onde vêm suas idéias.
Digo que muitos são os espectros5 que vagam
em todas as direções, com muitas formas,
tão sutis, que se unem facilmente
se chegam a encontrar-te pelos ares
como o fio da aranha e pães de ouro;
porque, além do mais, excedem em delicadeza
as efígies pelas quais nós vemos
os objetos. É claro que se introduzem
por todos os condutos que há nos corpos
e dão interiormente movimento
da alma à substância delicada,
e animam suas funções.
Os centauros, Escilas e Cerberos
e fantasmas de mortos assim vemos,
cujos ossos a terra abrasa em si,
pois a atmosfera ferve em tais espectros;
uns se formam pelo ar,
outros emanam de variados corpos,
e de duas espécies juntas, resultam outras.
A imagem de um centauro não se forma,
seguramente, de um centauro vivo:
Não criou jamais a Natureza
semelhante animal: é um composto
de espectros de cavalo e de homem
que o acaso juntou; e deles dizemos
que seu tecido sutil e delicado
a reunião ao momento facilita:
como esta imagem, se combinam outras,
que por sua leveza extraordinária
afeta a alta no primeiro impulso,
porque o próprio espírito é delicado,
e de mobilidade extraordinária.
E uma prova certa disso
ó se assemelharem em um todo os objetos
que a alma olha, aqueles que os olhos vêm,
porque nascem do mesmo mecanismo:
se ensinei que via eu leões
recebendo auxílio dos espectros,
que ao chegar nos ferem bem nos olhos,
se deduz que igualmente a alma move
os demais espectros desses leões,
que tão bem vê os mesmos olhos.
Não é de outra maneira que a alma está desperta,
quando se estendeu o sonho sobre os membros
porque chegam a alma tão de fato
os espectros que durante o dia ferem,
que nos parece ver o tal deserto
que é dominado pela morte e pela terra.
A esta ilusão a Natureza obriga;
porque repousam todos os sentidos
em um profundo sono, as verdades
não podem fazer oposição aos erros
porque a memória está adormecida
e, lânguida, com o sonho não disputa;
e quem crê ver a alma com vida
é despojo da morte e do olvido.
No mais, não é uma maravilha
a movimentação destes espectros
e a agitação de braços e de membros
conforme as regras, pois durante o sono
devem ter lugar as aparências;
como que se o primeiro se dissipasse
e viesse a sucedê-lo outro diferente,
parece que é o mesmo espectro
que mudou de atitude num instante.
Muitas perguntas existem sobre o assunto,
e muitas dúvidas ainda a esclarecer
se desejamos a coisa aprofundar.
A primeira pergunta que se faz
é: porque a alma no momento tem
as idéias do objeto de que gosta:
os espectros olham a vontade?
Vêm-nos a imagem assim que desejamos?
Se mar, se terra, se, por fim, o céu,
os congressos, as pompas, os banquetes
se os combates, se outro objeto que nos apraz.
A Natureza não guarda e não cria
as efígies de todo e qualquer sinal,
enquanto que na região, no local mesmo,
jazem profundamente as almas de outros
ocupadas de idéias muito diferentes?
E o que direi quando vemos no sonho
os espectros irem bailando no compasso
quando movem seus membros delicados,
e estendem seus braços flexíveis
alternativamente com destreza,
e tornam a fazê-lo levemente?
Estudaram por acaso artes e regras
para poderem divertir-se à noite?
Tenho eu como certo e verdadeiro
que percebemos estes movimentos
- em um instante apenas, assim como quando
se dá um único comando, e não obstante
passam-se muitos instantes, que somente a razão
distingue; esta é a causa
de se apresentarem espectros tão numerosos
em qualquer tempo e em qualquer parte:
grande é o seu número e sua leveza!
E sendo tão fina sua textura
não pode a alma vê-los claramente
sem recolher-se dentro de si mesma:
se ela não se dispõe a recebê-los
com grandes cuidados, todos perecem,
e o consegue graças à esperança
ver aquilo que realmente olha.
E não percebes tu também como os olhos
não podem distinguir aquele objeto
pouco sensível, porque o olharam
sem suficiente resguardo e sem preparo?
Mesmo os corpos que à vista estão expostos
são para a alma, se ela não se esforça
como se a cem mil léguas estivessem:
e por que admirar-se de que a alma
deixe escapar a todos os espectros
menos aqueles que a tem ocupada?
Talvez a alma exagere os espectros
e nos leva ao erro, e nos engana;
também transforma o sexo da imagem,
e em vez de uma mulher, nós só tocamos
um homem transmutado num instante,
ou outro qualquer objeto que o sucede
de semblante e de idade muito diferente:
isto provém do esquecimento e do sonho.

Tito Lucrécio Caro, Da Natureza
das coisas, Livro IV
(s.Ia.C.) (Tradução para o espanhol 6
de José Marchena Ruiz de Cueto (1768-1821), chamado "O clérigo Marchena"; leva a data de 1791)




QUE COISA É O SONHO


O sono, que deve ser natural, como determinou Deus para a natureza do homem, dá tempo para que este descanse dormindo dos trabalhos que executa acordado — e neste dormir, segundo afirmaram com razão os que se ocuparam das coisas da natureza, os membros folgam e estão quedos — quando o espírito da vida movimenta os sentidos e quer trabalhar com eles, assim como utiliza o corpo quando este não dorme, e por isso os homens sonham muitas coisas, de maneira natural e com muita razão e, também, como resultado do que comem ou bebem, ou do que fazem ou cuidam quando estão despertos, ou ainda segundo aumentam ou diminuem os quatro humores de que é feito o corpo; quando fala dormindo o homem aumenta suas preocupações e seus desejos, pois acredita no que está sonhando, e quando acorda se vê sem nada. Por conseguinte, aqueles que sobre tão frágil base armam sua crença, deixam perceber que esta crença não era firme nem sã, nem poderia durar muito tempo.

Alfonso o Sábio, Setenário
(Lei XVI)



O PESADELO


Sonho com um antigo rei. De ferro
é a coroa, e morto seu olhar.
Já não há faces assim. A firme espada
o acatará fiel como seu cão.
Já não sei se é de Nortúmbria ou da Noruega.
Sei que é do norte. E sua barba ruiva,
cerrada, cobre o peito. Não me lança
sua mirada, sua mirada cega.
De que apagado espelho, de que nave
dos mares que foram a sua aventura,
surgiu este homem cinza e grave
que me impõe o seu passado e sua amargura?
Sei que me sonha e que me julga; erguido
o dia, entra a noite. E não se foi.


Jorge Luis Borges


SOBRE OS SONHOS

. .. Cutn postrata sopore
Urgit membra guies, et
mens sine pondere ludit.

Petrônio

Muitos autores que escreveram sobre sonhos, consideram-nos tão somente revelações do que ocorreu em distantes regiões do mundo ou presságios do que ainda vai ocorrer.
Consideremo-los de outro ponto de vista. Os sonhos nos dão uma certa idéia das excelências" da alma humana e uma noção de sua independência.
Em primeiro lugar, nossos sonhos são demonstrações da grande independência da alma, que o poder de dormir não logra abater nem apaziguar. Quando o homem está cansado no fim do dia, esta parte ativa de seu todo continua se movendo e sem fadiga. Quando os órgãos dos sentidos aspiram seu lógico repouso e necessária reparação, e o corpo já não pode acompanhar a substância espiritual a que está unido, a alma aguça suas numerosas faculdades e continua em ação até que seu companheiro possa acompanhá-la novamente. Desta maneira, se vêem os sonhos como relaxamentos e distrações da alma quando esta está desobrigada de sua máquina, esportes e recreação e deixou sua carga ir dormir.
Em segundo lugar, os sonhos mostram a agilidade e perfeição que são próprias das faculdades da mente quando estão desligadas de seu corpo. A alma fica obstruída e lenta em suas operações quando atua em conjunto com seu pesado e desajeitado companheiro. Porém nos sonhos é maravilhoso observar como e com que loquacidade e vivacidade se manifesta. A lentidão do discurso provoca arengas não premeditadas ou ágeis diálogos em idiomas dos quais pouco ou nada se sabe. A gravura abunda em prazeres, o atordoamento em réplicas sutis ou pontos de comicidade. Não há ação mais penosa da mente do que a invenção; não obstante, nos sonhos funciona com uma facilidade e uma diligência que não ocorrem quando estamos acordados. Por exemplo, creio que todos nós, em uma ocasião ou noutra, sonhamos que líamos livros, diários ou cartas: a invenção resulta tão vivida que a mente deve esforçar-se e superar--se para formular suas próprias sugestões para pôr em ordem a composição.
Desejaria insertar aqui um parágrafo de Religio medici, cujo engenhoso autor 7 se dá conta de si mesmo em seus sonhos e em seus pensamentos quando está acordado. "Em nossos sonhos estamos um pouco mais do que em nós mesmos, e o repouso do corpo parece ajudar o despertar da alma. Há uma ligação de sentido, porém a liberdade da razão e nossas concepções de vigília não coincidem com a fantasia dos nossos sonhos... Em um sonho pude compor toda uma comédia: sustentar a ação, apreender os gestos e despertar rindo de minhas próprias invenções. Quando minha memória é tão fiel como minha razão, isto é frutífero; porém eu nunca estudaria em meus sonhos, ainda que neles fizesse as minhas devoções; nossas espessas memórias têm tão escasso sustento em nosso abstrato entendimento, que esquecem a história e somente podem relatar as nossas almas acordadas uma confusa e parcial narrativa do que ocorreu... Assim, observou-se que o homem, no momento de sua partida, fala e racionaliza demasiadamente sobre si mesmo: a alma começa sentir-se livre de suas amarras físicas e a racionalizar sobre si mesma como deve ser feito: a discutir imperiosamente sobre sua imortalidade".
Em terceiro lugar, as paixões afetam a mente com mais força quando estamos adormecidos. Alegria e tristeza dão uma sensação mais vigorosa de prazer e de pesar do que em qualquer outro momento. E o mesmo acontece com a devoção — tal como dá a entender o citado autor — toda a vez que a alma se eleva enquanto o corpo repousa. A experiência de todo o homem informará a respeito, ainda que de maneira diferente, conforme a constituição de cada um.
O que desejo destacar é p divino poder da alma, capaz de produzir sua própria companhia. Conversa com inumeráveis seres de sua própria criação e se transporta a dez mil cenários de sua própria imaginação. É o seu próprio teatro, seu ator e seu espectador. Isto me faz recordar o que Plutarco atribui a Heráclito: todo homem acordado habita um mundo comum; porém cada um pensa que habita seu próprio mundo quando dorme (sonha); acordado, conversa com o mundo da natureza; dormindo, com o seu mundo particular... Tampouco devo esquecer a observação de Tertuliano sobre o poder divinatório dos sonhos. Nenhum crente nas Divinas Escrituras pode duvidar deste poder; e inumeráveis exemplos nos dão também escritores antigos e modernos, tanto sagrados quanto profanos. Se estes presságios obscuros, se estas visões noturnas se originam de algum poder latente da alma ou de alguma comunicação com o Ser Supremo, ou acontecem por intervenção de espíritos dependentes, muito foi elocubrado a respeito por mentes sábias. Sua existência, porém, é incontestável, e foi destacada por autores alheios a toda suspeita de superstição ou entusiasmo.
Não creio que a alma se desligue inteiramente do corpo. Basta com que não esteja excessivamente fundida com a matéria ou que não se encontre enredada e perplexa pela máquina da vigília. A união com o corpo se desliga o necessário para dar mais liberdade à alma, a qual se recolhe em si mesma e recupera sua capacidade de surgir.

Joseph Addison, no The Spectator, n.° 487,
Londres — 18 de setembro de 1712

O DOM ESCLARECIDO


De toda a memória somente vale
o dom esclarecido de evocar os sonhos.
Antônio Machado



CAEDMON

Caedmon deve sua fama, que perdurará, a razões alheias ao gozo estético. A gesta de Beowulf é anônima; Caedmon, em contrapartida, é o primeiro poeta anglo-saxão, por conseguinte inglês, cujo nome foi conservado. No Êxodo e nas Linhagens dos Apóstolos, a nomenclatura é cristã, porém o sentimento é gentio; Caedmon é o primeiro poeta saxão de espírito cristão. A estas razões, deve-se acrescentar a curiosa história de Caedmon, tal como a ela se refere Beda o Venerável no quarto livro de sua História Eclesiástica:
"No mosteiro desta abadia (a abadia Hild de Streoneshalh) houve um irmão honrado pela graça divina, porque costumava compor canções que levavam à piedade e à religião. Tudo o quanto aprendia de homens versando nas sagradas escrituras, vertia em linguagem poética com a maior doçura e fervor. Muitos, na Inglaterra, o imitaram na composição de cantos religiosos. O exercício do canto não lhe tinha sido ensinado pelos homens ou por meios humanos; havia recebido ajuda divina e sua faculdade de cantar derivava diretamente de Deus. Por isso não compôs canções fingidas ou ociosas. Este homem havia vivido no mundo até alcançar uma idade avançada, e não tinha sabido nada de versos Costumava participar de festas nas quais se havia decidido que, a fim de que se incentivasse alegria, todos cantariam, uns depois dos outros, acompanhando-se com harpa, e cada vez que as harpas se aproximavam dele, Caedmon se erguia envergonhado e voltava para casa. Uma vez- abandonou o local da festa e foi para os estábulos, porque lhe haviam recomendado cuidar dos cavalos naquela noite. Dormiu, e em sonho viu um homem que lhe ordenava: "Caedmon, canta-me alguma coisa". Caedmon respondeu dizendo: "Não sei cantar e por isto deixei a festa e vim deitar-me". O que lhe havia falado disse: "Cântaras". Caedmon replicou então: "Que posso eu cantar?". A resposta foi: "Canta-me a origem de todas as coisas". E Caedmon cantou versos e palavras que não havia escutado nunca, nesta ordem: "Louvemos agora o guardião do reino celestial, o poder do Criador e o conselho de sua mente, as obras do glorioso Pai; como Ele, Deus eterno, originou cada maravilha. Fez primeiro o céu como teto para os filhos da terra; depois fez, todo-poderoso, a terra, para dar um solo aos homens". Ao despertar, guardava de memória tudo o que havia cantado no sonho. A estas palavras acrescentou muitas outras, no mesmo estilo, dignas de Deus.
Beda conta que a abadia dispôs que os religiosos examinassem a nova capacidade de Caedmon, e, uma vez demonstrado que o dom poético lhe havia sido conferido por Deus, instou-o a entrar na comunidade. "Cantou a criação do mundo, a origem do homem, toda a história de Israel, o êxodo do Egito e a entrada na terra prometida, a encarnação, paixão e ressurreição de Cristo, sua ascenção ao céu, a chegada do Espírito Santo e o ensino dos apóstolos. Cantou também o terror do juízo final, os horrores do inferno e as bem-aventuranças do céu". O historiador agrega que Caedmon, anos depois, profetizou a hora em que iria morrer, e esperou-a dormindo. Deus, ou o anjo de Deus, o havia ensinado a cantar; esperemos que tenha voltado a encontrar-se com seu anjo.

Jorge Luís Borges

CONVÉM DISTINGUIR


Por que comparas teu mandado interior com um sonho? Ele te parece, por acaso, absurdo, incoerente, inevitável, irrepetível, origem de alegrias ou terrores infundados, incomunicável em sua totalidade, porém ansioso de ser comunicado, como são precisamente os sonhos?

Franz Kafka, Quarto caderno in oitavo



A ÚLTIMA VISITA DO CAVALEIRO ENFERMO


Todos o chamavam de Cavaleiro Negro, porém ninguém jamais soube seu verdadeiro nome. Depois de seu inopinado desaparecimento, dele não restou nada mais do que a lembrança de seus sorrisos e um retrato pintado por Sebastiano del Piombo que o representava envolvido em uma peliça e com uma das mãos enluvada pendendo suavemente como se estivesse adormecido. Alguns dos que mais ò estimaram (e eu, um dos poucos entre eles) recordam sua cútis amarelo pálido, transparente, a leveza quase feminina de seus passos e a habitual languidez dos olhos.
Na verdade, era um semeador de assombros. Sua presença dava um calor fantástico às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum objeto, parecia que este entrava no mundo dos sonhos... Ninguém lhe perguntou qual era o seu mal e porque não se cuidava. Caminhava sempre, sem parar, dia e noite. Ninguém soube jamais onde era sua casa ou conheceu seus pais e seus irmãos. Apareceu um dia na cidade, e passados alguns anos, em outro dia, desapareceu.
Na véspera, quando o céu começava a iluminar-se, veio ao meu quarto despertar-me. Senti a carícia de sua luva em minha fronte, e o vi, com seu sorriso que mais parecia a lembrança de um sorriso, tendo os olhos mais distraídos do que de costume. Compreendi que havia passado a noite em claro, aguardando com ansiedade o amanhecer: tremiam-lhe as mãos e todo seu corpo parecia tomado pela febre.
Perguntei a ele se sua doença o fazia sofrer mais do que nos outros dias.
— Crês então, como todos os outros, que eu tenho uma enfermidade? Por que não dizer que eu sou uma enfermidade? Nada me pertence, porém eu sou de alguém e há alguém a quem pertenço.
Acostumado as suas estranhas digressões, nada disse. Acercou-se de minha cama e tocou-me outra vez a fronte com sua luva.
— Não tens o menor sinal de febre e estás perfeitamente são e tranqüilo. Talvez isto te espante, mas posso dizer quem sou. E talvez não possa voltar a repeti-lo.
Deixou-se cair em uma poltrona e prosseguiu em voz mais alta:
— Não sou um homem real, com ossos e músculos, gerado por homens. Não sou mais do que a figura de um sonho. Há uma imagem de Shakespeare que é, com referência a mim, literal e tragicamente exata: Sou feito da mesma matéria de que são feitos os sonhos! Existo porque há alguém que me sonha; há alguém que dorme e sonha e me vê agir e viver e mover-me, e neste momento sonha que eu digo tudo isto. Quando começou a sonhar-me, comecei a existir: hoje sou hóspede de suas grandes fantasias noturnas, tão intensas que me tornaram visível àqueles que estão acordados. O mundo da vigília, porém, não é o meu. Minha verdadeira vida é a que transcorre na alma do meu adormecido criador. Não recorro a enigmas nem a símbolos; o que digo é verdade. Ser ator de um sonho não é o que mais me atormenta. Há poetas que disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho e há filósofos que sugeriram que a realidade é uma alucinação. Porém, quem é aquele que me sonha? Quem é este ser que me fez surgir e que ao despertar me apagará? Quantas vezes penso nesse meu dono que dorme!... A pergunta me agita desde que descobri de que estou feito.
Compreenderás a importância que este problema tem para mim. As personagens dos sonhos desfrutam de bastante liberdade; tenho também os meus caprichos. A princípio, me aterrorizava a idéia de despertá-lo, quer dizer, de aniquilar-me. Levei uma vida virtuosa. Até que me cansei da humilhante qualidade de espetáculo e desejei ardentemente o que antes temia: despertá-lo. E não deixei de cometer delitos. Porém aquele que me sonha, não se espantará com o que faz tremer os demais homens? Regozija-se com as visões terríveis, ou não lhes dá importância? Nesta monótona ficção, digo ao meu sonhador que sou um sonho: quero que ele sonhe que está sonhando. Não existem homens que acordam quando se dão conta de que estão sonhando? Quando, quando conseguirei isso?
O Cavaleiro Enfermo colocava e tirava a luva da mão esquerda; não sei se esperava que, de um momento para outro, algo de atroz acontecesse.
— Acreditas que eu esteja mentindo? Por que eu não posso desaparecer? Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.
Não atinei dizer coisa alguma. Deu-me sua mão, parecendo-se mais alto do que antes, e sua pele era diáfana. Disse algo em voz baixa, saiu do meu quarto, e desde então somente uma pessoa pode vê-lo.

Giovanni Papini, O trágico cotidiano (1906)



CONFÚCIO SONHA SUA MORTE

Por último, a lassitude o invadiu. Tinha já 73 anos, era verão (de 479 a.C.) e tinha compreendido muito bem o significado de seu sonho. Pediu que avisassem a Tse-kong, o último de seus grandes discípulos. Tse-kong atendeu prontamente, e achou que Krong-tse, mais do que recebê-lo, dele se despedia.
O mestre lhe disse:
— Sonhei que estava sentado, recebendo as libações. Encontrava-me entre duas colunas. Aqueles que eram da dinastia Sia, como se ainda reinassem no palácio, expunham seus mortos sobre a escadaria oriental; os da dinastia Tcheu os expunham sobre a escadaria ocidental, aquela que se oferece aos hóspedes; e os da dinastia In expunham-nos entre as duas colunas — não havia ali nem donos nem hóspedes. Descendo dos soberanos In; sem dúvida, vou morrer. É bom que assim seja, pois já não há nenhum príncipe inteligente que possa servir-se de mim.
Poucos dias depois morreu, no décimo sexto ano de Ngae-kong de Lux, quadragésimo primeiro de Tsing-oang dos Tcheu.

Eustáquio Wilde, Um outono em Pequim



A CORÇA BRANCA


De que agreste balada da verde Inglaterra,
De que lâmina persa, que região arcana,
Das noites e dias que o nosso ontem encerra,
Veio a corça branca com que sonhei esta manhã?
Duraria um segundo.
Vi-a cruzar o prado
E perder-se no ouro de uma tarde ilusória,
Leve criatura feita de um pouco de memória
E de um pouco de olvido, corça de um só lado.
As deiades que regem este curioso mundo
Deixaram-me sonhar-te, porém não ser teu dono;
Talvez numa esquina do porvir profundo
Volte a encontrar-te, corça branca de um sonho.
Também eu sou um sonho lúcido que perdura
Um pouco mais que o sonho do prado e da brancura.

Jorge Luis Borges




COSTUMA ACONTECER


Meu filho estava chorando a minha morte. Podia vê-lo reclinado sobre meu féretro. Queria correr para dizer-lhe que não era verdade, que se tratava de outra pessoa, talvez absolutamente semelhante, mas não pedia por causa do crocodilo. Estava ele ali em frente, no buraco, pronto para engolir-me, e eu gritava com todas as minhas forças; e os que me velavam, em vez de avisar meu filho, olhavam-me com ar de censura, talvez porque açulavam a fera e temiam serem atacados eles mesmos. Clide era o único que nem me via, nem me ouvia. O homem da funerária quando chegou com uma caixa, parecia um violinista, porém dela tirou um maçarico. Se fosse certo, tudo estaria perdido, pensei; me enterrariam vivo e eu não poderia explicar nada. Os vizinhos quiseram afastar meu filho, por ser aquele o momento mais penoso, mas ele se agarrava no caixão. O homem começou a soldar a tampa pelo lado dos pés, e eu não agüentei mais: fechei os olhos e corri para a vala sem importar-me com uma morte segura. Depois disso só me lembro de um golpe na ponta do queixo, algo como um raspão da pele contra um fio. Talvez o roçado contra um dos dentes. Quando senti o calor da solda, acordei e comprendi tudo. Clide tinha razão: eu estava morto. A mesma sala, a mesma gente. Meu pobre filho continuava ali. O maçarico roncava na altura da barriga da perna. O empregado levantou a extremidade livre da tampa, tirou o lenço e enxugou o sangue da minha ferida. "Isto costuma acontecer", — disse ele — "por causa do maçarico".

Jorge Alberto Ferrando, Paio a pique (1975)



SEM RECLAMAÇÕES


Deus não castiga ninguém sem ter avisado antes.

Orígenes



SONHO DA PÁTRIA


Desde que deixei de me ocupar, durante a vigília, da fantasia e suas habituais possibilidades representativas, seus artesãos se agitam autônomos nos meus sonhos: e com uma razão aparente e uma aparente conseqüência, armam uma pitoresca algaravia. Tal como me havia previsto o mestre louco e instruído, vi em sonhos a cidade nativa, aldeia maravilhosamente transformada e transfigurada, porém não pude penetrar nela. E quando consegui fazê-lo, despertei com sensações desfavoráveis. Voltei ao sono e aos sonhos. Aproximei-me da casa paterna por caminhos sinuosos que flanqueavam rios atapetados de rosais. Na margem, um camponês lavrara a terra com um arado dourado puxado por dois bois brancos. Os sulcos se enchiam de grãos que o camponês lançava ao ar e caíam sobre mim como uma chuva de ouro.
Gottfried Keller,
Henrique o verde


SONHA O FIDALGO DA TORRE

I

Mas Gonçalo, que abominava aquela lenda, a silenciosa figura degolada, errando por noites de inverno entre as ameias da Torre com a cabeça nas mãos — despegou da varanda, deteve a Crônica imensa:
— Toca a deitar, ó Videirinha, hein? Passa das três horas, é um horror. Olhe! O Titó e o Gouveia jantam cá na Torre, no Domingo. Apareça também, com o violão e cantiga nova; mas menos sinistra...
Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala — a "sala velha", toda revestida desses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que ele desde pequeno chamava as carantonhas dos avós. E, atravessando o corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silêncio dos campos cobertos de luar, façanhas rimadas dos seus:

Ai! lá na grande batalha...
El-Rei Dom Sebastião.. .
O mais moço dos Ramires
Que era pagem do guião...

Despido, soprada a vela, depois de um rápido sinal da cruz, o Fidalgo da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de sombras, começou para ele uma noite revolta e pavorosa. André Cavaleiro c João Gouveia romperam pela parede, revestidos de cotas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mau, arremessavam contra o seu pobre estômago pontoadas de lança, que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era, na Calçadinha de Vila-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da armadura, e El-Rei Dom Afonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas. Ele resistia, fincando nas lajes, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo Titó! Mas D. Afonso tão rijo murro lhe despedia nos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria do Gago até a Serra Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pendões e de armas. E imediatamente seu primo d'Espanha, Gomes Ramires, Mestre, de Calatrava, debruçado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabelos, entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia Louredo trazida como um andor aos ombros de quatro Reis!... — Por fim, moído, sem sossego, já com a madrugada clareando nas fendas das janelas e as andorinhas piando no beirai dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um verdadeiro repelão aos lençóis, saltou ao assoalho, abriu a vidraça — e respirou deliciosamente o silêncio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta. Mas que sede! uma sede desesperada que lhe encortiçava os lábios! Recordou então o famoso fruit salt que lhe recomendara o Dr. Mattos, arrebatou o frasco, correu à sala de jantar em camisa. E, a arquejar, deitou duas colheradas num copo d'água da Bica-Velha, que esvaziou dum trago, na fervura picante.
— Ah, que consolo, que rico consolo!. . .
Voltou derreadamente à cama: e readormeceu logo, muito longe, sobre as relvas profundas d'um prado de África, debaixo de coqueiros sussurrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam através de pedregulhos de ouro. Dessa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao meio-dia, inquieto com "aquele tardar do Sr. Doutor".
— É que passei uma noite horrenda, Bento: Pesadelos, pavores, bulhas, esqueletos... Foram os malditos ovos com chouriço; e o pepino... Sobretudo o pepino! Uma idéia daquele animal do Titó. . . Depois, de madrugada, tomei o tal fruit salt, e estou ótimo, homem!... Estou otíssimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma chávena de chá verde, muito forte. . . Leva também torradas.


II

Os pensamentos de Gonçalo esvoaçaram logo, com irresistida tentação, para D. Ana — para os seus decotes, para os languidos banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que diabo!. . . Essa D. Ana assim tão honesta, tão perfumada, tão esplendidamente bela, só apresentava, mesmo como esposa, um feio senão — o papá carniceiro. E a voz também — a voz que tanto o arrepiara na Bica-Santa. . . Mas o Mendonça assegurava que aquele timbre rolante e gordo, na intimidade, se abatia, liso e quase doce. .. Depois, meses de convivência habituam as vozes mais desagradáveis — e ele mesmo, agora, nem percebia quanto o Manuel Duarte era fanhoso! Não! mancha teimosa, realmente, só o pai carniceiro. Mas nesta Humanidade nascida toda d'um homem só, quem, entre os seus milhares de avós até Adão, não tem algum avô carniceiro? Ele, bom fidalgo, de uma casa de Reis de onde Dinastias irradiavam, certamente, escarafunchando o passado, toparia com o Ramires carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira geração, cm um talho ainda afreguesado, ou que apenas se esfumasse, através de espessos séculos, entre os trigésimos avós — lá estava, com a faca, e o cepo, e as postas de carne, e as nódoas de sangue no braço suado!
E este pensamento não o abandonou até a Torre — nem ainda depois, à janela do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos gaios. Já mesmo se deitara, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os seus passos impacientes se embrenhavam para trás, para o escuro passado da sua Casa, por entre a emaranhada História, procurando o carniceiro... Era já para além dos confins do Império Visigodo, onde reinava com um globo de ouro na mão o seu barbudo avô Recesvinto. Esfalfado, arquejando, transpusera as cidades cultas, povoadas de homens cultos — penetrara nas florestas que o mastodonte ainda sulcava. Entre a úmida espessura já cruzara vagos Ramires, que carregavam, grunhindo, reses mortas, molhos de lenha. Outros surdiam de tocas fumarentas, arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto que passava. Depois, por tristes ermos, sob tristes silêncios, chegara a uma lagoa enevoada. E à beira da água limosa, entre os canaviais, um homem monstruoso, peludo como uma fera, agachado no lodo, partia a rijos golpes, com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires. No céu cinzento voava o Açor negro. E logo, dentre a neblina da lagoa, ele acenanava para Santa Maria de Craquede, para a formosa e perfumada D. Ana, bradando por cima dos Impérios e dos Tempos: — "Achei o meu avô carniceiro!"


III

Gonçalo remoeu a amarga certeza de que sempre, através de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Filipe!) não cessara de padecer humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como o vôo para qualquer ave —só para ele constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! À entrada da vida escolhe com entusiasmo um confidente, um irmão, que trás para a quieta intimidade da Torre — e logo esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida Política — e logo o Acaso o força a que se renda e se acolha à influência desse mesmo homem, agora Autoridade poderosa, por ele durante todos esses anos de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua convivência, a porta dos Cunhaes, confiado na seriedade, no rígido orgulho da irmã — e logo a irmã se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde em que se encontra com ele na sombra favorável de um caramanchão! Agora pensa em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande beleza uma grande fortuna — e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e segreda: — "A mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de amantes!" De certo essa mulher não o amava com um amor nobre e forte! Mas decidira acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua sorte insegura — e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a humilhação costumada. Realmente o Destino malhava sobre ele com um rancor desmedido!
— E por quê? murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. Em vida tão curta, tanta decepção ... Por quê? Pobre de mim!
Caiu no vasto leito como em uma sepultura — enterrou a face no travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite proclamado ao violão:

Velha casa de Ramires
Honra e flor de Portugal!

Como a flor murchara! Que mesquinha honra! E que contraste o do derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa Irenéia, com esses grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha — todos eles, se História e Lenda não mentiam, de vidas triunfais e sonoras! Não! nem sequer deles herdara a qualidade por todos herdada através dos tempos, a valentia fácil. Seu pai ainda fora o bom Ramires destemido — que na falada desordem da romaria da Riosa avançava com um guarda-sol contra três clavinas engatilhadas. Mas ele... Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer — ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da carne que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir. .. A fugir de um Casco. A fugir de uma malandro de suíças louras que numa estrada e depois numa venda o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho.
E a Alma. . . Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também, gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer influência, logo por ela levado como folha seca por qualquer sopro. Por que a prima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe aconselha por trás do leque que se interesse pela D. Ana — logo ele, fumegando de esperança, ergue sobre o dinheiro e a beleza de D. Ana uma presunçosa torre de ventura e luxo. E a Eleição? Essa desgraçada Eleição? Quem o empurrara para a Eleição, e para a reconciliação indecente com o Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? Gouveia! Com leves argúcias, murmuradas pela rua. Mas quê! Se mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas! A um homem assim, por mais bem dotado na Inteligência, é massa inerte a que o mundo constantemente imprime formas várias e contrárias.
Enterrou-se sob a roupa. Batiam as quatro horas. Através das pálpebras cerradas, percebeu faces antigas, com desusadas barbas ancestrais e ferozes cicatrizes, que sorriam no fragor de uma batalha ou na pompa de uma gala, dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia os velhos Ramires.
Os robustíssimos corpos emergiam cobertos de saios de malha ferrugenta, por arneses de aço, clavas godas eriçadas de pontas e espadins de baile.
Das suas tumbas dispersas seus avós acudiam à casa nove vezes secular — para reunir Assembléia majestosa da sua raça ressurgida... E até mesmo reconhecia alguns dos mais esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu "fado", lhe andavam sempre na imaginação. ..
O de brial branco e cruz vermelha era Gutierres Ramires o d'Ultramar, que correu ao assalto de Jerusalém; o velho Egas Ramires, negava acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão real de Castela, quem, senão Diogo Ramires, o Trovador, na alegria da radiosa manhã d'Aljubarrota? Diante da incerta claridade do espelho tremiam as fofas plumas escarlates do morrião de Paio Ramires que se armava para salvar S. Luís, Rei de França. Ruy Ramires sorria às naus inglesas que fugiam da sua Capitania pelo mar português. Paulo Ramires, pajem do Guião d'El Rey nos campos fatais de Alcácer, sem elmo, rota a couraça, inclinava para ele a sua face de donzel, com a doçura grave de um avô enternecido...
Gonçalo sentiu que a sua ascendência toda o amava e que acudia a socorrê-lo na sua debilidade, e que o alcançava a espada que combatera em Ourique, a acha que derrubara as portas de Arcilla. "Ó avós, de que me servem as vossas armas — se me falta a vossa alma?...
Acordou muito cedo, confuso, e abriu as vidraças à manhã. Bento desejou saber se o Sr. Doutor passara mal a noite...
— Pessimamente!...

Eça de Queiroz, A ilustre casa de Ramires (1900)



CORTESIA

Sonhei que o cervo ileso pedia perdão ao caçador frustrado.

Nemer Ibn El Barud
DER TRAUM E1N LEBEN 8


O diálogo, ocorreu em Androgué. Meu sobrinho Miguel, que tinha cinco ou seis anos, estava sentado no chão, brincando com a gata. Como faço todas as manhãs, lhe perguntei:
— Que sonhaste esta noite? Respondeu-me:
— Sonhei que me havia perdido numa floresta e finalmente encontrei uma casinha. Abriu-se a porta e você saiu.
E com súbita curiosidade me perguntou:
— Diz pra mim. O que é que você estava fazendo nessa casinha?

Francisco Acevedo, Memórias
de un bibliotecário (1955)


ULRICA


Hana tekr sverthit Gram ok leggr i
methal theira bert
Volsunga Saga, 27 9

O meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que afinal dá no mesmo. Os fatos ocorreram faz pouco tempo, porém sei que o hábito literário é, do mesmo modo, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez jamais venha a sabê-lo) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.
Não me custaria nada mencionar que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, estes vitrais puros das imagens que os iconoclastas de Cromwell respeitaram, mas o fato é que nos conhecemos na saída do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu um copo e recusou.
— Sou feminista, — disse —. Não quero imitar os homens. Desagradam-me seu tabaco e seu álcool.
A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que ela a pronunciava. Soube depois que isto não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.
Disse que havia chegado tarde ao museu, mas que a haviam deixado entrar quando souberam que era norueguesa.
Um dos presentes comentou:
— Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.
— Assim é, — disse ela —. A Inglaterra foi nossa e nós a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.
Foi então quando a olhei. Uma linha de William Blake fala de moças de prata suave ou de ouro furioso, porém em Ulrica se encontravam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de traços finos e olhos cor de cinza. Menos que seu rosto, impressionou-me esse ar de tranqüilo mistério. Sorria com facilidade e o sorriso parecia distanciá-la. Estava vestida de negro, o que é raro nas terras do Norte, onde se trata de avivar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; estas coisas descobri-as pouco a pouco.
Fomos apresentados, e eu lhe disse que era professor da Universidade dos Andes, de Bogotá. Esclareci que era colombiano.
Perguntou-me de modo pensativo:
— O que é ser colombiano?
— Não sei — respondi. É um ato de fé.
— Como ser norueguesa — assentiu.
Nada mais posso lembrar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo ao refeitório. Através dos vidros, vi que havia nevado; as campinas se perdiam na manhã. Não havia mais ninguém. Ulrica convidou-me à sua mesa. Disse-me que lhe agradava sair a caminhar sozinha.
— A mim também. Podemos sair juntos os dois.
Afastamo-nos da casa, sobre a neve jovem. Não havia uma só alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que se situa rio abaixo, há poucas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria querido ao meu lado nenhuma outra pessoa.
Em seguida ouvi o longínquo uivo de um lobo. Nunca ouvi um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.
Logo disse, como "se pensasse em voz alta:
— As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster comoveram-me mais do que as grandes naves do museu de Oslo.
Nossos caminhos se cruzavam. Essa tarde, Ulrica prosseguia viagem com destino a Londres, e eu na direção de Edimburgo.
— Em Oxford Street, — disse-me — repetirei os passos de De Quincey, que buscava sua Ana perdida entre as multidões de Londres.
— De Quincey — respondi — deixou de procurá-la. E eu, ao longo do tempo, sigo buscando-a.
— Talvez — disse em voz baixa — a tenhas encontrado.
Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-a na boca e nos olhos. Afastou-me com suave firmeza, dizendo-me em seguida:
— Serei tua na pousada de Thorgate. Entrementes, peço-te que não me toques. É melhor que seja assim.
Para um homem solteiro entrado em anos, o amor oferecido é um dom que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições. Pensei em meus tempos de moço em Popayán e em uma garota do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.
Não cometi o erro de perguntar-lhe se me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, possivelmente a última para mim, seria uma das muitas para essa resplandecente e decidida discípula de Ibsen.
De mãos dadas seguimos adiante.
— Tudo isto é como um sonho — disse-lhe eu — e eu nunca sonho.
— Como aquele rei — replicou Ulrica — que não sonhou até que um feiticeiro fê-lo dormir em uma pocilga.
E acrescentou depois:
— Ouve bem. Um pássaro vai cantar. Logo em seguida ouvimos o canto.
— Nestas terras — disse eu — acreditam que quem vai morrer pode prever o futuro.
— E eu estou perto de morrer. Olhei-a atônito.
— Cortemos caminho pela floresta — apressei-a —. Chegaremos mais rapidamente a Thorgate.
— A floresta é perigosa — replicou. Seguimos pela campina.
— Eu queria que este momento durasse sempre — murmurei.
— Sempre é uma palavra que não está permitida aos homens — afirmou Ulrica. E para tornar menos enfático o que dizia, pediu-me para repetir meu nome, que não havia ouvido bem.
— Xavier Otárola, lhe disse.
Quis repeti-lo mas não pode. E eu fracassei igualmente com o nome de Ulrikke.
— Vou te chamar Sígurd — declarou com um sorriso.
— Se sou Sigurd — repliquei — tu serás Brynhild. Retardou sua caminhada.
— Conheces a saga? — perguntei.
— Claro — respondeu. A trágica história que os alemães deitaram a perder com seus tardios Nibelungos.
Não quis discutir e respondi:
— Brynhild, tu caminhas como se quisesses que entre nós dois houvesse uma espada na cama.
De repente nos achamos em frente à pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Do alto da escada, Ulrica gritou-me:
— Ouviste o lobo? Já. não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.
Ao subir o andar alto notei que as paredes estavam forradas de papel à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com frutos e pássaros entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava num vidro, e o mogno polido me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já se tinha despido. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Xavier. Senti que a neve aumentava. Já não havia móveis nem espelhos. Não havia espada entre nós dois. O tempo se escoava como areia. Secular, fluiu na sombra o amor, e eu possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.

Jorge Luis Borges



LIVRO TERCEIRO DAS FANTASIAS
DE
GASPAR DA NOITE

A NOITE E SUAS ILUSÕES

I

A CELA GÓTICA


Nox et solitudo plenae sunt diabolo
Os Padres da Igreja

(De noite, minha cela se enche de diabos.)


Oh, a terra! — murmurava eu de noite. É um cálice perfumado cujo pistilo e estames são a lua e as estrelas!
E com os olhos pesados de sono, fechei a janela que incrustou a negra luz do calvário na auréola amarela dos vidros.
Se ao menos à meia noite, hora brasonada de dragões e diabos, não fosse o gnomo o único a embriagar--se com o óleo da minha lâmpada!
Se não fosse a ama de leite a única a acalentar, com seu monótono canto, na couraça de meu pai, também recém-nascido morto!
Se não fosse o esqueleto do lansquenê emparedado no madeirame o único a chamar com a testa, com o cotovelo e com o joelho!
Porém é Scarbó, que me morde o pescoço e que, para cauterizar minha ferida sangrenta, enfia nela seu dedo de ferro enrubescido nas brasas da chaminé!


II

SCARBÓ

Deus meu, concede-me na hora da morte,
as súplicas de um monge,
uma mortalha de pano,
um ataúde de pinho e em lugar seco.

As ladainhas do senhor Marechal

Morras absolvido ou condenado — murmurava Scarbó esta noite em meu ouvido —, e terás por mortalha uma teia de aranha, e já me encarregarei de amortalhar a aranha contigo.
Com os olhos vermelhos de tanto chorar, respondi: "Dá-me ao menos por mortalha uma folha de álamo, que me traga o hálito do lago".
— Não — respondeu sardônico o anão —: serás pasto do escaravelho que todas as tardes sai a caçar mosquitos deslumbrados pelo sol poente.
— Preferes, pois — repliquei sem deixar de chorar —; preferes que uma tarântula com tromba de elefante me sorva?
— Bem, consola-te — acrescentou —. Terás por mortalha as tiras cravejadas de ouro de uma pele de serpente, nas quais te envolverei como uma múmia.
"E da tenebrosa cripta de São Benigno, onde te deixarei de pé contra a parede, poderás ouvir à vontade como choram as crianças que estão no limbo".


III

O LOUCO

Uni carolus 10 ou,
se preferires, um cordeiro
de ouro.
Manuscritos da Biblioteca do Rei
A Lua penteava seus cabelos com um pente de éba-no, que prateava com uma chuva de vagalumes as colinas, os prados e as florestas.
Scarbó, gnomo que possuía abundantes tesouros, espreitava do meu telhado, enquanto rangia o catavento, ducados e florins que saltavam cadenciadamente, indo as moedas falsas semear o chão da rua.
Como ria o louco que, durante as noites, vaga pela cidade, com um olho posto na lua e o outro — ai! — saltado.
"Maldita seja a Lua!", grunhiu. "Recolherei as moedas do diabo e comprarei uma picota para esquentar-me ao sol". Porém era a Lua, ainda a Lua, a que se escondia. E Scarbó, na cova, continuava cunhando ducados e florins a golpes de balancim.
Enquanto isto, com os chifrinhos em frente, unia lesma procurava caminho em meus vitrais luminosos.


IV

O ANÃO


— Tu a cavalo?
— Por que não? Mais de ama vez galopei em um galgo do laird11 de Linlithgow.

Balada escocesa

Do meu assento, na sombra das cortinas, eu tinha capturado a borboleta furtiva surgida de um raio de luz ou de uma gota de orvalho.
O inseto palpitante, por desprender suas asas cativas em meus dedos, pagava-me um resgate de perfumes.
Subitamente, o errante animalzinho se pôs a voar. Em meu colo ficou uma larva monstruosa e disforme com um rosto humano.
— Onde está tua alma? Que estou eu cavalgando? — Minha alma, pequena montaria fustigada pelas fadigas do dia, repousa agora na liteira dourada dos sonhos.
E fugia aterrorizada, minha alma, através da lívida teia de aranha do crepúsculo por cima dos negros horizontes grinaldados de negros campanários góticos.
Porém o anão, pendurado nela em sua fuga relinchante, se enrolava como um fuso nos flocos de sua crina branca.


V

O CLARÃO DA LUA


Despertai, vós que dormis,
e rogai por aqueles que morreram

Grito do que clama na noite

Oh! Quão doce é, à noite, quando as horas tremem no campanário, olhar a lua com seu nariz igual a um carolus de ouro!
Dois leprosos se queixavam debaixo da minha janela, um cão uivava na pracinha e o grilo da minha chaminé vaticinava em voz baixa, mas não tardou em fazer--se em meus ouvidos um silêncio profundo. Os leprosos voltaram a suas pocilgas, chegando no momento em que Jacquemart batia em sua mulher.
O cão havia saído a correr entre as alabardas da noite embolorada pela chuva e inteiriçada pelo ouriço. '
E o grilo pegou no sono tão logo a última fagulha se apagou entre as cinzas da chaminé.
E pareceu-me — tão incoerente é a febre! — que a Lua, fazendo-me caretas, punha a língua para fora como um enforcado.

Ao sr. Louis Boulanger, pintor.


VI

A RODA SOB O CAMPANÁRIO

Era um maciço casarão, quase quadrado, rodeado de ruínas, e cuja torre principal, que ainda conservava ò relógio, dominava todo o bairro.

Fenimore Cooper

Doze mágicos dançavam em roda sob o sino principal de Saint-Jean. Um atrás do outro invocou a tempestade, e desde o fundo do meu leito contei com terror doze vozes que atravessavam as trevas.
Imediatamente a lua correu a esconder-se detrás das nuvens, e uma chuva misturada com relâmpagos e rajadas de vento fustigou minha janela enquanto que os cataventos grasnavam como gralhas na floresta, agüentando a chuvarada.
Saltou a prima do meu alaúde, pendurado no tabique; o pintassilgo sacudiu as asas, em sua gaiola; algum espírito curioso voltou uma página do Roman-de-la-Rose que dormia na minha escrivaninha.
De repente estourou o raio no alto de Sant-Jean. Os feiticeiros, mortalmente feridos, caíram desmaiados, e de longe vi seus livros de magias arderem como uma tocha no negro campanário.
O espantoso resplendor tingia com as chamas vermelhas do purgatório e do inferno os muros da igreja gótica e prolongava sobre as casas vizinhas a sombra da estatura gigantesca de Saint-Jean.
Os cataventos se enferrujaram; a lua atravessou as nuvens cinza-pérola; a chuva apenas gotejava do beiral do telhado, e a brisa, abrindo minha janela mal fechada, lançou sobre o meu travesseiro as flores de um jardim sacudido pela tormenta.


VII

UM SONHO


Isso e muito mais sonhei, mas não entendo uma única palavra desse sonho.
Rabelais, Pantagruel, Livro III


Era noite. A princípio havia — eu conto como vi — uma abadia com as paredes riscadas pela lua, uma floresta atravessada por caminhos tortuosos, e o Marimont 12, repleto de capas e chapéus.
Logo em seguida — eu conto como vi —, um fúnebre dobrar de finados em um campanário, respondido por fúnebres soluços vindos de uma cela, lamentos doidos e risos ferozes que faziam estremecer as folhas nas ramagens, murmúrios de preces dos penitentes negros que acompanhavam o criminoso ao seu suplício.
Finalmente — assim acabou o sonho, assim o conto — um monje expirava na cinza dos agonizantes, uma jovem se debatia pendurada nos ramos de um azinheiro. E eu, a quem o verdugo desgrenhado amarrava nos raios da roda.
Don Agustín, o prior defunto, em hábito de franciscano, terá as honras de uma câmara ardente; e Marguerite, assassinada por seu amante, será amortalhada com seu vestido branco de inocência entre quatro círios de cera.
Comigo, porém, a barra do verdugo se quebrou na primeira pancada, como se fosse de vidro, as tochas do penitente se apagaram sob torrentes de chuva, a multidão se dispersou como os arroios transbordados e as corredeiras — e eu já perseguia outros sonhos 'ao despertar—.


VIII

MEU BISAVÔ


Naquele quarto tudo permanecia no mesmo estado, a não ser a tapeçaria, que estava completamente dilacerada, e pelas aranhas que teciam suas teias no pó.

Walter Scott, Woodstock


As veneráveis personagens da tapeçaria gótica agitada pelo vento saudaram umas às outras e meu bisavô entrou na peça, — meu bisavô, que logo fará oitenta anos que morreu —.
Aí! Ai mesmo, frente a este genuflexório, foi onde se ajoelhou meu bisavô, roçando levemente com sua barba o missal amarelo, aberto onde marca o indicador.
Durante toda a noite esteve balbuciando suas orações sem descruzar um só momento os braços sob a esclavina de seda violeta, sem sequer olhar obliquamente uma única vez em minha direção, — eu, que sou sua posteridade, deitado na cama, sua poeirenta cama. de dossel.
E me dei conta, com espanto, de que seus olhos estavam vazios quando ainda pareciam ler; que seus lábios estavam imóveis, quando eu ainda o ouvia rezar; que seus dedos estavam descarnados, quando ainda cintilavam de pedrarias!
E evitei perguntar-me se velava ou se dormia; se era a lividez da Lua ou de Lúcifer; se era meia-noite ou o amanhecer.


IX

ONDINA


.. .Eu acreditava escutar
uma vaga harmonia que o meu
[sonho encantava, um sussurro próximo, semelhante,
[no ar, ao canto entrecortado de uma voz
[triste terna.

Ch. Brugnot, Os dois gênios

— Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gotas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos raios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.
"Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio está feito de matérias fluídas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.
— "Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieíro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de erva, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara".
Terminada a canção, suplicou-me que pusesse seu anel em meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.
Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lágrimas, soltou uma gargalhada e desvaneceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.


X

A SALAMANDRA

Lançou no jogo da chaminé um
[feixe de visco abençoado que ardeu
[crepitando.

Ch. Nodier, Trilby

— Grilo, meu amigo. Por que, como morto, estás surdo ao meu silvo e cego ao esplendor do incêndio?
O grilo, porém, por muito afetuosas que fossem as palavras da salamandra, nada disse, seja porque dormia um mágico sono, seja porque teve o capricho de aborrecer-se.
— Oh! Canta-me tua canção como fazes cada noite! Do teu esconderijo de cinza e fuligem da placa de ferro coberta com três heráldicas flores de lis...
Tampouco respondeu o grilo. E a salamandra, desconsolada, ora esperava ouvir a voz, ora zumbia com a chama de cambiantes cores rosa, azul, amarelo, branco, violeta.
— Morreu meu amigo! Morreu, e eu também quero morrer! — As lenhosas ramagens se haviam consumido, a chama arrastou-se sobre as brasas, disse adeus à corrente da chaminé, e a salamandra morreu de inanição.



A HORA DAS BRUXAS


O que pode ocorrer no vale a estas
[horas?

H. de Latouche, El Rey de los Alisos

É aqui! E logo na espessura dos matagais que apenas iluminava o olho fosforescente de um gato montes acocorado sob a ramaria.
Entre as rochas que encharcavam na noite de seus precipícios sua cabeleira de espinheiro, reluzente de orvalho e de vagalumes;
Junto à torrente que tomba espumosa entre as copas dos pinheiros e que flutua como um vapor cinzento no fundo dos castelos;
Reúne-se uma multidão incalculável que o velho lenhador, retido nas picadas com sua carga de lenha sobre os ombros, ouve porém não vê.
E de azinheira em azínheira, de colina em colina, se dispersam mil gritos confusos, lúgubres, espantosos: Hum! Hum! Shh! Shh! Curu! Curu!
Aí está a forca! — E por ali se vê aparecer, na sombra, um judeu que procura algo entre a erva molhada, sob o relâmpago dourado de uma auréola.

Aloysius Bertrand, Gaspar de la Nuit (1842)



PREPARANDO-SE

Nos processos dos seus sonhos, o homem se exercita para a vida futura.

Nietzsche


ENTRE MIM E EU MESMO,
QUE DIFERENÇA!


Até o ano 400 o filho de Mônica e Bispo de Hipona, Aurelius Augustinus, conhecido depois por Santo Agostinho, redigiu suas Confissões. Não pode dissimular seu assombro ante as deformações e excessos que assaltam durante o sono os varões que, durante a vigília, se atem à sua concepção ético-filosófica e à doutrina cristã. "Não por mim, porém em mim, isto ocorreu", disse. "Entre mim e eu mesmo que diferença!" E o bispo dá graças a Deus por não ser responsável pelo conteúdo de seus sonhos. Na verdade, somente um santo pode ficar tranqüilo por saber-se irresponsável.

Rodericus Bartius, Los que son números
y los que no lo son (1964)


OS CAMINHOS DE QUE SE VALE DEUS PARA ALIMENTAR O ESPÍRITO


Porém, quem pode detalhar seu primeiro dia em Atenas, quando os sonhos infantis, quase esquecidos, recobram luzes e linhas, e parecem confirmar-se? Andamos entre deuses e turistas, transpiramos, bebemos vinho; tão logo ficava ensimesmado ou me tornava loquaz, sentia vontade de cantar ou emudecia. Os olhos apreendem o desnecessário e se multiplicam para o eterno. Se cruzava com uma jovem que vestia uma simples blusa, tratava-se de uma donzela dos jogos ou os oráculos. Passei junto ao Erecteion e suas cariátides quase sem olhar, com uma saudação tácita para as velhas amigas. No Partenon a sabedoria de Ictinome foi revelada em dobro: a perfeição do templo e a maestria de sua situação dentro da paisagem. E o mar que se vê do alto da Acrópole! Por onde andava o barco de velas negras que se arrojou no velho Egeu? E este presente inesperado: os tomates mais deliciosos que já comi.
De noite permaneci uma ou duas horas no terraço do hotel: o Partenon iluminado a giorno. (Sabia eu que suas pedras eram de um tom amarelo cru? Porém, quantas coisas eu não sabia?). Adormeci na expectativa de visões influenciadas pelo dia que passara. Mas isso não aconteceu. Sonhei com os caminhos de que se vale Deus para alimentar o espírito.
Por canais de acrílico (eu não tinha visto nem vasos nem veias de acrílico), amáveis corpúsculos de luz me chegavam até o peito, em uma suave continuidade de oferta; pareceu-me um doce sistema cardiovascular supletivo, que distribuía graças. Ao mesmo tempo (não se via Deus, mas era certo que Ele ali estava) fibrilas que desprendiam fagulhas do verbo me transmitiam notícias nobres do espaço e do silêncio. A voz de multidões havia cessado. E todos esses grãos de pó redentor ficavam em mim, rodeado que estava de um diafaneidade e de uma paz que nunca encontrarei na vigília.
Durante o desjejum contei tudo à minha mulher, porém ela (que havia sido mártir nos tempos da perseguição religiosa) limitou-se a sorrir.
Que podemos fazer? Deus nunca poderá ser mais do que já é; nem eu, por mais redundante que me torne, poderei ser menos do que já sou. De modo que um dia destes nos encontraremos.

Gaston Padilla, Memórias de un prescindible (1974)




O SONHO DO CHANCELER


O que Vossa Majestade me escreve encoraja-me a relatar-lhe um sonho que tive na primavera de 1863, quando a gravidade da situação política havia chegado ao seu ponto máximo e não se vislumbrava nenhuma saída praticável. Com as coisas neste pé, sonhei durante a noite (e na manhã seguinte contei à minha mulher e a outras pessoas) que ia a cavalo por uma estreita picada alpina, ladeada à direita por um despenhadeiro, e à esquerda por uma rocha perpendicular. O caminho foi ficando cada vez mais estreito, até o ponto em que o cavalo negou--se a prosseguir, resultando igualmente impossível, por falta de espaço, retroceder ou apear. Frente a esta dificuldade, com o chicote que empunhava na mão esquerda, golpeei a rocha vertical e lisa, invocando o nome de Deus. O chicote encompridou-se infinitamente, caiu a rocha e surgiu diante de meus olhos um amplo caminho, ao fundo do qual se estendia uma bela paisagem de colinas e florestas, semelhantes às da Boêmia, e onde avançava um exército prussiano com suas bandeiras desfraldadas. Ao mesmo tempo, eu me perguntava como poderia comunicar rapidamente a Vossa Majestade, este acontecimento. Acordei contente e fortalecido. O sonho conseguiu cumprir-se. 13


Bismarck a Guilherme I, 18 de dezembro de 1881



SONHA ALONSO QUIJANO


O homem acorda de um não definido
Sonho de alfanges e de plano chão
E tocando sua barba com a mão
Se pergunta se está morto ou está ferido.
Não o perseguiram os feiticeiros
Que juraram seu fim à luz da lua?
Nada. Só o frio. Somente a sua
doença dos anos derradeiros.
O fidalgo foi um sonho de Cervantes
E Dom Quixote, um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde, e algo
está ocorrendo, e ocorreu já antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.
Jorge Luis Borges


A MORTE DE UM PRESIDENTE


Há cerca de dez dias deitei-me muito tarde. Havia estado aguardando uns despachos muito importantes,.. Logo em seguida comecei a sonhar. Parecia envolver-me a rigidez da morte. Escutei soluços sufocados, como se várias pessoas estivessem chorando. No sonho, saí da cama e lancei-me escadas abaixo.
Ali o silêncio era rompido por idênticos soluços, porém os que sofriam eram invisíveis. Caminhei de quarto em quarto. Não havia ninguém a vista e os lamentos me seguiam enquanto caminhava.
As salas estavam iluminadas, os objetos me eram familiares; mas onde estava esta gente cujos corações pareciam estar a ponto de rebentar de aflição?
Invadiram-me a confusão e o medo. Que significava tudo isto? Decidido a descobrir as causas desta situação tão chocante e misteriosa, segui até a Sala Oriental. Encontrei-me aí com uma surpresa perturbadora. Em um cadafalso se achava um cadáver envergando vestimentas funerárias. Ao seu redor, soldados de guarda, e um indígena que olhava com tristeza o corpo que ali jazia, cujo rosto estava oculto por um lenço. Outros choravam com profundo pesar.
— Quem foi que morreu na Casa Branca?, perguntei a um dos soldados.
— O presidente — respondeu-me ele. Foi morto por um assassino.

Anotado por Ward Hill Lamon, chefe de polícia do distrito de Columbia, que se encontrava presente quando Abraham Lincoln narrou a um grupo de amigos, na Casa Branca, um sonho que tivera em uma das noites anteriores e pouco antes de ser mortalmente baleado na cabeça, dentro do Teatro Ford, de Washington (14 de. abril de 1865) por John Wilkes Booth.



O BOM OPERÁRIO


Estava o beato Antônio em oração e jejum quando o sono venceu-o e ele sonhou que do céu descia uma voz que lhe dizia que seus méritos ainda não eram comparáveis aos do curtidor José, de Alexandria. Saiu andando Antônio e surpreendeu o simplório homem com sua presença respeitável. "Não me lembro de ter feito nada de bom — declarou o curtidor —. Sou um servo inútil. Diariamente, ao ver o sol raiar sobre esta grande cidade, penso que todos os seus moradores, do maior ao menos importante, entrarão no céu por sua bondade, menos eu que, por causa dos meus pecados, mereço o inferno. E o mesmo mal-estar me contrista quando vou deitar-me, e cada vez com mais veemência". "Na verdade, meu filho — observou Antônio — tu, dentro de tua casa, como bom operário, ganhaste descansadamente o reino de Deus, enquanto que eu, irrefletido que sou, consumo minha solidão e ainda não cheguei a tua altura". Isto posto, voltou Antônio ao deserto e, no primeiro sonho que teve, voltou a baixar a ele a voz de Deus: "Não te angusties; estás perto de mim. Mas não esqueças de que ninguém pode estar seguro nem do próprio destino nem do destino dos outros".

Vida dos Padres Eremitas do Oriente





O ESPELHO DE VENTO-E-LUA


Em um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas noites.
Uma tarde, um mendigo taoísta pedia esmolas na rua e proclamava que podia curar as doenças da alma. Kia Yui mandou chamá-lo. Disse-lhe o mendigo:
"Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o curará se seguir minhas indicações". Tirou da manga um espelho polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho de Vento-e-Lua. Acrescentou o mendigo: "Este espelho vem do Palácio da Fada do Terrível Despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o espelho e para felicitá-lo por suas melhoras". Não quis aceitar as moedas que lhe foram oferecidas.
Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe. O espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente vestida, lhe fazia sinais. Kia Yui sentiu-se arrebatado, atravessou o metal e realizou o ato de amor. Fênix acompanhou-o até a saída. Quando Kia Yui acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yui não resistiu a tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o prenderam quando saía e o acorrentaram. "Eu os seguirei, murmurou, "mas deixem-me levar o espelho". Foram suas últimas palavras. Encontraram-no morto, sobre o lençol manchado.

Tsao Hsue-King, Sonho do aposento vermelho (c. 1754)
O SONHO DE MELANIA


Ia eu pela neve, em um carro puxado por cavalos. A luz era não mais que um ponto; parecia a mim que se extinguia. A Terra tinha saído de sua órbita e nós nos distanciávamos cada vez mais do Sol. Pensei: é a vida que se apaga. Quando acordei estava gelado. Porém encontrei consolo porque uma pessoa piedosa cuidava do meu cadáver.

Gaston Padilla, Memórias de un prescindible (1974)



O SONHO DO JUÍZO FINAL
OU O SONHO DAS CAVEIRAS
(1606)

AO CONDE DE LEMOS, PRESIDENTE DAS ÍNDIAS


Às mãos de Vossa Excelência vão estas verdades nuas, que buscam não quem as vista, porém quem as admita; que em tal ocasião viemos, que com ser tão superior, havemos de rogar com ele. Promete-se segurança somente nelas. Viva Vossa Excelência para a honra de nossa época.

Don Francisco Gómez de Quevedo Villegas.

Senhor, diz Homero que os sonhos são de Júpiter 14 e que ele os envia; em outro lugar afirma que se deve acreditar neles 15. E assim, quando abordam coisas importantes piedosas, ou são sonhos de reis, ou de grandes senhores, como se pode compilar do doutíssimo e admirável Propércio nestes versos:

Néc tu sperne piis venientia somnia portis:
Quum pia venerunt somnia, pondus habent. 16

Digo a propósito que considero como caído do céu um sonho que tive uma destas noites, tendo fechado os olhos com o livro Fim do Mundo e Segunda Avenida de Cristo, do beato Hipólito, causador do sonho em que vi o Juízo Final.
E mesmo que na casa de um poeta seja difícil de crer que ocorram coisas judiciosas (ainda que em sonhos), comigo ocorreu, e pela razão que dá Claudiano no prefácio do livro segundo do Rapto, dizendo que todos os animais sonham durante a noite as coisas de que se ocuparam durante o dia. E Petrônio acrescenta:

Et canis in somnis leporis vestigia latrat. 17
E falando dos juizes:
Et pavido cernit inclusum corde tribunal. 18

