Livros G

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

João Guimarães Rosa



___



Contra-capa:

"Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é
fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para
se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve
pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade.
Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e
homem por mulheres! - nunca tive inclinação pra aos vícios
desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então - o senhor me
perguntará - o que era aquilo?

Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo
tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou.

Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior
propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o
senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa - feito. Era ele estar perto
de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu
perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu
mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu
mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele
sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo
próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços,
que às vezes adivinhei insensatamente - tentação dessa eu espairecia, aí
rijo comigo renegava. Muitos momentos."



___



Grande Sertão: Veredas



"O diabo na rua, no
meio do redemoinho..."





19a edição


EDITORA NOVA FRONTEIRA


9a impressão



by Nonada Cultural Ltda.


Poema de Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade - Grafia Drummond
www.carlos drummond.com.br

Apresentação de Paulo Ronai
Condomínio dos proprietários dos direitos de Paulo Ronai

Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela EDITORA
NOVA FRONTEIRA S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta
obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou
processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de
fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
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Ilustrações de Poty gentilmente cedidas por Editora José Olympio


Equipe de produção
REGINA MARQUES
IZABEL ALEIXO

Revisão
ANA LÚCIA KRONEMRERGER
DANIELE CAJUEIRO
ENI VALENTIM TORRES


Capa e projeto gráfico
VICTOR BURTON


Diagramação
CALAMO PRoDuçÃO EDITORIAL


Produção gráfica
ANA CAROLINA MERABET



Este livro foi impresso em São Paulo, em maio de 2005, pela Lis Gráfica
e Editora, para a Editora Nova Fronteira.



CID Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Rosa, João Guimarães, 1908-1967
R694g Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa. 19ª ed.
19. ed. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2001

ISBN 85-209-1209-5


1. Romance Brasileiro. 1. Título.


CDD 86993
CDU 869.0(81).3





A
Aracy, minha mulher, Ara,
pertence este livro.





Nota do Editor



Com o objetivo de trazer a público uma nova e
bem-cuidada edição das obras de João Guimarães Rosa,
trabalhamos neste relançamento com duas prioridades: atendendo a
uma solicitação ja antiga de nossos leitores, foi elaborado um
novo projeto gráfico, mais leve e arejado, permitindo uma
leitura mais agradável do texto. Alem disso e
principalmente - , procuramos tamhem estabelecer um diálogo cOm antigas
edições da obra de Guimarães Rosa, cuja originalidade de texto -
levou seus editores, algumas e ja registradas vezes, a erros
Involuntários, sem que, infelizmente, contemos ainda com a bem-
humorada acolhida desses erros pelo próprio autor, como afirmam
alguns de seus críticos e amigos, entre eles Paulo Ronai.

Assim, a presente edição de Grande Sertão: Veredas baseou-se
no texto da 5a edição da obra, publicada em 1967, sendo feitas
apenas, porque posteriores ao falecimento do escritor, as altera-

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ções de grafia decorrentes da reforma ortográfica instituída pela
lei de 18 de dezembro de 1971, que aboliu o trema nos hiatos
átonos, o acento circunflexo diferencial nas letras e e o da sílaba
tonica de palavras homógrafas e o acento grave com que se
assinalava a sílaba subtonica em vocábulos derivados com o sufixo
—mente e —zinho.

Quanto a outras grafias em desacordo com o formulário
ortográfico vigente, manteve-se, nesta edição, aquela que o autor
deixou registrada na edição-base. Utilizamos ainda outras
edições tanto para corrigir variaçoes indevidas como para insistir
em outras. Essas grafias em desuso podem parecer simplesmente
uma questão de atualização ortográfica, mas, se essa atualização
já era exigida pela norma quando da publicação dos livros e
de suas varias edições durante a vida do autor, partimos do
princípio de que elas são provavelmente intencionais e devem,
portanto, ser mantidas. Para justificar essa decisão, lembramos aos
leitores que as antigas edições da obra de Guimarães Rosa
apresentavam uma nota alertando justamente para a grafia
personalíssima do autor e que algumas histórias registram a sua teimosia
em acentuar determinadas palavras. Além disso, mais de uma
vez em sua correspondência, ele observou que os detalhes
aparentemente sem importância são fundamentais para o efeito que
se quer obter das palavras.

Esses acentos e grafias "sem importância", em desacordo com
a norma ortográfica vigente (mas "a língua e eu somos um casal
de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem
até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica"), compõem
um léxico literário cuja variação fonética é tão rica e irregular
quanto à da linguagem viva com que o homem se define
diariamente. E ousamos ainda dizer que, ao lado das, pelo menos,
treze línguas que o autor conhecia e utilizava em seu processo de
voltar à origem da língua, devemos colocar, em igualdade de
recursos e contribuições poéticas, aquela em cujos "erros" vemos
menos um desconhecimento e mais uma possibilidade de
expressão, e por isso também "terá de ser agreste ou inculto o
neologista, e ainda melhor se analfabeto for".

Com esse critério, a certeza de que algumas dúvidas não
puderam ser resolvidas, e uma boa dose de bom senso,
esperamos estar agora apresentando o resultado de um trabalho
responsável e consistente, à altura do nome deste autor, por cuja
presença em nossa casa nos sentimos imensamente orgulhosos.

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Um chamado João

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?


Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?


Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal êle era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

10 11

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?


João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bôlso
cada qual em sua côr de água
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gôta redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?


Mágico sem apetrechos
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos podêres, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?


Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é êsse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

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Tinha parte com... (sei lá
o nome) ou êle mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sôbre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?


Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.


21.XI.1967


Carlos Drummond de Andrade


Fac-símile do poema de Carlos Drummond de Andrade que foi publicado
no Correio da Manhã de 22 de novembro de 1967, três dias após a morte de
João Guimarães Rosa.





Três motivos em
Grande Sertão: Veredas

Paulo Rónai


Mal emergido dos dois compactos volumes do Corpo de
baile e resistindo a custo a vontade de relê-los, eis-me as voltas
com uma nova obra do autor, tão substanciosa como aquela, e
não menos hirta de obstáculos nem menos rica de
compensações. Como prêmio do esforço exigido pela leitura, saímos dela
com a impressão de termos participado um pouco da obra de
ficção, de termos compartilhado não só as vicissitudes das
personagens, mas também a alegria criadora do autor.

Essa impressão faz esquecer de vez o Susto que se
experimenta à entrada, ao sopesar o volume grosso, bloco maciço, sem
claros, sem divisão em capítulos, sem índice. Ainda mais: que
vem a ser esse título estranho, com dOis pontos no início? A
linguagem condensada, elíptica, regional e individual ao mesmo
tempo, embora dentro da linha dos livros anteriores, impõe ao
interesse um periodo de adaptação. Além disso, a história tarda a

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começar, o narrador parece experimentar vários rumos,
embrenha-se num atalho, marca passo, desvia-se, volta ao ponto inicial,
recomeça a ação, parece fragmentar-se num labirinto de
episódios desconexos. Mas, lembrados de Sagarana e Corpo de baile,
confiemo-nos sem reserva ao autor, sigamo-lo por seus
caminhos tortuosos: de repente, após uma travessia do rio São
Francisco, ele nos faz desembocar numa estrada real, de horizonte
dilatado, por onde a história se desenrola ampla, épica, irresistível,
levando de roldão qualquer estranheza ou resistência.

Daí em diante, os mistérios do principio elucidam-se
progressivamente, as digressões revelam-se começos de rotas
convergentes, episódios que pareciam deslocados se reatam ao
tronco da narração, alusões obscuras ganham caráter de antecipação
e presságio. Descobrir tais entrclaçamentos é um dos altos
prazeres da leitura; assinalá-los, ainda que parcialmente, talvez não
seja prestar bom serviço ao autor.

Mas limitarmo-nos a registrar apenas o nosso encantamento
ou assinalar a intensidade da nossa emoção seria atitude ainda
mais inadequada. "O dever de quem pretende falar ao público
nas obras alheias é fazer todo o esforço necessário para entendê-las
ou pelo menos determinar as condições e os
constrangimentos que o autor se impôs e que se lhe impuseram" escreve
Paul Valéry, acrescentando esta observação, que diríamos
concernir especialmente aos livros de Guimarães Rosa: "Achar-se-ia
então que a clareza, a simplicidade e a abundância resultam
geralmente do uso das idéias e das formas existentes e familiares; o
leitor se reconhece nelas, às vezes embelecido. Mas os opostos
dessas qualidades significam às vezes intenções de um grau mais
elevado."

A significação do título se aclara sucessivamente por
diversos trechos do romance, onde encontramos o narrador
empenhado em definir o termo grande sertão, que, além de conteúdo
geográfico bem nítido, para ele tem ainda outros conteúdos
vagos e amplos. Essas definições vão do estritamente mesológico
ao simbólico: nelas a narrativa sai mais de uma vez do tom
reprodutivo, e o narrador cede a palavra ao romancista. Para quem
nele nasceu e viveu e com ele se identificou, o "sertão" acaba
sendo toda a confusa e tumultuosa massa do mundo sensível,
caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer,
precisamente a que se avista ao longo das "veredas", tênues
canais de penetração e comunicação. Assim o sinal : entre os
dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo a
oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas
parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o
conhecível.

A forma do romance - uma unica narrativa, do fim ao
começo, feita pelo fazendeiro Riobaldo, ex-jagunço, a um
forasteiro não é casual, mas está organicamente ligada ao próprio
assunto. Uma história dessas só pode ser contada pelo
protagonista e em primeira pessoa. A indecisão do começo, em que
lembranças fragmentadas se sucedem ao sabor das associações,
corresponde à hesitação do narrador, que só depõe as reservas
depois de ver fixo o interesse do ouvinte, o qual não somente
desiste da intenção de prosseguir viagem no mesmo dia, mas
anota a relação em sua caderneta.

Contudo, o ouvinte permanece invisível do princípio ao fim,
e sua presença se percebe apenas pelas apóstrofes do narrador.
Esse recurso fértil confere à narração estilo oral e dramaticidade
direta, e permite a Riobaldo esmiuçar com toda a meticulosidade
suas lembranças mais secretas.

Espantado com a própria sinceridade, tenta este justificá-la
muitas vezes, e essas tentativas constituem outro leitmotiv, tão

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importante como as definições de "sertão". Segundo ele mesmo
afirma, narra a vida para no fim consultar o interlocutor: "Quero
ar mar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho."
Esse conselho, porém, não chega a ser pedido. Riobaldo
pretende também relatar o passado para que o forasteiro o explique:

"Conto ao senhor é o que eu sei e que o senhor não sabe; mas
principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser
que o senhor saiba." Mas não se dá ao estranho oportunidade
para tal explicação, e, aliás, Riobaldo sabe que "a vida não é
entendivel." Afinal de contas, faz a confissão para si mesmo,
querendo "decifrar as coisas que são importantes" e preservá-las do
esquecimento. "Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma.
Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro." Mas a
vontade de lembrar, em Riobaldo, é mais que simples saudade de
velho. Desejando reconstituir o seu passado, ele está movido pelo
anelo confuso de reafirmar a unidade do seu eu, de sentir que
efetivamente desempenhou algum papel ativo nas vicissitudes da
própria existência.

Sim, porque precisamente no tocante a isso é que é
atormentado por continuas dúvidas. No cerne mesmo de sua vida há
um segredo aterrador a que faz alusões incessantes, mas que não
se atreve a enfrentar de vez e do qual se acerca a meias palavras,
criando nu espírito do ouvinte uma expectativa ansiosa. Suas
contínuas indagações sobre a existência do Diabo, a natureza e o
poder dele, preparam-nos para algum mistério espantoso.
Quando afinal vem a revelação, embora pressentida, não deixa de
transtorná-lo, a ele e a nós. Tornam-se então compreensíveis
todas as especulações metafísicas do ex-jagunço, à primeira vista
descabidas: se na solidão de sua velhice ele refez todas as
suposições dos teólogos, todas as teorias da demonologia - chegando
a intuir no conceito do Diabo a mera concretização de um
aspecto da alma humana foi por tratar de assunto seu familiar,
intimamente pessoal. O mito atávico do pacto com o Demônio é
revivido nele sob forma convincente, como experiência possível
dentro da nossa realidade.

Corolário do pacto são os acontecimentos inesperados e
favoraveis que lhe corroboram a validade no espírito de Riobaldo.
Chega a sentir-se onipotente, dono do universo, e então entra a
vacilar, a dar passos em falso, a não saber o que fazer e a sentir
uma terrível insatisfação. O poder chega num momento em que
de nada serve: quando desaparecem os obstáculos à sua paixão
por Diadorim, desaparece também o objetivo dessa paixão.

Em redor de um mito universal, Guimarães Rosa conseguiu
edificar uma obra de valor universal com elementos indígenas.
O seu Riobaldo, esse Fausto sertanejo, ente inculto mas dotado
de imaginação e poesia, ao passar revista aos acontecimentos de
sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as contingencias
do ser - o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a
solidão, a dor, o medo, a morte e relata-as com a surpresa, a
reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no
mundo, reinventando as explicações dos filósofos numa
formulação pitoresca e ingênua. Como Miguilim, Lélio, o velho Camilo
em Corpo de baile, o jagunço Riobaldo é trabalhado por
inquietações que o fazem sentir a vida diversamente ("Um sentir é do
sentente, mas outro é do sentidor",) e, em sua linguagem
pitoresca de semi-analfabeto, descerrar abismos de psicologia e
metafísica.

Mas todas as audácias da construção, toda a riqueza do
conteúdo filosófico seriam apenas jogos da inteligência, se o sertão
de Guimarães Rosa não fosse também, além de símbolo, realidade
viva e concreta, com seus bichos, plantas, gentes e superstições
admiravelmente descritos; se a narração de Riobaldo não fosse

18 19

além de uma teia engenhosamente urdida, um tecido de casos,
encontros, acontecimentos e cenas de insuspeita autenticidade;
e se a intervenção do sobrenatural não fosse tramada com arte
das mais sutis, de modo que nunca entra em choque com o
realismo psicológico. A existência do Diabo ou a crença na
existência dele ("Não é, mas finge de ser") são explanações igualmente
válidas para o destino de Riobaldo.

Com tudo isso, só nos referimos por assim dizer às
coordenadas que definem a situação de Grande sertão: veredas no plano da
ficção. Para avaliar-lhe a importância total, falta um estudo das
personagens, do ambiente, dos episódios, do estilo, que
constituem um conjunto único e inconfundível, algo de real e de
mágico sem precedentes em nossas letras e, provavelmente, em
qualquer literatura.



1956





Grande Sertão: Veredas
"O diabo na rua, no meio do
redemoinho..."





20 21



- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram
de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore,
no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso
faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me
chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos
de nem ser se viu e com máscara de cachorro. Me
disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu,
arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de
gente, cara de cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio.
Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar
minhas armas, cedi. Não tenho abusões, O senhor ri certas
risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada
pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu
mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não
seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro

22 23

eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito
sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os
pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu
cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem
dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá
fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as
vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses
gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o
senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está
em toda a parte.

Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em
falso receio, desfalam no nome dele dizem só: o Que-Diga.
Vote! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num
Aristides - o que existe no buritizal primeiro desta minha mão
direita, chamado aVereda-da-Vaca-Mansa-de- Santa-Rita - todo
o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designado,
porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha
que avisando: "Eu já vou! Eu já vou!..." - que é o capiroto, o
que-diga... E um Jisé Simpilicio - quem qualquer daqui jura ele
tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a
ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpihcio se
empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem
também que a besta pra ele rupêia, nega de banda, não deixando,
quando ele quer amontar... Superstição. Jisé Simpilício e Aristides,
mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda
o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente
porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no
Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou
que, para aqui vir normal, a cavalo, dum dia-e-meio ele
era capaz que só com uns vinte minutos bastava.., porque
costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe
- sem ofensas - não terá sido, por um exemplo, até mesmo o
senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido
divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não
foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes,
clarêia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há,
quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes,
será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso
Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que
Diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim
esses nomes de rebuço, é que e mesmo um querer invocar que
ele forme forma, com as presenças!

Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a
crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei
que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Fvangelhos. Em
ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente,
conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma
vara de maria-preta na mão proseou que ia adjutorar o padre,
para extrairem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na
Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo... Me
concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim.
Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos
espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas
com ânsias de se travarem com os viventes dão encosto.
Compadre meu Quelemém é quem muito me consola - Quelemém
de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã,Vereda do
Burití Pardo... Arres, me deixe lá, que em endemoninhamento
ou com encosto - o senhor mesmo deverá de ter conhecido
diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi,

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que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d'Outro, o Muitos-Beiços, o
Rasga em Baixo, Faca-Fria, o Fancho Bode, umTreciziano, o
Aunhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse
esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E,
mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma
competência entrante do demônio Será não? Será?
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não
possuia os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no
moquém: quem mói no asp'ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a
folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range
rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia, O diabo existe
e não existe". Dou o dito. Abrenuncio. Essas melancolias. O
senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira e barranco de
chão, e água se caindo por ele, retomhando; o senhor consome
essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é
negócio muito perigoso...

Explico ao senhor: o diabo vive dentro do homem, os
crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o homem dos
avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.
Nenhum! É o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo,
franco é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido.
Este caso por estúrdio que me vejam é de minha certa
importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor,
assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe
agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava
por ela já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua
aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem
espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo,
este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu
estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas
crianças eu digo. Pois não é ditado: "menino trem do
diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento...
Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...

Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas
lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se
arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e
folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a
mandioca brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A
mandioca doce pode de repente virar azangada motivos não
sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com
mudas seguidas, de manaíbas vai em amargando, de tanto em
tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a
mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de
se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por
ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra
cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto,
capaz de, pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade o
mundo todo? E gavião, côrvo, alguns, as feições deles já
representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a
bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem
até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que
estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo
dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo que é só
assim o significado dum azougue maligno tem ordem de
seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está
misturado em tudo.

Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente,
aos pouquinhos, e o razoável sofrer. E a alegria de amor
compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O
senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave
criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom

26 27

pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os
depois e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um
chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era
o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou
que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras,
com trairas, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que
receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas,
elas se acostumaram a se assim das locas, para papar,
semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele
matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola.
O senhor não duvide tem gente, neste aborrecido mundo,
que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o
resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.
Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos;
aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem
um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os
meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas
complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas
os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à
rebelde; e susseguinte o que não sei e se foram todos duma
vez, ou um logo e logo outro e outro eles restaram cegos.
Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor
imagine: uma escadinha três meninos e uma menina
todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas
mudou: ah, demudou completo agora vive da banda de Deus,
suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e
do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele
mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena
dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me
deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das
hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!

Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas.
Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também
tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios
do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho
assassinado? eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também.
Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por
pagar. Se a gente conforme compadre meu Quelemém é quem
diz se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que
inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se
me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis
léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele,
sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns de7 anos,
chamado Valtêi nome moderno, é o que o povo daqui agora
aprecêia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que
algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido
madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do
fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar,
de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez,
encontrou uma crioula benta bêbada dormindo, arranjou um caco
de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que
esse menino babeja vendo, e sangrarem galinha ou esfaquear
porco. "Eu gosto de matar..." uma ocasião ele pequenino
me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se
debruça o vôo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai,
Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de
miséria e mastro botam o menino sem comer amarram em
árvores no terreiro, ele nó nuelo, mesmo em junho frio, lavram o
corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do
sangue, com cuja de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado.

28 29

O menino ja rebaixou de magreza, OS olhos entrando, carinha de
ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da
que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a
mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim
foram criando nisso um prazer feio de diversão como regulam
as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para
ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no
blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?!
Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que
explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem.
Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu.
Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está
chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino
bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com
soluço... - o que é a coisa mais custosa que há.

Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo para
pecados e artes, as pessoas como por que foi que tanto emendado
se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu
Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego
mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns
conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que
eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha,
memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho,
decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e
estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei
bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me
achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar
latim, em Aula Régia que também diziam. Tempo saudoso!
Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O
Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse
almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas
matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primaria é na leitura
proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos - missionario
esperto engamhelando os índios, ou São Francisco de Assis,
Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar,
exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo.
Minha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela é
uma abençoável. Compadre meu Quelemém sempre diz que eu
posso aquietar meu temer de consciencia, que sendo bem-assistido,
terríveis bons-espiritos me protegem. lpe! Com gosto...
Como é de saci efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem
sempre posso. O senhor Saiba: eu todà a minha vida pensei por
mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou e eu mesmo. divêrjo
de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas deseolho de
muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe,
sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia
ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amem!
Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios,
políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo, à noção proclamar
por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo
nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam
tranquilidade boa a gente. Por que o Governo não cuida?!

Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por
beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país
de pessoas, de carne e sangue, de mil e-tantas misérias... Tanta
gente da susto se saber e nenhum se sossega: todos
nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego,
comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios
bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se
tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. Eu
podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras
coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou, errei de

30 31

toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas.
Ahã.

Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo
é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se
carece principalmente de religião: para se desendoidecer,
desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco
ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...
Uma só, para mim e pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão,
católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu
Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso,
vou no Minduhim, onde um Matias é crente, metodista: a gente
se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos
deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me
refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar o tempo
todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é
privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? o que
faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço,
executado. Eu? não tresmalho!

Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora,
as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago,
todo mês encomenda de rezar por mim um terço, todo santo
dia. E, nos domingos, um rosario. Vale, se vale. Minha mulher
não ve mal nisso. E estou, já mandei recadO para uma outra, do
Vau-Vau, uma lzina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza
também com grandes meremerencias, vou efetuar com ela trato igual.
Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de
mim em volta... Chagas de Cristo!

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força,
de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo ornal, por
principiar. Esses homens! Todos puxavam o mUndO para si, para o
concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas
dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério - foi
Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem,
o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele
por dentro consistia. Joca Ramiro - grande homem príncipe!
- era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve
sorte: raposa que demorou. Só Candelário se endiabrou, por
pensar que estava com doença má.Titão Passos era o pelo prêço
de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que
tão alto se ajagunçou. Antônio Dó severo bandido. Mas por
metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo,
um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda
justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso
guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim.
E o "Urutú-Branco"? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho
levado, que foi que era um pobre menino do destino...

Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim
com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar Deus
espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrario, é O
diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca e afia que se
raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se
arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu
penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e
carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não
arrocha o regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo um
dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais
auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...

Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em
Sete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de nome me
indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das
dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai e acontece

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que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltando
deste brabo Norte, um moço Jazevedão, delegado profissional.
Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois,
de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. A verdade
que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longe
dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor ficasse. Pois,
ficando, olhei. E - lhe falo: nunca vi cara de homem fornecida
de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco,
trouxo de atarracado, reluzia um crú nos olhos pequenos, e
armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem
testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a
gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre,
e bufava, um poucadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-
palavras encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada
- uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos
de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos de morte. Aquela
aplicação de trabalho, numa coisa dessas, gerava a ira na gente. O
secreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo,
caprichando de ser cão. Me fez um receio, mas so no bobo do corpo, não
no interno das coragens. Uma hora, uma daquelas laudas caiu
e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por quê, não quis, não
pensei até hoje crio vergonha diSSO apanhei o papel do
chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais raiva, porque fiz
aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou, nem
disse nenhum agradecimento. Até as solas dos sapatos dele só
vendo que solas duras grossas, dobradas de enormes,
parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão, quando
prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que
vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava
em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões
dava gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de
papel, e fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a
tiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigava
um principio de barriga barriguda, que me criou desejos... Com
minha brandura, alegre que eu matava Mas, as harharidades que
esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em
coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e
mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui.
Sertão, O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala
é um pedacinhozinho de metal...

Tanto, digo: Jazevedão - um assim, devia de ter, precisava?
Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que,
depois negócio particular dele nesta vida ou na outra,
cada Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seu tempo
de penar, também, até pagar o que deveu compadre meu
Quelemém está aí, para fiscalizar, O senhor sabe: o perigo que é
viver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a
jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino
Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por
rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? Te
acho! Nos visos...

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio
de suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo
- foi em arraso de um tirotêio, pra cima do lugar Serra-Nova,
distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má
minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum
Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados
no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois
ficou capitão. Aguentamos hora mais hora, e já dávamos quase de
cercados. Aí, de bote, aquele bê Cazuzo homem muito
valente se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os bra-

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ços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e
urro surdo: "Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus
filhos de Anjos! ..:"Gritava não esbarrava. - "Eu vi a Virgem! Ele
almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo - que achei
- pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desatei
o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha.
O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao
inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto,
dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se cravaram na borraina
da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do
encheio. Cavalo estremece em pró, em meio de galope, sei:
pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem encolhido. Baleado
veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas
minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou
minha côxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer
- se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos
loucos... Burumbum!: o cavalo se ajoelhou em queda, morto
quiçá, e cujá caindo para diante, abraçado em folhagens grossas,
ramada e cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava
pendurado em teião de aranha... Aonde? Atravessei aquilo, vida
toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo
aquele mato, fui, sei lá e me despenquei mundo abaixo, rola-
va para o oco de um grotão fechado de môitas, sempre me agar-
rava rolava mesmo assim: depois depois, quando olhei
minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso
verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei
no capim do fundo e um bicho escuro deu um repulão, com
um espirro, também dôido de susto: que era um papa-mel, que
eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior sendo eu, me
molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de
pensamento: se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha
cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me
largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos,
dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam.
Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao
menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme
pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo
cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim,
manooh-mão, que estava na Serra do Pau-d'Arco, quase na divisa baiana,
com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo
Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele...
Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma.
Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-
que, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha:
depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabras
do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daquele
Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais pacificioso
do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São Domingos
Branco. Tempos!

Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a
idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia
para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto:

mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se
esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A
como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor
do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo
amor e raiva de ódio. Vai, mar... De sorte que, então, olhe: o
Firmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou com a
perna desconforme engrossada, dessa doença que não se cura; e não
enxergava quase mais, constante o branquiço nos olhos, das
cataratas. De antes, anos, teve de se desarrear da jaguriçagem. Pois,
uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí, de-

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pois contou que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse:

"Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola,
com faca cega... Mas, primeiro, castrar..." O senhor concebe?
Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de
bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás,
adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara
aprazível, correndo em deita de cristal roseado... Piolho-de-
Cobra se dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas que ele
pronuncêia aquilo fora boca, maneira de representar que ainda
não estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser
manso, e causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra:

proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao
redor é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau,
tendo de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez!
Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três
que me enjôa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia,
é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e
perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração
minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo,
em que não se usa mais matar gente... Eu, ja estou velho.

Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah, formei
aquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Que me
respondeu: que, por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que
todos os feios passados se exalaram de não ser feito
sem modez de tempo de criança, más-artes. Como a gente nao
carece de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos de
uma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se!,Ahã. Por isso dito, é
que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadre
meu Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem
- que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato.
Sujeito assim madruga três vezes, em antes de querer facilitar
em qualquer minudência repreensível... Compadre meu
Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou
expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio

- essa é que é a regra do rei!

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas mas que elas vão sempre mudando. Afinam
ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas
Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro dá gosto! A
força dele, quando quer moço! me dáo medo pavor! Deus
vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho

assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se
economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu
tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir,
barbatimão, angico, lá sei. "Amanhã eu tiro..." falei,
comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah,
então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido
roído, quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta.
Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois,
nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo

- por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí esta:

Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me
entende...

Somemos, não ache que religião afraca. Senhor ache o
contrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava cré que
o caroá levanta a flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas
mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. Também, eu desse
de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-homem para
o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e
penso a eito, não nem por isso não dou por baixa minha compe-

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tência, num fôgo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui com
guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com
sobejos olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É
na boca do trabuco: é no té-retê-retém... E sozinhozinho não
estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente.
Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda abaixo, o Paspe meeiro
meu e meu. Mais légua, se tanto, tem oAcauã, e tem o
Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que servem. Banda desta mão, o
Alaripe: soubesse o senhor o que é que se preza, em rifleio e à
faca, um cearense feito esse! Depois mais: o João Nonato, o
Quipes, o Pacamã-de-Presas. E o Fafafa este deu lances altos,
todo lado comigo, no combate velho do Tamanduá-tão:
limpamos o vento de quem não tinha ordem de respirar, e antes esses
desrudeamos... O Fafafa tem uma eguada. Ele cria cavalos bons.
Até um pouco mais longe, no pé-de-serra, de bando meu foram
o Sesfrêdo, Jesualdo, o Nelson e João Concliz. Uns outros. O
Triol... E não vou valendo? Deixo terra com eles, deles o que é
meu é, fechamos que nem irmãos. Para que eu quero ajuntar
riqueza? Estão aí, de armas areiadas. Inimigo vier, a gente cruza
chamado, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz,
exp'rimentem ver. Digo isto ao senhor, de fidúcia.Também, não
vá pensar em dobro. Queremos é trabalhar, propor sossego. De
mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor
merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que
me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em
Diadorim, penso também mas Diadorim é a minha neblina...

Agora, bem: não queria tocar nisso mais de o Tinhoso;
chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio
de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar
pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas
gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma...
Invencionice falsa! E, alma, o que é?Alma tem de ser coisa
interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se
pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia,
fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso
vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro que são
dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso
algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza
de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal
que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos
- tudo corre e chega tão ligeiro ; será que se há lume de
responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao
jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida.
nem que a pessoa queira ou não queira . Não é vendivel. O
senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se ve
que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de
doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos
prazeres.

Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma
ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o
senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte
do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...

Eh, que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não
consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha
amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o
senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua
falta. Mas, hoje ou amanhã,não. Visita, aqui em casa, comigo, e
por três dias!

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de
territórios, para sortimento de conferir o que existe?Tem seus
motivos. Agora digo por mim o senhor vem, veio tarde.
Tempos foram, os costumes dcmudaram. Quase que, de legíti-

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mo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons
de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí
pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no
comercio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de
gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando
menos bravo, mais educado: casteado de zebú, desvém com o
resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é à pobreza,
à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma
safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar
viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azías e
reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.

Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá,
num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O
cio da tigre preta na Serra doTatú já ouviu o senhor gargaragem
de onça?A garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando
o céu embranquece neblim que chamam de xererém. Quem
me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim...
A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua se
diz e cangussé monstra pisa em volta. Lua de com ela se
cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro
de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a
nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto no Saririnhém. Cigarras
dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá
gêia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no
Meãomeão dcpois dali tem uma terra quase azul. Que não
que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco.
Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de
vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro,
deslembro. Ou o senhor vai no soposo: de chuva-chuva. Vê
um córrego com má passagem ,ou um rio em turvação. No Buriti-
Mirim, Angical, Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá
mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes... Caçar anta no
Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido aquelas que
comem um capim diferente e roem cascas de muitas outras
árvores: a carne, de gostosa, diversêia. Por esses longes todos eu
passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O
senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que
tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o
Governo está mandando ahrir boa estrada rodageira, de Pirapora
a Paracatú, por aí...

Na Serra do Cafundé ouvir trovão de lá, e retrovão, o
senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau
em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo
na tempestade... De em de, sempre, Urucúia acima, o Urucúia
tão a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre
torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão
um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá,
por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador

donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o
rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é
o Urucúia paz das águas... E vida!... Passado o Porto das
Onças, tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou.
Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a pé, para não acabar
os cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de
guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes
de se deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles foram meus dias.
Se caçava, cada um esquecia o que queria, de de-comer não
faltava, pescar peixe nas veredas... O senhor vá lá, verá. Os lugares
sempre estão aí em si, para confirmar.

Muito deleitável. Claráguas, fontes, sombreado e sol.
Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes mais antes do
Campo-Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em fevereiro

42 43

ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Trêsmente: que com
o capitão,docamPo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o
aniz enfeitando suas môitas; e com florzinhas as dejaniras.
Aquele capím-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação,
tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de
mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, safam em
giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se ve.
Porque, nos geraiS, a mesma raça de borboletas, que em outras
partes é trivial regular - cá cresce, vira muito maior, e com
mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta
luz enorme. Beiras nascentes do Urucúia, ali o poví canta altinlio.
E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revorêdo, o saci-
do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-
vaqueira.., e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom
era ouvir o mÔm das vacas devendo seu leite. Mas, passarinho de
bilo no desvéU da madrugada, para toda tristeza que o
pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, de
tarde, bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando
de vôo todo bichinhozinho de finas asas; pássaro esperto. la
dechover mais em mais. Tardinha que enche as árvores de
cigarras - então, não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-
banana, o azulêjO, a garricha-do-brejo, o suirirí, o sabiá-ponga, o
grunhatá-do-coqueiro... Eu estava todo o tempo quase com
Diadorim.

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim
a gente se diferenCiava dos outros - porque jagunço não é
muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles
se misturam e desmísturam, de acaso, mas cada um é feito um
por si. De nóS dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a
boa prudência. Dissesse um, eaçoasse, digo -podia morrer. Se
acostumavam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam.
E estávamos conversando, perto do rego - bicame de velha
fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfus, ia escurecendo.
Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas
passavam muitas, por entre as nossas caras e besouros graúdos
esbarravam. Puxava uma brisbrisa. O ianso do vento revinha com
o cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o
campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas minúcias, não era
o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca Coisa; mas a
saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei
como sei. Som como os sapos sorumbavam Diadorim, duro
sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não
abria boca; mas era um delém que me tirava para ele - o
irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de
vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto. Quase
que sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele falava
para eu sentar; eu sentava. Não gosto de ficar em pé. Então,
depois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre medianto mais longe Eu
não tinha coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que
Diadorim as vezes parecia ter um espevíto de desconfiança,
de mim, que era o amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais
vindo, a meia-mão de mim. E eu mal de não me consentir em
nenhum afirmar das docemente coisas que são feias eu me
esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de
pensar. Mas sucedia uma duvidação ranço de desgosto: eu
versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia
mais, O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não
emtende. Perto de muita água, tudo é feliz. Se escutou, banda do
rio, uma lontra por outra: o issilvo de plim, chupante. "Tá
que, mas eu quero que esse dia chegue!" Diadorim dizia:

"Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma,

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enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados..." E
ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não
se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento:

parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor
sabe?

E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim mas
não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois
monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. Até que
viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava.
Durante que estavamos assim fora de marcha em rota, tempo de
descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava
nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue.
Assim nós dois esperavamos ali, nas cabeceiras da noite, junto
em junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco
de sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego.
A ramagem toda do agrião o senhor conhece às horas dá
de si uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um fosforem

agrião acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medo
em alma.

Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim. Para
isso a gente estava indo. Com o comando de Medeiro Vaz, dali
depois daquele carecido repouso, a gente revirava caminho, ia
em cima dos outros deles! procurando combate. Munição
não faltava. Nós estávamos em sessenta homens mas todos
cabras dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdia
guerreiro. Medeiro Vai era homem sobre o sisudo, nos usos
formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto
que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar, Também, tudo
nele decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca
enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite que
quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das
estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas
boas botas de caititú, tão antigas. Se ele em honrado juízo
achasse que estava certo, Medeiro Vai era solene de guardar o rosário
na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se
matar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, eu apreciei
aquela fortaleza de outro homem. O segredo dele era de pedra.

Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas,
antes delas acontecerem... Com isso minha fama clarêia? Remei
vida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa,
ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes - a um, ao Chapadão do
Urucúia aonde tanto boi berra... Ou o mais longe: vaqueiros
do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quináus: cavalo deles
conversa cochicho que se diz para dar sisado conselho ao
cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de
escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa... Dali
para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do Piratinga
filho do Urucúia que os dois, de dois, se dão as costas. Saem
dos mesmos brejos - buritizais enormes. Por lá sucurí geme.
Cada surucuiú do grosso: vôa corpo no veado e se enrosca nele,
abofa trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que
segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com
medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de
hora de poder água beber, esses escondidos atrás das touceiras
de huritirana. Mas o sassafrás dá mato, guardando o pôço; o que
cheira um bom perfume. Jacaré grita, uma, duas, às três vezes,
rouco roncado. Jacaré choca - olhalhão, crespido do lamal, feio
mirando na gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aonde
nem um de asas não pousa, por causa de fome do jacaré e da
piranha serrafina. Ou outra lagoa que nem não abre o olho,
de tanto junco. Daí longe em longe, os brejos vão virando rios.
Buritizal vem com eles, burití se segue, segue. Para trocar de

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bacia o senhor sobe, por ladeiras de beira-de-mesa, entra de bruto
na chapada, chapadão que não se devolve mais. Água ali
nenhuma não tem - só a que o senhor leva. Aquelas chapadas
compridas cheias de mutucas ferroando a gente. Mutucas! Dá o sol, de
onda forte, dá que dá, a luz tanta machuca. Os cavalos suavam sal
e espuma. Muita vez a gente cumpria por picadas no mato,
caminho de anta - a ida da vinda... De noite, se é de ser, o céu
embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra nelas. Bonito
em muito comparecer, como o céu de estrelas, por meados de
fevereiro! Mas, em deslúa, no escuro feito, é um escurão, que
pêia e péga. E noite de muito volume.Treva toda do sertão,
sempre me fez mal. Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo
daquela idéia; e nunca se cismava. Mas eu queria que a
madrugada viesse. Dia quente, noite fria. Arrancávamos canela-de-ema,
para acender fogueira. Se a gente tinha o que comer e beber, eu
dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha
uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava
outros pássaros. Tirin, graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco
ou a pomba-vermelha-do-mato-virgem. Mas mais o bem-te-
vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um
bem-te-vi só. "Gente! Não se acha até que ele é sempre um,
em mesmo?" - perguntei a Diadorim. Ele não aprovou, e
estava incerto de feições. Quando meu amigo ficava assim, eu perdia
meu bom sentir. E permaneci duvidando que seria que era
um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me
acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é
assim...

Dali vindo, visitar convém ao senhor o povoado dos pretos:

esses bateavam em faisqueiras no recesso brenho do Vargem-
da-Cria donde ouro já se tirou. Acho, de baixo quilate. Uns
pretos que ainda sabem cantar gabos em sua língua da Costa.
E em andemos: jagunço era que perpassava ligeiro; no chapadão,
os legítimos coitados todos vivem é demais devagar, pasmacez. A
tanta miséria. O chapadão, no pardo, é igual, igual a muita
gente ele entristece; mas eu já nasci gostando dele. As chuvas se
temperaram...

Digo: outro mês, outro longe na Aroeirinha fizemos
paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de
vermelho, se ria. "Ô moço da barba feita..." ela falou. Na
frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava
em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal num pau da
cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses
três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de
trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De
repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que
tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira d'água.
Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a
poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo
avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de
mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se
chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo alegria
que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe
já caída no chão, de baixo... Nhorinhá. Depois ela me deu de
presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com
talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma
estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi.

Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana
Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da
boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita
virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até - contanto que
fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros
não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos fari-

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nha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte
segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda
o liso do Sussuarâo. Ela estava chegando do arranchado de Medeiro
Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias.
Loucura duma? Para que? Eu nem não acreditei. Eu sabia que
estavamos entortando era para a Serra das Araras revinhar
aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto
era bandido em folga se escondia lá se podia azo de combinar
mais outros variáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso
do Sussuaráo não concedia passagem a gente viva, era o raso pior
havente, era um escampo dos infernos. Se é, se?Ah, existe, meu!
Eh... Que nem o Vão-do-Buraco?Ah, não, isto é coisa diversa

por diante da contravertencia do Preto e do Pardo... lambem
onde se forma calor de morte mas em outras condições... A
gente ali roi rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece?
Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até o Córrego
Catolé, cá em baixo, e de em desde a nascença do Peruassú até o
rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das
mangabeiras...

Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarao, e o
mais longe pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si
mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo
o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali
não avança, espia só o começo, só.Ver o luar alumiando, mãe, e
escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama
daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros.

Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não aguentou a
raiva em meus olhos. "Seô Medeiro Vaz, pois foi ele mesmo
próprio quem me contou..." ela teve de falar. Soturnos. Não
era possível!
Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha
roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova,
de bulgariana. As vezes eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais
quem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal serviço o
pior de todos, e também Diadorim praticava com mais jeito, mão
melhor. Ele não indagou donde eu tinha estado, e eu menti que
só tinha entradO lá por causa da velha Ana Duzuza, a fim de
requerer o significado do meu futuro. Diadorim também disso não
disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava com as mangas
arregaçadas, eu olhava para os braços dele tão bonitos braços
alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e
empoladas, de picadas das mutucas. No momento, foi que eu caí em
mim, que podia ter perguntado à Ana Duzuza alguma passagem
de minha sina por vir. Também uma coisa, de minha, fechada, eu
devia de perguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava não
tinha a coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse
por detrás o pano do destino? Não perguntei, não tinha
perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiçado? Me arrependi
de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza. Ah, tem uma
repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu
atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! só estava
era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o
senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai
dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem
diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito
perigoso?

Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto
de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do
Sussuarão a dentro, adiante, até ao fim. "E certo é. E certo"

Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que
ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda

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palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o
querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se
pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha
de se me entender um ciúme amargoso. Sendo sabendo que
Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiança muito maior
do que em nós outros todos, de formas que com ele externava
os assuntos. Essa diferença de regra agora me turvava? Mas
Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este
mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. Eu sabia que
ele, a bem dizer, só guardava memória de um amigo: Joca
Ramiro. Joca RamirO tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus
no céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas
ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da
gente o escuro, escuros.

Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por la do
Sussuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuia
sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua
família dele legitima de raça - mulher e filhos. A gente suprisse
de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá sem ser esperados,
arrastava aquele pessoal por dura surpresa - acabou-se com
aquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o Liso do Sussuarão
prestasse para nele caminho se impor? Ah, eles prosperavam em
sua fazenda feito num quartel de bronze - com que por outros
cantos não se podia remeter, pois de arredor decerto tinham
vigias, reforço de munição e récua de camaradas, pelos pontos de
passagem dificultoSa, que eles governavam, em cada grota e cada
ipueira.Truco que, de repente, do lado mais impossível, a gente
fosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Eu
escutei, e perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais
sério, temperou: -"Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se
serve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino a
tenção delc, e não devia de ter falado as pausas... Essa carece de
morrer, para não ser leleira."
Ouvi mal ouvi. Me vim d'águas frias. Diadorim era assim:

matar, se matava era para ser um preparo. O judas algum?

na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu não sabia? Não sou
homem de meio-dia com orvalhos, não tenho a fraca natureza. Mas
me venceu pena daquela Ana Duzuza, ela com os olhos para fora

- a gente podia pegar nos dedos. Coisa que me contou tantas
lorotas.Trem, caco de velha, boca que se fechava aboborosa, de
sem dentes. Raspava a rapadura com a quicé, ia ajuntando na
palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o
naco, rechupando, lambendo. A gente engrossava nôjo, salivava.
Por que é, então, que ela merecia tanto dó? Eu não tive solércia
de contradizer. As vontades de minha pessoa estavam entregues
a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. Só previ medo foi
de que ele falasse para eu mesmo ir voltar lá, por minhas
próprias acabar a Ana Duzuza. Eu não sojigava tudo por sentir. Fazia
tempo que eu não olhava Diadorim nos olhos.

Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, pelo
resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também,
Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma
decisão, e eu abri sete janelas: "Disso que você disse,
desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso..."

- eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava: "Já sei que
você esteve com a moça filha dela..." ele respondeu, seco,
quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade:

que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim
também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou
em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.

E eu quase gritei: "Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio
do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!"

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Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de
dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e
eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas
palmas. - "Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por
conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste
confim de gerais?!" ele baixo exclamou. E tive ira. "Dou!"
- falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando
a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso
Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono
definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim
sabia disso, parece que não deixava:

"Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu
pai.., ele disse - não sei se estava pálido muito, e depois foi
que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais
perto de mim.

Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em
cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre
eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura
cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em
Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a
risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o
topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que
brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os
homens, ele tinha uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o
filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi
declarar: Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo
sistema, e com a memdrla de seu pai!... Mas foi o que eu não
disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três
tentos, três tranços. -"Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato
essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe!" foi o que eu disse. E,
fechando, quase gritei: "Por mim, pode cheirar que chegue o
manaca: não vou! Reajo dessas barbaridades!"

Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de
mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às
loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a
raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como
queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.
Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de
empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em
Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas
demais vezes, sempre. E tinha nôjo maior daquela Ana Duzuza,
que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu
quase reconheci um surdO prestigio de, sendo preciso, ir lá. por mim,
reduzir a velha - só não podia maltratar era Nhorinhá, que, ao
tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não
regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto,
contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia
de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas,
talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e
logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito
que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim,
dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si.
Para isso é que o muito se fala?

E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz.
Principalmente a confirmação, que me deu, de que oTal não existe; pois
é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o
Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, oTisnado, o Côxo, o
Temba, oAzarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Ganho,
o Duha-Duhá, o Rapaz, oTristonho, o Não-sei-que-diga, O
quenunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E, senão existe,
é que se pode se contratar pacto com ele? E a idéia me

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retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o licito: que, ou
então - será que pode também ser que tudo é mais passado
revolvido remoto, no profundo, mais crônico: que, quando um
tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já
estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é
certificando o regular dalgum velho trato que já se vendeu
aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo!
Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém
algum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura
ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os
homens é mandando por intermédio do dió? Ou que Deus
quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a
ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em
figura do Outro? Que é que de verdade a gente pressente? Dúvido
dez anos. Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundo
dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas
rezas. Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha
mulher que não me ouça. Moço: toda saudade é uma espécie de
velhice.

Mas aí, eu estava contando quando eu gritei aquele
desafio raivoso, Diadorim respondeu o que eu não esperava: "Tem
discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso se haver
cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós vamos com
Medeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e filhos
pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que mereciam,
porque ele e os da laia dele têm costumes de proceder assim. Mas o
que a gente quer é só pegar a família conosco prisioneira; então,
ele vem, se vem! E vem obrigado pra combates... Mas, se você
algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a
tristeza mortal..." Disse. Tinha tornado a pôr a mão na minha
mão, no começo de falar, e que depois tirou; e se espaçou de
mim. Mas nunca eu senti que ele estivesse melhor e perto, pelo
quanto da voz, duma voz mesmo repassada. Coração isto é,

estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor, já de si, é
algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos
os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava
e morria, se bem.

Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E,
quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: "Riobaldo,
se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de
bondade que era a dela..."

Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na
ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer
direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso,
o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar
esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim
devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua
paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu
nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a
minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial
de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que
eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios,
querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou,
fraseou só face dum momento feito grandeza cantável,
feito entre madrugar e manhecer.

"Pois a minha eu não conheci..." Diadorim
prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar:
barra beiras cabeceiras... Fosse cego, de nascença.

Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer
isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me
envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença
e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Ho-

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mem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum
filho e o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-
o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas.
O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e
habilidoso. Pergunto: "Zé-Zim, por que é que você não cria
galinhas-d'angola, como todo o mundo faz?" "Quero criar
nada não..." me deu resposta: "Eu gosto muito de
mudar..." Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois
filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém
discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é - Deus
por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe,
quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra baixo
da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos
Alegres, tapera dum sitio dito do Caramujo, atrás das fontes do
Verde, o Verde que verte no Paracatú. Perto de lá tem vila
grande que se chamou Alegres - o senhor vá ver. Hoje, mudou de
nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. E em
senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Lua Risonha? O
Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro Grande? Como é
que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome
de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como
quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém de
Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e
São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é
definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo:

eu. senhor ja viu que tenho retentiva que nau falta,
recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado;
mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.
Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de
minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio,
que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente
melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes;
quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu.
Ficamos existindo em território baixío da Sirga, da outra handa,
ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu
estava com uns treze ou quatorze anos...

De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma
noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que
era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha
querido se adiar das restadas chuvas de março dia de São José
e sua enchente temposa - para pegar céu perfeito, com os
campos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro
por campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, dêpo-
depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não
achei terrível.Tangemos, esbarrando dois dias noVespê lá se
tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum
sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhos ainda se
lambuzava muita lama de ontem. "Versar viagem a cavalo sem
ter estradas só dôido é quem faz isso, ou jagunz - aquele
Jõe Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas
mais de simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria,
fortemente. Mas erro era porquanto Medeiro Vaz sempre
soube rumo prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe
Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que
a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era
despropósito, por amor daquela fartura as carnes e farinhas,
e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o
que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir
junto. "Bobou?" foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. "Bobei,
chefe. Perdão peço..." - Jõe Engrácio reverenciou.

Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a
praxe, homem baseado. As vezes vinha falando surdo, de resmão.

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Com ele, ninguém vereava. De estado calado, ele sempre
aceitava todo bom e justo conselho. Mas não louvava cantoria.
Estavam falando todos juntos? Então Medeiro Vaz não estava lá. O
que tinha sido antanha a história mesma dele, o senhor sabe?
Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande
fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e
os desmandos de jagunços - tudo era morte e roubo, e
desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível
qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu
as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de
forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do
que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que
quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não
sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez por suas
mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai,
avô, bisavô espiou até o voêjo das cinzas; lá hoje é arvoredos.
Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada um cemiteriozinho
em beira do cerrado então desmanchou cerca, espalhou as
pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia
descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam
os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de
si, ele montou em ginete, com cachos d'armas, reuniu chusma
de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saiu por esse rumo
em roda, para impor a justiça. De anos, andava. Dizem que foi
ficando cada vez mais esquisito. Quando conheceu Joca Ramiro,
então achou outra esperança maior: para ele, Joca Ramiro era
único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão
nosso, mandando por lei, de sobregovêrno. Fato que Joca
Ramiro também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em
favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons
haveres. Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor
mais não vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto
dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia
abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse,
de beijar a mão dele não se vexava. Por isso, nós todos
obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos
gerais - ele era. A gente era os medeiro-vazes.

Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme
Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do
Sussuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o
tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém
ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como
fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e
escorregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos
cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode
surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube

- vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de
araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho,
desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais,
e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha de
aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal
dos mais altos: burití - verde que afina e esveste, belimbeleza.
E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; e
um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se
chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar
os finais preparos.

Eu estava de sentinela, afastado um quarto-de-légua, num
alto retuso. Dali eu via aquele movimento: os homens,
enxergados tamanhinho de meninos, numa alegria, feito nuvem de
abelhas em flôr de araçá, esse alvoroço, como tirando roupa e
correndo para aproveitarem de se banhar no redondo azul da lagoa,
de donde fugiam espantados todos os pássaros, as garças, os

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jaburus, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava
que por saberem que no outro dia principiava o peso da vida, os
companheiros agora queriam só pular, rir e gozar seu exato. Mas
uns dez tinham de sempre ficar formando prontidão, com seus
rifles e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de
tardinha, quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, nas
palmas dos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase
igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veio me fazer
companhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais
daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá
não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era
variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que,
para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se
olhar um minutinho no espelho caprichando de fazer cara de
valentia ou cara de ruindade! Mas minha competência foi
comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo ao
senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deus
manda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador! Mas
Diadorim estava a suaves. "Olha, Riobaldo" me disse
"nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você
lembra de sua mãe; eu lembro de meu pai..." Não fale nesses,
Diadorim... Ficar calado é que é falar nos mortos... Me faltou certeza
para responder a ele o que eu estava achando. Que vontade era
de por meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele,
ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que
ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me
adoecido, tão impossível.
Dormiu-se bem. De manhãzim moal de aves e pássaros
em revôo, e pios e cantos a gente toda discorria, se
esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Os bogós de
couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas
costas dos burrinhos.Também tínhamos trazido jumentos, só modo
para carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, do capim-
grama, que tapava os pés deles. Se dizia muita alegria. Cada um
pegava também sua cabaça d'água, e na capanga o diário de se
valer com o que comer paçoca. Medeiro Vaz, depois de não
dizer nada, deu ordem de seguida. Primeiro, para adiante, foi
uma turma de cinco homens, a patrulhazinha. Constante que
com a gente estavam três bons rastreadores Suzarte, Joaquim
Beijú e Tipote - esse Tipote sabia meios de descobrir cacimbas
grotas com o bebível, o Suzarte desempenhava um faro de
cachorro-mestre, e Joaquim Beijú conhecia cada recanto dos
gerais, de dia e de noite, referido deletreado, quisesse podia mapear
planta. Saímos, semoventes. Seis novilhos gordos a gente
repontava, serviam para se carnear em rota. De repente, com a gente
se afastando, os pássaros todos voltavam do céu, que desciam
para seus lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa ah, a
papeagem no buritizal, que lequelequêia. A ver, e o sol, em pulo
de axaflço, longe na handa detrás, por cima de matos, rebentava,
aquela grandidade. Dia desdobrado.

Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem
volvência, até perto de hora do almoço. Mas o terreno
aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando menorzinhas,
arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatú, por mel e mangaba.
Depois, se acabavam as mangabarânas e mangabeirinhas. Ali onde
o campo larguêia. Os urubús em vasto espaceavam. Se acabou o
capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que
mesmo as moitas daquele de prateados feixes, capins assins.
Acabava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos
poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no
descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava
para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz,

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castigo. Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a gente
divulgou. Achante, pois, se estava naquela coisa - taperão de
tudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma terra diferente, louca, e
lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol
vertia no chão, com sal, esfaiscava. De Longe vez, capins mortos;
e uns tufos de seca planta - feito cabeleira sem cabeça.
Asexalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo
começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente.

Exponho ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já
inteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era para
ser. O que é pra ser - são as palavras! Ah, porque. Por que? Juro
que: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeito dos
companheiros, um João Bugre, me disse, ou disse a outro, do meu
lado:

- ..... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o
Capiroto."

Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz o senhor sabe.
Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada,
e chama fortemente o Cujo - e espera. Se sendo, há-de que
vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca
com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada
de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O
senhor imaginalmente percebe? O crespo - a gente se retém
- então dá um cheiro de breu queimado. E o dito - o Côxo
toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina
o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito
mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas!...
"O Hermógenes tem pautas..." Provei. Introduzi. Com ele ninguém
podia? O Hermógenes demônio. Sim só isto. Era ele mesmo.

A gente viemos do inferno - nós todos compadre meu
Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro
medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um
relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera
para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de
cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio
mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de
esforçar no meio, com fortes dôres; e até respirar custa dôr; e
nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso
no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me
contaram; e outros-as ruindades de regra que executavam em
tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando,
furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando
as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando
pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses
não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes
dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros,
exempLação de nunca se esquecer do que está reinando por
debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que
morrem... Viver é muito perigoso.

Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual,
igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miôlo mal do
sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas
poucas braças, e calcava o reafundo do areião - areia que
escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás.
Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e
restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra.
Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou
cinzento, gretoso e escabro no desentender aquilo os cavalos
arupanavam. Diadorim - sempre em prumo a cabeça - o
sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: "Hê, valentes
somos, corruscubas, sobre ninguém - que vamos padecer e
morrer por aqui..." Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se estugasse

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adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se
podia receber, De devagar, vi visagens. Os companheiros se
prosseguindo, sú prosseguindo, receei de ter um vágado como
tonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que
provinha de excessos de idéia, pois caminhadas piores eu já tinha
feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Aguentei.
Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava eu ressentia
as correias dos corrcames, os formatos A com légua-e-meia de
andada, bebi meu primeiro chupo d'água, da cabaça eu tinha
avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava
desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de
lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco,
nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do
outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os
burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar?
Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, cai
e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intrují duas
coisas, em cruz: que Medeiro Vaz estava insensato? e que o
Hermógenes era pactario! Tomo que essas traves fecharam meus
olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim
ouvi: "Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem..." Antes
palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz
dele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa,
astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de
um arco-iris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele os
gostares...

Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação
do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na
brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma,
sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os
olhos, para não reter os horizontes, que trancados não
alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar,
imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só
saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma
maldade feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e
ir, vir e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre
existido doidante, só agora pior, se destapava era o que eu tinha
rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os
outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves iam como o
costume sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio
desistidO por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o
estufo, a dôr do calor em todos os corpos que a gente tem. Os
cavalos venteando só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o
trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra.
Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho
armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescOços
para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo
o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser
poupado. Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os
cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos
perdidos. Nenhum pôço não se achava. Aquela gente toda sapirava
de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava
demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando,
procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim,
entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira.
Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas
horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A
saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por
mim, existia nas Serras dos Gerais Buritis Altos, cabeceira de
vereda - na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a
diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria

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viver ou morrer comigo que a gente se casasse. Saudade se
susteve curta. Desde uns versos:


Buriti, minha palmeira,
lá na vereda de lá:

casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar...


Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de
prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas hestavam. se
emhaçavam de renúvem, e não achei acabar para olhar para o
céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo pedação, tábua
suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via,
queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem
movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o
cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara, O senhor
sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de
parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado.
Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu
roçava longe olele em meus pensamentos. "Riobaldo não se
matou aAna Duzuia... Nada de reprovável não se fez" - falou. E
eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava
- de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suixo manso dum
córrego nas lajes - o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E
adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi.
Aqueles pássaros faziam arêjo. Gritavam contra a gente, cada um
asia sua sombra num palmo vivo d'água. O melhor de tudo é a
água. No escaldado... "Saio daqui com vida, deserteio de
jaguncismo, vou e me caso com Otacília" eu jurei, do propôsto
de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora,
eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de mim!
Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir
é um certo decreto por isso que ainda hoje o senhor aqui me
ve. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha declarado
de morto, O Miquím, um rapaz sério sincero, que muito valia
em guerreio, esbarrou e se riu: "Será que não é sorte?" Depois,
se sofreu o grito de um, adiante: "Estou cego!..." Mais
aquele, o do pior caiu total, virado tôrto; embaraçando os
passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo.
Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de
homens. Suas as caras. Credo como algum até as orêlhas dele
estavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das
capelas e papos-dos-olhos. Medeiro Vaz a nada não atendia? Ouvi
mInhas veias. Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de
Diadorim - aquelas peças doeram na minha mão - tive que
fiquei um instante no inclinado. "Daqui, deste mesmo de
lugar, mais não vou! Só desarrastado vencido..." mas falei.
Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a
firme, com aquela beleza que nada mudava. "Pois vamos
retornar, Riobaldo... Que vejo que nada campou viável.. ." "Tal
tempo!" troquei, mais forte, rouco como um guariba. Foi aí
que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e
se agoniou. Eu apeei do meu. Medeiro Vaz estava ali, num aspeito
repartido. Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo
o resultado. "Nós temos de voltar, chefe?"- Diadorim
solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente
sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro
querer, a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz,
então - por primeira vez abriu dos lados as mãos, de nada não
poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi,
entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas
era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E - o senhor

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mais saiba de supêto já eu estava remoçado, são, disposto!
Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim
apalpou meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois
eu soube - que, a idéia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele
Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se
mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de
lá, do estralar do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é,
uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais
grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a
carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos.
Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das
estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares
deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com
outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de
fome - caça não achávamos até que tombaram à bala um
macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam
comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto juro
ao senhor enquanto estavam ainda mais assando, e
manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o
rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dosAlves!
Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de
Deus, que nú por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela
mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também
escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi
assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse:

"Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo
de não morrermos todos..." Não se achou graça. Não, mais não
comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não
tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher
rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam.
"Aí, então, é a fome?" uns xingavam. Mas outros
conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua
de lá, um mandiocal sobrado. "Arre que não!" ouvi
gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de
ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse
tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de
bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o
pepêgo esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins
e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela
terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada.
Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dôres, pensaram
que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes,
sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e
danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria,
garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas pudemos
chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se
pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia
de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. "Quem quiser
bulir com ela, que me venha!" Diadorim garantiu. "Que
só venha!" eu secundei, do lado dele. Matou se capivara
gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití,
sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuàrana, e
que recebe o do Jenipapo e aVereda-do-Vitorino, e que verte no
Rio Pandeiros esse tem cachoeiras que cantam, e é de agua tão
tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: É
verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remelêja, vi.
Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo
campo, as flores do capitão da-sala todas vermelhas e alaranjadas,
rebrilhando estremecidas, de reflexo. "É o cavalheiro
da sala..." Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto

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de nós, sacudiu a cabeça. - "Em minha terra, o nome
dessa" - ele disse - "é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso...

Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfregada.
Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho
mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso.
Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota - quase que
tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada:

comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o
mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é
trovão em outubro e a tulha cheia de arroz.Tudo que eu mesmo, do
que mal houve, me esquecia.Tornava a ter fé na clareza de Medeiro
Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança - o senhor sabe
não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da
pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otadilia, pedir
em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser
cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe: Deus
come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o
prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes
gerais são formosos.

Talmente, também, se carecia de tomar repouso e aguardo.
Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada,
arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do
Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acarí, em toda a
parte a gente era recebida a bem.Tardou foi para se ter sinal dos
bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os
moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz não maltratava
ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem
consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as
pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros
presentes. Mas os hermógenes e os cardões roubavam, defloravam
demais, determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam
feito peste. Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se
soube, e eram um mundo enorme de má gente. E o Ricardão?
Estivesse, esperasse. Dando meias andadas, nós chegamos num
ponto-verdadeiro, num Burití-do-Zé. Dono de lá, Sebastião
Vieira, tinha curral e casa. E guardava munição da gente: mais de
dez mil tiros de bala.
Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses
todos?A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo
perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo
Franco esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era
um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não
guerrear, não se esperdiçar porque as nossas armas guardavam um
destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em
vereda, como os buritís ensinam, a gente varava para após. Se
passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata
ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São
Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse,
até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que
se tinha de estudar, era avançar depressa nas boas passagens nas
divisas, quando militar vinha cismado empurrando. É preciso de
saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás,
o chapadão por lá vai terminando, despenha.Tem quebra-
cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi
lugares de terra queimada e chão que dá som - um estranho.
Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um
homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no Jalapão
- quem conhece aquilo? tabuleiro chapadoso, proporema.
Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O
menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi
o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial
baiano, inteira, que marchava de mudada - homens, mulheres,

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as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a
imagem da igreja - tendo até bandinha-de-música, como vieram
com todos, parecendo nação de maracatú! Iam para os
diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: ".. .nos rios..." Uns tocavam
jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas sacos
de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O
padre, com chapéu-de-couro prâ-trasado. Só era uma procissão
sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das
alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo
da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no
conforto de religião, acompanhamos esses até á Vila da Pedra-de-
Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na
seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dOS baianos dava
parecença com uma festa .No sertão, até enterro simples é festa.

As vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se
reunirem. em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para
se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e
pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá
se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem
ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à
hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre
meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: "Riobaldo, a
colheita é comum, mas o capinar é sozinho..." ciente me
respondeu.
Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos.
O senhor vá lá, na Jijujá. Vai agora, mês de junho. A estrela-d'alva
sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana.
Senhor vê, no escuro, um quebra-peito - e é ele mesmo, já
risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia
de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei,
coração tão branco e grôsso de bom, que mesmo pessoa muito
alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.

Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de
Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas
cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos
vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, querendo só o
Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá.
Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de
comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em
redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional
chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo,
baldearam a moça para o hospício de dôidos, na capital, diz-se que lá
ela foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o
direito. Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o
que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo,
já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os
doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas,
feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados,
idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor
enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nôjo.
Eu sei: nôjo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se
tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita,
rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem
virtude - requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum.
Vindo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o
que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas esteja
bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Se
não, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só
quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir
em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e
enfermidades. Guerra diverte - o demo acha.

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Mire, veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque
marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles
vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e
sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia
nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que
explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me
dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso
A próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?!
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é
possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a
gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo
das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar é
todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar
um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus,
então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe
dôr. E a vida do homem está presa encantoada erra rumo, dá
em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dôr
não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos não dói sem
precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não
nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver
nascimento. Medo mistério, O senhor não vê? O que não é Deus,
é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o
demônio não precisa de existir para haver a gente sabendo
que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é
um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu
é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo
vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu
modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O
que eu invejo é sua instrução do senhor...