Pareceu-me, pois, que vivia um mancebo que, vagando pelo ar, dava voz ao seu alento através de uma trombeta, enfeiando sua formosura com o esforço que fazia. O som encontrou obediência nos mármores e ouvidos nos mortos; e assim, logo começou a mover-se toda a terra, permitindo aos ossos irem uns em busca de outros. E passando o tempo (ainda que tenha sido breve) vi os que haviam sido soldados e capitães se levantarem irados dos sepulcros, tomando à trombeta como um sinal de guerra; os avarentos, com ansiedades e aflições, receando algum ataque; e as pessoas dadas à vaidade e à gula, por ser áspero o som, tomaram-no como coisa de festa ou de caça.
Isto percebia eu nos semblantes de cada um, e não vi que este ruído da trombeta chegasse a uma só orelha que se persuadisse de que era coisa séria. Notei depois a maneira como algumas almas fugiam, umas com asco e outras com medo, de seus antigos corpos; causou-me riso ver a diversidade de figuras é admirou-me a providência de Deus em que, estando embaralhados uns com os outros, ninguém por erro de contagem punha em si as pernas e os membros de seus vizinhos. Somente em um cemitério pareceu-me que andavam trocando cabeças, e vi um escrivão que não gostava muito de sua alma e quis dizer que não era sua, pára descartar-se dela.
Depois, já que todos se inteiraram de que era o dia do Juízo, foi de ver-se como os luxuriosos não queriam que seus olhos os achassem, para não levar ao tribunal testemunhas contra eles; os maldizentes,. as línguas; os ladrões e os assassinos gastavam os pés em fugir de suas próprias mãos. E, voltando-se para um lado, vi um avarento que estava perguntando a um vizinho (que por ter sido embalsamado e estar longe de suas tripas, não falava, porque estas ainda não haviam chegado) se, já que naquele dia ressuscitaria tudo o que havia sido enterrado, também iriam ressuscitar umas bolsas de dinheiro suas. Acharia graça, se por outro lado não me desse pena, o esforço que fazia uma chusma de escrivãos para fugir de suas orelhas, não querendo levá-las para não ouvir o que esperavam; mas somente se foram sem elas aqueles que aqui as haviam perdido por serem ladrões. O que, por descuido, não. foram todos. Porém o que mais me espantou foi ver os corpos de dois ou três mercadores que haviam vestido suas almas ao contrário, e tinham todos os cinco sentidos nas unhas da mão direita.
Eu via tudo isto de uma ladeira muito alta, a ponto de ouvir-me dizer aos meus pés que me afastassem; e mal tinha dito isto, muitas mulheres formosas começaram a assomar-se, chamando-me de descortês e de grosseiro porque não tinha manifestado mais respeito pelas damas (e elas estão mesmo no inferno ainda sem perder esta loucura). Saíram para fora, muito alegres por se verem esbeltas e despidas entre tanta gente a olhá-las, ainda que sabendo que aquele era o dia da ira e que sua beleza as estava acusando secretamente, e começaram a caminhar na direção do vale com passos mais alegres. Uma delas, que havia sido casada sete vezes, ia esboçando desculpas para todos os matrimônios. Outra, que havia sido rameira pública, para não chegar ao vale não fazia outra coisa senão dizer que havia esquecido dois dentes e uma sobrancelha, e voltava e parava. Afinal, chegou perto do teatro e havia tantos homens que ela havia ajudado a perder, e que, apontando para ela, gritavam irados, que quis esconder-se entre uma multidão de esbirros como se aquela fosse gente que não contasse, mesmo naquele dia.
Distraiu-me disto um grande ruído na margem de um rio, de gente que, em grande quantidade, vinha atrás de um médico, fato que depois soube tratar-se de uma sentença. Eram homens que haviam sido despachados por ele, sem razão e antes do tempo, e que por isso se haviam condenado, e que o puseram à força diante do trono. À minha esquerda ouvi o ruído de alguém que nadava, è vi um que havia sido juiz e que estava no meio de um arroio lavando as mãos, coisa que fazia repetidas vezes. Cheguei a perguntar-lhe porque se levava tanto, e disse-me que em vida havia manchado tanto suas mãos em razão de certos negócios, que ali estava esforçando--se para limpá-las a fim de não aparecer naquelas condições diante da residência universal.
Era de se ver como uma legião de espíritos maus, com açoites, paus e outros instrumentos, traziam para o julgamento uma multidão de taberneiros, alfaiates, sapateiros e livreiros, que de medo se faziam de surdos; e, embora tivessem ressuscitado, não queriam sair das sepulturas. E por causa do barulho que faziam no caminho por onde passavam, um advogado ergueu a cabeça e perguntou-lhes onde iam; e lhe responderam que iam ao "justo Juízo de Deus, que era chegado".
Diante' disto, o advogado enfiou-se ainda mais no caixão e disse:
— Isto me pouparei de andar, se é que tenho que ir ainda mais para baixo.
Suando, passava um taberneiro aflito, tão cansado que se deixava cair a cada momento, e a mim pareceu--me que lhe dizia um demônio:
— Já é muito que transpires água e não nos venda este suor por vinho.
Um dos alfaiates, de pequena estatura, cara redonda, barbas ruins e feitos ainda piores, não fazia mais do que dizer:
— Que poderia haver eu furtado, se estava sempre morrendo de fome?
E os outros lhe diziam (vendo que negava haver sido ladrão) que coisa era esta de menosprezar seu ofício.
Toparam com uns salteadores e punguistas que andavam fugindo uns dos outros até que os diabos os apertaram dizendo que eles bem poderiam juntar-se aos demais, pois afinal eram de certa forma alfaiates silvestres e campestres, assim como os gatos do campo. Houve brigas entre eles, pela afronta de irem juntos, mas afinal juntos chegaram ao vale.
Atrás deles vinha a loucura em uma turba, com seus quatro costados: poetas, músicos, enamorados e valentes, gente alheia a tudo que se referia a este dia. Puseram-se de lado, de onde olhavam os verdugos judeus e os filósofos. Desciam juntos, vendo os sumos pontífices sentados em tronos de glória:
— Os Papas se aproveitam de seus narizes de maneira diferente de nós, pois com dez varas de nariz não conseguimos cheirar o que trazíamos entre as mãos.
Dois ou três procuradores andavam contando as caras que tinham, e se espantavam que lhes sobrassem tantas, tendo vivido tão descaradamente. Finalmente, vi baixar o silêncio sobre todos.
Fazia o mesmo um tipo encarregado de garantir o silêncio na catedral, com uma melena mais abundante que um cão peludo, dando tais golpes com seu bastão de sineiro que a ele acudiram mais de mil racioneiros, sacristãos e frades, e até um bispo, um arcebispo e um inquisidor, trindade profana e profanadora que se arranhava para arrebatar uma boa consciência que por ali andava distraída a procura de alguém que lhe viesse bem.
O trono era obra trabalhada pela onipotência e pelo milagre.
Deus estava vestido dele mesmo, formoso para os santos e agastado para os perdidos; o sol e as estrelas pendendo de sua boca, o vento tolhido e mudo, a água recostada em suas margens, suspensa a terra, temerosa em seus filhos, os homens.
Alguns ameaçavam aos que lhes haviam ensinado, com seu mau exemplo, os piores costumes. Todos, em geral, pensativos: os justos, em que graças dariam a Deus, como pediriam por si; os maus, que desculpas dariam.
Os anjos da guarda mostravam, em seus passos e cores, as contas que tinham que dar de seus encomendados, e os demônios repassavam suas cópias, senhas e processos. No fim, todos os defensores estavam na parte de dentro e os acusadores na de fora. Os dez mandamentos montavam guarda em uma porta tão estreita, que mesmo os que estavam magros de tanto jejum, ainda assim tinham que deixar algo na estreitura, ao passar.
De um lado, juntas, estavam as desgraças, a peste e os pesares, vociferando contra os médicos. A peste dizia que ela havia ferido as pessoas, mas que os médicos as haviam despachado; os pesares garantiam que não haviam matado ninguém sem a ajuda dos doutores; e as desgraças afirmavam que todos os que haviam enterrado resultavam de trabalho de ambas as partes.
Com isto, os médicos ficaram na obrigação de dar conta dos defuntos; e assim, ainda que os nécios dissessem que eles haviam matado mais ainda, empunharam os médicos um papel timbrado escrito; e fizeram uma chamada, e logo se assomava um que dizia:
— Diante de mim passou, no dia tal de tal mês...
Começou-se a contagem por Adão, e para que se veja como a coisa era austera, até de uma maçã lhe pediram conta, e com tanto rigor que ouvi Judas dizer:
— E que conta prestarei eu, que vendi uni cordeiro ao próprio dono?
Passaram os primeiros padres, veio do Novo Testamento e sentaram-se em suas cadeiras ao lado de Deus todos os Apóstolos, com o santo Pescador. Em seguida * chegou um. diabo e disse:
— Este é aquele que mostrou com toda a mão o que São João mostrou com um dedo; foi ele quem esbofeteou o Cristo.
Julgou ele mesmo a sua causa, e mandaram-no aos subterrâneos do mundo.
Era de se ver como entravam alguns pobres entre meia dúzia de reis que se atrapalhavam com suas coroas, vendo entrar as dos sacerdotes sem deter-se.
Ergueram suas cabeças Herodes e Pilatos, e cada um percebia no Juiz, ainda que glorioso, a sua ira. Dizia Pilatos:
— Isto merece quem se deixou governar por judeuzinhos.
E Herodes:
— Eu não posso ir para o céu, pois no limbo não quererão mais confiar em mim os inocentes com as notícias que têm. É forçoso ir para o inferno que, afinal, é uma pousada conhecida.
Neste momento chegou um homem desaforado, de sobrolho franzido, que estendeu uma carta dizendo:
— Esta é a carta de exame.
Admiraram-se todos. Os porteiros perguntaram quem era, e ele em altas vozes respondeu:
— Mestre de esgrima comprovado e um dos mais valorosos homens do mundo, e para que acreditem, vejam aqui os testemunhos de minhas façanhas.
E começou a tirar do peito as provas com tanta pressa e cólera, que ao mostrá-las elas caíram no chão. Imediatamente acudiram, para apanhá-las, dois diabos e um policial; e vi que este último, com a maior presteza, apanhou os testemunhos antes dos diabos. Chegou um anjo e esticou o braço para agarrar e subjugar o mestre; e este, afastando-se, estendeu igualmente seu braço e disse, dando um salto:
— O que este punho faz é irreparável pois ensinou a matar, e eu bem posso pretender que me chamem Galeno; que meus ferimentos andaram de mula e passaram por maus médicos; e que se queres provar-me, darei boa conta do recado.
Riram-se todos, e um fiscal meio moreno perguntou--lhe que notícias tinha de sua alma. Pediram-lhe contas de não sei -o quê, e ele respondeu que não sabia de nenhum ardil contra os inimigos dela. Mandaram que fosse em linha reta para o inferno, ao que ele retrucou que na certa o julgavam conhecedor do livro matemático, mas que ele não sabia o que era uma linha reta. Fizeram-no aprender e ele, dizendo "Entre outro", atirou-se.
Chegaram uns dispenseiros fazendo contas (mas não rezando por elas), e entre a algazarra que se ouvia, disse um ministro:
— São dispenseiros. E outros disseram:
— Mas furtar não dispensam.
E lhes deu tanto amargor a palavra furtar, que se confundiram muito. Contudo, pediram que lhes buscassem um advogado, ao que respondeu um diabo:
— Ai está Judas, que é apóstolo descartado.
Quando ouviram isto, viraram-se para outro diabo, que não dava conta das folhas que tinha para assinalar e ler, e disseram:
— Que ninguém olhe, porque é mais vantagem que tomemos infinitos séculos de purgatório.
O diabo, como bom jogador, disse:
— Ah! então estão pedindo vantagem? Então vocês não têm bom jogo.
Começou a descobrir o jogo, e eles, vendo que os olhava, atiraram-se embaralhados nos seus favores.
Tais vozes procediam de um mal-aventurado paste-leiro, e como não se ouviram mais falar de homens esquartejados, pediram-lhe que declarasse em que lugar havia ele acomodado as carnes deles. Confessou que fora nos países, e determinaram que fossem restituídos os seus membros, de qualquer estômago em que se achassem. Perguntaram-lhe se queria ser julgado, e ele disse que sim, por. Deus e pela boa sorte. A primeira acusação, dizia sei lá que gato por lebre; tanto de ossos, e não da mesma carne, mas de forasteiros, tanto de ovelha e cabra, cavalo e cachorro; e quando ele viu que, ao serem provados os pastéis se descobriu que neles existiam mais animais do que na arca de Noé (porque na arca não havia ratos nem moscas, mas nos pastéis sim), virou as costas e deixou-os com a palavra na boca.
Foram julgados os filósofos, e era de ver-se como ocupavam suas ciências e sabedoria em fazer silogismos contra sua salvação. Mas o que aconteceu com os poetas foi de chamar a atenção, pois eles, por pura loucura, queriam fazer crer a Deus que Ele era Júpiter, e que por Ele diziam todas as coisas. Virgílio andava com seu Sicelides Musae19, dizendo que era o nascimento de Cristo; mas saltou um diabo e disse não sei o que de Mecenas e Otávia, e que mil vezes havia adorado uns chifrinhos deles, e não os trazia por ser dia de festa; e contou não sei que coisas. E enfim, chegando Orfeu (como o mais antigo) a falar por todos, mandaram que voltasse a tentar mais uma vez entrar no inferno para depois sair; e aos demais que o acompanhassem para conhecer o caminho.
Depois deles, chegou à porta um avarento, e lhe foi perguntado o que queria e lhe foi dito que os dez mandamentos guardavam aquela porta contra aqueles que não os haviam guardado; ele disse que em se tratando de guardar, era impossível que ele houvesse cometido algum pecado. Leu o primeiro: Amar a Deus sobre todas as coisas; e ele disse que somente esperava ter todas estas coisas para amar a Deus mais do que a elas. Não jurar seu santo nome em vão; disse que ainda que jurando falsamente, tinha sido por juros muito grandes, e que assim não havia sido em vão. Guardar os dias santos; estes — disse — assim como os dias de trabalho, não apenas guardava como também escondia. Honrar pai e mãe; — "Sempre lhes tirei o chapéu". Não matar; para respeitar isto, nem comia, para não Matar a fome. Não fornicar; "em coisas que custam dinheiro, já se sabe..." Não levantar falso testemunho...
— Aqui — disse um diabo — está o negócio, avarento. Se confessas haver levantado, te condenas, e se não, diante do Juiz, te levantarás a ti mesmo.
Aborrecendo-se, disse o avarento:
— Se não vou entrar, então não gastemos tempo.
Que nem mesmo tempo ele queria gastar.
Convenceu-se de sua vida, c foi levado para onde merecia. Entraram nisto muitos ladrões, salvando-se entre eles alguns enforcados. E de tal maneira se animaram os escrivãos que estavam diante de Mafoma, Luthero e Judas (vendo-se salvarem os ladrões) que entraram de golpe para serem sentenciados, o que provocou grande risada entre os diabos.
Os anjos da guarda começaram a esforçar-se e a chamar evangelizadores para serem advogados.
Os Demônios começaram a acusação, e não o faziam em processos que traziam fatos de suas culpas, mas sim no que eles haviam feito nesta vida. Disseram primeiramente:
— A maior culpa destes. Senhor, é serem escrivães.
E estes responderam em uníssono (pensando que assim dissimulariam algo) que não eram mais do que secretários.
Os anjos advogados começaram a dar quitação.
Diziam uns:
— São batizados e membros da Igreja.
E não tiveram muito mais coisas a dizer e terminaram assim:
— É homem, e não o farão outra vez. Levantem o dedo.
Afinal, salvaram-se dois ou três, e aos demais disseram os demônios:
— Já entendem.
Fizeram-lhe ficar atentos, dizendo que eram importantes ali para jurar contra certa gente.
E vendo eles que por serem cristãos lhes davam mais penalidades do que aos selvagens, alegaram que serem cristãos não era culpa sua, que foram batizados quando crianças e que a culpa cabia aos padrinhos.
Na verdade, digo que vi Mafoma, Judas e Luthero tão perto de atrever-se a entrar em julgamento, animados por verem salvar-se um escrivão, que me espantei que não o fizessem. Somente estorvou-os um médico, porque foi forçado pelos demônios e pelos que o haviam trazido, um boticário e um barbeiro. A eles, um diabo que tinha as cópias disse:
— Diante desse doutor passaram os mais defuntos, com a ajuda desse boticário e desse barbeiro, e a eles se deve grande parte o dia de hoje.
Alegou um anjo, em defesa do boticário, que este dava escaldapés aos pobres; porém disse um diabo que, no final das contas, o estoque de sua farmácia tinha sido mais daninho do que mil estocadas de espadas na guerra, porque seus remédios eram espúrios, e que com isto havia feito pacto com a peste e destruído dois lugares.
O médico se desculpava com ele, e finalmente o boticário desapareceu e o médico e o barbeiro andavam na base do dá cá as minhas mortes e toma lá as suas. Foi condenado um advogado porque tinha todos os direitos com mossas, e atrás dele foi descoberto um homem de gatinhas para que não o vissem, e perguntado quem era, disse que era cômico. Um diabo porém, muito aborrecido, retrucou:
— É um farsante, Senhor, e podia ter poupado esta vinda aqui sabendo o que há.
E determinou que saísse, e que fosse ao inferno pelo que dissera.
Nisto, vieram a cena muitos taberneiros, acusados de terem matado muita sede a traição, vendendo água por vinho. Estes vinham confiados no fato de que haviam dado sempre a um hospital vinho puro para as missas; porém isto de nada lhes valeu, como não adiantou aos alfaiates dizerem que haviam vestido meninos jesuses; e assim foram todos despachados como era de esperar-se.
Chegaram três ou quatro genoveses ricos, muito graves, pedindo lugar para sentar, e disse um diabo:
— Ainda pensam ganhar às nossas custas? Pois é isto que acaba com eles. Desta vez se deram mal, pois não há lugar para. sentarem uma vez que quebraram o banco de seu crédito.
E, voltando-se para Deus, disse um diabo:
— Todos os demais homens, Senhor, dão conta, cada um deles, do que é seu; estes, além do mais dão conta do que é dos outros.
A sentença contra eles foi pronunciada. Não ouvi bem, mas eles desapareceram.
Chegou um cavalheiro tão direito, que parecia querer competir com a justiça que o aguardava; fez muitas referências a todos, e com a mão fez um cumprimento usado por aqueles que bebem água nos charcos. Tinha um colarinho tão grande, que não se podia ver se tinha cabeça. Perguntou-lhe um porteiro, da parte de Deus, se era homem; e ele respondeu com grandes cortesias que sim e, por muitos sinais explicou que se chamava dom Fulano, a fé de cavalheiro. Rindo-se disse um diabo:
— Por tolo, vá o mancebo para o inferno. Perguntaram-lhe o que pretendia, e ele responde: — Ser salvo.
E foi enviado aos diabos para que o moessem, e ele somente reparou que lhe iam estragar o colarinho. Atrás dele entrou um homem dando ordens, dizendo:
— Não tenho problemas; de quantos santos existam no céu, uns pelos outros, já lhes sacudi o pó a todos.
Todos esperavam ver um Diocleciano ou um Nero, pelo dito de sacudir o pó, mas no fim das contas era um sacristão que espanava os altares; e teria se salvado com isto, não fosse um diabo dizer que ele bebia o óleo das lâmpadas e botava a culpa em umas corujas que havia matado; que cobiçava os ornamentos para vesti-los; que herdava era vida as imagens, e que desfazia as pregas dos paramentos.
Não sei que espécie de quitação lhe deram, mas lhe indicaram o caminho à esquerda.
Dando lugar a umas damas açucaradas, que começaram a fazer melindres das más figuras dos diabos, um anjo disse a Nossa Senhora que elas haviam sido devotas dela, e que as amparasse. O diabo replicou, então, que elas, igualmente, tinham sido inimigas de sua castidade.
— Sim, por certo — disse uma que havia sido adúltera.
E o demônio acusou-a de haver tido um marido em oito corpos; que havia casado uma vez para cada mil em que se juntou. Condenou-se apenas esta, e ela se foi dizendo:
— Antes tivesse sabido que ia ser condenada; só assim não teria assistido a missas nos dias santos.
Neste momento, em que tudo estava acabado, foram descobertos Judas, Mafoma e Martinho Luthero. E tendo um diabo perguntado qual dos três era Judas, Luthero e Mafoma, os três disseram quem eram. E confundiram tanto a Judas, que este disse em voz alta:
— Senhor, eu sou Judas, e vós bem sabeis que sou muito melhor do que estes dois, pois se eu os vendi, remediei o mundo; e eles, vendendo-se a si mesmos e a vós, destruíram tudo.
Foram mandados sair da frente, e um anjo que tinha a cópia descobriu que faltava julgar os policiais e os esbirros. Chamaram-nos (e era de ver-se como chegaram ao seu posto muito tristes) e lhes disseram:
— Aqui os damos por condenados. Não é mister fazer mais nada.
Nem bem haviam dito isto e entrou, carregado de astrolábios e de globos, um astrólogo, dando ordens e dizendo que se haviam enganado, que não deveria ser aquele o dia do Juízo, porque Saturno ainda não havia concluído seus movimentos, nem ele tampouco os seus. Voltou-se um diabo e, vendo-o tão carregado de madeira e de papel, lhe disse:
— Já trouxeste a lenha contigo, como se soubesses que de quantos céus tratastes em vida, pela falta de um só, na morte, irás para o inferno.
— A isso eu não vou — disse ele.
— Pois te levarão.
Com isto acabou a residência e o tribunal.
Fugiram as sombras para o seu lugar, ficou o ar com novo aroma, floresceu a terra, viu-se o céu, e Cristo subiu consigo para descansar em si os ditosos, por sua paixão. Eu fiquei no vale, passeando por ele, e ouvi muitos ruídos e queixas na terra.
Aproximei-me para ver o que passava, c vi em uma gruta funda (a garganta do Averno) muitos penarem, e entre eles um letrado — revolvendo, mais caldos do que leis — e um escrivão — comendo somente as letras que não tinha querido ler nesta vida. Todo o mobiliário do inferno, as roupas e os adornos dos condenados estavam ali presos — não com pregos ou alfinetes, mas com policiais. E um avarento, contando mais lutos do que moedas; e um médico padecendo em um urinol; e um boticário em uma seringa.
Ver isso deu-me tal vontade de rir, que as gargalhadas me despertaram; e já foi muito de que deste sonho tão triste eu saísse mais alegre do que espantado.
Os sonhos são estes, senhor, que se dorme Vossência sobre eles, verá que por ver as coisas como eu as vejo, há de aguardá-las da maneira como eu as conto.

Francisco de Quevedo, Sonhos e discursos de verdades descobridoras de abusos, vícios e enganos dos ofícios e estados do mundo (1627)



O SONHO E O FADO


Creso expulsou Solon de Sardes porque o famoso sábio desprezava os bens terrenos e somente se preocupava com o fim derradeiro das coisas. Creso se acreditava o mais feliz dos homens. Os deuses decidiram o seu castigo.
Sonhou o rei que seu bravo filho Atis morria de um ferimento produzido por ponta de ferro. Mandou guardar as lanças, dardos e espadas nos quartos destinados às mulheres e decidiu o casamento de seu filho. Nisto estavam quando chegou um homem com as mãos tintas de sangue: Adastro, frígio de sangue real, filho de Midas. Pediu asilo e purificação, pois assassinara involuntariamente um irmão e havia sido expulso do convívio dos seus. Creso concedeu-lhe ambas as graças.
Apareceu, então, em Mísia, um terrível javali que destroçava tudo. Aterrorizados, os mísios pediram a Creso que enviasse o valente Atis e outros jovens, porém o rei explicou que seu filho era recém-casado e devia atender seus assuntos privados. Atis soube disto e pediu ao rei que não o humilhasse. Creso contou-lhe o sonho. "Então, disse Atis, nada devemos temer, pois os dentes do javali não são de ferro". O pai concordou e pediu a Adastro que acompanhasse seu filho, ao que o frígio assentiu, não obstante seu luto, pois se sentia em dívida com Creso. Durante a caçada Adastro, buscando atingir o animal com sua lança, matou Atis. Creso aceitou o destino que o fado lhe tinha adiantado em sonhos e perdoou a Adastro. Este, porém, degolou-se sobre a sepultura do infortunado príncipe. Assim o conta Heródoto, no primeiro dos Nove livros da história.



A ALMA, O SONHO, A REALIDADE


Supõe-se que, de fato, a alma de uma pessoa adormecida se afasta de seu corpo e visita lugares, vê as pessoas e verifica os atos que ela está sonhando. Quando um índio do Brasil ou das Guianas sai de um sono profundo, está firmemente convencido de que sua alma esteve na realidade caçando, derrubando árvores ou qualquer outra coisa que tenha sonhado, enquanto seu corpo esteve estendido imóvel na rede. Um povoado bororó inteiro aterrorizou-se e esteve a ponto de emigrar porque um dos índios sonhou que os inimigos se aproximavam sigilosamente. Um macusi de saúde precária que sonhou que seu patrão o havia feito subir de canoa por difíceis corredeiras, ao amanhecer exprobou-o amargamente por sua falta de consideração com um pobre inválido. Os índios do Grande Chaco fazem relatos incríveis de coisas que viram e ouviram, e os forasteiros os consideram grandes embusteiros; os índios, porém, estão firmemente convencidos da verdade de seus relatos, pois estas maravilhosas aventuras são simplesmente o que eles sonham e não sabem distinguir do que acontece quando estão acordados.
Quando um dayako sonha que caiu n'água, pede ao feiticeiro que pesque o seu espírito com uma rede, coloque-o em um recipiente e o devolva. Os santals falam do homem que adormeceu e sonhou que tinha tanta sede, que sua alma, em forma de lagarto, deixou o corpo e meteu-se em uma vasilha para beber; o dono da vasilha, porém, tapou-a e o homem, impedido de recuperar sua alma, morreu. Faziam-se os preparativos para o enterro quando alguém destapou a vasilha e o lagarto escapou, reintegrou-se ao cadáver, e o morto ressuscitou. Disse que havia caído em um poço em busca de água e que tivera dificuldades para voltar; assim todos o entenderam.

James George Frazer, La rama dorada (1890)


NÃO EXISTE OFÍCIO DESPREZÍVEL


Um santo varão pediu a Deus que lhe revelasse quem ia ser seu companheiro no Paraíso. A resposta veio em sonhos: "O açougueiro do teu bairro". O homem afligiu-se sobremaneira por tão vulgar e indouta personagem. Jejuou e tornou a pedir, em oração. O sonho repetiu-se: "O açougueiro do teu bairro". Chorou o piedoso, rezou e pediu. Novamente visitou-o o sonho: "Na verdade, se não fosses tão piedoso, serias castigado. Que achas de desprezível em um homem cuja conduta desconheces?" Foi ver o açougueiro e perguntou-lhe sobre sua vida. O outro lhe disse que repartia seus ganhos entre os pobres e as necessidades de sua casa, e admitiu que isto muitos faziam; recordou, então, que uma vez resgatara uma prisioneira da soldadesca em troca de uma grande soma de dinheiro. Educou-a e achou que ela era apropriada para que a desse em matrimônio ao seu filho único, quando chegou um jovem forasteiro que se notava estar angustiado e que disse que tinha sonhado que ali se encontrava sua prometida desde criança, aquela que havia sido seqüestrada por uns soldados. Sem vacilar, o açougueiro entregou-lhe a jovem. "Verdadeiramente és um homem de Deus", disse o santo curioso e sonhador. Do fundo de sua alma desejou avistar-se uma vez com Deus para agradecer-lhe em sonho o bom companheiro que lhe havia sido destinado para a eternidade. Deus foi sóbrio: "Não há ofício desprezível, meu amigo".


Rabí Nisim,
Hibbur Yafé Mehayeschua 20


INFERNO V


Altas horas da noite despertei de repente na borda de um abismo anormal. Ao lado da minha cama, uma falha geológica cortada em pedra sombria despencou em semicírculos, borrada por um tênue vapor nauseabundo e uma revoada de aves escuras. De pé sobre sua cornija de escórias, quase suspenso na vertigem, uma personagem irrisória e coroada de louro estendeu-me a mão convidando-me a descer.
Recusei, amavelmente, invadido por um terror noturno, dizendo que todas as expedições dentro do homem terminam sempre em vão e em superficial palavreado.
Preferi acender a luz e me deixar cair outra vez na profunda monotonia dos tercetos, ali onde uma voz que fala e chora ao mesmo tempo, me repete que não há dor maior do que a de lembrar-se na miséria dos tempos que foram felizes.

Juan José Arreola, Confabulario total (1962)




ENTRESONHO


Presencio a noite violentada
O ar está crivado
como uma renda,
pelos balaços
dos homens
encolhidos
nas trincheiras
como os caracóis em sua concha
Parece-me
que um arquejante
enxame de canteiros
golpeia o calçamento
de pedras de lava
das minhas ruas
e eu o ouço
sem vê-lo
no entresonho.

Giuseppe Ungaretti,
O porto sepultado (1919)




PIRANDELIANA


Uma dama vê em sonhos seu amante. Primeiramente é um pesadelo povoado de ciúmes. Depois, uma noite em que compreende que o ama. Por último, o amante se dispõe a presentear-lhe um colar de brilhantes; porém uma mão desconhecida (que é a mão do amante anterior da mulher, que enriqueceu com suas plantações) subtrai o colar: o amante, num arrebatamento de ciúmes, estrangula a dama. Esta desperta, e uma camareira lhe alcança um estojo com um colar de diamantes: é o mesmo do sonho. Neste momento chega o amante, manifesta a ela sua preocupação por não ter podido comprar-lhe o colar, pois já o tinham vendido, e lhe pergunta que outra coisa poderia lhe dar.

Argumento de Sogno ma forse no (1920) de Luigi Pirandello


SONHO PARISIENSE

I

Esta manhã ainda me maravilha a imagem viva e distante da terrível paisagem jamais contemplada por olhos mortais.
O sonho está repleto de milagres! Por singular capricho, havia desterrado do espetáculo o vegetal irregular, e, pintor orgulhoso do meu gênio, saboreava na tela a embriagadora monotonia do metal, o mármore e a água.
Cheio de fontes e cascatas que caíam sobre o ouro fosco ou polido, havia um palácio infinito, babel de arcadas e escadarias. Cortinas de cristal, as pesadas cataratas se suspendiam deslumbrantes das muralhas metálicas.
Colunatas em lugar de árvores rodeavam os tanques adormecidos, onde gigantescas náiades se viam como mulheres.
Entre molhes rosados e verdes, por milhões de léguas, as águas azuis se expandiam até os confins do universo. Havia pedras insólitas, ondas mágicas; havia espelhos deslumbrados pelo o que refletiam.
Do firmamento, rios taciturnos e descuidados vestiam o tesouro de suas urnas em abismos de diamantes.
Arquiteto dos meus sortilégios, eu fazia passar como queria, sob um túnel de pedrarias, um oceano domes-ticado. E tudo, até a cor negra parecia polida, clara e irisada; e a água engastava sua glória no raio de cristal.
Nenhum astro até os confins do céu, nenhum resto de sol que iluminasse estes prodígios de fogo próprio.
E sobre estas maravilhas móveis (detalhe atroz: tudo para os olhos, nada para os ouvidos!) flutuava um silêncio de eternidade.

Charles Baudelaire, As flores do mal (1857)



O SONHO DE COLERIDGE


O fragmento lírico Kubla Khan (cinqüenta e tantos versos rimados e irregulares, de prosódia requintada) foi sonhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge em um dia de verão de 1797. Coleridge escreve que se havia retirado para uma granja nos confins de Exmoor, quando uma indisposição obrigou-o a tomar um hipnótico. O sono venceu-o momentos depois da leitura de Purchas, que narra a edificação de um palácio por Kubla Khan, o imperador que deve sua fama ocidental a Marco Polo. No sonho de Coleridge, o texto lido casualmente começou a germinar e a multiplicar-se; o homem que dormia intuiu uma série de imagens visuais, e, simplesmente, de palavras que as manifestavam. Ao cabo de algumas horas despertou com a certeza de haver composto, ou recebido, um poema de cerca de trezentos versos. Lembrava--se deles com singular clareza e conseguiu terminar um fragmento que figura em suas obras. Uma visita inesperada interrompeu-o e lhe foi impossível, depois disso, lembrar-se do resto.
"Descobri, com não pequena surpresa e mortificação — conta Coleridge — que embora retivesse de um modo vago a forma geral da visão, tudo o mais, salvo umas oito ou dez linhas soltas, havia desaparecido assim como as imagens na superfície de um rio no qual se joga uma pedra, porém — ai de mim! — sem a sua ulterior restauração". Swinburne sentiu que o que fora resgatado representava o mais alto exemplo da música do inglês e que o homem capaz de analisá-lo poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris. As traduções ou resumos de poemas cuja virtude fundamental é a música, são vãs e podem ser prejudiciais; que nos baste reter, por agora, que a Coleridge foi dada em um sonho uma página de indiscutível esplendor. Ouviu uma música; viu erguer-se o palácio e ouviu as palavras do poema.
O caso, ainda que extraordinário, não é o único. No estudo psicológico The World of Dreams, Havelock Ellis equiparou-o com o do violinista e compositor Giuseppe Tartini, que sonhou que o Diabo (seu escravo) executava no violino uma sonata prodigiosa; o sonhador, ao despertar, deduziu de sua lembrança imperfeita o Trillo dei Diavolo. Outro exemplo clássico de cerebração inconsciente é o de Robert Louis Stevenson, a quem um sonho (segundo ele mesmo conta em Chapter on Dreams) lhe deu o argumento de Olalla e outro, em 1884, o de Dr. Jekill and Mr. Hyde. Tartini quis imitar na vigília a música de um sonho; Stevenson recebeu do sonho argumentos, quer dizer, formas gerais; mais afim à inspiração verbal de Coleridge é a que Beda o Venerável atribui a Caedmon {Historia ecclessiastica gentis Anglocum, IV, 24).
À primeira vista o sonho de Coleridge corre o risco de parecer menos assombroso que o de seu precursor. Kubla Khan é uma composição admirável e as nove linhas do hino sonhado por Coleridge quase não apresentam outra virtude além de sua origem onírica, porém, Coleridge já era um poeta e a Caedmon foi revelada uma vocação. Não obstante, há um fato anterior que magnífica até os limites do insondável a maravilha do sonho em que se engendrou Kubla Khan. Se este fato è verdadeiro, a história do sonho de Coleridge é anterior em muitos séculos a Coleridge e ainda não chegou ao seu fim.
O poeta sonhou em 1797 (outros acham que foi em 1798) e publicou o seu relato do sonho em 1806, a maneira de glosa ou justificativa do poema inconcluso. Vinte anos depois apareceu em Paris, fragmentariamente, a primeira versão ocidental de uma destas histórias universais em que a literatura persa é tão rica, o Compêndio de histórias de Rashid ed-Din, que data do século XIV. Em uma página se lê: "A leste de Shang-tu, Kubla Khan erigiu um palácio, segundo um plano que havia visto em um sonho e que guardava na memória". Quem escreveu isto foi o vizir de Gashan Mahmud, que descendia de Kubla.
Um imperador mongol, no século XIII, sonha um palácio e o edifica conforme a visão; no século XVIII, um poeta inglês que não podia saber que esta construção se originou de um sonho, sonha um poema sobre o palácio. Confrontadas com essa simetria, que trabalha com almas de homens e abarca continentes, parecem-me significar nada ou muito para as levitações, as ressurreições e o aparecimento dos livros religiosos.
Que explicação preferimos? Aqueles que de antemão rechaçam o sobrenatural (eu trato sempre de pertencer a esse grupo) julgarão que a história dos dois sonhos é uma coincidência, um desenho traçado pelo acaso, como as formas de leões e de cavalos que as vezes configuram as nuvens. Outros argüirão que o poeta soube de algum modo que o imperador havia sonhado o palácio e disse ter sonhado o poema para criar uma esplêndida ficção que em si aplacasse ou justificasse o truncado e o rapsódico dos versos 21. Esta conjetura é verossímel, porém nos obriga a postular, arbitrariamente, um texto não identificado por sinólogos no qual Coleridge tivesse podido ler, antes de 1816, o sonho de Kubla22. Mais encantadoras são as hipóteses que transcendem o racional. Por exemplo, é válido supor que a alma do imperador, uma vez destruído o palácio, penetrou na alma de Coleridge para que este o reconstruísse em palavras, mais duradouras que os mármores e metais.
O primeiro sonho acrescentou um palácio à realidade; o segundo que teve lugar cinco séculos depois, acrescentou um poema (ou um princípio de poema) sugerido pelo palácio. A semelhança dos sonhos deixa entrever um plano, e o período enorme revela um executor sobre-humano. Indagar o propósito desse imortal ou desse longevo seria, talvez, mais atrevido do que inútil, porém é lícito supor que isso não foi alcançado. Em 1691, o Pe. Gerbillon, da Companhia de Jesus, comprovou que do palácio de Kubla Khan somente restavam ruínas; do poema, consta-nos que somente se resgataram uns cinqüenta versos. Tais fatos permitem conjeturar que a série de sonhos e de trabalhos não chegou ao seu fim. Ao primeiro sonhador lhe foi mostrada de noite a visão do palácio, e ele o construiu; ao segundo, que desconhecia o sonho do anterior, o poema sobre o palácio. Se o esquema não falhar, alguém, em uma noite das que nos separam os séculos, sonhará o mesmo sonho e não suspeitará que outros já o sonharam, e dará a ele a forma de um mármore ou de uma música. Talvez a série de sonhos não tenha fim; talvez a chave esteja no último deles.
Já escrito o texto anterior, entrevejo, ou creio entrever, uma outra explicação. Talvez um arquétipo ainda não revelado aos homens, um objeto eterno (para usar a terminologia de Whitehead) esteja ingressando paulatinamente no mundo; sua primeira manifestação foi o palácio; a segunda, o poema. Quem os tivesse comparado teria visto que eram essencialmente iguais.

Jorge Luis Borges



OS SONHOS DE ASTIAGES


Após quarenta anos de reinado, morreu o rei medo Ciaxares, e sucedeu-o no trono seu filho Astiages. Tinha Astiages uma filha chamada Mandane; sonhou que ela vertia tanta urina que esta cobria toda a Ecbátana e toda a Ásia. Tratou de não deixá-la casar-se com nenhum medo, e deu-a em matrimônio ao persa Cambises, homem de boa família, caráter pacífico e condições medianas. Voltou Astiages a sonhar, e viu que do centro do corpo de sua filha saía uma parreira que cobria toda a Ásia com sua sombra. O significado era claro: o filho dela o substituiria. Mandou sua filha retornar, e quando esta deu a luz, entregou a criança ao seu parente Hárpago para que ele o matasse. Hárpago sentiu medo e piedade, e entregou o menino ao vaqueiro Mitradates, ordenando-lhe que o matasse. Mitradates tinha Perra por esposa e esta acabara de parir um filho morto. O menino que lhe haviam entregado estava luxuosamente vestido; decidiram fazer a troca, pois também sabiam que era filho de Mandane e assim preservavam seu futuro. O menino cresceu e seus companheiros pastores proclamaram-no rei de seus jogos, e o menino rei se revelou inflexível. Astiages inteirou-se e obrigou a Mitradates confessar sua origem. Soube da desobediência de Hárpago, mas fingiu perdoa-lo e convidou-o a um banquete, e pediu que lhe entregasse o filho para ser companheiro de seu neto. Durante o banquete fez servir a Hárpago, assados, pedaços de seu filho. Quando soube disso, Hárpago dominou-se. Astiages consultou novamente seus adivinhos, e eles responderam:
Se vive, há de reinar; porém como já reinou entre os pastores, não há perigo de que alcance uma nova coroa. Satisfeito, Astiages enviou -o suposto filho de Mitradates aos seus verdadeiros pais, que ficaram felizes em vê-lo com vida. O menino cresceu, fez-se rapaz e jovem guerreiro, e, com a ajuda de Hárpago, destronou Astiages, tratando-o com benevolência. Assim fundou Ciro, o antigo pastor, o império persa, e assim o conta Heródoto no quinto dos Nove Livros da História.


ROMÂNTICA


Uma vida atingida é um sonho de adolescente realizado na idade madura.

Alfred de Vigny

O PÃO DISPUTADO

I. Versão árabe

Um muçulmano, um cristão e um judeu vão de viagem. Esgotaram suas provisões e ainda lhes resta dois dias de caminhada no deserto. Nessa noite encontraram um pão. Que fazer? Bastaria para um, porém é pouco para três. Decidem que o coma aquele que tenha o mais belo sonho. Ao amanhecer, disse o cristão: Sonhei que um demônio me levava ao inferno, que pude contemplar em todo o seu horror. Disse o muçulmano: Sonhei que o anjo Gabriel me levava ao paraíso, e pude apreciar todo o seu esplendor. Disse o judeu: Sonhei que o demônio levava o cristão ao inferno e que o anjo Gabriel levava o muçulmano ao paraíso, e eu comi o pão.


Nuzhetol Udeba

II. Versão judaica

Jesus, Pedro e Judas viajam juntos. Chegam a uma pousada. Há um único pato... Pedro: Sonhei que estava sentado junto ao filho de Deus. Jesus: Sonhei que Pedro estava sentado ao meu lado. Judas: Sonhei que estáveis sentados juntos e que eu comia o pato. Os três buscaram o pato. Não havia pato.

História Jeschual Nazareni



QUE PASSE


Ah! Muito bem! Façam entrar o infinito!

Louis Aragon



ENTRE SONHOS


A soberana virtude deste clima insular reside no que o médico de Molière chamara de sua "propriedade dormitiva". Somente dormindo pode uma pessoa repor-se de tanta ociosidade. O famoso preceito da escola salermitana (sex horas dormire... 23), ainda que expressado em excelente latim de cozinha, nos saberia a um gracejo de mau gosto. Seis horas de decúbito! Admitamos o mínimo de oito ou nove a bem da pedagogia, e claro que não se deve esquecer a sesta de cada tarde. Tampouco se deve temer as conseqüências; as reservas de sono são aqui tão inesgotáveis como as ondas do Paraná: depois de quatro movimentos de remo, à guisa de hipnótico, muito poderás seguir adiante até o toque de recolher. No que me diz respeito, sei dizer que com este regime dominei as piores insônias — as que são trazidas pelo vento norte ao amanhecer — sem recorrer ao remédio extremo e sempre perigoso das leituras proibidas, quero dizer, tediosas. Este ambiente vegetativo é uma bênção para os nervos; parece-me a cada momento que me estou transformando em salgueiro...
À maneira de ex-voto ao deus Morfeu, consagrarei, pois, esta conversa dominical ao tema sedativo que o título anuncia. E desta vez não se dirá que estou sem assunto. Estudada devidamente a matéria, ou seja, entre o dormir e o velar, não resultaria tão frívolo como parece. O sono não é o parêntese da vida, mas sim uma de suas faces mais curiosas, como que nadando no mistério e confinada no sobrenatural. Por isso os poetas entendem-no melhor do que os fisiologistas. Enquanto que os segundos vivem discutindo se o estado cerebral, durante o sono, corresponde à anemia ou à congestão, sem que o problema tenha resposta definitiva, os primeiros, desde Homero até Tennyson, entrevem a verdade através do prisma irisado da ilusão. O maior de todos deixou tombar esta palavra profunda, que chega até onde não penetram, sondas e psicômetros:
"Somos feitos da matéria de sonhos..." E um herói de Musset, comentando à sua maneira o divino Shakespeare, canta deliciosamente:

La vie est un sommeil, Vamour en est le rêve...

Porém, que delicado é o nosso instrumental psicológico! Que moderna e matizada língua é esta que, sob o simples rótulo de sonho, segue enfiando nos alforges de Sancho toda a família de sommeil, somme, songe, rêve, reverie,24 etc, reduzindo a gama inteira a esta única nota de trombone!
Não sou um sonhador extremado — dormindo, bem entendido. Costumo passar noites consecutivas sem provar este devaneio da "cerebração inconsciente", que para outros é sinônimo de dormir. E como me consta que nem em atos nem em gestos sou sonâmbulo, deveria admitir, segundo a teoria corrente, que na maior parte das vezes se não me lembro de meus sonhos é porque não os tenho. Veremos em seguida como também nisto é mister fazer-se distinções, sendo a realidade um pouco menos simples do que a teoria. Seja como for, refleti muito sobre esta singular dissociação orgânica, que representa uma espécie de divórcio periódico entre a alma e o corpo. É possível que em razão mesmo de sua pequena freqüência, meus sonhos conservem maior solidez que os de outros. De minha longínqua infância ficaram-me quatro ou cinco, quase tão lúcidos como o de ontem à noite, que precisamente deu motivo a estas linhas e que logo resumirei. Outros, tenho-os anotados em meus cadernos: alguns de caráter tão estranho ou pavoroso que, mesmo hoje, basta-me reler a anotação para ressuscitar a sensação primitiva em seu paroxismo de angústia e terror.
Além disso, observei em meus próximos, e as vezes muito de perto, os acidentes exteriores do sonho, especialmente do pesadelo. Certamente minha vida tão agitada proporcionou-me material observável. Na promiscuidade das viagens, desde os tambos 25 da Bolívia até os camarotes de navios e os sleeping-cars presenciei, mais do que era necessário, os dramas e comédias da humanidade adormecida. Porém nenhuma experiência ulterior foi tão completa e contínua como a primeira, à qual me vou referir por tratar-se de um indivíduo desaparecido. Esta foi a base da minha pequena teoria pessoal acerca do sonho; a ela referi invencivelmente minhas observações posteriores, e até as afirmações dos livros, para comprovar sua exatidão. Muitos anos passaram e pode ser que eu tenha hoje mais aguçado o meu instrumental analítico. Contudo, subsistem para mim os resultados daquela grande iniciação juvenil, e acho que a pedra de toque não envelheceu.
Vivia eu em Salta, há vinte e três anos passados, na casa de um comerciante nascido em Tucumán. Jovens e íntimos amigos, dormíamos os dois no mesmo quarto para poder conversar de cama a cama, embora sobrassem quartos desocupados em nosso casarão colonial capaz de abrigar comodamente a família de Noé. Recolhiamo-nos quase sempre juntos, e quando, por excepcional casualidade, o programa noturno não era comum, o primeiro que se liberava costumava ir esperar o outro no "Bilhar de Lavin", na vizinhança. Como eu tivesse o péssimo costume de ler deitado, passava sempre uma ou duas horas velando o sono de meu amigo. Este, que acordado não quebrava um prato, dormindo se transformava em um mauvais coucheur. Quando mais tranqüilo, roncava como uma trombeta alemã, até acordar assustado com o próprio trombetear. Não era este porém o seu pior excesso. Meu companheiro, sonhava em voz alta, padecendo de cruéis pesadelos que me deixavam com ele... com Jesus na boca, se é que assim se pode definir o que, pela impaciência, me saía da boca. Quando senti os inconvenientes da coabitação, era muito tarde para remediar. Primeiro deteve-me o carinho; em seguida a curiosidade, ou melhor dizendo, um interesse crescente por este drama cerebral que, aos meus olhos — ou se preferem, aos meus ouvidos — e com a cortina baixada, se representava e em cujo desempenho passei de testemunha muda a colaborador entendido.
Não insistirei nos detalhes que concordam com a teoria clássica, e que minha própria experiência de vários meses confirmou, limitando-me a assinalar os traços que a contradizem abertamente. O que mais se costuma sentir falta nos tratados de medicina, e por conseguinte nos de psiquiatria — a mais conjetural e arriscada destas ciências ainda em cueiros — é precisamente o espírito científico, que não se serve de atitudes de magister dixit nem de fórmulas convencionais. Advertimo-nos, por exemplo, que as alucinações do paladar, e sobretudo as do olfato, são muito mais raras do que as dos outros sentidos; a observação carece de alcance, pois supõe-se que em estado normal as sensações de paladar e olfato não são representativos, pois nos é impossível imaginar o perfume do jasmim com seu caráter próprio, em relação ao da violeta. Quanto ao paladar, cujas sensações estão indissoluvelmente unidas às do tato, sua vaga e suposta representação no sonho terá que ser ilusória ou devida à referida associação.
O volumoso tratado de Brierre de Boismont está cheio de casos pueris, tão despidos de crítica como os de Lombroso; assim, como o caso clássico da famosa sonata de Tartini que, segundo dizia o compositor, lhe foi "ditada pelo diabo". A interpretação psiquiátrica, que atribui aquela obra a um fenômeno de cerebração inconsciente, revela no sábio um potencial de credulidade igual ao do músico, se é que não maior ainda. No que me diz respeito, ainda prefiro a lenda em bloco, com o diabo e respectivos chifres.
Mais graves, todavia, parecem-me as histórias relativas ao sonambulismo, e que os autores piedosamente transmitem uns aos outros, ainda que se choquem com seus próprios princípios teóricos. Tal é a célebre história do monge, trazida por Foderé e reproduzida por todos seus sucessores. Faz referência a um prior da grande Cartuxa, que certa noite em que ficara escrevendo em sua cela, viu entrar um jovem religioso, rígido, com os olhos fixos e as feições contraídas. O sonâmbulo dirigiu-se à cama do prior, felizmente vazia, e mergulhou nela três vezes uma grande faca que trazia... No dia seguinte o prior interrogou o frade, e este lhe descreveu a cena ponto por ponto, acrescentando que havia sido impelido ao crime imaginário por um sonho em que vira sua mãe assassinada pelo prior.
Sem discutir-se o caso, que pode ser real, não parece ser duvidoso que, afora outros detalhes evidentemente apócrifos, toda a confissão do paciente haja sido forjada. O homem que continua dormindo depois de um acesso de sonambulismo não conserva, ao despertar, lembrança alguma de seus atos, e muito menos do sonho que o teria impulsionado: a amnésia é absoluta 26. O mesmo não acontece nos casos de pesadelo que se interrompem bruscamente por razões externas; e esta diferença, que creio ser fundamental, se verá confirmada por meu caso do homem de Tucumán (ou de Salta).
Não parece que o pesadelo deva distinguir-se psicologicamente do sonho ordinário, nem tampouco do sonambulismo parcial; se bem que é fartamente sabido que entre este e aquele, as diferenças patológicas permanecem características. O sonambulismo espontâneo é uma entidade mórbida, uma neurose; o cauchemar, por sua vez, pode ser um acidente isolado, o episódio de uma in-digestão, ou o sintoma de uma alteração distante dos centros nervosos. Vistos de fora, os dois estados não diferem unicamente pelo contraste que oferece a impotência física do indivíduo em um, com a motilidade que o caracteriza no outro e que lhe deu seu nome; e além disso, há a forma como terminam. Habitualmente basta a própria angústia do pesadelo para trazer o brusco despertar; o acesso sonambúlico, ao contrário, segue sua evolução tranqüila (salvo acidente exterior) até refundir-se nó sono ordinário. De volta à realidade ambos os indivíduos, o sonhador conserva muito viva a lembrança de seu sonho, enquanto que o sonâmbulo esqueceu-o completamente. E aqui vêm as observações pessoais que anunciei.
Meu amigo de Salta não era propriamente sonâmbulo, ainda que em duas ou três ocasiões eu o vi levantar--se dormindo e começar a vestir-se; porém seus sonhos angustiosos eram quase cotidianos. Padecia de uma aflição crônica do estômago e, conseqüentemente, quando lhe ocorria jantar, o pesadelo era incrível. Chegava com o primeiro sono, revestindo-se quase sempre da mesma forma exterior, como que correspondendo a um drama interno pouco variável, conforme me contou umas vinte vezes. Omitindo detalhes, era sempre uma altercação com homens emponchados, peões ou artesãos (meu amigo possuía um engenho de açúcar) que o insultavam; o dormido se indignava, proferindo ameaças que me anunciavam a inevitável catástrofe; pouco a pouco, um breve queixume, acompanhado de gemidos prolongados... havia recebido uma punhalada no epigástrio e se sentia morrer...
Meu pobre companheiro me relatava a cena com uma lucidez e um colorido comovedores. Como já disse, esta não variava a não ser por certos detalhes secundários. Em pouco tempo cheguei a saber de cor a história, como sabia a de Barba Azul. O que a princípio me surpreendia era a fantástica rapidez das peripécias que, contadas, parecia durarem horas, enquanto que em realidade se sucediam e se ajuntavam em poucos segundos. Já familiarizado com o incidente, e quase sempre acordado nesse momento, conseguia muitas vezes prevenir o ataque mudando a posição do sonhador. Outras vezes eu intervinha na cena fingindo prestar ajuda ao agredido, pondo-me ao seu lado, mostrando-lhe seus inimigos em fuga ou prostrados no chão diante da nossa arremetida heróica. Esta sugestão costumava ser eficaz e como, além de benéfica, era para mim divertida, continuei a usá-la prodigamente, buscando novos efeitos.
Quando o paciente acordava durante a ação de minha intervenção, referia-se a mim como autor de façanhas tais, que eu ficava pasmo: meus quatro gritos reais não passavam de um simples tampão que o sonho convertera em fantástica epopéia. Não obstante, se ocorria que, dominada a crise e facilitada a digestão, meu amigo ingressasse sem acordar no sono normal, na manhã seguinte não conservava a mais remota lembrança de seu pesadelo frustrado. Esta dupla observação, que repeti muitas vezes e que em outras circunstâncias confirmei, me permite estabelecer, contrariamente ao que li em várias oportunidades, o seguinte:
1.°, — que a sugestão pode ser tão eficaz no sonho normal (e o pesadelo não é, psicologicamente, outra coisa) como no sonambúlico; e 2.°, — que a amnésia subseqüente ao pesadelo interrompido obedece provavelmente à mesma causa que o esquecimento tão freqüente dos sonhos ordinários. Esta causa não é outro senão a superposição de novas imagens sobre as antigas. Já se disse que a hora mais propícia para os sonhos é a que precede o despertar da manhã, abrindo-se então, de par em par, a porta de marfim da fantasia. O que sem dúvida ocorre é que os últimos sonhos subsistem sozinhos, porque cobrem ou apagam os anteriores, da mesma forma que, numa tropa em marcha, somente as últimas filas deixam no caminho pegadas perceptíveis.
Com respeito à completa independência de alguns sonhos, de seu surgimento e desenvolvimento sem relação aparente com nossa vida diária, de sua fantástica incoerência, se justificaria formular-se algumas distinções. Não me parece que os observadores profissionais tenham considerado aquela independência como um fato psicológico de primeira ordem; é que para a elaboração de um sonho não constituem materiais ou elementos as coisas em si, mas sim sua representação atual, quando presentes — ou sua evocação, quando passadas. A imagem de Rosas, que uma leitura de ontem me chamou atenção, ou um passeio de barco pelo rio das Conchas, que realizava naquele momento, eram para mim acontecimentos intelectuais da mesma categoria e perfeitamente contemporâneas, e dessa forma se imprimiam na chapa sensível do cérebro. Se a atenção fixou suas imagens no mesmo plano — assim como o hipossulfito fixa na chapa fotográfica a imagem viva junto ao quadro da parede — poderá o sonho associá-las e combiná-las com aparente incoerência, porém na realidade com inegável lógica.
Vou contar em poucas palavras o sonho pueril e tragicamente absurdo que tive na noite passada e que, como disse, foi o ponto de partida desta conversa sonolenta.
Encontrava-me no Cabildo de Buenos Aires, na presença de Rosas que ordenava minha prisão e execução imediata. Eu era Maza 27, sem deixar de ser Groussac. Conseguia fugir e me achava subitamente no terraço de São Francisco, com minha família, que não era a real.
Depois de vinte cenas delirantes, traziam um cavalo ao terraço, no qual eu devia fugir para as províncias do Norte, atravessando o Rio da Prata, etc.
Pois bem; todas estas loucuras obedeciam, conforme me mostrara a reflexão, ao seguinte fio lógico: no mesmo dia, e quase na mesma hora, me lembrei da nossa fazenda de Santiago, vendo passar um gaúcho a cavalo; logo tive a idéia de ir de barco até a ilha que por aí possuem os franciscanos; finalmente, durante o trajeto pensei longamente em um episódio do ano de 40, mencionado em um estudo do marinheiro francês Page sobre Rosas, e que se desenvolve precisamente nas margens do rio Paraná.
We are such stuff — as dreams are made on... Repito as palavras profundas que Shakespeare põe na boca de Próspero na mais bela, na mais poética e mortalmente triste de suas comédias. Somos feito do mesmo tecido que os nossos sonhos, o que quer dizer que, reciprocamente, tecemos os nossos sonhos com a nossa substância. A inquietação instintiva do poeta, pois, parece que penetrava em maior profundidade que a sabedoria dos sábios, a qual há séculos gira em torno da verdade suspeitada sem contudo atrever-se a dar-lhe uma fórmula positiva. Não será porque, longe de atirar no poço do mistério a sonda experimental que somente faz turvar suas ondas, o poeta, ao inclinar-se sobre a brilhante superfície, consegue divisar o céu refletido que contém a grande explicação?
O sonho absorve uma porção considerável de nossa vida e, por outro lado, não parece duvidoso que o ato de sonhar seja uma forma intermitente de loucura, um delírio periódico mais ou menos caracterizado. Delirar, segundo a raiz etmológica, significaria propriamente "semear fora do sulco". Esta idéia não implica que o sulco seja mal traçado ou que a semente esteja estragada; assinala simplesmente o fato da impropriedade, da direção errada. Assim é o delírio, em sua forma mais comum, uma série de atos ou de palavras incoerentes desprovidas de conseqüência e apropriação, sem que isto impeça' que, separadamente, cada ação possa ser razoável e cada palavra correta. Seria por acaso outra a definição de sonho?
O que se denominou "instabilidade mental" não é um acidente, mas sim o nosso modo de ser fisiológico. Para quem estuda o corpo humano, a persistência da saúde parece um milagre de cada instante. E o que diremos do nosso aparelho cerebral, que a cada vinte e quatro horas penetra no cone de sombra de sua razão eclipsada? Não é prodigioso que cada manhã, com a boa e santa luz do sol, emerja também a inteligência intacta de suas trevas e fantasmas noturnos?
Sem dúvida, o lar, a família, os rostos conhecidos e amados, a sucessão regular dos atos habituais hão de ser outros tantos marcos e pontos de repère que mantêm em equilíbrio a razão precária. Eles nos guiam pelo labirinto de escolhos onde poderíamos soçobrar; à maneira da navegação antiga, que se movia prudentemente de cabo a cabo, buscando na costa sempre visível a sua tímida orientação. Finalmente veio para o navegante a bússola tutelar, que lhe permitiu sulcar tanto de noite quanto de dia o maré tenebrosum. Efêmeros exploradores do infinito: onde encontraremos nós a nossa bússola, se a tudo que antes dávamos este nome se declarou antiguidade, se precipita e se desfaz?

Paul Groussac, A viagem intelectual (1904)



O SORRISO DE ALÁ


Alá viu que Jesus percorria um vale e que adormecia e sonhava, e que no sonho via uma caveira. Disse Alá: Oh, Jesus! Pergunta-lhe, e ela te responderá. Jesus rezou em voz alta, e diante de seu hálito taumatúrgico a caveira começou a falar. Disse que sua alma estava de castigo, através de todos os tempos, porque havia pertencido a um povo que sofreu a ira de Alá; descreveu Azrayel, o anjo da morte, assim como as visões e os castigos que presenciou em cada uma das sete portas do inferno. Voltou Jesus a orar, e a caveira recuperou corpo e vida para servir ao Onipresente durante doze anos é depois morrer na paz de Deus. Com isto Jesus despertou e sorriu. Com isto sorriu Alá.

Tradicional do Oriente Médio




O SONHADO


Careço de realidade, temo não interessar a ninguém. Sou um farrapo, um dependente, um fantasma. Vivo entre temores e desejos; temores e desejos que me dão vida e que me matam. Já disse que sou um farrapo.
Jazo nas sombras, em grandes e incompreensíveis esquecimentos. De repente me obrigam a sair à luz, uma luz cega que quase me assegura a realidade. Porém logo se ocupam deles mesmos e me esquecem. Novamente perco-me na sombra, gesticulando com ademanes cada vez mais imprecisos, reduzido ao nada, à esterilidade.
A noite é o meu próprio império. Em vão trata de afastar-me o esposo, crucificado em seu pesadelo. As vezes satisfaço vagamente, com agitação e torpeza, o desejo da mulher que se defende sonhando, encolhida, e que finalmente se entrega, grande e macia como um travesseiro.
Vivo uma vida precária, dividida entre estes dois seres que se odeiam e se amam, que me fazem nascer como um filho deformado. Não obstante, sou belo e terrível. Destruo a tranqüilidade do casal, ou a inflamo com ò mais cálido amor. As vezes me coloco entre os dois, e o abraço íntimo me faz recobrar, maravilhoso. Ele percebe a minha presença e se esforça para aniquilar-me, para tomar o meu lugar. Mas finalmente, derrotado, exausto, vira as costas para a mulher, devorado pelo rancor. Permaneço junto a ela, palpitante, e a cinjo com meus braços ausentes que pouco a pouco se dissolvem no sonho.
Deveria ter começado dizendo que ainda não acabei de nascer, que sou gerado lentamente, com angústia, em um processo longo e submerso. Eles maltratam com seu amor, inconscientes, minha existência de nonato.
Trabalham longamente a minha vida entre seus pensamentos, mãos torpes que se empenham em modelar--me, fazendo-me e desfazendo-me, sempre insatisfeitos.
Porém um dia, quando por acaso derem com minha forma definitiva, escaparei e poderei sonhar-me eu mesmo, vibrante de realidade. Afastar-se-ão eles, um do outro. E eu abandonarei a mulher e perseguirei o homem. E montarei guarda a porta da alcova brandindo uma espada flamejante.

Juan José Arreola, Confabulario total (1962)



O SONHO DE CHUANG TZU


Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta, ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.

Herbert Allen Giles, Chuand Tzu (1889)




O SONHO DE SARMENTO


Em Nápoles, na noite em que desci do Vesúvio, a febre das emoções do dia dava-me pesadelos horríveis, em lugar do sono que meus agitados membros reclamavam. As labaredas do vulcão, a escuridão do abismo que não deve ser escuro, se misturavam que sei eu a que absurdos da imaginação aterrorizada, e ao acordar daqueles sonhos que queriam despedaçar-me, uma única idéia se mantinha tenaz, persistente como um fato real ... Minha mãe morreu!... Por sorte tenho-a aqui ao meu lado e ela me instrui em coisas de outros tempos, ignoradas por mim, esquecidas por todos. Aos setenta e seis anos de idade minha mãe atravessou a cordilheira dos Andes para despedir-se de seu filho antes de descer a sepultura! Somente isto bastaria para dar uma idéia da energia moral de seu caráter.

D. F. Sarmento, Recuerdos de Província (1851)



OS SONHOS DE LUCIANO


No século II, o sofista greco-siríaco Luciano de Samosata (d. 125-185) teve vários sonhos. Em um deles narrou seus dias de infância, transcorrida e recuperada em visões. Tentou ser escultor no atelier de um tio, porém em um sonho lhe apareceram duas mulheres, a Retórica e a Escultura, enaltecendo seus méritos respectivos. Luciano segue a Retórica, ganha riquezas e honrarias, exorta os jovens a seguir seu exemplo e a serem constantes frente às primeiras dificuldades da vida. Em outro sonho, chamado O Galo, Micilio sonha felizmente com riquezas e se lamenta de sua miserável vida de lavrador; desperta-o o canto do galo, que em sua vida anterior havia sido Pitágoras; o galo demonstra ao lavrador que a riqueza é fonte de desgraças e preocupações, enquanto que a pobreza proporciona uma vida mais serena e feliz. No terceiro sonho, Viagem aos Infernos ou O Tirano, narra a chegada dos mortos à Estígia: o filósofo Cinisco escarnece tanto que o Tirano se desespera, trata de fugir e recuperar seu passado poder e esplendor; intervém Micilio (agora sapateiro e não mais lavrador) que não teme o juízo final e o espera com alegre curiosidade. Cinisco e ele receberão a bem-aventurança, enquanto que o Tirano enfrentará o castigo.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son



COSTUMA VESTIR SOMBRAS


O sonho, autor de representações,
em seu teatro armado sobre o vento
de sombras soi vestir o vulto belo.

Luis de Góngora


O SONHO DO REI


— Agora está sonhando. Com quem sonha? Sabes?
— Ninguém sabe.
— Sonha contigo. E se deixasse de sonhar, o que seria de ti?
— Não sei.
— Desaparecerias. És uma figura de um sonho. Se este rei despertasse, te apagarias como uma vela.

Lewis Carrol, Alice na terra do espelho (1871)




DREAMTIGERS


Durante a infância exerci com fervor a adoração do tigre; não o tigre esbranquiçado dos camalotes do Rio Paraná e da confusão amazônica, mas sim o tigre raiado asiático, real, a quem somente podem enfrentar os guerreiros, encastelados no dorso de um elefante. Costumava eu demorar-me interminavelmente diante de uma das jaulas do Zoológico; e eu gostava das volumosas enciclopédias e dos livros de história natural por causa do esplendor dos seus tigres. (Ainda me recordo dessas figuras; eu, que não posso lembrar-me sem errar do rosto ou do sorriso de uma mulher). Passou a infância, e caducaram os tigres e sua paixão, porém eles ainda estão nos meus olhos. Nesta corda de rede submersa ou caótica seguem prevalecendo, e assim, se durmo, me distrai um sonho qualquer e em seguida sei que se trata de um sonho. Costumo pensar, então: este é um sonho, uma pura diversão da minha vontade, e já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.
Oh, incompetência! Meus sonhos não sabem nunca engendrar a fera desejada. O tigre aparece, sim, porém dissecado e débil, com impuras variações de fôrma, ou de um tamanho inadmissível, ou muito fugaz, ou parecendo--se mais com um cachorro ou com um pássaro.

Jorge Luis Borges








O TEMPLO, A CIDADE, OS ARQUÉTIPOS, O SONHO


Lugar sagrado por excelência, o templo tinha um protótipo celeste. No monte Sinai Jeová mostra a Moisés a "forma" do santuário que deverá construir-lhe: "E me farão um santuário, e eu habitarei no meio deles, conforme em tudo ao modelo do tabernáculo que eu te mostrarei; e ao de todos os meus vasos para o culto; e o farei deste modo;..." (Êxodo, 25, 8-9). E quando Davi entrega ao seu filho Salomão o plano dos edifícios do templo, do tabernáculo e de todos os utensílios, assegura-lhe que "Todas estas coisas (disse o rei) me foram dadas escritas pela mão de Deus, para que eu compreendesse todas as obras do desenho" (Crônicas I, 28, 19). Por conseguinte, viu o modelo celestial.
O mais antigo documento referente ao arquétipo de um santuário é a inscrição de Gudea relacionada com o templo por ele erguido em Lagash. O rei vê em sonho a deusa Nidaba que lhe mostra um painel no qual se mencionam as estrelas benéficas e um deus que lhe revela o plano do templo. Também as cidades têm seu protótipo divino. Todas as cidades babilônicas tinham seus arquétipos em constelações: Sippar, em Câncer; Nínive, na Ursa Maior; Assur, em Artur, etc. Senaquerib manda edificar Nínive segundo o "projeto estabelecido desde tempos remotos na configuração do céu". Não apenas há um modelo que precede a arquitetura terrestre, mas este, ainda, se encontra situado em uma "região" ideal (celeste) da eternidade. É o que proclama Salomão: "Mandaste-me edificar um templo sobre o teu santo monte, e um altar na cidade em que habitas./conforme o modelo do teu santo tabernáculo, que preparaste desde o princípio". (Sabedoria 9, 8).
Uma Jerusalém celestial foi criada por Deus antes que a cidade de Jerusalém fosse construída pela mão do homem. A ela se refere o profeta, no livro de Baruc, e em outros.
"Crês tu que esta é a cidade da qual eu disse: Edifiquei-te na palma das minhas mãos? A construção que atualmente se encontra no meio de vós não é a que se revelou em Mim, a que já estava pronta no momento em que decidi criar o paraíso e que mostrei a Adão antes do seu pecado..."
A Jerusalém celeste acendeu a inspiração de todos os profetas hebreus: Tobias, Isaías, Ezequiel, etc. Para mostrar-lhe a cidade de Jerusalém, Deus transporta Ezequiel em um sonho estático e o leva a uma montanha muito elevada.
E os Oráculos sibilinos conservam a lembrança da Nova Jerusalém, no centro da qual resplandece "um templo com uma torre gigantesca que loca as nuvens e todos vêem". A mais bela descrição, porém, da Jerusalém celestial se encontra no Apocalipse: (Diz João) "Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu de junto de Deus, adornada como uma esposa ataviada para o seu esposo"

Mircea Eliade, O mito do eterno retorno (1951)



PROVÉRBIOS E CANTARES

XXI

Ontem eu sonhei que via a Deus
e que a Deus falava;
e sonhei que Deus me ouvia...
Depois sonhei que sonhava.


XLVI
A noite sonhei que ouvia a Deus,
gritando-me: Alerta!
Logo era Deus quem dormia e eu gritava:
Desperta!

Antônio Machado



ETCETERA


O sonho é o grão de trigo que sonha com a espiga, o antropóide que sonha com o homem, o homem que sonha com o que virá.

Raymond de Becker



A VOZ NO QUE SONHA


Eunápio narrou com muita imaginação uma suposta vida de Jâmblico de Caleis (c. 250-c. 325). Sabemos que foi discípulo de Porfírio, que o distinguiu; sabemos que foi mestre de neoplatonismo na Síria, onde juntamente com ele estudaram Teodoro de Asine, Dessipo, Sópatro, Eufrásio, Edésio, Eustácio. Sua obra fundamental foi um vasto comentário sobre a doutrina pitagórica, em dez livros dos quais conservamos cinco. Em sua minuciosa Biblioteca, Focio informa sobre a estranha derivação que Jâmblico imprimiu ao neoplatonismo: munido de traduções caldéias, inclinou-se para uma salvação através dos ritos, propugnou um misticismo mágico e enredou a salvação das almas em uma suspeitosa subestimação da sabedoria. Propôs-se a encabeçar uma forte reação místico-mágica contra a difusão do cristianismo, e chamou-se a si mesmo de "Novo Asclépio". De seus sonhos de redenção, nada ficou de pé; porém em De mysteriis aegipto-rum (se é que esta obra verdadeiramente lhe pertence) observou que no homem ocorrem os sonhos "divinos" em um estado intermediário entre o sono e a vigília, e que é por isso que se pode ouvir a voz de quem sonha: essa voz que se torna misteriosa (que se distorce), como estranhas se tornam as imagens percebidas.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son




O SONHO DE D'ALAMBERT


É a segunda das três partes de um diálogo que escreveu Denis Diderot (1713-1784), e que ficou inédito até sua publicação em 1830. As três partes são: Entretien entre D'Alambert et Diderot, Rêve de D'Alambert e Suite de Ventretien. D'Alambert abre o diálogo com uma profissão de deísmo e manifesta sua fé em um ser supremo; Diderot lhe responde que toda a diferença tradicional entre os três reinos da natureza é arbitrária e insustentável: na natureza somente podemos distinguir empiricamente entre uma sensibilidade inerte e uma ativa, pois a sensibilidade é própria da matéria e inseparável dela. Não há lugar para o livre arbítrio. A única diferença entre as ciências "rigorosas" (a física, a matemática) e as "conjeturais" (a história, a moral, a política) é que das primeiras podemos obter uma segurança normal para nossas provisões, e das segundas seguranças relativas, pois se conhecêssemos todos os elementos e as forças em jogo, seríamos como a divindade. D'Alamberi alude ao celicismo como refúgio, porém Diderot lhe demonstra que ninguém pode, racionalmente, declarar-se cético. D'Alambert retorna a sua casa e é presa de vários pesadelos: a senhorita Espinasse anota as palavras do sonhador, que o doutor Bordeau (a quem mandaram chamar) examina as notas e se diverte adivinhando a continuação do sonho (ou das palavras). D'Alambert acorda e a senhorita Espinasse e o doutor dialogam sobre o homem, conjunto de microrganismo temporariamente associados sob a dependência do sistema nervoso central. Fazem-se previsões que a ciência do nosso tempo corrobora. O doutor se lança a um exame rigoroso sobre a eliminação de toda a idéia sobre livre arbítrio, responsabilidade, mérito ou demérito, virtude e vício. São simples estados fisiológicos particulares, e não se pode falar de atos "contra natura" porque tudo é natureza. Neste ponto, o doutor (que sustenta as idéias de Diderot) desconcerta-se pelas simples conseqüências de seu raciocínio e suspende o diálogo.

Eustáquio Wilde, Literatura francesa (1884)




O SONHO


Murray sonhou um sonho.
A psicologia vacila quando tenta explicar as aventuras do nosso eu imaterial em suas andanças pela região do sonho, "gêmeo da morte". Este relato não quer ser explicativo: limitar-se-á a registrar o sonho de Murray.
Uma das fases mais enigmáticas dessa vigília do sonho, é que, acontecimentos que parecem abarcar meses ou anos, ocorrem em minutos ou instantes.
Murray aguardava a morte cm sua cela de condenado. Um foco elétrico no teto baixo do corredor iluminava sua mesa. Em uma folha de papel branco uma formiga corria de um lado para outro e Murray bloqueou-lhe o caminho com um envelope. A eletrocução teria lugar às nove da noite. Murray sorriu diante da agitação do mais sábio dos insetos.
No pavilhão havia sete condenados à morte. Desde que estava ali, três já tinham sido conduzidos: um, enlouquecido e brigando como um lobo preso em uma armadilha; outro, não menos louco, ofertando ao céu uma devoção hipócrita; e o terceiro, um covarde, desmaiou e tiveram que amarrá-lo a uma tábua. Perguntou-se como responderiam por ele seu coração, suas pernas e sua cara; porque era esta a sua noite. Pensou que já eram quase nove horas.
No outro lado do corredor, na cela em frente, estava encarcerado Carpani, o siciliano que havia matado sua noiva e dois policiais que foram prendê-lo. Muitas vezes, de cela a cela, haviam jogado damas, gritando cada um a jogada para o seu parceiro invisível.
Uma grande voz retumbante, de indestrutível qualidade musical, chamou:
— Então, senhor Murray. Como se sente? Bem?
— Muito bem, Carpani — disse Murray serenamente, deixando que a formiga pousasse sobre o envelope e depositando-a com suavidade no chão de pedra.
— £ assim que eu gosto, senhor Murray. Homens como nós têm que saber morrer como homens. Na semana que vem é a minha vez. É assim que eu gosto. Lembre-se, senhor Murray, que eu ganhei a última partida de clamas. Talvez voltemos a jogar outra vez.
A estóica pilhéria de Carpani, seguida de uma gargalhada ensurdecedora, deu novo alento a Murray; é verdade que Carpani tinha ainda uma semana de vida.
Os encarcerados ouviram o ruído seco dos ferrolhos ao abrir-se a porta no extremo do corredor. Três homens avançaram até a cela de Murray e abriram-na. Dois eram guardas; o outro era Frank — mio, isto era antes, agora ele se chamava reverendo Francisco Winston —, amigo e vizinho em seus anos de miséria.
— Consegui que me deixassem substituir o capelão da prisão — disse, ao apertar a mão de Murray. Na mão esquerda tinha uma pequena Bíblia entreaberta.
Murray sorriu levemente e arrumou uns livros e uma lapiseira na mesa. Teria gostado de falar, mas não sabia o que dizer. Os presos davam o nome de Rua do Limbo a este pavilhão de vinte e três metros de comprimento por nove de largura. O guardião habitual da Rua do Limbo, um homem imenso, rude e bondoso, tirou do bolso um frasco de uísque e ofereceu a Murray dizendo:
— É costume, você sabe. Todos bebem para tomar ânimo. Não há perigo de se viciarem.
Murray sorveu um grande gole.
— É assim que eu gosto — disse o guardião. Um bom calmante e tudo sairá bem.
Saíram para o corredor e os condenados o souberam. A Rua do Limbo é um mundo fora do mundo, e se lhe falta algum dos sentidos, o substitui por outro. Todos os condenados sabiam que eram quase as nove, e que Murray iria para a cadeira às nove. Há também, nas muitas Ruas do Limbo, uma hierarquia do crime. O homem que mata abertamente, na paixão da luta, menospreza a ratazana humana, a aranha, a serpente. Por isso, dos sete condenados somente três gritaram suas despedidas a Murray, quando este se afastou pelo corredor entre as sentinelas: Carpani; Marvin, que ao tentar uma evasão havia assassinado um guarda; e Basset, o ladrão que teve que matar porque um inspetor, num trem, se recusou a levantar as mãos. Os outros quatro guardavam um humilde silêncio.
Murray se maravilhava com sua própria serenidade e quase indiferença. Na sala das execuções havia uns vinte homens, empregados da cadeia, jornalistas e curiosos que...
Neste momento, no meio de uma frase, o sonho foi interrompido pela morte de O. Henry. Sabemos, contudo, o final: Murray, acusado e condenado pelo assassinato de sua amada, enfrenta seu destino com inexplicável serenidade. Conduzem-no à cadeira elétrica. Amarram-no. Imediatamente a câmara, os espectadores, os preparativos da execução lhe parecem irreais. Pensa que é vítima de um erro terrível. Por que o prenderam nesta cadeira? Que fez ele? Que crime cometeu? Acorda: ao seu lado estão sua mulher e seu filho. Compreende que o assassinato, o processo, a sentença de morte, a cadeira elétrica, são um sonho. Ainda trêmulo, beija o rosto da mulher. Nesse momento o eletrocutam.
A execução interrompe o sonho de Murray.

O. Henry



O SONHO DE MACÁRIO


Sonhou São Macário que caminhava pelo deserto quando encontrou uma caveira, e que tocou-a com seu báculo. Pareceu-lhe que ela se queixava e ele perguntou quem era. "Eu era um dos sacerdotes idolatras que habitavam este lugar; tu és o abade Macário", Acrescentou que cada vez que Macário rezava pelos condenados, estes experimentavam algum consolo; todos estavam mergulhados e enterrados num fogo infernal com fundura semelhante à distância que vai do céu à terra, e não podiam ver-se; porém quando algum piedoso se lembrava deles, conseguiam vislumbrar-se vagamente, e o horrendo espetáculo fazia com que se sentissem menos sós.

Vidas dos Padres Eremitas do Oriente


O CONSCIENTE E O INCONSCIENTE


Em sua autobiografia, Jung conta um sonho impressionante (mas qual deles não o é?). Achava-se em frente a uma casa de oração, sentado no chão e na posição do lótus, quando notou a presença de um iogue mergulhado em profunda meditação. Aproximou-se e viu que o rosto do iogue era o seu. Aterrorizado, afastou-se, acordou e se pôs a conjeturar: é ele aquele que medita; sonhou e eu sou o seu sonho. Quando ele despertar, eu já não existirei.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son



O SONHO DE ER


Esta é a história do valoroso Er, armênio de Panfília. Morto na guerra, seu cadáver incontaminado foi recolhido após dez dias. A pira estava pronta, quando no décimo segundo dia despertou e contou o que havia visto no outro mundo.
Depois de abandoná-lo, sua alma encaminhou-se com outras até um lugar onde havia dois buracos na terra em frente a dois que estavam no céu. Dois juizes pronunciavam as sentenças; os justos se encaminhavam ao céu, pela direita, e os injustos à terra, pela esquerda. Quando viram Er chegar disseram-lhe que seria mensageiro entre os homens de tudo o que ali ocorria, e que prestasse atenção.
Pelo outro buraco da terra saíam almas sujas ou empoeiradas; pelo outro do céu, almas inteiramente puras. Pareciam chegar de uma longa viagem. Reuniram-se na pradaria e, como velhas conhecidas, as da terra perguntavam pelo céu, e as do céu pela terra. Umas choravam os seus padecimentos de um milênio; outras exaltavam sua bem-aventurança.
Cada alma sofria por dano cometido, outro dano dez vezes maior, durante cem anos (tempo da vida humana). As almas piedosas recebiam pelas boas ações prêmios igualmente maiores.
Uma das almas perguntou pela sorte de Ardieo, tirano de Panfilia mil anos antes. Outra respondeu que não o tinha visto.
Ardieo havia assassinado seu velho pai e seu irmão mais velho; para os que pecavam contra os deuses e contra os pais, os castigos eram piores dos que os mencionados.
De repente Ardieo e outros grandes pecadores emergiram do buraco. A abertura fechou-se e bramiu, e uns seres selvagens envoltos em fogo precipitaram-nos no abismo. Amarraram os pés de Ardieo e o esfolaram e mutilaram de encontro aos espinhos. Para os condenados, porém, o mais atroz de tudo era o bramido.
As almas descansaram sete dias na pradaria; no oitavo saíram em marcha. Depois de quatro dias viram uma coluna de luz semelhante a um arco-íris, porém mais brilhante; em um dia mais chegaram até ela, que ocupava todo o céu e a terra. Viram as correntes do céu; a luz era o laço que unia toda a esfera celeste. Ali estava, aumentado, o fuso da Necessidade que permite girar todas as esferas, e se percebiam os oito céus concêntricos, cada um deles encaixando no outro, como potes côncavos, cujas bordas, de diferentes cores e brilho, formam um mesmo plano. Giram com diferente velocidade e no sentido inverso do fuso, que atravessa a oitava esfera bem no centro. Cada céu era presidido por uma sereia, que emitia um som único, de tom invariável; as oito vozes formavam um conjunto harmônico. Eqüidistantes e em seus tronos, se achavam as Parcas, filhas da Necessidade; Láquesis, Cloto e Atropo. Acompanhavam as sereais em seu canto; Láquesis lembrava os tempos passados, Cloto falava nos presentes e Atropo previa os futuros.
Ao chegar perante Láquesis, as almas foram informadas por um adivinho que empreenderiam uma nova etapa em um corpo portador de morte. "Elegereis vós mesmas a vossa sorte, e permanecereis irrevogavelmente unidas; como a virtude não tem dono, cada uma a possuirá conforme a honre. A divindade é inocente."
Cada uma elegeu um número de ordem, menos Er, e de acordo com a precedência, elegeram um modelo de vida. Havia modelos de tiranos, de mendigos, desterrados, necessitados; prestigiosos por beleza, por vigor, tenacidade, progênie ou prosápia. Havia também, para homens e mulheres, vidas sem qualquer relevo. Riqueza e pobreza, saúde e doença se misturavam. O perigo era grande; necessitava-se de discrição e conhecimento para escolher bem.
Disse o adivinho:
— Mesmo para a última que escolher haverá boa fortuna se for sensata; não se descuide a primeira, nem desanime a última.
A primeira precipitou-se e optou por ser tirano: seu destino incluía devorar os próprios filhos. Quando o soube lançou a culpa na sua má sorte e nos deuses, e amaldiçoou a todos menos a si mesma; era uma alma que vinha do céu e que em toda a sua vida havia exercido a virtude. As que provinham da terra eram experimentadas no sofrimento e escolhiam com mais cuidado.
Por não ser gerado por mulher, por aversão ao sexo feminino e porque se lembrava de sua morte, Orfeu escolheu ser cisne. Tâmiras decidiu reencarnar como um rouxinol, e algumas aves como seres humanos. A vigésima alma a escolher, quis ser leão: era Ajax. A seguinte optou por ser águia: era Agamênon, que, como é sabido, odiava a Humanidade. Atalanto decidiu ser atleta e conquistar honrarias; e Epeo resolveu ser artesã. Entre as últimas estava a de Tersites, revestido da ridícula forma de um símio: decidiu ser Ulisses, cuja alma permanecia afastada e esquecida por todos. Ulisses, por sua vez, havia optado por uma existência obscura e sedentária.
Terminada a eleição, cada alma recebeu de Láquesis o seu gênio tutelar; Cloto confirmou os destinos e Átropo tornou-os irrevogáveis.
Junto com seu respectivo gênio tutelar, cada alma (que já não podia retroceder) passou diante do trono da Necessidade e se dirigiu à planície do Esquecimento, onde não havia árvores nem nada do que a terra produz, e onde o calor era atroz. Ao entardecer foram até o rio da Despreocupação, cuja água nenhum recipiente consegue reter. Aí, os que beberam demais, perderam a memória. À meia noite, todas as almas dormiam. A terra rugiu e moveu-se, e as almas foram lançadas no espaço como estrelas diferentes do seu nascimento anterior.
A Er não foi permitido beber; reencarnou em seu próprio corpo, ergueu os olhos para o céu, viu que era madrugada e encontrou-se sobre sua pira.

Platão, A República



A TRAMA


Para o nosso cansado e distraído meditar, o que está à vista do tapete (cujo desenho nunca se repete) provavelmente seja o esquema da existência terrena; o avesso da trama, o outro lado do mundo (supressão do tempo e do espaço, ou afrontosa ou gloriosa manifestação de ambos); e a trama, os sonhos. Isto sonhou, em Teerã, Moisés Neman, fabricante e vendedor de tapetes, que tem o seu negócio.em frente à praça Ferdousi.

Gaston Padilla, Memórias de un prescindible




O DESPERTAR DO REI


Agentes franceses no Canadá, depois da derrota de suas armas, em 1753, divulgaram entre os índios a informação de que o rei da França havia estado dormindo durante os últimos anos, mas que havia acabado de acordar e que suas primeiras palavras foram:
"É preciso expulsar imediatamente os ingleses que se meteram no país dos meus filhos vermelhos". A notícia propalou-se por todo o continente e foi uma das causas da famosa conspiração de Pontiac.

H. Desvignes Doolittle, Meditações vagas sobre a
História Mundial (1903)



RAGNAROCK


Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens figuram as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque uma esfinge nos oprime — sonhamos uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Se isto é assim, como poderia uma simples crônica de suas formas transmitir o estupor, a exaltação, os alarmes, a ameaça e o júbilo que teceram o sonho dessa noite? Não obstante, tentarei essa crônica; talvez o fato de que uma única cena integrou aquele sonho apague ou mitigue a dificuldade essencial.
O lugar era a Faculdade de Filosofia e Letras; a hora, o entardecer. Tudo (como costuma ocorrer nos sonhos) era pouco nítido; uma ligeira magnificação alterava as coisas. Elegíamos autoridades; eu falava com Pedro Henriques Urefia, que na vigília morreu há muitos anos. Bruscamente aturdiu-nos um clamor de manifestação ou de charanga. Alaridos humanos e animais chegavam de Abaixo. Uma voz gritou: Aí vêm! e depois Os Deuses! Os Deuses! Quatro ou cinco sujeitos saíram da turba e ocuparam o estrado da Aula Magna. Todos nós aplaudimos, chorando; eram os Deuses que voltavam depois de um desterro de séculos. Alteados pelo estrado, a cabeça lançada para trás e o peito projetado para a frente, receberam com soberba nossa homenagem. Um sustinha um ramo, que se conformava, sem dúvida, à botânica simples dos sonhos; outro, com um largo gesto, estendia uma de suas mãos, que era uma garra; uma das caras de Jano olhava com receio o recurvado bico de Toth. Excitado talvez por nossos aplausos, um, já não sei qual, prorrompeu em um cacarejo vitorioso, incrivelmente áspero, com algo de gargarejo e de assovio. A partir daquele momento, as coisas mudaram.
Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e selvagem haviam atrofiado neles o lado humano: a lua do Islã e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com estes prófugos. Rostos muito baixos, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulatos ou de chineses e beiçolas bestiais tornavam pública a degeneração da estirpe olímpica. Seus adereços não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas sim ao luxo malévolo das casas de jogo e dos lupanares de Abaixo. A uma botoeira sangrava um cravo; em um casaco ajustado se adivinhava o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que eles jogavam sua última cartada, que eram matreiros, ignorantes e cruéis como velhos roedores e que, se nos deixasse-mos possuir pelo medo ou pela piedade, acabariam por destruir-nos.
Sacamos os pesados revólveres (na hora surgiram revólveres no sonho), e alegremente demos morte aos Deuses.

Jorge Luis Borges




MORRER, DORMIR, SONHAR TALVEZ


Sonhou que a dor pertinaz no baixo ventre, que ocultou para não importunar os demais (ou para que não o atormentassem), deixava de incomodá-lo. Sem resistência, a dor desapareceu. Sonhou que a cozinheira Eustólia, (oh, havia herdado de sua mãe esta velha maníaca) tinha ido viver com uma sobrinha e finalmente lhe estava permitido comer como Deus manda. A casa deixou de feder a alho. Sonhou o reencontro com Lavínia, sua nunca esquecida Lavínia, oportunamente livre. O casamento foi celebrado na intimidade. Sonhou que reunia uma vasta antologia sobre a inutilidade da apologia literária. O elogio dos críticos foi unânime. Sonhou o número que sairia premiado na loteria de Natal. Custou a encontrar o bilhete, mas sua fortuna ficou assegurada. Sonhou os ganhadores de todos os páreos nas próximas corridas no hipódromo de Palermo. Porém detestava as corridas de cavalo, um tio seu se tinha suicidado, etc. Sonhou que acordava. Porém não acordou. Já fazia alguns minutos que estava morto.

Eliseo Díaz, Notas sobre el azar (1956)



OS DOIS CAVALEIROS


Em seu leito de morte, Gottfried Keller confiou a um amigo que várias noites antes havia visto dois cavaleiros, vestidos dos pés a cabeça com armaduras forjadas de ouro puro, que permaneciam impassíveis junto ao pequeno armário que se encontrava entre as duas janelas. O escritor voltava uma ou outra vez ao assunto, sem conseguir descrever o maravilhoso resplendor que, segundo eles, envolvia a cena.

Ibrahim Zaid, Marginalia (1932)



IN ILLO TEMPORE


Cheguei no dia 18 de março de 1949 para ingressar no Colégio do México como bolsista. Os companheiros que haviam ido receber-me entre eles Sônia Henriquez Unena — levaram-me a uma pensão de estudantes e se despediram. Arrumei meus magros pertences (que incluíam um dicionário de latim) e me dispus a dormir. Depois de uma viagem de trinta e quatro horas, eu estava cansado.
Sonhei que haviam transcorrido dois meses. Nas vésperas do meu regresso a Buenos Aires, Alfonso Reyes me convidava para um fim de semana em um hotel de Cuernavaca e, como despedida, lia para mim sua tradução dos primeiros nove cantos da Ilíada, tradução que eu havia visto progredir, de sábado a sábado, nas inesquecíveis e distantes tardes da "Capela Alfonsina" na então Rua das Indústrias. Alfonso Reyes lendo Homero para mim, sozinho, e a meseta de Anahuac em redor! (Não afirmou Pedro Sarmiento de Gamboa ter encontrado em terra mexicana uma pegada de Ulisses?) Presenteei-o com a adição de poesias completas de Lugones, que incluía suas versões homéricas.
Na manhã seguinte despertei muito cedo. O colégio ficava há pouco mais de uma quadra, na rua Nápoles número 5. Cheguei quando as portas ainda estavam fechadas. Comprei um exemplar de Novedades e me pus a ler. Pouco depois vi Raimundo Lida. Subimos à sala de Filologia, no segundo andar. Uma hora mais tarde, disse-me Lida: "Don Alfonso o espera". Desci. "Roy, dê-me suas duas mãos. Desde hoje, esta é sua casa. Sente-se". E, sem mais demora: "Fale-me de Pedro". Comecei a falar. Desordenadamente. As lembranças me oprimiam. Reyes (oh, ele havia sido seu amigo mais íntimo, de perto e de longe, durante quarenta anos) não ocultou sua emoção. A lembrança de Pedro Henrique Urefia, fixa como as estrelas, cálida como a amizade, nos unia.
Passaram os meses. Dias antes do meu regresso a Buenos Aires, Alfonso Reyes convidou-me para um fim de semana em um hotel em Cuernavaca, junto com D. Manuela. Imaginei o que ia ocorrer: levei o livro de Lugones. Durante dois dias (oh, deuses, para mim sozinho) D. Alfonso me leu sua tradução rimada dos primeiros nove cantos da Ilíada.
Sonhei então, que chegava ao aeroporto da Capital asteca e que os companheiros que tinham ida receber-me, me levaram até uma pensão de estudantes e se despediam. Arrumei meus magros pertences (na verdade pouco usei o dicionário de latim) e ria manhã seguinte, já no Colégio, Raimundo Lida me disse: "Don Alfonso o espera". Desci. "Roy, dê-me suas duas mãos. Desde hoje, esta é sua casa. Sente-se". E, sem mais demora: "Fale-me de Pedro". Comecei a falar. A lembrança de Henriquez Urena nos unia.

Roy Bartholomew



EPISÓDIO DO INIMIGO


Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tanto anômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem se despencasse, porém deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Seriam as quatro horas da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:
— A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmos — disse — porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.
Enquanto eu falava, ele havia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Assinalava algo, e eu senti que era um revólver.
Disse-me, então, com voz firme:
— Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.
Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:
— É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.
— Precisamente porque já não sou aquela criança — replicou — é que tenho que matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas sim de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.
— Posso fazer uma coisa - respondi.
— Qual?
— Acordar. E assim o fiz.

Jorge Luís Borges



VERDADE OU NÃO?


Quando era garoto, Bertrand Russell sonhou que entre os papéis que havia deixado sobre a mesinha de seu quarto de colégio encontrava um onde se lia: "O que diz do outro lado não é verdade". Virou o papel e leu: "O que diz do outro lado não é verdade". Apenas acordou, procurou o papel na mesinha. O papel não estava ali.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son



O SONHO DO PETRÓLEO


No verão de 1950, que precedeu ao voto de nacionalização do petróleo, meu médico prescreveu-me repouso prolongado. Um mês depois, enquanto dormia, vi em sonho uma personagem brilhante que me dizia:
"Este não é o momento para descansar; levanta-te e vai romper as correntes do povo do Irã". Respondi ao chamado e, não obstante minha extrema fadiga, retomei meu trabalho na comissão do petróleo. Quando, dois meses mais tarde, a comissão aceitou o princípio da nacionalização, admiti que a personagem do meu sonho me havia inspirado com felicidade.

Mohammad Mossadegh, sessão do parlamento iraniano,
13 de maio de 1951


O REFLEXO


Tudo no mundo está dividido em duas partes, das quais uma é visível, e a outra invisível. Aquela que é visível, nada mais é do que o reflexo da invisível.
Zohan, I, 39



SONHO DA CRUZ


Contarei o melhor dos sonhos, aquele que sonhei à meia noite, quando habitavam o repouso os homens capazes de palavra.
Acreditei ver uma árvore prodigiosa que se elevava no ar entrelaçada de luz, a mais resplandecente de todas as árvores.
Todo este prodígio estava inundado de ouro.
Havia pedras preciosas no seu pé; e cinco outras pedras no alto, na junção de seus braços.
Contemplavam-na os anjos do Senhor, todos predestinados à beleza.
Certamente não era a forca de um malfeitor; adoravam-na espíritos celestiais, homens sobre a terra e toda a gloriosa Criação.
Prodigiosa era a Árvore da Vitória, e eu, maculado de culpas, aviltado por impurezas, vi a Árvore da Glória coberta de vestes, brilhante de alegria, cercada de ouro. Através daquele ouro pude entrever uma antiga discórdia de miseráveis; vi que pelo lado direito transpirava sangue.
Estava eu cheio de aflição, aterrorizado pela formosa visão.
Vi que este sinal vivo mudava de roupagens e de cores.
As vezes o caminho feito pelo sangue a manchava; às vezes a adornava com tesouros.
Enquanto isto eu, durante muito tempo, permanecia contemplando aflito a Árvore do Redentor.
Esta começou a falar. A mais preciosa de todas as madeiras disse, com palavras:
"Isto aconteceu há muitos anos; ainda me lembro, derrubaram-me na orla de um bosque.
Arrancaram-me de minhas raízes.
Apoderaram-se de mim fortes inimigos.
Fizeram de mim um espetáculo.
Ordenaram-me erguer os condenados.
Os homens carregaram-me nas costas e me fixaram no alto de uma colina.
Aí me imobilizaram os inimigos.
Vi o Senhor dos Homens apressar-se com a vontade de escalar-me.
Não me atrevi a desacatar a ordem de Deus. Não me atrevi a inclinar-me nem a romper-me quando tremeu a face da terra.
Eu poderia ter esmagado todos os inimigos, porém me mantive alta e firme.
Forte e decidido, o jovem herói, que era Deus todo--poderoso, subiu ao alto da forca, valoroso entre muitos, para salvar a humanidade.
Estremeci quando o varão me abraçou.
Não me atrevi a inclinar-me sobre a terra; continuei firme.
Cruz fui erigida.
Elevei ao poderoso Senhor, ao Senhor dos Céus.
Não me atrevi a inclinar-me.
Com cravos escuros me atravessaram; restam ainda as cicatrizes das feridas.
Não me atrevi a ferir ninguém.
Todos escarneceram de nós.
Salpicou-me o sangue que brotou das costas do homem, quando este entregou o espírito.
Padeci de muitos males na colina.
Vi o senhor dos Exércitos puxado cruelmente. Nuvens tenebrosas haviam coberto o corpo do Senhor.
Daquele clarão surgiu uma sombra, negra sob as nuvens.
A Criação inteira chorou a morte de seu Rei.
Cristo estava na Cruz.

Poema anônimo anglo-saxão do século IX



TAMAM SHOD


Ontem chegamos de Teerã. Quinhentos quilômetros de areais, povoados mortos, postos de caravanas em ruínas, as formas caprichosas da meseta iraniana. Estávamos cansados e, excitados. Um banho e um bom chá no Shah Abban, e saímos a caminhar.. Jardins, avenidas, cúpulas, minaretes. Em Ispahan a noite é feérica, o céu é perfeito.
Quando regressamos ao hotel, extenuados e felizes, conversamos até que o sono nos venceu.
Sonhei que no centro da prodigiosa cúpula da mesquita Lutfullah estava escondido um rubi de virtudes mágicas. O judicioso que pára justamente debaixo dele, guarda silêncio e prende a respiração, recebe a visão de um tesouro, assim como a indicação do lugar onde ele se encontra. Sua existência não pode ser definida nem se deve tentar sua posse, pois quem ousar se transforma em madeira, a madeira em nuvem, a nuvem em pedra e a pedra se quebra em mil pedaços. O rubi proporciona deleite ou assombro, mas não autoriza o enriquecimento.
De manha voltamos a Meidan e Shah. Visitamos o palácio Ali Qapu desde seus últimos corredores até a sala de música. Surpreenderam-me as escadarias com degraus demasiadamente altos e incrivelmente estreitos. Alguém explicou que era para impedir o acesso aos cavalos inimigos.
Enquanto Melania se demorava no terraço que dá para a antiga quadra de pólo (a mais bela praça do mundo), não resisti mais. Cruzei até a Lutfullah, coloquei-me bem debaixo do conjunto da cúpula, fiquei em silêncio e contive a respiração. Uma luz ocre peneirava todos os matizes. Subitamente— meu Deus! — O tesouro era surpreendente, de inúmeras riquezas, perto, fácil de obter, entre as ruínas de um dos antigos mirantes ou pombais, ou casas de prazer fora da cidade. A visão me foi concedida em um segundo interminável de vertiginoso esplendor.
Regressei a Ali Qapu. Percorremos a mesquita das Sextas-Feiras, cruzamos a velha ponte de trinta e tantos arcos...
Terminarei estas notas ou me pulverizarei na pedra?

Roy Bartholomew



O CERVO ESCONDIDO


Um lenhador de Cheng encontrou-se na campo com um cervo assustado e o matou. Para evitar que outros o descobrissem, enterrou-o na floresta, cobrindo a cova com f olhas e ramos. Pouco tempo depois esqueceu o local onde o havia escondido, e pensou que tudo não passara de um sonho. Assim, contou o fato a toda a gente como se fosse um sonho. Entre os ouvintes, houve um que foi procurar o cervo enterrado e o encontrou. Levou-o a sua casa e disse à sua mulher:
— Um lenhador sonhou que havia matado um cervo e esqueceu onde o tinha escondido, e agora eu o encontrei. Este homem sim, é que é um sonhador...
— Na certa sonhaste que viste um lenhador que havia matado um cervo. Crês realmente que existiu, o lenhador? Mas como o cervo está aqui, teu sonho deve ser verdadeiro — disse a mulher.
— Ainda que suponhamos que eu tenha encontrado o cervo graças a um sonho — respondeu ò marido — por que nos preocuparemos em saber qual dos dois sonhou?
Naquela noite o lenhador voltou para casa pensando ainda no cervo, e realmente sonhou, e neste sonho sonhou o lugar onde havia escondido o cervo e sonhou também quem o havia encontrado. Ao amanhecer foi a casa do outro e encontrou o cervo. Os dois discutiram e terminaram diante de um juiz para que este resolvesse o assunto. O juiz disse ao lenhador:
— Realmente mataste um cervo e pensaste que era um sonho.. Em seguida sonhaste realmente, e então pensaste que era a realidade. O outro encontrou o cervo e agora o disputa, porém sua mulher pensa que ele sonhou que havia encontrado um cervo que outro havia matado. Logo, ninguém matou o cervo. Porém como aqui está o cervo, o melhor que os dois podem fazer é reparti-lo.
O caso chegou aos ouvidos do rei de Cheng e o rei de Cheng disse:
— E esse juiz? Não estará ele sonhando que reparte um cervo?

Liehtsé (c. 300 a.C.)





O SONHO DE PEDRO HENRIQUEZ URENA


O sonho que Pedro Henriquez Urena teve ao amanhecer de um dos dias de 1946 não constava de imagens, mas tão somente de pausadas palavras. A voz que as pronunciava não era a sua, porém parecia-se com ela. O tom, em que pese as possibilidades patéticas que o tema permitia, era impessoal e comum. Durante o sonho, que foi breve, Pedro sabia que estava dormindo em seu quarto e que sua mulher estava a seu lado. Na obscuridade do sonho, a voz lhe disse:
Há quantas noites passadas, em uma esquina da Rua Córdoba, discutiste com Borges a invocação do anônimo Sevilhano O Morte, vem calada / como costumas vir na flecha. Suspeitaram que era o eco deliberado de algum texto latino, já que estas versões correspondiam aos costumes da época, completamente alheias ao nosso conceito de plágio, sem dúvida menos literário do que comercial. O que não suspeitaram, o que não podiam suspeitar, é que o diálogo era profético. Dentro de poucas horas correrás para a última estação da Constituición, para tua aula na Universidade de La Plata. Alcançarás o trem, colocares a pasta no porta-volumes e te acomodarás na tua poltrona, junto à janela. Alguém, cujo nome ignoro mas cujo rosto estou vendo, te dirigirá algumas palavras. Não lhe responderás porque ambos estarão mortos. Já te terás despedido para sempre de tua mulher e de tuas filhas. Não te lembrarás deste sonho porque teu esquecimento é necessário para que se cumpram os fatos.

Jorge Luis Borges



HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM


O historiador árabe El Ixaqui narra este acontecimento:
Contam os homens dignos de fé (porém somente Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme), que' existiu no Cairo um homem possuidor de riquezas, porém tão magnânimo e liberal que perdeu-as todas, menos a casa de seu pai. Diante disso, se viu forçado a trabalhar para ganhar seu pão. Trabalhou tanto, que o sono venceu-o uma noite sob uma figueira de seu jardim, e ele viu no sonho um homem empanturrado que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: "Tua fortuna está na Pérsia, em Ispahan; vai buscá-la". Na madrugada seguinte acordou e empreendeu a longa viagem, afrontando os perigos dos desertos, dos navios, dos piratas, dos idolatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou finalmente a Isfahan, e no centro da cidade, no pátio de uma mesquita, deitou-se para dormir. Junto a mesquita havia uma casa, e por vontade de Deus Todo Poderoso, um bando de ladrões atravessou a mesquita, e meteu-se na casa, e as pessoas que aí dormiam, despertando com o barulho, pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos guardas noturnos daquele distrito acudiu com seus homens e os bandoleiros, fugiram pelo terraço. O capitão quis revistar a mesquita e lá deram com o homem do Cairo; açoitaram-no de tal maneira com varas de bambu que ele quase morreu. Dois dias depois recobrou os sentidos na cadeia. O capitão mandou buscá-lo e disse: "Quem és tu e qual é a tua pátria?" O outro declarou: "Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi". O capitão perguntou-lhe: "O que te trouxe à Pérsia?" O outro optou pela verdade e disse: "Um homem ordenou-me, em sonho, que eu viesse a Isfahan porque aí estava a minha fortuna. Já estou em Isfahan e vejo que essa fortuna que prometeu devem ser as vergastadas que tão generosamente me deste".
Diante de tais palavras o capitão riu tanto que se viam seus dentes de siso e, finalmente, lhe disse: "Homem desajuizado e crédulo, eu já sonhei três vezes com uma casa no Cairo no fundo da qual há um jardim, e nesse jardim um relógio de sol, e depois do relógio, uma figueira, e logo depois da figueira, uma fonte, e sob a fonte, um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira e tu, produto de uma mula com um demônio, não obstante, vens errando de cidade em cidade baseado unicamente na fé no teu sonho. Que eu não volte a ver-te em Isfaham. Toma estas moedas e desaparece".
O homem pegou as moedas e regressou a sua pátria. Sob a fonte de seu jardim (que era a mesma do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu sua bênção, recompensou-o e enalteceu-o. Deus é o Generoso, o Oculto.

Do Livro das Mil e Uma Noites (noite 351)



A JÚLIO FLORO


Está livre o teu peito do amor à glória vã? Estará também da ira e do medo da morte? Os sonhos, os terrores mágicos, as feiticeiras, os duendes noturnos, os sortilégios de Tessália: eles te fazem rir?

Horácio, Epístolas, II, 2.



A ROSA DO MUNDO

Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?
Por estes lábios vermelhos, com todo seu orgulho lutuoso,
Lutuoso de que nenhuma nova maravilha possam predizer,
Tróia se desvaneceu como um grande fulgor funéreo.

William Buttler Yeates



TEOLOGIA


Como vocês não ignoram, viajei muito. Isto me permitiu corroborar a afirmação de que a viagem é sempre mais ou menos ilusória, de que não há nada de novo sob o sol, de que tudo é uma única e mesma coisa, etcétera, mas também, paradoxalmente, de que é infundada qualquer desesperança de encontrar surpresas e coisas novas: em verdade o mundo é inesgotável. Como prova disso, basta lembrar a crendice peregrina que encontrei na Ásia Menor, entre um povo de pastores, que se cobrem com peles de ovelha e que são herdeiros do antigo reino dos Magos. Esta gente crê nos sonhos. "No instante em que dormes — explicaram-me — conforme tenham sido teus atos durante o dia, irás ao céu ou ao inferno". Se alguém argumentasse que nunca havia visto partir um homem adormecido, que permanecia deitado até que o despertassem, responderiam: "O afã de não acreditar em nada te leva a esquecer tuas próprias noites (quem não terá conhecido sonhos agradáveis e sonhos aterroriza-dores?) e a confundir o sono com a morte. Cada um é testemunho de que há outra vida para o sonhador. Para os mortos é diferente o testemunho: eles permanecem, convertendo-se em pó''.

H. Garro, Todo o mundo (1918)

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS


— Já que não entramos em um acordo sobre os métodos virgilianos, utilizemos como meio de adivinhação um que é bom, antigo e autêntico — disse Pantagruel. Refiro-me à interpretação dos sonhos, sempre que se sonhe conforme as condições que estabelecem Hipócrates, Platão, Plotino, Jâmblico, Sinésio, Aristóteles, Xenofontes, Galeno, Plutarco, Artemidoro, Daldiano, Herifilo, Quinto Calaber, Teócrito, Plínio, Ateneu e outros, os quais sustentam que a alma é capaz de prever acontecimentos futuros. Quando o corpo repousa em plena digestão e não necessita de nada até o momento de despertar, nossa alma se eleva até sua verdadeira pátria, que é o céu. Ali recebe a participação de sua primitiva origem divina e na contemplação daquela infinita e intelectual esfera (cujo centro se encontra em algum lugar do universo, ponto central que reside em Deus segundo a doutrina de Hermes Trismegisto, e a qual nada altera e na qual nada ocorre, pois todos os tempos se desenvolvem no presente) capta não apenas os acontecimentos das camadas inferiores, mas também os futuros, transmitindo-os ao seu corpo através de seus órgãos sensíveis. Dada à fragilidade e à imperfeição do corpo que os captou, não pode transmiti-los fielmente. Cabe aos intérpretes e vaticinadores de sonhos, os gregos, aprofundar-se em tão importante matéria. Heráclito dizia que a interpretação dos sonhos não é para ficar oculta, pois nos dá o significado e normas gerais das coisas do futuro, para nossa sorte ou desgraça. Anfiarao estabeleceu que não se deve beber durante três dias nem comer durante um antes dos sonhos. Estômago cheio, má espiritualidade.
Todo o sonho que termina em sobressalto significa algo ruim e é de mau presságio. Este algo ruim quer dizer alguma doença latente. O mau presságio para a alma, pois alguma desgraça se avizinha. Lembrai-vos dos sonhos e do despertar de Hécuba e de Eurídice. Enéias sonhou que falava com Heitor morto; acordou sobressaltado e naquela noite Tróia ardeu e foi saqueada.

François Rabelais, Pantagruel, II



SONHO


Latine somnus somni, sopor quies quae ab hutnori-bus a corde ad cerebrwn sublatis concitatur, qui ubi fuerint refrigerati recidentes ad cor colorem eius refrigerant. Em grego se chama (...) ypnos, e daqui tiram sua etimologia, ainda que com dificuldade, mudando letras. A vaidade antiga fingiu existir um deus dito Sonho, o qual teria seu trono e morada perto dos cimérios, conforme é muito bem "descrito por Ovídio no seu Methamorphoseom, liv.-II.
Est prope Cimmerios longo spelunca recessu
Mons cavus ignavi domos et penetralia somni,
Quo nunquam radiis oriens, mediusve caedensve,
Phoebus adire potesí, etc.

O sonho e a liberação. Este modo de dizer teve sua origem na Santa Escritura, em Daniel, cap. 2, quando Nabucodonosor acordou espavorido de um sonho, cujos fantasmas já o tinham destroçado, e pedia que os magos de sua corte lhe declarassem que sonho tinha sido aquele e qual o seu significado. Estes nunca puderam satisfazê-lo, e responderam: Non est homo super terram, qui sermonen ium, rex, possit implere. O profeta Daniel, estando informado de que o rei mandava matar seus sábios, obteve de Deus, em sonhos, o que Nabucodonosor desejava saber. E assim lhe fez primeiro o sonho, e com ele a liberação, e convém conhecer sua interpretação e de onde teve origem este provérbio tão comum: Nem por sonhos se chega a negar uma coisa e afastá-la do seu pensamento. Sonolento é aquele que anda cochilando.

Sebastián de Covarruvias Orozco, Tesoro de la lengua castellana o espanola (1611), 1943.



O REGRESSO DO MESTRE


Desde seus primeiros anos, Migyur — este era o seu nome — havia sentido que não estava onde tinha que estar. Sentia-se forasteiro em sua família, forasteiro em seu povoado. Ao sonhar, via paisagens que não pertenciam a Ngari: solidões de areia, tendas circulares de feltro, um mosteiro na montanha; e na vigília, estas mesmas imagens cobriam ou empanavam a realidade.
Aos dezenove anos fugiu, ávido de encontrar a realidade que correspondia a essas formas. Foi vagabundo, esmoler, trabalhador e as vezes ladrão. Hoje chegou a esta pousada perto da fronteira.
Viu a casa, a cansada caravana mongol, os camelos no pátio. Atravessou o portão e se encontrou diante do velho monge que comandava a caravana. Reconheceram--se, então: o jovem vagabundo viu-se a si mesmo como um lama ancião, e viu o monge como este era há muitos anos, quando fora seu discípulo; e o monge reconheceu no rapaz o seu velho mestre, já desaparecido. Lembraram a peregrinação que haviam feito aos santuários do Tibete e o regresso ao mosteiro da montanha. Falaram evocaram o passado e se interrompiam para intercalar detalhes precisos.
O propósito da viagem dos mongóis era buscar um novo chefe para o seu convento. Fazia vinte anos que havia morrido o antigo, e eles em vão esperavam sua reencarnação. Hoje o tinham encontrado.
Ao amanhecer a caravana empreendeu sua lenta viagem de volta. Migyur regressava às solidões de areia, às tendas circulares de feltro e ao mosteiro de sua encarnação anterior.

Alexandra David-Neel, Mystiques el Magiciens du Tibet (1929)



A SENTENÇA


Naquela noite, na hora da ratazana, o imperador sonhou que havia saído de seu palácio e que, no escuro, caminhava pelo jardim sob as árvores floridas. Algo se ajoelhou a seus pés e pediu amparo. O imperador concordou, e o suplicante disse que era um dragão e que os astros lhe tinham revelado que no dia seguinte, antes .de cair à noite, Wei Cheng, ministro do imperador, lhe cortaria a cabeça. No sonho, o imperador jurou protegê-lo.
Ao acordar, o imperador perguntou por Wei Cheng. Disseram-lhe que não estava no palácio; o imperador mandou buscá-lo, mantendo-o atarefado o dia inteiro para que não matasse o dragão, e por volta do entardecer lhe propôs jogar xadrez. A partida era longa, o ministro estava cansado e adormeceu.
Um estrondo sacudiu a terra. Pouco depois irromperam dois capitães que traziam uma imensa cabeça de dragão ensopada de sangue. Arrojaram-na aos pés do imperador e disseram:
— Caiu do céu.
Wei Cheng, que tinha acordado, olhou-a com perplexidade e observou:
— Sonhei que matava um dragão assim.

Wu Ch'eng-En (c. 1505-c. 1580)



12 DE MAIO DE 1958


Um sorriso suave embelezava seu rosto de senhora de cinqüenta e dois anos. Cumpriam-se doze da morte de Pedro Henriquez Urena. Ambos o recordamos e ela repetiu o que me havia dito em 1946: para minha juventude, a perda era irreparável, porém nada apagaria em mim a lembrança de meu grande mestre. Vaguei pelo quarto. Os olhos de minha mãe não se despegavam de mim. Condenada por uma cruel doença cardíaca, jamais manifestou cansaço ou queixou-se, e foi fonte de vida e de solidariedade para com os demais. Quando decidi retirar-me, reteve minhas mãos nas suas e me disse: Não permitas que te destruam. Adormeci pensando nessas palavras. Durante a noite sonhei que resolvia vários assuntos na cidade e em La Plata, e que os mesmos me angustiavam, embora não fossem de natureza que justificassem esta sensação. Pela manhã avisaram-me que minha mãe havia morrido. Corri ao apartamento de Viamonte, junto a Maipú. Já se estavam cumprindo as primeiras formalidades próprias de tão triste circunstância. Na primeira pausa de minha dor abri, com segurança, a gaveta de sua mesinha. Aí estava a carta, escrita na véspera com sua serena letra inglesa. Pedia-me que tratasse de vários assuntos em Buenos Aires e em La Plata: eram aqueles assuntos com que eu havia sonhado.

Roy Bartholomew




A EXPLICAÇÃO


Um homem, na vigília, pensa bem de um outro e nele confia plenamente, porém o inquietam sonhos em que este amigo age como um inimigo mortal. Revela-se, afinal, que o caráter sonhado era o verdadeiro. A explicação seria a percepção instintiva da realidade.

Nathaniel Hawthorne, Livro de anotações (1868)























ÍNDICE

Prólogo, 5
História de Gilgamesh, Conto Bíblico, 8
Sonho infinito de Pao Yu, Tsao Hsue-King, 13
Deus dirige os destinos de José, e, por seu intermédio, os de Israel,
Gênese, 14
José, o chefe dos copeiros e o chefe dos padeiros do Faraó, Gênese, 15
José interpreta os sonhos do Faraó. Gênese, 16
Deus se comunica em sonhos com seus servos, Números, Juizes,
Macabeus, 19
Daniel e os sonhos de Nabucodonosor, Daniel, Ester, 20
O sonho de Mardoqueu, Ester, 26
O sonho de Abimelec, Gênesis, 28
O sonho de Jacó, Gênese, 29
O sonho de Salomão, 29
O vazio dos sonhos, I Reis, 30
Da parcimônia, Eclesiastes, 31
Visões proféticas, Daniel, 31
Sonho duplo, Apóstolos, 39
O anjo do Senhor nos sonhos de José, São Mateus, 40
História de Kessi, Conto Hitita, 42
Os sonhos procedem de Zeus, lliada, 44
As duas portas, Odisséia e Eneida, 45
O sonho de Penélope, Odisséia, 45
O idos de março, Plutarco, 46
Do diário epistolar de César para Lúcio Mamilio Turrino, na ilha de
Capri, Thorton Wilder, 47
O incesto, Rodericus Bartius, 48
O sonho de Cipião, José Ferrater Mora, 49
De onde e como se originaram os sonhos, Platão, 51
Do diário epistolar de César para Lúcio Mamilio Turrino, na ilha de
Capri, Thorton Wilder, 51
O sonho mal interpretado, 52
Sonhos caseiros, Rodericus Bartius, 53
A prova, S. T. Coleridge, 53.
Um sonho habitual, Giuseppe Ungarettí, 54
Da natureza dos sonhos, Tito Lucrécio Caro, 54
Que coisa é o sonho, Alfonso o Sábio, 58
O pesadelo, Jorge Luís Borges, 59
O dom esclarecido, Antônio Machado. 62
Caedmom, Jorge Luis Borges, 62
Convém distinguir, Franz Kafka, 64
A última visita do Cavaleiro Enfermo, Giovanni Papini, 46
Confúcio sonha sua morte, Eusláquio Wilde, 67
A corça branca, Jorge Luis Borges, 67
Costuma acontecer, Jorge Alberto Ferrando, 68
Sem reclamações, Orígenes, 96
Sonho da pátria, Gottfried Keller, 69
Sonha o fidalgo da Torre, Eça de Queiroz, 70
Cortesia, Nenier Ibn El Barud, 76
Der Traum ein Lieben, Francisco Acevedo, 76
Ulrica, Jorge Luis Borges, 77
Livro Terceiro das Fantasias de Gaspar de Ia Nuit, Aloysius
Bertrand, 81
Preparando-se, Nietzsche, 90
Entre mim e eu, que diferença!, Rodericus Bartíus, 90
Os caminhos de que se vale Deus para alimentar o espírito, Gaston Padilla, 91 O sonho do Chanceler, Bísmarck a Guilherme I, 92
Sonha Alonso Quijana, Jorge Luis Borges, 93
A morte de um presidente, Ward Hill Lanion, 93
O bom operário. Vida dos Padres Eremitas do Oriente, 94
O espelho de Vento-e-Lua, Tsao Hsuc-King, 95
O sonho de Melania, Gaston Padilla, 96
O Sonho do Juízo Final ou o Sonho das Caveiras, Francisco de Quevedo, 97
O sonho e o fado, Heródoto, 110
A alma, o sonho, a realidade, James George Frazer, 111
Não existe ofício desprezível, Rabi Nisim. 112
Inferno V, Juan José Arrcola, 113
Entre sonho, Giuseppe Ungaretti, 114
Pirandeliana. Luigi Pirandello, 114
Sonho parisiense, Charles Baudelaire, 115
O sonho de Coleridge, Jorge Luis Borges. 116
Os sonhos de Astiages, Heródoto, 119
Romântica, Charles de Vigny. 120
O pão disputado, 120
Que passe, Louis Aragon, 121
Entre sonhos, Paul Groussac. 121
O sorriso de Alá. 130
O sonhado, Juan José Arreola. 131
O sonho de Chuang Tzu, Herbert Allen Giles, 132
O sonho de Sarmiento, D. F. Sarmiento, 132
Os sonhos de Luciano, Rodericus Bartius, 133
Costuma vestir sombras, Luis de Góngora, 134
O sonho do rei, Lewis Carroll, 134
Dreamtigers, Jorge Luis Borges, 134
O templo, a cidade, os arquétipos, o sonho, Mircea Eliade, 135
Provérbios e cantores, Antônio Machado, 137
Etcetera, Raymond de Becker, 137
A voz no que sonha, Rodericus Bartius, 137
O sonho de D'Alambert, Eustáquio Wilde, 138
O sonho, O. Henry, 139
O sonho de Macário, Vida dos Padres Eremitas do Oriente, 142
O consciente e o inconsciente, Rodericus Bartius, 142
O sonho de Er, Platão, 143
A Trama, Gaston Padilha, 146
O despertar do rei, H. Desvigues Doolitle, 146
Ragnarok, Jorge Luis Borges, 146
Morrer, dormir, sonhar talvez, Eliseo Diaz, 148
Os dois cavaleiros, Ibrahim Zahid, 149
In illo tempore, Roy Bartholomew, 149
Episódio do inimigo, Jorge Luis Borges, 150
Verdade ou não?, Rodericus Bartius, 152
O sonho do petróleo, Mohammad Mossadegh, 152
O reflexo, Zohar, 158
Sonho da cruz, Poema Anônimo Anglo-saxão, 153
Tomam Shod, Roy Bartholomew, 155
O cervo escondido, Liehtsé, 156
O sonho de Pedro Henriquez Urena, Jorge Luis Borges, 157
História dos dois que sonharam, Livro das Mil e Uma Noites, 158
A Mio Floro, Horácio, 159
A rosa do mundo, William Butler Yeats, 160
Teologia, H. Garro, 160
Interpretação dos sonhos, François Rabelais, 161
Sonho, Sebastian Covarruvias Orozco, 162
O regresso do mestre, Alexandra David-Neel, 162
A sentença, Wu Ch'eng-Eng, 163
12 de maio de 1958, Roy Bartholomew, 164
A explicação, Nathaniel Hawthorne, 165



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1 Realmente, o significado profundo destas palavras é intraduzível, porém, intrinsicamente, querem dizer: assustador, fantástico, sobrenatural, sinistro. (N. do T.)

2 Os comentários bíblicos afirmam que as quatro feras corresponde a Síria, e o chifre blasfemador é Antíoco IV, grande perseguidor dos judeus. Os dez reis são Alexandre Magno; Seleuco I; Nicator; Antíoco Soter; Antíoco II, Calínico; Seleuco IO; Cerauno; Antíoco III, o Grande; Seleuco IV, Filopator; Heliodoro; e Demétrio I, Soter. Os desaparecidos são Seleuco IV (assassinado por Heliodoro), Heliodoro e Demétrio I. O ancião é Deus, disposto a julgar os impérios orientais. A personagem semelhante a um filho de homem, é o Messias: Jesus Cristo recorda a passagem em Mateus 26-64, ante o sumo sacerdote. Depois se alude à luta de Alexandre com os persas, à formação de seu império e ao desmembramento do mesmo, depois da morte do filho de Filipe da Macedônia. A profecia de Daniel — as setenta semanas — se baseia na de Jeremias — setenta anos — e se interpreta como "setenta semanas de anos".

3 A primeira parte deste conto se conserva em inscrições hititas cuneiformes; a segunda, num fragmento de tradução acádica achada no Egito em fins do século XIX. Theodore H. Gaster traduziu-as, harmonizando-as, e comentou-as (The oldest stories In the world, 1952). O conto está essencialmente relacionado com a morte e o reino dos mortos; a porta que não se abre aos .mortais, a não ser para dar passagem na direção da morte (a do Hades, v. Virgílio, Eneida.yi, 127); a ave que leva um mortal ao reino dos mortos; os espíritos dos mortos, que avivam o fogo; o dragão e as harpias que cuidam da porta (repete-se na história de Gilgamesh e em Virgílio, Eneida, VI, 258-289); o encontro com Udipsharri (Odisseu e sua mãe, Eneas e Anquises, Dante e Beatriz) e este como guia (a Sibila com Eneas, Virgílio com Dante) Kessi seria Orion, caçador, acorrentado ao céu, perseguidor das sete irmãs, as Plêiades. A menção dos gnomos é a mais antiga que existe.

4 Epilepsia.
5 Lucrécio compara os simulacros que se desprendem dos corpos com a fumaça que sai da lenha, os vapores que os fogos expelem, as túnicas deixadas no estio pelas cigarras etc, e também com a luz que, colorindo-se, passa através das cortinas, com o cheiro, e com os simulacros que vemos nos espelhos. Outros se formam na região do ar. Estes simulacros se movem com grandíssima velocidade e correm espaços inacreditáveis num momento. (Nota de Aldo Mieli).

6 No original em espanhol arcaico. (N. dos E.)
7 Religio medici: A religião de um médico (1643 — um ano antes havia aparecido uma edição pirata repleta de erros), de Thomas Browne (1605-1682). Trata-se de uma série de notas pessoais de grande ponderação espiritual e religiosa, rica de temas, escrita em 1635. Antes de ser impressa, circulou em cópias manuscritas. Alcançou grande êxito em inglês, latim, francês, flamengo e alemão, e gozou da estima do dr. Johnson e após ele, de Lamb, Coleridge, Carlyle, Browning, etc.

8 O sonho de uma vida. (N. do T.).

9 Arrebatou a espada a Gram e colocou-se entre os contendores (islandês arcaico). (N. do T.).

10 Moeda antiga.
11 Em inglês no texto. Senhor escocês.

12 Lugar onde se realizavam as execuções em Dijon.

13 Em 1863 ocorreu a revolta polonesa; em novembro, a morte de Frederico Vil da Dinamarca pôs novamente nas agendas européias a questão do Schleswig-Holstein; em 1886 estourou a "guerra relâmpago" de sete semanas contra a Áustria.

14 Ilíada, 1.62.

15 Odisséia XIX, 562 seg.,; Eneida, VI, 894 seg.

16 Elegias, IV, 7.

17 Satiricon, CIV.
18 Satiricon, CIV.
19 Primeiras palavras da misteriosa Êcloga, IV, de Virgílio.
20 O mundo dos sonhos. (N. do T.).
21 " Em princípios do século XIX ou em fins do XVIII, Kubla Khan, no julgamento dos leitores de gosto clássico, era muito menos apreciado do que hoje em dia. Em 1884, Traill, que foi o primeiro biógrafo de Coleridge, escreveu: "0 extravagante poema onírico Kubla Khan é pouco mais do que uma curiosidade psicológica".
22 Veja-se John I.ivingstone Lowes: The road to Xanandu, 1927, páginas 358, 585
23 Dormir seis horas. (N. do T.).
24 O sentido desta palavra, que significa estado de inércia, como sonho, devaneio, etc, pode variar segundo o contexto em que está inserida. (N. do T.).

25 O sentido desta palavra, que significa estado de inércia, como sonho, devaneio, etc, pode variar segundo o contexto em que está inserida. (N. do T.).


26 Em minha recente obra Une Enigme Littéraire, critiquei a cena das bebedeiras de vinho em Don Quixote (I. XXV), a qual o célebre alienista Bali considerou "um modelo de observação ".

27 O Tenente-coronel Ramon Maza, autor e primeira vítima da conspiração de 1839.

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Ficções
*****
JORGE LUIS BORGES

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Este livro: Ficções, é parte integrante da coleção:

JORGE LUIS BORGES – OBRAS COMPLETAS
VOLUME I

1923-1949
Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges – Obras Completas
98-3272
Copyright ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.

1a Reimpressão-9/98 2a Reimpressão-1/99 3a Reimpressão – 12/99

Edição baseada em Jorge Luis Borges – Obras Completas,

publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. Frías

Capa: Joseph Llbach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak

Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Preparação de textos: Maria Carolina de Araújo

Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian,

Luciana Vieira Alves e Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

Fotolitos: GraphBox

Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos,

Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman

Agradecimentos especiais a Élida Lois

Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

EDITORA GLOBO S.A.

Avenida Jaguaré, 1485

CEP O5346-9O2 – Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP

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Impressão e acabamento:

Gráfica Círculo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte – Câmara Brasileira do Livro, SP
Borges, Jorge Luis, 1899-1986.
Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. – São Paulo : Globo, 1999.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges.
Vários tradutores.
V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O
(v. 4.)

1. Ficção argentina 1. Título.
Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4

2. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4
CDD-ar863.4



FICÇÕES
Ficciones
Tradução de Carlos Nejar
Revisão de tradução: Maria Carolina de Araujo


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FICÇÕES (1944)

● O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM (1941)

♦ Prólogo
♦ Tlön, Uqbar, Orbis Tertius
♦ Pierre Menard, autor do Quixote
♦ As ruínas circulares
♦ A loteria em Babilônia
♦ Exame da obra de Herbert Quain
♦ A biblioteca de Babel
♦ O jardim de veredas que se bifurcam

● ARTIFÍCIOS (1944)

♦ Prólogo
♦ Funes, o memorioso
♦ A forma da espada
♦ Tema do traidor e do herói
♦ A morte e a bússola
♦ O milagre secreto
♦ Três versões de Judas
♦ O fim
♦ A seita da Fênix
♦ O Sul









O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM (1941)



















A Esther Zemborain de Torres

1941
PRÓLOGO




As sete obras deste livro não requerem maior elucidação. A sétima ("O jardim de veredas que se bifurcam") é policial; seus leitores assistirão à execução e a todos os preliminares de um crime cujo propósito não ignoram, mas que não compreenderão, parece-me, até o último parágrafo. As outras são fantásticas; uma – "A loteria em Babilônia" – não é totalmente isenta de simbolismo. Não sou o primeiro autor da narrativa "A biblioteca de Babel"; os curiosos de sua história e de sua pré-história podem examinar certa página do número 59 da revista Sur, que registra os nomes heterogêneos de Leucipo e de Lasswitz, de Lewis Carroll e de Aristóteles. Em "As ruínas circulares" tudo é irreal; em "Pierre Menard, autor do Quixote", irreal é o destino que seu protagonista se impõe. O rol de escritos que lhe atribuo não é muito divertido, mas não é arbitrário; é um diagrama de sua história mental...

Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em Sartor Resartus; assim Butler em The Fair Haven; obras que têm a imperfeição de serem também livros, não menos tautológicos que os outros. Mais razoável, mais inepto, mais preguiçoso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários. Estas são "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius"; e o "Exame da obra de Herbert Quain".

J. L. B.



















TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS




Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa chácara da rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo-American Cyclopaedia (New York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 19O2. O fato ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e deteve-nos uma extensa polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores – a muito poucos leitores – a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na alta noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopaedia a registrava, em seu artigo sobre Uqbar. A chácara (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI demos com um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, com um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Uqbar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão todos os verbetes imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ookbar, Oukbahr... Antes de ir embora, disse-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti com certa incomodidade. Conjecturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu
minha dúvida.

No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disse-me que tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não constava o nome do heresiarca, mas sim a informação de sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por ele, ainda que – talvez – literariamente inferiores. Ele tinha recordado: "Copulation and mirrors are abominable". O texto da Enciclopédia dizia: "Para um desses gnósticos, o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are hateful) porque o multiplicam e o divulgam". Eu lhe disse, sem faltar à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias ele o trouxe. O que me surpreendeu, porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar.

O volume que Bioy trouxe era efetivamente o XLVI da Anglo-American Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor-Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas constava de 921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar; não previsto (como terá observado o leitor) pela indicação alfabética. Comprovamos depois que não havia outra diferença entre os volumes. Os dois (conforme creio haver indicado) são reimpressões da décima Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos leilões.

Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O restante parecia muito verossímil, muito ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante. Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa escrita uma fundamental vaguidade. Dos catorze nomes que figuravam na parte geográfica, apenas reconhecemos três – Kurassan, Armênia, Erzerum –, interpolados no texto de modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cadeias dessa mesma região. Lemos, verbi grada, que as terras baixas de Tsai Jaldun e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na seção histórica (página 92O) soubemos que, por causa das perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos procuraram refúgio nas ilhas, onde ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorável: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön... A bibliografia enumerava quatro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro – Silas Haslam: History of the Land Called Uqbar, 1874 – figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch.1 O primeiro, Lesbare und lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in Klein-Asien, data de 1641 e é obra de Johannes Valentinus Andreä. O fato é significativo; alguns anos depois, deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writings, décimo terceiro volume) e soube que era o de um teólogo alemão que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade da Rosa Cruz – que outros depois fundaram, à imitação do prefigurado por ele.

Nessa noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão esgotamos atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajantes e historiadores: ninguém estivera jamais em Uqbar. O índice geral da enciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte, Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-American Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XXVI. Naturalmente, não deu com o menor indício de Uqbar.










___________________________________
l Haslam publicou também A General History of Labyrinths.

II


Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no hotel de Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer fantasma que já era então. Era alto e apático, e a sua canosa barba retangular havia sido ruiva. Creio que era viúvo, sem filhos. De tantos em tantos anos ia a Inglaterra: visitar (julgo eu por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. O meu pai estreitara com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo. Costumavam exercer um intercâmbio de livros e de jornais; costumavam defrontar-se no xadrez, taciturnamente... Lembro-me dele no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, fitando às vezes as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde, falámos do sistema duodecimal de numeração (em que o doze se escreve 10). Ashe disse que estava precisamente a transferir não sei que tabelas duodecimais para sexagesimais (em que sessenta se escreve 10). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecemos e nunca mencionara sua estada nessa região... Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse – Deus me perdoe – de funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel), Herbert Ashe morreu da ruptura de um aneurisma. Dias antes, recebera do Brasil um pacote selado e registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde – meses depois – o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira vertigem de assombro que não descreverei, porque esta não é a história de minhas emoções, mas de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islã, que se chama a "Noite das Noites", abrem-se de par em par as secretas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que nessa tarde senti. O livro estava redigido em inglês e o compunham 1OO1 páginas. Na amarela lombada de couro li estas curiosas palavras que o ante-rosto repetia: A First Encyclopaedia of Tlön. Vol. XI. Hlaer to Jangr. Não havia indicação de data nem de lugar. Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das lâminas coloridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição: Orbis Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num tomo de certa enciclopédia pirática uma sumária descrição de um falso país; agora me proporcionava o acaso algo mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus naipes, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico.

No "décimo primeiro tomo" de que falo, há alusões a tomos ulteriores e precedentes. Néstor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.F., negou a existência de tais tomos; Ezequiel Martínez Estrada e Drieu La Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até agora as investigações mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desordenamos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreendamos a obra de reconstruir os muitos e maciços tomos que faltam: ex ungue leonem. Calcula, entre sério e jocoso, que uma geração de tlönistas pode bastar. Esse arriscado cômputo nos faz voltar ao problema fundamental: quem são os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um único inventor – de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia – fora descartada unanimemente. Conjetura-se que este brave new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subordinar a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. A princípio, acreditou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições aparentes do Décimo Primeiro Tomo são a pedra fundamental da prova de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zoologia e a topografia de Tlön; penso que seus tigres transparentes e suas torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo.

Hume observou em definitivo que os argumentos de Berkeley não admitem a menor réplica e não causam a menor convicção. Esse parecer é totalmente verídico em sua aplicação à terra; totalmente falso em Tlön. As nações desse planeta são – congenitamente – idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem – a religião, as letras, a metafísica – pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Ursprache de Tlön, da qual procedem os idiomas "atuais" e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. Surgiu a lua sobre o rio diz-se hlör u fang axaxaxas mlö ou seja em sua ordem: para cima (upward) "atrás duradouro-fluir luneceu". (Xul Solar traduz sinteticamente: upa tras perfluyue lunó. "Upward, behind the onstreaming it mooned").

O que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral. Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no Décimo Primeiro Tomo) a célula primordial não é o verbo, mas o adjetivo monossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos. Não se diz lua: diz-se aéreo-claro sobre escuro-redondo ou alaranjado-tênue-do-céu ou qualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito. Na literatura deste hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong), são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento, conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera simultaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual e outro auditivo: a cor do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau podem combinar-se com outros; o processo, mediante certas abreviaturas, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma única enorme palavra. Essa palavra integra um objeto poético criado pelo autor. O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, paradoxalmente, com que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias – e muitos outros mais.

Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön compreende uma única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Disse que os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. Spinoza atribui a sua inesgotável divindade os atributos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlön a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do segundo – que é sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada exemplo de associação de idéias.

Esse monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior. Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo – id est, de classificá-lo – implica falseio. Disso caberia deduzir que não há ciências em Tlön – nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é que existem, em quase inumerável número. Com as filosofias acontece o que acontece com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob, contribuiu para multiplicá-las. Sobram os sistemas inacreditáveis, mas de arquitetura agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlön não procuram a verdade nem sequer a verossimilhança: procuram o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. Até a frase "todos os aspectos" é inaceitável, porque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéritos. Nem é lícito o plural "os pretéritos", porque supõe outra operação impossível... Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lembrança presente.2 Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história do universo – e nela nossas vidas e o mais tênue detalhe de nossas vidas – é a escrita que produz um deus subalterno para entender-se com um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim cada homem é dois homens.

Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem antecipa um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do décimo primeiro século3 ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Desse "raciocínio especioso" há muitas versões, variam o número de moedas e o número de achados; eis aqui a mais comum:

"Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor de sua casa." O heresiarca queria deduzir dessa história a realidade – id est, a continuidade – das nove moedas recuperadas. "É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, duas entre terça-feira e a madrugada de sexta-feira. É lógico pensar que existiram – ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens – em todos os momentos desses três prazos."

A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não o entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, baseada no emprego temerário de duas palavras neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que comportam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva) somente tem valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância um pouco enferrujadas pela chuva de quarta feira, que pressupõe o que se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas, entre quinta e terça-feira. Explicaram que uma coisa é igualdade e outra, identidade e formularam uma espécie de reductio ad absurdum, ou seja, o caso hipotético de nove homens que em nove sucessivas noites padecem de uma viva dor. Não seria ridículo – perguntaram – pretender que essa dor fosse a mesma?4 Disseram que ao heresiarca não o movia senão O blasfematório propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e que, às vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo modo, que as nove moedas eram uma só.

Inacreditavelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Cem anos depois de ser enunciado o problema, um pensador não menos brilhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, formulou uma hipótese muito audaz. Essa conjetura feliz afirma que há um único sujeito, que esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z descobre três moedas, porque se
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2 Russel (The Analysis of Mind, 1921, página 159) supõe que o planeta foi criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que "recorda" um passado ilusório.

3 Século, de acordo com o sistema duodecimal, significa um período de cento e quarenta e quatro anos.

4 Hoje em dia, uma das igrejas de Tlön sustenta, platonicamente, que tal dor, que tal matiz verdoso do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem. Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são Wílliam Shakespeare.

lembra de que X as perdeu; X encontra duas no corredor, porque se lembra de que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro tomo deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a possibilidade de conservar o culto aos deuses. Schopenhauer (o apaixonado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no primeiro volume de Parerga und Paralipomena.

A geometria de Tlön compreende duas disciplinas um pouco diferentes: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam. A base de sua aritmética é a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por > e por <. Afirmam que a operação de contar modifica as quantidades e as converte de indefinidas em definidas. O fato de que vários indivíduos que contam uma mesma quantidade obtenham resultado igual é, para os psicólogos, um exemplo de associação de idéias ou de bom exercício da memória. Já sabemos que em Tlön o sujeito do conhecimento é uno e eterno.

Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um único autor, que é intemporal e é anônimo. A crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissimiles – o Tao Te King e as Mil e Uma Noites, digamos –, atribui-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse interessante homme de lettres...

Também são diferentes os livros. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e o contra de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incompleto.

Séculos e séculos de idealismo não deixaram de influir na realidade. Não é infreqüente, nas regiões mais antigas de Tlön, a duplicação de objetos perdidos. Duas pessoas procuram um lápis; a primeira o encontra e não diz nada; a segunda encontra um segundo lápis não menos real, contudo mais ajustado a sua expectativa. Esses objetos secundários se chamam hrönir e são, embora de forma desairosa, um pouco mais longos. Até há pouco os hrönir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento. Parece mentira que sua metódica produção conte apenas cem anos, mas assim está referido no Décimo Primeiro Tomo. Os primeiros intentos foram estéreis. O modus operandi, no entanto, merece ser recordado. O diretor de um dos cárceres do Estado comunicou aos presos que no antigo leito de um rio havia certos sepulcros e prometeu a liberdade aos que trouxessem um achado importante. Durante os meses que precederam a escavação, apresentaram-lhes lâminas fotográficas do que iam descobrir. Essa primeira tentativa provou que a esperança e a avidez podem inibir; uma semana de trabalho com a pá e a picareta não conseguiu exumar outro hrön, salvo uma roda enferrujada, de data posterior ao experimento. Essa foi mantida em segredo e depois repetida em quatro escolas. Em três, foi quase total o fracasso; no quarto (cujo diretor morreu casualmente durante as primeiras escavações), os discípulos exumaram – ou produziram – uma máscara de ouro, uma espada arcaica, duas ou três ânforas de barro e o limoso e mutilado torso de um rei com uma inscrição no peito que ainda não se conseguiu decifrar. Descobriu-se, assim, a improcedência de testemunhas que conhecessem a natureza experimental da busca... As pesquisas em massa produzem objetos contraditórios; agora se preferem os trabalhos individuais e quase improvisados. A metódica elaboração de hrönir (diz o Décimo Primeiro Tomo) prestou serviços prodigiosos aos arqueólogos. Permitiu examinar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o futuro. Fato curioso: os hrönir de segundo e de terceiro grau – os hrönir derivados de outro hrön, os hrönir derivados do hrön de um hrön – exageram as aberrações do inicial; os de quinto são quase uniformes; os de nono confundem-se com os de segundo; nos de décimo primeiro, há uma pureza de linhas que os originais não têm. O processo é periódico: o hrön de décimo segundo grau já começa a decair. Mais estranho e mais puro que todo hrön é, às vezes, o ur: a coisa produzida por sugestão, o objeto eduzido pela esperança. A grande máscara de ouro que mencionei é um ilustre exemplo.

As coisas duplicam-se em Tlön; propendem simultaneamente a apagar-se e a perder os detalhes, quando as pessoas os esquecem. E clássico o exemplo de um umbral que
perdurou enquanto o visitava um mendigo e que se perdeu de vista com sua morte. Às vezes, alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro.

Salto Oriental, 194O.

Pós-escrito de 1947. Reproduzo o artigo anterior tal como apareceu na Antologia de la Literatura Fantástica, 194O, sem outro corte senão o de algumas metáforas e de uma espécie de resumo zombeteiro que agora se tornou frívolo. Ocorreram tantas coisas desde essa data... Limitar-me-ei a recordá-las.

Em março de 1941, descobriu-se uma carta manuscrita de Gunnar Erfjord num livro de Hinton que fora de Herbert Ashe. O envelope tinha o carimbo postal de Ouro Preto; a carta elucidava completamente o mistério de Tlön. Seu texto corrobora as hipóteses de Martínez Estrada. Em princípios do século XVII, numa noite de Lucerna ou de Londres, começou a esplêndida história. Uma sociedade secreta e benévola (que entre seus afiliados teve Dalgarno e depois George Berkeley) surgiu para inventar um país. No vago programa inicial figuravam os "estudos herméticos", a filantropia e a cabala. Dessa primeira época data o curioso livro de Andreã. Ao fim de alguns anos de conciliábulos e de sínteses prematuras, compreenderam que uma geração não bastava para articular um país. Resolveram que cada um dos mestres que a integravam escolhesse um discípulo para a continuação da obra. Essa disposição hereditária prevaleceu; depois de um hiato de dois séculos, a perseguida fraternidade ressurge na América. Por volta de 1824, em Memphis (Tennessee), um dos afiliados conversa com o ascético milionário Ezra Buckley. Este o deixa falar com certo desdém – e ri da modéstia do projeto. Diz-lhe que na América é absurdo inventar um país e propõe-lhe a invenção de um planeta. A essa gigantesca idéia acrescenta outra, filha de seu niilismos: 5 a de manter em sigilo o enorme empreendimento.

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5 Buckley era livre-pensador, fatalista e defensor da escravidão.
Circulavam, então, os vinte tomos da Encyclopaedia Britannica; Buckley sugere uma enciclopédia metódica do planeta ilusório. Deixar-lhes-á suas cordilheiras auríferas, seus rios navegáveis, suas pradarias pisadas pelo touro e pelo bisão, seus negros, seus prostíbulos e seus dólares, sob uma condição: "A obra não pactuará com o impostor Jesus Cristo". Buckley descrê de Deus, mas quer demonstrar ao Deus não existente que os homens mortais são capazes de conceber um mundo. Buckley é envenenado em Baton Rouge, em 1828; em 1914 a sociedade remete a seus colaboradores, que são trezentos, o volume final da Primeira Enciclopédia de Tlön. A edição é secreta: os quarenta volumes que compreende (a obra mais vasta que empreenderam os homens) seriam a base de outra mais minuciosa, não mais redigida em inglês, mas em algumas das línguas de Tlön. Essa revisão de um mundo ilusório se denomina provisoriamente Orbis Tertius e um de seus modestos demiurgos foi Herbert Ashe, não sei se como agente de Gunnar Erfjord ou como afiliado. O fato de ter recebido um exemplar do Décimo Primeiro Tomo parece favorecer a segunda hipótese. Mas, e os outros? Por volta de 1942, recrudesceram os fatos. Lembro-me com singular nitidez de um dos primeiros e me parece que vislumbrei algo de seu caráter premonitório. Ocorreu num apartamento da rua Laprida, diante de uma clara e alta sacada, voltada para o ocaso. A princesa de Faucigny Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata. Do vasto interior de um caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imóveis: prataria de Utrecht e de Paris com dura fauna heráldica, um samovar. Entre elas – com perceptível e tênue tremor de pássaro adormecido – latejava misteriosamente uma bússola. A princesa não a reconheceu. A agulha azul indicava o norte magnético; a caixa de metal era côncava; as letras da esfera correspondiam a um dos alfabetos de Tlön. Tal foi a primeira intrusão do mundo fantástico no mundo real. Um acaso que me inquieta fez com que eu também fosse testemunha da segunda. Ocorreu uns meses depois, no armazém de um brasileiro, na Cuchilla Negra. Amorim e eu regressávamos de Sant'Anna. Uma enchente do rio Tacuarembó nos obrigou a provar (e a suportar) essa rudimentar hospitalidade. O dono do armazém acomodou-nos em catres rangestes num quarto amplo, abarrotado de barris e couros. Deitamo-nos, mas não nos deixou dormir até o amanhecer a bebedeira de um vizinho invisível, que alternava injúrias inextricáveis com rajadas de milongas – melhor, com rajadas de uma única milonga. Como é de supor, atribuímos à fogosa cachaça do proprietário essa gritaria insistente... De madrugada, o homem estava morto no corredor. A aspereza da voz nos enganara: era um rapaz jovem. Durante o delírio caíram-lhe do cinturão algumas moedas e um cone de metal reluzente, do diâmetro de um dado. Em vão um menino tentou pegar esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Eu o tive na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, a opressão perdurou. Também me lembro do círculo preciso que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e, ao mesmo tempo, pesadíssimo deixava uma impressão desagradável de asco e de medo. Um lavrador propôs que o jogassem na correnteza do rio: Amorim o adquiriu por alguns pesos. Ninguém sabia nada sobre o morto, exceto "que vinha da fronteira". Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas religiões de Tlön.

Aqui termino a parte pessoal de minha narrativa. O restante está na memória (quando não na esperança ou no temor) de todos os meus leitores. Basta-me recordar ou mencionar os fatos subseqüentes, com mera brevidade de palavras que a côncava lembrança geral enriquecerá ou ampliará. Por volta de 1944, um pesquisador do jornal The American (de Nashville, Tennessee) exumou numa biblioteca de Memphis os quarenta volumes da Primeira Enciclopédia de Tlön. Até o dia de hoje se discute se essa descoberta foi casual ou se a consentiram os diretores do ainda nebuloso Orbis Tertius. É verossímil a segunda hipótese. Alguns traços inacreditáveis do Décimo Primeiro Tomo (verbi grada, a multiplicação dos hrönir) foram eliminados ou atenuados no exemplar de Memphis; é razoável imaginar que essas rasuras obedecem ao plano de exibir um mundo que não seja demasiadamente incompatível com o mundo real. A disseminação de objetos de Tlön em diversos países complementaria esse plano...6 O fato é que a imprensa internacional divulgou infinitamente o "achado". Manuais, antologias, resumos, versões literais, reimpressões autorizadas e reimpressões piráticas da Obra Maior dos Homens abarrotaram e continuam abarrotando a terra. Quase imediatamente, a realidade cedeu em mais de um ponto. O certo é que desejava ceder. Há dez anos, bastava qualquer simetria com aparência de ordem – o materialismo dialético, o anti-semitismo, o nazismo – para encantar os homens. Como não se submeter a Tlön, à minuciosa e vasta evidência de um planeta ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada. Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas – traduzo: leis desumanas – que nunca percebemos completamente. Tlön será um labirinto, mas um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens.

O contato e o hábito de Tlön desintegraram este mundo. Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de enxadristas, não de anjos. Já penetrou nas escolas o (conjetural) "idioma primitivo" de Tlön; já o ensino de sua história harmoniosa (e cheia de episódios comovedores) obliterou o que presidiu minha infância; já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do qual nada sabemos com certeza – nem, ao menos, que é falso. Foram reformadas a numismática, a farmacologia e a arqueologia. Entendo que a biologia e a matemática aguardam também seu avatar... Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas previsões não errarem, daqui a cem anos alguém descobrirá os cem tomos da Segunda Enciclopédia de Tlön.

Com isso, desaparecerão do planeta o inglês e o francês e o simples espanhol. O mundo será Tlön. Não me importo, continuo revisando, nos plácidos dias do hotel de Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que não tenciono publicar) do Urn Burial, de Browne.










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6 Permanece, naturalmente, o problema da matéria de alguns objetos.
















































PIERRE MENARD, AUTOR DO QUIXOTE

A Silvina Ocampo


A obra visível que deixou este romancista é de fácil e breve enumeração. São, portanto, imperdoáveis as omissões e adições perpetradas por Madame Henri Bachelier num catálogo falaz que certo jornal, cuja tendência protestante não é segredo, teve a desconsideração de infligir a seus deploráveis leitores – embora estes sejam poucos e calvinistas, quando não maçons e circuncisos. Os amigos autênticos de Menard viram com alarme esse catálogo e ainda com certa tristeza. Dir-se-ia que ontem nos reunimos diante do mármore final e entre os ciprestes infaustos e já o Erro trata de empanar sua Memória... Decididamente, uma breve retificação é inevitável.

Consta-me que é muito fácil refutar minha pobre autoridade. Espero, no entanto, que não me proíbam de mencionar dois valiosos testemunhos. A baronesa de Bacourt (em cujos vendredis inesquecíveis tive a honra de conhecer o pranteado poeta) houve por bem aprovar as linhas que seguem. A condessa de Bagnoregio, um dos espíritos mais finos do principado de Mônaco (e agora de Pittsburg, Pensilvânia, depois de suas recentes bodas com o filantropo internacional Simón Kautzsch, tão caluniado – ai! – pelas vítimas de suas desinteressadas manobras), sacrificou "à veracidade e à morte" (tais são suas palavras) a senhoril reserva que a distingue e, numa carta aberta publicada na revista Luxe, concede-me também seu beneplácito. Esses títulos, creio, não são insuficientes.

Disse que a obra visível de Menard é facilmente enumerável. Examinando com esmero seu arquivo particular, verifiquei que se constitui dos seguintes trabalhos:

a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variantes) na revista La Conque (números de março e outubro de 1899).

b) Uma monografia sobre a possibilidade de construir um vocabulário poético de conceitos que não fossem sinônimos ou perífrases dos que formam a linguagem comum, "mas objetos ideais criados por uma convenção e essencialmente destinados às necessidades poéticas" (Nimes, 19O1).

c) Uma monografia sobre "certas conexões ou afinidades" do pensamento de Descartes, de Leibniz e de John Wilkins (Nimes, 19O3).

d) Uma monografia sobre a Characteristica Universalis de Leibniz (Nimes, 19O4).

e) Um artigo técnico sobre a possibilidade de enriquecer o xadrez eliminando um dos peões de torre. Menard propõe, recomenda, polemiza e acaba por rejeitar essa inovação.

f )Uma monografia sobre a Ars Magna Generalis de Ramón Llull (Nimes, 19O6).

g) Uma tradução com prólogo e notas do Livro da Invenção Liberal e Arte do Jogo de Xadrez de Ruy López de Segura (Paris,1907.)

h) Os rascunhos de uma monografia sobre a lógica simbólica de George Boole.

i) Um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon (Revue des Langues Romanes, Montpellier, outubro de 19O9).

j) Uma réplica a Luc Durtain (que negara a existência de tais leis) ilustrada com exemplos de Luc Durtain (Revue des Langues Romanes, Montpellier, dezembro de 19O9).

k) Uma tradução manuscrita da Aguja de Navegar Cultos, de Quevedo, intitulada La Boussole des Précieux.

l) Um prefácio ao catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade (Nimes, 1914).

m) A obra Les Problèmes d'un Problème (Paris, 1917) que discute em ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a tartaruga. Duas edições desse livro apareceram até agora; a segunda traz como epígrafe o conselho de Leibniz "Ne craignez point, monsieur, la tortue", e renova os capítulos dedicados a Russell e a Descartes.

n) Uma obstinada análise dos "usos sintáticos" de Toulet (N. R. F.., março de 1921). Menard – lembro-me – declarava que censurar e louvar são operações sentimentais que nada têm a ver com a crítica.

o) Uma transposição em alexandrinos do Cimetière marin de Paul Valéry (N. R. F., Janeiro de 1928).

p) Uma invectiva contra Paul Valéry, nas Folhas para a supressão da realidade de Jacques Reboul. (Esta invectiva, diga-se entre parêntesis, é o reverso exato da sua verdadeira opinião sobre Valéry. Este assim o entendeu e a amizade antiga entre os dois não correu perigo.)

q) Uma definição" da condessa de Bagnoregio, no "vitorioso volume" – a locução é de outro colaborador, Gabriele d'Annunzio – que anualmente publica esta dama para retificar os inevitáveis falseamentos do jornalismo e apresentar ao mundo e à Itália" uma autêntica imagem da sua pessoa, tão exposta (pela própria razão da sua beleza e da sua atuação) a interpretações errôneas ou apressadas.

r) Um ciclo de admiráveis sonetos para a baronesa de Bacourt (1934).

s) Uma lista manuscrita de versos que devem sua eficácia à pontuação.1

Até aqui (sem outra omissão que alguns vagos sonetos circunstanciais para o hospitaleiro, ou ávido, álbum de Madame Henri Bachelier) a obra visível de Menard, em sua ordem cronológica. Passo agora à outra: a subterrânea, a interminavelmente heróica, a ímpar. Também – ai das possibilidades do homem! – a inconclusa. Essa obra, talvez a mais significativa de nosso tempo, compõe-se dos capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois. Sei que tal afirmação parece disparate; justificar esse "disparate" é o objeto primordial desta nota.2

Dois textos de valor desigual inspiraram a idéia. Um é aquele fragmento filológico de Novalis – o que leva o número 2OO5 na edição de Dresden – que esboça o tema da total identificação com um autor determinado. Outro é um desses livros parasitários que situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebière ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo homem de bom gosto, Menard abominava esses carnavais inúteis, somente aptos – dizia – para produzir o plebeu prazer do anacronismo ou (o que é pior) para atrair-nos com a idéia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são diferentes. Mais interessante, embora de execução contraditória e superficial, parecia-lhe o famoso propósito de Daudet: conjugar em uma figura, que é Tartarim, o Engenhoso Fidalgo e seu escudeiro... Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória.

Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.

"Meu propósito é simplesmente assombroso", escreveu-me em 3O de setembro de 1934, de Bayonne. "O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica – o mundo
externo, Deus, a causalidade, as formas universais – não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias de seu trabalho e eu resolvi perdê-las." De fato, não resta um único rascunho que ateste esse trabalho de anos.