De Arassuaí, eu trouxe uma pedra de topázio.
Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De
mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso?
Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu
passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a
gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem poder
sono. Diadorim era aquela estreita pessoa não dava de
tranSpareCer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho
que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e
não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto
contrario absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da
razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra
de topazio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por
mimo; e hoje ela se possui e em mão de minha mulher!

Ou conto mal? Reconto.

Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de
varzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalos se
espairassem por ter manga natural, onde se encostar, e currais
falsos, de pegar gado brabeza. Natureza bonita, o capim macio.
Me revejo, de tudo, daquele dia a dia. Diadorim restava um
tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ela. "Seja por
ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante. Desta vez, a gente
tange guerra..." - pronunciou, a prazer, como sempre quando
assim, em véspera. Mas balançou a cabaça: tinha um trem
dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem
serventia, só para produzir gastura na gente. -"Bota isso fora,
Diadorim!" - eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um
hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal,
guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com
a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada
de capricho, mas que agora sendo para nôjo. E, como me deu

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sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra
nunca, e fomos apanhar água num poço, que ele me disse. Era
por esconso por uma palmeira duma de nome que não sei, de
curta altura, mas regrossa, e com cheias palmas, reviradas para
cima e depois para baixo, até pousar no chão com as pontas.
Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um coberto,
remedando choupà de índio. Assino que foi de avistarem umas
assim que os bugres acharam idéia de formar suas tocas. Aí a
gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava, O poço
abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali
intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que
haja que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte.
Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me
declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu?Asco!
Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem
importância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta
desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, qual, se viu
um bicho rã brusca, feiosa: botando bolhas, que à lisa
cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para
trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por
aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e
tornar a aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser
e se saber pessoa culpada?

No que vim para um grupo de companheiros, esses estavam
jogando buzo, enchendo folga. Por simples que a companheirada
naqueles derradeirüs tempos me caceteava com um enjoo, todos
eu achava muito ignorantes, grosseiros cabras. Somente que na
hora eu queria a frouxa presença deles - fulão e sicrão e beltrão
e romão pessoal ordinário. A tanto, mesmo sem fome,
providenciei para mim uma jacuba, no come-calado. E quis que até
me perguntei pensar na vida: " Penso?" Mas foi no instante
em que todos levantaram as caras: só sendo um rebuliço, acolá,
na virada que principiava a vertente - onde é que estavam uns
outros, que chamavam, muito, acenando especial. Pois fomos,
ligeiros ver o que, subindo pelo resfriado.

Passava era uma trópa, os diversos lotes de burros, que
vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o arneiro-mestre
relatando uma infeliz noticia, dessas da vida. - "Ele era alto,
feições compridas, dentuço?" Medeiro Vaz exigiu certeza.
"Olhe, pois era" o arneiro respondeu "e, antes de morrer,
deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, por
que aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos
grande pena... "A gente, em volta, se consternava. Aqueles tropeiros,
no Cururú, tinham achado o Santos-Reis, que morria urgente;
tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, mais, a
alma descanSasse. A gente tirou chapéus, em voto todos se
benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta -
ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de
Sô Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na outra
grande banda do Rio.
- "Agora alguem carece de ir..." Medeiro vai, decidiu
olhando salteado; amém! nós apreciávamos. Eu espiei,
caçando Diadorim, que ali bem defronte de mim se portava, mesmo
segurava uma vara-de-ferrãO, considerei nele certo propósito,
de despique gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei
passo: "Se sendo ordens, Chefe, eu gostava era de ir..." Medeiro
Vaz limpou a goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais
negaceando prosápia: duvidoso d'ele consentir; pelo bom
atirador que eu era, o melhor e mór, necessitavam de mim, haviam
de querer me mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se
deu o que se deu - o isto é. Medeiro Vaz concordou! - "Mas
carece de levar um companheiro..." - ele propôs. Aí em tanto

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eu não devia de me calar, deixar alheia a escôlha do segundo, que
não me competia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certo
queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de fim,
que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço: "Sendo
suas ordens, Chefe, o Sesfrêdo comigo vai..." falei. Nem
olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e
despachou, em duríssimo: "Vai, então, e no caminho não
morre!"A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já acusava
doença a quase acabada no peso do fôlego e no desmancho dos
traços. Estava amarelo almecegado, se curvava sem querer, e
diziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igual eu não
conheci. Quero ver o homem deste homem!... Medeiro Vaz -
o Rei dos Gerais...

Por que era que eu estava procedendo a-toa assim? Senhor,
sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o
repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado
noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei,
para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só
no ultimo derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de
nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também,
não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E
dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu
acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível.
Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete
padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e
pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não
esfria! O senhor me releve tanto dizer.

Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, eu selando
meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entriste
eia. Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie duma
vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele baixinho:
- "Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca
Ramires." A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu:
"Viagem boa, Riobaldo. E boa-sorte..." Despedir dá febre.

Galopando junto com o Sesfrêdo, larguei aquele lugar do
Burití das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então
eu decifrei meu arranque de ter querido vir com o Sesfrêdo.
Que ele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras do
Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e que era a mocinha
de cabelos louros. "Sesfrêdo, me conta, me fala nesse
acontecer..." nem bem cem braças andadaç eu já pedia a ele Era
como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor.
- "E você não volta para lá, Sesfrêdo? Você aguenta o existir?"
- perguntei. "Guardo isso, para as vezes ter saudade.
Berimbau! Saudade, só..." e ele alargou as ventas, de tanto riso.
Vi que a estória da moça era falsa. De inventar pouco se ganha.
Regra do mundo é muito dividida, O Sesfrêdo comia muito. E
sabia assoviar seguido, copiando o de muitos pássaros.

Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e
municípios, jogamos uma viagem por este Norte, meia geral. Assim
conheço as províncias do Estado, não há onde eu não tenha
aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria Barreiro
Claro Cabeça de Negro Córrego Pedra do Gervásio
Acarí Vieira e Fundo buscando jeito de encostar no de
São Francisco. Novidade não houve. Passamos, numa barca. Só
sempre bater para o nascente, direitamente em cima de
Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal nosso
perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca, brabas terras vazias
do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos em sua janela
um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho era amigo,

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executou o recado. Daí a cinco madrugadas, retornamos. Era
para vir alguém, quem veio foi João Goanhá, próprio. E as
descrições que deu foram de todas as piores. Só Candelário? Morto
em tiroteio de combate, metralhadoras tinham serrado o corpo
dele, de esguêlha, por riba da cintura. O Alípio, preso, levado
para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? Ah, perseguido por
uma soldadesca, tivera de se escapar para a Bahia, pela proteção
do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá era quem
ainda estava. Comandava saldo de uns homens, os poucos. Mas
coragem e munição não faltavam. "E os Judas?" perguntei,
com triste raciocínio: por que era que os soldados não deixavam
a gente em paz, mas com aqueles não terçavam? "Se diz que
eles têm uma proteção preta..." João Goanhá me esclareceu:
"O Hermógenes fez o pauto. É o demônio rabudo quem pune
por ele..." Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza do meu medo
e pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri.

Ainda disse João Goanhá que estávamos em brevidade.
Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham resolvido passar o
Rio em dois lugares, e marcharem em cima de Medeiro Vaz, para
acabar com ele de uma vez, no país de lá. Onde era que o perigo,
Medeiro Vaz precisava de nós.

Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do
Salto, e esbarramos com tropa de soldados - tenente Plínio.
Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande tenente Rosalvo.
Fogo no JatobáTorto sargento Leandro.Volteamos. Sobre aí,
me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos. No
formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso.
Eu era um homem restante trivial.A verdade que diga, eu achava
que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não
gostava. Como é, então, que um se repinta e se sarrafa? Tudo
sobrevém. Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo de
todos.Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como os
meses de seca e os de chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse
com a minha, esses também não sentindo e não pensando. Se
não, por que era que eram aqueles aprontados versos - que a
gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas
jornadas, à alegria fingida no coração?:

Olererê, baiana...
eu ia e não vou mais:
eufaço
que vou
Ri dentro, oh baiana!
e volto do meio pra trás...

João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de
estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa. Ele me disse:

"Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerra grande, eu
acho que só Joca Ramiro é que era capaz.. "Ah, mas João Goanhá
também tinha suas cartas altas. Homem de grito grosso. E,
mesmo ignorante analfabeto, de repente ele tirava, sei não de onde,
terríveis mindinhas idéias, mortes diversas. Assim a gente
experimentava, cá e cá, falseando fuga. Os campos-gerais ali também
tem. Tombadores. Arre, os tremedais; já viu algum? O chão deles
consiste duro enxuto, normal que engana; quem não sabe o
resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, cavalama. Seja
sem espera, quando já estão meio no meio, aquilo sucrepa: pega
a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na
frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca, rebole ocultado um
semifundo, de brejão engulidor... Pois, em roda dali, João Goanhá
dispôs que a gente se amoitasse três golpes de homens
tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os do Sargento Lean-

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dro, esses eram os menos, e um guia pagavam, por conhecer o
caminho firme. Mas fomos lá, às pressas espalhamos de lugar os
ramos verdes de árvore, que eles tinham botado para a certa
informação. No depois, vinham os do tenente.Tenente, tenente,
tu quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos nossos, uns, acolá,
deram tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dos praças se avexou.
Ave, e pronto, de repente foi: a casca de terra sacudia, se rachou
em cruzes, estalando, em muitos metros - balofou. Os cavalos
entornados era como despejar prateleiras cheias e os
soldados dando gritos, se abraçavam com os animais caintes, ou
com o ar, uns a esmo desfechavam mosquetão. Mas encalcados
se afundando, pra não mais. A gente, se queria, mirava, ainda
acertava neles. Coisas que vi, vi, vi "i... Eu não atirei. Não
tive braçagem. Talvez tive pena."

Tanto por tanto, daí se encachorraram mais em nós, por
beber vinganças. De campos e matas, vargens e grotas, em cada
ponto para trás, dos lados e adiante da gente, ei eram só
soldados, montão, se gerando. Furado-do-Meio. Serra do Deus-Me-Livre.
Passagem da Limeira. Chapada do Covão. Soldo Nelson morreu.
Arduininho morreu. Morreram o Figueiró, Batata-Roxa, Dávila
Manhoso, o Campêlo, o Clange, Deovídio, Pescoço-Preto,
Tuquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro Bernardo acho que foram
esses, todos. Chapada do Sumidouro. Córrego do Poldro. Mortos mais
uns seis. Corrijo: com outros, que pegos presos se disse que
foram acabados! Doideamos. A Bahia estava cercada nas portas.
Achavam de tomar regalia de desforra na gente, até qualquer
molambo de sujeito, paisano morador. Ah, às vezes, perdiam
ligeiro essa graça... Gerais da Pedra. Lá, o Eleutério se apartou da
gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateu em porta duma cafua,
por esclarecer. O capiau surgiu, ensinou alguma coisa, errada.
Eleutério agradeceu, deu as costas, veio andando uns passos.
O capiau então chamou. Eleutério virou para trás, para ouvir o
que havia, e levou na cara e nos peitos o cheio duma carga de
chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava os
braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas, que cresciam.
O cabelo dele aumentou em pé. E a soldadesca atirava, de
emboscados no mato do córrego, e na beira do cerrado, da outra
banda. O capiau se encobriu detrás do fôrno de assar biscoito
- de lá fazia pontaria com a espingarda e balas nossas
levantavam terra ao redor dali, feito um ciscado de cachorro grande.
Dentro da cafua também restavam outros soldados; que deram
contas a Deus. Ataliba, com o facão, pregou o capiau na taipa da
cafua, ele morreu mansinho, parecia um santo. Ficou lá,
espetado. Nós - eh - bom. Conseguimos aragem. Até em um ponto
de a salvo conversarmos.

Serra Escura. Nem munição nem de-comer não sobravam. De
forma que a gente carecia de se separar, cada um por seu risco,
como pudesse caçar escape. Se esparramavam os goanhás. De si
por si, quem vivesse viesse para cá do Rio, para reunião: na
juntura da Vereda Saco dos Bois com o Ribeirão Santa Fé. Ou ir de
direto para onde estivesse Medeiro Vaz. Ou, caso o inimigo
rondasse perto demais, então no Burití-da-Vida, São Simão do Bá,
ou mais em riba, ali onde o Ribeirão Gado Bravo é vadeável. Ao
que João Goanhá mandou. A pressa era pressa. O ar todo do
campo cheirava a pólvora e a soldados. Diante de mim, nunca
terminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco ,sarado,
cabra velho guerreiro: ele boiava língua em boca aberta. E medo,
meu, medi muito maior. Se despedimos. Escorregando sem rumo,
eu fui, vim, o Sesfrêdo comigo também, viemos. Com a graça de
Deus, saímos fora da roda do perigo. Chegamos no Córrego
Cansanção, não longe doArassuaí. Por durante um tempo,
careriamos de ter algum serviço reconhecido, no viver tudo cabe.

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Nossas armas, com parte das roupas, campeamos um seguro
lugar, deixamos escondidas. Aí, a gente se ajustou no meio do
pessoal daquele doutor, que estava na mineração, que eu já disse e o
senhor sabe.

Por que não ficamos lá? Sei e não sei. Sesfrêdo esperava de
mim toda decisão. Algum remorso, de não se cumprir de ir,
de desertados? Não vê que não, desafasto. Gente sendo dois,
garante mais para se engambelar, etcétera de traição não sopra
escrúpulos, como nem de crime nenhum, não agasta: igual
lobisomem verte a pele. Só se, companheiros sohrantes, a gente amiúda
no ajuizar o desonroso assunto, isto sim, rança o descrédito de se
ser tornadiço covarde. Mas eu podia rever proveito, caçar de
voltar dali para a casa-grande de Selorico Mendes, exigir meu
estado devido, na Fazenda São Gregório. Temeriam! Assim e
silva, como em outro tempo, adiante, podia flauteado comparecer
no Buritís Altos, por conta de Otacília continuação de amor.
Quis não. Suasse saudade de Diadorim? A ponto no dizer,
menos. Ou nem não tinha. Só como o céu e as nuvens lá atrás de
uma andorinha que passou. Talvez, eu acho, também, que foi
juvenescendo em mim uma inclinação de abelhudice: assaz eu
queria me estar misturado lá, com os medeiro-vazes, ver o fim
de tudo. Em mês de agosto, buriti vinhoso... Arassuaí não eram
os meus campos... Viver é um descuido prosseguido. Aí, as
noites cambando para o entrar das chuvas, os dias mal. Desenguli.

"Tempo de ir. Vamos?" eu disse para Sesfrêdo. "Vamos,
demais!" o Sesfrêdo me respondeu.

Ah, eh é não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é.
Pois ia me esquecendo: oVupes! Não digo o que digo, se o do
Vupes não orço que teve, tãomente. Esse um era estranja,
alemão, o senhor sabe: clareado, constituido forte, com os olhos
azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar indivíduo, mesmo.
Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria. Hê, hê,
com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não
somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu
negócio dele no sertão que era o de trazer e vender de tudo
para os fazendeiros: arados, enxadas, debulhadora, facão de aço,
ferramentas rógers e roscofes, latas de formicida, arsenico e
creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar
agua, com torre, ele tomava empreitada de armar. Conservava
em si um estatuto tão diverso de proceder, que todos a ele
respeitavam. Diz-se que vive até hoje, mas abastado, na capital e
que é dono de venda grande, loja, conforme prosperou. Ah, o
senhor conheceu ele? Ô titiquinha de mundo! E como é mesmo
que o senhor frasêia? Wusp? É. Seo Emilio Wuspes... Wüpsis...
Vupses. Pois esse Vupes apareceu lá, logo vai me reconheceu,
como me conhecia, do Curralinho. Me reconheceu devagar,
exatão. Sujeito escovado! Me olhou, me disse: "Folgo. Senhor
estar bom? Folgo..." E eu gostei daquela saudação. Sempre gosto
de tornar a encontrar em paz qualquer velha conhecença -
consoante a pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados, mas
parece que escolhidas só as peripécias avaliáveis, as que
agradáveis foram. Alemão Vupes ali, e eu recordei lembrança daquelas
mocinhas a Miosétis e a Rosa'uarda as que, no
Curralinho, eu pensava que tinham sido as minhas namoradas. "Seo
Vupes, eu também folgo. Senhor também estar bom? Folgo...."
- que eu respondi, civilizadamente. Ele pitava era charutos.
Mais me disse: "Sei senhor homem valente, muito valente...
Eu precisar de homem valente assim, viajar meu, quinze dias,.
sertão agora aqui muito atrapalhado, gente hraba, tudo..."
Distampei, ri que ri, de ouvir.

Mas o mais garboso fiquei, prezei a minha profissão. Ah, o
bom costume de jagunço. Assim que é vida assoprada, vivida por

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cima. Um jagunceando, nem vê, nem repara na pobreza de
todos, cisco. O senhor sabe: tanta pobreza geral, gente no duro ou
no desânimo. Pobre tem de ter um triste amor à honestidade.
São árvores que pegam poeira. A gente às vezes ia por aí, os cem,
duzentos companheiros a cavalo, tinindo e musicando de tão
armados - e, vai, um sujeito magro, amarelado, saía de algum
canto, e vinha, espremendo seu medo, farraposo: com um
vintém azinhavrado no conco da mão, o homem queria comprar
um punhado de mantimento; aquele era casado, pai de família
faminta. Coisas sem continuação... Tanto pensei, perguntei:

"Para que banda o senhor mora?" E o Vupes respondeu: "Eu,
direto, cidade São Francisco, vou forte." Para falar, nem com uma
pontinha de dedo ele não bulia gesticulado. Então, era mesmo
meu rumo - aceitei - o destinar! Daí, falei com o Sesfrêdo,
que quis também; o Sesfrêdo não presumia nada, ele naquilo não
tinha próprio destaque.

Mas os caminhos não acabam.Tal por essas demarcas de
Grão-Mogol, Brejo das Almas e Brasília, sem confrontos de
perturbação, trouxemos o seoVupes. Com as graças, dele aprendi, muito.
O Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo tinha sangue-frio. O
senhor imagine: parecia que não se mealhava nada, mas ele
pegava uma coisa aqui, outra coisinha ali, outra acolá uma morangà,
uns ovos, grelos de bambú, umas ervas e, depois, quando se
topava com uma casa mais melhorzinha, ele encomendava pago
um jantar ou almoço, pratos diversos, farto real, ele mesmo
ensinava o guisar, tudo virava iguarias! Assim no sertão, e ele
formava conforto, o que queria. Saiba-se! Deixamos o homem no
final, e eu cuidei bem dele, que tinha demonstrado a confiança
minha...

Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim
voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos já
andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar.
Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua,
lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada.
Viemos pelo Urucúia. Rio meu de amor é o Urucúia. O chapadão
- onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com o capim verdeado.
Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas espatifadas. Ar que
dá açôite de movimento, o tempo-das-águas de chegada,
trovoada trovoando. Vaqueiros todos vaquejando. O gado esbravaçava.
A mal que as notícias referiam demais a cambada dos Judas,
aumentável, a corja! "A tantos quantos?" eu pondo meu
perguntar. Os muitos! Uma monarquia deles.., os
vaqueiros respondendo.

Mas Medeiro Vaz não se achava, os nossos, deles ninguém
não sabia bem.Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só
deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneo das
coisas, aproximar a natureza. Estou entendido. Esbarramos num
varjeado, esconso lugar, por entre o da-Garapa e o da-Jibóia, ali
tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que a água é
venenosa. E isso de que me serve? Água, águas. O senhor verá
um ribeirão, que verte no Canabrava - o que verte no Taboca
que verte no Rio Preto, o primeiro Preto do Rio Paracatú
- pois a daquele é sal só, vige salgada grossa, azula muito: quem
conhece fala que é a do mar, descritamente; nem boi não gosta,
não traga, eh não. E tanta explicação dou, porque muito ribeirão
e vereda, nos contornados por aí, redobra nome. Quando um
ainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva. Só Preto, já molhei
mão nuns dez. Verde, uns dez. Do Pacarf , uns cinco. Da Ponte,
muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns sete por nome de Formoso.
São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma porção. O sertão é do
tamanho do mundo.

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Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o
Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E
agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a
fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa,
por debaixo dela, socavado no antro do chão, lá judiaram com
escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não
mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se
ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado,
isto sim. O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte
por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam
tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem
inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam
temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso. Eu
acho, que.

Assim, olhe: tem um marimbú um brejo matador, no
Riacho Ciz lá se afundou uma boiada quase inteira, que
apodreceu; em noites, depois, deu para se ver, deitado a fora, se
deslambendo em vento, do cafôfo, e perseguindo tudo, um mi-
milhão de lavareda azul, de jadelafo, fogo-fá. Gente que não sabia,
avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois essa estória foi
espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que eu ou
o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se
acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um
padre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre não ter
consentido de casar um filho com sua própria mãe. A que, até,
cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê hê.

Agora, a forca, eu vi forca moderna, esquadriada,
arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boa lei, parda:

sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão do Bá,
perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdia forca de
enforcar, construída aprovada ali particularmente, porque não
tinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagens era
dificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então, usavam.
Às vezes, da redondeza, vinham até trazendo o condenado, a
cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veio morar
próximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, em cada útil caso,
dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo, com cruz. No
mais nada.