O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 16O2 e de 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre


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1 Madame Henri Bachelier enumera também uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da Introduction à la Vie Dévote de São Francisco de Sales. Na biblioteca de Pierre Menard não há vestígios de tal obra. Deve tratar-se de uma brincadeira de nosso amigo, mal-ouvida.

2 Tive também o propósito secundário de esboçar a imagem de Pierre Menard. Mas, como atrever-me a competir com as páginas áureas que, dizem-me, prepara a baronesa de Bacourt ou com o lápis delicado e pontual de Carolus Hourcade?

Menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do século XVII), mas o afastou por considerá-lo fácil. Na realidade, impossível! – dirá o leitor. De acordo, porém o projeto era de antemão impossível e de todos os meios impossíveis para levá-la a cabo, este era o menos interessante. Ser no século XX um romancista popular do século XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo – por conseguinte, menos interessante – que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard. (Essa convicção, diga-se de passagem, o fez excluir o prólogo autobiográfico da segunda parte do Dom Quixote. Incluir esse prólogo teria sido criar outro personagem – Cervantes – mas também teria significado apresentar o Quixote em função desse personagem e não de Menard. Este, naturalmente, negou-se a essa concessão.) "Meu projeto não é essencialmente difícil", leio em outro lugar da carta. "Bastar-me-ia ser imortal para realizá-la." Confessarei que costumo imaginar que a concluiu e que leio o Quixote – todo o Quixote – como se o tivesse pensado Menard? Noites atrás, ao folhear o capítulo XXVI – nunca por ele esboçado – reconheci o estilo de nosso amigo e como que sua voz nesta frase excepcional: "as ninfas dos rios, a dolorosa e úmida Eco". Essa conjunção eficaz de um adjetivo moral e outro físico trouxe-me à lembrança um verso de Shakespeare, que discutimos uma tarde:

Where a malignant and a turbaned Turk...

Por que precisamente o Quixote? – dirá nosso leitor. Essa preferência, num espanhol, não seria inexplicável; mas o é, sem dúvida, num simbolista de Nimes, essencialmente devoto de Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou Edmond Teste. A carta acima mencionada elucida a questão. "O Quixote", esclarece Menard, "interessa-me profundamente, mas não me parece – como direi? – inevitável. Não posso imaginar o universo sem a interjeição de Poe:

Ah, bear in mind this garden was enchanted!

ou sem o Bateau Ivre ou o Ancient Mariner, sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o Quixote. (Falo, naturalmente, de minha capacidade pessoal, não da ressonância histórica das obras.) O Quixote é um livro contingente, o Quixote é desnecessário. Posso premeditar sua escrita, posso escrevê-lo, sem incorrer numa tautologia. Aos doze ou treze anos o li, talvez integralmente. Depois reli com atenção alguns capítulos, aqueles que não tentarei por ora. Freqüentei também os entremezes, as comédias, a Galatéia, os romances exemplares, os trabalhos sem dúvida laboriosos de Pergiles e Sigismunda – a Viagem do Parnaso... Minha lembrança geral do Quixote, simplificada pelo esquecimento e pela indiferença, pode muito bem eqüivaler à imprecisa imagem anterior de um livro não escrito. Postulada essa imagem (que ninguém por direito me pode negar) é indiscutível que meu problema é bastante mais difícil que o de Cervantes. Meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia compondo a obra imortal um pouco á la diable, levado por inércias da linguagem – da invenção. Contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente sua obra espontânea. Meu solitário jogo está governado por duas leis polares. A primeira permite-me ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda obriga-me a sacrificá-las ao texto "original" e a raciocinar de modo irrefutável sobre essa aniquilação... A esses obstáculos artificiais convém somar outro, congênito. Compor o Quixote em princípios do século XVII era um empreendimento razoável, necessário, quem sabe fatal; em princípios do XX, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar um apenas: o próprio Quixote."

Apesar desses três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais sutil que o de Cervantes. Este, de modo grosseiro, opõe às ficções cavaleirescas a pobre realidade provinciana de seu país; Menard elege como "realidade" a terra de Carmen durante o século de Lepanto e de Lope. Que espanholadas não teria sugerido essa escolha a Maurice Barrès ou ao doutor Rodríguez Larreta! Menard, com toda naturalidade, evita-as. Em sua obra não há ciganices, nem conquistadores, nem místicos, nem Filipe Segundo, nem autos-de-fé. Desatende ou proscreve a cor local. Esse desdém revela um sentido novo do romance histórico. Esse desdém condena Salammbô inapelavelmente.

Não menos assombroso é considerar capítulos isolados. Por exemplo, examinemos o XXXVIII da primeira parte, "que trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as letras". É sabido que Dom Quixote (como Quevedo na passagem análoga, e posterior, de A Hora de Todos) julga o pleito contra as letras e a favor das armas. Cervantes era um velho militar: sua decisão se explica. Mas que o Dom Quixote de Pierre Menard – homem contemporâneo de La Trahison des Clercs e de Bertrand Russell – reincida nessas nebulosas sofistarias! Madame Bachelier viu nelas admirável e típica subordinação do autor à psicologia do herói; outros (nada perspicazmente) uma transcrição do Quixote; a baronesa de Bacourt, a influência de Nietzsche. A essa terceira interpretação (que acho irrefutável) não sei se me atreverei a adicionar uma quarta, que condiz muito bem com a quase divina modéstia de Pierre Menard: seu hábito resignado ou irônico de propagar idéias que eram o estrito reverso das preferidas por ele. (Rememoremos outra vez sua diatribe contra Paul Valéry na efêmera página surrealista de jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é uma riqueza.)

Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século XVII, redigida pelo "engenho leigo" Cervantes, essa enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

A história, mãe da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais – exemplo e aviso do presente, advertência do futuro – são descaradamente pragmáticas.

Também é vívido o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard – no fundo estrangeiro – padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que emprega com desenvoltura o espanhol corrente de sua época.

Não há exercício intelectual que não resulte ao fim inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do universo; passam os anos e é um simples capítulo – quando não um parágrafo ou um nome – da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade final é ainda mais evidente. O Quixote – disse-me Menard – foi antes de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião de brindes patrióticos, de soberba gramatical, de obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e talvez a pior.

Nada têm de novo essas comprovações niilistas; o singular é a decisão que delas derivou Pierre Menard. Resolveu adiantar-se à vaidade que aguarda todas as fadigas do homem; empreendeu uma tarefa complexíssima e de antemão fútil. Dedicou seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os rascunhos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas.3 Não permitiu que fossem examinadas por ninguém e cuidou que não lhe sobrevivessem. Em vão, procurei reconstruí-las.

Refleti que é lícito ver no Quixote "final" uma espécie de palimpsesto, no qual devem transluzir-se os rastos – tênues, mas não indecifráveis – da "prévia" escrita de nosso amigo. Infelizmente, apenas um segundo Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior, poderia exumar e ressuscitar essas Tróias...

"Pensar, analisar, inventar" (escreveu-me também) "não são atos anômalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédulo estupor o que o doctor universalis pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de todas as idéias e suponho que no futuro o será."

Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita nos leva a percorrer a Odisséia como se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os livros mais pacíficos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais?

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3 Recordo seus cadernos quadriculados; suas negras rasuras, seus peculiares símbolos tipográficos e sua letra de inseto. Nos entardeceres gostava de caminhar pelos arrabaldes de Nimes; costumava levar consigo um caderno e fazer uma alegre fogueira.

Nimes,1939.















































AS RUÍNAS CIRCULARES


And if he left off dreaming about you...
Through the Looking-Glass, VI.


Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não está contaminado de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da margem sem afastar (provavelmente, sem sentir) os arbustos cortantes que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, aturdido e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os devoraram incêndios antigos, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. Despertou-o o sol alto. Comprovou sem assombro que as feridas tinham cicatrizado; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que requeria seu invencível propósito; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado com respeito seu sono e solicitavam seu amparo ou temiam sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha dilapidada um nicho sepulcral e se cobriu com folhas desconhecidas.

O propósito que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o espaço inteiro de sua alma; se alguém lhe tivesse perguntado o próprio nome ou qualquer aspecto de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e despedaçado, porque era um mínimo de mundo visível; a proximidade dos lenhadores também, porque estes se encarregavam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.

No começo, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos esgotavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: as fisionomias escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria um deles de sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar do universo.

Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que aceitavam passivamente sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas algumas horas no amanhecer) diplomou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um único aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas que repetiam as de seu sonhador. Não o desconcertou por muito tempo a repentina eliminação dos condiscípulos; seu progresso, ao fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, a catástrofe sobreveio. O homem, um dia, emergiu do sonho como de um deserto viscoso, olhou a vã luz da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, a intolerável lucidez da insônia se abateu contra ele. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente entre a cicuta conseguiu algumas rajadas de sonho débil, venuladas fugazmente de visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articulado algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.

Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um varão, ainda que penetre em todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem rosto. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desviara no começo e procurou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à reposição das forças que o delírio havia desperdiçado. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma parte razoável do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Depois, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase de imediato, sonhou com um coração que pulsava.

Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o,
durante catorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e muitos ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e depois todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O cabelo inumerável foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.

Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e rude e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e em outros iguais) rendiam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo despedaçado, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.

O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para descobrir-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava a cada dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: "Agora estarei com meu filho". Ou, mais raramente: "O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for".

Gradualmente, foi acostumando-o à realidade. Certa vez, ordenou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cume. Ensaiou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certa amargura que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendizagem.

Sua vitória e sua paz ficaram embaçadas de fastio. Nos crepúsculos da tarde e da alvorada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal executasse idênticos ritos, em outras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, despertaram-no dois remadores, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de pisar o fogo e não queimar-se. O mago lembrou-se bruscamente das palavras do deus. Recordou que de todas as criaturas que compõem o orbe, o fogo era a única que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em Mil e Uma Noites secretas.

O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; depois, para o Sul, o céu que tinha a cor rosada da gengiva dos leopardos; depois a fumaceira que enferrujou o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
































A LOTERIA EM BABILÔNIA




Como todos os homens de Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conhecia a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me subordina aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num porão, degolei diante de uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Num aposento de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico narra com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas ignoram ou que nelas trabalha de modo imperfeito e secreto: a loteria. Não indaguei sua história; sei que os magos não conseguem chegar a um acordo; sei de seus poderosos propósitos o que pode saber da lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou de meu coração. Agora, longe de Babilônia e de seus queridos costumes, penso com certo assombro na loteria e nas conjeturas blasfemas que no crepúsculo murmuram os homens velados.

Meu pai contava que antigamente – questão de séculos, de anos? – a loteria em Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Contava (ignoro se com verdade) que os barbeiros vendiam, por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra corroboração da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como vêem os senhores.

Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. Sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém ensaiou uma reforma: a interpolação de uns poucos números adversos no censo de números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados corriam o duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não tentava a sorte era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo, esse desdém justificado duplicou-se. Era desprezado o que não jogava, mas também eram desprezados os perdedores que abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se faltasse nas caixas a importância quase total das multas. Deu início a uma demanda contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: seu valor eclesiástico, metafísico.

Pouco depois, os relatórios dos sorteios omitiram as enumerações de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase desapercebido em seu tempo, foi de importância capital. Foi o primeiro aparecimento na loteria de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos.

Ninguém ignora que o povo de Babilônia é muito devotado à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que os números de sorte se computassem em redondas moedas e os infausto sem dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse de moedas nem sempre determina a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais
diretas.

Outra inquietação propagava-se nos bairros mais humildes. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual da loteria inspirou uma indignada agitação, cuja memória não apagaram os anos. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma etapa histórica necessária... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio o fez credor a que lhe queimassem a língua. O código fixava essa mesma pena para quem roubasse um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, em sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o acaso... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica impôs finalmente sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente seus fins generosos. Em primeiro lugar, obteve que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era necessária, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segundo lugar, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre automaticamente participava dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus a cada sessenta noites e que determinavam seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio de magos ou a detenção de um inimigo (notório ou íntimo) ou o encontrar, na pacífica treva do quarto, a mulher que começa a inquietar-nos ou que não esperávamos rever; uma jogada adversa: a mutilação, a variada infâmia, a morte. Às vezes, um único fato – o grosseiro assassinato de C, a apoteose misteriosa de B – era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram (e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, o conhecimento de que certas felicidades eram simples obra do acaso teria diminuído sua virtude; para evitar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Seus passos, seus manejos, eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, segundo opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses lugares. Um arquivo alfabético recolhia essas informações de variável veracidade.

Inacreditavelmente, não faltaram murmúrios. A Companhia, com sua discrição habitual, não respondeu diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa obra doutrinal observava que a loteria é uma interpolação do acaso na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é corroborá-lo. Observava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de consultá-los), funcionavam sem garantia oficial.

Essa declaração apaziguou as inquietações públicas. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações
da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nas de que a nave está por zarpar; mas tratarei de explicá-lo.

Por inverossímil que pareça, ninguém ensaiara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio não é especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes sua vida, sua esperança, seu terror pânico, mas não lhe ocorre investigar suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei inspirou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De alguma delas nasceu a conjetura seguinte: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não apenas em uma? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulos tão justos provocaram, por fim, uma considerável reforma, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que tentarei resumir, embora de modo simbólico.

Imaginemos um primeiro sorteio, que decreta a morte de um homem. Para seu cumprimento procede-se a outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores, quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do verdugo, dois podem substituir a ordem adversa por uma ordem feliz (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará a morte (isto é, torná-la-á infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade, o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam em outras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; na realidade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a tartaruga. Essa infinitude condiz de maneira admirável com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que adoram os platônicos... Algum eco disforme de nossos ritos parece ter retumbado no Timbre: Ello Lamprídio, na Vida de Antonino Heliogábalo, conta que esse imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de maneira que um recebia dez libras de ouro e outro, dez moscas, dez marmotas, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo educou-se na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.

Também há sorteios impessoais, de propósito indefinido; um decreta que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro; outro, que a cada século se retire (ou se acrescente) um grão de areia dos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes, terríveis.

Sob o influxo benfeitor da Companhia, nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não se assombrará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, nesta apressada exposição, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, alguma misteriosa monotonia... Nossos historiadores, que são os mais perspicazes do orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; diz-se que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem certa dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem alguma divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de interpolar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta.

A Companhia, com modéstia divina, elude toda publicidade. Seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que dá continuamente (quiçá incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Ademais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de repente – estrangula a mulher que dorme a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de conjeturas. Uma insinua abominavelmente que faz já séculos que não existe a Companhia e que a sacra desordem de nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra a julga eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando – último deus aniquile o mundo. Outra declara que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem – do pó, nos entressonhos da alvorada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.
























































EXAME DA OBRA DE HERBERT QUAIN




Herbert Quain morreu em Roscommon; comprovei sem assombro que o Suplemento Literário do Times apenas lhe concede meia coluna de piedade necrológica, na qual não há epíteto laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio. O Spectator, em seu número a respeito, é sem dúvida menos lacônico e talvez mais cordial, contudo equipara o primeiro livro de Quain – The God of the Labyrinth – a um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein: evocações que ninguém julgará inevitáveis e que não teriam alegrado o defunto. Este, de resto, nunca se acreditou genial; nem sequer nas noites peripatéticas de conversa literária, nas quais o homem que já esgotou os jornais brinca invariavelmente de ser Monsieur Teste ou o doutor Samuel Johnson... Percebia, com toda lucidez, a condição experimental de seus livros: admiráveis talvez pela novidade e por certa lacônica probidade, mas não pelas virtudes da paixão. "Sou como as odes de Cowley", escreveu-me de Longford em seis de março de 1939. "Não pertenço à arte, senão à mera história da arte." Não havia, para ele, disciplina inferior à história.

Repeti uma modéstia de Herbert Quain; naturalmente, essa modéstia não esgota seu pensamento. Flaubert e Henry James acostumaram-nos a supor que as obras de arte são infreqüentes e de realização penosa; o século XVI (recordemos a Viagem do Parnaso, recordemos o destino de Shakespeare) não compartilhava dessa desconsolada opinião. Herbert Quain, tampouco. Parecia-lhe que a boa literatura era bastante comum e que são poucos os diálogos de rua que não a atingem. Parecia-lhe também que o fato estético não pode prescindir de certo elemento de assombro e que assombrar-se de memória é difícil. Deplorava com sorridente sinceridade "a servil e obstinada conservação" de livros pretéritos... Ignoro se sua vaga teoria é justificável; sei que seus livros desejam em demasia o assombro.

Lamento ter emprestado a uma dama, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Declarei que se trata de um romance policial: The God of the Labyrinth; posso agradecer que o editor colocou-o à venda nos últimos dias de novembro de 1933. Em princípios de dezembro, as agradáveis e árduas involuções do Siamese Twin Mystery atarefaram Londres e Nova York; prefiro atribuir a essa coincidência arruinada o fracasso do romance de nosso amigo. Do mesmo modo (quero ser totalmente sincero) à sua elaboração deficiente e à vã e frígida pompa de certas descrições do mar. Depois de sete anos, para mim torna-se impossível recuperar os pormenores da ação; eis aqui seu plano; tal como agora o empobrece (tal como agora o purifica) meu esquecimento. Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermediárias, uma solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo que contém esta frase: "Todos acreditaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora casual". Essa frase deixa entender que a solução é errônea. O leitor, inquieto, revê os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive.

Ainda mais heterodoxo é o "romance regressivo, ramificado" April March, cuja terceira (e única) parte é de 1936. Ninguém, ao julgar esse romance, nega-se a descobrir que é um jogo; é lícito recordar que o autor nunca o considerou outra coisa. "Reivindico para essa obra", escutei-o dizer, "os aspectos essenciais de todo jogo: a simetria, as leis arbitrárias, o tédio." Até o nome é um débil calembour: não significa "Marcha de Abril", mas literalmente "Abril Março". Alguém percebeu em suas páginas um eco das doutrinas de Dunne; o prólogo de Quain prefere evocar aquele inverso mundo de Bradley, no qual a morte precede ao nascimento e a cicatriz à ferida e a ferida ao golpe (Appearance and Reality, 1897, página 215).1 Os mundos que propõe April March não são regressivos; mas sim a maneira de historiá-los. Regressiva e ramificada, como já disse. Treze capítulos integram a obra. O primeiro relata o ambíguo diálogo de alguns desconhecidos numa estação. O segundo conta os acontecimentos da véspera do primeiro. O terceiro, também retrógrado, conta os acontecimentos de outra possível véspera do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma dessas três vésperas (que rigorosamente se excluem) ramifica-se em outras três vésperas, de índole muito diversa. A obra total compõe-se, pois, de nove romances; cada romance, de três longos capítulos. (O primeiro é comum a todos eles, naturalmente.) Desses romances, um é de caráter simbólico; outro, sobrenatural; outro, policial; outro, psicológico; outro, comunista; outro, anticomunista, etc. Talvez um esquema ajude a compreender a estrutura.



Dessa estrutura cabe repetir o que declarou Schopenhauer das doze categorias kantianas: sacrifica tudo a um furor simétrico. Previsivelmente, uma das nove narrativas é

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1 Ai da erudição de Herbert Quain, ai da página 215 de um livro de 1897. Um interlocutor do Político, de Platão, já havia descrito regressão semelhante: a dos Filhos da Terra ou Autóctones que, submetidos ao influxo de uma rotação inversa do cosmos, passaram da velhice à maturidade, da maturidade à infância, da infância ao desaparecimento e ao nada. Também Teopompo, em sua Filípica, fala de certas frutas boreais que originam em quem as come o mesmo processo retrógrado... Mais interessante é imaginar uma inversão do Tempo: um estado no qual recordássemos o futuro e ignorássemos, ou apenas pressentíssemos, o passado. Cf. o canto décimo do Inferno, versos 97-1O2, em que se comparam a visão profética e a presbitia.

indigna de Quain; o melhor não é o que originariamente ideou, o x 4; é o de natureza fantástica, o x 9. Outros estão deformados por brincadeiras lânguidas e por pseudoprecisões inúteis. Quem os lê em ordem cronológica (verbi grada: x 3, y 1, z) perde o sabor peculiar do estranho livro. Duas narrativas – o x 7, o x 8 – carecem de valor individual; a justaposição dá-lhes eficácia... Não sei se devo lembrar que já publicado April March, Quain arrependeu-se da ordem ternária e predisse que os homens que o imitassem optariam pela binária


e os demiurgos e os deuses pela infinita: infinitas histórias, infinitamente ramificadas.

Muito diversa, mas também retrospectiva, é a comédia heróica em dois atos The Secret Mirror. Nas obras já resenhadas, a complexidade formal havia entorpecido a imaginação do autor; aqui, sua evolução é mais livre. O primeiro ato (o mais extenso) ocorre na casa de campo do general Thrale, C.I.E., perto de Melton Mowbray. O invisível centro da trama é Miss Ulrica Thrale, a primogênita do general. Por meio de certo diálogo a entrevemos, amazona e altiva; suspeitamos que não costuma visitar a literatura; os jornais anunciam seu noivado com o duque de Rutland; os jornais desmentem o noivado. Adora-a um autor dramático, Wilfred Quarles; certa vez, ela lhe concedeu um distraído beijo. Os personagens são de vasta fortuna e ascendências tradicionais; os afetos, nobres, ainda que veementes; o diálogo parece vacilar entre a mera vaniloqüência de Bulwer-Lytton e os epigramas de Wilde ou de Mr. Philip Guedalla. Há um rouxinol e uma noite; há um duelo secreto num terraço. (Quase totalmente imperceptíveis, há certa curiosa contradição, há pormenores sórdidos.) Os personagens do primeiro ato reaparecem no segundo – com outros nomes. O "autor dramático" Wilfred Quarles é um corretor de Liverpool; seu verdadeiro nome, John William Quigley. Miss Thrale existe; Quigley jamais a viu, porém, morbidamente, coleciona suas fotografias do Tatler ou do Sketch. Quigley é autor do primeiro ato. A inverossímil ou improvável "casa de campo" é a pensão judaico-irlandesa em que vive, transfigurada e magnificada por ele... A trama dos atos é paralela, mas no segundo tudo é ligeiramente horrível, tudo se posterga ou se frustra. Quando The Secret Mirror estreou, a crítica pronunciou os nomes de Freud e de Julien Green. A menção do primeiro parece-me totalmente injustificada.

A fama divulgou que The Secret Mirror era uma comédia freudiana; essa interpretação propícia (e falaz) determinou seu êxito. Infelizmente, Quain já completara os quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava docemente a uma mudança de regime. Resolveu desforrar-se. Em fins de 1939, publicou Statements, quem sabe o mais original de seus livros, sem dúvida o menos elogiado e o mais secreto. Quain costumava argumentar que os leitores eram espécie já extinta. "Não há europeu (raciocinava) que não seja escritor, em potência ou em ato." Também afirmava que das diversas felicidades que pode ministrar a literatura, a mais alta era a invenção. Já que nem todos são capazes dessa felicidade, muitos terão de contentar-se com simulacros. Para esses "imperfeitos escritores", cujo nome é legião, Quain redigiu as oito narrativas do livro Statements. Cada uma delas prefigura ou promete um bom argumento, voluntariamente frustrado pelo autor. Uma – não a melhor – insinua dois argumentos. O leitor, distraído pela vaidade, acredita tê-las inventado. Da terceira, The Rose of Yesterday, cometi a ingenuidade de extrair "As ruínas circulares", que é um dos contos do livro O Jardim de Veredas que se Bifurcam.

1941

































A BIBLIOTECA DE BABEL

By this art you may contemplate the
variation of the 23 letters...

The Anatamy of Melancholy, part. 2,
sect. II, mem. 1V.


O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. A esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.

Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: "A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível".

A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da história); quero rememorar alguns axiomas.

O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.

O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco.1 Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjetura decifrara: a natureza disforme e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha até a última. Outro (muito consultado nesta área) é um simples labirinto de letras, mas a página penúltima diz "Oh, tempo tuas pirâmides". Já se sabe: para uma linha razoável ou uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos, não é completamente falaz.)

Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que noventa andares mais acima é incompreensível. Tudo isso, repito-o, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na subseqüente e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjetura foi aceita, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.

Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superio2 deparou com um livro tão confuso como os outros, porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também

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1 O manuscrito original não contém algarismos ou maiúsculas. A pontuação foi limitada à vírgula e ao ponto. Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do Editor.)

decifrou-se o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: "Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos". Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de profecia, que para sempre vindicavam os atos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, premidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos túneis, morriam despenhados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas os que procuravam não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero.

Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verossímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos... Existem investigadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua função: chegam sempre estafados; falam de
uma escada sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; às vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, à procura de palavras

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2 Antes, em cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as enfermidades pulmonares destruíram essa proporção. Lembrança de indizível melancolia: às vezes, viajei muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.


infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.

À desmedida esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.

Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu furor higiênico, ascético, deve-se a insensata perda de milhões de livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os "tesouros" destruídos por seu frenesi negligenciam dois fatos notórios. Um: a Biblioteca é tão imensa que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as conseqüências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses fanáticos provocaram. Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.

Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus. Na linguagem desta área persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram à procura de Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito... Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos. Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total; 3 rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja há
mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca se justifique.

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3 Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, ainda que, sem dúvida, haja livros que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.

Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de "a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Essas palavras, que não apenas denunciam a desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém nem um único disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trovão Penteado, e outro A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres

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que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Você, que me lê, tem certeza de entender minha linguagem?)

A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter mencionado os suicídios, cada ano mais freqüentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.

Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança. 4

Mar del Plata,1941.








































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4 Letizia Álvarez de Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princípios do século XVII, disse que todo corpo sólido é superposição de um número infinito de planos) O manuseio desse vade-mecum sedoso não seria cômodo: cada folha aparente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.

O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM


A Victoria Ocampo


Na página 242 da História da Guerra Européia, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planejada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve de ser postergada até a manhã do dia vinte e nove. As chuvas torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) provocaram essa delonga – nada significativa, por certo. A seguinte declaração, ditada, relida e assinada pelo doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao, lança insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais.

"...e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia respondido em alemão. Era a do capitão Richard Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e – mas isso parecia muito secundário, ou assim devia parecer-me – também de nossas vidas. Queria dizer que Runeberg tinha sido detido, ou assassinado.1 Antes que declinasse o sol desse dia, eu sofreria a mesma sorte. Madden era implacável. Ou melhor, estava obrigado a ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de tibieza e talvez de traição, como não ia abraçar e agradecer esse milagroso favor: a descoberta, a captura, quem sabe a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi a meu quarto; absurdamente fechei a porta à chave e atirei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela mostravam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me inacreditável que esse dia sem premonições ou símbolos fosse o de minha morte implacável. Apesar de meu pai estar morto, apesar de ter sido um menino num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer? Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente acontece, acontece a mim... A quase intolerável lembrança do rosto acavalado de Madden aboliu essas divagações. Em meio a meu ódio e meu terror (no momento não me .importa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que minha. garganta anseia pela. corda), pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuísse o Segredo. O nome do exato lugar do novo parque britânico de artilharia sobre o
Ancre. Um pássaro riscou o céu cinza e cegamente o traduzi em um aeroplano e esse aeroplano em muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca, antes que a desfizesse um balaço, pudesse gritar esse nome de modo que o escutassem na Alemanha... Minha voz humana era muito pobre. Como fazê-la
chegar ao ouvido do Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e odioso, que nada sabia de

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1 Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, codinome Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola automática o portador da ordem de prisão, capitão Richard Madden. Este, em defesa própria, causou-lhe ferimentos que determinaram sua morte. (Nota do Editor)

Runeberg e de mim a não ser que estávamos em Staffordshire e que em vão esperava notícias nossas em seu árido escritório de Berlim, examinando infinitamente jornais... Disse em voz alta: "Devo fugir". Levantei-me sem ruído, numa inútil perfeição de silêncio, como se Madden já me estivesse espreitando. Algo – talvez a mera ostentação de provar que meus recursos eram nulos – fez-me revistar meus bolsos. Encontrei o que sabia que ia encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), o falso passaporte, uma coroa, dois xelins e alguns pennies, o lápis vermelho-azul, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para dar-me coragem. Pensei vagamente que um tiro de pistola pode ser ouvido bem longe. Em dez minutos meu plano estava maduro. A lista telefônica forneceu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a notícia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem.

"Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Pouco me importa um país bárbaro, que me obrigou à abjeção de ser um espião. Ademais, sei de um homem da Inglaterra – um homem modesto – que para mim não representa menos que Goethe... Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe... Fiz isso porque sentia que o Chefe menosprezava os de minha raça – os inumeráveis antepassados que em mim confluem. Eu queria provar-lhe que um amarelo podia salvar seus exércitos. De resto, eu devia fugir do capitão. Suas mãos e sua voz podiam bater-me à porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranqüila e saí. A estação não distava muito da casa, mas julguei preferível pegar um carro. Deduzi que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta eu me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao condutor que se detivesse um pouco antes da entrada principal. Desci com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas tirei uma passagem para uma estação mais distante. O trem saía dentro de pouquíssimos minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o próximo partia às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: recordo uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia com fervor os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. Os vagões, por fim, arrancaram. Um homem que reconheci correu em vão até o limite da plataforma. Era o capitão Richard Madden. Aniquilado, trêmulo, encolhi-me em outra ponta da poltrona, longe da temida janela.

"Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse a mim mesmo que já estava marcado meu duelo e que eu ganhara o primeiro assalto, ao iludir, ainda que por quarenta minutos, ainda que por um favor do acaso, o ataque de meu adversário. Deduzi que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Deduzi que não era mínima, já que sem essa diferença preciosa que o horário de trens me oferecia, eu estaria no cárcere ou morto. Deduzi (não menos sofisticamente) que minha felicidade covarde provava que eu era homem capaz de levar a bom termo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará a cada dia a tarefas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: "O executor de uma tarefa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável como o passado". Assim procedi, enquanto meus olhos de homem já morto registravam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a difusão da noite. O trem corria com doçura, entre freixos. Deteve-se, quase ao meio do campo. Ninguém gritou o nome da estação. Ashgrove?" – perguntei a uns meninos na plataforma. Ashgrove ; responderam. Desci. "Uma lâmpada iluminava a plataforma, mas os rostos dos meninos ficavam na zona de sombra. Um me perguntou: "O senhor vai à casa do doutor Stephen Albert?" Sem aguardar resposta, outro disse: "A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perderá se tornar esse caminho à esquerda e se em cada encruzilhada do caminho dobrar à esquerda".
Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era de terra elementar, no alto confundiam-se os ramos, a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.

"Por um instante, pensei que Richard Madden havia de algum modo penetrado em minhas desesperadas intenções. Logo compreendi que isso era impossível. O conselho de sempre dobrar à esquerda lembrou-me que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Alguma coisa entendo de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Ts'ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens. Treze anos dedicou a esses heterogêneos trabalhos, porém a mão de um forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém encontrou o labirinto. Sob árvores inglesas meditei sobre esse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o apagado por arrozais ou debaixo da água, imaginei-o infinito, não somente de quiosques oitavados e de sendas que voltam, mas sim de rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas ilusórias imagens, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por tempo indeterminado, com percepção abstrata do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre as já confusas pradarias. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, turvada de folhas e de distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei, assim, a um alto portão enferrujado. Entre as grades decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi, de repente, duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase inacreditável: a música vinha do pavilhão, a música era chinesa. Por isso eu a aceitara com plenitude, sem prestar-lhe atenção. Não recordo se havia uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua crepitação da música prosseguiu.

"Mas do fundo da íntima casa uma lanterna se aproximava: uma lanterna que os troncos riscavam e por instantes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos tambores e a cor da lua. Um homem alto a trazia. Não vi seu rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente em meu idioma:

" – Vejo que o piedoso Hsi Pêng se empenha em corrigir minha solidão. O senhor sem dúvida desejará ver o jardim?

"Reconheci o nome de um de nossos cônsules e repeti desconcertado:

" – O jardim?

" – O jardim de veredas que se bifurcam.

"Alguma coisa se agitou em minha lembrança e pronunciei com incompreensível segurança:

" – O jardim de meu antepassado Ts'ui Pen.

" – Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Entre.

"A úmida vereda ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca chegou a ser publicada. O disco do gramofone girava perto de uma fênix de bronze. Lembro-me também de um vaso rosa da família e outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia...

"Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba cinzenta. Algo de sacerdote havia nele e também de marítimo; depois me contou que fora missionário em Tientsin "antes de aspirar a sinólogo".

"Sentamo-nos; eu num comprido e baixo divã; ele de costas para a janela e para um alto relógio circular. Calculei que antes de uma hora não chegaria meu perseguidor,
Richard Madden. Minha determinação irrevogável podia esperar.

" – Assombroso destino o de Ts'ui Pen – disse Stephen Albert. – Governador de sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros só encontraram manuscritos caóticos. A família, como talvez o senhor não ignore, quis adjudicá-los ao fogo; mas seu testamenteiro – um monge taoísta ou budista – insistiu na publicação.

" – Os do sangue de Ts'ui Pen – respondi – continuamos execrando esse monge. Essa publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examinei-o certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto ao outro projeto de Ts'ui Pen, seu Labirinto...

" – Aqui está o Labirinto – disse indicando-me uma alta escrivaninha laqueada.

" – Um labirinto de marfim! – exclamei. – Um labirinto mínimo...

" – Um labirinto de símbolos – corrigiu. – Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi-me oferecido revelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Ts'ui Pen teria dito uma vez: "Retiro-me para escrever um livro". E outra: "Retiro-me para construir um labirinto". Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um único objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; o fato pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Ts'ui Pen morreu; ninguém, nas dilatadas terras que foram suas, deu com o labirinto; a confusão do romance sugeriu-me que esse era o labirinto. Duas circunstâncias deram-me a exata solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts'ui Pen se propusera um labirinto que fosse– estritamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.

"Albert levantou-se. Deu-me, por uns instantes, as costas; abriu a gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel antes carmesim; agora rosado e tênue e quadriculado. Era justo o renome caligráfico de Ts'ui Pen. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem de meu sangue: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam". Devolvi em silêncio a folha. Albert prosseguiu:

" – Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjeturei outro procedimento que o de um volume cíclico, circular.
Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma Noites, quando a rainha Scherazade (por uma mágica distração do copista) põe-se a contar textualmente a história das Mil e Uma Noites, com risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai a filho, à qual cada novo indivíduo adicionasse um capítulo ou nela corrigisse com piedoso cuidado a página dos ascendentes. Essas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, ainda que de modo distante, aos contraditórios capítulos de Ts'ui Pen. Nessa perplexidade, remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é natural, na frase: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam". Quase de imediato compreendi; o jardim de veredas que se bifurcam era o romance caótico; a frase "vários futuros (não a todos)" sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts'ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang decide matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis: Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts'ui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, as veredas desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas.

"Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo inquebrantável e ainda imortal. Leu com lenta precisão duas versões de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra o faz menosprezar a vida e consegue facilmente a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio onde há uma festa; a resplandecente batalha se lhes parece uma continuação da festa e obtêm a vitória. Eu escutava com digna veneração essas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de terem sido ideadas pelo meu sangue e que um homem de um império remoto as restituísse a mim, no curso de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental.

Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada versão como um mandamento secreto: "Assim combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer".

"A partir desse instante, senti a meu redor e na escuridão de meu corpo uma invisível, intangível pululação. Não a pululação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos, porém uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert continuou:

" – Não acredito que seu ilustre antepassado brincasse ociosamente com as variantes. Não julgo verossímil que sacrificasse treze anos à infinita execução de um experimento retórico. Em seu país, o romance é gênero subalterno; naquele tempo era gênero desprezível. Ts'ui Pen foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou um simples romancista. O testemunho de seus contemporâneos proclama – e fartamente o confirma sua vida – suas inclinações metafísicas, místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte de seu romance. Sei que, de todos os problemas, nenhum o inquietou e ocupou como o abismal problema do tempo. Pois bem, esse é o único problema que não figura nas páginas do Jardim. Nem sequer emprega a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?

"Propus várias soluções: todas, insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:

" – Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?

"Refleti um momento e respondi:

" – A palavra xadrez.

" – Exatamente – disse Albert –, O jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção de seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. E o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts'ui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma única vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim de veredas que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts'ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em outro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.

" – Em todos – articulei não sem certo tremor – agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts'ui Pen.

" – Não em todos – murmurou com um sorriso. – O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.

"Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de invisíveis pessoas. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o tênue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pela vereda e era o capitão Richard Madden.

" – O futuro já existe – respondi –, mas eu sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?

"Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu havia preparado o revólver. Disparei com o máximo cuidado: Albert caiu, sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: fulminante.

"O resto é irreal, insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da cidade que devem
atacar. Ontem a bombardearam; li isso nos mesmos jornais em que apresentaram à Inglaterra o enigma de que o sábio sinólogo Stephen Albert morrera assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma. Sabe que meu problema era indicar (por intermédio do estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço."


























ARTIFÍCIOS (1944)
























PRÓLOGO




Embora de elaboração menos tosca, os coretos deste livro não diferem dos que formam o anterior. Dois, talvez, permitam uma menção atenta: "A morte e a bússola", "Funes, o memorioso". O segundo é uma vasta metáfora da insônia. O primeiro, em que pese os nomes alemães ou escandinavos, ocorre em uma Buenos Aires de sonhos: a sinuosa rue de Toulon é o Paseo de Julio; Triste-le-Roy, o hotel onde Herbert Ashe recebeu, e talvez não leu, o décimo primeiro tomo de uma enciclopédia ilusória. Já redigida essa ficção, pensei na conveniência de ampliar o tempo e o espaço que abarca: a vingança poderia ser herdada; os prazos poderiam computar-se em anos, quem sabe em séculos; a primeira letra do Nome poderia ser articulada na Islândia; a segunda, no México; a terceira, no Industão. Acrescentarei que os Hassidim incluíram santos e que o sacrifício de quatro vidas para obter as quatro letras que impuseram o Nome é uma fantasia que me ditou a forma de meu conto?


Pós-escrito de 1956. – Três contos adicionei à série: "O Sul", "A seita da Fênix", "O fim". Com exceção de um personagem – Recabarren – cuja imobilidade e passividade servem de contraste, nada ou quase nada é invenção minha no decurso breve do último; tudo o que há nele está implícito num livro famoso e fui o primeiro a desentranhá-lo ou, pelo menos, a declará-lo. Na alegoria da Fênix impus a mim mesmo o problema de sugerir um fato comum – o Segredo – de modo vacilante e gradual, que resultasse, ao final, inequívoco; não sei até onde a sorte me acompanhou. De "O Sul", que é talvez meu melhor conto, basta-me prevenir que é possível lê-lo como direta narrativa de fatos novelescos e também de outra maneira.

Schopenhauer, De Quincey, Stevenson, Mauthner, Shaw, Chesterton, Léon Bloy formam o consenso heterogêneo dos autores que continuamente releio. Na fantasia cristológica intitulada "Três versões de Judas", creio perceber o remoto influxo do último.

J. L. B.

Buenos Aires, 29 de agosto de 1944.










FUNES, O MEMORIOSO




Recordo-o (não tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem na terra teve direito e esse homem morreu) com uma escura flor-da-paixão na mão, vendo-o como ninguém o viu, embora o avistasse do crepúsculo do dia até o da noite, toda uma vida. Recordo-o, o rosto taciturno e indiático e singularmente distante, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos afiladas de trançador. Recordo perto dessas mãos um chimarrão, com as armas da Banda Oriental; recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal do antigo homem dos subúrbios, sem os silvos italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram sobre ele escrevam; meu testemunho será talvez o mais breve e sem dúvida o mais pobre, mas não o menos imparcial do volume que os senhores editarão. Minha deplorável condição de argentino me impedirá de incorrer no ditirambo – gênero obrigatório no Uruguai, quando o tema é um uruguaio. Literato, cafajeste, portenho; Funes não disse essas injuriosas palavras, mas estou bastante consciente de que eu representava para ele essas desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era precursor dos super-homens, "um Zaratustra xucro e vernáculo"; não discuto isso, contudo não convém esquecer que era também um compadrito de Fray Bentos, com certas incuráveis limitações.

Minha primeira lembrança de Funes é muito perspícua. Vejo-o num entardecer de março ou fevereiro do ano oitenta e quatro. Meu pai, esse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava eu com meu primo Bernardo Haedo da estância de São Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância de minha felicidade. Depois de um dia bochornoso, uma enorme tormenta cor de ardósia escondera o céu. Animava-a o vento do Sul, já enlouqueciam as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreendesse num descampado a água elementar. Fizemos uma espécie de corrida com a tormenta. Entramos num beco que se aprofundava entre duas calçadas altíssimas de tijolo. Escurecera, de chofre; ouvi rápidos e quase secretos passos no alto; alcei os olhos e vi um rapaz que corria pela estreita e quebrada calçada como por uma estreita e quebrada parede. Lembro-me da bombacha, das alpargatas, lembro-me do cigarro no duro rosto, contra o nuvarrão já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: "Que horas são, Irineu?" Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: "Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco". A voz era aguda, zombeteira.

Sou tão distraído que o diálogo que acabo de contar não me teria chamado a atenção se não o houvesse repetido meu primo, a quem estimulavam (acredito) certo orgulho local e o desejo de mostrar-se indiferente à resposta tripartida do outro.

Disse-me que o rapaz do beco era um tal Irineu Funes, mencionado por algumas excentricidades como a de não dar-se com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Acrescentou que era filho de uma lavadeira do povoado, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico da charqueada, um inglês O'Connor, e outros, um domador ou rastreador do distrito de Salto. Vivia com sua mãe, depois da chácara dos Laureies.

Nos anos oitenta e cinco e oitenta e seis, veraneamos na cidade de Montevidéu. Em oitenta e sete retornei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que o derrubara um redomão na estância de São Francisco, e que ficara aleijado, sem esperança. Lembro-me da impressão de incômoda magia que a notícia me produziu: a única vez que o vi, vínhamos a cavalo de São Francisco e ele andava num lugar alto; o fato, na boca de meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia do catre, postos os olhos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Nos entardeceres, permitia que o levassem à janela. Portava a soberba até o ponto de simular que fora benéfico o golpe que o tinha fulminado... Duas vezes o vi atrás da grade, que relembrava toscamente sua condição de eterno prisioneiro: uma, imóvel, com os olhos fechados; outra, também imóvel, absorto na contemplação de um oloroso galho de santonina.

Não sem alguma vanglória eu iniciara naquele tempo o estudo metódico do latim. Minha mala incluía o De Viris Illustribus de Lhomond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis Historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) minhas módicas virtudes de latinista. Tudo se propala num povoado pequeno; Irineu, em seu rancho dos arrabaldes, não tardou a inteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava nosso encontro, infelizmente fugaz, "do dia sete de fevereiro do ano oitenta e quatro", ponderava os gloriosos serviços que Dom Gregório Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "prestara às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e solicitava-me o empréstimo de alguns dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa inteligência do texto original, porque ainda ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, temi naturalmente uma brincadeira. Meus primos asseguraram-me que não, que eram coisas de Irineu. Não soube se atribuir a descaramento, a ignorância ou a estupidez a idéia de que o árduo latim não requeria mais instrumento que um dicionário; para desiludi-lo completamente mandei-lhe o Gradus ad Parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.

Em catorze de fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, porque meu pai não estava "nada bem". Deus me perdoe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar minha dor, fingindo um viril estoicismo, talvez me distraíssem de toda possibilidade de sofrimento. Ao fazer a mala, observei que me faltavam o Gradus e o primeiro volume da Naturalis Historia. O "Saturno" zarpava no dia seguinte, pela manhã; nessa noite, depois de jantar, encaminhei-me à casa de Funes. Surpreendeu-me muito que a noite fosse não menos pesada que o dia.

No asseado rancho, a mãe de Funes me recebeu.

Disse-me que Irineu estava no quarto do fundo e que não estranhasse encontrá-lo às escuras, porque Irineu costumava passar as horas mortas sem acender a vela. Atravessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pôde parecer-me completa. Ouvi de repente a alta e zombeteira voz de Irineu. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha da treva) articulava com moroso deleite um discurso ou prece ou encantação. Ressoaram as sílabas romanas no pátio de terra; meu temor as acreditava indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do vigésimo quarto capítulo do livro sétimo da Naturalis Historia. A matéria desse capítulo é a memória; as palavras últimas foram ut nihil non üsdem verbis redderetur auditum.

Sem a menor mudança de voz, Irineu disse-me que passasse. Estava no catre, fumando. Parece-me que não vi seu rosto até o amanhecer; creio rememorar a faísca momentânea do cigarro. O quarto cheirava vagamente a umidade. Sentei-me; repeti a história do telegrama e da enfermidade de meu pai.

Chego, agora, ao mais difícil ponto de minha narrativa. Esta (bom é que já o saiba o leitor) não tem outro argumento que esse diálogo de há já meio século. Não tentarei reproduzir suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Irineu. O estilo indireto é remoto e fraco; sei que sacrifico a eficácia de meu relato; que meus leitores imaginem os entrecortados períodos que me angustiaram nessa noite.

Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma única vez. Com evidente boa-fé maravilhou-se de que tais casos maravilhassem. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o derrubou o azulego ele fora o que são todos os cristãos: um cego, um surdo, um abobado, um desmemoriado. (Tentei lembrar-lhe sua percepção exata do tempo, sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis.

Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro. Disse-me: "Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo". E também: "Meus sonhos são como a vigília de vocês". E, igualmente, próximo do amanhecer: "Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixos". Uma circunferência num quadro-negro, um triângulo retângulo, um losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro, com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável e com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto num longo velório. Não sei quantas estrelas via no céu.

Essas coisas me falou; nem então nem depois as coloquei em dúvida.. Naquele tempo não havia cinemas ou fonógrafos; é, não obstante, inverossímil e até inacreditável que ninguém fizesse uma experiência com Funes. O certo é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos profundamente que somos imortais e que, cedo ou tarde, todo homem realizará todas as coisas e saberá tudo.

A voz de Funes, da escuridão, prosseguia falando.

Disse-me que por volta de 1886 projetara um sistema original de numeração e que em pouquíssimos dias excedera o vinte e quatro mil. Não o tinha escrito, porque o pensado uma única vez já não se lhe podia apagar. Seu primeiro estímulo, acredito, foi o desagrado de que os trinta e três orientais requereram dois signos e três palavras, em vez de uma única palavra e um único signo. Aplicou depois esse disparatado princípio aos demais números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olimar, enxofre, os bastos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um sinal particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Tentei explicar-lhe que essa rapsódia de vozes inconexas era exatamente o contrário de um sistema de numeração. Disse-lhe que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números" O Negro Timóteo ou manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis entender-me.

Locke, no século XVII, postulou (e reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou certa vez um idioma análogo, mas o rejeitou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambíguo. De fato, Funes não só recordava cada folha de cada árvore de cada monte, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria depois por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não teria acabado ainda de classificar todas as recordações da infância.

Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (Repito que a menos importante de suas lembranças era mais minuciosa e mais viva que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico.) A leste, num trecho não demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção voltava o rosto para dormir. Também costumava imaginar-se no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente.

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.

A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi o rosto da voz que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis.

Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

1942





























































A FORMA DA ESPADA




Cruzava-lhe o rosto uma cicatriz vingativa: um arco cinzento e quase perfeito que de um lado maltratava a têmpora e do outro o pômulo. Seu nome verdadeiro não importa; todos em Tacuarembó chamavam-no o Inglês de La Colorada. O proprietário desses campos, Cardoso, não desejava vendê-los; ouvi que o Inglês recorreu a um imprevisível argumento: confiou-lhe a história secreta da cicatriz. O Inglês vinha da fronteira, do Rio Grande do Sul; não faltou quem dissesse que no Brasil fora contrabandista. Os campos estavam empastados; as aguadas, amargas; o Inglês, para corrigir essas deficiências, trabalhou ao lado de seus peões. Dizem que era severo até a crueldade, mas escrupulosamente justo. Dizem também que era beberrão: algumas vezes ao ano encerrava-se no quarto do terraço e emergia após dois ou três dias, como de uma batalha ou de uma vertigem, pálido, trêmulo, sobressaltado e tão autoritário como antes. Recordo os olhos glaciais, a enérgica magreza, o bigode cinzento. Não se dava com ninguém; é verdade que seu espanhol era rudimentar, abrasileirado. Fora de alguma carta comercial ou de algum folheto, não recebia correspondência.

A última vez que percorri os distritos do Norte, uma enchente do arroio Caraguatá obrigou-me a pernoitar em La Colorada. Em poucos minutos acreditei perceber que minha aparição era inoportuna; tentei congraçar-me com o Inglês; recorri à menos perspicaz das paixões: o patriotismo. Falei que era invencível um país com o espírito da Inglaterra. Meu interlocutor assentiu, acrescentou, porém, com um sorriso que ele não era inglês. Era irlandês, de Dungarvan. Dito isto se deteve, como se houvesse revelado um segredo.

Saímos, depois de comer, a contemplar o céu. Tinha desanuviado, mas, detrás das coxilhas, o Sul, fendido e riscado de relâmpagos, tramava outra tormenta. No desmantelado refeitório, o peão que tinha servido o jantar trouxe uma garrafa de rum. Bebemos demoradamente, em silêncio.

Não sei que horas seriam quando percebi que eu estava bêbado; não sei que inspiração ou que exultação ou que tédio fez-me mencionar a cicatriz. O rosto do Inglês se desfigurou; durante alguns segundos pensei que ia expulsar-me da casa. Por fim, disse-me com sua voz habitual:

– Contar-lhe-ei a história de minha ferida sob uma condição: a de não mitigar nenhum opróbrio, nenhuma circunstância de infâmia.

Assenti. Esta é a história que narrou, alternando o inglês com o espanhol, e ainda com o português:

– Por volta de 1922, numa das cidades de Connaught, eu era um dos muitos que conspiravam pela independência da Irlanda. De meus companheiros, alguns sobrevivem dedicados a tarefas pacíficas; outros, paradoxalmente, batem-se nos mares ou no deserto, sob as cores inglesas; outro, o que mais valia, morreu no pátio de um quartel, ao amanhecer, fuzilado por homens sonolentos; outros (não os mais infelizes) deram com seu destino nas anônimas e quase secretas batalhas da guerra civil. Éramos republicanos, católicos; éramos, suspeito-o, românticos. A Irlanda não somente significava para nós o futuro utópico e o intolerável presente; era uma amarga e carinhosa mitologia, era as torres circulares e os lodaçais vermelhos, era o repúdio de Parnell e as imensas epopéias que cantam o roubo de touros que em outra encarnação foram heróis e em outras peixes e montanhas... Num entardecer que não esquecerei, chegou-nos um afiliado de Munster: um tal John Vincent Moon.

"Tinha apenas vinte anos. Era ao mesmo tempo magro e flácido; dava a incômoda impressão de ser invertebrado. Percorrera com fervor e vaidade quase todas as páginas de não sei que manual comunista; o materialismo dialético servia-lhe para fechar qualquer discussão. As razões que pode ter um homem para abominar outro ou para estimá-lo são infinitas: Moon reduzia a história universal a um sórdido conflito econômico. Afirmava que a revolução está predestinada a triunfar. Disse-lhe que a um gentleman apenas podem interessar causas perdidas... Já era noite; continuamos desentendendo-nos no corredor, nas escadas, depois nas vazias ruas. Os juízos emitidos por Moon me impressionaram menos que seu inapelável tom apodíctico. O novo camarada não discutia: lançava seus ditames com desdém e com certa cólera.

"Quando alcançamos as últimas casas, um repentino tiroteio nos aturdiu. (Antes ou depois, margeamos o sombrio paredão de uma fábrica ou de um quartel.) Internamo-nos numa rua de terra; um soldado, enorme no resplendor, surgiu de uma cabana incendiada. Aos gritos mandou que nos detivéssemos. Apressei o passo; meu camarada não me seguiu. Virei-me: John Vincent Moon estava imóvel, fascinado e como eternizado pelo terror. Então voltei, derrubei de um golpe o soldado, sacudi Vincent Moon, insultei-o e ordenei-lhe que me seguisse. Tive de pegá-lo pelo braço; a paixão do medo o invalidava. Fugimos, entre a noite perfurada de incêndios. Uma descarga de fuzis alcançou-nos; uma bala roçou o ombro direito de Moon; este, enquanto fugíamos entre pinheiros, prorrompeu num débil soluço.

"Naquele outono de 1922, refugiara-me na chácara do general Berkeley. Este (a quem eu nunca havia visto) desempenhava então não sei que cargo administrativo em Bengala; o edifício tinha menos de um século, mas era deteriorado e opaco e se excedia em perplexos corredores e vãs antecâmaras. O museu e a enorme biblioteca usurpavam o andar térreo: livros controversos e incompatíveis que de algum modo são a história do século XIX; cimitarras de Nishapur, em cujos suspensos arcos de círculo pareciam perdurar o vento e a violência da batalha. Entramos (creio recordar) pelos fundos. Moon, trêmula e ressequida a boca, murmurou que os episódios da noite eram interessantes; fiz-lhe um curativo, trouxe-lhe uma xícara de chá; pude comprovar que seu "ferimento" era superficial. De repente, balbuciou com perplexidade:

– Mas você se arriscou em demasia.

"Disse-lhe que não se preocupasse. (O hábito da guerra civil impelira-me a agir como agi; além do que a prisão de um único afiliado podia comprometer nossa causa.)

"No outro dia, Moon havia recuperado o equilíbrio. Aceitou um cigarro e me submeteu a um severo interrogatório sobre os "recursos econômicos de nosso partido revolucionário". Suas perguntas eram muito lúcidas; disse-lhe (com verdade) que a situação era grave. Cerradas descargas de fuzilaria sacudiram o Sul. Disse a Moon que nos esperavam os companheiros. Meu sobretudo e meu revólver estavam em meu quarto; quando voltei, encontrei Moon estendido no sofá, com os olhos fechados. Conjeturou que tinha febre; invocou um doloroso espasmo no ombro.

"Então compreendi que sua covardia era irreparável. Roguei-lhe desajeitadamente que se cuidasse e me despedi. Envergonhava-me esse homem com medo, como se eu fosse
o covarde, não Vincent Moon. O que faz um homem é como se o fizessem todos os homens. Por isso não é injusto que uma desobediência num jardim contamine o gênero humano; por isso, não é injusto que a crucifixão de um só judeu baste para salvá-lo. Talvez Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens, Shakespeare é de alguma maneira o miserável John Vincent Moon.

"Nove dias passamos na enorme casa do general. Das agonias e luzes da guerra não direi nada: meu propósito é contar a história desta cicatriz que me ultraja. Esses nove dias, em minha lembrança, formam um único dia, salvo o penúltimo, quando os nossos irromperam num quartel e pudemos vingar exatamente os dezesseis camaradas que foram metralhados em Elphin. Eu escapava da casa pela aurora, na confusão do crepúsculo. Ao anoitecer estava de volta. Meu companheiro aguardava-me no primeiro andar: o ferimento não lhe permitia descer ao térreo. Rememoro-o com algum livro de estratégia na mão: R N. Maude ou Clausewitz. "A arma que prefiro é a artilharia", confessou-me uma noite. Inquiria nossos planos; gostava de censurá-los ou reformá-los. Também costumava denunciar "nossa deplorável base econômica"; profetizava, dogmático e sombrio, o ruinoso fim. "C'est une affaire flambée", murmurava. Para mostrar que lhe era indiferente ser um covarde físico, magnificava sua soberba mental. Assim passaram, bem ou mal, nove dias.

"No décimo, a cidade caiu definitivamente em poder dos Black and Tans. Altos cavaleiros silenciosos patrulhavam as rotas; havia cinzas e fumaça no vento; numa esquina
vi estirado um cadáver, menos tenaz em minha lembrança que um manequim no qual os soldados exercitavam interminavelmente a pontaria, no centro da praça... Eu havia saído quando o amanhecer estava no céu; antes do meio-dia voltei. Moon, na biblioteca, falava com alguém; o tom da voz fez-me compreender que falava pelo telefone. Depois ouvi meu nome; depois que eu regressaria às sete, depois a indicação de que me prendessem quando atravessasse o jardim. Meu razoável amigo estava razoavelmente vendendo-me. Ouvi-o exigir algumas garantias de segurança pessoal.

"Aqui minha história se confunde e se perde. Sei que persegui o delator através de negros corredores de pesadelo e de fundas escadas de vertigem. Moon conhecia a casa muito bem, bastante melhor que eu. Uma ou duas vezes o perdi. Encurralei-o antes que os soldados me detivessem. De uma das panóplias do general arranquei um alfanje; com essa meia-lua de aço rubriquei-lhe na cara, para sempre, uma meia-lua de sangue. Borges: a você que é um desconhecido, fiz-lhe esta confissão. Não me dói tanto seu menosprezo."

Aqui o narrador deteve-se. Notei que lhe tremiam as mãos.

– E Moon? – perguntei-lhe.

– Cobrou os dinheiros de Judas e fugiu para o Brasil. Nessa tarde, na praça, viu fuzilar um manequim por alguns bêbados.

Aguardei em vão a continuação da história. Disse-lhe por fim que prosseguisse.

Então um gemido o atravessou; então me mostrou com débil doçura a curva cicatriz esbranquiçada.

– Você não me acredita? – balbuciou. – Não vê que levo escrita no rosto a marca de minha infâmia? Narrei-lhe a história desta forma para que você a ouvisse até o fim. Denunciei o homem que me amparou: eu sou Vincent Moon. Despreze-me agora.

1942





























TEMA DO TRAIDOR E DO HERÓI


So the Platonic Year
Whirls out new right and wrong,
Whirls in the old instead;
All men are dancers and their tread
Goes to the barbarous clangour of a gong.

W. B. YEATS: The Tower.


Sob o notório influxo de Chesterton (que narra e adorna elegantes mistérios) e do conselheiro áulico Leibniz (que inventou a harmonia preestabelecida), imaginei este argumento, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, retificações, ajustes; há áreas da história que não me foram reveladas ainda; hoje, 3 de janeiro de 1944, assim a vislumbro.

A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a república de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico... Ou melhor, transcorreu, pois embora
o narrador seja contemporâneo, a história contada por ele ocorreu em meados ou nos princípios do século XIX. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824. O narrador chama-se Ryan; é bisneto do jovem, do heróico, do belo, do assassinado Fergus Kilpatrick, cujo sepulcro foi misteriosamente violado, cujo nome ilustra os versos de Browning e de Hugo, cuja estátua preside um morro cinzento entre lodaçais vermelhos.

Kilpatrick foi um conspirador, um secreto e glorioso capitão de conspiradores; à semelhança de Moisés que, da terra de Moab, divisou e não pôde pisar a terra prometida, Kilpatrick pereceu na véspera da rebelião vitoriosa que havia premeditado e sonhado. Aproxima-se a data do primeiro centenário de sua morte; as circunstâncias do crime são enigmáticas; Ryan, dedicado à redação de uma biografia do herói, descobre que o enigma ultrapassa o puramente policial. Kilpatrick foi assassinado num teatro; a polícia britânica não descobriu nunca o assassino; os historiadores declaram que esse fracasso não empana seu bom crédito, já que, talvez, o tenha mandado matar a própria polícia. Outras facetas do enigma inquietam Ryan. São de caráter cíclico: parecem repetir ou combinar fatos de remotas regiões, de remotas idades. Assim, ninguém ignora que os esbirros que examinaram o cadáver do herói acharam uma carta fechada que lhe avisava do risco de comparecer ao teatro, nessa noite; também Júlio César, ao se encaminhar ao lugar onde o aguardavam os punhais de seus amigos, recebeu uma carta que não chegou a ler, na qual
ia declarada a traição, com os nomes dos traidores. A mulher de César, Calpúrnia, viu em sonhos derrubada uma torre que lhe tinha erigido por decreto o Senado; falsos e anônimos rumores, na véspera da morte de Kilpatrick, divulgaram em todo o país o incêndio da torre circular de Kilgarvan, fato que pôde parecer um presságio, pois ele havia nascido em Kilgarvan. Esses paralelismos (e outros) da história de César e da história de um conspirador irlandês induzem Ryan a supor uma secreta forma do tempo, um desenho de linhas que se repetem. Pensa na história decimal que ideou Condorcet; nas morfologias que propuseram Hegel, Spengler e Vico; nos homens de Hesíodo, que degeneram do ouro até o ferro. Pensa na transmigração das almas, doutrina que causa horror às letras célticas e que o próprio César atribuiu aos druidas britânicos; pensa que antes de ser Fergus Kilpatrick, Fergus Kilpatrick foi Júlio César. Desses labirintos circulares, salva-o uma curiosa comprovação que depois o abisma em outros labirintos mais inextricáveis e heterogêneos: certas palavras de um mendigo que conversou com Fergus Kilpatrick no dia de sua morte foram prefiguradas por Shakespeare na tragédia de Macbeth. Que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copie a literatura é inconcebível... Ryan averigua que em 1814 James Alexander Nolan, o mais antigo dos companheiros do herói, tinha traduzido ao gaélico os principais dramas de Shakespeare; entre eles, Júlio César. Também descobre nos arquivos um artigo manuscrito de Nolan sobre os Festspiele da Suíça; vastas e errantes representações teatrais, que requerem milhares de atores e que reiteram episódios históricos nas mesmas cidades e montanhas onde ocorreram. Outro documento inédito lhe revela que, poucos dias antes do fim, Kilpatrick, presidindo o último conclave, havia firmado a sentença de morte de um traidor, cujo nome foi apagado. Essa sentença não condiz com os piedosos hábitos de Kilpatrick. Ryan investiga o assunto (essa investigação é um dos hiatos do argumento) e consegue decifrar o enigma.

Kilpatrick foi morto num teatro, mas de teatro fez também a inteira cidade, e os atores foram legião, e o drama coroado por sua morte abarcou muitos dias e muitas noites. Eis o que aconteceu:

Em 2 de agosto de 1824, reuniram-se os conspiradores. O país estava maduro para a rebelião; algo, não obstante, falhava sempre: algum traidor havia no conclave. Fergus Kilpatrick havia encomendado a James Nolan a descoberta desse traidor. Nolan executou sua tarefa: anunciou em pleno conclave que o traidor era o próprio Kilpatrick. Demonstrou com provas irrefutáveis a verdade da acusação; os conjurados condenaram à morte seu presidente. Este assinou sua própria sentença, mas implorou que seu castigo não prejudicasse a pátria.

Então Nolan concebeu um estranho projeto. A Irlanda idolatrava Kilpatrick; a mais tênue suspeita de sua vileza teria comprometido a rebelião; Nolan propôs um plano que fez da execução do traidor o instrumento para a emancipação da pátria. Sugeriu que o condenado morresse pelas mãos de um assassino desconhecido, em circunstâncias deliberadamente dramáticas, que se gravassem na imaginação popular e que apressassem a rebelião. Kilpatrick jurou colaborar nesse projeto, que lhe dava ocasião de redimir-se e que sua morte rubricaria.

Nolan, premido pelo tempo, não soube inventar inteiramente as circunstâncias da múltipla execução; teve de plagiar outro dramaturgo, o inimigo inglês William Shakespeare. Repetiu cenas de Macbeth, de Júlio César. A pública e secreta representação compreendeu vários dias. O condenado entrou em Dublin, discutiu, agiu, rezou, reprovou,
pronunciou palavras patéticas, e cada um desses atos que refletiria a glória fora prefixado por Nolan. Centenas de atores colaboraram com o protagonista; o papel de alguns foi complexo; o de outros, momentâneo. As coisas que disseram e fizeram perduram nos livros históricos, na memória apaixonada da Irlanda. Kilpatrick, arrebatado por esse minucioso destino que o redimia e que o perdia, mais de uma vez enriqueceu com atos e palavras improvisadas o texto de seu juiz. Assim foi desdobrando-se no tempo o populoso drama, até que em 6 de agosto de 1824, num palco de funerárias cortinas que prefigurava o de Lincoln, um balaço almejado entrou no peito do traidor e do herói, que mal pôde articular, entre duas efusões de repentino sangue, algumas palavras previstas.

Na obra de Nolan, as passagens imitadas de Shakespeare são as menos dramáticas; Ryan suspeita que o autor as tenha intercalado para que uma pessoa, no futuro, desse com a verdade. Compreende que ele também participa da trama de Nolan... Ao fim de tenazes cavilações, decide silenciar a descoberta. Publica um livro dedicado à glória do herói; também isso, talvez, estivesse previsto.



































A MORTE E A BÚSSOLA


A Mandie Molina Vedia


Dos muitos problemas que exercitaram a temerária perspicácia de Lönnrot, não houve nenhum tão estranho – tão rigorosamente estranho, diremos – como a periódica série de fatos de sangue que culminaram na chácara de Triste-le-Roy, no meio do interminável cheiro dos eucaliptos. É verdade que Erik Lönnrot não conseguiu impedir o último crime, mas é indiscutível que o previu. Também não adivinhou a identidade do infausto assassino de Yarmolinsky, mas sim a secreta morfologia da maldita série e a participação de Red Scharlach, cujo segundo apodo é Scharlach o Dandy Este criminoso (como tantos) havia jurado por sua honra a morte de Lönnrot, mas este nunca se deixou intimidar. Lönnrot julgava-se um puro raciocinador, um Auguste Dupin, mas havia nele algo de aventureiro e até de jogador.

O primeiro crime ocorreu no Hotel du Nord – esse alto prisma que domina o estuário cujas águas têm a cor do deserto. A essa torre (que muito notoriamente reúne a tediosa brancura de um sanatório, a numerada divisibilidade de um cárcere e a aparência geral de uma casa de má nota) chegou no dia três de Dezembro o delegado de Podolsk ao Terceiro Congresso Talmúdico, o professor Marcelo Yarmolinsky, homem de barba e olhos pardos. Nunca saberemos se o Hotel du Nord lhe agradou: aceitou-o com a antiga resignação que lhe tinha permitido tolerar três anos de guerra nos Cárpatos e três mil anos de opressão e de pogroms. Deram-lhe um quarto no piso 1, diante da suite que não sem esplendor ocupava o Tetrarca da Galileia. Yarmolinsky jantou, adiou para o dia seguinte o exame da desconhecida cidade, arrumou num placard os seus muitos livros e as suas pouquíssimas roupas, e, antes da meia-noite apagou a luz. (Assim o declarou o chauffeur do Tetrarca, que dormia no quarto contíguo.) No dia quatro, às 11 e 3 minutos a. m., telefonou-lhe um redator da Yidische Zaitung; o doutor Yarmolinsky não respondeu; foram dar com ele no quarto, já levemente arroxeada a cara, quase nu sob uma grande capa anacrônica. Jazia não longe da porta que dava para o corredor; uma punhalada profunda tinha-lhe rasgado o peito. Umas horas depois, no mesmo quarto, no meio de jornalistas, fotógrafos e polícias, o comissário Treviranus e Lönnrot debatiam com serenidade o problema.

– Não é preciso procurar nenhum bicho de sete cabeças – disse Treviranus, brandindo um imperioso cigarro. – Todos nós sabemos que o Tetrarca da Galileia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para lhes roubar, deve ter entrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se, e o ladrão teve de matá-lo. O que acha?

– Possível, mas não interessante – respondeu Lönnrot. – Vai replicar-me que a realidade não tem a mínima obrigação de ser interessante. Eu respondo-lhe que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que você improvisou, intervém copiosamente o acaso. Tenho aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão.

Treviranus retorquiu com mau humor:

– Não me interessam as explicações rabínicas; interessa-me a captura do homem que apunhalou este desconhecido.

– Não é assim tão desconhecido – corrigiu Lönnrot. – Estão aqui as suas obras completas. – Indicou no placard uma fila de altos volumes: uma Reabilitação da Cabala; um Exame da Filosofia de Robert Flood; uma tradução literal do Sepher Yezirah; uma Biografia do Baal Shem; uma História da Seita dos Hasidim; uma monografia (em alemão) sobre o Tetragrámaton; outra, sobre a nomenclatura divina do Pentateuco. O comissário olhou-os com temor, quase com repulsa. A seguir, pôs-se a rir.

– Sou um pobre cristão – replicou. – Leve todos esses mamarrachos, se quiser; não tenho tempo a perder com superstições judias.

– Talvez este crime pertença à história das superstições judias – murmurou Lönnrot.

– Como o cristianismo – atreveu-se a completar o redator da Yidische Zaitung. Era míope, ateu e muito tímido Ninguém lhe respondeu. Um dos agentes tinha encontrado na pequena máquina de escrever uma folha de papel com esta sentença inconclusa:

A primeira letra do Nome foi articulada.

Lönnrot absteve-se de sorrir. Repentinamente bibliófilo ou hebraísta, determinou que lhe fizessem um pacote com os livros do morto e os levou a seu departamento. Indiferente à investigação policial, dedicou-se a estudá-los. Um livro em oitavo maior revelou-lhe os ensinamentos de Israel Baal Shem Tobh, fundador da seita dos Piedosos, outro, as virtudes e terrores do Tetragramaton, que e o inefável Nome de Deus; outro, a tese de que Deus tem um nome oculto, no qual está compendiado (como na esfera de cristal que os persas atribuem a Alexandre da Macedônia) seu nono atributo, a eternidade – isto é, o conhecimento imediato – de todas as coisas que serão, que são e que foram no universo. A tradição enumera noventa e nove nomes de Deus; os hebraístas atribuem esse imperfeito número ao mágico temor às cifras pares; os Hassidim argumentam que esse hiato assinala um centésimo nome – o Nome Absoluto.

Dessa erudição distraiu-o, dias depois, o aparecimento do redator da Yidische Zaitung. Este queria falar do assassinato; Lönnrot preferiu falar dos diversos nomes de Deus; o jornalista declarou em três colunas que o investigador Erik Lönnrot tinha-se dedicado a estudar os nomes de Deus para dar com o nome do assassino. Lönnrot, habituado às simplificações do jornalismo, não se indignou. Um desses vendedores de livros que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da história da Seita dos Hassidim.

O segundo crime ocorreu na noite de três de janeiro, no mais desamparado e deserto dos vazios subúrbios ocidentais da capital. Por volta do amanhecer, um dos gendarmes que
vigiam a cavalo essas solidões viu no umbral de uma antiga loja de tintas um homem com poncho, deitado. O duro rosto estava como que mascarado de sangue; uma punhalada profunda rachara-lhe o peito. Na parede, sobre os losangos amarelos e vermelhos, havia algumas palavras em giz. O gendarme soletrou-as... Nessa tarde, Treviranus e Lönnrot dirigiram-se à remota cena do crime. À esquerda e à direita do automóvel, a cidade se desintegrava; crescia o firmamento e diminuíam de importância as casas e aumentava a de um forno de tijolos ou a de um álamo. Chegaram a seu pobre destino: um beco final de taipas rosadas que pareciam refletir de algum modo o desmedido pôr-do-sol. O morto já tinha sido identificado. Era Daniel Simón Azevedo, homem de certa fama nos antigos arrabaldes do Norte, que fora promovido de carreteiro a cabo eleitoral, para degenerar depois em ladrão e até em delator. (O singular estilo de sua morte pareceu-lhes adequado: Azevedo era o último representante de uma geração de bandidos que conhecia o manejo do punhal, mas não do revólver.) As palavras em giz eram as seguintes:

A segunda letra do Nome foi articulada.

O terceiro crime ocorreu na noite de três de fevereiro. Pouco antes da uma hora, o telefone ressoou no escritório do comissário Treviranus. Com ávido sigilo, falou um homem de voz gutural; disse que se chamava Ginzberg (ou Ginsburg) e que estava disposto a comunicar, por uma remuneração razoável, os fatos dos dois sacrifícios de Azevedo e de Yarmolinsky. Uma discórdia de zumbidos e de cornetas abafou a voz do delator. Depois, a comunicação foi cortada. Sem descartar ainda a possibilidade de uma brincadeira (afinal, estavam no carnaval), Treviranus averiguou que lhe haviam telefonado de Liverpool House, taberna da rue de Toulon – essa rua salobre, na qual convivem o cosmorama e a leiteria, o bordel e os vendedores de bíblias. Treviranus falou com o patrão. Este (Black Finnegan, velho criminoso irlandês, abatido e quase anulado pela decência) disse-lhe que a última pessoa que tinha utilizado o telefone da casa era um inquilino, um tal Gryphius, que acabava de sair com alguns amigos. Treviranus foi em seguida a Liverpool House. O patrão comunicou-lhe o seguinte: há oito dias, Gryphius havia alugado um quarto em cima do bar. Era um homem de feições afiladas, de nebulosa barba cinzenta, trajado pobremente de preto; Finnegan (que destinava esse quarto a um uso que Treviranus adivinhou) pediu-lhe um aluguel sem dúvida excessivo; Gryphius imediatamente pagou a soma estipulada. Quase nunca saía; jantava e almoçava em seu quarto; só o conheciam de vista no bar. Nessa noite, desceu para telefonar no escritório de Finnegan. Um cupê fechado deteve-se diante da taberna. O cocheiro não se moveu do pescante; alguns fregueses lembraram-se de que tinha máscara de urso. Do cupê desceram dois arlequins; eram de reduzida estatura e ninguém deixou de observar que estavam muito bêbados. Entre balidos de cornetas, irromperam no escritório de Finnegan; abraçaram Gryphius, que pareceu reconhecê-los, mas que lhes respondeu com frieza; trocaram algumas palavras em iídiche – ele em voz baixa, gutural, eles com vozes falsas, agudas – e subiram ao quarto do fundo. Em quinze minutos desceram os três, muito felizes; Gryphius, cambaleante, parecia tão bêbado como os outros. Ia, alto e vertiginoso, no meio, entre os arlequins mascarados. (Uma das mulheres do bar recordou os losangos amarelos, vermelhos e verdes.) Duas vezes tropeçou; duas vezes o seguraram os arlequins. Rumo à doca próxima, de água retangular, os três subiram no cupê e desapareceram. Já no estribo do cupê, o último arlequim garatujou uma figura obscena e uma sentença sobre as ardósias do beiral.