Semelhante não foi, quando um homem, Rudugério de
Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado um
filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, que
roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí, então, em vez de
cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os dois
vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles, distribuído de
foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as fôices, urdindo com cordões
de embira e várias flores. E enqueriram o cadáver paterno em
riba da casa casinha boa, de têlhas, a melhor naquele trecho.
Daí, reuniram o gado, que iam levando para distante vender. Mas
foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou. Assim, prisioneiros
nossos. Demos julgamento. Ao que, fosse Medeiro Vaz, enviava
imediato os dois para tão razoável forca. Mas porém, o chefe
nosso, naquele tempo, já era o senhor saiba : Zé Bebelo!

Com Zé Bebelo, ôi, o rumo das coisas nascia inconstante
diferente, conforme cada vez. A papo: "Co-ah! Por que foi
que vocês enfeitaram premeditado as fôices?" ele interrogou.
Os dois irmãos responderam que tinham executado aquilo em
padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em adiantado
remitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito.Tudo que
Zé Bebelo se entesou sério, em pufo, empolo, mas sem rugas em
testa, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro, Tal, tal,
disse: "Santíssima Virgem..." E o pessoal todo tirou os cha-

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péus, em alto respeito. "Pois, se ela perdoa ou não, eu não sei.
Mas eu perdôo, em nome dela a Puríssima, Nossa Mãe!"
Zé Bebelo decretou. "O pai não queria matar? Pois então
morreu - dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra de resumir
circunstância desta decisão, sem admitir apelo nem revogo, legal
e lealdado, conformemente! ..." Aí mais Zé Bebelo disse, como
apreciava: "Perdoar é sempre o justo e certo..." pirlimpim,
pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de algum castigo,
ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, a qual
pronto revendemos, embolsamos. E desse caso derivaram
também uma boa cantiga violeira. Mas deponho que Zé Bebelo
somente determinou assim naquela ocasião, pelo exemplo pela
decência. Normal, quando a gente encontrava alguma boiada
tangida, ele cobrava só imposto de uma ou umas duas reses, para
o nosso sustento nos dias. Autorizava que era preciso se respeitar o
trabalho dos outros, e entusiasmar o afinco e a ordem, no meio
do triste sertão.

Zé Bebelo ah. Se o senhor não conheceu esse homem,
deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza
dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de
tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já
nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de
ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz,
conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava,
diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz.
Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Dó, que tinha
afastado todo o mundo e meneava um facãozão. Como gritou:

"Você quer vermelho? Te racho, fré!"Ao de que, o Leôncio Dó
decidiu, deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve e sabe?
Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue
intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode.
E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, cabra da
Zagaia, recomendado. "Tua sombra me espinha, joazeiro!"

Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar o sujeito, sentar
nele uma surra de peia. Atual, o cabra confessou: que tinha
querido vir drede para trair, em empreita encobertada. Zé Bebelo
apontou nos cachos dele a máuser: estampido que espatifa as
miolagens foram se grudar longe e perto. A gente pegou
cantando a Moda-do-Boi.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dansava as dansas,
exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à
vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só
não praticava de buzo nem baralho declarando ter receios,
por atreito demais a vicio e riscos de jogo. Sem menos, se
entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a
chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. Gostava, com
despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos

- como se mais esse todo Brasil, territórios e falava, horas,
horas. "Vim de vez!" disse, quando retornou de Goiás. O
passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte
de fraco não dava, nenhão, nunca. Certo dia, se achando
trotando por um caminho completo novo, exclamou: "Ei, que as
serras estas as vezes até mudam muito de lugar!..." sério. E
era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, hã, hã.
Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria,
tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado,
revolver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos bradus:
"Viva a lei! Viva a lei...!" e era o pipôco-paco. Ou:

"Paz! Paz!" gritava também; e bala: se entregaram mais dois.

"Viva a lei! Viva a lei!..." Há-de-o, que quilate, que lei, alguém
soubesse? Tanto aquilo, sucinto, a fama correu. Dou-lhe qual:

que, uma vez, ele corria a cavalo, por exercicio, e um veredeiro

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que isto viu se assustou, pulou de joelhos na estrada,
requerendo: "Não faz vi valei em mim não, mor-de-Deus, seu Zé Bebelo,
por perdão..." E Zé Bebelo jogou para o pobre uma cédula de
dinheiro; gritou: "Amonta aqui, irmão, na garupa!"
trouxe o outro para com a gente jantar. Esse era ele. Esse era um
homem. Para Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre
quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta vida que eu
mais prezei e apreciei.

Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha contando.
A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões e varjas, o
Sesfrêdo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, inchou o
tempo, para chover. Chuva de desenraizar todo pau, tromba: chuvão
que come terra, a gente vendo. Quem mede e pesa esses demais
d'água? Rios foram se enchendo. Apeamos no Marcavão, beira
do do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país fechado. Nós
chegamos em tempo.

Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz já
tava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se dizer, nen
Diadorim me abraçou nem demonstrou um salves por minha
volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera má tomavam conta da
gente. "O mais é o pior: é que tem inimigo, próximo,
tocaiando..." Alaripe me disse. Muito chovido de noite as
árvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, com umidade
Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi o
senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por resguardar a
pessoa do rumo donde vem o vento o bafe-bafe.
Acampávamos debaixo de grandes árvores, O barulhim do rio era de bicho
em bicheira. Medeiro Vaz jazente numa manta de pele de bode
branco aberto na roupa, o peito, cheio de cabelos grisalhados.
A barriga dele tinha inflamado muito, mas não era de hidropisia.
Era de dôres. Quando vislumbrou de mim, aí armou no se
aprumar, pelejando para me ver. Os olhos - o alvor, como miolo de
formigueiro. Mas se abriu, arriou os braços, e mediu o chão com
suas costas. "Está no bilim-bilim" eu pensei. Ah, a cara
arre de amarela, o amarelamento: de palha! Assim desse jeito ele
levou o dia quase a termo.

A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou
adeparte; ele tramava as lágrimas. "Amizade, Riobaldo, que
eu imaginei em você esse prazo inteiro.., e apertou minha
mão. Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: Acode,
que o chefe esta no fatal!" Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo
tudo. E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos.
Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito:

- uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em
volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para
proteger a morte dele. Medeiro Vaz o rei dos gerais -; como
era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas,
escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por
debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do corpo.
E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou
com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou:

"Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitanêia?..." Com a
estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por
pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em
mim, e me escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro
e o vidrento. Coração me apertou estreito. Eu não queria ser
chefe! "Quem capitanêia..."Vi meu nome no lume dele. E ele
quis levantar a mão para me apontar. As veias da mão... Com que
luz eu via? Mas não pôde. A morte pôde mais. Rolou os olhos;
que ralava, no sarrido. Foi dormir em rede branca. Deu a venta.

Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva,
procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e

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um brandão de tocha. Eu tinha passado por um susto. Agora, a
meio a vertigem me dava, desnorteado na vontade de falar
aqueles versos, como quem cantasse um coreto:

Meu boi preto mocangueiro,
árvore para te apresilh ar?
Palmeira que não debruça:
burití sem entortar...
Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas!

Cobrimos o corpo com palmas de burití novo, cortadas
molhadas. Fizemos quarto, todos, até ao quebrar da barra. Os
sapos gritavam latejado. O sapo-cachorro arranhou seu rouco.
Alguma anta assoviava, assovio mais fino que o relincho-rincho
dum poldrinho. De aurora, cavacamos uma funda cova. A terra
dos gerais é boa.

Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme:

"Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as
derradeiras ordens..."

Todos estavam lá, os brabos, me olhantes - tantas meninas-
dos-olhos escuras repulavam: às duras grão e grão - era
como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso
chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. Assim
estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não
queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas
capacidades. A desgraça, de João Goanhá não ter vindo! Rentemente,
que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Enguli cuspes.
Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: - "Não
posso... Não sirvo..."

- "Mano velho, Riobaldo, tu pode!"
Tive testa. Pensei um nome feio. O que achassem,
achassem! mas ninguem ia manusear meu ser, para brincadeiras...

"Mano Velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós
sabemos a tua valia. - Diadorim retornou. Assim instava, mão
erguida. Onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam
assentimento. - "Tatarana! Tatarana!..." uns pronunciaram; sendo
Tatarana um apelido meu, que eu tinha.

Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do direito
de fazer aquilo comigo. Eu, que sou eu, bati o pé:
- Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e
executar, não me ajusto de produzir ordens...

Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão.
Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços
quando um perigo poja? sabe os quantos lobos? Mas, eh,
não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que
matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor
pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre,
neste vale de lágrimas. Tudo rosna. Entremeio, Diadorim se
maisfez, avançando passo. Deixou de me medir, vigiou o ar de
todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar só com um
rabeio ligeiro de mirada tinha gateza para contador de gado.
E muito disse:

- A pois, então, eu tomo a chefia. O melhor não sou,
oxente, mas porfio no que quero e prezo, conforme vocês todos
também. A regra de Medeiro Vaz tem de prosseguir, com tenção!
Mas, se algum achar que não acha, o justo, a gente isto decide a
ponta d'armas...

Hê, mandacarú! Ôi, Diadorim belo feroz! Ah, ele conhecia
os caminhares. Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa
é que vale... Muitos, ali, haviam de querer morrer por ser chefes
- mas não tinham conseguido nem tempo de se firmar quente

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nas idéias. E os outros estimaram e louvaram: "Reinaldo! O
Reinaldo!" foi o aprôvo deles. Ah.
Num nó, nisto, nesse repente, desinterno de mim um nego
forte se saltou! Não. Diadorim, não. Nunca que eu podia
consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e concebia
por ele a vexável afeição que me estragava, feito um mau amor
oculto - por mesmo isso, nimpes nada, era que eu não podia
aceitar aquela transformação: negócio de para sempre receber
mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, hem?
Nulo que eu ia estuchar. Não, bem, clamei que como um sino
desbadala:

"Discordo."

Todos me olhassem? Não vi, não tremi.Visivo só vi
Diadorim resumo do aspecto e esboço dele para movimentos: as
mãos e os olhos; de reguada. Como em relance corri cálculo, de
quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar e uma
halazinha, primeira, botada na agulha da automática ah, eu
estava com milho no surrão! De devagar, os companheiros, os
outros, não se buliram, tanto esperavam; decerto que saldavam
antipatia de mim, repugnados por eu estar seguidamente
atrapalhando as decisões, achassem que eu agora não tinha mais direito
de parecer, pois a chefia própria eu enjeitara. Quem sabe, será se
praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo que antes
como irmãos, até ali a gente se estràçalhar nas facas? Torci
vontade de matar alguém, para pacificar minha aflição; alguém,
algum Diadorim não digo. Decerto isso em mim eles
perceberam. Os calados. Só o Sesfrêdo, inesperado assim, disse
também: "Discordo!" Por me estimar, ele me secundava. E
Alaripe, séria pessoa: "Tem de que. Deixa o Riobaldo razoar..."
Endireitei os chifres. Chapei:
"Vejo, Marcelino Pampa é quem tem de comandar.
Mediante que é o mais velho, e, demais de mais velho, valente, e
consahido de ajuizado!"

Cara de Marcelino Pampa ficou enorme. Do que constei dos
outros, concordantes, estabeleci que eu tinha acertado solerte
- dei na barra! Mas, Diadorim? De olhos os olhos agarrados:
nós dois. Asneira, eu naquela hora supria suscitar alto meu maior
bem-querer por Diadorim; mesmo, mesmo, assim mesmo, eu
arcava em crú com o desafio, desde que ele brabasse, desde que
ele puxasse. Tempo instante, que empurrou morros para
passar... Afinal, aí, Diadorim abaixou as vistas. Pude mais do que
ele! Se riu, depois de mim. Sempre sendo que falou, firme:

- Com gosto. Melhor do que Marcelino Pampa não tem
nenhum. Não ambicionei poderes...
Falou como corajoso. E:
"Tresdito que é a vez de se estar contornados, unidos sem
porfiar..." o Alaripe inteirou.
Amém, todos, voz a voz, aprovavam. Marcelino Pampa
então principiou, falou assim:
- "Aceito, por precisão nossa, o que obrigação minha é. Até
enquanto não vem algum dos certos, de realce maior: João
Goanhá, Alípio Mota, Titão Passos... A tanto, careço do bom
conselho de todos que tiverem, segura fiança. Assentes que
vamos..."

Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois Marcelino
Pampa possuía talentos minguados. Somente pensei que ele
estava pondo um peso no lombo, por sacrifício. Ao que, em
melhores tempos, aprazia bem capitanear; mas, agora aquela
ocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquer um não havia
de desgostar de responsabilidade? Ã, aí observei: como Marcelino
Pampa desde o instante expunha outro ar de ser, a sisuda extra-

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vagância, soberbo satisfeito! Ser chefe por fora um
pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas fôres.

Meu era um alivio. Mesmo não duvidei de meu menos valer:
alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à minha? Eh, de
primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu
desconheço o arruido rumor das pancadas dele. Diadorim veio para
perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto leal.
Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora, mel de melhor. Eu precisava.
Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de
acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas,
não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte
incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já
vendemos? Bobéia, minha. E como é que havia de ser possível? Hem?

Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó,
tinha um grado jagunço, bem remediado de posses Davidão
era o nome dele.Vai, um dia, coisas dessas que às vezes
acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou,
propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado
Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de
caborje - invisível no sobrenatural chegasse primeiro o
destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem
morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou.
Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito
acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo.
contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em
São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam
vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver. Para nenhum deles não
tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante
os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos
eles não saiam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja:

isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito
inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe
o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se
compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante,
caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o
Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste!
Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria,
por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa
luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os
dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua
própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que
faleeia...

Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa
limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí
podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros
e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça?
Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero
louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de
realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente
só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem deu baixa do
bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra,
e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar
baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles,
ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem
acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente.
Não se queira. Viver é muito perigoso...

A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de seu
dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos primeiros
rumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. - "Os
Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas, e sabem
da gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempo de todas
chuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo de rodear a

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gente, de menos longe, porque a quantidade deles é à farta...
Recurso, que eu acho, é dois: ou se fugir para o chapadão,
enquanto tempo mas é perder toda esperança e diminuir da
vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um caminho
por entremeio deles: se vai para a outra banda do Rio, caçar João
Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda não sei, quero
toda razoável opinião." Assim ele, Marcelino Pampa, disse.

"Mas, se souberem a noticia que Medeiro Vaz morreu, hoje
mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós..." - foi o que João
Concliz achou; e estava muito certo. Eu não atinava com o que
dizer, as confusões dessas horas me encostavam. O que era, na
situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca Ramiro? E sô
Candelário?Ao esmo, esses pensamentos em mim. Ai de, foi que
reconheci como súcia de homens carece de uma completa
cabeça. Comandante é preciso, para aliviar os aflitos, para salvar a
idéia da gente de perturbações desconformes. Não sabia, hoje
será que sei, a regra de nenhum meio-termo. Sem ação, eu podia
gastar ali minha vida inteira, debulhando. Tambem, logo depois,
depois de muitos silêncios e poucas palavras. Marcelino Pampa
resolveu que, de tarde, nossa conversa ia ter repetição. Atontados,
três.

Dali, fui para perto de Diadorim. -"Riobaldo," ele mal
disse "você está vendo que não temos remédio..." Aí,
esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima da outra. "E
vocês, que foi que determinaram de se fazer?" me perguntou.
Respondi: "Hoje de tarde é que se toma decisão, Diadorim.
Você está mal satisfeito?" Ele endireitou o corpo. Foi, falou:

"Sei o meu. Cá por mim, isso tudo pouco adianta. Quente quero
poder chegar junto dum dos Judas, para terminar!" Eu sabia que
ele falava coisas de pelejar por cumprir. Eu tinha mais cansaço,
mais tristeza. "Quem sabe, se... Para ter jeito de chegar perto
deles, até se não era melhor..." assim ele desabafou, em
trago; e recolhido num estado de segredo. Por seus grandes olhos,
onde aquilo redondeou, cri que armasse agarrar o comando, por
meio de acender o bando todo em revolta. Qualquer loucura,
semelhante, era a dele. Mas, não; mais disse: "Foi você,
mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu
Marcelino Pampa, você decidiu e fez..." Era. Gostei, em cheio,
de escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum
pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia, a gente
aprende uma qualidade nova de medo!

Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos
- Marcelino Pampa, eu e João Concliz, não se teve nem o
tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar,
o riscar, o desapêio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o
Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. Que
vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de
uns quinze anos, e as feições dele mudavam de mestre pavor.

"Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa. Pegamos. Aí
ele tem grande coisa pra contar.., e empurraram um pouco
o vaqueirinho. De medo a gente olhava para ele e de
nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e
soluceou:

- "É um homem... Só sei... É um homem.."

"Te acerta, mocinho. Aqui você esta livre e salvo. Aonde é
que está indo?" Marcelino Pampa regrou.

"É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe,
para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio
Paracatú, numa balsa de hurití..."

"Que foi mais que o homem fez?"- então João Concliz
perguntou.

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"Deu fogo... O homem, com mais cinco homens...
Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros eram
montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três mortos,
uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O homem
e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que vai
reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho.
Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram naco de
carne..."

"Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros
dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?"

"Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Ele é mais baixo
do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco. . . Veio
de Goiás... O que os outros falam e tratam: "Deputado". Desceu o
Rio Paracatú numa balsa de burití... "Estávamos em jejum de
briga..." - ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito
feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o
mundo! Desceu o Rio Paracatú numa balsa de burití... Desceram...
Nem cavalo eles não tem..."
"É ele! Mas é ele! Só pode ser. . ." aí alguém lembrou.
"E é. E, então, está do nosso lado!" outro completou.

"Temos de mandar por ele..." - foi a palavra de Marcelino
Pampa. "Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir
lá.."" É ele... É ver a vida: quem pensava? E é homem
danado, zurctadO..." "Está a favor da gente... E ele sabe guerrear..."
E era. Repegava a chuva, trozante, mas mesmo assim o Quipes e
Cavalcânti montaram e saíram por ele, da Pavoã no rumo. De
certo não acharam fácil, pois até à hora de escurecer não tinham
aparecido. Mas: aquele homem, para que o senhor saiba, aquele
homem: era Zé Bebelo. E, na noite, ninguém não dormiu
direito, em nosso acampo. De manhã, com uma braça de sol, ele
chegou. Dia da abelha branca.
De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo,
acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles
eram gente do Alto Urucúia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas
atravessados de armas, e com cheias cartucheiras. Marcelino
Pampa caminhou ao encontro dele; seguinte de nosso
comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas cerimônias.
-"Paz e saúde, chefe! Como passou?"

-"Como passou, mano?"

Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim:

- "Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar..." De
nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. Vi
que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso.
Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para tras.
"Vim de vez!" ele disse; disse desafiando, quase.

-"Em boa veio, chefe! É o que todos aqui representamos..."
- Marcelino Pampa respondeu.

- "A pois. Salve Medeiro Vaz! ..."

-"Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso..."

"Aqui soube... luz eterna.. ." e Zé Bebelo tirou o chapéu
e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo,
que a gente até se comoveu. Depois, disse:

"Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a
vida em outro tempo me salvou de morte... E liquidar com esses
dois bandidos, que desonram o nome da Pátria e este sertão
nacional! Filhos da égua..." - e ele estava com a raiva tanta, que
tudo quanto falava ficava sendo verdade.

"Pois, então, estamos irmãos... E esses homens?"

Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou
todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte:

"Vim por ordem e por desordem. Este cá e meus
exércitos!..."

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Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar,
aquele homem era em frente , crescia sozinho nas armas.
Vez de Marcelino Pampa dizer:
"Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso
destino? Juntos estamos, juntos vamos.
"Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar,
não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe."
Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas.
Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos
em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se
disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o
consumado:
"E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas
ordens..."
Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez.
"Acordo!" eu disse, Diadorim disse, João Concliz
disse; todos falaram: "Acordo!"
Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que
esperava mesmo aquele voto. "De todo poder?Todo o mundo
lealda?" ainda perguntou, ringindo seriedade. Confirmamos.

Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou:

"Ao redor de mim meus filhos. Tomo posse!" Podia se rir.
Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em meio nosso
os cinco homens do Urucúia. Adiante: "Pois estamos. É o
duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca Ramiro vão
pagar, com seiscentos-setecentos!..." -, ele definiu, apanhando
um por um de nós no olhar. "Assassinos eles são os Judas.
Desse nome, agora, que é o deles..." explicou João Concliz.

"Arre, vote: dois judas, podemos romper as alelúias! Alelúia!
Alelúia! Carne no prato, farinha na cúia! ..." - ele aprovou, deu
aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé
Bebelo era. Como quando trovejou: desse trovôo de alto e rasto,
dos geraiS, entrementes antes dos gotêjos de chuva esquentada:

o trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi:

trovejou de cala-a-boca e Zé Bebelo tocou um gesto de costas
da mão, respeitoso disse: "Isto é comigo..."Do que se tratava,
retorno e conto, ele o seguinte revelou: "Tudo eu não tinha,
com os meus, munição para nem meia-hora..."A gente
reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que
aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somenos, por detrás
de tanta papagaiagem um homem carecia de ter a valentia muito
grande.