Treviranus viu a sentença. Era quase previsível, dizia:

A última das letras do Nome foi articulada.

Examinou, a seguir, o quartinho de Gryphius-Ginzberg. Havia no chão uma brusca estrela de sangue; nos cantos, restos de cigarros de marca húngara; num armário, um livro em latim – o Philologus Hebraeograecus (1739) de Leusden – com várias notas manuscritas. Treviranus olhou-o com indignação e mandou procurar Lönnrot. Este, sem tirar o chapéu, pôs-se a ler, enquanto o comissário interrogava as contraditórias testemunhas do possível seqüestro. As quatro saíram. Na sinuosa rue de Toulon, quando pisavam as serpentinas mortas da aurora, Treviranus disse:

– E se a história desta noite fosse um simulacro?

Erik Lönnrot sorriu e leu-lhe com toda gravidade uma passagem (que estava sublinhada) da dissertação trigésima terceira do Philologus: "Dies Judaeorum incipit a soles occasu usque ad soles occasum diei sequentes". Isto quer dizer – acrescentou – "O dia hebreu começa ao anoitecer e dura até o anoitecer seguinte".

O outro esboçou uma ironia.

– Esse dado é o mais valioso que o senhor recolheu esta noite?

– Não. Mais valiosa é uma palavra que disse Ginzberg.

Os jornais da tarde não descuidaram desses desaparecimentos periódicos. A Cruz da Espada contrastou-os com a admirável disciplina e a ordem do último Congresso Eremítico; Ernst Palast, em O Mártir, reprovou "as demoras intoleráveis de um pogroan clandestino e frugal, que necessitou de três meses para liquidar três judeus"; a Yidische Zaitung repeliu a hipótese horrorosa de um complô anti-semita, "ainda que muitos espíritos penetrantes não admitam outra solução para o tríplice mistério"; o mais ilustre dos pistoleiros do Sul, Dândi Red Scharlach, jurou que, em seu distrito, nunca seriam cometidos crimes como esses e acusou de culpável negligência o comissário Franz Treviranus.

Este recebeu, na noite de primeiro de março, um imponente envelope lacrado. Abriu-o: o envelope continha uma carta assinada Baruch Spinoza e um minucioso mapa da cidade, arrancado evidentemente de um guia Baedeker. A carta profetizava que o dia três de março não teria um quarto crime, pois a loja de tintas do Oeste, a taberna da rue de Toulon e o Hotel du Nord eram "os vértices perfeitos de um triângulo eqüilátero e místico"; o mapa demonstrava em tinta vermelha a regularidade desse triângulo. Treviranus leu com resignação esse argumento more geometrico e enviou a carta e o mapa à casa de Lönnrot – indiscutível merecedor de tais loucuras.

Erik Lönnrot estudou-as. Os três lugares, de fato, eram eqüidistantes. Simetria no tempo (3 de dezembro, 3 de janeiro, 3 de fevereiro); simetria no espaço, também... Sentiu, de repente, que estava por decifrar o mistério. Um compasso e uma bússola completaram essa repentina intuição. Sorriu, pronunciou a palavra Tetragrámaton (de aquisição recente) e telefonou ao comissário. Disse-lhe:

– Obrigado por esse triângulo eqüilátero que o senhor, à noite passada, me remeteu. Permitiu-me resolver o problema. Amanhã, sexta-feira, os criminosos estarão na prisão; podemos ficar muito tranqüilos.

– Então, não planejam um quarto crime?

– Exatamente porque planejam um quarto crime, podemos ficar muito tranqüilos. – Lönnrot colocou o fone no gancho. Uma hora depois, viajava num trem das Ferrocarriles Australes, rumo à chácara abandonada de Triste-le-Roy. Ao sul da cidade de meu conto, flui um turvo riacho de águas barrentas, infestado de curtumes e de imundície. Do outro lado, há um subúrbio fabril onde, sob a proteção de um chefe barcelonês, medram os pistoleiros. Lönnrot sorriu ao pensar que o mais afamado – Red Scharlach – teria oferecido qualquer coisa para saber dessa clandestina visita. Azevedo foi companheiro de Scharlach; Lönnrot considerou a remota possibilidade de que a quarta vítima fosse Scharlach. Depois a descartou... Virtualmente, havia decifrado o problema; as simples circunstâncias, a realidade (nomes, prisões, rostos, trâmites judiciais e carcerários), apenas agora lhe interessavam. Desejava passear, desejava descansar de três meses de sedentária investigação. Refletiu que a explicação dos crimes estava num triângulo anônimo e numa poeirenta palavra grega. O mistério quase lhe pareceu cristalino; envergonhou-se de ter-lhe dedicado cem dias.

O trem parou numa silenciosa estação de cargas. Lönnrot desceu. Era uma dessas tardes desertas que parecem amanheceres. O ar da turva planície era úmido e frio. Lönnrot pôs-se a andar pelo campo. Viu cães, viu um vagão num trilho morto, viu o horizonte, viu um cavalo prateado que bebia a água crapulosa de um charco. Escurecia quando viu o mirante retangular da chácara de Triste-le-Roy, quase tão alto como os negros eucaliptos que o rodeavam. Pensou que somente um amanhecer e um ocaso (um velho resplendor no oriente e outro no ocidente) separavam-no da hora desejada por aqueles que procuravam o Nome.

Uma enferrujada grade definia o perímetro irregular da chácara. O portão principal estava fechado. Lönnrot, sem muita esperança de entrar, fez toda a volta. De novo diante do portão infranqueável, meteu a mão entre os barrotes, quase maquinalmente, e deparou com o ferrolho. O ranger do ferro o surpreendeu. Com passividade laboriosa, o portão inteiro cedeu.

Lönnrot avançou entre os eucaliptos, pisando confundidas gerações de rotas folhas rígidas. Vista de perto, a casa da chácara de Triste-le-Roy possuía muitas inúteis simetrias e repetições maníacas: a uma Diana glacial em nicho lôbrego correspondia em outro segundo nicho outra Diana; uma sacada refletia-se em outra sacada; duplas escalinatas abriam-se em dupla balaustrada. Um Hermes de duas caras projetava uma sombra monstruosa. Lönnrot rodeou a casa como rodeara a chácara. Tudo examinou; sob o nível do terraço viu uma estreita persiana.

Empurrou-a: uns poucos degraus de mármore desciam a um porão. Lönnrot, que já intuía as preferências do arquiteto, adivinhou que no oposto muro ao porão havia outros degraus. Encontrou-os, subiu, alçou as mãos e abriu o alçapão de saída.

Um resplendor guiou-o a uma janela. Abriu-a: uma lua amarela e circular definia no triste jardim duas fontes obstruídas. Lönnrot explorou a casa. Por ante-salas e galerias saiu a pátios iguais e repetidas vezes ao mesmo pátio. Subiu por escadas poeirentas a antecâmaras circulares; infinitamente multiplicou-se em espelhos opostos; cansou-se de abrir ou entreabrir janelas que lhe revelavam, fora, o mesmo desolado jardim de várias alturas e vários ângulos; dentro, móveis com capas amarelas e lustres embalados em tarlatana. Um aposento o deteve; nesse aposento, uma única flor num copo de porcelana; ao primeiro toque, as pétalas antigas desprenderam-se. No segundo andar, no último, a casa pareceu-lhe infinita e crescente. "A casa não é tão grande", pensou. "Aumentam-na a penumbra, a simetria, os espelhos, os muitos anos, meu desconhecimento, a solidão."

Por uma escada espiral chegou ao mirante. A lua dessa tarde atravessava os losangos das janelas; eram amarelos, vermelhos e verdes. Deteve-o uma lembrança assombrada e vertiginosa.

Dois homens de pequena estatura, ferozes e fornidos, arremessaram-se sobre ele e o desarmaram; outro, muito alto, saudou-o com gravidade e disse-lhe:

– Você é muito amável. Economizou-nos uma noite e um dia.

Era Red Scharlach. Os homens manietaram Lönnrot. Este, por fim, recuperou a voz.

– Scharlach, você procura o Nome Secreto?

Scharlach continuava de pé, indiferente. Não havia participado da breve luta, apenas estendeu a mão para receber o revólver de Lönnrot. Falou; Lönnrot ouviu em sua voz uma fatigada vitória, um ódio do tamanho do universo, uma tristeza não menor que aquele ódio.

– Não – disse Scharlach. – Procuro algo mais efêmero e detestável, procuro Erik Lönnrot. Faz três anos, numa tavolagem da rue de Toulon, você mesmo prendeu e mandou
encarcerar meu irmão. Num cupê, meus homens tiraram-me do tiroteio com uma bala policial no ventre. Nove dias e nove noites agonizei nesta desolada chácara simétrica; arrasava-me a febre, o odioso Jano bifronte, que olha os poentes e as auroras, causava horror a meu sonho e a minha vigília. Cheguei a abominar meu corpo, cheguei a sentir que dois olhos, duas mãos, dois pulmões são tão monstruosos como duas caras. Um irlandês tentou converter-me à fé de Jesus; repetia a sentença dos goim: Todos os caminhos levam a Roma. De noite, meu delírio nutria-se dessa metáfora: eu sentia que o mundo é um labirinto, do qual era impossível fugir, pois todos os caminhos, ainda que fingissem ir ao norte ou ao sul, iam realmente a Roma, que era também o cárcere quadrangular onde agonizava meu irmão e a chácara de Triste-le-Roy. Nessas noites jurei pelo deus que vê com duas caras e por todos os deuses da febre e dos espelhos tecer um labirinto em torno do homem que tinha aprisionado meu irmão. Tramei-o e é firme: os materiais são um heresiólogo morto, uma bússola, uma seita do século XVIII, uma palavra grega, um punhal, os losangos de uma loja de tintas.

O primeiro termo da série foi-me dado pelo acaso. Eu tramara com alguns colegas – entre eles, Daniel Azevedo – o roubo das safiras do Tetrarca. Azevedo traiu-nos: embriagou-se com o dinheiro que lhe adiantáramos e tomou a iniciativa um dia antes. No enorme hotel se perdeu; por volta das duas da manhã irrompeu no quarto de Yarmolinsky.
Este, acossado pela insônia, pusera-se a escrever. De forma verossímil, redigia algumas notas ou um artigo sobre o Nome de Deus; escrevera já as palavras A primeira letra do Nome foi articulada. Azevedo exigiu-lhe silêncio; Yarmolinsky estendeu a mão para a campainha que despertaria toda a vigilância do hotel; Azevedo deu-lhe uma única punhalada no peito. Foi quase um movimento reflexo; meio século de violência ensinara-lhe que o mais fácil e seguro é matar... Dez dias após, soube eu, pela Yidische Zaitung, que você procurava nos escritos de Yarmolinsky a chave da morte de Yarmolinsky. Li a História da Seita dos Hassidim; soube que o medo reverente de pronunciar o Nome de Deus originara a doutrina de que esse Nome é todo-poderoso e recôndito. Soube que alguns Hassidim, à procura desse Nome secreto, chegaram a cometer sacrifícios humanos... Compreendi que você conjeturava que os Hassidim tinham sacrificado o rabino; dediquei-me a justificar essa conjetura.

Marcelo Yarmolinsky morreu na noite de três de dezembro; para o segundo "sacrifício" escolhi a de três de janeiro. Morreu no Norte; para o segundo "sacrifício" convinha-nos um lugar do Oeste. Daniel Azevedo foi a vítima necessária. Merecia a morte: era um impulsivo, um traidor; sua captura podia aniquilar todo o plano. Um dos nossos apunhalou-o; para vincular seu cadáver ao anterior, escrevi em cima dos losangos da loja de tintas A segunda letra do Nome foi articulada.

O terceiro "crime" aconteceu em três de fevereiro. Foi, como Treviranus adivinhou, um mero simulacro. Gryphius-Ginzberg-Ginsburg sou eu; uma semana interminável suportei (suplementado por uma rala barba postiça) esse perverso cubículo da rue de Toulon, até que os amigos me seqüestraram. Do estribo do cupê, um deles escreveu num pilar A última das letras do Nome foi articulada. Essa escrita divulgou que a série de crimes era tríplice. Assim o entendeu o público; eu, não obstante, intercalei repetidos indícios para que você, o raciocinados Erik Lönnrot, compreendesse que é quádrupla. Um prodígio no Norte, outros no Leste e no Oeste, reclamam um quarto prodígio no Sul; o Tetragrámaton – o Nome de Deus, JHVH – consta de quatro letras; os arlequins e a amostra do dono da loja de tintas sugerem quatro termos. Sublinhei certa passagem no manual de Leusden; essa passagem manifesta que os hebreus calculavam o dia de ocaso a ocaso; essa passagem dá a entender que as mortes ocorreram no quarto dia de cada mês. Remeti o triângulo eqüilátero a Treviranus. Pressenti que você acrescentaria o ponto que falta. O ponto que determina um losango perfeito, o ponto que prefixa o lugar onde uma exata morte o espera. Tudo premeditei, Erik Lönnrot, para atraí-lo às solidões de Triste-le-Roy.

Lönnrot evitou os olhos de Scharlach. Contemplou as árvores e o céu subdivididos em losangos turvamente amarelos, verdes e vermelhos. Sentiu um pouco de frio e uma tristeza impessoal, quase anônima. Já era noite; do poeirento jardim subiu o grito inútil de um pássaro. Lönnrot considerou pela última vez o problema das mortes simétricas e periódicas.

– Em seu labirinto sobram três linhas a mais – disse por fim. – Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero detetive. Scharlach, quando em outro avatar você me der caça, finja (ou cometa) um crime em A, depois um segundo crime em B, a 8 quilômetros de A, depois um terceiro crime em C, a 4 quilômetros de A e de B, no meio do caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a 2 quilômetros de A e de C, de novo no meio do caminho. Mate-me em D, como agora vai matar-me em Triste-le-Roy.

– Para a outra vez que o matar – replicou Scharlach – prometo-lhe esse labirinto, que se compõe de uma única linha reta e que é invisível, incessante.

Retrocedeu alguns passos. Depois, muito cuidadosamente, fez fogo.

1942





























O MILAGRE SECRETO


E Deus o fez morrer durante cem anos e
depois o animou e lhe disse:
– Quanto tempo estiveste aqui?
– Um dia ou parte de um dia, respondeu.
Alcorão, 11, 261.


Na noite de catorze de março de 1939, num apartamento da Zeltnergasse de Praga, Jaromir Hladik, autor da inconclusa tragédia Os Inimigos, de uma Vindicação da Eternidade e de uma interpretação das indiretas fontes judaicas de Jakob Boehme, sonhou com um extenso xadrez. Não o disputavam dois indivíduos, senão duas famílias ilustres; a partida fora entabulada faz muitos séculos; ninguém era capaz de nomear o esquecido prêmio, mas se murmurava que era enorme e quem sabe infinito; as peças e o tabuleiro estavam em uma torre secreta; Jaromir (no sonho) era o primogênito de uma das famílias hostis; nos relógios ressoava a hora da impostergável jogada; o sonhador corria pelas areias de um deserto chuvoso e não conseguia recordar as figuras nem as leis do xadrez. Nesse momento, despertou. Cessaram os estrondos da chuva e dos terríveis relógios. Um ruído compassado e unânime, cortado por algumas vozes de comando, subia da Zeltnergasse. Era o amanhecer; as blindadas vanguardas do Terceiro Reich entravam em Praga.

No dia dezenove, as autoridades receberam uma denúncia; no mesmo dia dezenove, ao entardecer, Jaromir Hladik foi detido. Conduziram-no a um quartel asséptico e branco,
na margem oposta do Moldava. Não pôde desfazer uma só das acusações da Gestapo: seu sobrenome materno era Jaroslavski, seu sangue era judeu, seu estudo sobre Boehme era judaizante, sua assinatura delatava o censo final de um protesto contra o Anschluss. Em 1928, traduzira o Sepher Yezirah para a editora Hermann Barsdorf; o efusivo catálogo dessa editora havia exagerado comercialmente o renome do tradutor; esse catálogo foi folheado por Julius Rothe, um dos chefes em cujas mãos estava o destino de Hladik. Não existe homem que, fora de sua especialidade, não seja crédulo; dois ou três adjetivos em letra gótica bastaram para que Julius Rothe admitisse a proeminência de Hladik e dispusesse que o condenassem à morte, pour encourager les autres. Fixou-se o dia vinte e nove de março, às nove a.m. Essa demora (cuja importância considerará depois o leitor) devia-se ao desejo administrativo de agir impessoal e pausadamente, como os vegetais e os planetas.

O primeiro sentimento de Hladik foi de simples terror. Pensou que não o teriam amedrontado a forca, a decapitação ou a degola, mas que morrer fuzilado era intolerável. Em vão repetiu a si mesmo que o ato puro e geral de morrer era o temível, não as circunstâncias concretas. Não se cansava de imaginar essas circunstâncias: tentava esgotar absurdamente todas as variantes. Antecipava infinitamente o processo, do insone amanhecer até o misterioso disparo. Antes do dia prefixado por Julius Rothe, morreu centenas de mortes, em pátios cujas formas e cujos ângulos esgotavam a geometria, metralhado por soldados variáveis, em número mutável, que às vezes o fuzilavam de longe; outras, de muito perto. Enfrentava com verdadeiro temor (talvez com verdadeira coragem) essas execuções imaginárias; cada simulacro durava uns poucos segundos; fechado o círculo, Jaromir voltava interminavelmente às trêmulas vésperas de sua morte. Depois refletiu que a realidade não costuma coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que este suceda. Fiel a essa débil magia, inventava, para que não acontecessem, ações atrozes; naturalmente, acabou por temer que essas ações fossem proféticas. Mísero na noite, tentava afirmar-se de algum modo na substância fugidia do tempo. Sabia que este se precipitava para o amanhecer do dia vinte e nove; raciocinava em voz alta: "Agora estou na noite do dia vinte e dois; enquanto dure esta noite (e seis noites mais) sou invulnerável, imortal". Pensava que as noites de sonho eram piscinas fundas e escuras nas quais podia submergir. Às vezes, desejava com impaciência o definitivo disparo, que o redimiria, mal ou bem, de sua vã tarefa de imaginar. No dia vinte e oito, quando* o último poente reverberava nas altas barras de ferro, desviou-o dessas considerações abjetas a imagem de seu drama Os Inimigos.

Hladik tinha ultrapassado os quarenta anos. Fora de algumas amizades e de muitos hábitos, o problemático exercício da literatura constituía sua vida; como todo escritor, media as virtudes dos outros pelo realizado por eles e pedia que os outros o medissem pelo que vislumbrava ou planejava. Todos os livros que fizera imprimir infundiam-lhe um complexo arrependimento. Em suas análises da obra de Boehme, de Abenesra e de Flood, interviera especialmente a simples aplicação; em sua tradução do Sepher Yezirah, a negligência, o cansaço e a conjetura. Julgava menos deficiente, talvez, a Vindicação da Eternidade: o primeiro volume historia as diversas eternidades que os homens idearam, do imóvel Ser de Parmênides até o passado modificável de Hinton; o segundo nega (com Francis Bradley) que todos os fatos do universo integram uma série temporal. Deduz que não é infinita a cifra das possíveis experiências do homem e que basta uma única "repetição" para demonstrar que o tempo é uma falácia... Infelizmente, não são menos falazes os argumentos que demonstram essa falácia; Hladik costumava percorrê-los com certa desdenhosa perplexidade. Também escrevera uma série de poemas expressionistas; estes, para confusão do poeta, figuraram em uma antologia de 1924 e não houve antologia posterior que não os herdasse. De todo esse passado equívoco e lânguido queria redimir-se Hladik com o drama em verso Os Inimigos. (Hladik preconizava o verso, porque impede que os espectadores esqueçam a irrealidade, que é condição da arte.)

Esse drama respeitava as unidades de tempo, de lugar e de ação; transcorria em Hradcany, na biblioteca do barão de Roemerstadt, numa das últimas tardes do século XIX. Na primeira cena do primeiro ato, um desconhecido visita Roemerstadt. (Um relógio bate as sete, uma veemência de último sol exalta as vidraças, o ar traz uma apaixonada e reconhecível música húngara.) A esta visita seguem outras. Roemerstadt não conhece as pessoas que o importunam, mas tem a incômoda impressão de já tê-las visto, talvez num sonho. Todos o adulam exageradamente, mas é evidente - primeiro para os espectadores do drama, depois para o próprio barão – que são inimigos secretos, conjurados para eliminá-lo. Roemerstadt consegue deter ou frustrar suas complexas intrigas; no diálogo, aludem a sua noiva, Júlia de Weidenau, e a um tal Jaroslav Kubin, que certa vez a importunou com seu amor. Este, agora, enlouqueceu e acredita ser Roemerstadt... Os perigos aumentavam; Roemerstadt, no fim do segundo ato, vê-se na obrigação de matar um conspirador. Começa o terceiro ato, o último. Crescem gradualmente as incoerências: voltam atores que pareciam descartados já da trama; torna, por um instante, o homem morto por Roemerstadt. Alguém faz notar que não entardeceu: o relógio bate as sete, nas altas vidraças reverbera o sol ocidental, o ar traz uma apaixonada música húngara. Aparece o primeiro interlocutor e repete as palavras que pronunciou na primeira cena do primeiro ato. Roemerstadt fala-lhe sem surpresa; o espectador compreende que Roemerstadt é o miserável Jaroslav Kubin. O drama não aconteceu: é o delírio circular que interminavelmente vive e revive Kubin.

Nunca se perguntou Hladik se essa tragicomédia de erros era frívola ou admirável, rigorosa ou casual. No argumento que esbocei, intuía a invenção mais apta para dissimular seus defeitos e para exercitar suas felicidades, a possibilidade de resgatar (de maneira simbólica) o fundamental de sua vida. Terminara já o primeiro ato e uma que outra cena do terceiro; o caráter métrico da obra permitia-lhe examiná-la continuamente, retificando os hexâmetros, sem o manuscrito à vista. Pensou que ainda lhe faltavam dois atos e que em breve ia morrer. Falou com Deus na escuridão. "Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor de Os Inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e justificar-te, requeiro mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quem são os séculos e o tempo." Era a última noite, a mais atroz, mas dez minutos depois o sono o inundou como água escura.

Perto do amanhecer, sonhou que se ocultara numa das naves da biblioteca do Clementinum. Um bibliotecário de óculos pretos perguntou-lhe: "Que procura?" Hladik respondeu-lhe: "Procuro Deus". O bibliotecário disse-lhe: "Deus está em uma das letras de uma das páginas de um dos quatrocentos mil tomos do Clementinum. Meus pais e os pais de meus pais procuraram essa letra; eu me tornei cego procurando-a". Tirou os óculos e Hladik viu os olhos, que estavam mortos. Um leitor entrou para devolver um atlas. "Este atlas é inútil", disse, e deu-o a Hladik. Este o abriu ao acaso. Viu um mapa da índia, vertiginoso. Bruscamente seguro, tocou uma das mínimas letras. Uma voz ubíqua disse-lhe: "O tempo de teu trabalho foi outorgado". Aqui Hladik despertou.

Recordou que os sonhos dos homens pertencem a Deus e que Maimônides escreveu que são divinas as palavras de um sonho, quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse. Vestiu-se; dois soldados entraram na cela e ordenaram-lhe que os acompanhasse.

Do outro lado da porta, Hladik havia previsto um labirinto de galerias, escadas e pavilhões. A realidade foi menos rica: desceram a um pátio interno por uma só escada de ferro. Vários soldados – um que outro de uniforme desabotoado – revisavam uma motocicleta e sobre ela discutiam. O sargento olhou o relógio: eram oito horas e quarenta e quatro minutos. Tinha que esperar que dessem as nove. Hladik, mais insignificante que infeliz, sentou-se num montão de lenha. Percebeu que os olhos dos soldados esquivavam-se dos seus. Para aliviar a espera, o sargento entregou-lhe um cigarro. Hladik não fumava; aceitou-o por cortesia ou por humildade. Ao acendê-lo, viu que lhe tremiam as mãos. O dia nublou-se; os soldados falavam em voz baixa como se ele já estivesse morto. Em vão, tentou recordar a mulher cujo símbolo era Júlia de Weidenau...

O pelotão formou-se, perfilou-se. Hladik, de pé contra a parede do quartel, esperou o disparo. Alguém temeu que a parede ficasse manchada de sangue; então ordenaram ao réu que avançasse alguns passos. Hladik, absurdamente, recordou as vacilações preliminares dos fotógrafos. Uma pesada gota de chuva roçou uma das têmporas de Hladik e deslizou lentamente por sua face; o sargento vociferou a ordem final.

O universo físico se deteve.

As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo estavam imóveis. O braço do sargento eternizava um gesto inconcluso. Numa laje do pátio uma abelha projetava uma sombra fixa. O vento havia cessado, como num quadro. Hladik ensaiou um grito, uma sílaba, o movimento da mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais tênue rumor do impedido mundo. Pensou "estou no inferno, estou morto". Pensou "estou louco". Pensou o "tempo se deteve". Depois refletiu que em tal caso também se detivera seu pensamento. Quis pô-lo à prova: repetiu (sem mover os lábios) a misteriosa quarta écloga de Virgílio. Imaginou que os já remotos soldados compartilhavam de sua angústia; desejou comunicar-se com eles. Surpreendeu-lhe não sentir nenhuma fadiga, nem sequer a vertigem de sua demorada imobilidade. Dormiu, ao cabo de um prazo indeterminado. Ao despertar, o mundo continuava imóvel e surdo. Em sua face perdurava a gota de água; no pátio, a sombra da abelha; a fumaça do cigarro que havia jogado não acabava nunca de dispersar-se. Outro "dia" passou, antes que Hladik compreendesse.

Um ano inteiro solicitara a Deus para terminar seu trabalho: um ano lhe outorgava sua onipotência. Deus laborava para ele um milagre secreto: matá-lo-ia o chumbo alemão, na hora determinada, mas em sua mente um ano transcorria entre a ordem e a execução da ordem. Da perplexidade passou ao estupor, do estupor à resignação, da resignação à súbita gratidão.

Não dispunha de outro documento senão da memória; a aprendizagem de cada hexâmetro que adicionava impôs-lhe um afortunado rigor que não suspeitam os que aventuram e esquecem parágrafos interinos e vagos. Não trabalhou para a posteridade, nem ainda para Deus, de cujas preferências literárias pouco sabia. Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo seu alto labirinto invisível. Refez o terceiro ato duas vezes. Eliminou algum símbolo demasiado evidente: as repetidas badaladas, a música. Nenhuma circunstância o importunava. Omitiu, abreviou, amplificou; em certos casos, optou pela versão primitiva. Chegou a querer o pátio, o quartel; um dos rostos diante dele modificou sua concepção do caráter de Roemerstadt. Descobriu que as árduas cacofonias que tanto alarmaram Flaubert são meras superstições visuais: debilidades e moléstias da palavra escrita, não da palavra sonora... Pôs fim a seu drama: não lhe faltava já resolver senão um único epíteto. Encontrou-o; a gota de água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, moveu o rosto, o quádruplo disparo o derrubou.

Jaromir Hladik morreu a vinte e nove de março, às nove horas e dois minutos da manhã.

1943














































TRES VERSÕES DE JUDAS


There seemed a certainty in degradation.

T. E. LAWRENCE : Seven Pillars of Wisdom. CIII.


Na Ásia Menor ou em Alexandria, no segundo século de nossa fé, quando Basilides publicava que o cosmos era uma temerária ou perversa improvisação de anjos deficientes, Nils Runeberg dirigira, com singular paixão intelectual, um dos conventículos gnósticos. Dante lhe teria destinado, talvez, um sepulcro de fogo; seu nome aumentaria os catálogos de heresiarcas menores, entre Satornilo e Carpócrates; algum fragmento de suas prédicas, adornado de injúrias, perduraria no apócrifo Liber Adversus omnes Haereses ou teria perecido quando o incêndio de uma biblioteca monástica devorou o último exemplar do Syntagma. Em troca, Deus lhe ofereceu o século XX e a cidade universitária de Lund. Aí, em 19O4, publicou a primeira edição de Kristus och Judas; aí, em 19O9, seu livro capital Den Hemlige Frälsaren. (Do último existe versão alemã, realizada em 1912 por Emil Schering; chama-se Der Heimliche Heiland.)

Antes de tentar uma análise dos precitados trabalhos, urge repetir que Nils Runeberg, membro da União Evangélica Nacional, era profundamente religioso. Num cenáculo de Paris ou ainda de Buenos Aires, um literato poderia muito bem redescobrir as teses de Runeberg; essas teses, propostas num cenáculo, serão rápidos exercícios inúteis da negligência ou da blasfêmia. Para Runeberg, foram a chave que decifra um mistério central da teologia; foram matéria de meditação e de análise, de controvérsia histórica e filológica, de soberba, de júbilo e de terror. justificaram e desbarataram sua vida. Aqueles que recorrem a este artigo devem igualmente considerar que não registra senão as conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas provas. Alguém observará que a conclusão precedeu sem dúvida às "provas". Quem se resigna a procurar provas de algo em que não acredita ou cuja prédica não lhe importa?

A primeira edição de Kristus och judas leva esta categórica epígrafe, cujo sentido, anos depois, monstruosamente dilataria o próprio Nils Runeberg: "Não uma coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas" (De Quincey, 1857). Precedido por algum alemão, De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçá-lo a declarar sua divindade e a deflagrar uma vasta rebelião contra o jugo de Roma; Runeberg sugere uma vindicação de índole metafísica. Habilmente, começa por destacar a superficialidade do ato de judas. Observa (como Robertson) que para identificar um mestre que predicava diariamente na sinagoga e que operava milagres diante do concurso de milhares de homens, não se requer a traição de um apóstolo. Isso, não obstante, ocorreu. Supor um erro na Escritura é intolerável; não menos intolerável é admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi um fato predeterminado que tem seu lugar misterioso na economia da redenção. Prossegue Runeberg: O Verbo, quando foi feito carne, passou da ubiqüidade ao espaço, da eternidade à história, da felicidade sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal sacrifício, era necessário que um homem, em representação de todos os homens, fizesse um sacrifício condigno. Judas Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos, intuiu a secreta divindade e o terrível propósito de Jesus. O Verbo rebaixara-se a mortal; Judas, discípulo do Verbo, podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga. A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa das incorruptíveis constelações; Judas reflete, de algum modo, Jesus. Daí os trinta dinheiros e o beijo; daí a morte voluntária, para merecer ainda mais a Reprovação. Assim elucidou Nils Runeberg o enigma de Judas.

Os teólogos de todos os credos o refutaram. Lars Peter Engström acusou-o de ignorar, ou de preterir, a união hipostática; Axel Borelius, de renovar a heresia dos docetas que negaram a humanidade de Jesus; o robusto bispo de Lund, de contradizer o terceiro versículo do capítulo vinte e dois do evangelho de São Lucas.

Estes variados anátemas influíram em Runeberg, que parcialmente reescreveu o reprovado livro e modificou sua doutrina. Abandonou a seus adversários o terreno teológico e propôs oblíquas razões de ordem moral. Admitiu que Jesus, que dispunha dos consideráveis recursos que a Onipotência pode oferecer", não necessitava de um homem
para redimir todos os homens. Rebateu, depois, aqueles que afirmam que nada sabemos do inexplicável traidor; sabemos, disse, que foi um dos apóstolos, um dos eleitos para anunciar o reino dos céus, para sanar enfermos, para limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para expulsar demônios (Mateus 1O, 7-8; Lucas 9, 1). Um varão a quem o Redentor assim distinguiu merece de nós a melhor interpretação de seus atos. Imputar seu crime à cobiça (como o fizeram alguns, citando João 12, 6) é resignar-se à iniciativa mais torpe. Nils Runeberg propõe a iniciativa contrária: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior glória de Deus, envilece e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz, ao reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer.1 Premeditou com lucidez terrível suas culpas. No adultério, costumam participar a ternura e a abnegação; no homicídio, a coragem; nas profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João 12, 6) e a delação. Agiu com gigantesca humildade, acreditou-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: "O que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Coríntios 1, 31); Judas procurou o Inferno, porque a felicidade do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpá-lo os homens. 2

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1 Borelius pergunta com zombaria: "Por que não renunciou a renunciar? Por que não a renunciar a renunciar?"
2 Euclides da Cunha, num livro ignorado por Runeberg, anota que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude "era uma quase impiedade". O leitor argentino recordará passagens análogas na obra de Almafuerte. Runeberg publicou na página simbolista Sju Insegel um assíduo poema descritivo, A Água Secreta; as primeiras estrofes narram os acontecimentos de um tumultuoso dia; as últimas, a descoberta de um açude glacial; o poeta sugere que a perduração dessa água silenciosa corrige nossa inútil violência e de algum modo a permite e a absolve. O poema conclui assim: "A água da selva é feliz; podemos ser maldosos e dolorosos".

Muitos descobriram, post factum, que nos justificáveis começos de Runeberg está o seu extravagante fim e que Den hemlige Frälsaren é uma simples perversão ou exasperação de Kristus och Judas. Em fins de 19O7, Runeberg terminou e revisou o texto manuscrito quase dois anos transcorreram sem que o publicassem. Em Outubro de 1909, o livro apareceu com um prólogo frouxo até ao enigmático) do hebraísta dinamarquês Erik Erfjord e com esta perfídia epígrafe: "No mundo estava e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu" (João 1, 1O). O argumento geral não é complexo, embora a conclusão seja monstruosa. Deus, argúi Nils Runeberg, rebaixou-se a ser homem para a redenção do gênero humano; cabe conjeturar que foi perfeito o sacrifício realizado por ele, não invalidado ou atenuado por omissões. Limitar o que padeceu à agonia de uma tarde na cruz é blasfematório.3 Afirmar que foi homem e que foi incapaz de pecado encerra contradição; os atributos de impeccabilitas e de humanitas não são compatíveis. Kemnitz admite que o Redentor pôde sentir fadiga, frio, turbação, fome e sede; também cabe admitir que pôde pecar e perder-se. O famoso texto: "Brotará como raiz da terra sedenta; não há bom parecer nele, nem formosura; desprezado e o último dos homens; varão de dores, experimentado em quebrantos" (Isaías 53, 2-3), é para muitos uma previsão do crucificado, na hora de sua morte; para alguns (verbi grada, Hans Lassen Martensen), uma refutação da formosura que o consenso popular atribui a Cristo; para Runeberg, a pontual profecia não de um momento senão de todo o atroz futuro, no tempo e na eternidade, do Verbo feito carne. Deus se fez totalmente homem porém homem até a infâmia, homem até a reprovação e o abismo. Para nos salvar, pôde escolher qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede da história; pôde ser Alexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; escolheu um ínfimo destino: foi Judas.

Em vão propuseram essa revelação as livrarias de Estocolmo e de Lund. Os incrédulos a consideraram, a priori, um insípido e laborioso jogo teológico; os teólogos a desdenharam. Runeberg intuiu nessa indiferença ecumênica uma quase milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propagasse na terra Seu terrível segredo. Runeberg compreendeu que não era chegada a hora. Sentiu que estavam convergindo sobre ele antigas maldições divinas; lembrou-se de Elias e de Moisés, que na montanha cobriram o rosto para não ver Deus; Isaías, que se assustou quando seus olhos viram Aquele cuja glória enche a terra; Saulo, cujos olhos ficaram cegos no caminho de Damasco; o rabino Simeão ben Azaí, que viu o Paraíso e morreu; o
famoso feiticeiro João de Viterbo, que enlouqueceu quando pôde ver a Trindade; os Midrashim, que abominam os ímpios que pronunciam o Shem Hamephorash, o Secreto Nome de Deus. Não era ele, por acaso, culpado desse crime obscuro? Não seria essa a blasfêmia contra o Espírito, a que não será perdoada (Mateus 12, 31)? Valério Sorano
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3 Maurice Abramowicz observa: "Jesus, d'après ce scandinave, a toujours le beau rôle; ses déboires, grâce à Ia science des typographes, jouissent d'une réputabon polyglotte; sa résidence de trente-trois ans parmi les humains ne fut, en somme, qu'une villégiature". Erfjord, no terceiro apêndice da Christelige Dogmatik refuta essa passagem. Observa que a crucifixão de Deus não cessou, porque o sucedido uma única vez no tempo repete-se sem trégua na eternidade. Judas, agora, continua cobrando as moedas de prata; continua beijando Jesus Cristo; continua jogando as moedas de prata no templo; continua atando o laço da corda no campo de sangue. (Erfjord, para justificar essa afirmação, invoca o último capítulo do primeiro tomo da Vindicação da Eternidade, de Jaromir Hladik.)

morreu por ter divulgado o oculto nome de Roma; que infinito castigo seria o seu, por ter descoberto e divulgado o horrível nome de Deus?

Ébrio de insônia e de vertiginosa dialética, Nils Runeberg errou pelas ruas de Malmö, suplicando em gritos que lhe fosse oferecida a graça de compartilhar com o Redentor o Inferno.

Morreu da ruptura de um aneurisma, a primeiro de março de 1912. Os heresiólogos talvez haverão de lembrá-lo; acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as complexidades do mal e do infortúnio.

1944


































O FIM




Recabarren, deitado, entreabriu os olhos e viu o oblíquo forro de junco. Do outro quarto chegava-lhe um rasqueado de guitarra, uma espécie de paupérrimo labirinto que se enredava e desatava infinitamente... Recobrou, pouco a pouco, a realidade, as coisas cotidianas que já nunca mais trocaria por outras. Olhou sem lástima seu grande corpo inútil, o poncho de lã ordinária que lhe cobria as pernas. Fora, além das grades da janela, dilatavam-se a planície e a tarde; dormira, mas ainda ficara muita luz no céu. Com o braço esquerdo tateou, até dar com a sineta de bronze que estava ao pé do catre. Uma ou duas vezes a agitou; do outro lado da porta, continuavam chegando até ele os modestos acordes. O tocador era um negro que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que provocara outro forasteiro a um longo e improvisado desafio. Vencido, continuava freqüentando o armazém, como à espera de alguém. Passava as horas com a guitarra, mas não voltara a cantar; talvez a derrota o tivesse desgostado. As pessoas já se haviam acostumado a esse homem inofensivo. Recabarren, dono do armazém, não se esqueceria desse desafio; no dia seguinte, ao acomodar alguns fardos de erva, seu lado direito se imobilizara bruscamente e perdera a fala. À força de apiedar-nos das desventuras dos heróis dos romances, terminamos apiedando-nos excessivamente das próprias desventuras; não assim o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como antes aceitara o rigor e as solidões da América. Habituado a viver no presente, como os animais, agora olhava o céu e pensava que o halo vermelho da lua era sinal de chuva.

Um menino de feições indiáticas (filho seu, talvez) entreabriu a porta. Recabarren perguntou-lhe com os olhos se havia algum freguês. O menino, taciturno, disse-lhe por sinais que não; o negro não contava. O homem prostrado ficou só; sua mão esquerda brincou um instante com a sineta, como se exercitasse um poder.

A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como vista num sonho. Um ponto moveu-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro que vinha, ou parecia vir, para casa. Recabarren viu o chapéu de abas largas, o longo poncho escuro, o cavalo mouro, mas não o rosto do homem, que, por fim, segurou o galope e veio aproximando-se a trote lento. A umas duzentas varas de distância virou. Recabarren não o viu mais, porém o escutou vozear, apear-se, amarrar o cavalo ao palanque e entrar com passo firme no armazém.

Sem alçar os olhos do instrumento, no qual parecia procurar alguma coisa, o negro disse com doçura:

– Já sabia eu que podia contar com o senhor.

O outro, com voz áspera, replicou:

– E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.

Houve um silêncio. Por fim, o negro respondeu:

– Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.

O outro explicou sem pressa:

– Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive às punhaladas.

– Já compreendi – disse o negro –. Espero que os tenha deixado com saúde.

O forasteiro, que se sentara no balcão, riu com vontade. Pediu uma cachaça e a degustou sem concluí-la.

– Dei-lhes bons conselhos – declarou –, que nunca são demais e nada custam. Disse-lhes, entre outras coisas, que o homem não deve derramar o sangue do homem.

Um lento acorde precedeu a resposta do negro:

– Fez bem. Assim não se parecerão a nós.

– Pelo menos a mim – disse o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: – Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe-me a faca na mão.

O negro, como se não o ouvisse, observou:

– Com o outono se vão encurtando os dias.

Pôs-se mesmo diante do negro e falou-lhe com ar cansado:

Deixa em paz a guitarra, que hoje te espera outra espécie de contraponto.

Os dois homens encaminharam-se à porta. O negro, ao sair, murmurou:

– Talvez neste me saia tão mal como no primeiro.

O outro respondeu com seriedade:

– No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que tinhas vontade de chegar ao segundo.

Afastaram-se um pouco das casas, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no antebraço, quando o negro disse:

– Uma coisa quero pedir-lhe antes da briga. Que nesta briga ponha toda a sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.

Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martín Fierro tenha ouvido o ódio. Seu sangue o sentiu como um acicate. Entreveraram-se e o aço afiado luziu e marcou a cara do negro.

Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a compreendemos mas é intraduzível como uma música... De seu catre, Recabarren viu o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, ameaçou um talho no rosto e caiu com uma punhalada profunda, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o dono do armazém não conseguiu precisar, e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua laboriosa agonia. Limpou o facão ensangüentado no pasto e voltou às casas com lentidão, sem olhar para trás. Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e matara um homem.






























A SEITA DA FÊNIX




Aqueles que escrevem que a seita da Fênix teve sua origem em Heliópolis e a derivam da restauração religiosa que sucedeu à morte do reformador Amenófis IV alegam
textos de Heródoto, de Tácito e dos monumentos egípcios, mas ignoram, ou querem ignorar, que a denominação da Fênix não é anterior a Hrabano Mauro e que as fontes mais antigas (as Saturnais ou Flávio Josefo, digamos) só falam da Gente do Costume ou da Gente do Segredo. Já Gregorovius observou, nos conventículos de Ferrara, que a menção à Fênix era raríssima na linguagem oral; em Genebra, tratei com artesãos que não me compreenderam quando perguntei se eram homens da Fênix, mas que admitiram, imediatamente, ser homens do Segredo. Se não me engano, semelhante coisa acontece com os budistas; o nome pelo qual os conhece o mundo não é o que eles pronunciam.

Miklosich, numa página bastante famosa, equiparou os sectários da Fênix aos ciganos. No Chile e na Hungria há ciganos e também há sectários; fora dessa espécie de ubiqüidade, muito pouco têm em comum, uns e outros. Os ciganos são negociantes, caldeireiros, ferreiros e ledores da sorte; os sectários costumam exercer felizmente as profissões liberais. Os ciganos configuram um tipo físico e falam, ou falavam, um idioma secreto; os sectários confundem-se com os demais e a prova é que não têm sofrido perseguições. Os ciganos são pitorescos e inspiram os maus poetas; os romances, os cromos e os boleros omitem os sectários... Martim Buber declara que os judeus são essencialmente patéticos; nem todos os sectários o são e alguns abominam o patético; esta pública e notória verdade basta para refutar o erro vulgar (absurdamente defendido por Urmann) que vê na Fênix uma derivação de Israel. Discorre-se mais ou menos assim: Urmann era um homem sensível; Urmann era judeu; Urmann freqüentou os sectários nos guetos de Praga; a afinidade que Urmann sentiu comprova um fato real. Sinceramente, não posso concordar com essa opinião. Que os sectários num meio judaico pareçam-se aos judeus não comprova nada; o inegável é que se parecem, como o infinito Shakespeare de Hazlitt, a todos os homens do mundo. São tudo para todos, como o Apóstolo; dias atrás, o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, ponderou a facilidade com que se acrioulavam.

Disse que a história da seita não registra perseguições. Isso é verdade, mas como não há grupo humano em que não figurem partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não hajam padecido ou exercido. Nas guerras ocidentais e nas remotas guerras da Ásia verteram-lhes o sangue secularmente, sob bandeiras inimigas; muito pouco lhes vale identificar-se com todas as nações do orbe.

Sem um livro sagrado que os congregue como a Escritura a Israel, sem uma memória comum, sem essa outra memória que é um idioma, espalhados pela face da terra, diversos em cor e em traços, uma única coisa – o Segredo – os une e os unirá até o fim dos dias. Certa vez, além do Segredo, houve uma lenda (e quiçá um mito cosmogônico), mas os superficiais homens da Fênix esqueceram-na e hoje apenas guardam a obscura tradição de um castigo. De um castigo, de um pacto ou de um privilégio, porque as versões diferem e somente deixam entrever a sentença de um Deus que assegura a uma estirpe a eternidade, se os homens dela, geração após geração, praticarem um rito. Consultei os relatos dos viajantes, conversei com patriarcas e teólogos; posso dar fé de que o cumprimento do rito é a única prática religiosa que observam os sectários. O rito constitui o Segredo. Este, como já indiquei, transmite-se de geração a geração, mas o uso não quer que as mães o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes; a iniciação no mistério é tarefa dos indivíduos mais desprezíveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem de mistagogos. Também um menino pode doutrinar outro menino. O ato em si é trivial, momentâneo e não requer descrição. Os materiais são a cortiça, a cera ou a goma-arábica. (Na liturgia, fala-se de lodo; este se costuma usar também.) Não há templos dedicados especialmente à celebração desse culto, mas uma ruína, um porão ou um vestíbulo são considerados lugares propícios. O Segredo é sagrado mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para denominá-lo, mas se entende que todas as palavras o denominam, ou antes, que inevitavelmente o aludem, e assim, no diálogo eu disse uma coisa qualquer e os adeptos sorriram ou se incomodaram, porque sentiram que eu tinha tocado o Segredo. Nas literaturas germânicas há poemas escritos por sectários, cujo sujeito nominal é o mar ou o crepúsculo da noite; são, de algum modo, símbolos do Segredo, ouço repetir. "Orbis terrarum est speculum Ludi" reza um adágio apócrifo que Du Cange registrou em seu Glossário. Uma espécie de horror sagrado impede a alguns fiéis a realização do simplicíssimo rito; os outros os desprezam, mas eles se desprezam ainda mais. Gozam de forte crédito, em troca, os que deliberadamente renunciam ao Costume e obtêm um comércio direto com a divindade; estes, para manifestar esse comércio, fazem-no com figuras da liturgia, e assim John of the Rood escreveu:

Saibam os Nove Firmamentos que o Deus
É deleitável como a Cortiça e o Lodo.

Tenho merecido em três continentes a amizade de muitos devotos da Fênix; consta-me que o Segredo, a princípio, pareceu-lhes frívolo, penoso, vulgar e (o que é mais estranho) inacreditável. Não concordavam em admitir que seus pais se houvessem rebaixado a tais práticas. O estranho é que o Segredo não se tenha perdido, há muito; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, surpreendentemente, a todos os fiéis. Alguém não vacilou em afirmar que já é instintivo.
























































O SUL




O homem que desembarcou em Buenos Aires em 1871 chamava-se Johannes Dahlmann e era pastor da igreja evangélica; em 1939, um de seus netos, Juan Dahlmann, era secretário de uma biblioteca municipal, à rua Córdoba, e sentia-se profundamente argentino. Seu avô materno fora aquele Francisco Flores, do 2 de infantaria de linha, que morreu na fronteira de Buenos Aires, lanceado pelos índios de Catriel; na discórdia de suas duas linhagens, Juan Dahlmann (talvez por impulso do sangue germânico) elegeu a desse antepassado romântico, ou de morte romântica. Um estojo com o daguerreótipo de um homem inexpressivo e barbudo, uma velha espada, a felicidade e a coragem de certas músicas, o hábito de estrofes do Martín Fierro, os anos, o fastio e a solidão fomentaram esse crioulismo algo voluntário, mas nunca ostensivo. À custa de algumas privações, Dahlmann havia conseguido salvar a sede de uma estância no Sul, que foi dos Flores; um dos hábitos de sua memória era a imagem dos eucaliptos balsâmicos e da ampla casa rosada que certa vez havia sido carmesim. As tarefas e talvez a indolência o retinham na cidade. Verão após verão, contentava-se com a idéia abstrata de posse e com a certeza de que sua casa o estava esperando, em um lugar preciso da planície. Nos últimos dias de fevereiro de 1939, alguma coisa lhe aconteceu.

Cego às culpas, o destino pode ser desapiedado com as mínimas distrações. Dahlmann tinha obtido, essa tarde, um exemplar incompleto das Mil e Uma Noites de Weil; ávido para examinar esse achado, não esperou que descesse o elevador e subiu apressado as escadas; algo na escuridão roçou-lhe a fronte; um morcego, um pássaro? Na fisionomia da mulher que lhe abriu a porta, viu gravado o horror, e a mão que passou na testa saiu vermelha de sangue. A aresta de um batente recém-pintado que alguém se esqueceu de fechar tinha-lhe feito essa ferida. Dahlmann conseguiu dormir, mas de madrugada acordara e desde aquela hora o sabor de todas as coisas foi atroz. A febre o desgastou e as ilustrações das Mil e Uma Noites serviram para decorar pesadelos. Amigos e parentes o visitavam e com exagerado sorriso lhe repetiam que o achavam muito bem. Dahlmann ouvia-os com uma espécie de fraco estupor e surpreendia-lhe que não soubessem que estava no inferno. Oito dias passaram, como oito séculos. Uma tarde, o médico habitual apresentou-se com um novo médico e conduziram-no a um clínica da rua Equador, porque era indispensável tirar-lhe uma radiografia. Dahlmann, no carro de praça que os levou, pensou que num quarto que não fosse o seu poderia, afinal, dormir. Sentiu-se feliz e conversador, logo que chegou, despiram-no, rasparam-lhe a cabeça, prenderam-no a uma maca, iluminaram-no até a cegueira e a vertigem, auscultaram-no e um homem mascarado cravou-lhe uma agulha no braço. Despertou com náuseas, vendado, numa cela que tinha alguma coisa de poço e, nos dias e noites que seguiram à operação, pôde entender que apenas tinha estado, até então, num arrabalde do inferno. O gelo não deixava em sua boca o menor rasto de frescor. Nesses dias, Dahlmann odiou-se minuciosamente; odiou sua identidade, suas necessidades corporais, sua humilhação, a barba que lhe eriçava o rosto. Sofreu com estoicismo os curativos, que eram muito dolorosos, porém, quando o cirurgião lhe disse que estivera a ponto de morrer de uma septicemia, Dahlmann pôs-se a chorar, condoído de seu destino. As misérias físicas e a incessante previsão das noites ruins não lhe haviam deixado pensar em algo tão abstrato como a morte. No dia seguinte, o cirurgião disse-lhe que estava se recuperando e que, brevemente, poderia ir convalescer na estância. Por incrível que pareça, o dia prometido chegou.

A realidade gosta das simetrias e dos leves anacronismos; Dahlmann havia chegado à clínica num carro de praça e agora um carro de praça o levava à estação Constitución. O primeiro frescor do outono, depois da opressão do verão, era como um símbolo natural de seu destino resgatado da morte e da febre. A cidade, às sete da manhã, não tinha perdido esse aspecto de casa velha que lhe infunde a noite; as ruas eram como amplos saguões, as praças como pátios. Dahlmann a reconhecia com felicidade e com um princípio de vertigem; segundos antes que registrassem seus olhos, recordava as esquinas, os cartazes, as modestas diferenças de Buenos Aires. Na luz amarela do novo dia, todas as coisas regressavam a ele.

Ninguém ignora que o Sul começa do outro lado da rua Rivadavia. Dahlmann costumava repetir que isso não é uma convenção e que quem atravessa essa rua entra num mundo mais antigo e mais duro. Do carro procurava, entre a nova edificação, a janela de grades, a aldrava, o arco da porta, o vestíbulo, o íntimo pátio.

No hall da estação percebeu que faltavam trinta minutos. Lembrou-se bruscamente de que num café da rua Brasil (a poucos metros da casa de Yrigoyen) havia um enorme gato que se deixava acarinhar pelas pessoas, como uma divindade desdenhosa. Entrou. Aí estava o gato, adormecido. Pediu uma xícara de café, adoçou-o lentamente, experimentou-o (esse prazer lhe tinha sido proibido na clínica) e pensou, enquanto alisava a negra pelagem, que aquele contato era ilusório e que estavam como separados por uma vidraça, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante.

Ao longo da penúltima plataforma o trem esperava. Dahlmann percorreu os vagões e deparou com um quase vazio. Acomodou na rede a mala; quando o trem arrancou, abriu-a e tirou, depois de certa vacilação, o primeiro tomo das Mil e Uma Noites. Viajar com esse livro, tão vinculado à história de sua desventura, era uma afirmação de que essa desdita havia sido anulada e um desafio alegre e secreto às frustradas forças do mal.

Nas laterais do trem, a cidade desgarrava-se em subúrbios; essa visão e depois a de jardins e chácaras retardaram o princípio da leitura. A verdade é que Dahlmann leu pouco; a montanha de pedra-ímã e o gênio que tinha jurado matar seu benfeitor eram, quem o nega, maravilhosos, não muito mais, contudo, que a manhã e que o fato de ser. A felicidade o distraía de Scherazade e de seus milagres supérfluos; Dahlmann fechava o livro e deixava-se simplesmente viver.

O almoço (com a sopa servida em tigelas de metal reluzente, como nos já remotos veraneios da infância) foi outro prazer tranqüilo e agradecido.

"Amanhã acordarei na estância", pensava, e era como se a um tempo fosse dois homens: o que avançava pelo dia outonal e pela geografia da pátria, e o outro, enclausurado numa clínica e dependente de metódicas criadagens. Viu casas de tijolos sem reboco, esquinadas e amplas, infinitamente encarando passar os trens; viu cavalos nos terrosos caminhos; viu sangas e lagoas e fazenda; viu grandes nuvens luminosas que pareciam de mármore, e todas essas coisas eram casuais, como sonhos da planície. Também acreditou reconhecer árvores e sementeiras que não pudera nomear, porque seu direto conhecimento do campo era bastante inferior a seu conhecimento nostálgico e literário.

Em dado momento, dormiu e em seus sonhos estava o ímpeto do trem. já o branco sol intolerável das doze do dia era o sol amarelo que precede o anoitecer e não tardaria a ser vermelho. Também o vagão era diferente; não era o que tinha sido em Constitución, ao deixar a plataforma: a planície e as horas o haviam atravessado e transfigurado. Fora, a móvel sombra do vagão alongava-se em direção ao horizonte. Não turbavam a terra elementar nem povoações, nem outros sinais humanos. Tudo era vasto, mas ao mesmo tempo era íntimo e, de alguma maneira, secreto. No campo desmedido, às vezes não havia nada a não ser um touro. A solidão era perfeita e talvez hostil, e Dahlmann pôde suspeitar que viajava ao passado e não só ao Sul. Dessa conjetura fantástica distraiu-o o inspetor, que, ao ver sua passagem, avisou-lhe que o trem não o deixaria na estação de sempre, senão em outra, um pouco anterior e quase desconhecida por Dahlmann. (O homem acrescentou uma explicação que Dahlmann não tentou entender, nem sequer ouvir, porque o mecanismo dos fatos não lhe importava.)

O trem parou com dificuldade, quase no meio do campo. Do outro lado dos trilhos, ficava a estação, que era pouco mais que uma plataforma com cobertura. De nenhum veículo dispunham, mas o chefe opinou que talvez pudesse conseguir um na casa de comércio que lhe indicou a umas dez, doze quadras.

Dahlmann aceitou a caminhada como uma pequena aventura. já se havia posto o sol, mas um esplendor final exaltava a viva e silenciosa planície, antes que a apagasse a noite. Menos para não se cansar do que para fazer durar essas coisas, Dahlmann caminhava devagar, aspirando com grave felicidade o olor do trevo.

O armazém já tinha sido vermelho-vivo, mas os anos mitigaram para seu bem essa cor violenta. Algo em sua pobre arquitetura recordou-lhe uma gravura em aço, talvez de uma velha edição de Paulo e Virgínia. Atados ao palanque havia alguns cavalos. Dahlmann, dentro, acreditou reconhecer o proprietário; depois compreendeu que o enganara sua semelhança com um dos empregados da clínica. O homem, ouvido o caso, disse que faria com que lhe atrelassem a jardineira; para acrescentar outro fato àquele dia e para preencher esse tempo, Dahlmann resolveu comer no armazém.

Numa mesa comiam e bebiam ruidosamente alguns rapagões, nos quais Dahlmann, de início, não prestou atenção. No chão, encostado ao balcão, acocorava-se, imóvel como uma coisa, um homem bastante velho. Os muitos anos haviam-no reduzido e polido como as águas a uma pedra ou as gerações dos homens a um refrão. Era escuro, pequeno e ressequido, e estava como fora do tempo, numa eternidade. Dahlmann registrou com satisfação a faixa de pano na testa, o poncho de baeta, o amplo chiripá e a bota de potro, e disse a si mesmo, rememorando inúteis discussões com pessoas dos partidos do Norte ou com entrerrianos, que gaúchos desses só restam no Sul.

Dahlmann acomodou-se perto da janela. A escuridão foi se apoderando do campo, mas seu olor e seus rumores ainda lhe chegavam entre as grades. O proprietário trouxe-lhe
sardinhas e depois carne assada; Dahlmann as engoliu com alguns copos de vinho tinto. Ocioso, degustava o áspero sabor e deixava vagar o olhar, já um pouco sonolento, pelo local. A lâmpada de querosene pendia de uma das vigas; os fregueses da outra mesa eram três: dois pareciam peões de chácara; outro, de traços mestiços e desajeitados, bebia com o chapelão na cabeça. Dahlmann, logo, sentiu um leve roçar no rosto. Perto do copo ordinário de vidro turvo, sobre uma das listras da toalha, havia uma bolinha de miolo de pão. Isso era tudo, mas alguém lha atirara.

Os da outra mesa pareciam alheios a ele. Dahlmann, perplexo, decidiu que nada tinha acontecido e abriu o volume das Mil e Uma Noites, como para esconder a realidade. Outra bolinha o atingiu poucos minutos depois, e desta vez os peões riram. Dahlmann disse a si mesmo que não estava assustado, mas que seria um disparate para ele, um convalescente, deixar-se arrastar por desconhecidos a uma briga confusa. Resolveu sair; já estava de pé quando o proprietário se aproximou dele e o exortou com voz alarmada:

– Senhor Dahlmann, não faça caso desses moços, que estão meio alegres.

Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato, a situação. Antes, a provocação dos peões era a um rosto acidental, quase a ninguém; agora ia contra ele e contra seu nome e o saberiam os vizinhos. Dahlmann afastou para um lado o proprietário, enfrentou os peões e perguntou-lhes o que andavam procurando.

O compadrito da cara mestiça ergueu-se cambaleando. A um passo de Juan Dahlmann injuriou-o a gritos, como se estivesse muito longe. Brincava de exagerar sua bebedeira e esse exagero era uma ferocidade e uma zombaria. Entre palavras ofensivas e obscenidades, atirou para o ar um facão, seguiu-o com os olhos, aparou-o, e convidou Dahlmann a brigar. O proprietário objetou com trêmula voz que Dahlmann estava desarmado. Nesse instante, algo imprevisível ocorreu.

De um canto, o velho gaúcho estático, no qual Dahlmann viu um signo do Sul (do Sul que era seu), atirou-lhe uma adaga desembainhada que veio cair a seus pés. Era como se o Sul tivesse resolvido que Dahlmann aceitasse o duelo. Dahlmann inclinou-se para recolher a adaga e sentiu duas coisas. A primeira, que esse ato quase instintivo o comprometia a lutar. A segunda, que a arma, em sua mão inábil, não serviria para defendê-lo, mas para justificar que o matassem. Certa vez havia brincado com um punhal, como todos os homens, porém sua esgrima não passava de uma noção de que os golpes devem ir para cima e com o fio para dentro. "Não teriam permitido na clínica que me acontecessem essas coisas", pensou.

– Vamos saindo - disse o outro.

Saíram, e se em Dahlmann não havia esperança, tampouco havia temor. Sentiu, ao transpor o umbral, que morrer em uma briga à faca, a céu aberto e atacando, teria sido uma libertação para ele, uma felicidade e uma festa, na primeira noite da clínica, quando lhe cravaram a agulha. Sentiu que se ele, então, tivesse podido escolher ou sonhar sua morte, esta é a morte que teria escolhido ou sonhado.

Dahlmann empunha com firmeza a faca, que provavelmente não saberá manejar, e sai à planície.











































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O Aleph
*****
JORGE LUIS BORGES


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Este livro: O Aleph , é parte integrante da coleção:

JORGE LUIS BORGES – OBRAS COMPLETAS
VOLUME 1

1923-1949
Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges – Obras Completas
98-3272
Copyright ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.

1ª Reimpressão-9/98 2ª Reimpressão-1/99 3ª Reimpressão – 12/99

Edição baseada em Jorge Luis Borges – Obras Completas,

publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. Frías

Capa: Joseph Llbach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak

Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Preparação de textos: Maria Carolina de Araújo

Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian,

Luciana Vieira Alves e Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

Fotolitos: GraphBox

Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos,

Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman

Agradecimentos especiais a Élida Lois

Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

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CEP O5346-9O2 – Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP

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etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.

Impressão e acabamento:

Gráfica Círculo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte – Câmara Brasileira do Livro, SP
Borges, Jorge Luis, 1899-1986.
Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. – São Paulo : Globo, 1999.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges.
Vários tradutores.
V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O
(v. 4.)

1. Ficção argentina 1. Título.
Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4

2. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4
CDD-ar863.4


O ALEPH – 1949
El Aleph
Tradução de Flávio José Cardozo
Revisão de tradução: Maria Carolina de Araújo
A Leonor Acevedo de Borges















ÍNDICE

( O imortal
( O morto
( Os teólogos
( História do guerreiro e da cativa
( Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829 – 1874)
( Emma Zunz
( A casa de Astérion
( A outra morte
( Deutsches Requiem
( A procura de Averróis
( O Zahir
( A escritura do Deus
( Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto
( Os dois reis e os dois labirintos
( A espera
( O homem no umbral
( O Aleph
( Epílogo
























O IMORTAL
__________________________________________


Solomon saith: "There is no new thing upon the
earth". So that as Plato had an imagination,
"that all knowledge was but remembrance"; so
Solomon giveth his sentence, "that all novelty is
but oblivion".

FRANCIS BACON: Essays LVIII.


Em Londres, em princípios do mês de junho de 1929, o antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu à princesa de Lucinge os seis volumes em quarto-menor (1715-172O) da Ilíada de Pope. A princesa adquiriu-os; ao recebê-los, trocou algumas palavras com ele. Era; diz-nos, um homem muito magro e terroso, de olhos apagados e barba cinzenta, de traços singularmente vagos. Empregava com fluidez e ignorância as diversas línguas; em poucos minutos, passou do francês ao inglês e do inglês a uma conjunção enigmática de espanhol de Salonica e de português de Macau. Em outubro, a princesa ouviu de um passageiro do Zeus que Cartaphilus havia morrido no mar, ao regressar a Esmirna, e que o haviam enterrado na ilha de Ios. No último tomo da Ilíada encontrou este manuscrito.

O original está escrito em inglês e é abundante em latinismos. A versão que oferecemos é literal.


I

Que eu me lembre, meus trabalhos começaram em um jardim de Tebas Hekatómpylos, quando Diocleciano era imperador. Militei (sem glória) nas recentes guerras egípcias, sendo tribuno de uma legião que esteve aquartelada em Berenice, diante do mar Vermelho: a febre e a magia consumiram muitos homens que cobiçavam com magnanimidade o aço. Os mauritanos foram vencidos; a terra, antes ocupada pelas cidades rebeldes, foi dedicada eternamente aos deuses plutônicos; Alexandria, debelada, implorou em vão a misericórdia de César; antes de um ano, as legiões alcançaram o triunfo, mas eu mal consegui divisar a face de Marte. Essa privação me doeu e foi talvez a causa de eu ter me lançado, por temerosos e extensos desertos, a descobrir a secreta Cidade dos Imortais.

Meus trabalhos, como disse, começaram em um jardim de Tebas. Toda essa noite não dormi, pois algo estava combatendo em meu coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro vencido e ensangüentado vinha do oriente. A uns passos de mim, caiu do cavalo. Com tênue voz insaciável, perguntou-me em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade. Respondi-lhe que era o Egito, que as chuvas alimentam. "Outro é o rio que persigo", replicou com tristeza, "o rio secreto que purifica da morte os homens". Escuro sangue brotava de seu peito. Disse-me que sua pátria era uma montanha que está do outro lado do Ganges e que nessa montanha se falava que, se alguém caminhasse até o ocidente, onde o mundo se acaba, chegaria ao rio cujas águas dão a imortalidade. Acrescentou que na margem ulterior se ergue a Cidade dos Imortais, rica em baluartes e anfiteatros e templos. Antes do amanhecer, morreu, mas determinei descobrir a cidade e seu rio. Interrogados pelo verdugo, alguns prisioneiros mauritanos confirmaram a informação do viajante; alguém lembrou a planície elísia, no fim da terra, onde a vida dos homens é perdurável; outro, os cumes onde nasce o Pactolo, cujos moradores vivem um século. Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que prolongar a vida do homem era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes. Ignoro se acreditei alguma vez na Cidade dos Imortais: penso que então me bastou o trabalho de procurá-la. Flávio, procônsul de Getúlia, entregou-me duzentos soldados para a tarefa. Também recrutei mercenários, que se disseram conhecedores dos caminhos e foram os primeiros a desertar.

Os fatos posteriores deformaram até o inextricável a lembrança de nossas primeiras jornadas. Partimos de Arsinoe e entramos no abrasado deserto. Atravessamos o país dos trogloditas, que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra; o dos garamantes da Líbia, que têm as mulheres em comum e se nutrem de leões; o da tribo dos augilas, que só veneram o Tártaro. Fatigamos outros desertos, onde é negra a areia, onde o viajante deve roubar as horas da noite, pois o fervor do dia é intolerável. De longe divisei a montanha que deu nome ao Oceano: em suas ladeiras cresce o eufórbio, que anula os venenos; no cume, vivem os sátiros, nação de homens cruéis e rústicos, inclinados à luxúria. Que essas regiões bárbaras, onde a terra é mãe de monstros, pudessem abrigar em seu seio uma cidade famosa, a todos nos pareceu inconcebível. Prosseguimos na marcha, pois teria sido uma desonra retroceder. Alguns temerários dormiram com o rosto exposto à
lua; a febre os queimou; na água corrompida das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Então, começaram as deserções; muito pouco depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei no exercício da severidade. Procedi corretamente, mas um centurião me advertiu que os sediciosos (ávidos por vingar a crucificação de um deles) tramavam minha morte. Fugi do acampamento, com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto, perdi-os entre os redemoinhos de areia e a vasta noite. Uma flecha cretense me lacerou. Por vários dias, errei sem encontrar água, ou por um só enorme dia multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. Na aurora, a distância encrespou-se de pirâmides e de torres. Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.






II


Ao desenredar-me por fim desse pesadelo, vi-me atirado e manietado a um oblongo nicho de pedra, não maior que uma sepultura comum, superficialmente escavado no áspero
declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.

A urgência da sede me fez temerário. Considerei que estava a uns trinta pés da areia: de olhos fechados, com as mãos atadas às costas, atirei-me montanha abaixo. Afundei o rosto ensangüentado na água escura. Bebi como abeberam os animais. Antes de perder-me outra vez no sonho e nos delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: "Os ricos teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo..."

Não sei quantos dias e noites rodopiaram sobre mim. Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, despido na ignorada areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu aziago destino. Os trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver ou a morrer. Em vão, roguei-lhes que me dessem a morte. Um dia, com o fio de um pedernal, parti minhas ligaduras. Em outro, levantei-me e pude mendigar ou roubar – eu, Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma – minha primeira detestada ração de carne de serpente.

A ânsia de ver os Imortais, de tocar a sobre-humana Cidade, quase me impedia de dormir. Como se penetrassem em meu propósito, não dormiam também os trogloditas: a princípio, inferi que me vigiavam; depois, que se haviam contagiado por minha inquietude, como poderiam contagiar-se os cães. Para afastar-me da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o cair da tarde, quando todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente, sem vê-lo. Orei em voz alta, menos para suplicar o favor divino que para intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o arroio que os bancos de areia entorpecem e dirigi-me à Cidade. Confusamente, seguiram-me dois ou três homens. Eram (como os demais dessa linhagem) de minguada estatura; não inspiravam temor, mas repulsa. Tive de contornar algumas ribanceiras irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela pedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu a supusera próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a negra sombra de seus muros. Deteve-me uma espécie de horror sagrado. Tão abominados pelo homem são a novidade e o deserto que me alegrei que um dos trogloditas me tivesse acompanhado até o fim. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que rebrilhasse o dia.

Disse que a Cidade estava construída sobre uma meseta de pedra. Essa meseta, comparável a um alcantilado, não era menos árdua que os muros. Em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta. A força do dia fez com que me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que se abismava até a treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão; oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito; outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada. Habituei-me com horror a esse duvidoso mundo; considerei inacreditável que pudesse existir outra coisa além de porões providos de nove portas e além de longos porões que se bifurcavam. Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que certa vez confundi, na mesma nostalgia, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre as videiras.

No fundo de um corredor, um não previsto muro me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre mim. Ergui os ofuscados olhos: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a parecer-me de púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas do granito e do mármore. Foi-me assim concedido ascender da cega região de negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.

Emergi numa espécie de pequena praça, ou melhor, de pátio. Circundava-o um só edifício de forma irregular e altura variável; a esse edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer outro traço desse monumento inacreditável, causou-me admiração o antiquíssimo de sua construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à terra. Essa evidente antigüidade (embora, de algum modo, terrível para os olhos) pareceu-me adequada ao trabalho de operários imortais. Cautelosamente a princípio, com indiferença depois, com desespero por fim, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averigüei que eram inconstantes a extensão e a altura dos degraus, fato que me fez compreender a singular fadiga que me infundiram.) "Este palácio é obra dos deuses", pensei primeiramente. Explorei os inabitados recintos e corrigi: "Os deuses que o edificaram morreram". Notei suas peculiaridades e disse: "Os deuses que o edificaram estavam loucos". Disse isso, bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais horror intelectual que medo sensível. A impressão de enorme antigüidade juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente insensato. Eu havia cruzado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me atemorizou e repugnou. Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim. No palácio que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao costado de um muro monumental, morriam sem chegar a nenhuma parte, no fim de dois ou três giros, na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que desatinaram minhas noites. "Esta Cidade", pensei, "é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz". Não quero descrevê-la; um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximadas.

Não recordo as etapas de meu regresso, entre os poeirentos e úmidos hipogeus. Sei apenas que não me abandonava o temor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais. Nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi talvez voluntário; talvez as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.






III


Os que tiverem lido com atenção o relato de meus trabalhos lembrarão que um homem da tribo me seguiu, como um cão poderia seguir-me, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão, encontrei-o na boca da caverna. Estava atirado na areia, onde desenhava grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam. A princípio, pensei que se tratava de alguma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além disso, nenhuma das formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de serem simbólicas. O homem as traçava, olhava para elas e as corrigia. Subitamente, como se esse jogo o enfastiasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me, não pareceu reconhecer-me. Entretanto, tão grande era o alívio que me inundava (ou tão grande e medrosa minha solidão) que me pus a pensar que esse rudimentar troglodita, que me olhava do chão da caverna, estivera me esperando. O sol escaldava a planície; quando empreendemos o regresso à aldeia, sob as primeiras estrelas, a areia era ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; essa noite concebi o propósito de ensiná-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas palavras. O cachorro e o cavalo (refleti) são capazes do primeiro; muitas aves, como o rouxinol dos Césares, do último. Por muito grosseiro que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior ao de irracionais.