A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não esbarrou
mais. Achou de ir ver o lugar da coxa, e as armas e trens que
Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o morto não tendo
parentes, então para os melhores mais chegados como
lembrança ficassem: as carabinas e revólveres, a automática de rompida e
ronco, punhal, facão, o capote, o cantil revestido, as capangas
e alforjes, as cartucheiras de trespassar. Alguém disse que o
cavalo grande, murzelo-mancho, devia de ficar sendo dele mesmo.
Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo grave:

"Este animal é vosso, Marcelino, merecido. Porque eu ainda
estou para ver outro com igual siso e caráter!" Apertou a mão
dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, perturbado.
Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé Bebelo.
Mas, para si mesmo, Ze Bebelo guardou somente o pelego
berbezim, de forrar sela, e um bentinho milagroso, em três baetas
confeccionado.

Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo.
Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugar nascido, resumo da
vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer ofício de
habilidade. Olhou e contou as pencas de munição, as armas.

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Repassou os cavalos, prezando os mais bem ferrados e os de
aguentada firmeza. "Ferraduras, ferraduras! Isto é que é
importante..." vivia dizendo. Repartiu os homens em quatro
pelotões três drongos de quinze, e um de vinte em cada
um ao menos um bom rastreador. "Carecemos de quatro
buzinas de caçador, para os avisos..." reclamou. Ele mesmo
tinha um apito, pendurado do pescoço, que de muito longe se
atendia. Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa,
João Concliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de
vinte - nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim,
Sesfrêdo, o Quipes, Joaquim Beijó, Coscorão, Dimas Dôido, o
Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Crédo, Marimbondo, Rasga
em-Baixo, Liribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas. Só que,
tidos todos repartidos, ainda sobravam nove - serviram para
esquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros, com
petrechos e mantimentos, O testa deles foi Alaripe, por bom
que tosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu
obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o Jacaré exercia
de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que
precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e
os outros ajudavam; mas Raymundo Lé, que entendia de curas
e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com
remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. Mas Zé
Bebelo não se atontava: "Aí em qualquer parte, depois, se
compra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha e raiz, vai
tendo, vai enchendo.., O que eu quero é ver o surrão a mão..."
O acampamento da gente parecia uma cidade.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens.
"Trabucar duro, para dormir bem!" publicava.
Gostadamente: "Morrendo eu, depois vocês descansam... e ria:

"Mas eu não morro..." Sujeito muito lógico, o senhor sabe:
cega qualquer nó. E engraçado dizer a gente apreciava
aquilo. Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo
é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra.
O mais eram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ou esbarrados
firmes em formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando,
manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: "Arre,
temos nenhum tempo, gente! Capricha..." Sempre, no fim, por
animar, levantava demais o braço: "Ainda quero passar, a
cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz
falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais... Mas
hei-de! Ah, que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no
haja vinho... Arranchar no mercado da Diamantina... Eh, vamos
no Paracatú-do-Príncipe! ..." Que boca, que o apito: apitava.

A sério, ele me chamava para o lado dele, e ia mandando vir
outros Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o
urucuiano Pantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham de
expor o que sabiam daquele gerais território: aç distâncias em
léguas e braças, os vaus, o grau de fundo dos marimbús e dos
poços, os mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos.
Como Zé Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e OUN indo
avante. As vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo
representado. la organizando aquilo na cabeça. Estava aprendido. Com
pouco, sabia mais do que nós juntos todos. Bem eu conhecia Zé
Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasse ter nascido como
ele... Aí, saía, por caçar. Sucinto que gostava de caçar; mas estava
era sujeitando a exame o morro, discriminando. O mato e o
campo como dois é um par. Veio e foi, figurava, tomava a opinião
da gente: "Com dez homens, naquela altura, e outros dez
espalhados na vertente, se podia impedir a passagem de
duzentos cavaleiros, pelo resfriado... Com outros alguns, dando a
retaguarda, então..." Nest'artes, só nisso ele pensava, quase que. Sen-

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do que expedia, sobre hora, alguém adiante, se informar do
meximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homem feliz,
feito Zé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nunca não vi.

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia.Vinha a
boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é
lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio
diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da
gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar
curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito
esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já
sabe: viver é etcétera... Diadorim alegre, e eu não. Transato no
meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os
pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim,
dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí
sabia que já gostava em sempre. Ói, suindara! linda cor...

Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou que tudo e
tudo fosse pronto, para uma remarcha em exercidos, como
geral. Só por festa. Ao que os burrinhos comiam amadrinhados,
em bom pasto: "Menininhos, responsabilidade de cangalhas em
vocês, carregando a nossa munição!" Zé Bebelo mandou. Mas
montado, declarou: "Meu nome d'ora por diante vai ser
ahoh-ah o de Zé Bebelo Voz Ramiro! Como confiança só tenho em
vocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou:
vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada
de patifes!..." Saímos, solertes entes.

Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de cavalhadas,
por desbarranco de estradas lamentas, desmancho empapado de
chão, a chuva ainda enxaguando? Convinha esperar regras d'água.

"O Rio Paracatú está cheio..." alguém disse. Mas Zé Bebelo
atalhou: "O São Francisso é maior..." Com ele tudo era assim,
extravagável; e não queria conversas de cutilquê. Rompemos.
Melava de chover baixo, mimelava. Até o derradeiro do
momento, parecia que íamos atravessar o Paracatú. Não atravessamos.
Tudo aquele homem retinha estudado. Daí, distribuiu as
patrulhas. O drongo dele, viemos, pela beira, sempre o Paracatú à
mão esquerda. Trovejou, de perturbar. Ele disse: "Melhor,
dou surpresa... Só uma boa surpresa é que rende. Quero é
atacar!"A gente ia para o Burití-Pintado. A lá, consta de dez léguas,
doze. "Na hora, cada um deve de ver só um algum judas de
cada vez, mirar bem e atirar. O resto maior é com Deus..." já
vai que falava. "Para um trabalho que se quer, sempre a ferra
menta se tem. Só com estes cavalos, só à ligeireza, de lugar para
lugar, para a frente e para trás. Sei, mas o principal dos combates
vamos dar é bem a pé..." Na beira do rio Soninho, descansamos.
Animais de carga, a ponta de mulas, ficaram botados escondidos,
numa bocâina na balça. Só três homens tomavam conta. "Eu é
que escolho a hora e o lugar de investir..." Zé Bebelo disse. E,
num lugar de remanso, passamos o rio Soninho, no escuro, sem
ensolvar, bala em boca.

De manhã, de três lados, demos fogo.

Aí Zé Bebelo tinha meditado tudO como um ato, de
desenho. Primeiro, João Concliz avançou, com seus quinze, iam
fazendo de conta que desprevenidos. Quando os outros vieram,
nós todos já estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma
banda, então, o Fafafa rccruzou, seus cavaleiros: que estavam
muito juntos, embolados, do modo por que um bando de
taxaleiros ou cavalos dá arde ser muito maior do que no real é.Todos
cavalos ruços ou baios cor clara também aumenta muito a
visão do tamanho deles. Ah, e gritavam. Assaz os judas atiravam
mal, discordados, nadinha nem. Aí, de poleiro pego prévio,
abrimos nossa calamidade neles. Pessoal do Hermógenes
disse guavãi! Supetume! Só bala de aço. "Dou duelo!... Ei,

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tibes..." Só o quanto de se quebrar galho e rasgar roupagem. Um
judas correu errado, do lado onde o Jiribibe estava: triste
daquele. "Ouh!" foi o que ele fez de contrição perfeita. Outro
levantou o corpo um pouco demais. "Tu! Tu pensa que tem
Deus-e-meio?!" Zé Bebelo disse, depois de derrubar o tal,
com um tiro de nhambú, baixo. Outro fugia esperto. "Tem
talento nos pés..." Os que enviei, deixei de numerar, por causa
de caridade. Ái deles.Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em
alegre mal, feito numa caçada?

Descansar? Quem disse, não foi ouvido. "Vou lá deixar
essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha gente! Vamos
neles!" Zé Bebelo se frigia. Mas o próprio pessoal de João
Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. "Toquemos
na mão do norte: lá a cara do chão é minha mais..."Não, o
caminho era da banda contrária. Tínhamos de cair em riba do grosso
da judadas. Por resfriados e atalhos, mesmo com aquela cavalhada
adestra, tocamos, tocamos. Estrada capaz de quatro, lado a lado.
No Ôi-Mãe. Lá tem um lajeiro largo: onde grandes pedras do
fundo do chão vêm à flor. Chegamos de sobremão, vagarosinho.
Zé Bebelo recomendava, feito rondando quarto de doente. Ele
cheirava até o ar. Sonso parecia um gato. Se vendo que, no
inteiro mesmo de sua cabeça, ele antes tudo traçava e guerreava. Seja
por um exemplo: havia uma cava grande, o inimigo estava
emboscado dos dois lados, nos socavôes, nas paredes. Como era
que Zé Bebelo já sabia? Orçando longe volta, João Concliz levou
seus homens muito adiante de lá, na borda do campo, de recacha.
Dado tempo, então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chega
estávamos por cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio
vindo, descuidado à mostra, com seus cavaleiros surgiam
inocentemente, feito veados para se matar... Mas há! então
por de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio,
transcruzando nos inferiores: "Lei vai obra! Hê-hê! Deu de
abêlhas de pau oco: os das socavas entornaram o sangue-frio, demais
se assustaram, correndo em fuga maior debaixo de tiros, xingos,
às pragas. João Concliz, pois é, o senhor sabe... Urubús
puderam voar cererem uns urubús declarados.

Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, até
onde estava a nossa mulada, com munição e o mais. Mesmo
viemos negaceando de recuar. Assim era pena, mas careciamos de
flautear desse jeito, sustância nossa não dava para se acabar com
aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, para enganar no que
vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma hora quase todos
juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, por suma
vantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazenda São Serafim,
dos diabos!

Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem
uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas veredas
mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse
nome, não. E o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares
assim são simples dão nenhum aviso. Agora: quando passei
por lá, minha mãe não tinha rezado por mim naquele
momento?

Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas
cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que
dão. O senhor ouvindo seguinte, me entende. O Paredão existe
lá. Senhor vá, senhor veja. E um arraial. Hoje ninguém mora
mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da
igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbôlo rasgado dos
morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do
campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De
noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos
pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro, os cachor-

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ros latem, forte tempo. Em toda a parte é desse jeito. Mas
aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de comer.
Cachorros que já lamberam muito sangue. Mesmo, o espaço é tão
calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas.
Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não
tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que
esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para
dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim. Aquele arraial tem
um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do
redemunho... O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não
se perguntam bem.

Sei que estou contando errado, pelos altos. Descmendo. Mas
não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse
ao senhor quase tudo. Não crio receio, O senhor é homem de
pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr
denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita.Tenho meu
respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguem me caça.
Da vida pouco me resta so o deo-gratias; e o troco. Bobéia. Na
hIra de São João Branco, um homem andava falando: "A
pátria não pode nada com a velhice..." Discordo. A pátria é dos
velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis
velhos sem valor, as pedras retiradas ele dizia: aqueles todos
anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando
assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é
como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois
passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás,
reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra
do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do
Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro
vai lavrar um pau, encontra balas cravadas, O que vale, são
outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os
outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado,
só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento
que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje
vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido
desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é
bondoso de me ouvir, Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo
sabe.

Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome
Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta
simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que,
por outra alheia mão, Essa Nhorinhá tinha lenço curto na
cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a
carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu
já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para
o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos,
em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só:

Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e
viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja
dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em
canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de
quem tinham recebido aquilo. Último, que me veio com ela, quase
por engano de acaso, era um homem que, por medo da doença
do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga,
logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha
mulher, sempre gostei, e hoje mais, Quando conheci de olhos e
mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento.
Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e
aí já estivesse morando mais longe, magoal, no São Josezinho da
Serra no indo para o Riacho-das-Almas e vindo do Morro

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dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela,
de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até
daquele tempo pequeno em que com ela estive, naAroeirinha, e
conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus
olhos e minha boca. De lá para lá, os oitos anos se baldavam.
Nem estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que,
em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais
linda. De certo, agora não gostasse mais de mim, quem sabe até
tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso,
muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução
que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são
importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for
jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da
coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar
corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas,
é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não
sabe, não sabe, não sabe!

Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem
sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e
repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes
conto as coisas que formaram passado para mim com mais
pertença.Vou lhe falar. lhe falo do sertão. Do que não sei. Um
grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas rarissimas
pessoas e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito
lhe agradeço é a sua fineza de atenção.

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois
o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão.

Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com
uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui circunstância
de cinco léguas minha mãe e eu. No porto do Rio-de-
Janeiro nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Joãozinho,
o negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome
há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira
de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de
depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!...
Depois o senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do
jeito. O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São
Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece,
passa o de-Janeiro em canoa ele é estreito, não estende de
largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São
Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser
naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia. A
deSCida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode
pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O São Francisco
represa o de-Janeiro, alto em grosso, as vezes já em suas primeiras
águas de novembro. Dezembro dando, é certo, Todo o tempo, as
canoas ficam esperando, com as correntes presas na raiz
descoberta dum pau-d'óleo, que tem. Tinha também umas duas ou
três gameleiras, de outrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas
descerem na lama aquele harranco, carregando sacos pesados,
muita vez. A vida aqui é muito repagada, o senhor concorde.
Outro, meu tempo, então, o que é que não havia de ser?

Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e
minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu
carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto metade para se
pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro
duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São
Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo
Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora,
lugar de tirar esmola era no porto. Mãe me deu uma sacola. Eu
ia, todos os dias. E esperava por lá, naquele parado, raro que
alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidade quieta para meus

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olhos. De descer o barranco, me dava receio. Mas espiava as
cabaças para bóia de anzol, sempre dependuradas na parede do
rancho.

Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente. Dois
ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz. Cada
saco amarrado com broto de burití, a folha nova - verde e
amarela pelo comprido, meio a meio. Arcavam com aqueles sacos, e
passavam, nas canoas, para o outro lado do de-Janeiro. Lá era,
como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia
ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam com
escassa baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor
veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de água
mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois,
levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu
jipe resolve. Até hoje é assim, por borco.

Ai pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore,
pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou
devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-
couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu.
Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo,
com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e
que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo
diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um
menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes.
Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse lugarim
OsPorcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance.

"Lá é bom?" perguntei. "Demais..." ele me
respondeu; e continuou explicando: "Meu tio planta de tudo.
Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou de morte de
minha tia..." Assim parecesse que tinha vergonha, de estarem
comprando aquele arroz, o senhor veja.
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia,
como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele
era muito diferente, gostei daquelas finas feiçôes, a voz mesma,
muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem
intenção, sem sobêjo de esforço, fazia de conversar uma
conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que
ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim
como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira
- só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido enrolei
minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha
de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens,
chamando para eles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo
meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.

A ser que tinha dinheiro de seu, comprou um quarto de
queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em canoa. Não
pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha.Tudo fazia
com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a
gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me
ajudar a descer o barranco.

As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de
hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma
estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós
escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma
no fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em
minha frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a
canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. O
menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão
bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado.
O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei:
aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pes-

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tanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não
sabia nadar, O remador, um menino também, da laia da gente,
foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter
brio. Só era bom por estar perto do menino. Nem em minha
mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo.
Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. E é rio cheio
o de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses -
o em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto,
exato. Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção
para o mato da beira, em pé, paredão, feito à régua regulado.
"As flores..." ele prezou. No alto, eram muitas flores,
subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as
roxas, do mucunã, que é um feijão bravo; porque se estava no
mês de maio, digo - tempo de comprar arroz, quem não pôde
plantar. Um pássaro cantou. Nhambú? E periquitos, bandos,
passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o
senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? Um
papagaio vermelho: "Arara for?" - ele me disse. E quê-
quê-quê? o araçarí perguntava. Ele, o menino, era
dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma.
Comparável um suave de ser, mas asseado e forte assim se fosse
um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível o senhor
represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem amarrotado
nenhum, não fuxicavam A bem dizer, ele pouco falasse. Se via
que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo
nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim.

Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja:
é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade.
Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e
dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A
feiura com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento
vermelho, recebe para si o de-Janeiro, quase só um rego verde
só. -"Daqui vamos voltar?" eu pedi, ansiado, O menino não
me olhou - porque já tinha estado me olhando, como estava.
- "Para que?" ele simples perguntou, em descanso de paz. O
canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim.
Aí o menino mesmo se sorriu, sem malícia e sem bondade. Não
piscava os olhos. O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali,
na barra, entre duas águas, menos fundas, brincando de rodar
mansinho, com a canoa passeada. Depois, foi entrando no do-
Chico, na beirada, para o rumo de acima. Eu me apeguei de olhar
o mato da margem. Beiras sem praia, tristes, tudo parecendo
meio pôdre, a deixa, lameada ainda da cheia derradeira, o
senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze metros. E
se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e se
curvou, queria quebrar um galho de maracujá-do-mato. Com o
mau jeito, a canoa desconversou, o menino também tinha se
levantado. Eu disse um grito. "Tem nada não..." ele falou,
até meigo muito. "Mas, então, vocês fiquem sentados..."
eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa
simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme
mas sem vexame: "Atravessa!" O canoeiro obedeceu.
Tive medo. Sabe?Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os
confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir até
lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira o rio e
cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de
desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei do
Caboclo-d'Água, não me lembrei do perigo que é a"onça-d'água",
se diz a ariranha essas desmergulham, em bando, e bécam
a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de estudo. Não
pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia.
O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco extenso d'água, de

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parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu tinha até ali
agarrado uma esperança.Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira,
fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar um
dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar,
de aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro
me contradisse: "Esta é das que afundam inteiras. É canoa de
peroba. Canoa de peroba e de pau-d'óleo não sobrenadam..."

Me deu uma tontura. O ódio que eu quis: ah, tantas canoas no
porto, boas canoas boiantes, de faveira ou tamboril, de imburana,
vinhático ou cedro, e a gente tinha escolhido aquela... Até fosse
crime, fabricar dessas, de madeira burra! A mentira fosse mas
eu devo de ter arregalado dôidos olhos. Quieto, composto,
confronte, o menino me via. "Carece de ter coragem..." ele
me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder:

"Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito. Afiançou:
"Eu também não sei." Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos
dele, produziam uma luz. "Que é que a gente sente, quando
se tem medo?" ele indagou, mas não estava remoqueando;
não pude ter raiva. "Você nunca teve medo?" foi o que me
veio, de dizer. Ele respondeu: "Costumo não..." e, passado
o tempo dum meu suspiro: "Meu pai disse que não se deve de
ter..."Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: - "...Meu pai
é o homem mais valente deste mundo."Aí o bambalango das águas,
a avançação enorme roda-a-roda o que até hoje, minha vida,
avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas
que se escutavam, do canoeiro, a gente podia contar, por duvidar
se não satisfaziam termo. "Ah, tu: tem medo não nenhum?"

ao canoeiro o menino perguntou, com tom. "Sou
barranqueiro!" o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho.
De tal o menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu
também, O chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo, Os olhos,
eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro.
Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me
ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua
coragem. Mas eu aguentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos então
foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na
minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele,
no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão
branca, com os dedos dela delicados. "Você também é
animoso..." me disse. Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que
eu sentia agora era de outra qualidade. Arre vai, o canoeiro
cantou, feio, moda de cópia que gente barranqueira usa: "Meu Rio
de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d'água, mas
pedir tua benção." Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a
de lá.

Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. "Você
não arreda daqui, fica tomando conta!" ele falou para o
canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, e que
amarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o menino queria ir?
Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado
do capim-pubo. Sentamos, por fim, num lugar mais
salientado, com pedras, rodeado por áspero hamburral. Sendo de
permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase calados, somente.
Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. "Amigo,
quer de comer? Está com fome?" ele me perguntou. E me
deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga. Estava
pitando. Acabou de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e
mastigava; tinha gosto de milho-verde, é dele que a capivara come.
Assim quando me veio vontade de urinar, e eu disse, ele
determinou: "Há-de, vai ali atrás, longe de mim, isso faz..." Mais
não conversasse; e eu reparei, me acanhava, comparando como
eram pobres as minhas roupas, junto das dele.

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Antôjo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara
de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do mato,
me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto
por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz,
mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com
as feições muito brutas. Debochado, ele disse isto: "Vocês
dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo? "Aduzido fungou, e,
mao no fechado da outra, bateu um figurado indecente. Olhei
para o menino. Esse não semelhava ter tomado nenhum espanto,
surdo sentado ficou, social com seu prático sorriso. "Hem
hem? E eu? Também quero!" - o mulato veio insistindo. E, por
aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos
fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do
rio e o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a
bonita voz do menino dizer: - "Você, meu nego? Está certo,
chega aqui... "A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era
aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho
dele.

Ah, tem lances, esses se riscam tão depressa, olhar da
gente não acompanha. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim.
Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o
mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a
faquinha nua na mão e nem se ria.Tinha embebido ferro na côxa
do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de
sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca
no capim, com todo capricho. - "Quicé que corta..." - foi só
o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha.

Meu receio não passava. O mulato podia voltar, ter ido
buscar uma fôice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que
será, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso,
encarecendo que a gente fosse logo embora. - "Carece de ter
coragem. Carece de ter muita coragem..." - ele me moderou, tão
gentil. Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seu pai.
Indaguei: "Mas, então, você mora é com seu tio?" Ai ele se
levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão,
vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo
do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.

Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o
remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, com os seus
mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol. Se
alegrou com o resto da rapadura e do queijo, nos trouxe remando,
no meio do rio até mais cantava. Dessa volta, não lhe dou
desenho - tudo igual, igual. Menos que, por vez, me pareceu
depressa demais. - "Você é valente, sempre?" em hora eu
perguntei. O menino estava molhando as mãos na água vermelha,
esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou
assim: "Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu
careço de ser diferente, muito diferente..." E eu não tinha medo
mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais
do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da
estória toda - por isto foi que a estória eu lhe contei : eu não
sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa
importante falta nome.

Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela,
nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele
acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas
não carecia. Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.

Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que
eu precisei de encontrar aquele Menino? Tolemia, eu sei. Dou,
de. O senhor não me responda. Mais, que coragem inteirada em
peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? Por duas, por uma,
isto que eu vivo pergunta de saber, nem o compadre meu Quele-

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mem não me ensina. E o que era que o pai dele tencionava? Na
ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse
indagado. Mire veja: um rapazinho, no Nazaré, foi desfeiteado, e matou
um homem. Matou, correu em casa. Sabe o que o pai dele
temperou? "Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice, já tenho
defesa, de quem me vingue..." Bolas, ora. Senhor vê, o senhor
sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de
ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer
resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu
conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu
Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não
conheceram, O senhor pense outra vez, repense o bem pensado:

para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o
Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa. O Chapadão
é em sobre longe, beira até Goiás, extrema. Os gerais
desentendem de tempo. Sonhação acho que eu tinha de aprender a
estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no
Menino pensava, eu acho que. Mas, para que? por que? Eu estava
no porto do de-Janeiro, com minha capanguinha na mão,
ajuntando esmolas para o Senhor Bom-Jesus, no dever de pagar
promessa feita por minha mãe, para me sarar de uma doença grave.
Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim?
Artes que foi, que fico pensando: por aí, Zé Bebelo um tanto
sabia disso, mas sabia sem saber, e saber não queria; como
Medeiro Vaz, como Joca Ramiro; como com padre meu Quelemém,
que viaja diverso caminhar. Ao que? Não me dê, dês. Mais hoje,
mais amanhã, quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, o
senhor já me compraz. Agora, pelo jeitô de ficar calado alto, eu
vejo que o senhor me divulga.

Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha mãe morreu
apenas a Bigrí, era como ela se chamava. Morreu, num
dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza. Mas uma
tristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito. De desde, até
hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. Ela
morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte.
Amanheci mais. De herdado, fiquei com aquelas miserinhas
miséria quase inocente que não podia fazer questão: lá
larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, chocolateira,
uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei minha
rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa pintado de
flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor de baeta e
minha muda de roupa. Puseram para mim tudo em trouxa, como
coube na metade dum saco. Até que um vizinho caridoso
cumpriu de me levar, por causa das chuvas numa viagem durada de
seis dias, para a Fazenda São Gregório, de meu padrinho
Selorico Mendes, na beira da estrada boiadeira, entre o rumo do
Curralinho e o do Bagre, onde as serras vão descendo. Tanto que
cheguei lá, meu padrinho Selorico Mendes me aceitou com
grandes bondades. Ele era rico e somítico, possuia três fazendas-de-
gado. Aqui também dele foi, a maior de todas.

"De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo meus
arrependimentos..." foi a sincera primeira palavra que ele me
disse, me olhando antes. Levei dias pensando que ele não fosse
de juizo regulado. Nunca falou em minha mãe. Nas coisas de
negócio e uso, no lidante, também quase não falava. Mas gostava
de conversar, contava casos. Altas artes de jagunços isso ele
amava constante histórias.

"Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política!
Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda
concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante,
por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador -
todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e

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na carabina escopetada! Domingos Touro, no Alambiques, Major
Urbano na Macaçá, os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau
dona Prospera Blaziana. Dona Adelaide no Campo-Redondo,
Simão Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do
Canastrão, o Coronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio
Pardo; e tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda
some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-
fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no
barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada
lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus
jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, Januária,
Carinhanha, Urubú, Pilão Arcado, Chique-Chique e Sento-Sé."

Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de
quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas éras do ano
de 79: tomou todos os portos - Jatobá, Malhada e Manga
fez como quis; e pôs séde de suas fortes armas no arraial do
Jacaré, que era a terra dele. "Estive lá, com carta firmada pelo
Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era
companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles numeravam em guerra
comprazia uma babilônia. Botavam até barcas, cheias de homens
com bacamartes, cruzando para baixo e para cima o rio, de parte
a parte. Dia e noite, a gente ouvia gritos e tiros. Cavalaria de
jagunços galopando, saindo para distâncias marcadas. Abriam festa
de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade.
Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando
os presos, arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em
Casa-da-Câmara...

Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso.
Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. Queria
que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrête e faca. Me
deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira.
Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado
forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato
de folha de gravatá. "Sentei em mesa como Neco, bebi vinho,
almocei... Debaixo da chefia dele, paravam uns oitocentos
brabos, só obedeciam e rendiam respeito." Meu padrinho, hóspede
do Neco; de recontar isso ele sempre se engrandecia. Naquela
dita ocasião, todas as pessoas importantes tinham fugido da
Januária, desamparadas de poder-de-lei, foram esperar melhor
sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. - "Neco? Ah! Mandou mais
que Renovato, ou o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão
e os Filgueiras..." E meu padrinho me mostrou um papel, com
escrita de Neco - era recibo de seis ancorotes com pólvora e
uma remessa de iodureto a assinatura rezava assim: Manoel
Tavares de Sá.

Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão:
me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar em casa de
um amigo dele, Nhô Marôto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o
verdadeiro nome social. Bom homem. Li. eu não carecia de
trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes
acertava com Nhô Marôto de pagar todo fim de ano o
assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa que eu
precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre
gostei do bom e do melhor. A ser que, alguma vez, Nhô Marôto me
pedia um ou outro serviço, usando muito bico de palavreado,
me agradando e dizendo que estimava como um favor. Nunca
neguei a ele meus pés e mãos, e mesmo não era o nenhum
trabalho notável. Vai, acontece, ele me disse: - "Baldo, você carecia
mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar
do trivial você jeito não tem.Você não é habilidoso." Isso que ele
me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta,
ao Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo - era homem de tão

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justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava
ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a
palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele.
Assim Mestre Lucas me respondeu: - "É certo. Mas o mais
certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava..." E,
desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar
no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as
letras e a tabuada.

Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com
os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá
esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado
não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas
por-nomes de flores. A não ser a Rosa'uarda moça feita, mais velha
do que eu, filha de negociante forte, seo AssisWababa, dono da
venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José - ela era
estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande,
seu Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro
atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho
Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou
para almoçar em mesa. O que apreciei carne moída com
semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou
em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo supimpas
iguanas. Os doces, também. Estimei seu Assis Wababa, a mulher
dele, dona Abadia, e até os meninos, irmãozinhos de Rosa'uarda,
mas com tamanha diferença de idade. Só o que me invocava era a
linguagem garganteada que falavam uns com uns, a aravia. Assim
mesmo afirmo que a Rosa'uarda gostou de mim, me ensinou as
primeiras bandalheiras, e as completas que juntos fizemos, no
fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite.
Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: "Meus
olhos." Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários
pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei
demais de estrangeiro.

Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho muito
fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu dinheiro, e
que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho,
me ver na verdade, também, ele aproveitava para tratar de
vender bois e mais outros negócios e trazia para mim caixetas
de doce de burití ou de araticúm, requeijão e marmeladas. Cada
mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou comigo, e
me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a ele. Dez
vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava dele, nem
desgostava. Mais certo era que com ele eu não soubesse me
acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São Gregório, o
senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso ele não
me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado,
quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por
herdeiro, em folha de testamento: das três fazendaç, duas
peguei. Só o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com
que no fim de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo
o que recebi eu menos merecia. Agora, derradeiramente,
destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a
curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo
pertencentes.

Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande
fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os
cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava
batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão
moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde
mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e fui ver
se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a
lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que

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eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas,
arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que me deu
susto de possível reboldosa. Admirei: tantas armas. Mas eles não
eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.
Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das
mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um dos ho-
homens - Alanco Totõe estava expondo, explicando. Todos
continuavam sem tomar assentos. AlaricoTotôe sendo um
fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, com
seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem. Tinham
encomendado o auxilio amigo dos jagunços, por uma questão
política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando com a
cabeça. Mas para quem de sempre estava olhando, com uma
admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o
principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o
nome, eu parei, na maior suspensão.

Drede loca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele
se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina
arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava
volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi
que era homem gentil. Dos lados, ombreavam com ele dois
jagunções; depois eu soube - que seus segundos. Um, se
chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo simpático
de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro
- Hermógenes homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não
notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando, O Hermógenes:
ele estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda
amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo
de couro, qUe se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se
arrepanhava de não ter pescoço. As calças dele como que se
encorugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas,
muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se
arrastava - me pareceu que nem queria levantar os pés do chão.
Reproduzo isto, e fico pensando: será que a vida socorre à gente
certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás
de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava querendo que ele
não virasse a cara.Virou. A sombra do chapéu dava até em quase
na boca, enegrecendo.

No terminar, Alanco Totõe pediu que precisavam de um
recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha,
pois que viajavam de noite, dando surpresa e desmanchando
rastrO. - "Tem ótimo reconditório..." meu padrinho
consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, até aonde o pôço
do Cambaubal, num fechado, mato caãpuão. Primeiro, tomou-se
café. Assim Joca Ramiro corria pronto os olhos, em tudo ali,
sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs as mãos nos bolsos.
Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes veio para sair
comigo, mais o outro homem um cabeça-chata alvaço, com muita
viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava, até hoje se
chama. Em que, eles dOIS a cavalo, eu a pé, viemos até onde
estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.

Ai mês de maio, falei, com a estrela-d'alva. O orvalho
pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa
distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver
eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum
não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei:

a gente sorvia o bafejo o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o
pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde
O movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim -
feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum
grande rio, do a-flôr. A bem dizer, aquela gente estava toda
calada. Mas Uma sela range de seu, tire um arreaz, estribo, e estri-

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beira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga.
Couro raspa em couro, os cavalos dão de orêlha ou batem com o
pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo. E um cavaleiro ou
outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo,
mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos
cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. É diferente.
Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores
crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos
rifles subindo das costas. Porque eles não falavam e restavam
esperando assim a gente tinha medo. Ali deviam de estar
alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos
teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?

Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro,
inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão
de bom pisar.

"Capixúm, é eu, mais o siô Hermógenes..." o cabeça-
chata falou aviso.
"A bom, Alaripe!" o de lá respondeu.

A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio
de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a
cavalhada a peso. Dava o ralar, entreluz da aurora, quando o céu
branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles
cavaleiros, escorri do, se divisava. E o senhor me desculpe, de
estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu
represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é
saudade.

De junto com o Capixúm, se aproximou outro um,
também, de soto-chefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques.
O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas
assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim
fantasia de dizer o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento.
"Aoh, uê, alguém, irmão?" aquele sié-Marques perguntou,
tratando de minha pessoa. "De paz, mano velho. Amigo que
veio mostrar à gente o arrancho..." o Hermógenes
contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem
mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do
Hermógenes, puxando todos para o Cambaúbal. Atrás de nós,
eu ouvia os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse
empurro continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que
eu era abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam,
diziam graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o
repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite toda. Um
falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: "Siruiz, cadê a
moça virgem?" Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se
lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para
mim a toada toda estranha:


Urubó é vila alta,
mais idosa do sertão:

padroeiro, minha vida
vim de ló, volto mais não...

Vim de ló, volto mais não?...


Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:

buriti água azulada,
carnatíba sal do chão...


Remanso de rio largo,
viola da solidão:

quando vou p'ra dar batalha,
convido meu coração...

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Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu
disse. Lembrança da gente é assim.
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com oAlaripe, esperar
a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não
tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com os
cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados com
rama de algodão: afora o geme-geme das cangalhas, não faziam
nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o Cambaúbal.
Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, e os
Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez para casa, O
dia já estava clareando completo. Meu coração restava cheio de
coisas movimentadas.

Não vi mais o acampo deles, as esporas tilintim. Não pude.
Padrinho Selorico Mendes mandou que eu fosse no O-Cocho,
buscar um homem chamado Rozendo Pio, esse homem meu
padrinho me disse rastreava. E era para ele vir, debaixo de
todos os segredos, tapejar o bando de Joca Ramiro por bons
trilhos e atalhos, na Serra dasTrinta Voltas, modo de caber em duas
noites, sem perigo maior, o que, se não, durasse seis ou sete.
Sendo assim, só eu mesmo merecia confiança de ir. Fui, com
desgosto. Três léguas, três léguas e meia longe. Mas eu tinha de
levar um cavalo adestro, para o homem. E esse Rozendo Pio era
tratantaz e tolo. Demorou muito, com desculpa de arranjos. No
caminho, na vinda, ele nem sabia de nada, de jagunços, quase
não conversava, não quis dar demonstração. Nem fazia prazer
naquilo. Quando chegamos, era o anoitecido, o bando estava
pronto para sair. Se separavam em pequenos golpes. Meu padrinho
tinha mandado amarrar os cachorros todos da fazenda. Se foram.
Achei mesmo que tudo tinha perdido a graça, o de se ver.

Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. Dito
que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não
nascem assim dono de glórias! Aquela turma de cabras, tivesse
sorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho levara
aquele dia todo no meio deles. Contava: o cuidado nos arranjos,
as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem, aquela
autoridade enorme no entremeamento. Nem nada faltava. As sacas de
farinha, tantas e tantas arrobas de carne de sol, a munição bem
zelada, caixote com pães de sabão para cada um lavar a roupa e o
corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com sua tendinha e os
pertences: uma bigorna e as tenazes, fole de mão, ferramenta
exata; e capanga de alveitar, com varios sortidos flames de sangrar
cavalos adoecidos. E as mais coisas meu padrinho descrevia
com muito agrado, de que tinha ouvido sincera narração. As
lutas dos joca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se
ganhar em combate, maço de estórias de toda raça de artes e
estratagemas. De ouvir meu padrinho contar aquilo, se comprazendo
sem singeleza, começava a dar em mim um enjôo. Parecia que
ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, que Joca
Ramiro estava ali junto de nós, obedecendo mandados, e que a
total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes. Meu padrinho
era antipático. Ficava mais sendo. Eu achava. Num lugar parado,
assim, na roça, carece de a gente de vez em quando ir alterando
os assuntos.

Não estou caçando desculpa para meus errados, não, o
senhor reflita, O que me agradava era recordar aquela cantiga,
estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim.
Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire, me
adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela
qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava,
porque nunca tive entôo de voz, e meus beiços não dão para
saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o mundo
admirava, muito recitados repetidos. Agora, tiro sua atenção para

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um ponto: e ouvindo o senhor concordará com o que, por
mesmo eu não saber, não digo. Pois foi que eu escrevi os outros
versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus,
todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então?

Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim
bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum
deles, nenhum, O que eu guardo no giro da memória é aquela
madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio
amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d'alva,
os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz.
Algum significado isso tem?

Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza.
No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer
querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não
fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me louvava. Uma
coisa ele não tolerava, e era só: que alguém indagasse justo
quanto era o dinheiro que ele tinha. Com isso eu nunca somei, não
sou especúla. Eu vivia Com o meu bom corpo. Alguém há de
achar algum regime melhor?

Mas, um dia de tanto querer não pensar no princípio
disso, acabei me esquecendo quem me disseram que não era à-
toa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes.
Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de
mim o tonto houve o mundo todo me desproduzia, numa
grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu
daquilo já sahia.Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos,
ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse? Ah, eu
não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não
desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas armas, selei
um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi um naco de
carne, dois punhados de farinha no bornal. Achasse algum
dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinha nenhum escrúpulo.
Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim.

Razão por que fiz? Sei ou não sei. De ás, eu pensava claro,
acho que de bés não pensei não. Eu queria o ferver. Quase
mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vício dum ruim
prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma
espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não me
dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e
assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão e desordem e altos
desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não ia para a
casa de Nhô Marôto. Ante antes ia para o seo Assis Wababa

- aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira,
estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver a Rosa'uarda, essa
assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosa'uarda, mas aí nas
delícias dela minha idéia não podendo se firmar porque
aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a escola de
Mestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um
senhor chamado Dodó Meirelles, que tinha uma filha chamada
Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis
também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu
achava consolo em que ela me visse - que soubesse: eu, com
minhas armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu
padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no animal, pelo cerrado a
fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar uma
explicação. Eu não gostava daquela Miosótis, ela era uma bobinha,
no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de
Rosa'uarda. Mas Nhô Marôto havia de logo saber que eu tivesse
chegado no Curralim, e meu padrinho ia ter o pronto aviso.
Mandava alguém me buscar. Vinha, ele. Não me importava. De
repente, eu sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ële
viesse, me pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos

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meus pés se ajoelhava. E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o
que era que eu ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei La
- de todos, me repartir no miudinho de cada dia, tão penoso
aborrecido. A bis, então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas
nos bobos olhos. Adramado pensei em minha mãe, com todo
querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava
procedendo pelo avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie
de minha vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de
misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as
esporas. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de
minha vida, quando entramos no Curralinho.

Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante.
No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me
declararam: a de que a Rosa'uarda agora estava sendo nôiva, para se
casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos
derradeiros meses para lá vindo. Assumí, em trela, tristeza e alívio -
aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais.
Nublo em que me vi, mas me governei: trancei as pernas,
comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, acautelado
sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem cuidar que
essa minha viagem era por tramar importante encargo para o
meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente se
prazia, aquela noite, com o que oVupes noticiava: que em breves
tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá,
o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo
valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe canjirão
de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei na
ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o
progresso moderno: e que eu me representava ali rico,
estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.
Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse seo
Emilio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo
Curralinho, ele já era meu conhecido.Tresdobrado homem. Sendo
que entendia tudo de manejar com armas, mas viajava sem cano
nenhum; dizia: "Niquites! Desarmado eu completo, eu
assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no
sertão." Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de
nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar.
Mesmo dizia: "Senhor atira bem, porque atira com espírito.
Sempre o espírito é que acerta..." Soante que dissesse: sempre o
espírito é que mata... Mas, a bem, agora aquela hora, estava lá
o Vupes, assim foi. Porque, num desastre de instante, eu tinha
pegado a pensar o que resolvia minha situação era trabalhar
para ele, se viajar vendendo ferramentas por aí, descaroçador de
algodão. Nem ponderei, mas disse: "Seo Vupes, o senhor não
quererá me ajustar, em seu serviço?" Minha bestice. "Niquites!"
- conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nem acabei
de falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a
velocidade. Idéia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga e
cortês, virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante. Mordi
boca, já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que era por
gracejo; mas seo Assis Wababa e o Vupes me olhavam a menos,
com desconfianças, me senti rebaixado demais. A contra mim
tudo contra, o só ensêjo das coisas me sisava. Dali logo saí, me
despedindo bem. Aonde? Só se fosse ver o Mestre Lucas. Assim
vim andando, mediante desespero. Me alembro, vinha andando
e agora era que eu pegava a pensar livre e solto na Rosa'uarda,
lindas pernas as lindas grossas, ela no vestido de nanzuque,
nunca havia de ser para meu regalo. Dum modo senti, como me
recordei, depois, tempos, quando foi arte se cantar uma cantiga:

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"Seu pai fosse rico.
tivesse negócio,
Eu casava contigo
e o prazer era nosso...


Isso, mas totalmente; às vezes.
Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na
minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso
curto de acaso foi que se conseguiram pelo pulo fino de sem
ver se dar a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um
clim de crina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse
sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa
vã, que não conforma respostas. As vezes essa idéia me põe
susto. Mas, o senhor veja: cheguei em casa do Mestre Lucas, ele me
saudou, tão natural. Achei também tudo o natural, eu estava era
cansado. E, quando Mestre Lucas me perguntou se eu vinha
era de passeata, ou de recado da fazenda, expliquei que não: que
eu tinha merecido licença de meu padrinho, para começar vida
própria em Curralinho ou adiante, a fito de desenvolver mais
estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o que disse, eu
mesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Mas acreditou,
até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia, justo,
ele estava remexido no meio de um assunto, que preparava o
desejo dele para aí me acreditar. Digo: ele me ouviu, e disse:

"Riobaldo, pois você chega em feita ocasião!"

Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva,
altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava
encomendando um professor. Com urgência, era homem de sua
situação, garantia boa paga. Assim queria que Mestre Lucas
fosse, que deixasse alguém dando escola no lugar dele, no Curralim,
por uns tempos; isso, claro, não podia. Eu queria ir?

- "O senhor acha que eu posso?" perguntei; para
principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem.

"Ei, pode!" o Mestre Lucas declarou. Já, que estava
acondicionando numa bruaca os livros todos geografia, arimética,
cartilha e gramática e borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o
que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso me
botava brioso. Melhor que era para logo, para o seguinte: dois
camaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralim,
esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha, mulher de
Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas lágrimas de
bondade: "Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho... E
você assim tão moço, tão bonito..." Ai, nem cheguei a ver aquela
menina Miosótis. A Rosa'uarda, vi, de longes olhares.

Os dois camaradas, em tanto percebi, eram capangas. Mas
sujeitos de seu trato, sem altos-e-baixos nem as maiores
asperezas me deram toda consideração. Viajamos juntos quatro dias,
quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachão e enxergando
à mão esquerda os vultos da Serra-do-Cabral. Meus
companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada.Tinham
outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras do
Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar.
Patrulhas de cavaleiros em armas; troco de conversa de vigiação; e
uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dos tocadores
vinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi. Chegar lá
declamava surpresa. A Nhanva enxameava de gente homem
pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazenda assobradada,
com grandes currais e um terreirão. Vi logo o dono.