A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe. A alguns passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma pequena e arruinada esfinge de lava, deixava que sobre si girassem os céus, desde o crepúsculo do dia até o da noite. Julguei impossível que não se apercebesse de meu propósito. Lembrei-me de que se diz entre os etíopes que os macacos deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a suspicácia ou a temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras ainda mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava de outra maneira e construía com elas outros objetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa.

As noites do deserto podem ser frias, mas aquela tinha sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra um peixe de ouro) vinha resgatar-me; sobre a vermelha areia e a negra pedra eu o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o rumor atarefado da chuva me despertaram. Corri para recebê-la, despido. Declinava a noite; sob as nuvens amarelas, a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.

Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: "Argos, cão de Ulisses". E depois, também sem olhar-me: "Este cão atirado no esterco".

Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.

"Muito pouco", disse. "Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei."






IV


Tudo me foi dilucidado naquele dia. Os trogloditas eram os Imortais; o riacho de águas arenosas, o Rio que o cavaleiro procurava. Quanto à cidade cujo renome se havia espalhado até o Ganges, nove séculos fazia que os Imortais a haviam assolado. Com as relíquias de sua ruína ergueram, no mesmo lugar, a desatinada cidade que eu percorri: espécie de paródia ou reverso e também templo dos deuses irracionais que manejam o mundo e dos quais nada sabemos, salvo que não se parecem com o homem. Aquela fundação foi o último símbolo a que condescenderam os Imortais; marca uma etapa em que, julgando vã qualquer obra, determinaram viver no pensamento, na pura especulação. Erigiram a obra, esqueceram-na e foram morar nas covas. Absortos, quase não percebiam o mundo físico.

Homero narrou essas coisas como quem fala com uma criança. Também me falou de sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o mar, nem comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Viveu um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação da outra. Isto não nos deve surpreender; diz-se que, depois de cantar a guerra de Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criara o cosmos e em seguida o caos.

Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Industão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e gera a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto... Doutrinada num exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar, os números pares e os números ímpares tendem ao equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e talvez o rústico poema de Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Éclogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos... Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.

O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influiu enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei as antigas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem; um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a sede o abrasava; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos. Tampouco interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de restos de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímulo extraordinário nos restituía ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho prazer elementar da chuva. Esses lapsos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro se aninhava em seu peito.

Entre os corolários da doutrina de que não existe coisa que não esteja compensada por outra, há um de muito pouca importância teórica, mas que nos induziu, em fins ou em princípios do século X, a dispersar-nos pela face da terra. Cabe nestas palavras: "Existe um rio cujas águas dão a imortalidade; em alguma região haverá outro rio cujas águas a apaguem". O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, tendo bebido de todos. Propusemo-nos descobrir esse rio.

A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus.






V


Percorri novos reinos, novos impérios. No outono de 1O66, militei na ponte de Stamford, já não lembro se nas fileiras de Harold, que não tardou em encontrar seu destino, ou se nas daquele infausto Harald Hardrada, que conquistou seis pés de terra inglesa, ou um pouco mais. No sétimo século da Hégira, no arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em um idioma que esqueci, em um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze. Num pátio do cárcere de Samarcanda joguei muitíssimo o xadrez. Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia. Em 1638, estive em Kolozsvar e depois em Leipzig. Em Aberdeen, em 1714, assinei os seis volumes da Ilíada de Pope; sei que os freqüentei com deleite. Por volta de 1729, discuti a origem desse poema com um professor de retórica, chamado, creio, Giambattista; suas razões me pareceram irrefutáveis. No dia 4 de outubro de 1921, o Patna, que me conduzia a Bombaim, teve que fundear em um porto da costa eritréia.1 Desci; lembrei-me de outras manhãs muito antigas, também diante do mar Vermelho, quando era tribuno de Roma e a febre e a magia e a inação consumiam os soldados. Nos arredores, vi um caudal de água clara; provei-a, levado pelo costume. Ao subir à margem, uma árvore espinhosa me lacerou o dorso da mão. A inusitada dor me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz, contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos os homens. Nessa noite, dormi até o amanhecer.

...Revisei estas páginas, passado um ano. Parece-me que elas se ajustam à verdade, mas nos primeiros capítulos, e ainda em certos parágrafos dos outros, creio perceber algo falso. Isso é efeito, talvez, do abuso de traços circunstanciais, procedimento que aprendi com os poetas e que tudo contamina de falsidade, já que esses traços podem ser freqüentes nos fatos, mas não na memória deles... Creio, contudo, ter descoberto uma razão mais íntima. Vou escrevê-la; não importa que me julguem fantástico.

A história que narrei parece irreal porque nela se mesclam os sucessos de dois homens diferentes. No primeiro capítulo, o cavaleiro quer saber o nome do rio que banha as muralhas de Tebas; Flamínio Rufo, que antes dera à cidade o epíteto de Hekatómpylos, diz que o rio é o Egito; nenhuma dessas locuções é adequada a ele, mas a Homero, que faz menção expressa, na Ilíada, a Tebas Hekatómpylos, e na Odisséia, pela boca de Proteu e de Ulisses, diz invariavelmente Egito por Nilo. No capítulo segundo, o romano, ao beber a água imortal, pronuncia algumas palavras em grego; essas palavras são homéricas e podem ser encontradas no fim do famoso catálogo das naves. Depois, no vertiginoso palácio, fala de "reprovação que era quase remorso"; essas palavras correspondem a Homero, que havia projetado esse horror. Tais anomalias me inquietaram; outras, de ordem estética, permitiram-me descobrir a verdade. O último capítulo as inclui; aí está escrito que militei na ponte de Stamford, que transcrevi, em Bulaq, as viagens de Simbad,
o Marinheiro, e que assinei, em Aberdeen, a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: "Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia". Nenhum desses testemunhos é falso; significativo é o fato de havê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas logo se percebe que o narrador não repara no bélico e sim no destino dos homens. Os que seguem são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; fiz isso porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, muitos séculos depois, em um reino boreal e em um idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à frase que reúne o nome de Bikanir, vê-se que foi construída por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de mostrar vocábulos esplêndidos.2

Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da lembrança; só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que alguma vez me representaram com as que foram símbolos do destino de quem me acompanhou, por tantos séculos. Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve, serei todos: estarei morto.


Pós-escrito de 195O. Entre os comentários que a publicação anterior despertou, o mais curioso, já que não o mais urbano, biblicamente se intitula A Coat of Many Colours (Manchester,1948) e é obra da pena tenacíssima do doutor Nahum Cordovero. Compreende umas cem páginas. Fala dos centões gregos, dos centões da baixa latinidade, de Ben Jonson, que definiu seus contemporâneos com trechos de Sêneca, do Virgilius Evangelizans de Alexander Ross, dos artifícios de George Moore e de Eliot e, finalmente, da "narração atribuída ao antiquário Joseph Cartaphilus". Denuncia, no primeiro capítulo, breves interpolações de Plínio (Historia Naturalis, V, 8); no segundo, de Thomas de Quincey (Writings,111, 439); no terceiro, de uma epístola de Descartes ao embaixador Pierre Chanut; no quarto, de Bernard Shaw (Back to Methuselah, V). Infere dessas intrusões, ou furtos, que todo o documento é apócrifo.

No meu entender, a conclusão é inadmissível. "Quando se aproxima o fim", escreveu Cartaphilus, "já não restam imagens da lembrança; só restam palavras". Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.

Para Cecília Ingenieros.



























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Notas:
1 Há uma rasura no manuscrito; talvez o nome do porto tenha sido apagado.
2 Ernesto Sábato sugere que o "Giambattista" que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano sustentava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.
















































O MORTO
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Que um homem do subúrbio de Buenos Aires, que um triste compadrito sem mais virtude que a enfatuação da coragem, se interne nos desertos eqüestres da fronteira com o Brasil e chegue a capitão de contrabandistas, parece de antemão impossível. Aos que assim o entendem, quero contar o destino de Benjamín Otálora, de quem talvez não reste nenhuma lembrança no bairro de Balvanera e que morreu, a seu modo, de um balaço, nos confins do Rio Grande do Sul. Ignoro pormenores de sua aventura; quando me forem revelados, hei de retificar e ampliar estas páginas. Por ora este resumo pode ser útil.

Benjamín Otálora conta, por volta de 1891, dezenove anos. É um rapagão de fronte pequena, de sinceros olhos claros, com o vigor dos bascos; uma punhalada feliz revelou-lhe que é homem valente; não o inquieta a morte do adversário, tampouco a imediata necessidade de fugir da República. O caudilho da paróquia dá-lhe uma carta para um tal Azevedo Bandeira, do Uruguai. Otálora embarca, a travessia é tormentosa e rangente; no outro dia, vagueia pelas ruas de Montevidéu, com inconfessada e talvez ignorada tristeza. Não encontra Azevedo Bandeira; pela meia-noite, num armazém do Paso del Molino, assiste a uma discussão entre alguns tropeiros. Um punhal rebrilha; Otálora não sabe de que lado está a razão, mas o atrai o puro sabor do perigo, como a outros o baralho ou a música. Segura, no entrevem, uma punhalada baixa que um peão desfere contra um homem de chapéu escuro e de poncho. Este, depois, resulta ser Azevedo Bandeira. (Otálora, ao sabê-lo, rasga a carta, porque prefere dever tudo a si mesmo.) Azevedo Bandeira, embora robusto, dá a injustificável impressão de aleijado; em seu rosto, sempre demasiado próximo, estão o judeu, o negro e o índio; em sua afetação, o macaco e o tigre; a cicatriz que lhe atravessa a face é mais um adorno, bem como o negro bigode cerdoso.

Projeção ou erro do álcool, a disputa cessa com a mesma rapidez com que se produziu. Otálora bebe com os tropeiros e depois os acompanha a uma farra e depois a um
casarão na Cidade Velha, já com o sol bem alto. No último pátio, que é de terra, os homens estendem os arreios para dormir. Obscuramente, Otálora compara essa noite com a anterior; agora já pisa terra firme, entre amigos. Inquieta-o algum remorso, isso sim, de não sentir saudades de Buenos Aires. Dorme até as seis, quando o desperta o paisano que, bêbado, agrediu Bandeira. (Otálora se lembra de que esse homem participou com os outros da noite de tumulto e de alegria e que Bandeira o sentou à sua direita e o obrigou a continuar bebendo.) O homem lhe diz que o patrão o manda buscar. Numa espécie de gabinete que dá para o vestíbulo (Otálora nunca viu um vestíbulo com portas laterais), Azevedo Bandeira o está esperando, com uma clara e desdenhosa mulher de cabelo ruivo. Bandeira examina-o, oferece-lhe um copo de aguardente, repete que ele parece um homem corajoso, propõe-lhe ir ao Norte com os demais para trazerem uma tropa. Otálora aceita; de madrugada, estão a caminho, rumo a Tacuarembó.

Começa então para Otálora uma vida diferente, uma vida de vastos amanheceres e de jornadas que têm o cheiro do cavalo. Essa vida é nova para ele, e às vezes atroz, mas já está em seu sangue, pois, assim como os homens de outras nações veneram e pressentem o mar, assim nós (também o homem que entretece estes símbolos) ansiamos pela planície interminável que ressoa sob os cascos. Otálora criou-se nos bairros de carreteiros e quarteadores; em menos de um ano se torna gaúcho. Aprende a montar, a entropilhar o gado, a carnear, a manejar o laço que subjuga e as boleadeiras que derrubam, a resistir ao sono, às tormentas, às geadas e ao sol, a tanger com o assobio e o grito. Só uma vez, durante esse tempo de aprendizado, vê Azevedo Bandeira, mas o tem muito presente, porque ser homem de Bandeira é ser considerado e temido, e porque, diante de qualquer gesto valente, os gaúchos dizem que Bandeira o faz melhor. Alguém opina que Bandeira nasceu do outro lado do Quaraí, no Rio Grande do Sul; isso, que deveria rebaixá-lo, obscuramente o enriquece de selvas populosas, de lamaçais, de inextricáveis e quase infinitas distâncias. Aos poucos, Otálora entende que os negócios de Bandeira são múltiplos e que o principal é o contrabando. Ser tropeiro é ser um criado; Otálora propõe-se ascender a contrabandista. Dois dos companheiros, numa noite, cruzarão a fronteira para voltar com algumas partidas de aguardente; Otálora provoca um deles, fere-o e toma seu lugar. Move-o a ambição e também uma obscura fidelidade. "Que o homem", pensa, "acabe por entender que tenho mais valor que todos os seus orientais juntos".

Outro ano passa antes que Otálora regresse a Montevidéu. Percorrem os arredores, a cidade (que a Otálora parece muito grande); chegam à casa do patrão; os homens estendem os arreios no último pátio. Passam os dias e Otálora não vê Bandeira. Dizem, com temor, que ele está enfermo; um homem moreno costuma subir a seu dormitório com a chaleira e o mate. Uma tarde, encarregam Otálora dessa tarefa. Ele sente-se vagamente humilhado, mas também satisfeito.

O dormitório é desmantelado e escuro. Há uma sacada para o poente, há uma longa mesa com uma resplandecente desordem de chicotes, de relhos, de cintos, de armas de fogo e de armas brancas, há um remoto espelho de cristal embaçado. Bandeira está de boca para cima; sonha e se lamenta; uma veemência de sol último o define. O enorme leito branco parece diminuí-lo e obscurecê-lo; Otálora observa os cabelos brancos, a fadiga, a debilidade, as rugas dos anos. Revolta-o que esse velho os esteja mandando. Pensa que um golpe bastaria para dar conta dele. Nisso, vê no espelho que alguém entrou. É a mulher de cabelo ruivo; está meio vestida e descalça, e o observa com fria curiosidade. Bandeira recompõe-se; enquanto fala de coisas da campanha e bebe um mate atrás do outro, seus dedos brincam com as tranças da mulher. Por fim, dá licença a Otálora para ir embora.

Dias depois, chega-lhes a ordem de irem para o Norte. Param em uma estância perdida, situada em qualquer lugar da interminável planície. Nem árvores nem um arroio a alegram, o primeiro sol e o último a golpeiam. Há currais de pedra para o gado, que tem grandes chifres e está necessitado. EI Suspiro é o nome desse pobre estabelecimento.

Otálora ouve na roda de peões que Bandeira não tardará a chegar de Montevidéu. Pergunta por quê; alguém esclarece que há um forasteiro agauchado que está querendo mandar demais. Otálora compreende que é um gracejo, mas lhe agrada que esse gracejo já seja possível. Verifica, depois, que Bandeira se inimizou com um dos chefes políticos e que este lhe retirou seu apoio. Ele gosta dessa notícia.

Chegam caixões de armas longas; chegam uma jarra e uma bacia de prata para o aposento da mulher; chegam cortinas de intrincado damasco; chega das coxilhas, numa manhã, um cavaleiro sombrio, de barba cerrada e de poncho. Chama-se Ulpiano Suárez e é o capanga ou guarda-costas de Azevedo Bandeira. Fala muito pouco e de maneira abrasileirada. Otálora não sabe se atribui sua reserva a hostilidade, a desdém ou a mera barbárie. Sabe, isso sim, que para o plano que está maquinando tem de ganhar a amizade dele.

Entra depois no destino de Benjamín Otálora um alazão de extremidades negras, que Azevedo Bandeira traz do sul e que ostenta arreios chapeados e carona com bordas de pele de tigre. Esse cavalo liberal é símbolo da autoridade do patrão e por isso o cobiça o rapaz, que chega também a desejar, com desejo rancoroso, a mulher de cabelos resplandecentes. A mulher, os arreios e o alazão são atributos ou adjetivos de um homem que ele aspira a destruir.

Aqui a história se complica e se afunda. Azevedo Bandeira é hábil na arte da intimidação progressiva, na satânica manobra de humilhar gradativamente o interlocutor, combinando seriedade e brincadeira; Otálora resolve aplicar esse método ambíguo à dura tarefa que se propõe. Resolve suplantar, lentamente, Azevedo Bandeira. Consegue, em jornadas de perigo comum, a amizade de Suárez. Confia-lhe seu plano; Suárez lhe promete sua ajuda. Muitas coisas vão acontecendo depois, das quais sei algumas poucas. Otálora não obedece a Bandeira; dá para esquecer, corrigir, inverter suas ordens. O universo parece conspirar com ele e apressa os fatos. Num meio-dia, ocorre em campos de Tacuarembó um tiroteio com gente rio-grandense; Otálora usurpa o lugar de Bandeira e comanda os orientais. Uma bala atravessa-lhe o ombro, mas nessa tarde regressa a EI Suspiro no alazão do chefe e nessa tarde umas gotas de seu sangue mancham a pele de tigre e nessa noite dorme com a mulher de cabelos reluzentes. Outras versões mudam a ordem desses fatos e negam que eles tenham acontecido em um único dia.

Bandeira, entretanto, continua sendo nominalmente o chefe. Dá ordens que não se executam; Benjamín Otálora não toca nele, por um misto de rotina e de pena.

A última cena da história corresponde à agitação da última noite de 1894. Nessa noite, os homens de EI Suspiro comem cordeiro recém-carneado e bebem um álcool pendenciador. Alguém infinitamente zangarreia uma trabalhosa milonga. Na cabeceira da mesa, Otálora, bêbado, ergue brinde atrás de brinde, em júbilo crescente; essa torre de vertigem é símbolo de seu irresistível destino. Bandeira, taciturno entre os que gritam, deixa que flua clamorosa a noite. Quando soam as doze badaladas, levanta-se como quem se lembra de uma obrigação. Levanta-se e bate com suavidade à porta da mulher. Ela abre em seguida, como se esperasse o chamado. Sai meio vestida e descalça. Com uma voz que se afemina e se arrasta, o chefe lhe ordena:

– Já que tu e o portenho se querem tanto, agora mesmo vais dar um beijo nele, à vista de todos.

Acresce uma circunstância brutal. A mulher quer resistir, mas dois homens a tomam pelo braço e a lançam sobre Otálora. Arrasada em lágrimas, beija-o no rosto e no peito. Ulpiano Suárez empunha o revólver. Otálora compreende, na iminência da morte, que o traíram desde o princípio, que foi condenado à morte, que lhe permitiram o amor, o mando e o triunfo porque já o davam por morto, porque para Bandeira ele já estava morto.

Suárez, quase com desdém, abre fogo.






































OS TEÓLOGOS
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Arrasado o jardim, profanados os cálices e os altares, entraram a cavalo os hunos na biblioteca monástica e rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus, que era uma cimitarra de ferro. Arderam palimpsestos e códices, mas no coração da fogueira, entre as cinzas, permaneceu quase intato o livro duodécimo da Civitas Dei, que narra que Platão ensinou em Atenas e, no fim dos séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e que ele, em Atenas, diante do mesmo auditório, de novo ensinará essa doutrina. O texto que as chamas perdoaram desfrutou de veneração especial e os que o leram e releram nessa remota província esqueceram que o autor só declarou tal doutrina para poder melhor refutá-la. Um século depois, Aureliano, coadjutor de Aquiléia, soube que às margens do Danúbio a novíssima seita dos monótonos (chamados também anulares) professava que a história é um círculo e que nada é que não tenha sido e que não será. Nas montanhas, a Roda e a Serpente tinham deslocado a Cruz. Todos temiam, mas todos se confortavam com o boato de que João de Panonia, que se distinguira com um tratado sobre o sétimo atributo de Deus, ia impugnar tão abominável heresia.

Aureliano deplorou essas notícias, sobretudo a última. Sabia que em matéria teológica não há novidade sem perigo; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado dissímil, demasiado assombrosa para que o perigo fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia.) Mais lhe doeu a intervenção – a intrusão – de João de Panonia. Havia dois anos, ele usurpara com seu palavroso De Septima Affectione Dei Sive de Aeternitate um assunto da especialidade de Aureliano; agora, como se o problema do tempo lhe pertencesse, ia retificar, talvez com argumentos de Procusto, com triagas mais temíveis que a Serpente, os anulares... Nessa noite, Aureliano folheou o antigo diálogo de Plutarco sobre a cessação dos oráculos; no parágrafo vinte e nove, leu uma burla contra os estóicos que defendem um infinito ciclo de mundos, com infinitos sóis, luas, Apolos, Dianas e Poseidons. O achado pareceu-lhe prognóstico favorável; resolveu adiantar-se a João de Panonia e refutar os heréticos da Roda.

Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela; Aureliano, da mesma forma, queria superar João de Panonia para curar-se do rancor que ele lhe infundia, não para fazer-lhe mal. Temperado pelo mero trabalho, pela construção de silogismos e pela invenção de injúrias, pelos nego e os autem e os nequaquam, pôde esquecer esse rancor. Erigiu vastos e quase inextricáveis períodos, entrecortados por incisos, em que a negligência e o solecismo pareciam formas de desdém. Da cacofonia fez um instrumento. Previu que João ia fulminar os anulares com gravidade profética; para não coincidir com ele, optou pelo escárnio. Agostinho tinha escrito que Jesus é a via reta que nos salva do labirinto circular em que andam os ímpios; Aureliano, laboriosamente trivial, comparou-os a Ixion, ao fígado de Prometeu, a Sísifo, àquele rei de Tebas que viu dois sóis, à gaguice, a louros, a espelhos, a ecos, a mulas de carga e a silogismos bicornutos. (As fábulas gentílicas perduravam, rebaixadas a adornos.) Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; essa controvérsia permitiu-lhe chegar a um acordo com muitos livros que pareciam censurar sua incúria. Assim pôde engastar uma passagem da obra De Principiis de Orígenes, na qual se nega que Judas Iscariotes voltará a vender o Senhor, e Paulo, a presenciar o martírio de Estêvão em Jerusalém, e outra dos Academica Priora de Cícero, em que este zomba dos que sonham que, enquanto ele conversa com Lúculo, outros Lúculos e outros Cíceros, em número infinito, dizem exatamente o mesmo, em infinitos mundos iguais. Além disso, esgrimiu contra os monótonos o texto de Plutarco e denunciou o escândalo de que a um idólatra valesse mais o lumen naturae que a eles a palavra de Deus. Nove dias lhe tomou esse trabalho; no décimo, foi-lhe enviada uma cópia da refutação de João de Panonia.

Era quase irrisoriamente breve. Aureliano olhou-a com desdém e depois com temor. A primeira parte glosava os versículos finais do nono capítulo da Epístola aos Hebreus, na qual se diz que Jesus não foi sacrificado muitas vezes desde o início do mundo, senão agora uma vez na consumação dos séculos. A segunda alegava o preceito bíblico sobre as vãs repetições dos gentios (Mateus 6, 7) e aquela passagem do sétimo livro de Plínio, que pondera não haver no vasto universo duas faces iguais. João de Panonia declarava que tampouco há duas almas e que o pecador mais vil é precioso como o sangue que por ele verteu Jesus Cristo. O ato de um único homem (afirmou) pesa mais que os nove céus concêntricos, e imaginar que possa perder-se e voltar é uma aparatosa frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a eternidade guarda-o para a glória e também para o fogo. O tratado era límpido, universal; não parecia redigido por uma pessoa específica, mas por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens.

Aureliano sentiu uma humilhação quase física. Pensou em destruir ou reformar seu próprio trabalho; em seguida, com rancorosa probidade, mandou-o para Roma sem modificar uma letra. Meses depois, quando se reuniu o Concílio de Pérgamo, o teólogo encarregado de impugnar os erros dos monótonos foi (previsivelmente) João de Panonia; sua douta e comedida refutação bastou para que Euforbo, heresiarca, fosse condenado à fogueira. "Isto ocorreu e voltará a ocorrer", disse Euforbo. "Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto eu falei muitas vezes." Depois gritou, porque as chamas o atingiram.

Caiu a Roda diante da Cruz,1 mas Aureliano e João prosseguiram sua batalha secreta. Militavam os dois no mesmo exército, ansiavam pelo mesmo galardão, guerreavam contra o mesmo Inimigo, mas Aureliano não escreveu uma palavra que inconfessavelmente não pretendesse superar João. Seu duelo foi invisível; se os numerosos índices não me enganam, não figura uma única vez o nome do outro nos muitos volumes de Aureliano que a Patrologia de Migne entesoura. (Das obras de João, só permaneceram vinte palavras.) Os dois desaprovaram os anátemas do segundo Concílio de Constantinopla; os dois perseguiram os arianos, que negavam a geração eterna do Filho; os dois testemunharam a ortodoxia da Topographia Christiana de Cosmas, que ensina ser a terra quadrangular, como o tabernáculo hebreu. Desgraçadamente, pelos quatro ângulos da terra difundiu-se outra tempestuosa heresia. Oriunda do Egito ou da Ásia (porque os testemunhos diferem e Bousset não quer admitir as razões de Harnack), infestou as províncias orientais e erigiu santuários na Macedônia, em Cartago e em Tréveris. Parecia estar em todas as partes; foi dito que nas dioceses da Bretanha tinham sido invertidos os crucifixos e que a imagem do Senhor, em Cesaréia, viu-se suplantada por um espelho. O espelho e o óbolo eram emblemas dos novos cismáticos.

A história os conhece por muitos nomes (especulares, abismais, cainitas), mas de todos o mais aceito é histriões, dado por Aureliano e que eles com atrevimento adotaram. Na Frigia foram chamados de simulacros, e também na Dardânia. João Damasceno chamou-os de formas; é justo advertir que a passagem tem sido repelida por Erfjord. Não há heresiólogo que, com espanto, não aluda a seus desmedidos costumes. Muitos histriões professaram o ascetismo; um que outro se mutilou, como Orígenes; outros moraram debaixo da terra, nas cloacas; outros arrancaram os olhos; outros (os nabucodonosores de Nitria) "pastavam como os bois e seu cabelo crescia como as penas da águia". Da mortificação e do rigor passavam, muitas vezes, ao crime; certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a sodomia, o incesto e a bestialidade. Todas eram blasfemas; não só maldiziam o Deus cristão como as arcanas divindades de seu próprio panteão. Maquinaram livros sagrados, cujo desaparecimento os doutos deploram. Sir Thomas Browne, por volta de 1658, escreveu: "O tempo aniquilou os ambiciosos Evangelhos Histriônicos, não as Injúrias com que se fustigou sua Impiedade"; Erfjord sugeriu que essas "injúrias" (que um códice grego preserva) são os evangelhos perdidos. Isso é incompreensível, se ignoramos a cosmologia dos histriões.

Nos livros herméticos está escrito que o que existe embaixo é igual ao que existe em cima, e o que existe em cima, igual ao que existe embaixo; no Zohar, que o mundo inferior é reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma perversão dessa idéia. Invocaram Mateus 6, 12 ("perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos a nossos devedores") e 11, 12 ("o reino dos céus adquire-se à força") para demonstrar que a terra influi no céu, e I Coríntios 13,12 ("vemos agora como que por um espelho, em enigma") para demonstrar que tudo o que vemos é falso. Talvez contaminados pelos monótonos, imaginaram que todo homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Também imaginaram que nossos atos projetam um reflexo invertido, de maneira que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nos uniremos a ele e seremos ele. (Algum eco dessas doutrinas perdurou em Bloy.) Outros histriões discorreram que o mundo acabaria quando se esgotasse o número de suas possibilidades; já que não pode haver repetições, o justo deve eliminar (cometer) os atos mais infames, para que estes não manchem o futuro e para acelerar a vinda do reino de Jesus. Esse artigo foi negado por outras seitas, que defenderam que a história do mundo deve cumprir-se em cada homem. Os demais, como Pitágoras, deverão transmigrar por muitos corpos antes de conseguir sua liberação; alguns, os protéicos, "no termo de uma só vida são leões, são dragões, são javalis, são água e são uma árvore". Demóstenes cita a purificação pela lama a que eram submetidos os iniciados nos mistérios órficos; os protéicos, analogicamente, procuraram a purificação pelo mal. Entenderam, como Carpócrates, que ninguém sairá da prisão até pagar o último óbolo (Lucas 12, 59), e costumavam ludibriar os penitentes com este outro versículo: "Eu vim para que os homens tenham vida e para que a tenham em abundância" (João 10,10). Também diziam que não ser malvado é soberba satânica... Muitas e divergentes mitologias urdiram os histriões; uns pregaram o ascetismo, outros a licenciosidade, todos a confusão. Teopompo, histrião de Berenice, negou todas as fábulas; disse que cada homem é um órgão que projeta a divindade para sentir o mundo.

Os hereges da diocese de Aureliano eram dos que afirmavam que o tempo não tolera repetições, não dos que afincoavam que todo ato se reflete no céu. Essa circunstância era estranha; em um relatório às autoridades romanas, Aureliano mencionou-a. O prelado que receberia o relatório era confessor da imperatriz; ninguém ignorava que esse ministério exigente lhe vedava as íntimas delícias da teologia especulativa. Seu secretário – antigo colaborador de João de Panonia, agora inimizado com ele – gozava do renome de pontualíssimo inquisidor de heterodoxias; Aureliano acrescentou uma exposição da heresia histriônica, tal como esta se dava nos conventículos de Gênova e de Aquiléia. Redigiu alguns parágrafos; quando quis escrever a tese horrível de que não existem dois instantes iguais, sua pena se deteve. Não encontrou a fórmula necessária; as admoestações da nova doutrina ("Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a lua. Queres ouvir o que os ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro. Queres tocar o que não tocaram as mãos? Toca a terra. Digo, verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo") eram bastante afetadas e metafóricas para a transcrição. De repente, uma oração de vinte palavras apresentou-se a seu espírito. Escreveu-a, jubiloso; logo depois, inquietou-o a suspeita de que ela fosse de outro. No dia seguinte, lembrou-se de que a lera havia muitos anos no Adversus Annulares composto por João de Panonia. Verificou a citação; ali estava. A incerteza o atormentou. Alterar ou suprimir essas palavras era debilitar a expressão; deixá-las era plagiar um homem que ele abominava; indicar a fonte era denunciá-lo. Implorou o socorro divino. No princípio do segundo crepúsculo, seu anjo da guarda ditou-lhe uma solução intermédia. Aureliano conservou as palavras, mas lhes antepôs este aviso: "O que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé, disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que culpa". Depois, aconteceu o temido, o esperado, o inevitável. Aureliano teve de declarar quem era esse varão; João de Panonia foi acusado de professar opiniões heréticas.

Quatro meses depois, um ferreiro de Aventino, alucinado pelos enganos dos histriões, pôs sobre os ombros de seu filhinho uma grande bola de ferro, a fim de que seu outro voasse. O menino morreu; o horror produzido por esse crime impôs uma irrepreensível severidade aos juízes de João. Este não quis retratar-se; repetiu que negar sua proposição era incorrer na pestilencial heresia dos monótonos. Não entendeu (não quis entender) que falar dos monótonos era falar do que já estava esquecido. Com insistência um tanto senil, desperdiçou os períodos mais brilhantes de suas velhas polêmicas; os juízes nem sequer ouviam aquilo que outrora os arrebatara. Em lugar de tratar de purificar-se da mais leve mácula de histrionismo, esforçou-se em demonstrar que a proposição de que o acusavam era rigorosamente ortodoxa. Discutiu com os homens de cuja sentença dependia sua sorte e cometeu a máxima grosseria de fazê-lo com talento e com ironia. No dia 26 de outubro, depois de uma discussão que durou três dias e três noites, sentenciaram-no a morrer na fogueira.

Aureliano presenciou a execução, porque não o fazer seria confessar-se culpado. O lugar do suplício era uma colina, em cujo verde pico havia uma estaca, fincada profundamente no solo, e em torno dela muitas achas de lenha. Um ministro leu a sentença do tribunal. Sob o sol das doze, João de Panonia jazia com o rosto no pó, lançando uivos bestiais. Arranhava a terra, mas os verdugos o ergueram, o despiram e por fim o amarraram ao pelourinho. Puseram-lhe à cabeça uma coroa de palha untada de enxofre; ao lado, um exemplar do pestilento Adversus Annulares. Chovera na noite anterior e a lenha ardia mal. João de Panonia rezou em grego e depois em um idioma desconhecido. A fogueira ia levá-lo quando Aureliano se atreveu a erguer os olhos. As chamas ardentes se detiveram; Aureliano, pela primeira e última vez, viu o rosto do odiado. Lembrou-lhe o de alguém, mas não pôde precisar de quem. Depois, as chamas o perderam; depois, gritou e foi como se um incêndio gritasse.

Plutarco conta que Júlio César chorou a morte de Pompeu; Aureliano não chorou a de João, mas sentiu aquilo que sentiria um homem curado de uma enfermidade incurável que já fosse parte de sua vida. Em Aquiléia, em Éfeso, na Macedônia, deixou que sobre si passassem os anos. Procurou os difíceis limites do Império, os rudes lamaçais e os contemplativos desertos, para que a solidão o ajudasse a entender seu destino. Numa cela mauritana, na noite carregada de leões, repensou a complexa acusação contra João de Panonia e justificou, pela enésima vez, o veredicto. Custou-lhe mais justificar sua tortuosa denúncia. Em Rusaddir pregou o anacrônico sermão Luz das Luzes Acesa na Carne de Um Réprobo. Em Hibérnia, em uma das cabanas de um monastério cercado pela selva, surpreendeu-o, numa noite até a alvorada, o rumor da chuva. Lembrou-se de uma noite romana em que fora surpreendido, também, por esse minucioso rumor. Um raio, ao meio-dia, incendiou as árvores e Aureliano pôde morrer como morrera João.

O final da história só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez fosse oportuno dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de Panonia. Isso, entretanto, insinuaria uma confusão da mente divina. Mais correto é dizer que no paraíso Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o odiado e o que odeia, o acusador e a vítima) formavam uma única pessoa.










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Notas:
1 Nas cruzes rúnicas os dois emblemas inimigos convivem entrelaçados.















































HISTÓRIA DO GUERREIRO E DA CATIVA
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Na página 278 do livro La Poesia (Bari, 1942), Croce, resumindo um texto latino do historiador Paulo, o Diácono, narra o destino e cita o epitáfio de Droctulft; estes me comoveram singularmente, depois compreendi por quê. Droctulft foi um guerreiro lombardo que, no assédio de Ravena, abandonou os seus e morreu defendendo a cidade que antes havia atacado. Os ravenenses sepultaram-no num templo e compuseram um epitáfio em que manifestavam sua gratidão ("contempsit caros, dum nos amat ille, parentes") e o peculiar contraste observado entre a aparência cruel daquele bárbaro e sua simplicidade e bondade:

Terribilis visu facies, sed mente benignus,
Longaque robusto pectore barba fuit!1

Tal é a história do destino de Droctulft, bárbaro que morreu defendendo Roma, ou tal é o fragmento de sua história que Paulo, o Diácono, pôde resgatar. Nem sequer sei em que tempo ocorreu: se em meados do século VI, quando os longobardos desolaram as planícies da Itália; se no VIII, antes da rendição de Ravena. Imaginemos (este não é um trabalho histórico) o primeiro.

Imaginemos Droctulft, sub specie aeternitatis, não como o indivíduo Droctulft, que sem dúvida foi único e insondável (todos os indivíduos o são), mas como tipo genérico que dele e de muitos outros como ele tem feito a tradição, que é obra do esquecimento e da memória. Através de uma obscura geografia de selvas e lodaçais, as guerras o trouxeram à Itália, desde as margens do Danúbio e do Elba, e talvez não soubesse que ia para o Sul e talvez não soubesse que guerreava contra o nome romano. É possível que professasse o arianismo, que sustenta ser a glória do Filho reflexo da glória do Pai, porém mais congruente é imaginá-lo devoto da terra, de Hertha, cujo ídolo coberto ia de cabana em cabana num carro puxado por vacas, ou dos deuses da guerra e do trovão, que eram toscas
figuras de madeira, envoltas em roupa tecida e recobertas de moedas e argolas. Vinha das selvas inextricáveis do javali e do auroque; era branco, corajoso, inocente, cruel, leal a seu capitão e a sua tribo, não ao universo. As guerras o trazem a Ravena e aí vê algo que jamais viu, ou que não viu com plenitude. Vê o dia e os ciprestes e o mármore. Vê um conjunto que é múltiplo sem desordem; vê uma cidade, um organismo feito de estátuas, de templos, de jardins, de habitações, de grades, de jarrões, de capitéis, de espaços regulares e abertos. Nenhuma dessas obras (eu sei) o impressiona por ser bela; tocam-no como agora nos tocaria uma maquinaria complexa, cujo fim ignorássemos mas em cujo desenho fosse adivinhada uma inteligência imortal. Talvez lhe baste ver um único arco, com uma incompreensível inscrição em eternas letras romanas. Bruscamente, cega-o e renova-o essa revelação – a Cidade. Sabe que nela será um cão, ou uma criança, e que não começará sequer a entendê-la, mas sabe também que ela vale mais que seus deuses e que a fé jurada e que todos os lodaçais da Alemanha. Droctulft abandona os seus e peleja por Ravena. Morre, e, na sepultura, gravam palavras que ele não teria entendido:

Contempsit caros, dum nos amat ille, parentes,
Hanc patriam reputans esse, Ravenna, suam.2

Não foi um traidor (os traidores não costumam inspirar epitáfios piedosos); foi um iluminado, um convertido. No fim de umas quantas gerações, os longobardos que culparam o trânsfuga procederam como ele; fizeram-se italianos, lombardos e talvez alguém de seu sangue – Aldiger – pôde gerar aqueles que geraram Alighieri... Muitas conjeturas podem ser aplicadas ao ato de Droctulft; a minha é a mais econômica; se não é verdadeira como fato, será como símbolo.

Quando li no livro de Croce a história do guerreiro, ela me comoveu de maneira insólita e tive a impressão de recuperar, sob forma diversa, algo que havia sido meu. Fugazmente pensei nos cavaleiros mongóis que queriam fazer da China um infinito campo de pastoreio e depois envelheceram nas cidades que tinham desejado destruir; não era essa a lembrança que eu buscava. Encontrei-a, por fim; era um relato que ouvi uma vez de minha avó inglesa, já morta.

Em 1872, meu avô Borges era chefe das fronteiras Norte e Oeste de Buenos Aires e Sul de Santa Fé. O comando estava em Junín; mais além, a quatro ou cinco léguas um do outro, a cadeia dos fortins; mais além, o que então se denominava La Pampa e também Tierra Adentro. Uma vez, entre maravilhada e brincalhona, minha avó comentou seu destino de inglesa desterrada nesse fim de mundo; disseram-lhe que não era a única e lhe mostraram, meses depois, uma rapariga índia que atravessava lentamente a praça. Vestia duas mantas vermelhas e ia descalça; suas tranças eram loiras. Um soldado disse-lhe que outra inglesa queria falar com ela. A mulher assentiu; entrou no comando sem temor, mas não sem receio. Na face acobreada, borrada de cores ferozes, os olhos eram desse azul entediado que os ingleses chamam cinzento. O corpo era ligeiro, como de corça; as mãos, fortes e ossudas. Vinha do deserto, de Tierra Adentro, e tudo parecia ficar-lhe pequeno: as portas, as paredes, os móveis.

Talvez as duas mulheres, por um instante, se sentissem irmãs; estavam longe de sua ilha querida e num inacreditável país. Minha avó enunciou qualquer pergunta; a outra respondeu com dificuldade, procurando as palavras e repetindo-as, como que assombrada por algum antigo sabor. Faria quinze anos que não falava o idioma natal e não era fácil recuperá-lo. Disse que era de Yorkshire, que seus pais emigraram para Buenos Aires, que os perdera num ataque, que os índios a levaram e que agora era mulher de um capitãozinho a quem já tinha dado dois filhos e que era muito valente. Foi dizendo isso num inglês rústico, intercalado de araucano ou pampa, e por trás do relato se vislumbrava uma vida cruel: os toldos de couro de cavalo, as fogueiras de esterco, os festins de carne chamuscada ou de vísceras cruas, as sigilosas marchas ao amanhecer; o assalto aos currais, o alarido e o saque, a guerra, a caudalosa boiada tangida por cavaleiros desnudos, a poligamia, a hediondez e a magia. A tal barbárie se rebaixara uma inglesa. Movida pela lástima e pelo escândalo, minha avó exortou-a a não voltar. Jurou ampará-la, jurou resgatar seus filhos. A outra lhe respondeu que era feliz e voltou, nessa noite, para o deserto. Francisco Borges morreria pouco depois, na revolução de 74; minha avó, então, pôde talvez perceber na outra mulher, também arrebatada e transformada por este continente implacável, um espelho monstruoso de seu destino...

Todos os anos, a índia loira costumava chegar às tabernas de Junín, ou do Forte Lavalle, à procura de miudezas e vidos; não apareceu desde a conversa com minha avó. Entretanto, viram-se outra vez. Minha avó tinha saído para caçar; num rancho, perto dos banhados, um homem degolava uma ovelha. Como num sonho, a índia passou a cavalo. Atirou-se ao solo e bebeu o sangue quente. Não sei se o fez porque já não podia agir de outro modo ou como um desafio e um sinal.

Mil e trezentos anos e o mar punham-se entre o destino da cativa e o destino de Droctulft. Os dois, agora, são igualmente irrecuperáveis. A figura do bárbaro que abraça a causa de Ravena, a figura da mulher européia que opta pelo deserto podem parecer antagônicas. No entanto, um ímpeto secreto arrebatou os dois, um ímpeto mais fundo que a razão, e os dois acataram esse ímpeto que não souberam justificar. Talvez as histórias que contei sejam uma única história. Para Deus, o anverso e o reverso desta moeda são iguais.

Para Ulrike von Kühlmann.


















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Notas:
1 Também Gibbon (Decline and Fall, XLV) transcreve estes versos. [Ele tinha um rosto cuja visão provocava o terror, mas tinha um espírito benigno; uma longa barba
cobria seu peito robusto. (N. da T)]
2 Ele desdenhava seus queridos pais, enquanto nos amava, considerando que Ravena era sua pátria. (N. da T.)
















































BIOGRAFIA DE TADEO ISIDORO CRUZ
(1829-1874)
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I'm looking for the face I had
Before the world was made.

YEATS: The Winding Stair.


No dia 6 de fevereiro de 1829, os guerrilheiros que, fustigados por Lavalle, marchavam do Sul para incorporar-se às divisões de López, pararam em uma estância cujo
nome ignoravam, a três ou quatro léguas do Pergamino; ao amanhecer, um dos homens teve um pesadelo tenaz: na penumbra do galpão, o confuso grito despertou a mulher que com ele dormia. Ninguém sabe o que sonhou, pois no outro dia, às quatro, os guerrilheiros foram desbaratados pela cavalaria de Suárez e a perseguição durou nove léguas, até os palhegais já sombrios, e o homem pereceu numa vala, partido o crânio por um sabre das guerras do Peru e do Brasil. A mulher chamava-se Isidora Cruz; o filho que teve recebeu o nome de Tadeo Isidoro.

Meu propósito não é repetir sua história. Dos dias e noites que a compõem, só me interessa uma noite; do resto não contarei senão o indispensável para que essa noite seja entendida. A aventura consta de um livro insigne; quer dizer, de um livro cuja matéria pode ser tudo para todos (I Coríntios 9, 22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões. Os que têm comentado, e são muitos, a história de Tadeo Isidoro destacam a influência da planície em sua formação, mas gaúchos idênticos a ele nasceram e morreram nas selváticas margens do Paraná e nas coxilhas orientais. Viveu, isso sim, num mundo de barbárie monótona. Quando, em 1874, morreu de uma varíola negra, não tinha visto nunca uma montanha nem um bico de gás nem um moinho. Tampouco uma cidade. Em 1849, foi a Buenos Aires com uma tropa do estabelecimento de Francisco Xavier Acevedo; os tropeiros entraram na cidade para esvaziar o cinto; Cruz, receoso, não saiu de uma hospedaria na vizinhança dos currais. Passou aí muitos dias, taciturno, dormindo na terra, mateando, levantando-se ao alvorecer e recolhendo-se à hora da prece. Compreendeu (além das palavras e até do entendimento) que a cidade nada tinha a ver com ele. Um dos peões, bêbado, zombou dele. Cruz não lhe respondeu, mas nas noites do regresso, junto à fogueira, o outro amiudava as zombarias, e então Cruz (que antes não demonstrara rancor, nem sequer desgosto) o estendeu com uma punhalada. Fugitivo, teve de refugiar-se num faxinai; noites depois, o grito de uma chajá advertiu-o que a polícia o havia cercado. Experimentou a faca num arbusto; para que não lhe estorvassem a caminhada, tirou as esporas. Preferiu lutar a entregar-se. Foi ferido no antebraço, no ombro, na mão esquerda; feriu gravemente os mais bravos da partida; quando o sangue lhe correu entre os dedos, lutou com mais coragem que nunca; ao amanhecer, tonto pela perda de sangue, desarmaram-no. O exército desempenhava, então, uma função penal; Cruz foi mandado para um fortim da fronteira Norte. Como soldado raso, participou das guerras civis; às vezes combateu por sua província natal, às vezes contra. Em 23 de janeiro de 1856, nas Lagunas de Cardoso, foi um dos trinta cristãos que, a mando do sargento-mor Eusébio Laprida, lutaram contra duzentos índios. Nessa ação, recebeu um ferimento de lança.

Em sua obscura e valorosa história são muitos os hiatos. Por volta de 1868, sabemos que estava de novo no Pergamino: casado ou amasiado, pai de um filho, dono de um pedaço de campo. Em 1869, foi nomeado sargento da polícia rural. Corrigira o passado; naquele tempo, deve ter-se considerado feliz, embora no fundo não o fosse. (Esperava-o, secreta no futuro, uma lúcida noite fundamental: a noite em que por fim viu sua própria face, a noite em que por fim escutou seu nome. Bem entendida, essa noite esgota sua história; ou melhor, um instante dessa noite, um ato dessa noite, porque os atos são nosso símbolo.) Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta da realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é. Conta-se que Alexandre da Macedônia viu refletido seu futuro de ferro na fabulosa história de Aquiles; Carlos XII da Suécia, na de Alexandre. Tadeo Isidoro Cruz, que não sabia ler, esse conhecimento não lhe foi revelado por um livro; viu-se a si mesmo em um entrevero e num homem. Os fatos aconteceram assim:

Nos últimos dias do mês de junho de 187O, recebeu ordem de prender um malfeitor que devia duas mortes à Justiça. Era um desertor das forças que o coronel Benito Machado
comandava na fronteira Sul; numa bebedeira, assassinara um homem mulato num bordel; noutra, um vizinho do partido de Rojas; o relatório acrescentava que procedia de Laguna Colorada. Nesse lugar, fazia quarenta anos, haviam-se reunido os guerrilheiros para a desventura que entregou suas carnes aos pássaros e aos cães; daí saiu Manuel Mesa, que foi executado na praça da Victoria, enquanto os tambores soavam para que não se ouvisse sua ira; daí, o desconhecido que gerou Cruz e que pereceu numa vala, partido o crânio por um sabre das batalhas do Peru e do Brasil. Cruz esquecera o nome do lugar; com leve mas inexplicável inquietude, reconheceu-o... O criminoso, acossado pelos soldados, armou a cavalo um extenso labirinto de idas e vindas; estes, entretanto, o encurralaram na noite de 12 de julho. Refugiara-se num palhegal. A treva era quase indecifrável; Cruz e os seus, cautelosos e a pé, avançaram em direção das matas em cuja fundura trêmula espreitava ou dormia o homem secreto. Gritou uma chajá; Tadeo Isidoro Cruz teve a impressão de já ter vivido esse momento. O criminoso saiu do abrigo para combatê-los. Cruz o entreviu, terrível; a crescida cabeleira e a barba cinzenta pareciam comer-lhe a face. Um motivo evidente me impede de narrar a luta. Basta-me recordar que o desertor feriu gravemente ou matou vários dos homens de Cruz. Este, enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar aquele que traz consigo. Compreendeu que as divisas e o uniforme já o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cachorro gregário; compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na imensa planície. Cruz atirou por terra o quede, gritou que não ia consentir no delito de que se matasse um valente e pôs-se a lutar contra os soldados, junto com o desertor Martín Fierro.

















































EMMA ZUNZ
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No dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.

Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria.

Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara,
perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanús que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre "o desfalque do caixa", recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era Loewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Elsa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acreditasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder.

Não dormiu àquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-se contra qualquer violência. As seis, concluído o trabalho, foi com Elsa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve que repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve que achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Elsa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domingo à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Completaria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico... Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira, dia 15, a véspera.

No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singular alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que o Nordstjärnan, de Malmö, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que desejava comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Elsa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara na noite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a.

Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improcedente. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria... Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do Nordstjärnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanús) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam.

Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações inconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito a sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.

Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa-de-cabeceira estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasgara a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu-se, tão logo o fez. Um ato de soberba, e naquele dia... O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez a tenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecendo-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.

Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher – uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! –, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operária Zunz.

Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios de Emma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.

As coisas não ocorreram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à justiça de Deus triunfar sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da Justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.

Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conseguiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d'água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os estampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue repentino brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada ("Vinguei meu pai e não me poderão castigar..."), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.

Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: "Aconteceu uma coisa inacreditável... O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve... Abusou de mim, eu o matei..."

A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.


















































































A CASA DE ASTÉRION
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E a rainha deu à luz um filho que se chamou
Astérion.
APOLODORO: Biblioteca, III, I.


Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito)1 estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas, nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma –, fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. Já se tinha posto o sol, mas o desvalido pranto de um menino e as rudes preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam no estilóbato do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Alguém, creio, ocultou-se no mar. Não em vão que foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira.

O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.

Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, atordoado. Oculto-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me procurem. Há terraços de onde me deixo cair, até me ensangüentar. A qualquer hora posso brincar que estou dormindo, com os olhos fechados e a respiração forte. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a de outro Astérion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal" ou "Agora verás uma cisterna que se encheu de areia" ou " lá verás como o porão se bifurca". As vezes me engano e os dois nos rimos, amavelmente.

Não só criei esses jogos; também meditei sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze [são infinitos] os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.

Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após o outro, caem, sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meu ouvido alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu.


A Marte Mosquera Eastman.













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Notas:
1 O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Astérion, adjetivo numeral vale por infinitos.















































A OUTRA MORTE
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Há uns dois anos (perdi a carta), Gannon me escreveu de Gualeguaychú, anunciando o envio de uma versão, talvez a primeira espanhola, do poema The Past de Ralph Waldo Emerson e acrescentando num pós-escrito que Dom Pedro Damián, de quem eu guardaria alguma lembrança, tinha morrido, noites atrás, de uma congestão pulmonar. O homem, arrasado pela febre, revivera em seu delírio a sangrenta jornada de Masoller; a notícia pareceu-me previsível e até convencional, porque Dom Pedro, aos dezenove ou vinte anos, seguira as bandeiras de Aparicio Saravia. A revolução de 19O4 encontrou-o em uma estância de Río Negro ou de Paysandú, onde trabalhava como peão; Pedro Damián era entrerriano, de Gualeguay, mas foi para onde foram os amigos, tão corajoso e tão ignorante como eles. Combateu em algum entrevem e na batalha final; repatriado em 19O5, retomou com humilde tenacidade as tarefas do campo. Que eu saiba, não tornou a deixar sua província. Os últimos trinta anos passou-os em um posto muito isolado, a uma ou duas léguas do Ñancay; naquele abandono, conversei com ele uma tarde (procurei conversar com ele uma tarde), por volta de 1942. Era homem taciturno, de poucas luzes. O som e a fúria de Masoller esgotavam sua história; não me surpreendeu que os revivesse, na hora da morte... Soube que não veria mais Damián e quis recordá-lo; tão pobre é minha memória visual que só recordei uma fotografia que Gannon lhe tirou. O fato nada tem de singular, se considerarmos que vi o homem em princípios de 1942, uma vez, e o retrato, muitíssimas. Gannon mandou-me essa fotografia; eu a perdi e já não a procuro. Encontrá-la me daria medo.

O segundo episódio ocorreu em Montevidéu, meses depois. A febre e a agonia do entrerriano sugeriram-me um conto fantástico sobre a derrota de Masoller; Emir Rodríguez Monegal, a quem contei o argumento, deu-me uma carta para o coronel Dioniso Tabares, que havia feito essa campanha. O coronel recebeu-me depois do jantar. De uma cadeira de balanço, num pátio, lembrou-se com desordem e amor dos tempos passados. Falou de munições que não chegaram e de cavalhadas rendidas, de homens sonolentos e terrosos tecendo labirintos de marchas, de Saravia, que podia ter entrado em Montevidéu e se desviou, "porque o gaúcho teme a cidade", de homens degolados até a base da nuca, de uma guerra civil que me pareceu menos o choque de dois exércitos do que o sonho de um foragido. Falou de Illescas, de Tupambaé, de Masoller. Fê-lo com períodos tão cabais e de modo tão vívido que compreendi ter ele muitas vezes já contado essas mesmas coisas, e temi que, por trás de suas palavras, quase não restassem lembranças. Numa pausa, consegui intercalar o nome de Damián.

– Damián? Pedro Damián? – disse o coronel. – Esse serviu comigo. Um tapezinho que os rapazes chamavam Daymán. – Iniciou uma ruidosa gargalhada e cortou-a de repente, com fingida ou verdadeira incomodidade.

Com outra voz, disse que a guerra servia, como a mulher, para que se provassem os homens, e que, antes de entrar em batalha, ninguém sabia quem era. Alguém podia supor-se covarde e ser um valente, e também o contrário, como ocorreu com esse pobre Damián, que andou se exibindo nas tabernas com sua divisa branca e depois fraquejou em Masoller. Num tiroteio com os zumacos, comportou-se como homem, mas outra coisa foi quando os exércitos se enfrentaram e começou o canhoneio, e cada homem sentindo que cinco mil outros se reuniram para matá-lo. Pobre rapaz, passou a vida banhando ovelhas e, assim de repente, arrastou-o essa patriotada...

Absurdamente, a versão de Tabares me envergonhou. Teria preferido que os fatos não ocorressem assim. Com o velho Damián, entrevisto numa tarde, há muitos anos, eu criara, sem me propor isso, uma espécie de ídolo; a versão de Tabares o destruía. Subitamente, compreendi a reserva e a obstinada solidão de Damián; não as ditara a modéstia, mas a vergonha. Em vão, tentei me convencer de que um homem acossado por um ato de covardia é mais complexo e mais interessante que um homem meramente corajoso. O gaúcho Martín Fierro, pensei, é menos memorável que Lord Jim ou que Razumov. Sim, mas Damián, como gaúcho, tinha obrigação de ser Martín Fierro – sobretudo diante de gaúchos orientais. No que Tabares disse e não disse percebi o agreste sabor do que se chamava artiguismo: a consciência (talvez irrefutável) de que o Uruguai seja mais elementar que nosso país e, portanto, mais bravo... Lembro-me de que, nessa noite, nos despedimos com exagerada efusão.

No inverno, a falta de um ou dois pormenores para meu conto fantástico (que se obstinava, sem jeito, em não encontrar sua forma) fez com que eu voltasse à casa do coronel Tabares. Encontrei-o com outro senhor de idade: o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, que também tinha militado na revolução de Saravia. Falou-se, como se podia prever, de Masoller. Amaro contou alguns fatos curiosos e depois acrescentou, com lentidão, como quem está pensando em voz alta:

– Acampamos à noite em Santa Irene, lembro-me, e juntaram-se a nós algumas pessoas. Entre elas, um veterinário francês que morreu na véspera da ação, e um moço tosquiador, de Entre Ríos, um tal Pedro Damián.

Interrompi-o com aspereza.

– Já sei – disse-lhe. – O argentino que fraquejou diante das balas.

Detive-me; os dois me olhavam perplexos.

– O senhor está enganado – disse, por fim, Amaro. – Pedro Damián morreu como qualquer homem desejaria morrer. Deviam ser quatro da tarde. No alto da coxilha se fortalecera a infantaria colorada; os nossos a atacaram, a lança; Damián ia na ponta, gritando, e uma bala o acertou em cheio no peito. Firmou-se nos estribos, completou o grito e caiu por terra e ficou entre as patas dos cavalos. Estava morto e a última carga de Masoller lhe passou por cima. Tão valente e nem tinha completado vinte anos.

Sem dúvida, falava de outro Damián, mas algo me fez perguntar o que gritava o rapaz.

– Palavrões – disse o coronel –, que é o que se grita nos combates.

– Pode ser – disse Amaro –, mas também gritou "Viva Urquiza!"

Ficamos calados. Por fim, o coronel murmurou:

– Como se não lutasse em Masoller, mas em Cagancha ou India Muerta, há um século...

Acrescentou com sincera perplexidade:

– Eu comandei essas tropas, e juraria que é a primeira vez que ouço falar de um Damián.

Não conseguimos que se lembrasse dele.

Em Buenos Aires, o espanto que me causou seu esquecimento se repetiu. Diante dos onze deleitáveis volumes das obras de Emerson, no porão da livraria inglesa de Mitchell, encontrei, numa tarde, Patrício Gannon. Perguntei-lhe por sua tradução de The Past. Disse que não pensava em traduzi-lo e que a literatura espanhola era tão tediosa que tornava Emerson desnecessário. Lembrei-lhe que me havia prometido essa versão na mesma carta em que me escreveu sobre a morte de Damián. Perguntou quem era Damián. Disse-o, inutilmente. Com um princípio de terror, observei que me escutava com estranheza, e procurei amparo numa discussão literária sobre os detratores de Emerson, poeta mais complexo, mais hábil e sem dúvida mais singular que o desditoso Poe.

Alguns fatos mais devo registrar. Em abril, recebi carta do coronel Dionísio Tabares; já não estava tão esquecido e agora se lembrava muito bem do pequeno entrerriano que esteve na ponta do ataque de Masoller e que seus homens enterraram naquela noite, ao pé da coxilha. Em julho, passei por Gualeguaychú; não encontrei o rancho de Damián, de quem já ninguém se lembrava. Quis interrogar o posteiro, Diego Abaroa, que o viu morrer; mas este tinha falecido antes do inverno. Quis trazer à memória os traços de Damián, meses depois, folheando alguns álbuns, comprovei que o rosto sombrio que eu conseguira evocar era o do célebre tenor Tamberlick, no papel de Otelo.

Passo agora às conjeturas. A mais fácil, mas também a menos satisfatória, requer dois Damianes: o covarde que morreu em Entre Ríos por volta de 1946, o valente que morreu em Masoller em 19O4. Seu defeito reside em não explicar o realmente enigmático: os curiosos vaivéns da memória do coronel Tabares, o esquecimento que anula em tão pouco tempo a imagem e até o nome do que voltou. (Não aceito, não quero aceitar, uma conjetura mais simples: a de eu ter sonhado o primeiro.) Mais curiosa é a conjetura sobrenatural que Ulrike von Kühlmann imaginou. Pedro Damián, dizia Ulrike, pereceu na batalha, e na hora da morte suplicou a Deus que o fizesse voltar a Entre Ríos. Deus vacilou um segundo antes de outorgar essa graça, e quem a pedira já estava morto e alguns homens viram-no cair. Deus, que não pode mudar o passado, mas sim as imagens do passado, trocou a imagem da morte pela de um desfalecimento, e a sombra do entrerriano voltou a sua terra. Voltou, mas devemos recordar sua condição de sombra. Viveu na solidão, sem uma mulher, sem amigos; amou e possuiu tudo, mas de longe, como do outro lado de um vidro; "morreu", e sua tênue imagem se perdeu, como a água na água. Essa conjetura é errônea, mas me haveria de sugerir a verdadeira (a que hoje creio verdadeira), que, ao mesmo tempo, é mais simples e mais inaudita. De modo quase mágico, descobri-a no tratado De Omnipotentia, de Pier Damiani, a cujo estudo me levaram dois versos do canto XXI do Paradiso, que propõem justamente um problema de identidade. No quinto capítulo daquele tratado, Pier Damiani sustenta, contra Aristóteles e contra Fredegário de Tours, que Deus pode fazer com que não tenha sido o que alguma vez foi. Li essas velhas discussões teológicas e comecei a compreender a trágica história de Dom Pedro Damián.

Adivinho-a assim: Damián portou-se como covarde no campo de Masoller, e dedicou a vida a corrigir essa vergonhosa fraqueza. Voltou a Entre Ríos; não levantou a mão contra nenhum homem, não marcou ninguém, não procurou fama de valente, mas nos campos de Ñancay fez-se duro, lidando com o monte e o gado xucro. Seguramente sem o saber, foi preparando o milagre. Pensou no fundo de si mesmo: se o destino me traz outra batalha, saberei merecê-la. Durante quarenta anos, esperou-a com obscura esperança, e o destino por fim a trouxe, na hora da morte. Trouxe-a em forma de delírio, e já os gregos sabiam que somos as sombras de um sonho. Na agonia, reviveu sua batalha, e conduziu-se como homem e encabeçou o ataque final e uma bala acertou-o em pleno peito. Assim, em 1946, por obra de uma longa paixão, Pedro Damián morreu na derrota de Masoller, que ocorreu entre o inverno e a primavera de 19O4.

Na Suma Teológica nega-se que Deus possa fazer com que o passado não tenha sido, mas nada se diz da intrincada concatenação de causas e efeitos, tão vasta e tão íntima que talvez não fosse possível anular um único fato remoto, por insignificante que fosse, sem invalidar o presente. Modificar o passado não é modificar um único fato; é anular suas conseqüências, que tendem a ser infinitas. Por outras palavras: é criar duas histórias universais. Na primeira (digamos), Pedro Damián morreu em Entre Rios, em 1946; na segunda, em Masoller, em 19O4. Esta é a que vivemos agora, mas a supressão daquela não foi imediata e motivou as incoerências que narrei. No coronel Dionísio Tabares cumpriram-se as diversas etapas: a princípio, lembrou-se de que Damián agiu como covarde; depois, esqueceu-o por completo; em seguida, recordou sua impetuosa morte. Não menos corroborativo é o caso do posteiro, Abaroa; este morreu, assim penso, porque tinha demasiadas lembranças de Dom Pedro Damián.

Quanto a mim, entendo não correr perigo análogo. Adivinhei e registrei um processo não acessível aos homens, uma espécie de escândalo da razão; mas algumas circunstâncias mitigam esse privilégio temível. Por ora, não estou seguro de ter escrito sempre a verdade. Suspeito que em meu relato existam falsas lembranças. Suspeito que Pedro Damián (se existiu) não se chamou Pedro Damián, e que eu me lembre dele com esse nome para crer algum dia que sua história me foi sugerida pelos argumentos de Pier Damiani. Algo parecido acontece com o poema que mencionei no primeiro parágrafo e que versa sobre a irrevogabilidade do passado. Por volta de 1951, acreditarei ter composto um conto fantástico e terei historiado um fato real; também o inocente Virgílio, há dois mil anos, acreditou anunciar o nascimento de um homem e vaticinava o de Deus.

Pobre Damián! A morte o levou aos vinte anos numa triste guerra ignorada e numa batalha caseira, mas conseguiu o que seu coração desejava, e tardou muito a consegui-lo, e talvez não exista felicidade maior.























































































DEUTSCHES REQUIEM
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Ainda que ele me tire a vida, nele confiarei.
Jó 13, 15


Meu nome é Otto Dietrich zur Linde. Um de meus antepassados, Christoph zur Linde, morreu no ataque de cavalaria que decidiu a vitória de Zorndorf. Meu bisavô materno, Ulrich Forkel, foi assassinado na floresta de Marchenoir por franco-atiradores franceses, nos últimos dias de 187O; o capitão Dietrich zur Linde, meu pai, distinguiu-se no cerco de Namur, em 1914, e, dois anos depois, na travessia do Danúbio.1 Quanto a mim, serei fuzilado como torturador e assassino. O tribunal procedeu com retidão; desde o princípio, eu me declarei culpado. Amanhã, quando o relógio da prisão der as nove, terei entrado na morte; é natural que pense em meus antepassados, já que tão perto estou de sua sombra, já que de algum modo sou eles.

Durante o julgamento (que felizmente durou pouco) não falei; justificar-me, então, teria perturbado o veredicto e parecido covardia. Agora as coisas mudaram; nesta noite que precede minha execução, posso falar sem temor. Não pretendo ser perdoado, porque não há culpa em mim, mas quero ser compreendido. Os que souberem ouvir-me compreenderão a história da Alemanha e a futura história do mundo. Eu sei que casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve triviais. Amanhã morrerei, mas sou um símbolo das gerações do futuro.

Nasci em Marienburg, em 1908. Duas paixões, agora quase esquecidas, permitiram-me enfrentar com valor e até com felicidade muitos anos infaustos: a música e a metafísica. Não posso mencionar todos os meus benfeitores, mas há dois nomes que não me resigno a omitir: o de Brahms e o de Schopenhauer. Também freqüentei a poesia; a esses nomes, quero juntar outro vasto nome germânico, William Shakespeare. Antes, a teologia me interessou, mas dessa fantástica disciplina (e da fé cristã) me desviou para sempre Schopenhauer, com razões diretas; Shakespeare e Brahms, com a infinita variedade de seu mundo. Quem se detiver, maravilhado, trêmulo de ternura e gratidão, ante qualquer parte da obra desses homens felizes, saiba que eu também me detive aí, eu, o abominável.

Por volta de 1927, entraram em minha vida Nietzsche e Spengler. Observa um escritor do século XVIII que ninguém quer dever nada a seus contemporâneos; eu, para libertar-me de uma influência que pressenti opressora, escrevi um artigo intitulado Abrechnung mit Spengler, no qual observava que o monumento mais inequívoco dos traços que o autor chama fáusticos não é o misto drama de Goethe2 mas um poema escrito há vinte séculos, o De Rerum Natura. Rendi justiça, contudo, à sinceridade do filósofo da história, a seu espírito radicalmente alemão (Kerndeutsch), militar. Em 1929, entrei no Partido.

Pouco direi de meus anos de aprendizagem. Foram mais duros para mim que para muitos outros, já que, apesar de não carecer de valor, me falta qualquer vocação para a violência. Compreendi, entretanto, que estávamos à beira de um tempo novo e que esse tempo, comparável às épocas iniciais do Islamismo ou do Cristianismo, exigia homens novos. Individualmente, meus camaradas me eram odiosos; em vão, procurei raciocinar que, para o alto fim que nos congregava, não éramos indivíduos.

Asseveram os teólogos que, se a atenção do Senhor se desviasse um só segundo de minha mão direita que escreve, esta recairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem luz. Ninguém pode ser, digo, ninguém pode provar um copo d'água ou partir um pedaço de pão sem justificativa. Para cada homem, essa justificativa é diferente; eu esperava a guerra inexorável que iria provar nossa fé. Bastava-me saber que eu seria um soldado de suas batalhas. Certa vez, temi que nos defraudassem a covardia da Inglaterra e da Rússia. O acaso, ou o destino, teceu de outra maneira meu futuro: em 1° de março de 1939, ao escurecer, houve distúrbios em Tilsit que os jornais não registraram; na rua detrás da sinagoga, duas balas me atravessaram a perna, que foi necessário amputar.3 Dias depois, entravam na Boêmia nossos exércitos; quando as sirenas o anunciaram, eu estava no sedentário hospital, tratando de perder-me e esquecer-me nos livros de Schopenhauer. Símbolo de meu vão destino, dormia no rebordo da janela um gato enorme e fofo.

No primeiro volume de Parerga und Paralipomena reli que todos os fatos que podem ocorrer a um homem, desde o instante de seu nascimento até o de sua morte, foram
prefixados por ele. Assim, toda negligência é deliberada, todo casual encontro, uma hora marcada, toda humilhação, uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, toda morte, um suicídio. Não há consolo mais hábil que o pensamento de que escolhemos nossas desgraças; essa teleologia individual nos revela uma ordem secreta e prodigiosamente nos confunde com a divindade. Que ignorado propósito (meditei) me fez procurar esse entardecer, essas balas e essa mutilação? Não foi o temor da guerra, eu o sabia; algo mais profundo. Por fim, pensei entender. Morrer por uma religião é mais simples que vivê-la com plenitude; lutar em Éfeso contra as feras é menos duro (milhares de mártires obscuros o fizeram) que ser Paulo, servo de Jesus Cristo; um ato é menos que todas as horas de um homem. A batalha e a glória são facilidades; mais árdua que a ação de Napoleão foi a de Raskolnikov. Em 7 de fevereiro de 1941, fui nomeado subdiretor do campo de concentração de Tarnowitz.

O exercício desse cargo não me foi grato; mas não pequei nunca por negligência. O covarde se prova entre as espadas; o misericordioso, o piedoso, procura o exame dos cárceres e da dor alheia. O nazismo, intrinsecamente, é um fato moral, um despojar-se do velho homem, que está viciado, para vestir o novo. Na batalha, essa mutação é comum, entre o clamor dos capitães e o vozerio; não é assim em um infame calabouço, onde nos tenta com antigas ternuras a insidiosa piedade. Não em vão escrevo essa palavra; a piedade pelo homem superior é o último pecado de Zaratustra. Quase o cometi (confesso) quando nos mandaram de Breslau o insigne poeta David Jerusalém.

Era um homem de cinqüenta anos. Pobre de bens deste mundo, perseguido, negado, vituperado, consagrara seu gênio a cantar a felicidade. Creio lembrar que Albert Soergel, na obra Dichtung der Zeit, o compara a Whitman. A comparação não é feliz; Whitman celebra o universo de modo prévio, geral, quase indiferente; Jerusalém alegra-se de cada coisa, com minucioso amor. Jamais emprega enumerações, catálogos. Ainda posso repetir muitos hexâmetros daquele profundo poema que se intitula Tse Yang, Pintor de Tigres, que está como que raiado de tigres, que está como que carregado e atravessado de tigres transversais e silenciosos. Tampouco esquecerei o solilóquio Rosencrantz Fala com o Anjo, no qual um prestamista londrino do século XVI inutilmente trata, ao morrer, de vindicar suas culpas, sem suspeitar que a secreta justificativa de sua vida é ter inspirado a um de seus clientes (que o viu uma única vez e de quem não se lembra) o caráter de Shylock. Homem de memoráveis olhos, de pele citrina, de barba quase negra, David Jerusalém era o protótipo do judeu sefardim, embora pertencesse aos depravados e enfadonhos Ashkenazim. Fui severo com ele; não permiti que me abrandassem nem a compaixão nem sua glória. Eu havia compreendido há muitos anos que não existe coisa no mundo que não seja germe de um Inferno possível; um rosto, uma palavra, uma bússola, um anúncio de cigarros poderiam enlouquecer uma pessoa, se esta não conseguisse esquecê-los. Não estaria louco um homem que continuamente tivesse em mente o mapa da Hungria? Determinei aplicar esse princípio ao regime disciplinar de nossa casa e...4 Em fins de 1942, Jerusalém perdeu a razão; em 1° de março de 1943, conseguiu matar-se.5

Ignoro se Jerusalém compreendeu que, se eu o destruí, foi para destruir minha piedade. Diante de meus olhos, ele não era um homem, nem sequer um judeu; transformara-se no símbolo de uma detestada área de minha alma. Eu agonizei com ele, eu morri com ele, eu de algum modo me perdi com ele; por essa razão, fui implacável.

Enquanto isso, giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. Havia no ar que respirávamos um sentimento parecido com o amor. Como se bruscamente o mar estivesse perto, havia um assombro e uma exaltação no sangue. Tudo, naqueles anos, era diferente, até o sabor do sonho. (Talvez eu nunca tenha sido inteiramente feliz, mas se sabe que a desventura requer paraísos perdidos.) Não há homem que não aspire à plenitude, quer dizer, à soma de experiências de que um homem é capaz; não há homem que não tema ser defraudado em alguma parte desse patrimônio infinito. Mas minha geração teve tudo, porque primeiro lhe foi proporcionada a glória e depois a derrota.

Em outubro ou novembro de 1942, meu irmão Friedrich pereceu na segunda batalha de El Alamein, nos areais egípcios; um bombardeio aéreo, meses depois, destruiu nossa casa natal; outro, em fins de 1943, meu laboratório. Acossado por vastos continentes, morria o Terceiro Reich; sua mão estava contra todos e as mãos de todos contra ele. Então, algo singular ocorreu, que agora creio entender. Eu me acreditava capaz de esgotar o copo de cólera, mas nas fezes me deteve um sabor não esperado, o misterioso e quase terrível sabor da felicidade. Ensaiei diversas explicações; não me bastou nenhuma. Pensei: "A derrota me satisfaz porque secretamente sei que sou culpado e só o castigo pode redimir-me". Pensei: "A derrota me satisfaz porque é um fim e estou muito cansado". Pensei: "A derrota me satisfaz porque ocorreu, porque está inumeravelmente unida a todos os fatos que são, que foram, que serão, porque censurar ou deplorar um único fato real é blasfemar contra o universo". Essas razões ensaiei, até dar com a verdadeira.

Tem-se dito que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Isso equivale a declarar que não há debate de caráter abstrato que não seja um momento da polêmica de Aristóteles e Platão; através dos séculos e latitudes, mudam os nomes, os dialetos, as faces, mas não os eternos antagonistas. Também a história dos povos registra uma continuidade secreta. Armínio, quando decapitou num lamaçal as legiões de Varo, não se sabia precursor de um Império Alemão; Lutem, tradutor da Bíblia, não suspeitava que seu fim era forjar um povo que destruísse para sempre a Bíblia; Christoph zur Linde, morto por uma bala moscovita em 1758, preparou de algum modo as vitórias de 1914; Hitler acreditou lutar por um país, mas lutou por todos, até por aqueles que agrediu e detestou. Não importa que seu eu o ignorasse; sabiam-no seu sangue, sua vontade. O mundo morria de judaísmo e dessa enfermidade do judaísmo que é a fé em Jesus; nós lhe ensinamos a violência e a fé na espada. Essa espada nos mata e somos comparáveis ao feiticeiro que tece um labirinto e que se vê forçado a errar nele até o fim de seus dias, ou a Davi, que julga um desconhecido e o condena à morte e ouve depois a revelação: "Tu és aquele homem". Muitas coisas há que destruir para edificar a nova ordem; agora sabemos que a Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais que nossa vida, demos o destino de nosso querido país. Que outros maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja orbicular e perfeito.

Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno.

Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não.

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Notas:
1 É significativa a omissão do antepassado mais ilustre do narrador, o teólogo e hebraísta Johannes Forkel (1799-1846), que aplicou a dialética de Hegel à cristologia e cuja versão literal de alguns dos Livros Apócrifos mereceu a censura de Hengstenberg e a aprovação de Thilo e Geseminus. (N. do E.)
2 Outras nações vivem com inocência, em si e para si, como os minerais ou os meteoros; a Alemanha é o espelho universal que a todas recebe, a consciência do mundo (das Weltbewusstsein). Goethe é o protótipo dessa compreensão ecumênica. Não o censuro, mas não vejo nele o homem fáustico da tese de Spengler.
3 Murmura-se que as conseqüências dessa ferida foram muito graves. (N. do E.)
4 Foi inevitável omitir aqui algumas linhas. (N. do E.)
5 Nem nos arquivos nem na obra de Soergel figura o nome de Jerusalém. Tampouco o registram as histórias da literatura alemã. Não creio, entretanto, que se trate de personagem falso. Por ordem de Otto Dietrich zur Linde foram torturados em Tarnowitz muitos intelectuais judeus, entre eles a pianista Emma Rosenzweig. "David Jerusalém" é talvez símbolo de vários indivíduos. Dizem-nos que morreu em 1° de março de 1943; em 1 ° de março de 1939, o narrador foi ferido em Tilsit. (N. do E.)
















































A PROCURA DE AVERRÓIS
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S'imaginant que la tragédie n'est autre chose
que l'art de louer...
ERNEST RENAN: Averroès, 48 (1861).


Abulgualid Muhammad Ibn-Ahmad ibn-Muhámmad ibn-Rushd (este longo nome levaria um século para chegar a Averróis, passando por Benraist e por Avenryz, e ainda por Aben-Rassad e Filius Rosadis) escrevia o undécimo capítulo da obra Tahafut-ul-Tahafut (Destruição da Destruição), no qual se sustenta, contra o asceta persa Ghazali, autor de Tahafut-ul-Falasifa (Destruição de Filósofos), que a divindade só conhece as leis gerais do universo, o concernente às espécies, não ao indivíduo. Escrevia com lenta segurança, da direita para a esquerda; o exercício de formar silogismos e de encadear longos parágrafos não o impedia de sentir, como bem-estar, a fresca e ampla casa que o rodeava. No fundo da sesta arrulhavam amorosas pombas; de algum pátio invisível se elevava o rumor de uma fonte; algo na carne de Averróis, cujos antepassados procediam dos desertos árabes, agradecia a constância da água. Embaixo, estavam os jardins, a horta; embaixo, o atarefado Guadalquivir e depois a querida cidade de Córdoba, não menos clara que Bagdá ou que o Cairo, como um complexo e delicado instrumento, e ao redor (isto Averróis também sentia) se estendia até os confins a terra da Espanha, na qual existem poucas coisas, mas onde cada uma parece estar de modo substantivo e eterno.

A pena corria sobre a folha, os argumentos se enlaçavam, irrefutáveis, mas uma leve preocupação empanou a felicidade de Averróis. Não a causava o Tahafut, trabalho fortuito, mas um problema de índole filológica vinculado à obra monumental que o justificaria ante os povos: o comentário sobre Aristóteles. Esse grego, manancial de toda a filosofia, fora outorgado aos homens para ensinar-lhes tudo o que se pode saber; interpretar seus livros como os ulemás interpretam o Alcorão era o árduo propósito de Averróis. Poucas coisas mais belas e mais patéticas registrará a história além dessa consagração de um médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze séculos; às dificuldades intrínsecas devemos acrescentar que Averróis, ignorando o siríaco e o grego, trabalhava sobre a tradução de uma tradução. Na véspera, duas palavras duvidosas o detiveram no princípio da Poética. Essas palavras eram tragédia e comédia. Encontrara-as anos atrás no livro terceiro da Retórica; ninguém, no âmbito do Islã, atinava com o que queriam dizer. Inutilmente fatigara-se nas páginas de Alexandre de Afrodísia, inutilmente compulsara as versões do nestoriano Hunain ibn-Ishaq e de Abu-Bashar Mata. Essas duas palavras arcanas pululavam no texto da Poética; impossível evitá-las.

Averróis largou a pena. Disse a si mesmo (sem demasiada fé) que costuma estar muito perto aquilo que procuramos, guardou o manuscrito do Tahafut e dirigiu-se à prateleira onde se alinhavam, copiados por calígrafos persas, os muitos volumes do Mohkam do cego Abensida. Era irrisório imaginar que não os tinha consultado, mas tentou-o o ocioso prazer de virar suas páginas. Dessa estudiosa distração o desviou uma espécie de melodia. Olhou pela sacada gradeada; embaixo, no estreito pátio de terra, brincavam alguns meninos seminus. Um, de pé nos ombros do outro, fazia-se evidentemente de almuadem; com os olhos bem fechados, salmodiava "Não há outro deus além de Deus". Aquele que o sustentava, imóvel, fazia-se de minarete; outro, humilhado no pó e ajoelhado, de congregação dos fiéis. A brincadeira durou pouco: todos queriam ser o almuadem, ninguém a congregação ou a torre. Averróis ouviu-os discutir em dialeto grosem, ou seja, no incipiente espanhol da plebe muçulmana da Península. Abriu o Quitah-ul-ain de Jalil e pensou, com orgulho, que, em toda Córdoba (talvez em todo Al-Andalus), não existia outra cópia da obra perfeita além dessa que o emir Yacub Almansur lhe remetera de Tânger. O nome desse porto lembrou-lhe que o viajante Abulcásim Al-Ashari, que regressara de Marrocos, jantaria com ele essa noite em casa do alcoranista Farach. Abulcásim dizia ter alcançado os reinos do império de Sin (da China); seus detratores, com essa lógica peculiar que o ódio oferece, juravam que ele nunca havia pisado na China e que nos templos desse país blasfemara contra Alá. Inevitavelmente, a reunião duraria algumas horas; Averróis, pressuroso, retomou a escrita do Tahafut. Trabalhou até o crepúsculo da noite.

O diálogo, na casa de Farach, passou das incomparáveis virtudes do governador às de seu irmão, o emir; depois, no jardim, falaram de rosas. Abulcásim, que não as tinha visto, jurou que não existiam rosas como as que decoram os jardins andaluzes. Farach não se deixou subornar; observou que o douto Ibn Qutaiba descreve uma excelente variedade de rosa perpétua, que dá nos jardins do Industão e cujas pétalas, de um vermelho encarnado, apresentam caracteres que dizem: "Não há outro deus como o Deus. Muhammad é o Apóstolo de Deus". Acrescentou que Abulcásim, com certeza, conheceria essas rosas. Abulcásim fixou-o com inquietação. Se respondesse que sim, todos o julgariam, com razão, o mais disponível e casual dos impostores; se respondesse que não, seria julgado infiel. Optou por murmurar que com o Senhor estão as chaves das coisas ocultas e que não existe na terra uma coisa verde ou uma coisa murcha que não esteja registrada em Seu Livro. Essas palavras pertencem a uma das primeiras suratas; acolheu-as um murmúrio reverenciai. Envaidecido por essa vitória dialética, Abulcásim ia dizer que o Senhor é perfeito em suas obras e é inescrutável. Então Averróis declarou, prefigurando as remotas razões de um ainda problemático Hume:

– Menos me custa admitir um erro no douto Ibn Qutaiba, ou nos copistas, do que admitir que a terra dê rosas com profissão de fé.

– Assim é. Grandes e verdadeiras palavras – disse Abulcásim.

– Certo viajante – lembrou o poeta Abdalmálik – fala de uma árvore cujos frutos são verdes pássaros. É menos difícil acreditar nele que em rosas com letras.

– A cor dos pássaros – disse Averróis – parece facilitar o portento. Além disso, os frutos e os pássaros pertencem ao mundo natural, mas a escrita é uma arte. Passar de folhas a pássaros é mais fácil que de rosas a letras.

Outro hóspede negou com indignação que a escrita fosse uma arte, já que o original do Quran – a Mãe do Livro – é anterior à Criação e está guardado no céu. Outro falou de Cháhiz de Basra, segundo o qual o Quran é uma substância que pode tomar a forma de um homem ou de um animal, opinião que parece combinar com a dos que lhe atribuem duas faces. Farach expôs longamente a doutrina ortodoxa. O Quran (disse) é um dos atributos de Deus, como Sua piedade; é copiado num livro, é pronunciado com a língua, é lembrado no coração, e o idioma e os sinais e a escrita são obra dos homens, mas o Quran é irrevogável e eterno. Averróis, que havia comentado a República, podia ter dito que a Mãe do Livro é algo assim como seu modelo platônico, mas percebeu que a teologia era um tema totalmente inacessível a Abulcásim.

Outros, que também o perceberam, instaram com Abulcásim para contar alguma maravilha. Então, como agora, o mundo era cruel; os audazes podiam percorrê-lo, mas também os miseráveis, os que se sujeitavam a tudo. A memória de Abulcásim era um espelho de íntimas covardias. Que podia ele contar? Além disso, exigiam-lhe maravilhas e a maravilha é talvez incomunicável: a lua de Bengala não é igual à lua do Iêmen, porém, deixa-se descrever com as mesmas palavras. Abulcásim vacilou; depois falou:

– Quem percorre os climas e as cidades – proclamou com unção – vê muitas coisas dignas de crédito. Esta, por exemplo, que só contei uma vez ao rei dos turcos. Ocorreu em Sin Kalan (Cantão), onde o rio da Água da Vida se derrama no mar.

Farach perguntou se a cidade ficava a muitas léguas da muralha que Iskandar Zul Qarnain (Alexandre Bicorne da Macedônia) levantou para deter Gog e Magog.

– Desertos a separam – disse Abulcásim, com involuntária soberba. – Quarenta dias demoraria uma cáfila (caravana) para divisar suas torres e dizem que outros tantos para alcançá-las. Em Sin Kalan não sei de nenhum homem que a tenha visto ou que tenha visto quem a viu.

O medo do grosseiramente infinito, do mero espaço, da mera matéria, tocou Averróis por um instante. Olhou o simétrico jardim; sentiu-se envelhecido, inútil, irreal. Dizia Abulcásim:

– Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam muitas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um único quarto, com filas de armários ou sacadas, umas sobre as outras. Nessas cavidades havia gente que comia e bebia, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, salvo umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam e logo estavam de pé.

– Os atos dos loucos – disse Farach – excedem às previsões do homem sensato.

– Não estavam loucos – teve de explicar Abulcásim. – Estavam figurando, disse-me um mercador, uma história.

Ninguém compreendeu, ninguém pareceu querer compreender. Abulcásim, confuso, passou da escutada narração às desajeitadas razões. Falou, ajudando-se com as mãos:

– Imaginemos que alguém mostre uma história, em vez de contá-la. Seja essa história a dos adormecidos de Éfeso. Vemos retirarem-se para a caverna, vemos orarem e dormirem, vemos dormirem com os olhos abertos, vemos crescerem enquanto dormem, vemos despertarem depois de trezentos e nove anos, vemos entregarem ao vendedor uma antiga moeda, vemos despertarem no paraíso, vemos despertarem com o cão. Algo semelhante nos mostraram àquela tarde as pessoas do terraço.

– Essas pessoas falavam? – perguntou Farach.

– Claro que falavam – disse Abulcásim, convertido em apologista de uma cena que mal recordava e que o enfadara bastante. – Falavam e cantavam e peroravam!

– Nesse caso – disse Farach –, não eram necessárias vinte pessoas. Um só narrador pode contar qualquer coisa, por complexa que seja.

Todos aprovaram essa opinião. Encareceram-se as virtudes do árabe, idioma usado por Deus para comandar os anjos; em seguida, as da poesia dos árabes. Abdalmálik, depois de examiná-la devidamente, escarneceu por antiquados dos poetas que em Damasco ou em Córdoba se apegavam a imagens pastoris e a um vocabulário beduíno. Disse ser absurdo que um homem ante cujos olhos se estendia o Guadalquivir fosse celebrar a água de um poço. Alertou para a conveniência de se renovarem as antigas metáforas; disse que, quando Zuhair comparou o destino a um camelo cego, essa figura pode ter causado surpresa às pessoas, mas que cinco séculos de admiração a gastaram. Todos aprovaram essa opinião, que já haviam escutado muitas vezes, de muitas bocas. Averróis calava-se. Por fim, falou, menos para os outros que para si mesmo.

– Com menos eloqüência – disse Averróis –, mas com argumentos congêneres, defendi algumas vezes a proposição que Abdalmálik sustenta. Em Alexandria, tem-se dito
que só é incapaz de uma culpa quem já a cometeu e já se arrependeu; para se estar livre de um erro, acrescentemos, convém havê-lo praticado. Zuhair, em seu "mualaca", disse que, no decurso de oitenta anos de dor e de glória, viu muitas vezes o destino atropelar de surpresa os homens, como um camelo cego; Abdalmálik entende que essa figura já não pode surpreender. A essa observação caberia contestar muitas coisas. A primeira é que, se o fim do poema fosse o assombro, seu tempo não se mediria por séculos, mas por dias e por horas e talvez por minutos. A segunda é que um famoso poeta é menos inventor que descobridor. Para louvar Ibn-Sharaf de Berja, tem-se repetido que só ele pôde imaginar que as estrelas, ao amanhecer, caem lentamente, como as folhas caem das árvores; isso, se fosse certo, evidenciaria que a imagem é frívola. A imagem que um único homem pode formar é a que não toca ninguém. Infinitas coisas existem na terra; qualquer uma pode equiparar-se a qualquer outra. Equiparar estrelas a folhas não é menos arbitrário que equipará-las a peixes ou a pássaros. Em compensação, ninguém nunca sentiu que o destino é forte e é rude, que é inocente e é também inumano. Para essa convicção, que pode ser passageira ou contínua, mas que ninguém evita, foi escrito o verso de Zuhair. Não se dirá melhor o que ali se disse. Além do mais (e isso talvez seja o essencial de minhas reflexões), o tempo, que despoja os alcáceres, enriquece os versos. O de Zuhair, quando este o compôs na Arábia, serviu para confrontar duas imagens, a do velho camelo e a do destino; repetido agora, serve para recordar Zuhair e para confundir nossos pesares com os daquele árabe morto. Dois termos tinha a figura e hoje ela tem quatro. O tempo amplia o âmbito dos versos e sei de alguns que, como a música, são tudo para todos os homens. Assim, atormentado há anos em Marrakech por lembranças de Córdoba, comprazia-me em repetir a apóstrofe que Abdurrahman dirigiu, nos jardins de Ruzafa, a uma palmeira africana:

Tu também és, é palmeira!,
Neste solo estrangeira...

Singular benefício da poesia; palavras escritas por um rei que desejava o Oriente serviram a mim, desterrado na África, para minha nostalgia da Espanha.

Averróis, depois, falou dos primeiros poetas, daqueles que no Tempo da Ignorância, antes do Islã, já disseram todas as coisas, na infinita linguagem dos desertos. Alarmado, não sem razão, pelas futilidades de Ibn-Sharaf, disse que nos antigos e no Quran estava cifrada toda poesia e condenou por analfabeta e por vã a ambição de inovar. Os demais o escutaram com prazer, pois ele defendia o antigo.

Os muezins chamavam à oração da primeira luz quando Averróis voltou a entrar na biblioteca. (No harém, as escravas de cabelos negros haviam torturado uma escrava de cabelos ruivos, mas ele não o saberia senão à tarde.) Algo lhe revelara o sentido das duas palavras obscuras. Com firme e cuidadosa caligrafia juntou estas linhas ao manuscrito: "Aristu (Aristóteles) denomina tragédia os panegíricos e comédias as sátiras e os anátemas. Admiráveis tragédias e comédias são abundantes nas páginas do Corão e nos "mualacas" do santuário".

Sentiu sono, sentiu um pouco de frio. Desenrolado o turbante, olhou-se num espelho de metal. Não sei o que viram seus olhos, porque nenhum historiador descreveu as formas de seu rosto. Sei que desapareceu bruscamente, como se o fulminasse um fogo sem luz, e que com ele desapareceram a casa e o invisível repuxo e os livros e os manuscritos e as pombas e as muitas escravas de cabelos negros e a trêmula escrava de cabelos ruivos e Farach e Abulcásim e os roseirais e talvez o Guadalquivir.

Na história anterior quis contar o processo de uma derrota. Pensei, primeiro, naquele arcebispo de Canterbury que se propôs demonstrar que há um Deus; depois, nos alquimistas que procuraram a pedra filosofal; depois, nos inúteis trissectores do ângulo e retificadores do círculo. Refleti, em seguida, que mais poético é o caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele. Lembrei-me de Averróis, que, encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia. Contei o caso; à medida que me adiantava, senti o que teve de sentir aquele deus mencionado por Burton, que se propôs criar um touro e criou um búfalo. Senti que a obra zombava de mim. Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis, sem outro material além de alguns adarmes de Renan, de Lane e de Asín Palacios. Senti, na última página, que minha narrativa era um símbolo do homem que eu fui enquanto a escrevia, e que, para escrever essa narrativa, fui obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, tive de escrever essa narrativa, e assim até o infinito. (No instante em que deixo de acreditar nele, "Averróis" desaparece.)
























































































O ZAHIR
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Em Buenos Aires, o Zahir é uma moeda comum, de vinte centavos; marcas de navalha ou de canivete riscam as letras N T e o número dois; 1929 é a data gravada no anverso. (Em Guzerat, em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, que os fiéis apedrejaram; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou atirar no fundo do mar; nas prisões do Mahdi, por volta de 1892, uma pequena bússola que Rudolf Carl von Slatin tocou, envolta numa dobra de turbante; na mesquita de Córdoba, segundo Zotenberg, um veio no mármore de um dos mil e duzentos pilares; entre os judeus de Tetuan, o fundo de um poço.) Hoje é 13 de novembro; no dia 7 de junho, de madrugada, chegou às minhas mãos o Zahir; não sou o que então eu era, mas ainda me é dado recordar, e talvez contar, o ocorrido. Se bem que, parcialmente, ainda sou Borges.

Em 6 de junho morreu Teodelina Villar. Seus retratos, por volta de 193O, enchiam as revistas mundanas; essa abundância contribuiu talvez para que a julgassem muito bonita, embora nem todas as imagens apoiassem incondicionalmente essa hipótese. Além do mais, Teodelina Villar se preocupava menos com a beleza que com a perfeição. Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair à rua com uma agulha; no Livro dos Ritos se lê que um hóspede, ao receber o primeiro copo, deve assumir um ar grave e, ao receber o segundo, um ar respeitoso e feliz. Análogo, porém mais minucioso, era o rigor que Teodelina Villar exigia de si mesma. Procurava, como o adepto de Confúcio ou o talmudista, a irrepreensível correção de cada ato, mas seu empenho era mais admirável e mais duro, pois as normas de seu credo não eram eternas, já que se rendiam às casualidades de Paris ou de Hollywood. Teodelina Villar mostrava-se em lugares ortodoxos, em hora ortodoxa, com atributos ortodoxos, com tédio ortodoxo, mas o tédio, os atributos, a hora e os lugares caducavam quase imediatamente e serviriam (na boca de Teodelina Villar) para definição do ridículo. Procurava o absoluto, como Flaubert, mas o absoluto no momentâneo. Sua vida era exemplar e, no entanto, um desespero interior a roía sem trégua. Ensaiava contínuas metamorfoses, como para fugir de si mesma; a cor de seus cabelos e as formas de seu penteado eram famosamente instáveis. Também variavam
o sorriso, a tez, a obliqüidade dos olhos. Desde 1932, foi estudadamente delgada... A guerra deu-lhe muito que pensar. Ocupada Paris pelos alemães, como seguir a moda? Um estrangeiro de quem ela sempre desconfiara permitiu-se abusar de sua boa-fé para vender-lhe uma porção de chapéus cilíndricos; durante o ano, propagou-se que esses objetos extravagantes nunca haviam aparecido em Paris e, por conseguinte, não eram chapéus, mas arbitrários e desautorizados caprichos. As desgraças não vêm sozinhas; o doutor Villar teve de mudar-se para a rua Aráoz e o retrato de sua filha ilustrou anúncios de cremes e de automóveis. (Os cremes que ela tanto se aplicava, os automóveis que já não possuía!) Ela sabia que o bom exercício de sua arte exigia grande fortuna; preferiu retirar-se a claudicar. Além disso, doía-lhe competir com garotinhas insubstanciais. O sinistro distrito de Aráoz mostrou-se demasiado oneroso; em 6 de junho, Teodelina Villar cometeu o solecismo de morrer em pleno Barrio Sur. Confessarei que, movido pela mais sincera das paixões argentinas, o esnobismo, estava apaixonado por ela e que sua morte me afetou até as lágrimas? Talvez já o tenha suspeitado o leitor.

Nos velórios, o progresso da decomposição faz com que o morto recupere suas faces anteriores. Em algum momento da confusa noite do dia 6, Teodelina Villar foi magicamente a que fora havia vinte anos; seus traços recobraram a autoridade imposta pela soberba, pelo dinheiro, pela juventude, pela consciência de coroar uma hierarquia, pela falta de imaginação, pelas limitações, pela estupidez. Pensei mais ou menos assim: nenhuma versão dessa face que tanto me inquietou será tão memorável como esta; convém que seja a última, já que pôde ser a primeira. Rígida entre as flores deixei-a, aperfeiçoando seu desdém pela morte. Seriam duas da manhã quando saí. Fora, as previstas fileiras de casas baixas e de casas de um pavimento tinham assumido esse ar abstrato que costumam assumir à noite, quando a sombra e o silêncio as simplificam. Ébrio de uma piedade quase impessoal, caminhei pelas ruas. Na esquina das ruas Chile e Tacuarí, vi um armazém aberto. Naquele armazém, para minha desgraça, três homens jogavam o truco.

Na figura que se chama oxímoro, aplica-se a uma palavra um epíteto que parece contradizê-la; assim os gnósticos falaram de luz obscura, os alquimistas, de um sol negro. Sair de minha última visita a Teodelina Villar e tomar cachaça num armazém era uma espécie de oxímoro; sua grosseria e sua facilidade me tentaram. (A circunstância de que se jogavam cartas aumentava o contraste.) Pedi uma aguardente de laranja; de troco, deram-me o Zahir; olhei-o por um instante; saí à rua, talvez com um princípio de febre. Pensei que não existe moeda que não seja símbolo das moedas que resplandecem interminavelmente na história e na fábula. Pensei no óbolo de Caronte; no óbolo que Belisário pediu; nos trinta dinheiros de Judas; nas dracmas da cortesã Laís; na antiga moeda que ofereceu um dos adormecidos de Éfeso; nas claras moedas do feiticeiro das Mil e Uma Noites, que depois eram círculos de papel; no denário inesgotável de Isaac Laquedem; nas sessenta mil peças de prata, uma para cada verso de uma epopéia, as quais Firdusi devolveu a um rei por não serem de ouro; na onça de ouro que Ahab fez cravar no mastro; no florim irreversível de Leopold Bloom; no luís cuja efígie denunciou, perto de Varennes, o fugitivo Luís XVI. Como num sonho, o pensamento de que toda moeda permite essas ilustres conotações pareceu-me de imensa, se bem que inexplicável, importância. Percorri, com crescente velocidade, as ruas e as praças desertas. O cansaço me deixou numa esquina. Vi uma gasta grade; por trás, vi os ladrilhos negros e brancos do átrio da Concepción. Errara em círculo; agora estava a uma quadra do armazém onde me deram o Zahir.

Dobrei; a esquina escura me indicou, de longe, que o armazém estava fechado. Na rua Belgrano tomei um táxi. Insone, possesso, quase feliz, pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, já que qualquer moeda (uma moeda de vinte centavos, digamos) é, a rigor, um repertório de futuros possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde nos arredores, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha de Faros. E tempo imprevisível, tempo de Bergson, não duro tempo do Islã ou do Pórtico. Os deterministas negam que haja no mundo um único fato possível, id est um fato que pôde acontecer; uma moeda simboliza nosso livre-arbítrio. (Não suspeitava eu que esses "pensamentos" eram um artifício contra o Zahir e uma primeira forma de sua demoníaca influência.) Dormi após tenazes cavilações, mas sonhei que eu era as moedas que um grifo custodiava.

No dia seguinte, decidi que tinha estado bêbado. Também resolvi livrar-me da moeda que tanto me inquietava. Olhei-a: nada tinha de particular, a não ser algumas ranhuras. Enterrá-la no jardim ou escondê-la num canto da biblioteca teria sido o melhor, mas eu queria distanciar-me de sua órbita. Preferi perdê-la. Não fui ao Pilar, essa manhã, nem ao cemitério; fui, de metrô, a Constitución e de Constitución a San Juan e Boedo. Saltei, impensadamente, em Urquiza; dirigi-me ao oeste e ao sul; baralhei, com desordem estudada, umas quantas esquinas e, numa rua que me pareceu igual a todas, entrei num botequim qualquer, pedi uma caninha e paguei-a com o Zahir. Entrecerrei os olhos, por trás das lentes esfumadas; consegui não ver os números das casas nem o nome da rua. Essa noite, tomei uma pastilha de veronal e dormi tranqüilo.

Até fins de junho, distraiu-me a tarefa de compor um conto fantástico. Ele encerra duas ou três perífrases enigmáticas – em lugar de sangue, traz água da espada; em lugar de ouro, leito da serpente – e está escrito em primeira pessoa. O narrador é um asceta que renunciou ao trato com os homens e vive numa espécie de páramo. (Gnitaheidr é o nome desse lugar.) Dada a candura e a simplicidade de sua vida, há os que o julgam um anjo; isso é um piedoso exagero, pois não existe homem que esteja livre de culpa. Sem ir mais longe, ele mesmo degolou seu pai; é bem verdade que este era um famoso feiticeiro que se apoderara, por artes mágicas, de um tesouro infinito. Resguardar o tesouro da insana cobiça dos humanos é a missão a que dedicou sua vida; dia e noite vela sobre ele. Rápido, talvez demasiadamente rápido, essa vigília terá fim: as estrelas disseram-lhe que já se forjou a espada que a decepará para sempre. (firam é o nome dessa espada.) Num estilo cada vez mais tortuoso, pondera o brilho e a flexibilidade de seu corpo; em algum parágrafo, fala distraidamente de escamas; em outro, diz que o tesouro que guarda é de ouro fulgurante e de anéis vermelhos. No final, entendemos que o asceta é a serpente Fafnir e o tesouro em que jaz, o dos Nibelungos. A aparição de Sigurd corta bruscamente a história.

Disse que a execução dessa ninharia (em cujo decurso intercalei, pseudo-eruditamente, algum verso da Fáfnismál) permitiu-me esquecer a moeda. Noites houve em que me acreditei tão seguro de poder esquecê-la que voluntariamente a recordava. O certo é que abusei desses momentos; dar-lhes início resultava mais fácil que lhes dar fim. Em vão repeti que esse abominável disco de níquel não diferia dos outros que passam de uma para outra mão, iguais, infinitos e inofensivos. Impelido por essa reflexão, procurei pensar em outra moeda, mas não pude. Também me lembro de alguma experiência, frustrada, com cinco e dez centavos chilenos e com um vintém oriental. Em 16 de julho, adquiri uma libra esterlina; não a olhei durante o dia, mas nessa noite (e outras) coloquei-a sob uma lente de aumento e estudei-a à luz de uma poderosa lâmpada elétrica. Depois, desenhei-a com um lápis, através de um papel. De nada me valeram o fulgor e o dragão e São Jorge; não consegui livrar-me da idéia fixa.

No mês de agosto, optei por consultar um psiquiatra. Não lhe confiei toda a minha ridícula história; disse-lhe que a insônia me atormentava e que a imagem de um objeto qualquer costumava perseguir-me; a de uma ficha ou a de uma moeda, digamos... Pouco depois, exumei em uma livraria da rua Sarmiento um exemplar de Urkunden zur Geschichte der Zahirsage (Breslau, 1899), de Julius Barlach.

Naquele livro estava declarado meu mal. Segundo o prólogo, o autor se propôs "reunir em um único volume em legível oitavo-maior todos os documentos que se referem
à superstição do Zahir, inclusive quatro peças pertencentes ao arquivo de Habicht e o manuscrito original do relatório de Philip Meadows Taylor". A crença no Zahir é islâmica e data, ao que parece, do século XVIII. (Barlach impugna as passagens que Zotenberg atribui a Abulfeda.) Zahir, em árabe, quer dizer evidente, visível; em tal sentido, é um dos noventa e nove nomes de Deus; a plebe, em terras muçulmanas, chama-o de "os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas". O primeiro testemunho incontrovertido é o do persa Lutf Ali Azur. Nas derradeiras páginas da enciclopédia biográfica intitulada Templo do Fogo, esse polígrafo e dervixe narrou que, num colégio de Shiraz, houve um astrolábio de cobre, "construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava em outra coisa e assim o rei ordenou que o atirassem no mais profundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo". Mais extenso é o relatório de Meadows Taylor, que serviu ao soberano de Haidarabad e compôs a famosa novela Confessions of a Thug. Por volta de 1832, Taylor ouviu nos arrabaldes de Bhuj a estranha locução "Ter visto o Tigre" (Verily he has looked on the Tiger) para significar a loucura ou a santidade. Disseram-lhe que a referência era a um tigre mágico, que foi a perdição de quantos o viram, mesmo de muito longe, pois todos continuaram pensando nele até o fim de seus dias. Alguém disse que um desses desventurados fugira para Mysore, onde pintara num palácio a figura do tigre. Anos depois, Taylor visitou os cárceres desse reino; no de Nithur, o governador lhe mostrou uma cela em cujo piso, em cujos muros e em cuja abóbada um faquir muçulmano desenhara (em bárbaras cores que o tempo, em vez de apagar, delineava) uma espécie de tigre infinito. Esse tigre estava feito de muitos tigres, de vertiginosa maneira; atravessavam-no tigres, estava raiado de tigres, incluía mares e Himalaias e exércitos que pareciam outros tigres. O pintor morrera, havia anos, nessa mesma cela; vinha de Sind ou talvez de Guzerat e seu propósito inicial fora traçar um mapa-múndi. Desse propósito restavam vestígios na monstruosa imagem. Taylor narrou a história a Muhammad Al-Yemeni, de Fort William; este lhe disse que não havia criatura no mundo que não se inclinasse para Zaheer,1 mas que o Todo-Misericordioso não deixa que duas coisas o sejam ao mesmo tempo, já que uma só pode fascinar multidões. Disse que sempre existe um Zahir e que na Idade da Ignorância foi o ídolo que se chamou Yauq e depois um profeta do Kurassan, que usava um véu recamado de pedras ou uma máscara de ouro.2 Disse também que Deus é inescrutável.

Muitas vezes li a monografia de Barlach. Não decifro quais foram meus sentimentos; recordo o desespero quando compreendi que já nada me salvaria, o intrínseco alívio de saber que eu não era culpado de minha desdita, a inveja que me deram aqueles homens cujo Zahir não foi uma moeda mas um pedaço de mármore ou um tigre. Que empresa fácil não pensar num tigre, refleti. Também me lembro da inquietude singular com que li este parágrafo: "Um comentador do Gulshan i Raz diz que quem viu o Zahir logo verá a Rosa e cita um verso interpolado no Asrar Nama (Livro de Coisas que se Ignoram), de Attar: o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu".

Na noite em que velaram Teodelina, surpreendeu-me não ver entre os presentes a senhora de Abascal, sua irmã mais moça. Em outubro, uma sua amiga me disse:

– Pobre Julita, ficou tão estranha que a internaram no Bosch. Como não estará estafando as enfermeiras que lhe dão comida na boca! Continua obcecada pela moeda, idêntica ao chauffeur de Morena Sackmann.

O tempo, que atenua as lembranças, agrava a do Zahir. Antes, eu imaginava o anverso e depois o reverso; agora, vejo simultaneamente os dois. Isso não ocorre como se fosse de cristal o Zahir, pois uma face não se superpõe à outra; ocorre, isso sim, como se a visão fosse esférica e o Zahir sobressaísse no centro. O que não é o Zahir me chega depurado e como que distante: a desdenhosa imagem de Teodelina, a dor física. Disse Tennyson que, se pudéssemos compreender uma única flor, saberíamos quem somos e o que é o mundo. Talvez quisesse dizer que não existe fato, por humilde que seja, que não implique a história universal e sua infinita concatenação de efeitos e causas. Talvez quisesse dizer que o mundo visível se dá inteiro em cada representação, da mesma maneira que a vontade, segundo Schopenhauer, se dá inteira em cada indivíduo. Os cabalistas entenderam que o homem é um microcosmo, um simbólico espelho do universo; tudo, segundo Tennyson, o seria. Tudo, até o intolerável Zahir.

Antes de 1948, o destino de Julia talvez já tenha me atingido. Terão de alimentar-me e vestir-me, não saberei se é tarde ou manhã, não saberei quem foi Borges. Qualificar de terrível esse futuro é uma falácia, já que nenhuma de suas circunstâncias terá significado para mim. Tanto valeria sustentar que é terrível a dor de um anestesiado a quem abrem o crânio. Já não perceberei o universo, perceberei o Zahir. Segundo a doutrina idealista, os verbos viver e sonhar são rigorosamente sinônimos; de milhares de aparências, passarei a uma; de um sonho muito complexo a um sonho muito simples. Outros sonharão que estou louco, e eu com o Zahir. Quando todos os homens da terra pensarem, dia e noite, no Zahir, qual será um sonho e qual uma realidade, a terra ou o Zahir?

Nas horas desertas da noite ainda posso caminhar pelas ruas. A aurora costuma surpreender-me num banco da praça Garay, pensando (procurando pensar) naquela passagem do Asrar Nama, na qual se diz que o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu. Vinculo essa opinião a esta notícia: para perder-se em Deus, os sufis repetem seu próprio nome ou os noventa e nove nomes divinos até que eles já nada querem dizer. Eu desejo percorrer esse caminho. Talvez acabe por gastar o Zahir à força de pensar e repensar nele; talvez, por trás da moeda, esteja Deus.

Para Wally Zenner.
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Notas:
1 Assim escreve Taylor essa palavra.
2 Barlach observa que Yauq figura no Corão (71, 23) e que o profeta é AI-Moqanna (O Velado) e que ninguém, com exceção do surpreendente correspondente de Philip Meadows Taylor, vinculou-os ao Zahir.











































A ESCRITA DO DEUS
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O cárcere é profundo e de pedra; sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide de Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra [o meio-dia], abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que foram apagando os anos manobra uma roldana de ferro e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar.

Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.

Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, o ídolo do deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Laceraram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois acordei neste cárcere, que não mais deixarei em minha vida mortal.

Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de algum modo o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Noites inteiras desperdicei em recordar a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui debelando os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não a tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que a lerá um eleito. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escrita. O fato de que me rodeasse uma prisão não me vedava essa esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.

Essa reflexão me animou e logo me infundiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo procurado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Procurei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações dos cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. Talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha procura. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.

Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, causando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjetura e um secreto favor.

Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam a pelagem amarela. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face interior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.

Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma palavra articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa palavra, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as ambiciosas e pobres palavras humanas, tudo, mundo, universo.

Um dia ou uma noite – entre meus dias e minhas noites que diferença existe? – sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir; sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob esse hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil; a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás de desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".

Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas gritei: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me, nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior desenhava-se um círculo de luz. Vi a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei, como à minha casa, à dura prisão. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse a fresta de luz, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.

Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas também de fogo, e era (embora se visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um fio dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa Roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou que a de sentir! Vi o universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens que narra o Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram da água, vi os primeiros homens feitos de pau, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes destroçaram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.

É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser Todo-Poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destroçasse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque não me lembro de Tzinacan.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

Para Ema Risso Platero.
















































ABENJACAN, O BOKARI, MORTO EM SEU LABIRINTO
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...são comparáveis à aranha, que edifica uma casa.
Alcorão, XXIX, 4O.


– Esta – disse Dunraven com um grande gesto que não recusava as nubladas estrelas e que abarcava o negro páramo, o mar e um edifício majestoso e decrépito que parecia uma cavalariça deteriorada – é a terra de meus antepassados.

Unwin, seu companheiro, tirou o cachimbo da boca e emitiu sons modestos e aprovadores. Era a primeira tarde do verão de 1914; fartos de um mundo sem a dignidade do perigo, os amigos apreciavam a solidão desses confins de Cornwall. Dunraven fomentava uma barba escura e se sabia autor de uma considerável epopéia que seus contemporâneos quase não poderiam escandir e cujo tema não lhe havia sido ainda revelado; Unwin publicara um estudo sobre o teorema que Fermat não escreveu à margem de uma página de Diofanto. Ambos – será preciso que o diga? – eram jovens, distraídos e apaixonados.

– Fará um quarto de século – disse Dunraven – que Abenjacan, o Bokari, chefe ou rei de não sei que tribo nilótica, morreu no aposento central desta casa, pelas mãos de seu primo Zaid. Com o passar dos anos, as circunstâncias de sua morte continuam obscuras.

Unwin perguntou por quê, docilmente.

– Por diversas razões – foi a resposta. – Em primeiro lugar, esta casa é um labirinto. Em segundo lugar, vigiavam-na um escravo e um leão. Em terceiro lugar, desvaneceu-se um tesouro secreto. Em quarto lugar, o assassino estava morto quando o assassinato ocorreu. Em quinto lugar...

Unwin, cansado, o deteve.

– Não multipliques os mistérios – disse. – Estes devem ser simples. Lembra a carta roubada de Poe, lembra o quarto fechado de Zangwill.

– Ou complexos – replicou Dunraven. – Lembra o universo.

Subindo colinas arenosas, haviam chegado ao labirinto. Este, de perto, pareceu-lhes uma direita e quase interminável parede, de tijolos sem reboco, pouco mais alta que um homem. Dunraven disse que tinha a forma de um círculo, mas tão extensa era sua área que não se percebia a curvatura. Unwin lembrou-se de Nicolau de Cusa, para quem toda linha reta é o arco de um círculo infinito... Por volta da meia-noite, descobriram uma arruinada porta, que dava para um cego e perigoso corredor. Dunraven disse que no interior da casa havia muitas encruzilhadas, mas que, dobrando sempre à esquerda, chegariam em pouco mais de uma hora ao centro da rede. Unwin assentiu. Os passos cautelosos ressoaram no solo de pedra; o corredor se bifurcou em outros mais estreitos. A casa parecia querer asfixiá-los, o teto era muito baixo. Tiveram de avançar um atrás do outro pela complicada treva. Unwin ia adiante. Embrutecido de asperezas e de ângulos, fluía sem fim contra sua mão o invisível muro. Unwin, lento na sombra, ouviu da boca de seu amigo a história da morte de Abenjacan.

– Talvez a mais antiga de minhas lembranças – contou Dunraven – seja a de Abenjacan, o Bokari, no porto de Pentreath. Seguia-o um homem negro com um leão; sem dúvida o primeiro negro e o primeiro leão que meus olhos viram fora das gravuras da Escritura. Eu era então um menino, mas a fera da cor do sol e o homem da cor da noite me impressionaram menos que Abenjacan. Pareceu-me muito alto; era um homem de pele citrina, de entrecerrados olhos negros, de insolente nariz, de carnudos lábios, de barba açafroada, de peito forte, de andar seguro e silencioso. Em casa disse: "Chegou um rei num navio". Depois, com o trabalho dos pedreiros, ampliei esse título e pus-lhe o de Rei de Babel.

A notícia de que o forasteiro iria fixar-se em Pentreath foi recebida com agrado; a extensão e a forma de sua casa, com espanto e até mesmo com escândalo. Pareceu intolerável que uma casa constasse de um único aposento e de léguas e léguas de corredores. "Entre os mouros são usadas tais casas, mas não entre cristãos", diziam as pessoas. Nosso reitor, o senhor Allaby, homem de curiosa leitura, exumou a história de um rei a quem a Divindade castigou por ter erguido um labirinto e a divulgou do púlpito. Na segunda-feira, Abenjacan visitou a reitoria; os pormenores da breve entrevista não se conheceram então, mas nenhum sermão ulterior aludiu à soberba, e o mouro pôde contratar pedreiros. Anos depois, quando pereceu Abenjacan, Allaby declarou às autoridades a substância do diálogo.

Abenjacan disse-lhe, de pé, estas ou parecidas palavras: "Ninguém mais pode censurar o que faço. As culpas que me infamam são tais que, mesmo que eu repetisse durante séculos o último Nome de Deus, isso não bastaria para mitigar um só de meus tormentos; as culpas que me infamam são tais que, mesmo que eu o matasse com estas mãos, isso não agravaria os tormentos que me destina a infinita justiça. Em nenhuma terra é desconhecido o meu nome; sou Abenjacan, o Bokari, e regi as tribos do deserto com um cetro de ferro. Durante muitos anos, despojei-as, com assistência de meu primo Zaid, mas Deus ouviu seu clamor e permitiu que se rebelassem. Minha família foi rasgada e esfaqueada; eu consegui fugir com o tesouro arrecadado em meus anos de espoliação. Zaid guiou-me ao sepulcro de um santo, ao pé de uma montanha de pedra. Ordenei a meu escravo que vigiasse a frente do deserto; Zaid e eu dormimos, exaustos. Nessa noite, acreditei que me aprisionava uma rede de serpentes. Despertei com horror; a meu lado, ao amanhecer, dormia Zaid; o roçar de uma teia de aranha em minha carne me fizera sonhar aquele sonho. Desgostou-me que Zaid, um covarde, dormisse tão tranqüilamente. Considerei que o tesouro não era infinito e que ele podia reclamar uma parte. Em meu cinto estava a adaga com a empunhadura de prata; desnudei-a e atravessei-lhe a garganta. Em sua agonia, ele balbuciou algumas palavras que não pude entender. Olhei-o; estava morto, mas temi que se levantasse e ordenei ao escravo que lhe desfizesse o rosto com uma pedra. Depois erramos sob o céu e um dia divisamos um mar. Sulcavam-no navios muito altos; refleti que um morto não poderia andar pela água e decidi procurar outras terras. Na primeira noite que navegamos, sonhei que eu matava Zaid. Tudo se repetiu mas eu entendi suas palavras. Dizia: "Como agora me apagas, eu te apagarei, onde quer que estejas". Jurei frustrar essa ameaça; ficarei oculto no centro de um labirinto para que seu fantasma se perca".

Dito isso, foi embora. Allaby tratou de pensar que o mouro estava louco e que o absurdo labirinto era símbolo e claro testemunho de sua loucura. Depois refletiu que essa explicação condizia com o extravagante edifício e com o extravagante relato, não com a enérgica impressão que deixava o homem Abenjacan. Talvez tais histórias fossem comuns nos areais egípcios, talvez tais estranhezas correspondessem (como os dragões de Plínio) menos a uma pessoa que a uma cultura... Allaby, em Londres, reviu números atrasados do Times; comprovou a verdade da rebelião e de uma subseqüente derrota do Bokari e de seu vizir, que tinha fama de covarde.

Aquele, tão logo os pedreiros concluíram a obra, instalou-se no centro do labirinto. Não o viram mais no povoado; por vezes, Allaby temeu que Zaid já o tivesse encontrado e aniquilado. Durante as noites, o vento nos trazia o rugido do leão, e as ovelhas do redil se aconchegavam com um antigo medo.

Costumavam ancorar na pequena baía, rumo a Cardiff ou a Bristol, navios de portos orientais. O escravo descia do labirinto (que então, estou lembrado, não era rosado, mas de cor carmesim) e trocava palavras africanas com as tripulações e parecia procurar entre os homens o fantasma do vizir. Dizia-se que tais embarcações traziam contrabando, e se de álcoois ou marfins proibidos, por que não, também, de sombras de mortos?

Aos três anos da construção da casa, ancorou ao pé das colinas o Rose of Sharon. Não fui dos que viram esse veleiro e talvez na imagem que tenho dele influam esquecidas litografias de Aboukir ou de Trafalgar, mas acho que era desses barcos muito trabalhados que não parecem obra de armador mas de carpinteiro e menos de carpinteiro que de ebanista. Era (se não na realidade, em meus sonhos) polido, escuro, silencioso e veloz, e o tripulavam árabes e malaios.

Ancorou ao amanhecer de um dos dias de outubro. Ao entardecer, Abenjacan irrompeu na casa de Allaby. Dominava-o a paixão do terror; apenas pôde articular que Zaid já tinha entrado no labirinto e que seu escravo e seu leão haviam perecido. Perguntou com seriedade se as autoridades poderiam ampará-lo. Antes que Allaby respondesse, saiu, como se o arrebatasse o mesmo terror que o havia trazido a essa casa, pela segunda e última vez. Allaby, sozinho em sua biblioteca, pensou com espanto que esse temeroso oprimira no Sudão tribos de ferro, e sabia o que é uma batalha e o que é matar. Observou, no outro dia, que já havia zarpado o veleiro (rumo a Suakin, no mar Vermelho, averiguou-se depois). Refletiu que seu dever era comprovar a morte do escravo e dirigiu-se ao labirinto. O arquejante relato do Bokari pareceu-lhe fantástico, mas em um ângulo das galerias deu com o leão, e o leão estava morto, e em outro, com o escravo, que estava morto, e no aposento central com o Bokari, a quem haviam destroçado o rosto. Aos pés do homem havia uma arca marchetada de nácar; alguém forçara a fechadura e não restava uma única moeda.

Os períodos finais, agravados por pausas oratórias, procuravam ser eloqüentes; Unwin adivinhou que Dunraven os pronunciara muitas vezes, com idêntico aprumo e com idêntica ineficácia. Perguntou, para simular interesse:

– Como morreram o leão e o escravo?

A incorrigível voz respondeu com sombria satisfação:

– Também lhes destroçaram o rosto.

Ao ruído dos passos juntou-se o ruído da chuva. Unwin pensou que teriam de dormir no labirinto, no aposento central do relato, e que na lembrança essa longa incomodidade seria uma aventura. Guardou silêncio; Dunraven não pôde conter-se e perguntou, como quem não perdoa uma dívida:

– Não é inexplicável esta história?

Unwin respondeu, como se pensasse em voz alta:

– Não sei se é explicável ou inexplicável. Sei que é mentira.

Dunraven prorrompeu em palavrões e invocou o testemunho do filho mais velho do reitor (Allaby, parece, havia morrido) e de todos os vizinhos de Pentreath. Não menos atônito que Dunraven, Unwin desculpou-se. O tempo, na escuridão, parecia mais longo; os dois temeram haver perdido o caminho e estavam muito cansados quando uma tênue claridade superior lhes mostrou os degraus iniciais de uma estreita escada. Subiram e chegaram a um arruinado quarto redondo. Dois sinais perduravam do medo do malfadado rei: uma estreita janela que dominava os páramos e o mar e no chão um alçapão que se abria sobre a curva da escada. O quarto, embora espaçoso, tinha muito de cela carcerária.

Menos instados pela chuva que pelo afã de viver para rememorar e contar, os amigos passaram a noite no labirinto. O matemático dormiu com tranqüilidade, o que não aconteceu com o poeta, acossado por versos que sua razão julgava detestáveis:

Faceless the sultry and overpowering lion,
Faceless the stricken slave, faceless the king.

Unwin acreditava que não lhe interessara a história da morte do Bokari, mas acordou com a convicção de havê-la decifrado. Todo aquele dia esteve preocupado e esquivo, ajustando e reajustando as peças, e duas noites depois se reuniu com Dunraven em uma cervejaria de Londres e disse-lhe estas ou parecidas palavras:

– Em Cornwall disse que era mentira a história que ouvi de ti. Os fatos eram certos, ou poderiam sê-lo, mas contados como tu os contaste eram, de modo manifesto, mentiras. Começarei pela maior mentira de todas, pelo labirinto inacreditável. Um fugitivo não se oculta num labirinto. Não ergue um labirinto sobre um alto lugar da costa, um labirinto carmesim que os marinheiros avistam de longe. Não precisa erguer um labirinto, quando o universo já o é. Para quem verdadeiramente quer ocultar-se, Londres é melhor labirinto que um observatório para o qual se dirigem todos os corredores de um edifício. A sábia reflexão que agora te submeto foi-me concedida anteontem à noite, enquanto ouvíamos chover sobre o labirinto e esperávamos que o sono nos visitasse; advertido e esclarecido por ela, optei por esquecer teus absurdos e pensar em algo sensato.

– Na teoria dos conjuntos, digamos, ou numa quarta dimensão do espaço – observou Dunraven.

– Não – disse Unwin com seriedade. – Pensei no labirinto de Creta. O labirinto cujo centro era um homem com cabeça de touro.

Dunraven, versado em obras policiais, pensou que a solução do mistério sempre é inferior ao mistério. O mistério participa do sobrenatural e até mesmo do divino; a solução, da prestidigitação. Disse, para retardar o inevitável:

– Cabeça de touro tem em medalhas e esculturas o minotauro. Dante imaginou-o com o corpo de touro e cabeça de homem.

– Também essa versão me convém – assentiu Unwin. – O que importa é a correspondência da casa monstruosa com o habitante monstruoso. O minotauro justifica de sobra a existência do labirinto. Ninguém dirá o mesmo de uma ameaça percebida em um sonho. Evocada a imagem do minotauro (evocação fatal num caso em que existe um labirinto), o problema, virtualmente, estava resolvido. No entanto, confesso não ter entendido que essa antiga imagem fosse a chave e, assim, foi necessário que teu relato me oferecesse um símbolo mais preciso: a teia de aranha.

– A teia de aranha? – repetiu Dunraven, perplexo.

– Sim. Não me espantaria nada que a teia de aranha (a forma universal da teia de aranha, entendamos bem, a teia de aranha de Platão) tivesse sugerido ao assassino (porque há um assassino) seu crime. Lembrarás que o Bokari, em uma tumba, sonhou com uma rede de serpentes e que, ao despertar, descobriu que uma teia de aranha lhe sugerira aquele sonho. Voltemos a essa noite em que o Bokari sonhou com uma rede. O rei vencido e o vizir e o escravo fogem pelo deserto com um tesouro. Refugiam-se em uma tumba. Dorme o vizir, de quem sabemos que é um covarde; não dorme o rei, de quem sabemos que é um valente. O rei, para não compartilhar o tesouro com o vizir, mata-o com uma facada; a sombra dele ameaça-o num sonho, noites depois. Tudo isto é inacreditável; entendo que os fatos ocorreram de outra maneira. Nessa noite dormiu o rei, o valente, e velou Zaid, o covarde. Dormir é distrair-se do universo, e a distração é difícil para quem sabe que o perseguem com espadas nuas. Zaid, ávido, inclinou-se sobre o sono de seu rei. Pensou em matá-lo (quem sabe até brincou com o punhal), mas não se atreveu. Chamou o escravo, ocultaram parte do tesouro na tumba, fugiram para Suakin e para a Inglaterra. Não com o fim de ocultar-se do Bokari, mas para atraí-lo e matá-lo, construiu à vista do mar o alto labirinto de muros vermelhos. Sabia que os navios levariam aos portos da Núbia a fama do homem vermelho, do escravo e do leão, e que, cedo ou tarde, o Bokari viria procurá-lo em seu labirinto. No último corredor da rede esperava o alçapão. O Bokari desprezava-o infinitamente; não se rebaixaria a tomar a menor precaução. O dia ansiado chegou; Abenjacan desembarcou na Inglaterra, caminhou até a porta do labirinto, atravessou os cegos corredores e já havia pisado talvez os primeiros degraus quando seu vizir o matou do alçapão, não sei se com um balaço. O escravo mataria o leão e outro balaço mataria o escravo. Em seguida, Zaid desfez os três rostos com uma pedra. Teve que agir assim; um só morto com a face desfeita teria sugerido um problema de identidade, mas a fera, o negro e o rei formavam uma série e, dados os dois termos iniciais, todos postulariam o último. Não é estranho que estivesse dominado pelo temor quando falou com Allaby; acabava de executar a horrível tarefa e se dispunha a fugir da Inglaterra para recuperar o tesouro.

Um silêncio pensativo, ou incrédulo, seguiu-se às palavras de Unwin. Dunraven pediu outro copo de cerveja preta antes de opinar.

– Aceito – disse – que meu Abenjacan seja Zaid. Tais metamorfoses, vais dizer, são clássicos artifícios do gênero, são verdadeiras convenções cuja observância exige o leitor. O que resisto a admitir é a conjetura de que uma porção do tesouro ficasse no Sudão. Lembra que Zaid fugia do rei e dos inimigos do rei; mais fácil é imaginá-lo roubando todo o tesouro do que se demorando em enterrar uma parte. Talvez não se encontrassem moedas por não restarem moedas; os pedreiros teriam esgotado um caudal que, ao contrário do ouro vermelho dos Nibelungos, não era infinito. Teríamos assim Abenjacan atravessando o mar para reclamar um tesouro dilapidado.

– Dilapidado, não – disse Unwin. – Investido em armar em terra de infiéis uma grande armadilha circular de tijolo destinada a prendê-lo e aniquilá-lo. Zaid, se tua conjetura é correta, procedeu premido pelo ódio e pelo temor e não pela cobiça. Roubou o tesouro e depois compreendeu que não era o essencial para ele. O essencial era que Abenjacan perecesse. Simulou ser Abenjacan, matou Abenjacan e finalmente foi Abenjacan.

– Sim – confirmou Dunraven. – Foi um vagabundo que, antes de ser ninguém na morte, recordaria ter sido um rei ou ter fingido ser um rei, algum dia.

























































OS DOIS REIS E OS DOIS LABIRINTOS1
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Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arábia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: "Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos".

Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.













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Notas:
1 Esta é a história que o reitor comentou do púlpito. Ver em Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto.















































A ESPERA
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A carruagem deixou-o no quatro mil e quatro dessa rua do Noroeste. Não tinha dado as nove da manhã; o homem percebeu com aprovação os manchados plátanos, o quadrado de terra ao pé de cada um, as respeitáveis casas com varandinha, a farmácia contígua, os desbotados losangos da loja de tintas e da ferraria. Um longo e compacto paredão de hospital fechava a calçada da frente; o sol reverberava, mais ao longe, em algumas estufas. O homem considerou que essas coisas (agora arbitrárias e casuais e em qualquer ordem, como as que se vêem nos sonhos) seriam com o tempo, se Deus quisesse, invariáveis, necessárias e familiares. Na vitrina da farmácia lia-se em letras de fôrma: Breslauer; os judeus estavam deslocando os italianos, que tinham deslocado os nativos. Melhor assim; o homem preferia não alternar com gente de seu sangue.

O cocheiro ajudou-o a descer o baú; uma mulher de ar distraído ou cansado abriu por fim a porta. De seu assento, o cocheiro lhe devolveu uma das moedas, um vintém oriental que estava em seu bolso desde essa noite no hotel de Melo. O homem entregou-lhe quarenta centavos, e no ato ele sentiu: "Tenho obrigação de agir de maneira que todos se esqueçam de mim. Cometi dois erros: dei uma moeda de outro país e deixei ver que esse equívoco me interessa".

Precedido pela mulher, atravessou o vestíbulo e o primeiro pátio. O quarto que lhe haviam reservado dava, felizmente, para o segundo andar. A cama era de ferro, que o artífice havia deformado em curvas fantásticas, representando ramos e pâmpanos; havia, ao mesmo tempo, um alto guarda-roupa de pinho, uma mesa-de-cabeceira, uma estante com livros quase ao nível do chão, duas cadeiras díspares e um lavatório com sua bacia, sua jarra, sua saboneteira e um garrafão de vidro escuro. Um mapa da província de Buenos Aires e um crucifixo adornavam as paredes; o papel era vermelho, com grandes pavões repetidos, de cauda desfraldada. A única porta dava para o pátio. Foi necessário mudar a posição das cadeiras para dar lugar ao baú. O inquilino aprovou tudo; quando a mulher lhe perguntou como se chamava, disse Villari, não como um desafio secreto, não para mitigar uma humilhação que, na verdade, não sentia, mas porque esse nome o perseguia, porque lhe foi impossível pensar em outro. Não o seduziu, certamente, o erro literário de imaginar que assumir o nome do inimigo pudesse ser uma astúcia.

O senhor Villari, no início, não deixava a casa; passadas algumas semanas, começou a sair, por um instante, ao escurecer. Numa noite, entrou no cinema que havia a três quadras. Não passou nunca da última fila; sempre se levantava um pouco antes do fim da sessão. Viu trágicas histórias de bandidos; estas, sem dúvida, incluíam erros; estas, sem dúvida, incluíam imagens que também eram de sua vida anterior; Villari não os percebeu porque a idéia de uma coincidência entre a arte e a realidade lhe era alheia. Docilmente, procurava que as coisas lhe agradassem; queria adiantar-se à intenção com que elas lhe eram mostradas. Ao contrário dos que têm lido romances, ele não se via nunca a si mesmo como personagem da arte.

Nunca lhe chegou uma carta, nem sequer uma circular, mas lia com confusa esperança uma das seções do jornal. À tarde, encostava na porta uma das cadeiras e mateava com seriedade, de olhos postos na trepadeira do muro do contíguo sobrado. Anos de solidão haviam-lhe ensinado que os dias, na memória, tendem a ser iguais, mas que não há um dia, nem mesmo de prisão ou de hospital, que não traga surpresas. Em outras reclusões cedera à tentação de contar os dias e as horas, mas esta reclusão era diferente, porque não tinha fim – a não ser que o jornal, numa manhã, trouxesse a notícia da morte de Alejandro Villari. Também era possível que Villari já tivesse morrido e então esta vida seria um sonho. Essa possibilidade o inquietava, pois não chegou a entender se ela se parecia com alívio ou com desdita; disse a si mesmo que era absurda e a repeliu. Em dias longínquos, menos longínquos pelo passar do tempo que por dois ou três fatos irrevogáveis, desejara muitas coisas, com amor sem escrúpulo; essa vontade poderosa, que movera o ódio dos homens e o amor de alguma mulher, já não queria coisas particulares: só queria perdurar, não concluir. O sabor da erva, o sabor do tabaco negro, o crescente fio de sombra que ia ganhando o pátio.

Havia na casa um cachorro-lobo, já velho. Villari fez amizade com ele. Falava-lhe em espanhol, em italiano e nas poucas palavras que lhe ficaram do rústico dialeto de sua infância. Villari procurava viver no mero presente, sem lembranças nem previsões; as primeiras lhe importavam menos que as últimas. Vagamente acreditou intuir que o passado é a substância de que o tempo está feito; por isso é que este se torna logo passado. Sua fadiga, algum dia, pareceu-se com felicidade; em momentos assim, não era muito mais complexo que o cão.

Numa noite, deixou-o assombrado e trêmulo uma íntima descarga de dor no fundo da boca. Esse horrível milagre ocorreu em poucos minutos e outra vez por volta do amanhecer. Villari, no dia seguinte, mandou buscar um carro que o deixou num consultório dentário do bairro do Once. Aí, arrancaram-lhe o molar. Nesse transe, não esteve mais covarde nem mais tranqüilo que outras pessoas.

Em outra noite, ao voltar do cinema, sentiu que o empurravam. Com ira, com indignação, com secreto alívio, encarou o insolente. Cuspiu-lhe uma injúria soez; o outro, atônito, balbuciou uma desculpa. Era um homem alto, jovem, de cabelo escuro, e o acompanhava uma mulher de tipo alemão; Villari, nessa noite, repetiu a si mesmo que não os conhecia. Entretanto, quatro ou cinco dias se passaram antes que saísse à rua.

Entre os livros da estante havia uma Divina Comédia, com o velho comentário de Andreoli. Menos premido pela curiosidade que por um sentimento de dever, Villari atirou-se à leitura dessa obra capital; antes de comer, lia um canto, e a seguir, em ordem rigorosa, as notas. Não julgou inverossímeis ou excessivas as penas infernais e não pensou que Dante o tivesse condenado ao último círculo, onde os dentes de Ugolino roem eternamente a nuca de Ruggieri.

Os pavões do papel carmesim pareciam destinados a alimentar pesadelos tenazes, mas o senhor Villari não sonhou nunca com um caramanchão monstruoso feito de inextricáveis pássaros vivos. Nos amanheceres sonhava um sonho de fundo igual e de circunstâncias variáveis. Dois homens e Villari entravam com revólveres no quarto ou o agrediam ao sair do cinema ou eram, os três ao mesmo tempo, o desconhecido que o havia empurrado, ou o esperavam tristemente no pátio e pareciam não o conhecer. No fim do sonho, ele tirava o revólver da gaveta da contígua mesa-de-cabeceira (e é verdade que nessa gaveta guardava um revólver) e o descarregava contra os homens. O estrondo da arma despertava-o, mas sempre era um sonho e em outro sonho o ataque se repetia e em outro sonho tinha que tornar a matá-los.

Numa escura manhã do mês de julho, a presença de gente desconhecida (não o ruído da porta quando a abriram) despertou-o. Altos na penumbra do quarto, curiosamente simplificados pela penumbra (nos sonhos do temor sempre tinham sido mais claros), vigilantes, imóveis e pacientes, com os olhos baixos como se o peso das armas os encurvasse, Alejandro Villari e um desconhecido tinham-no alcançado, finalmente. Com um sinal, pediu-lhes que esperassem e voltou-se contra a parede, como se retomasse o sono. Fez isso para despertar a misericórdia dos que o mataram? Ou porque é menos duro suportar um acontecimento espantoso que imaginá-lo ou aguardá-lo indefinidamente? Ou – e isto talvez seja o mais verossímil – para que os assassinos fossem um sonho, como já o haviam sido tantas vezes, no mesmo lugar, à mesma hora?

Nessa magia estava quando o apagou a descarga.






































































O HOMEM NO UMBRAL
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Bioy Casares trouxe de Londres um curioso punhal de folha triangular e empunhadura em forma de H; nosso amigo Christopher Dewey, do Conselho Britânico, disse que tais armas eram de uso comum no Industão. Essa opinião animou-o a mencionar que trabalhara naquele país, entre as duas guerras. ("Ultra auroram et gangem", lembro-me de que disse em latim, equivocando-se com um verso de Juvenal.) Das histórias que contou nessa noite, atrevo-me a reconstruir a que segue. Meu texto será fiel: livre-me Alá da tentação de acrescentar breves traços circunstanciais ou de agravar, com interpolações de Kipling, o aspecto exótico do relato. Este, além do mais, tem um antigo e simples sabor que seria uma lástima perder, talvez o das Mil e Uma Noites.

"A exata geografia dos fatos que vou contar importa muito pouco. Além disso, que precisão conservam em Buenos Aires os nomes de Amritsar ou de Udh? Basta-me dizer, pois, que naqueles anos houve distúrbios numa cidade muçulmana e que o governo central enviou um homem forte para impor a ordem. Esse homem era escocês, de um ilustre clã de guerreiros, e no sangue levava uma tradição de violência. Uma só vez o viram meus olhos, mas não esquecerei os cabelos muito negros, os pômulos salientes, o ávido nariz e a boca, os largos ombros, a forte ossatura de viking. David Alexander Glencairn se chamará ele, nesta noite, em minha história; os dois nomes convêm, pois foram de reis que governaram com um cetro de ferro. David Alexander Glencairn (terei de me habituar a chamá-lo assim) era, suspeito, um homem temido; o simples anúncio de sua chegada bastou para apaziguar a cidade. Isso não impediu que decretasse diversas medidas enérgicas. Alguns anos passaram. A cidade e o distrito estavam em paz; sikhs e muçulmanos haviam renunciado às antigas discórdias e de repente Glencairn desapareceu. Naturalmente, não faltaram rumores de que o tinham seqüestrado ou matado.

"Essas coisas eu soube por meu chefe, porque a censura era rígida e os jornais não comentaram (nem sequer registraram, que eu me lembre) o desaparecimento de Glencairn. Um provérbio diz que a índia é maior que o mundo; Glencairn, talvez onipotente na cidade que uma assinatura ao pé de um decreto lhe destinou, era um simples número nas engrenagens da administração do Império. As investigações da polícia local foram de todo inúteis; meu chefe pensou que um profissional poderia infundir menos receio e conseguir melhor êxito. Três ou quatro dias depois (as distâncias na Índia são generosas), eu perambulava sem maior esperança pelas ruas da opaca cidade que escamoteara um homem.

"Senti, quase de imediato, a infinita presença de uma conjuração para ocultar o destino de Glencairn. "Não há uma alma nesta cidade", pude suspeitar, "que não saiba o segredo e que não tenha jurado guardá-lo". A maioria, interrogada, professava ilimitada ignorância; não sabia quem era Glencairn, não o tinha visto nunca, jamais ouviu falar dele. Outros, ao contrário, tinham-no divisado há um quarto de hora falando com Fulano de Tal, e até me acompanhavam à casa em que entraram os dois, e na qual nada sabiam deles, ou de onde acabavam de sair nesse momento. Num desses mentirosos precisos dei com o punho na cara. As testemunhas aprovaram meu desafogo, e fabricaram outras mentiras. Não acreditei nelas, mas não me atrevi a deixar de ouvi-las. Uma tarde, entregaram-me um envelope com uma tira de papel em que havia algumas senhas...

"O sol tinha declinado quando cheguei. O bairro era popular e humilde; a casa era muito baixa; da calçada, entrevi uma sucessão de pátios de terra e próxima ao fundo uma claridade. No último pátio, celebrava-se não sei que festa muçulmana; um cego entrou com um alaúde de madeira avermelhada.

"A meus pés, imóvel como um objeto, encolhia-se no umbral um homem muito velho. Direi como era, pois é parte essencial da história. Os muitos anos haviam-no reduzido e polido como as águas a uma pedra ou as gerações dos homens a uma sentença. Longos farrapos o cobriam, ou assim me pareceu, e o turbante que lhe envolvia a cabeça era mais um pedaço de pano. No crepúsculo, ergueu em minha direção um rosto escuro e uma barba muito branca. Falei-lhe sem preâmbulos, porque já havia perdido toda esperança, a respeito de David Alexander Glencairn. Não me entendeu (talvez não me ouvisse) e tive de explicar que era um juiz e que eu o procurava. Senti, ao dizer essas palavras, o irrisório de interrogar aquele homem antigo, para quem o presente era apenas um indefinido rumor. "Notícias da Rebelião ou de Akbar poderia dar este homem", pensei, "mas não de Glencairn". O que me disse confirmou essa suspeita.

"– Um juiz! – articulou com débil espanto. – Um juiz que se perdeu e o procuram. O fato aconteceu quando eu era criança. Não sei de datas, mas não tinha morrido ainda Nikal Seyn (Nicholson) diante da muralha de Delhi. O tempo que se foi fica na memória; sem dúvida, sou capaz de recuperar o que então se passou. Deus tinha permitido, em sua cólera, que o povo se corrompesse; cheias de maldição as bocas estavam e de enganos e de fraude. Entretanto, nem todos eram perversos, e quando se proclamou que a rainha ia mandar um homem que executaria neste país a lei da Inglaterra, os menos maus se alegraram, porque sentiram que a lei é melhor que a desordem. Chegou o cristão e não tardou a prevaricar e a oprimir, a encobrir delitos abomináveis e a vender decisões. Não o culpamos, a princípio; a justiça inglesa que administrava não era conhecida de ninguém e os aparentes excessos do novo juiz correspondiam talvez a válidas e arcanas razões. "Tudo terá justificativa em seu livro", queríamos pensar, mas sua afinidade com todos os maus juízes do mundo era demasiado evidente, e por fim tivemos de admitir que era simplesmente um malvado. Chegou a ser um tirano e a pobre gente (para vingar-se da errônea esperança que alguma vez puseram nele) acalentou a idéia de seqüestrá-lo e submetê-lo a julgamento. Falar não basta; dos desígnios tiveram de passar às obras. Ninguém, talvez, à exceção dos muito simples ou dos muito jovens, acreditou que esse propósito temerário pudesse ser levado a cabo, mas milhares de sikhs e de muçulmanos cumpriram sua palavra e um dia executaram, incrédulos, aquilo que a cada um deles parecera impossível. Seqüestraram o juiz e lhe deram por cárcere uma casa de campo num afastado subúrbio. Depois, envolveram as pessoas prejudicadas por ele, ou (em alguns casos) os órfãos e as viúvas, porque a espada do verdugo não havia descansado naqueles anos. Por fim – isto foi talvez o mais difícil –, procuraram e nomearam um juiz para julgar o juiz.

"Aqui o interromperam algumas mulheres que entravam na casa.

"Depois, com lentidão, prosseguiu:

"– Dizem que não há geração que não inclua quatro homens honestos que secretamente sustentam o universo e o justificam diante do Senhor: um desses varões teria sido o juiz mais idôneo. Mas onde encontrá-los, se andam perdidos pelo mundo e anônimos e não se reconhecem quando se vêem e nem eles mesmos sabem do alto ministério que cumprem? Alguém então opinou que, se o destino nos vedava os sábios, teríamos de procurar os insensatos. Essa idéia prevaleceu. Alcoranistas, doutores da lei, sikhs que levam o nome de leões e que adoram um Deus, hindus que adoram multidões de deuses, monges de Mahavira que ensinam que a forma do universo é a de um homem com as pernas abertas, adoradores do fogo e judeus negros, integraram o tribunal, mas a última sentença foi encomendada ao arbítrio de um louco.

"Aqui o interromperam algumas pessoas que iam embora da festa.

"– De um louco – repetiu – para que a sabedoria de Deus falasse por sua boca e envergonhasse a soberba humana. Seu nome perdeu-se ou nunca se soube, mas andava nu por essas ruas, ou coberto de trapos, contando os dedos com o polegar e zombando das árvores.

"Meu bom senso rebelou-se. Disse que entregar a um louco a decisão era invalidar o processo.

"– O acusado aceitou o juiz – foi a resposta. – Talvez compreendesse que, em vista do perigo que os conjurados corriam se o deixassem em liberdade, só de um louco podia não esperar sentença de morte. Ouvi que riu quando lhe disseram quem era o juiz. Muitas noites e dias durou o processo, pelo grande número de testemunhas.

"Calou-se. Uma preocupação o agitava. Para falar alguma coisa, perguntei quantos dias.

"– Pelo menos dezenove – replicou. Gente que ia embora da festa voltou a interrompê-lo; o vinho está proibido aos muçulmanos, mas as faces e as vozes pareciam de
bêbados. Alguém lhe gritou algo, ao passar.

"– Dezenove dias, precisamente – retificou. – O cão infiel ouviu a sentença, e a faca se saciou em sua garganta.

"Falava com alegre ferocidade. Com outra voz pôs termo à história.

"– Morreu sem medo; nos mais vis há alguma virtude.
"– Onde aconteceu o que contaste? – perguntei. – Numa casa de campo?

"Pela primeira vez, olhou-me nos olhos. Em seguida, esclareceu com vagar, medindo as palavras.

"– Disse que numa casa de campo lhe deram prisão, não que o julgaram aí. Julgaram-no nesta cidade: numa casa como todas, como esta. Uma casa não pode diferir de outra: o que importa é saber se está edificada no inferno ou no céu.

"Perguntei-lhe pelo destino dos conjurados.

"– Não sei – disse-me com paciência. – Estas coisas ocorreram e foram esquecidas faz já muitos anos. Talvez os homens os condenaram, porém não Deus.

"Dito isto, levantou-se. Senti que suas palavras me despediam e que eu cessara para ele, a partir daquele momento. Uma turba composta de homens e mulheres de todas as nações do Punjab espalhou-se, rezando e cantando, sobre nós e quase nos fez desaparecer: espantou-me que de pátios tão estreitos, pouco mais que longos corredores, pudesse sair tanta gente. Outros saíam das casas da vizinhança; sem dúvida, haviam saltado os muros... À força de empurrões e imprecações, abri caminho. No último pátio, cruzei com um homem despido, coroado de flores amarelas, a quem todos beijavam e agasalhavam, e com uma espada na mão. A espada estava suja, pois dera morte a Glencairn, cujo cadáver mutilado encontrei nas cavalariças do fundo."







































































O ALEPH
__________________________________________


O God, I could be bounded in a nutshell and
count myself a King of infinite space.
Hamlet, II, 2.


But they will teach us that Eternity is the
Standing still of the Present Time, a Nunc-
stans (as the Schools call it); which neither
they, nor any else understand, no more than
they would a Hic-stans for an Infinite
greatnesse of Place.

Leviathan, IV, 46.




Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me a sua memória, sem esperança mas também sem humilhação. Considerei que em 3O de abril era seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo-irmão, era um ato cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo... Não estaria obrigado, como outras vezes, a justificar minha presença com módicas oferendas de livros: livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que estavam intactos.

Beatriz Viterbo morreu em 1929; a partir dessa data não deixei passar um 3O de abril sem voltar a sua casa. Eu costumava chegar às sete e quinze e ficar uns vinte e cinco minutos; a cada ano, aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial me favoreceu: tiveram de me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já dadas as oito, com um alfajor santafecino; com toda a naturalidade, fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.

Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o "esse" italiano e a abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses, sofreu a obsessão de Paul Fort, menos por suas baladas que pela idéia de uma glória irrepreensível. "É o Príncipe dos poetas da França", repetia com fatuidade. "Em vão te revoltarás contra ele; não o atingirá, nunca, a mais envenenada de tuas setas."

No dia 3O de abril de 1941, permiti-me juntar ao bolo de Santa Fé uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e empreendeu, depois de alguns tragos, uma defesa do homem moderno.

– Eu o evoco – disse com animação um tanto inexplicável – em seu gabinete de estudo, como se disséssemos na torre albarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafos, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...

Observou que, para um homem assim dotado, o ato de viajar era inútil; nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam para o moderno Maomé.

Tão ineptas me pareceram essas idéias, tão pomposa e tão extensa sua exposição, que logo as relacionei com a literatura; disse-lhe por que não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos originais, figuravam no Canto Augurai, Canto Prologal ou simplesmente Canto-Prólogo de um poema em que trabalhava havia muitos anos, sem réclame, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema se intitulava A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.

Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:

Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,
Mas le voyage que narro é... autour de ma chambre.

– Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante – opinou. – O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro – barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? – consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngüe, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisséia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!

Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.1

Uma única vez em minha vida tive ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa epopéia topográfica na qual Michael Drayton registrou a fauna, a flora, a hidrografia, a orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável mas limitado é menos tedioso que o vasto projeto congênere de Carlos Argentino. Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha dado conta de alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a chácara de Mariana Cambaceres de Alvear na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton. Leu-me certas laboriosas passagens da zona australiana de seu poema; esses longos e disformes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:

Saibam. A mão direita do poste rotineiro
(Vindo, claro está, do nor-noroeste)
Se entedia uma carcaça –Cor? Branquiceleste–
Que dá ao curral de ovelhas um aspecto de ossário.

– Duas audácias – gritou com exultação – resgatadas, te ouço resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto rotineiro, que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem nosso já laureado Don Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, com descaramento. Outra, o enérgico prosaísmo se entedia uma carcaça, que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que apreciará mais que a própria vida o crítico de gosto viril. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversa com o leitor; antecipa-se a sua viva curiosidade, coloca-lhe uma pergunta na boca e a satisfaz... na hora. E que me dizes desse achado, branquiceleste? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é fator importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação, resultariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor se veria compelido a fechar o volume, ferida no mais íntimo a aluna, de incurável e negra melancolia.

Por volta da meia-noite me despedi.

Dois domingos depois, Daneri me telefonou, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, "para tomar leite juntos, no contíguo salão-bar que o progressismo de Zunino e de Zungri – os proprietários de minha casa, estarás lembrado – inaugura na esquina; confeitaria que gostarás de conhecer". Aceitei, com mais resignação que entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o "salão-bar", inexoravelmente moderno, era apenas um pouco menos infame que minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as somas investidas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que, sem dúvida, já conhecia) e me disse com certa severidade:

– Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local não deve nada aos mais chiques de Flores.

Releu-me, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal: onde antes escreveu azulado, agora abundava em azulino, azulego e até mesmo azulilho. A palavra leitoso não era bastante feia para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia lactário, lacticinoso, lactescente, leital... Insultou com amargura os críticos; depois, mais benigno, equiparou-os a essas pessoas "que não dispõem de metais preciosos nem tampouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro". Imediatamente, censurou a prologomania, "da qual já se fez mofa, no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe dos Engenhos". Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, o respaldo firmado pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais de seu poema. Compreendi então o singular convite telefônico; o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu pedante aranzel. Meu temor resultou infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não acreditava errar o epíteto ao qualificar de sólido o prestigio obtido em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me empenhasse, prefaciaria com prazer o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor cientifico, "porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias não tolera um único detalhe que não confirme a severa verdade". Acrescentou que Beatriz sempre se havia divertido com Álvaro.

Assenti, profusamente assenti. Esclareci, para maior verossimilhança, que não falaria com Álvaro na segunda-feira, mas na quinta: no pequeno jantar que costuma coroar toda reunião do Clube de Escritores. (Não existem tais jantares, mas é irrefutável que as reuniões têm lugar às quintas-feiras, fato que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dotava a frase de certa realidade.) Disse, entre divinatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao dobrar a rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda imparcialidade os futuros que me restavam: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que aquele primo-irmão de Beatriz (esse eufemismo explicativo me permitiria mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que minha desídia optaria por b.

A partir de sexta-feira, à primeira hora, começou a inquietar-me o telefone. Indignava-me que esse instrumento, que algum dia reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse equivocado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada ocorreu – salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia.

O telefone perdeu seus terrores, mas em fins de outubro Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei sua voz, no começo. Com tristeza e com raiva, balbuciou que esses já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampliar a desmedida confeitaria, iam demolir sua casa.

– A casa de meus pais, minha casa, a velha casa enraizada da rua Garay! – repetiu, talvez esquecendo seu pesar na melodia da voz.

Não me foi muito difícil compartilhar de sua aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem nesse propósito absurdo, o doutor Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por danos e prejuízos e os obrigaria ao pagamento de cem mil nacionales.

O nome de Zunni me impressionou; sua banca, na Caseros com a Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. Perguntei se ele já se havia encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe nessa mesma tarde. Vacilou e com essa voz plana, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema lhe era indispensável a casa, pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.

– Está no porão da sala de jantar – explicou, com a dicção aligeirada pela angústia. – E meu, é meu; eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é empinada, meus tios me haviam proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo no porão. Referia-se, soube depois, a um baú, mas eu compreendi que havia um mundo. Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.

– O Aleph? – repeti.

– Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não e mil vezes não. De código na mão, o doutor Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.

Procurei raciocinar.

– Mas não é muito escuro o porão?

– A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da terra estão no Aleph, aí estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.

– Irei vê-lo imediatamente.

Desliguei, antes que ele pudesse emitir uma proibição. Basta o conhecimento de um fato para se perceber no ato uma série de traços confirmatórios, antes insuspeitados; espantou-me não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos detestamos.

Na rua Garay, a criada me disse que tivesse a bondade de esperar. O menino estava, como sempre, no porão, revelando fotografias. Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe:

– Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges.

Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não era capaz de outro pensamento que o da perda do Aleph.

– Um cálice do falso conhaque – ordenou – e mergulharás no porão. Já sabes, o decúbito dorsal é indispensável. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu te deitas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum roedor te mete medo – não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo!

Já na sala de jantar, acrescentou:

– É claro que, se não o vês, tua incapacidade não invalida meu testemunho... Desce; muito em breve poderás iniciar um diálogo com todas as imagens de Beatriz.

Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. O porão, pouca coisa mais largo que a escada, tinha muito de poço. Com uma olhada, procurei em vão o baú de que Carlos Argentino me falara. Alguns caixões com garrafas e algumas sacolas de lona escureciam um ângulo. Carlos pegou uma sacola, dobrou-a e acomodou-a num lugar preciso.

– O travesseiro é humildoso – explicou –, mas, se o levanto um centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.

Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; a escuridão, embora houvesse uma fresta que depois distingui, deu a impressão de ser total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um confuso mal estar, que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta
da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

Senti infinita veneração, infinita lástima.

– Tonto ficarás de tanto bisbilhotar onde não te chamam – disse uma voz enfadonha e alegre. – Mesmo que esquentes a cabeça, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, che Borges!

Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:

– Formidável. Sim, formidável.

A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
– Viste tudo bem, em cores?

Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém – creia-me, a ninguém! – perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.

Na rua, nas escadarias de Constitución, no metrô, pareceram-me familiares todos os rostos. Tive medo de que não restasse uma única coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que não me abandonasse jamais a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.









Pós-escrito de primeiro de março de 1943. Seis meses após a demolição do imóvel da rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do considerável poema e lançou ao mercado uma seleção de "trechos argentinos". Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura.2 O primeiro foi outorgado ao doutor Aita; o terceiro, ao doutor Mario Bonfanti; inacreditavelmente, minha obra Los Naipes del Tahur não conseguiu um único voto. Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. Sua afortunada pena (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do doutor Acevedo Díaz.

Duas observações quero acrescentar: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao cerne de minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou o leu, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos textos inumeráveis que o Aleph de sua casa lhe revelou? Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o Aleph da rua Garay era um falso Aleph.

Dou minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton menciona outros artifícios congêneres – o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satyricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, "redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro" (The Faerie Queene, 111, 2, 19) – e acrescenta estas curiosas palavras: "Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de ótica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor... A mesquita data do século VII; as colunas procedem de outros templos de religiões anteislâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: "Nas repúblicas fundadas por nômades, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria".

Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.

Para Estela Canto.



_________________________________________
Notas:
1 Lembro-me, no entanto, destas linhas de uma sátira em que fustigou com rigor os maus poetas:

Aqueste da al poema belicosa armadura
De erudicción; estoiro le da pompas y galas.
Ambos bateu en vano Ias ridículas alas...
iOlvidaron, cuidados, el factor HORMOSURA!

[Este dá ao poema belicosa armadura / De erudição; este outro lhe dá pompas e galas. / Ambos batem em vão as ridículas asas... / Esqueceram, coitados, o fator FORMOSURA!
(N. da T.)]
Só o temor de se criar um exército de inimigos implacáveis e poderosos o dissuadiu (disse-me) de publicar sem medo o poema.

2 "Recebi tua aflita congratulação", escreveu-me. "Bufas, meu lamentável amigo, de inveja, mas confessarás – mesmo que isso te sufoque! – que desta vez pude coroar meu barrete com a mais vermelha das plumas, meu turbante com o mais califa dos rubis."


















EPÍLOGO
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Com exceção de "Emma Zunz" (cujo argumento esplêndido, tão superior a sua tímida execução, foi-me dado por Cecília Ingenieros) e da "História do guerreiro e da cativa", que se propõe interpretar dois fatos fidedignos, os contos deste livro correspondem ao gênero fantástico. De todos eles, o primeiro é o mais trabalhado; seu tema é o efeito que a imortalidade causaria nos homens. A esse esboço de uma ética para imortais, segue "O morto": Azevedo Bandeira, nesse relato, é um homem de Rivera ou de Cerro Largo e é também uma tosca divindade, uma versão mulata e selvagem do incomparável Sunday, de Chesterton. (O capítulo XXIX do Decline and Fall of the Roman Empire narra um destino semelhante ao de Otálora, mas bastante mais grandioso e mais inacreditável.) De "Os teólogos" basta escrever que são um sonho, um sonho bem mais melancólico, sobre a identidade pessoal; da "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", que é uma glosa de Martín Fierro. A uma tela de Watts, pintada em 1896, devo "A casa de Astérion" e o caráter do pobre protagonista. "A outra morte" é uma fantasia sobre o tempo, que urdi à luz de certas propostas de Pier Damiani. Na última guerra, ninguém pôde desejar mais que eu a derrota da Alemanha; ninguém pôde sentir mais que eu a tragédia do destino alemão; "Deutsches Requiem" quer entender esse destino, que não souberam chorar, nem sequer suspeitar, nossos "germanófilos", que nada sabem da Alemanha. "A escrita do Deus" tem sido generosamente julgada; o jaguar obrigou-me a pôr na boca de um "mago da pirâmide de Qaholom" argumentos de cabalista ou de teólogo. Em "O Zahir" e "O Aleph" creio notar alguma influência do conto "The crystal egg" (1899), de Wells.

J. L. B.
Buenos Aires, 3 de maio de 1949.



Pós-escrito de 1952. Incorporei quatro contos a esta reedição. "Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto" não é (asseguram-me) memorável, apesar de seu título terrível. Podemos considerá-lo uma variante de "Os dois reis e os dois labirintos", que os copistas intercalaram em As Mil e Uma Noites e que o prudente Galland omitiu. De "A espera" direi que foi sugerida por uma crônica policial que Alfredo Doblas me leu, há dez anos, enquanto classificávamos livros segundo o manual do Instituto Bibliográfico de Bruxelas, código do qual me esqueci por inteiro, salvo que a Deus corresponde o número 231. O personagem central da crônica era turco; tornei-o italiano para intuí-lo com mais facilidade. A momentânea e repetida visão de um fundo cortiço que existe ao redor da rua Paraná, em Buenos Aires, propiciou-me a história que se intitula "O homem no umbral"; situei-a na Índia para que sua inverosimilhança fosse tolerável.

J. L. B.











































Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
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O Ouro Dos Tigres
***
JORGE LUIS BORGES

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Este livro: O Ouro Dos Tigres , é parte integrante da coleção:

JORGE LUIS BORGES–OBRAS COMPLETAS
VOLUME II
1952-1972
Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges – Obras Completas
Copyright © 1998 by Maria Kodama
Copyright © 1999 das traduções by Editora Globo S.A.
1ª Reimpressão-9/99 2ª Reimpressão-12/OO

Edição baseada em Jorge Luis Borges – Obras Completas,

publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. Frias
Capa: Joseph Ubach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak
Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..

Revisão das traduções: Jorge Schwartz e Maria Carolina de Araujo

Preparação de originais: Maria Carolina de Araujo

Revisão de textos: Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

Fotolitos: AM Produções Gráficas Ltda.
Agradecimentos a Adria Frizzi, Ana Giménez, Christopher E Laferl,

Edgardo Krebs, Élida Lois, Eliot Weinberger, Enrique Fierro, Francisco Achcar,

Haroldo de Campos, Ida Vitale, José Antônio Arantes e Maite Celada
Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

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Gráfica Círculo

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Borges, Jorge Luis, 1899-1986.
Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. – São Paulo : Globo, 2OOO.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vários tradutores.
v. 1. 1923-1949 / v. 2.1952-1972 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2)

1. Ficção argentina 1. Título.

CDD-ar863.4
Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4

1. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4



O OURO DOS TIGRES
El Oro de los Tigres
Tradução de Josely Vianna Baptista













♦ O OURO DOS TIGRES – 1972
■ Prólogo
■ Tamerlão (1336 – 1405)
■ Espadas
■ O passado
■ Tankas
■ Treze moedas Um poeta Oriental
■ O deserto
■ Chove
■ Asterión
■ Um poeta menor
■ Gênesis, IV: 8
■ Nortúmbria, 900 A. D.
■ Miguel de Cervantes
■ O Oeste
■ Estância El Retiro
■ O prisioneiro
■ Macbeth
■ Eternidades
■ Susana Bombal
■ A John Keats (1795 – 1821)
■ Sonha Alonso Quijano
■ A um César
■ O cego
■ On His Blindness
■ A busca
■ O perdido
■ H.O.
■ Religio Medici, 1643
■ 1971
■ Coisas
■ O ameaçado
■ Proteu
■ Outra versão de Proteu
■ Fala um busto de Jano
■ O gaúcho
■ A pantera
■ Tu
■ Poema da quantidade
■ A sentinela
■ Ao idioma alemão
■ Ao triste
■ O mar
■ Ao primeiro poeta da Hungria
■ O Advento
■ A tentação
■ 1891
■ 1929
■ A promessa
■ O estupor
■ Os quatro ciclos
■ O sonho de Pedro Henríquez Ureña
■ O palácio
■ Hengist quer homens (449, A. D.)
■ Episódio do inimigo
■ À Islândia
■ Ao espelho
■ A um gato
■ East Lansing
■ Ao coiote
■ Um amanhã
■ O ouro dos tigres
Notas















PRÓLOGO
___________________________

De um homem que completou os setenta anos recomendados por David pouco podemos esperar, salvo o manejo consabido de algumas destrezas, uma que outra ligeira variação e fartas repetições. Para eludir ou ao menos atenuar essa monotonia, optei por aceitar, talvez com temerária hospitalidade, a miscelânea de temas que se ofereceram a minha rotina de escrever. A parábola sucede à confidência, o verso livre ou branco ao soneto. No princípio dos tempos, tão dócil à vaga especulação e às inapeláveis cosmogonias, não deve ter havido coisas poéticas ou prosaicas. Tudo seria um pouco mágico. Thor não era o deus do trovão; era o trovão e o deus.

Para um verdadeiro poeta, cada momento da vida, cada fato, deveria ser poético, já que profundamente o é. Que eu saiba, ninguém alcançou até hoje essa alta vigília. Browning e Blake se aproximaram mais do que qualquer outro; Whitman a propôs, mas suas deliberadas enumerações nem sempre passam de catálogos insensíveis.

Descreio das escolas literárias, que considero simulacros didáticos para simplificar o que ensinam, mas, se me obrigassem a declarar de onde procedem meus versos, diria que do simbolismo, essa grande liberdade, que renovou as muitas literaturas cujo instrumento comum é o castelhano e que chegou, por certo, até a Espanha. Conversei mais de uma vez com Leopoldo Lugones, homem solitário e soberbo; este costumava desviar o curso do diálogo para falar de "meu amigo e mestre, Rubén Darío". (Creio, também, que devemos sublinharas afinidades de nosso idioma, não seus regionalismos.)

Meu leitor notará em algumas páginas a preocupação filosófica. Foi minha desde menino, quando meu pai revelou-me, com a ajuda do tabuleiro de xadrez (que era, lembro-me, de cedro), a corrida de Aquiles e da tartaruga.

Quanto às influências que serão percebidas neste volume... Em primeiro lugar, os escritores que prefiro –já citei Robert Browning –; depois, os que li e repito; depois, os que nunca li, mas que estão em mim. Um idioma é uma tradição, um modo de sentir a realidade, não um arbitrário repertório de símbolos.

J. L. B.
Buenos Aires, 1972.









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O OURO DOS TIGRES
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(1972)














TAMERLÃO1 (1336-14O5)
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Meu reino é deste mundo. Carcereiros
E cárceres e espadas executam
A ordem que não repito. Minha palavra
Mais ínfima é de ferro. Até o secreto
Coração das pessoas que não ouviram
jamais meu nome em seus confins longínquos
É instrumento dócil a meu arbítrio.
Eu, que fui um rabadão da pradaria,
Icei minhas bandeiras em Persépolis
E mitiguei a sede dos cavalos
Nas águas do rio Ganges e do Oxus.
Quando nasci, caiu do firmamento
Uma espada com signos talismânicos;
Eu sou, eu serei sempre, aquela espada.
Já derrotei o grego e o egípcio
E devastei as muitas, incansáveis,
Léguas da Rússia com meus duros tártaros,
Pirâmides de crânios erigi,
Jungi a minha carroça quatro reis
Que não quiseram acatar meu cetro
E atirei às chamas em Alepo
Esse Livro dos Livros, o Alcorão,
Anterior aos dias e às noites.
Eu, o rubro Tamerlão, tive em meu abraço
A branca Zenócrate do Egito,
Casta como a neve das alturas.
Recordo as pesadas caravanas
E as nuvens de poeira do deserto,
Recordo uma cidade de fumaça
E candeeiros de óleo nas tabernas.
Sei tudo e posso tudo. Um agourento
Livro ainda não escrito revelou-me
Que morrerei como os outros morrem
E que, por entre a pálida agonia,
Ordenarei que meus arqueiros lancem
Flechas de ferro contra o céu adverso
E embandeirem de negro o firmamento
Para não haver um homem que não saiba
Que os deuses estão mortos. Sou os deuses.
Que outros recorram à astrologia
Judiciária, ao compasso e ao astrolábio,
Para saber quem são. Eu sou os astros.
Em alvoradas incertas me pergunto
Por que não saio nunca desta câmara,
Por que não condescendo à homenagem
Do clamoroso Oriente. Às vezes sonho
Com escravos, intrusos que desdouram
O Tamerlão com dedos temerários
E lhe dizem que durma e que não deixe
De tomar toda noite as pastilhas
Encantadas da paz e do silêncio.
A cimitarra busco e não a encontro.
Busco no espelho o meu rosto; é outro.
Por isso o quebrei e me puniram.
Por que não compareço aos suplícios,
Por que não vejo o machado e a cabeça?
Essas coisas me inquietam, porém nada
Pode ocorrer se Tamerlão se opõe
E Ele, talvez, as queira sem saber.
E eu sou Tamerlão. Rejo o Poente
E o Oriente de ouro, e no entanto...
















ESPADAS
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Joyeuse, Excalibur, Gram, Durendal.
Suas velhas guerras andam pelo verso,
Que é a única memória. O universo
Ao Norte e ao Sul as vai semeando igual.
Persiste na espada a ousadia
Da destra mão viril, hoje pó e nada;
No ferro ou no bronze, a estocada
Que foi sangue de Adão num primo dia.
Cestas enumerei dessas distantes
Espadas cujos homens deram morte
A reis e a serpentes. Há outra sorte
De espadas, as murais e as reinantes.
Deixa-me, espada, usar contigo a arte;
Eu, que não mereci isso, manejar-te.
























O PASSADO
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Tudo era fácil, nos parece agora,
Naquele plástico ontem irrevogável:
Sócrates, que, apurada a cicuta,
Discorre sobre a alma e seu caminho,
Enquanto a morte azul lhe vai subindo
Pelos pés regelados; a implacável
Espada que retumba na balança;
Roma, que impõe o numeroso hexâmetro
Ao obstinado mármore dessa língua
Que manejamos hoje, espedaçada;
Os piratas de Hengist que atravessam
A remo o temerário Mar do Norte
E com as fortes mãos e a coragem
Fundam um reino que será o Império;
O rei saxão que oferta ao da Noruega
Sete palmos de terra e que cumpre,
Antes que o sol decline, a promessa
Na batalha de homens; os cavaleiros
Do deserto, que cobrem o Oriente
E ameaçam as cúpulas da Rússia;
Um persa que relata a primeira
Das Mil e Uma Noites e não sabe
Que deu início a um livro que os séculos
Das outras gerações, ulteriores,
Não entregarão ao quieto esquecimento;
Snorri, que salva em sua perdida Tule,
Sob a luz de crepúsculos morosos
Ou na noite propícia à memória,
As letras e os deuses da Germânia;
O jovem Schopenhauer, que descobre
Um projeto geral do universo;
Whitman, que numa redação do Brooklin,
Entre o cheiro de tinta e de tabaco,
Toma e a ninguém conta a infinita
Resolução de ser todos os homens
E de um livro escrever que seja todos;
Arredondo, que mata Idiarte Borda
Em certa manhã de Montevidéu
E se entrega à justiça, declarando
Ter agido sozinho e não ter cúmplices;
O soldado que morre em chão normando,
O que na Galiléia encontra a morte.

Essas coisas podiam não ter sido.
Quase não foram. Nós as concebemos
Em um ontem fatal e inevitável.
Não há outro tempo que o agora, este ápice
Do já será e do foi, daquele instante
Em que a gota cai na clepsidra.
O ontem ilusório é um recinto
De imutáveis figuras de cera
Ou de reminiscências literárias
Que o tempo irá perdendo em seus espelhos.
Carlos Doze, Breno, Érico, o Vermelho,
E a tarde inapreensível que foi tua
Na eternidade são, não na memória.






















TANKAS2
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1

Alto no cimo
Todo o jardim é lua,
Lua de ouro.
Mais precioso é o roçar
De tua boca na sombra.

2

A voz da ave
Que a penumbra esconde
Emudeceu.
Andas por teu jardim.
E algo, eu sei, te falta.

3

A alheia taça,
A espada que foi espada
Em outra mão,
A lua do caminho,
Dize, acaso não bastam?

4

Sob a lua
O tigre de ouro e sombra
Olha suas garras.
Não sabe que na aurora
Destroçaram um homem.

5

Triste essa chuva
Que cai sobre o mármore,
Triste ser terra.
Triste não ser os dias
Do homem, o sonho, o alvorecer.

6

Não ter tombado,
Como outros de meu sangue,
Na batalha.
Ser na inútil noite
O que conta as sílabas.





























TREZE MOEDAS
UM POETA ORIENTAL
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Durante cem outonos divisei
Teu tênue disco.
Durante cem outonos divisei
Teu arco sobre as ilhas.
Durante cem outonos
os meus lábios
Não foram menos silenciosos.










O DESERTO
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O espaço sem tempo.
A lua é da cor da areia.
Agora, exatamente agora,
Morrem os homens do Metauro e de Trafalgar.








CHOVE
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Em que ontem, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?






ASTÉRION
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O ano me tributa meu pasto de homens
E na cisterna há água.
Em mim
se estreitam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos entardeceres
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.







UM POETA MENOR
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A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.



GÊNESIS 4, 8
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Foi no primeiro deserto.
Dois braços atiraram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se foi Abel ou Caim.






NORTÚMBRIA, 9OO A.D.
___________________________



Que antes do alvorecer o despojem os lobos;
A espada é o caminho mais curto.





MIGUEL DE CERVANTES
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Cruéis estrelas e propícias estrelas
Presidiram a noite de minha gênese;
Devo às últimas o cárcere
Em que sonhei o Quixote.




O OESTE
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O beco final com seu poente.
Inauguração do pampa.
Inauguração da morte.






ESTÂNCIA EL RETIRO
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O tempo joga um xadrez sem peças
Ali no pátio. O rangido de uma rama
Rasga a noite. Lá fora a planície
Léguas de pó e sonho esparrama.
Sombras os dois, copiamos o que ditam
Outras sombras: Heráclito e Gautama.






O PRISIONEIRO
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Uma lima.
A primeira das pesadas portas de ferro.
Um dia serei livre.




MACBETH
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Nossos atos prosseguem seu caminho,
Que não conhece fim.
Matei meu rei para que Shakespeare
Urdisse sua tragédia.





ETERNIDADES
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A serpente que cinge o mar e é o mar,
O repetido remo de Jasão, a jovem espada de Sigurd.
Só perduram no tempo as coisas
Que não foram do tempo.



















SUSANA BOMBAL
___________________________


Alta na tarde, altiva e louvada,
Cruza o casto jardim e está na exata
Luz do instante irreversível e puro
Que nos dá este jardim e a alta imagem,
Silenciosa. Vejo-a aqui, nesta hora,
Mas também a diviso num antigo
Fulgor crepuscular da Ur dos Caldeus,
Ou então descendo a lenta escadaria
De um templo, que é inumerável pó
Do planeta e que foi pedra e soberba,
Ou decifrando o mágico alfabeto
Das estrelas de outras latitudes,
Ou aspirando uma rosa na Inglaterra.
Está onde houver música, no leve
Azul, e no hexâmetro do grego,
Em nossas solidões que a procuram,
No liso espelho de água de uma fonte,
No mármore do tempo, numa espada,
Nessa serenidade do terraço
Que divisa poentes e jardins.

E por detrás dos mitos e das máscaras,
A alma, que está só.

Buenos Aires, 3 de novembro de 197O.

















A JOHN KEATS (1795-1821)
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Desde o princípio até a jovem morte
A terrível beleza te espreitava
Como os outros a propícia sorte
Ou a adversa. Nas alvas te esperava
De Londres, e nas páginas casuais
De um dicionário de mitologia,
Nas costumeiras dádivas do dia,
Num rosto, numa voz, e nos mortais
Lábios de Fanny Brawne. Oh, sucessivo
E arrebatado Keats, que o tempo cega,
O alto rouxinol e a uma grega
Serão tua eternidade, oh, fugitivo.
Foste o fogo. Na pânica memória
Hoje não és as cinzas. És a glória.





















SONHA ALONSO QUIJANO
________________________________


Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.






















A UM CÉSAR
___________________________


Na noite favorável a esses lêmures
E a larvas que fustigam os defuntos,
Quartearam inutilmente os profundos
Espaços das estrelas os teus áugures.
Do touro jugulado na penumbra
As vísceras em vão têm indagado;
Em vão o sol desta manhã alumbra
A espada fiel do pretoriano armado.
No real palácio tua garganta espera
Assustada o punhal. Já os confins
Do império que regem teus clarins
Pressentem as plegárias e a fogueira.
De tuas montanhas o horror sagrado
Tem o tigre de ouro e sombra profanado.


















O CEGO
___________________________

A Mariana Grondona

I

Foi despojado do diverso mundo
E dos rostos, que são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Resta dos livros o que lhe consente
A memória, essa forma de olvido
Que retém o formato, não o sentido,
E que reflete os títulos somente.
O desnível espreita. Cada passo
Pode ser uma queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não marca sua aurora nem seu ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Devo lavrar meu insípido universo.


II

Desde meu nascimento, no ano noventa e nove
Das côncavas parreiras e do algibe profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites limaram os perfis
Dessas letras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos fatigados
As vazias bibliotecas e os vazios atris.
O azul e o vermelho são agora cerração,
Duas palavras inúteis. O espelho que miro
É uma coisa cinzenta. No jardim eu aspiro,
Amigos, uma lúgubre rosa da escuridão.
Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos.







ON HIS BLINDNESS
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Indigno dos astros e da ave
Que sulca o azul profundo, ora secreto,
Dessas linhas que são o alfabeto
Que outros ordenam e do mármore grave
Cujo lintel meus fatigados olhos
Perdem em sua penumbra, dessas rosas
Invisíveis e das silenciosas
Profusões de ouros e de vermelhos
Sou, mas não das Mil Noites e Uma
Que abrem em minha sombra o mar e o alvor
Nem de Walt Whitman, esse Adão nomeador
Das crianças que existem sob a lua,
Nem desses brancos dons do esquecimento
Nem do amor que espero sem um lamento.

















A BUSCA
___________________________


No fim de sua terceira geração
Regresso às planícies dos Acevedo,
Os meus antepassados. Vagamente
Procurei-os por esta velha casa
Branca e retangular, entre o frescor
Das duas galerias, e na sombra
Crescente que projetam as colunas,
Naquele intemporal grito do pássaro,
Na chuva que ensombrece a varanda,
Entre o crepúsculo de seus espelhos,
Num reflexo, um eco, que foi seu
E que agora é meu, sem que eu o saiba.
Olhei para as ferragens do gradil
Que fez parar as lanças do deserto,
A palmeira partida pelo raio,
Os negros touros de Aberdeen, a tarde,
As casuarinas que eles nunca viram.
Aqui foram a espada e o perigo,
As duras proscrições e os levantes;
Firmes sobre o cavalo, aqui regeram
A sem princípio e a sem fim planura
Os estanceiros das longínquas léguas.
Pedro Pascual, Miguel, Judas Tadeo...
Quem me dirá se misteriosamente,
Sob esse teto de uma única noite,
E para além dos anos e do pó,
Para além do cristal da relembrança,
Não nos unimos e nos confundimos,
Eu só no sonho, mas eles na morte.

















O PERDIDO
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Onde estará minha vida, a que tudo
Pôde ser e não foi, a venturosa
Ou a de triste horror, essa outra coisa
Que pôde ser a espada ou o escudo
E que não foi? Onde estará o perdido
Antepassado persa ou norueguês,
Onde o acaso de não me enceguecer,
Onde a âncora e o mar, onde o olvido
De ser quem sou? Onde estará a pura
Noite que ao rude lavrador confia
O iletrado e laborioso dia,
Conforme pede a literatura?
Penso também naquela companheira
Que me queria, e quem sabe ainda queira.
















H. O.
___________________________


Em certa rua há certa firme porta
Com a campainha e o número preciso
E um sabor de perdido paraíso,
Que nos entardeceres não está aberta
A minha passagem. Finda a jornada,
Uma esperada voz me esperaria
Na desagregação de cada dia
E no sossego da noite enamorada.
Essas coisas não são. Outra é minha sorte:
As vagas horas, a memória impura,
O exagero da literatura
E no limite a indesejada morte.
Só desejo essa pedra. Meu pedido
São duas datas abstratas e o olvido.




























RELIGIO MEDICI, 1643
___________________________


Defende-me, Senhor. (O vocativo
Não implica Ninguém. É só uma palavra
Deste exercício que o enfado lavra
E que na tarde do temor cultivo.)
Defende-me de mim. Já o disseram
Montaigne e Browne e um espanhol que ignoro;
Algo me resta ainda de todo esse ouro
Que meus olhos de sombra recolheram.
Defende-me, Senhor, do impaciente
Desejo de ser mármore e olvido;
Defende-me de ser o já vivido,
O que já fui irreparavelmente.
Não da espada ou da vermelha lança
Defende-me, mas sim da esperança.




















1971
___________________________


Dois homens caminharam pela lua.
Outros depois. O que pode a palavra,
O que pode o que a arte sonha e lavra,
Ante sua real e quase irreal fortuna?
Ébrios de horror divino e de aventura,
Esses filhos de Whitman haviam pisado
O páramo lunar, o inviolado
Orbe que, antes de Adão, passa e perdura.
O amor de Endímion em sua montanha,
O hipogrifo, a curiosa esfera
De Wells, que em minha recordação é vera,
Confirmam-se. De todos é a façanha.
Não há na terra um homem que não seja
Mais valente hoje e mais feliz. O dia
Imemorial se exalta de energia
Pelo valor que essa Odisséia enseja,
A dos amigos mágicos. A lua,
Que o amor secular busca no firmamento
Com triste rosto e insatisfeito intento,
Será seu monumento, eterna e una.











COISAS
___________________________


O volume caído que os outros
Escondem ali no fundo da estante
E que os dias e as noites cobrem
De lento pó silencioso. A âncora
De Sídon que os mares da Inglaterra
Oprimem em seu abismo cego e brando.
O espelho que não repete ninguém
Quando a casa permaneceu sozinha.
As limalhas de unha que deixamos
No decorrer do tempo e do espaço.
O pó indecifrável que foi Shakespeare.
As modificações de uma nuvem.
A simétrica rosa momentânea
Que deu o acaso certa vez aos vidros
Ocultos do infantil caleidoscópio.
Os remos de Argos, a primeira nave.
As pegadas de areia que a onda
Sonolenta e fatal desfaz na praia.
Os matizes de Turner quando as luzes
Apagam-se na reta galeria
E não ressoa um passo na alta noite.
O inverso do prolixo mapa-múndi.
A tênue teia de aranha na pirâmide.
A pedra cega e a mão curiosa.
O sonho que eu tive antes da aurora
E que esqueci ao clarear o dia.
O princípio e o fim da epopéia
De Finsburh, hoje alguns contados versos
De ferro, não comido pelos séculos.
A letra inversa no mata-borrão.
A tartaruga no fundo do algibe.
O que não pode ser. O outro corno
Do unicórnio. O Ser que é Três e é Uno.
O disco triangular. O inapreensível
Instante em que a flecha do eleata,
No ar imobilizada, acerta o alvo.
A flor entre as páginas de Bécquer.
O pêndulo que o tempo fez parar.
O aço que Odin cravou na árvore.
O texto de umas não cortadas folhas.
O ressoar dos cascos no assalto
De Junín, que de algum eterno modo
Não cessou e é parte dessa trama.
A sombra de Sarmiento nas calçadas.
A voz que na montanha ouviu o pastor.
Os ossos branqueando no deserto.
A bala que matou Francisco Borges.
O outro lado do tapete. As coisas
Que ninguém olha, salvo o Deus de Berkeley.





























O AMEAÇADO
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É o amor. Terei de me esconder ou fugir.
Crescem as paredes de seu cárcere, como em um sonho atroz.
A bela máscara mudou, mas como sempre
é a única. De que me servirão meus talismãs: o
exercício das letras, a vaga erudição, o aprendizado
das palavras que usou o áspero Norte para cantar seus
mares e suas espadas, a serena amizade, as galerias da
Biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem
amor de minha mãe, a sombra militar de meus mortos,
a noite intemporal, o gosto do sonho?
Estar contigo ou não estar contigo é a medida de meu tempo.
O cântaro já se quebra sobre a fonte, já se levanta
o homem à voz da ave, já escureceram os que
olham pelas janelas, mas a sombra não trouxe a paz.
É, eu sei, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz,
a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo.
E o amor com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis.
Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.
Agora os exércitos me cercam, as hordas.
(Este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher me delata.
Dói-me uma mulher por todo o corpo.





















PROTEU
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Antes que os remeiros de Odisseu
Fatigassem os mares cor de vinho,
As inapreensíveis formas adivinho
Daquele deus cujo nome foi Proteu.
Um pastor dos rebanhos desses mares
Que possuía o dom da profecia
Preferia ocultar o que sabia
E entretecer uns oráculos díspares.
Urgido pela gente, assumia
A forma de um leão, de uma fogueira
Ou de árvore que ensombra a ribeira
Ou de água que na água se perdia.
Com Proteu, o egípcio, não te assombres,
Tu, que és um e ao mesmo tempo muitos homens.























OUTRA VERSÃO DE PROTEU
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Habitante de areias receosas,
Meio deus, meio fera marinha,
Ignorou a memória, que definha
Sobre o ontem e as perdidas coisas.
Outro tormento padeceu Proteu
Não menos cruel, saber o que encerra
O futuro: uma porta que se cerra
Para sempre, o troiano e o aqueu.
Capturado, tomava a inapreensível
Forma do furacão ou da fogueira
Ou do tigre de ouro ou da pantera
Ou de água que na água é invisível.
Tu também estás feito de inconstantes
Ontens e amanhãs.
No entanto, antes...
























FALA UM BUSTO DE JANO
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Ninguém abra nem feche qualquer porta
Sem honrar a memória de Bifronte,
Que as preside. Abarco o horizonte
De incertos mares e de terra certa.
Minhas duas faces divisam o que passou
E o porvir. Posso vê-los similares
Aos ferros, às discórdias e aos males
Que Alguém pôde apagar mas não apagou
Nem apagará. As duas mãos me faltam
E sou de pedra imóvel. Não poderia
Precisar se contemplo uma porfia
Futura ou a de ontens que se afastam.
Vejo minha ruína: a coluna truncada
E as faces, que não vão se ver por nada.















O GAÚCHO
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Filho de algum extremo dessa planura
Aberta, elementar, quase secreta,
Puxava o firme laço que aquieta
O firme touro de cerviz escura.
Com o índio e o godo antes lutou,
Morreu em rixas de baralho e tava;
Deu a vida à pátria, que ignorava,
E, assim perdendo, nada lhe restou.
Hoje é pó de tempo e de planeta;
Nomes não ficam, mas o seu perdura.
Foi tantos outros e hoje é uma quieta
Peça que move a literatura.
Foi o matreiro, o sargento e a partida.
Foi quem cruzou a heróica cordilheira.
Foi soldado de Urquiza ou de Rivera,
Tanto faz. Foi quem acabou com Laprida.
Deus lhe estava distante. Professaram
A antiga fé do ferro e da coragem,
Que a súplica ou a soldo não dão margem.
Por essa fé morreram e mataram.
Entre os acasos de uma montonera
Pereceu pela cor de uma divisa;
Foi quem nada pediu, nem a efêmera
Glória, feita de alarde e de brisa.
Foi o homem cinzento que, obscuro na pausada
Penumbra do galpão, sonha e mateia,
Enquanto no oriente já clareia
A luz de outra deserta madrugada.

Nunca disse: Sou gaúcho. Foi sua sorte
Não imaginar a sorte que é dos outros.
Não menos ignorante que nós, outros,
Não menos solitário, entrou na morte.













A PANTERA
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Atrás das fortes grades a pantera
Repetirá o enfadonho itinerário,
Que é (mas não o sabe) seu fadário
De negra jóia, aziaga e prisioneira.

Vão e vêm aos milhares, em desfiles
Infindáveis, mas é só uma e eterna
A pantera fatal que em sua caverna
Traça a reta que um eterno Aquiles

Traça no sonho que sonhou o grego.
Não sabe que há prados e montanhas
De cervos cujas trêmulas entranhas

Deleitariam seu apetite cego.
Em vão é vário o orbe. A jornada
Que cumpre cada qual já foi fixada.

















TU
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Um só homem nasceu, um só homem morreu na terra.
Afirmar o contrário é mera estatística, é uma adição impossível.
Não menos impossível que somar o cheiro da chuva e o sonho que anteontem
à noite sonhaste.
Esse homem é Ulisses, Abel, Caim, o primeiro homem que ordenou as constelações,
o homem que erigiu a primeira pirâmide, o homem que escreveu os hexagramas do
Livro das Mutações, o forjador que gravou runas na espada de Hengist, o
arqueiro Einar Tamberskelver, Luis de León, o livreiro que engendrou Samuel
Johnson, o jardineiro de Voltaire, Darwin na proa do Beagle, um judeu na câmara
letal, com o tempo, tu e eu.
Um só homem morreu em Ílion, no Metauro, em Hastings, em Austerlitz, em
Trafalgar, em Gettysburg.
Um só homem morreu nos hospitais, em barcos, na árdua solidão, na
alcova do hábito e do amor.
Um só homem fitou a vasta aurora.
Um só homem sentiu no paladar o frescor da água, o gosto das frutas
e da carne.
Falo do único, do uno, do que está sempre só.

Norman, Oklahoma.












POEMA DA QUANTIDADE
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Penso nesse parco céu puritano
De solitárias e perdidas luzes
Que Emerson olharia tantas noites
Em meio à neve e ao rigor de Concord.
Aqui são excessivas as estrelas.
O homem é excessivo. As gerações
Inúmeras de aves e de insetos,
Do jaguar constelado e da serpente,
De galhos que se tecem e entretecem,
Do café, da areia e das folhas
Oprimem as manhãs e nos prodigam
Seu minucioso labirinto inútil.
Talvez cada formiga que pisamos
Seja única ante Deus, que a define
Para a execução das regulares
Leis que regem Seu curioso mundo.
Não fosse assim, o universo inteiro
Seria um erro e um oneroso caos.
Os espelhos do ébano e da água,
O espelho inventivo de um sonho,
Os liquens e os peixes, as madréporas,
Tartarugas alinhadas no tempo,
Os vaga-lumes de uma única tarde,
As araucárias e suas dinastias,
As perfiladas letras de um volume
Que a noite não apaga são sem dúvida
Não menos pessoais e enigmáticas
Que eu, que as confundo. Não me atrevo
A julgar nem a lepra nem Calígula.

São Paulo, 197O.










A SENTINELA
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Entra a luz e eu me lembro; está ali.
Começa por dizer-me seu nome, que é (logo se entende) o meu.
Volto à escravidão que durou mais de sete vezes dez anos.
Impõe-me sua memória.
Impõe-me as misérias de cada dia, a condição humana.
Sou seu velho enfermeiro; obriga-me a lavar os seus pés.
Espreita-me nos espelhos, no mogno, nos vidros das lojas.
Uma ou outra mulher o rejeitou e devo compartilhar sua angústia.
Dita-me agora este poema, que não me agrada.
Exige-me o nebuloso aprendizado do duro anglo-saxão.
Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com os
quais talvez não pudesse trocar uma única palavra.
No último lanço de escada sinto que está a meu lado.
Está em meus passos, em minha voz.
Minuciosamente o odeio.
Percebo com prazer que quase não vê.
Estou em uma cela circular e a infinita parede se estreita.
Nenhum dos dois engana o outro, mas nós dois mentimos.
Conhecemo-nos demais, inseparável irmão.
Bebes a água de meu copo e devoras meu pão.
A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam que na
sombra ulterior do outro reino estarei eu, me esperando.










AO IDIOMA ALEMÃO
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Meu destino é a língua castelhana,
O bronze de Francisco de Quevedo,
Mas pela lenta noite caminhada
Exaltam-me outras músicas mais íntimas.
Umas me foram dadas pelo sangue –
Oh, voz de Shakespeare e da Escritura –,
E outras pelo acaso dadivoso,
Mas a ti, doce língua da Alemanha,
Solitário elegi e procurei.
Por entre vigílias e gramáticas,
Em meio à selva das declinações,
Do dicionário, que jamais atina
Com o matiz preciso, me aproximei.
Minhas noites são repletas de Virgílio,
Disse uma vez; e diria também
De Hölderlin e de Angelus Silesius.
Heine me deu seus altos rouxinóis;
Goethe, a ventura de um amor tardio,
A um só tempo indulgente e mercenário;
Keller, a rosa que certa mão deixa
Na mão daquele morto que a amava
E que não vai saber se é branca ou rubra.
Tu, língua da Alemanha, és tua obra
Capital: esse amor entrelaçado
Das palavras compostas, as vogais
Abertas, e esses sons que condescendem
Com o estudioso hexâmetro do grego,
Com teu rumor de selvas e de noites.
Foste minha algum dia. Hoje, no linde
De meus anos cansados, te diviso
Longínqua como a álgebra e a lua.














AO TRISTE
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Aí está o que foi: a dura espada
Do saxão e sua métrica de ferro,
Os mares e as ilhas do desterro
Do filho de Laertes, a dourada
Lua do persa e os infindos jardins,
Os da filosofia e os da história,
O ouro sepulcral que há na memória
E sob a sombra o cheiro dos jasmins.
E nada disso importa. O resignado
Exercício do verso não te salva,
Nem as águas do sonho nem a estrela
Que na arruinada noite esquece a alva.
Uma única mulher é teu cuidado,
Igual às outras todas, mas que é ela.






















O MAR
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O mar. O mar de Ulisses. Jovem mar.
E o daquele outro Ulisses que a gente
Do Islã alcunhou famosamente
De Es-Sindibad do Mar. Do gris ondear
De Érico, o Vermelho, alto em sua proa,
E o do tal cavaleiro que escrevia
A um só tempo a epopéia e a elegia
De sua pátria, no pântano de Goa.
O mar de Trafalgar. O que a Inglaterra
Cantou ao longo de sua longa história,
O árduo mar que ensangüentou de glória
No diário exercício da guerra.
Esse incessante mar que na afável
Manhã segue sulcando a areia infindável.














AO PRIMEIRO POETA DA HUNGRIA
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Neste período para ti futuro
Que desconhece o áugure que a forma
Proibida do porvir vê nos planetas
Ardentes ou nas vísceras do touro,
Nada me custaria, irmão e sombra,
Buscar teu nome nas enciclopédias
E descobrir que rios refletiram
Teu rosto, que hoje é perdição e pó,
E que reis, que ídolos, que espadas,
Que resplendor de tua infinita Hungria
Elevaram tua voz ao primo canto.
As noites e os mares nos separam,
As seculares modificações,
Os climas, os impérios e os sangues.
Porém nos une indecifravelmente
O misterioso amor pelas palavras,
Nosso costume de sons e de símbolos.
Semelhante ao arqueiro do eleata,
Um homem só numa tarde vazia
Deixa correr sem fim esta impossível
Saudade, que tem por alvo uma sombra.
Não nos veremos nunca face a face,
Oh, antepassado que minha voz não alcança.
Eu para ti não sou sequer um eco;
Para mim sou um tormento e um arcano,
Uma ilha de encanto e temores,
Como talvez o sejam os homens todos,
E como o foste tu, sob outros astros.









O ADVENTO
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Sou o que fui na aurora, entre a tribo.
Deitado em meu canto da caverna,
Lutava por afundar nas obscuras
Águas do sonho. Espectros de animais
Feridos pelo estilhaço da flecha
Davam horror à negrura. Mas algo,
Talvez a execução de uma promessa,
A morte de um rival sobre a montanha,
Talvez o amor, ou uma pedra mágica,
Me fora outorgado. Perdi tudo.
Pelos séculos gasta, a memória
Só guarda essa noite e sua manhã.
Sentia desejo e medo. Bruscamente
Ouvi o surdo tropel interminável
De um rebanho atravessando a aurora.
Arco de roble, flechas que se cravam,
Deixei-os e corri até a greta
Que se abre no extremo da caverna.
Foi então que os vi. Brasa avermelhada,
Cruéis os cornos, montanhoso o lombo,
A crina lúgubre como os seus olhos
Que espreitavam malvados. Aos milhares.
São os bisões, eu disse. A palavra
Nunca antes passara por meus lábios,
Mas senti que talvez fosse seu nome.
Era como se eu nunca houvesse visto,
Como se houvesse estado cego e morto
No tempo antes dos bisões da aurora.
Eles surgiam da aurora. Eram a aurora.
Não quis que os outros profanassem
Aquele denso rio de bruteza
Divina, de ignorância, de soberba,
Indiferente como as estrelas.
Pisotearam um cão do caminho;
Teriam feito o mesmo com um homem.
Depois os traçaria na caverna
Com ocre e cinábrio. Foram os Deuses
Do sacrifício e das preces. Nunca
Disse minha boca o nome de Altamira.
Foram muitas minhas formas e mortes.






































A TENTAÇÃO
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O general Quiroga vai a seu enterro;
Convida-o o mercenário Santos Pérez
E sobre Santos Pérez está Rosas,
A recôndita aranha de Palermo.
Rosas, a for de bom covarde, sabe
Que não há entre os homens um sequer
Mais vulnerável e frágil que o valente.
Juan Facundo Quiroga é temerário
Até a insensatez. O fato pode
Merecer o exame de seu ódio.
Resolveu-se a matá-lo. Pensa e hesita.
Por fim, dá com a arma que buscava.
Será a sede e a fome de perigo.
Quiroga busca o Norte. O próprio Rosas
O adverte, quase ao pé da carroça,
Que circulam rumores de que López
Premedita sua morte. Recomenda
Que não empreenda a ousada travessia
Sem uma escolta. Ele mesmo a oferece.
Facundo sorriu. Pois não carece
De ladeiros. Ele se basta. A rangente
Carroça deixa as vilas para trás.
Léguas de longa chuva a entorpecem,
Neblina e lodo e as águas transbordadas.
Por fim, avistam Córdoba. São vistos
Como se fossem seus fantasmas.
Todos já os davam por mortos. Noites antes,
Córdoba inteira vira Santos Pérez
Distribuindo espadas. A partida
É de trinta cavaleiros da serra.
Nunca se urdiu um crime de maneira
Mais descarada, escreverá Sarmiento.
Juan Facundo Quiroga não se altera.
Busca o Norte. Em Santiago del Estero
Se entrega às cartas e a seu belo risco.
Entre o ocaso e a aurora perde
Ou recebe centenas de onças de ouro.
Recrudescem os alarmes. Bruscamente
Decide regressar e dá a ordem.
Por esses descampados e esses montes
Retomam os caminhos do perigo.
Em um sítio chamado Ojo de Agua
O maestro de posta lhe revela
Que por ali já passou a partida
Encarregada de assassiná-lo
E que o espera em um lugar que nomeia.
Ninguém deve escapar. Esta é a ordem.
A determinação de Santos Pérez,
O capitão. Facundo não se arreda.
Está por nascer o homem que se atreva
A acabar com Quiroga, lhe responde.
Os outros ficam pálidos e calam.
Sobrevém a noite, em que somente
Dorme o fatal, o forte, que confia
Em seus obscuros deuses. Amanhece.
Não voltarão a ver outra manhã.
Por que concluir a história que já foi
Contada para sempre? A carroça
Toma o rumo de Barranca Yaco.



















1891
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Assim que o vislumbro, já o perco.
Ajustado o decente traje preto,
A testa estreita, o bigode ralo,
E um lenço no pescoço como todos,
Vai caminhando entre a gente da tarde
Ensimesmado e sem fitar ninguém.
Em uma das esquinas da rua Piedras
Pede uma pinga brasileira. O hábito.
Alguém grita um adeus. Não lhe responde.
Há em seus olhos um rancor antigo.
Outra quadra. Rajadas de milonga
Vêm de um pátio e o alcançam. Essas charangas
Estão sempre amolando a paciência,
Mas seu andar balança e ele nem nota.
Levanta a mão e apalpa a firmeza
Do punhal que há na cava do colete.
Vai cobrar uma dívida. Está perto.
Mais alguns passos e o homem pára.
Há uma flor de cardo no saguão.
Ouve o golpe do balde no algibe
E uma voz que conhece muito bem.
Empurra o portão que ainda está aberto
Como se o esperassem. Esta noite
Talvez já esteja morto.













1929
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Antes, a luz avançava mais cedo
Na peça que dá para o último pátio;
Agora o sobrado que fica ao lado
Encobre o sol, mas na difusa sombra
Seu modesto inquilino está desperto
Desde o amanhecer. E em silêncio,
Para não perturbar os seus vizinhos,
O homem está mateando e esperando.
Outro dia vazio, como todos.
E os ardores constantes de sua úlcera.
Já não há mulheres em minha vida, pensa.
Os amigos o enfadam. Imagina
Que os enfade também. Falam de coisas
Que não entende, de arqueiros e de quadros.
Não viu que horas são. Sem pressa alguma
Levanta-se e barbeia-se com inútil
Esmero. É preciso encher o tempo.
O rosto que o espelho lhe devolve
Guarda o aprumo que antes era seu.
Envelhecemos mais que nosso rosto,
Pensa, mas aí estão as comissuras,
O bigode grisalho, a boca murcha.
Pega o chapéu e sai. Já no vestíbulo
Vê um jornal aberto. Lê as grandes letras,
Crises ministeriais em países
Que são apenas nomes. Em seguida
Nota a data da véspera. Um alívio;
Não há mais motivo para seguir lendo.
Lá fora, a manhã logo lhe depara
Sua ilusão habitual de que algo está
Começando e os pregões dos vendedores.
Em vão o homem inútil dobra esquinas
E passagens e tenta se perder.
Vê com aprovação as casas novas,
Algo, o vento sul, talvez, o anima.
Cruza a Rivera, hoje chamada Córdoba,
E nem lembra que faz muitos anos
Que seus passos a eludem. Duas, três quadras.
Reconhece uma longa balaustrada,
Os redondéis da sacada de ferro,
Um muro eriçado de pedaços
De vidro. Nada mais. Tudo mudou.
Tropeça na calçada. Ouve a troça
De alguns garotos. Não lhes dá atenção.
Agora está andando lentamente.
De repente pára. Algo aconteceu.
Aí onde agora há uma sorveteria,
Havia o Almacén de la Figura.
(A história conta quase meio século.)
Aí um desconhecido de ar avesso
Ganhou-lhe um longo truco, quinze e quinze,
E ele insinuou que o jogo não era limpo.
Evitou discutir, mas disse a ele:
Vou lhe dar até o último centavo,
Mas depois disso vamos para a rua.
O outro respondeu que com o ferro
Não ia se dar melhor que com as cartas.
Não havia uma estrela. Benavides
Lhe emprestou sua faca. A peleja
Foi dura. Na memória é só um instante,
Um só imóvel fulgor, vertiginoso.
Lançou-se numa longa punhalada,
Que bastou. Depois, na dúvida, em outra.
Ouviu o cair do corpo e do aço.
E então sentiu pela primeira vez
O corte em seu pulso e viu o sangue.
Foi então que brotou de sua garganta
Uma palavra grosseira, que reunia
A exultação, a ira e o assombro.
Tantos anos e ele enfim resgatou
A sorte de ser homem e ser valente
Ou, pelo menos, a de tê-lo sido
Algum dia, num dos ontens do tempo.





A PROMESSA
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Em Pringles, o doutor Isidro Lozano me contou a história. Fez isso com tal economia que compreendi que já o fizera antes, como era previsível, muitas vezes; acrescentar ou alterar um pormenor seria um pecado literário.

"O fato aconteceu aqui, em mil novecentos e vinte e tantos. Eu tinha voltado de Buenos Aires com meu diploma. Certa noite, mandaram me chamar, do hospital. Levantei-me de mau humor, vesti-me e atravessei a praça deserta. Na sala de espera, o doutor Eudoro Ribera me disse que um dos malfeitores do comitê, Clemente Garay, tinha sido trazido com uma punhalada no ventre. Nós o examinamos; agora estou endurecido, mas na época mexeu comigo ver um homem com os intestinos de fora. Estava com os olhos fechados e a respiração era difícil. "

O doutor Ribera me disse:

– Não há mais nada a fazer, meu jovem colega. Vamos deixar que este porqueira morra.

Respondi-lhe que tinha me arrastado até ali depois das duas da manhã e que faria o possível para salvá-lo. Ribera deu de ombros; lavei os intestinos, coloquei-os no lugar e costurei o ferimento. Não ouvi uma única queixa.

No dia seguinte voltei. O homem não havia morrido; olhou-me, apertou minha mão e disse:

– Para o senhor, obrigado, e meu cabo de prata para Ribera. Quando deram alta a Garay, Ribera já partira para Buenos Aires.

"Desde essa data, todos os anos recebi um cordeirinho no dia de meu aniversário. Por volta de quarenta o presente cessou."






O ESTUPOR
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Um vizinho de Morón me contou o caso:

"Ninguém sabe muito bem por que Moritán e o Pardo Rivarola se inimizaram e de modo tão rancoroso. Os dois eram do partido conservador e acho que se conheceram no comitê. Não me lembro de Moritán porque eu era muito pequeno quando morreu. Dizem que a família era de Entre Ríos. O Pardo sobreviveu a ele muitos anos. Não era um caudilho ou coisa parecida, mas tinha toda a pinta. Mais baixo do que alto, era pesado e muito pomposo no vestir. Nenhum dos dois era frouxo, mas o mais reflexivo era Rivarola, como logo se viu. Há muito tempo ele tinha jurado Moritán, mas quis agir com prudência. Dou-lhe razão; se alguém mata alguém e tem de penar na prisão, está agindo como um sonso. O Pardo tramou bem o que ia fazer. "

"Deviam ser sete horas da tarde, um domingo. A praça transbordava de gente. Como sempre, aí estava Rivarola caminhando devagar, com seu cravo na lapela e a roupa preta. Ia com a sobrinha. De repente afastou-a, sentou-se de cócoras no chão e se pôs a adejar e cacarejar como se fosse um galo. As pessoas lhe abriram cancha, assustadas. Um homem de respeito como o Pardo, fazendo uma coisa dessas, à vista e paciência de todo o Morón e num dia de domingo! Meia quadra depois ele virou e, sempre cacarejando e esvoejando, enfiou-se na casa de Moritán. Empurrou o portão e de um salto entrou no pátio. A multidão se aglomerava na rua. Moritán, que ouviu a balbúrdia, veio lá do fundo. Ao ver esse monstruoso inimigo investindo contra ele, quis ganhar os quartos, mas um balaço o alcançou e depois outro. Rivarola foi levado entre dois guardas. O homem forcejou, cacarejando. "

"Um mês depois estava em liberdade. O médico forense declarou que ele fora vítima de um súbito ataque de loucura. Por acaso o povo inteiro não o tinha visto, comportando-se como um galo?"







OS QUATRO CICLOS
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Quatro são as histórias. Uma, a mais antiga, é a de uma forte cidade cercada e defendida por homens valentes. Os defensores sabem que a cidade será entregue ao ferro e ao fogo e que sua batalha é inútil; o mais famoso dos agressores, Aquiles, sabe que seu destino é morrer antes da vitória. Os séculos foram acrescentando elementos de magia. Já se disse que Helena de Tróia, pela qual os exércitos morreram, era uma bela nuvem, uma sombra; já se disse que o grande cavalo oco no qual se ocultaram os gregos era também uma aparência. Homero não deve ter sido o primeiro poeta a referir a fábula; alguém, no século catorze, deixou esta linha que anda em minha memória: "The borgh brittened and brent to brontes and askes".3 Dante Gabriel Rossetti iria imaginar que a sorte de Tróia foi selada naquele instante em que Páris arde de amor por Helena; Yeats elegerá o instante em que se confundem Leda e o cisne que era um deus.

Outra, que se vincula à primeira, é a de um regresso. O de Ulisses, que, ao fim de dez anos errando por mares perigosos e demorando-se em ilhas de encantamento, volta a sua Ítaca; o das divindades do Norte que, uma vez destruída a terra, vêem-na surgir do mar, verde e lúcida, e encontram perdidas no gramado as peças de xadrez com que antes jogaram.

A terceira história é a de uma busca. Podemos ver nela uma variante da forma anterior. Jasão e o Velocino; os trinta pássaros do persa, que cruzam montanhas e mares e vêem o rosto de seu Deus, o Simurgh, que é cada um deles e todos. No passado, todo cometimento era venturoso. Alguém roubava, no fim, as proibidas maçãs de ouro; alguém, no fim, merecia a conquista do Graal. Agora, a busca está condenada ao fracasso. O capitão Ahab dá com a baleia e a baleia o desfaz; os heróis de James ou de Kafka só podem esperar a derrota. Somos tão pobres de coragem e de fé que agora o happy-ending não passa de um mimo industrial. Não podemos acreditar no céu, mas sim no inferno.

A última história é a do sacrifício de um deus. Átis, na Frígia, se mutila e se mata; Odin, sacrificado a Odin, Ele mesmo a Si Mesmo, pende da árvore nove noites a fio, ferido com uma lança; Cristo é crucificado pelos romanos. Quatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta, continuaremos a narrá-las, transformadas.










O SONHO DE PEDRO HENRÍQUEZ UREÑA
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O sonho que Pedro Henríquez Ureña teve no alvorecer de um dos dias de 1946 curiosamente não constava de imagens, mas de pausadas palavras. A voz que as dizia não era a sua, mas se parecia com a sua. O tom, não obstante as possibilidades patéticas que o tema permitia, era impessoal e comum. Durante o sonho, que foi breve, Pedro sabia que estava dormindo em seu quarto e que sua mulher estava a seu lado. Na escuridão, o sonho lhe disse:

Há algumas noites, em uma esquina da rua Córdoba, discutiste com Borges a invocação do Anônimo Sevilhano "Oh, Morte, vem calada como costumas vir na seta". Suspeitaram que era o eco deliberado de algum texto latino, já que essas translações correspondiam aos hábitos de uma época, totalmente alheia a nosso conceito de plágio, sem dúvida menos literário que comercial. O que não suspeitaram, o que não podiam suspeitar, é que o diálogo era profético. Dentro de algumas horas, andarás apressado pela última plataforma de Constitución, para dar tua aula na Universidad de La Plata. Alcançarás o trem, porás a pasta na rede e te acomodarás em teu assento, junto à janela. Alguém, cujo nome não conheço mas cujo rosto estou vendo, dirigirá a ti algumas palavras. Não lhe responderás, porque estarás morto. já te terás despedido, como sempre, de tua mulher e de tuas filhas. Não lembrarás este sonho, porque teu esquecimento é necessário para que se cumpram os fatos.













O PALÁCIO
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O Palácio não é infinito.

Os muros, os aterros, os jardins, os labirintos, as grades, as varandas, os parapeitos, as portas, as galerias, os pátios circulares ou retangulares, os claustros, as encruzilhadas, os algibes, as antecâmaras, as câmaras, as alcovas, as bibliotecas, os desvãos, os cárceres, as celas sem saída e os hipogeus não são menos numerosos que os grãos de areia do Ganges, mas seu número tem um fim. Dos terraços, em direção ao poente, não falta quem divise as forjas, as carpintarias, as cavalariças, os lenheiros e os casebres dos escravos.

A ninguém é dado percorrer mais que uma parte infinitesimal do palácio. Alguns conhecem apenas os porões. Podemos perceber alguns rostos, algumas vozes, algumas palavras, mas o que percebemos é ínfimo. Ínfimo e precioso ao mesmo tempo. A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registram é posterior a nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.












HENGIST QUER HOMENS (449 A.D.)
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Hengist quer homens.

Eles virão dos confins de areia que se perdem em vastos mares, de casebres enfumaçados, de terras pobres, de profundos bosques de lobos, em cujo centro indefinido está o Mal.

Os lavradores deixarão o arado e os pescadores as redes.

Deixarão suas mulheres e seus filhos, porque o homem sabe que em qualquer lugar da noite pode encontrá-las e fazê-los.

Hengist, o mercenário, quer homens.

Ele os quer para debelar uma ilha que ainda não se chama Inglaterra.

Vão segui-lo submissos e cruéis.

Sabem que sempre foi o primeiro na batalha de homens. Sabem que uma vez esqueceu seu dever de vingança e que lhe deram uma espada nua e que a espada fez sua obra.

Atravessarão a remo os mares, sem bússola e sem mastro.

Trarão espadas e broquéis, elmos com a forma do javali, conjuros para que se multipliquem as messes, vagas cosmogonias, fábulas dos hunos e dos godos.

Conquistarão a terra, mas nunca entrarão nas cidades que Roma abandonou, porque são coisas demasiado complexas para sua mente bárbara.

Hengist os quer para a vitória, para o saque, para a corrupção da carne e para o esquecimento.

Hengist os quer (mas não o sabe) para a fundação do maior império, para que o cantem Shakespeare e Whitman, para que dominem o mar as naus de Nelson, para que Adão e Eva se afastem, de mãos dadas Q silenciosos, do Paraíso que perderam.

Hengist os quer (mas não o saberá) para que eu trace estas letras.







































EPISÓDIO DO INIMIGO
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Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão que em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, livro um tanto anômalo aí, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde.

Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse.

– Pensamos que os anos passam apenas para nós – disse-lhe –, mas passam também para os outros. Aqui nos encontramos, por fim, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele desabotoara o casaco. A mão direita estava no bolso do paletó. Assinalava-me algo e senti que era um revólver.

Disse-me então com voz firme:

– Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Agora o tenho a minha mercê e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e só as palavras podiam salvar-me. Atinei a dizer:

– É verdade que há tempos maltratei um menino, mas você já não é aquele menino nem eu aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos fátua e ridícula que o perdão.

– Justamente porque já não sou aquele menino – replicou-me – tenho de matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você não pode fazer mais nada.

– Posso fazer uma coisa – respondi.

– O quê? – perguntou-me.

– Acordar.

E foi o que fiz.

































À ISLÂNDIA
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De todas as regiões da bela terra
Que minha carne e sua sombra fatigaram
Tu és a mais remota e a mais íntima,
Última Tule, Islândia dos navios,
Do firme arado e do constante remo,
Das estendidas redes marinheiras,
Da curiosa luz de tarde imóvel
Que efunde o vago céu desde a alvorada
E do vento que procura os perdidos
Velâmenes do viking. Terra sacra
Que foste a memória da Germânia
E resgataste sua mitologia
De uma selva de ferro e de seu lobo
E dessa nave que os deuses temem,
Lavrada com as unhas dos defuntos.
Islândia, eu longamente te sonhei
Desde aquela manhã em que meu pai
Deu à criança que fui e não morreu
Uma versão dessa Völsunga Saga
Que agora decifra minha penumbra
Com a ajuda do lento dicionário.
Quando o corpo se cansa de seu homem,
Quando o fogo declina e já é cinza,
Cai bem a resignada aprendizagem
De uma empresa infinita; eu escolhi
A de tua língua, esse latim do Norte
Que abarcou as estepes e os mares
De um hemisfério e ressoou em Bizâncio
E pelas margens virgens desta América.
Sei que não vou sabê-la, mas me esperam
Os privilégios casuais da busca,
Não o fruto sabiamente inalcançável.
O mesmo vão sentir os que indagam
Os astros ou a sucessão dos números...
Só o amor, o ignorante amor, Islândia.










AO ESPELHO
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Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?
Por que na sombra o súbito reflexo?
És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.
O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisa de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas
Que somos e que abarcam nossa sorte.
Quando eu estiver morto, copiarás outro
E depois outro, e outro, e outro, e outro...






















A UM GATO
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Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera,
Que divisam ao longe nossos olhos.
Por obra indecifrável de um decreto
Divino, buscamos-te inutilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
Tua é a solidão, teu o segredo.
Teu dorso condescende à morosa
Carícia de minha mão. Sem um ruído,
Da eternidade que ora é olvido,
Aceitaste o amor dessa mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
De um espaço cerrado como um sonho.
















EAST LANSING
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Os dias e as noites
estão entretecidos (interwoven) de memória e de medo,
de medo, que é um modo da esperança,
de memória, nome que damos às fendas do férreo esquecimento.
Meu tempo foi sempre um Jano bifronte
que mira o ocaso e a aurora;
meu propósito de hoje é celebrar-te, oh, futuro imediato.
Regiões da Escritura e do machado,
árvores que olharei e não verei,
vento com pássaros que ignoro, gratas noites de frio
que irão afundando no sonho e quem sabe na pátria,
chaves de luz e portas giratórias que com o tempo serão hábitos,
despertares em que me direi "Hoje é Hoje",
livros que minha mão conhecerá,
amigos e amigas que serão vozes,
areias amarelas do poente, a única cor que me resta,
tudo isso estou cantando e também
a insofrível memória de lugares de Buenos Aires
nos quais não fui feliz
e nos quais não poderei ser feliz.

Canto na véspera teu crepúsculo, East Lansing,
Sei que as palavras que dito talvez sejam precisas,
mas sutilmente serão falsas,
porque a realidade é inapreensível
e porque a linguagem é uma ordem de signos rígidos.
Michigan, Indiana, Wisconsin, Iowa, Texas, Califórnia, Arizona;
já tentarei cantá-las.

9 de março de 1972.














AO COIOTE
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Século a século a areia infindável
Dos diversos desertos têm sofrido
Teus passos numerosos e o ganido
De chacal cinza ou hiena. insaciável.
Por séculos? Eu minto. Essa furtiva
Substância, o tempo, não te alcança, lobo;
Teu é o puro ser, teu é o arroubo,
Nossa, a torpe vida sucessiva.
Foste um latido quase imaginário
Nos confins do Arizona, nessa areia
Onde tudo é confim, e se incendeia
Teu perdido latido solitário.
Símbolo de uma noite que eu possuía,
Seja teu vago espelho esta elegia.



















UM AMANHÃ
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Louvada seja a misericórdia
De Quem, completos meus setenta anos
E selados meus olhos,
Salva-me da venerada velhice
E das galerias de precisos espelhos
Desses dias iguais
E dos protocolos, molduras e cátedras
E da assinatura de incansáveis papéis
Para os arquivos do pó
E dos livros, que são simulacros da memória,
E me prodiga o animoso desterro,
Que talvez seja a forma essencial do destino argentino,
E o acaso e a jovem aventura
E a dignidade do perigo,
Conforme opinou Samuel Johnson.
Eu, que sofri a vergonha
De não ter sido aquele Francisco Borges que morreu em 1874
Ou meu pai, que ensinou a seus discípulos
O amor à psicologia e não acreditou nela,
Esquecerei as letras que me deram alguma fama,
Serei homem de Austin, de Edimburgo, da Espanha,
E buscarei a aurora em meu ocidente.
Na ubíqua memória serás minha,
Pátria, e não na fração de cada dia.













O OURO DOS TIGRES
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Até a hora do ocaso amarelo
Quantas vezes terei contemplado
O poderoso tigre de Bengala
Ir e vir pelo predestinado caminho
Por detrás das barras de ferro,
Sem suspeitar que eram seu cárcere.
Depois viriam outros tigres,
O tigre de fogo de Blake;
Depois viriam outros ouros,
O metal amoroso que era Zeus,
O anel que a cada nove noites4
Engendra nove anéis e estes, nove,
E não há um fim.
Com os anos foram me deixando
As outras belas cores
E agora só me restam
A vaga luz, a inextricável sombra
E o ouro do princípio.
Oh, poentes, oh, tigres, oh, fulgores
Do mito e da épica,
Oh, um ouro mais precioso, teus cabelos
Que estas mãos almejam.

East Lansing, 1972.







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NOTAS:
1 TAMERLÃO. Meu pobre Tamerlão havia lido, no final do século XIX, a tragédia de Christopher Marlowe e algum manual de história.

2 TANKAS. Quis adaptar a nossa prosódia a estrofe japonesa que consta de um primeiro verso de cinco sílabas, de um de sete, de um de cinco e de dois últimos de sete. Quem sabe como soarão estes exercícios a ouvidos orientais? A forma original prescinde também de rimas.
3 OS QUATRO CÍCLOS. O verso em inglês médio quer dizer "A fortaleza arruinada e reduzida a incêndio e cinzas". Pertence ao admirável poema aliterativo "Sir Gawain and the Green Knight", que guarda a primitiva música do saxão, embora tenha sido composto séculos depois da conquista comandada por Guilherme, o Bastardo.

4 O ouro Dos Tigres. Para o anel das nove noites, o curioso leitor pode interrogar o capítulo 49 da Edda Menor. O nome do anel era Draupnir.



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Abraços !

             

Gilson

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