Ele era imediatamente esturdio, vestido de brim azul e
calçando hotas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais
para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que
pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular. Fui

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indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço no
pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado alto,
topete arrepiadiflhO. Apressei o passo, e ele esbarrou, com as
mãos nas cadeiras. Me olhou frenteante, deu risada de certo
nem estava sabendo quem eu era. E gritou, caçoando: "Me
vem como andar de sapo, me vem..."
Ah oh-ah, o destempo de estar sendo debochado se irou em
mim. Esbarrei, também. Me fiz mouco. Mas ele veio para mim,
então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu
disse: "Sou o moço professor..." A alegria dele, me ouvindo,
foi estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e
agràdos, subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro,
ligeiro, parecia até que querendo me esconder de tOdos. Uma
doidice, de que?Ah, mas, ah esse quem era o homem? Zé
Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais para fora
uma real novidade.
Disse ao senhor? eu estava pensando que ia dar escola
para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé
Bebelo, virava diferente adiante, aprazava engano. Estudante sendo
ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos, livros, pegar
com as mãos, Assim ler e escrever, e as quatro contas, ele já
soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudo foi
arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que assoviava,
o cantarolado. Mas e aí comigo falou sério naquilo se tinha
de sungar segredo: eu visse. "Vamos constar é que estou
assentando os planos! Você fica sendo meu secretário." Nesse
mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem me exercitou
tonto, eh, ô, me fino fiz. Ansia assim e anfa, e poder de entender
demais, nunca achei quem outro. O que ele queria era botar na
cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a
inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava,
reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele,
despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. Queimava por
noite duas, três velas. Ele mesmo falava: "Relógio não vou olhar.
Aí estudo, estudo, até que estico um cochilão. Cochilão me vem:
então espairo o livro, e me deito, que me durmo." Pela sua
vontade dele, simples. De dia, estávamos debulhando páginas, e de
repente se levantava ele, chegava na janela, apitava num apito,
ministrava aquela brama de ordens: dez, vinte executações duma
vez. O pessoal corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo,
bom teatro. Mas, com menos de mês, Zé Bebelo se tinha
senhoreado de reter tudo, sabia muito mais do que eu mesmo
soubesse. Aí, a alegria dele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o
livro, me fazia de queima-cara um punhado de perguntas. Ao
tanto eu demorava, treteava no explicar, errando a esmo,
caloteava. Ai-ai-ai d'ele atalhar as minhas palavras, mostrar no livro
que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quináu. Se espocava
às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas,
próprias de sua idéia lá dele e sendo feliz de nessas dificuldades
me ver, eujá ignorante, esmorecido e escabreado. Só aí, digo, foi
que ele ficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, me
gratificou em dinheiro, me fez firmes elogios: "Siô Baldo, ja
tomei os altos de tudo! Mas carece de você não ir s'embora. não.
mas antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto que
vamos por esse Norte, por grandes fatos, que você não se
arrependerá..." - me disse . - ".. Norte, más bandas." Soprou, só;
enche que ventava.

Porque ele tinha me estatutado os todos projetos. Como
estava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado
acima, em comando de grande guerra. O fim de tudo, que seria:
romper em peito de bando e bando, acabar com eles, liquidar
com os jagunços, até o último, relimpar o mundo da jagunçada

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braba. "Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estou todo:
entro direito na política!"Antes me confessou essa unica sina que
ambicionava, de muito coração: e era de ser deputado. Pediu
segredo, e eu não gostei. Porque eu estava sabendo que todos já
aventavam aquela toleima, por detrás dele até antecipavam
alcunha: "o Deputado"... O mundo é assim. Mas, mesmo desse jeito, o
pessoal todo não regateava a ele a maior dedicação de respeito.
Por via de sua macheza. Ah, Zé Bebelo era o do duro sete
punhais de sete aços, trouxados numa bainha só! Atirava e tanto
com qualquer quilate de arma, sempre certeira a pontaria,
laçava e campeava feito um todo vaqueiro, amansava animal de maior
hraheza - burro grande ou cavalo; duelava de faca, nos
espíritos solertes de onça acuada, sem parar de pôr; e medo, ou cada
parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia. Contavam:

ele entrava de cheio, pessoalmente, e botava paz em qualquer
rutuba. O homem couro-n'água, enfrentador! Dava os urros. E
mesmo, para ele, parecia não ter nada impossível. Com tanta
bobeia assim, desfrutável e escorril, e ai de quem pensasse em
poitar olho de chacotas: morria vertiginoso... "O único
homem-jagunço que eu podia acatar, siô Baldo, já está falecido...
Agora, temos de render este serviço à pátria - tudo é
nacional!" Esse que já tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho
Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante fama. Se dizia, tinha
estudado a vida dele, nos pormenores, com tanta devoção
especial, que até um apelidO em si se apôs: Zé Bebelo; causa que, de
nome, em verdade, era José Rebêlo Adro Antunes.

"Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de
jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste
nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar
para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça,
só para tudo destruirem, do civilizado e legal!" Assim dizendo,
na verdade sentava o dizer, com ira razoável. A gente devia
mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades,
arrasar o comércio, saquear na sebaça, harrear com estrumes
humanos as paredes da casa do juiz-de-direito, escramuçar o promotor
amontado à força numa má égua, de cara para trás, com lata
amarrada na cauda, e ainda a cambada dando morras e aí
soltando os foguetes! Até não arrombavam pipas de cachaça diante de
igreja, ou isso de se expor padre sacerdote nó no olho da rua, e
ofender as donzelas e as famílias, gozar senhoras casadas, por
muitos homens, o marido obrigado a ver? Ao quando falava, com
o fogo que puxava de si, Zé Bebelo tinha de se esbarrar, ia até na
varanda ou na janela, a apitar o apito, ditar as boas ordens. Daí,
mais renovado, voltava para perto de mim, repunha: "Ah,
cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que sou capaz de fazer e
acontecer. Sendo porque fui eu só que nasci para tanto!" Dizendo que,
depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse,
então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, bascando fábricas,
remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza,
estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo
voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me enjoando.
Porque completava sempre a mesma coisa.

Mas, minha vida na fazenda, era ruim ou era boa. Se melhor
era. Arre, eu estava feito um inhampas. Aí lordeei. Me acostumei
com o fácil movimento, entrei de amizade com os capangas.
Sempre chegavam pessoas de fora, que conversavam em sozinhos com
Zé Bebelo, gente de cidade. De um, eu soube que era delegado,
em missão. E ele me apresentava com a honra de: Professor
Riobaldo, secretário sendo. Nas folgas vagas, eu ia com os
companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde estavam arranchadas
as mulheres, mais de cinquenta. Elas vinham vindo, tantas, que,
quase todo dia, mais tinham de baratear, Não faltava esse bom

146 147

divertir. Zé Bebelo aprovava: "Onde é que já se viu homem
valer, se não tem à mão estadas raparigas? Ond'é?" Mesmo
cachaça ele fornecia, com regra. "Melhor, se não eles por si
providenceiam, dão logo em abusos, patuléias..." isto
explicava. Demais, de tudo ali se prazia fartura confortável! Abastada
comida, armamento de primeira, monte de munição, roupas e
calçados para os melhores. E o cobre para semanal de
pagamento, pois nenhum daqueles homens estava ali por amor-de-deus,
mas ajeitando seu meio de viver. Diziam que era dinheiro do
cofre do Governo. Parecia.

A tal que, enfim, veio o dia de se sair, guerreiramente, por
vales e montes, a gente toda. Oi, o alarido! Aos quantos gritos,
um araral, revôo avante de pássaros o senhor mesmo nunca
viu coisa assim, só em romance descrito. De glória e avio de
própria soldadesca, e cavalos que davam até medo de não se achar
pasto que chegasse, e o pessoal perto por uns mil. Acompanhado
dos chefes-de-turma que ele dava patente de serem seus
sotenentes e oficiais de seu terço Zé Bebelo, montado num
formudo ruço-pombo e com um chapéu distintíssimo na cabeça,
repassava daqui p'r'ali, eguando bem, vistoriava. Me chamou para
junto, eu tinha de ter a mão um caderno grosso, para por ordem
dele assentar nomes, números e diversos, amanuense. Com eles
eu estava vindo, então, o senhor vê. Vinha, para conhecer esse
destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que,
quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava baixa
e alta de me ir m'embora.

Digo que fui, digo que gostei. À passeata forte, pronta
comida, bons repousos, companheiragem. O teor da gente se distraía
bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. Se
amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia ser
ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era o enfim. Era.
"Mais, mais, há-de dará é para diante, quando se formar
combate!" - uns proseavam. Zé Bebelo querendo. Sabia o que queria,
homem de muita raposice. Já no sair da Nhanva, tinha composto
seu povo em avulsos cada grupo, cada rumo. Um pelo São
LambertO, da mão direita; outro pegou o Riacho Fundo e o
Córrego do Sanhar; outro se separou da gente no Só-Aqui, indo
o Ribeirão da Barra; outro tomou sempre à mão esquerda,
encostando ombro no São Francisco; mas nós, que vínhamos mais
Zé Bebelo mesmo em capitania, rompemos, no meio, seguindo
o traço do Córrego Felicidade. Passamos perto de Vila
Inconfidência, viemos acampar no arraial Pedra-Branca, beira do Água-
Branca. E tudo correndo bem. Dum batalhão para outro, se
expedia gente com ordens e recados. Arrastávamos uma rede
grande, peixe grande por pegar. E foi. Eu não vi essa célebre
batalha eu tinha ficado na Pedra-Branca. Não por medo, não.
Mas Zé Bebelo me mandou: "Tem paciência, você espera,
para reunir os municipais do lugar e fazer discurso, logo que um
estafeta vier relatar qual foi nossa primeira vitória..."

Se deu, o que se disse. Só que, em vez de estafeta, a galope,
veio Zé Bebelo mesmo. Eu tinha ficado com ruma de foguetes,
para soltar, e foi festa. Zé Bebelo mandou dispor uma tábua por
cima de um canto de cerca, conforme ele ali subiu e muito falou.
Referiu. Para lá do Rio Pacú, no município de Brasília, tinham
volteado um bando de jagunços - o com o valentão
Hermógenes à testa - e derrotado total. Mais de dez mortos, mais de dez
cabras agarrados presos; infelizmente só, foi que aquele
Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia ir a longe! Ao que Zé
Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto futuro
prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu que eu falasse
discurso também.Tive de. "Você deve de citar mais é em meu
nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacio-

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nal..." se me se soprou. Cumpri. O que um homem assim
devia de ser deputado - eu disse, encalquei. Acabei, ele me
abraçou. O povo eu acho que apreciava. Daí, quando se estava no
depois do almoço, vieram cavaleiros nossos, tangendo o troço de
presos. Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase
todos sujos de sangues secos se via que não tinham esperança
nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia de Extrema, e de lá
para outras cadeias, de certo, até para a da Capital. Zé Bebelo,
olhando, me olhou, notou moleza. "Tem dó não. São os
danados de façanhosos..." Ah, era. Disso eu sabia. Mas como ia não
ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento,
própria, não é a qualidade do sofrente.

Pensei que agora podíamos merecer maior descanso. Ah, sim?
"Montar e galopar. Tem mais. Tem..." Zé Bebelo chamou.

Tocamos. Conversando, no caminho, eu perguntei, não sei:

"E Joca Ramiro?" Zé Bebelo tiscou de ombros, parece que não
queria falar naquele. Daí me deu um gosto, de menor maldade,
de explicar como era fabuloso o estado de Joca Ramiro, como
tudo ele sabia e provia, e até que trazia um homem só para o
ofício de ferrador, com a tendinha e as ferramentas, e o tudo
mais versante aos animais, O que ouvindo, Zé Bebelo esbarrou.

- "Ah, é uma idéia que vale, ora veja! Isso a gente tem de
conceber também, é o bom exemplo para se aproveitar..." ele
atinou. E eu, que já ia contar mais, do diverso, das peripécias que
meu padrinho dizia que Joca Ramiro inventava no dar batalha,
então eu como me concertei em mim, e calei a boca. Mire veja o
senhor tudo o que na vida se estorva, razão de pressentimentos.
Porque eu estava achando que, se contasse, perfazia ato de
traição. Traição, mas por que? Dei um tunco. A gente não sabe, a
gente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos os cavalos.
No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi, aprendi.
A metade dos nossos, que se apeavam, no avanço, entremeados
disfarçantes, suas armas em arte - escamoteados pelas árvores
- e de repente ligeiros se jazendo: para o rastejo; com as
cabeças, farejavam; toda a vida! Aqueles sabiam brigar, desde de
nascença? Só avistei isso um instante. Sendo que seguindo Zé
Bebelo, reviramos volta, para o Gameleiras, onde houve o pior. O
que era, era o bando do Ricardão, que quase próximo, que
cercamos. Para acuar, só faltando cães! E demos inferno. Se travou.
Tiro estronda muito, no meio do cerrado: se diz que é
estampido, que é rimbombo. Tive noção de que morreram bastantes.
Vencemos. Não desci de meu animal. Nem prestei, nem estive,
no fim, como o galope se desabriu: os homens perseguindo uns,
que com o mesmo Ricardão se escapavam. Mas mais não se
aproveitou, o Ricardão já tinha tido fuga. Então os nossos, de jeriza,
com os oito prisioneiros feitos queriam se concluir. "Eh, de
jeito nenhum, êpa! Não consinto covardias de perversidade!"

Zé Bebelo se danou. Apreciei a excelência dele, no sistema de
não se matar. Assim eu quis que o ar de paz logo revertesse o
alimpado, o povo gritando menos. Aquele dia tinha sido forte
coisa. De longe e sossego eu careci, demais. Se teve pouco.
Arranjado o preciso, só se tomou prazo breve, porque recombinaram
por diante os projetos e desarrancamos para a Terra Fofa, quase
na demarca com o Grão-Mogol. Mas lá não cheguei. Em certo
ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida.

Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou
um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir,
com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na
constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei
escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não
carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, desdi-

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zer: "Desanimei, declaro de retornar para o Curralim "Não
podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo me
deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação. Nem eu
não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A bem: me
fugi, e mais não pensei exato. Só isso, O senhor sabe, se
desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável.

Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira, eu
estava bem armado, Virei, vagaroso. Meu rumo mesmo era o do mais
incerto, viajei, vim, acho que eu não tinha vontade de chegar em
nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem as
trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista
da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que
muito me agradou - o marido dela estava fora, na redondeza.
Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me disse:

"Meu pai existe daqui a quarto-de-légua.Vai, lá tu almoça e
janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo,
dando avisos." Eu falei: "Você acende uma fogueira naquele
alto, eu enxergo, eu cá venho..." Ela falou: "Ao que não
posso, alguem mais avistando havia de poder desconfiar." Eu falei:
- "Assim mesmo, eu quero. Fogueira - uma fogueirinha de
nada..." Ela falou: "Quem sabe eu acendo..."A gente sérios,
nem se sorrindo. Aí, eu fui.

Mas o pai dessa mulher era um homem finório de esperto,
com o jeito de tirar da gente a conversa que ele constituía. A casa
dele espaçosa, casa-de-telha e caiada - era na beira, ali onde
o rio tem mais croas. Se chamava Manoel Inácio, Malinácio dito,
e geria uns bons pastos, com cavalhada pastando, e os bois. Me
deu almoço, me pôs em fala. Eu estava querendo ser sincero. E
notei que ele no falar m'e encarava e no ouvir piscava os olhos; e,
quem encara no falar mas pisca os olhos para ouvir, não gosta
muito de soldados. Aos poucos, então, contei: que dos zé-bebelos
não tinha querido fazer parte; o que era a valente verdade. -"E
Joca Ramiro?" ele me perguntou. Eu disse, um pouco por me
engrandecer e pôr minha prosa, que já tinha servido Joca
Ramiro, com ele conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não
podia ficar com Zé Bebelo, porque meu seguimento era por Joca
RamirO, em coração em devoção. E falei no meu padrinho
Selorico Mendes, e em Aluiz e AlaricoTotõe, e de como foi que Joca
Ramiro pernoitou em nossa fazenda do São Gregório. Mais
coisas decerto eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, só se
fazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele não estava. Deu
jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava
braba maleita. Não aceitei. Eu queria esperar, para ver se a logueira
por minha sorte se acendia, eu tinha gostado muito da filha dele
casada. Por um instante, o sabido do homem se tardou no que
fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar minha rede na
sombra, e descansar - eu disse que não andava bem de saúde,
isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um quarto,
onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à la vontade,
fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas.

Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar.
Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram de si
que tropeiros eram, e estavam assim vestidos e parecidos. Mas o
Malinácio começou a glosar e reproduzir minha conversa tida
com ele - disso desgostei, segredos frescos contados não são
para todos. E o arneiro dono da tropa que era o de cara
redonda e pra clara me fez muita interrogação. Não estive em
boas cócoras. Construi de desconfiar. Não do fato d'ele tal
encarecer - pois todo tropeiro sempre muito pergunta ; mas do
jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, de tudo
perseverado tomando conta. Ele queria saber para onde eu
mesmo me ia além. Queria saber porquê, se eu punia por Joca
Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado jeito de
trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me juntar?

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Quem desconfia, fica sábio: dizendo como pude, muito
confirmei; mas confirmei acrescentando que chegara até ali por dar
volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma de resolver os
projetos em meu espírito. Ah, mas, ah! enquanto que me
ouviam, mais um homem, tropeiro também, vinha entrando, na
soleira da porta. Aguentei aquele nos meus olhos, e recebi um
estremecer, em susto desfechado. Mas era um susto de coração
alto, parecia a maior alegria.
Soflagrante, conheci, O moço, tão variado e vistoso, era, pois
sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O
Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe
contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda
a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos
verdes, semelhantes grandes, o lembravel das compridas pestanas, a
boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoamento desses,
a gente estatela e não entende; que dirá o senhor, eu contando só
assim? Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens
não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de
acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos
de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte,
porque as outras pessoas o novo notaram isso no estado de
tudo percebi. O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é
o curto, as vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto
também. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim
está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo.
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele
encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado,
como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou
contando, depois é que eu pude reunir relembrado e
verdadeiramente entendido porque, enquanto coisa assim se ata, a
gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo.
Do que o que: o real roda e põe diante. "Essas são as horas da
gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos" me
explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o
trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo
ajunta e amortece só rara vez se consegue subir com a cabeça
fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por que? Diz-que-
direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa
a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é por-
de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia,
querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o
miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um
só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é
depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois
então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do
demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor
calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha
confusão aumenta. Sabe, uma vez: noTamanduá-tão, no barulho da
guerra, eu vencendo, aí estremeci num relance claro de medo
medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era
alto, maior do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo,
gargalhadas dava. Que eu de repente me perguntei, para não me
responder: "Você é o rei-dos-homens?..." Falei e ri. Rinchei,
feito um cavalão bravo. Desfechei.Ventava em todas as árvores.
Mas meus olhos viam só o alto tremer da poeira. E mais não
digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.
Conto. Reinaldo ele se chamava. Era o Menino do Porto,
já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal
da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me
separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que
entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele
Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo
sempre, as regências de uma alguma a minha família. Se sem peso e
Sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor podia vir man-

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dado do Dê? Desminto. Ah e Otacília? Otacília, o senhor verá,
quando eu lhe contar - ela eu conheci em conjuntos suaves,
tudo dado e clareado, suspendendo, se diz: quando os anjos e o
vôo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-
Altos, cabeceira de vereda. Otacilia, estilo dela, era toda exata,
criatura de belezas. Depois lhe conto; tudo tem o tempo. Mas o
mal de mim, doendo e vindo, é que eu tive de compesar, numa
mão e noutra, amor com amor. Se pode? Vem horas, digo: se um
aquele amor veio de Deus, como veio, então o outro?... Todo
tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e ant'ôntem amanhã:

é sempre.Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando
foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me
entende ,se é qUe no fim me entendera. Mas a vida não é entendivel.
Digo: afora esses dois e aquela mocinha Nhorinhá, da
Aroeirinha, filha de Ana Duzuza eu nunca supri outro amor,
nenhum. E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo
custoso. No passado, eu, digo e sei, sou assim: relembrando minha
vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e
desgosto é por minha mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair
pelos Gerais com mao de justiça, botou fogo em sua casa, nem
das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos
bradados, eu incendiei: eu ficava escutando o barulho de coisas
rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá
dentro. Sertão!

Logo que o Reinaldo me conheceu e me saudou, não tive
mais dificuldade em dar certeza aos outros de minha situação.
Ao quase sem sobejar palavras, ele afiançou o meu valimento,
para aquele mestre de cara redonda e bom parecer, que passava
por arneiro da tropa e se chamavaTitão Passos. De fato, tropeiros
não eram, eu soube, mas pessoal brigal de Joca Ramiro. E a
tropa? Essa, que se estava para seguir porquanto pra o Norte, com
os três lotes de bons animais, era para levar munição. Nem
tiveram mais prevenimento de esconder isso de mim. Aquele
Malinácio era o guardador: com as munições bem encobertadas.
Defronte da casa dele, mesmo, e para cima e para baixo, o rio
possuia as croas de areia - cada qual com seu nome, que os
remadores do das-Velhas botavam, e que todos tanto conheciam.
Três crôas e uma ilha. Mas uma delas três, maior, também sendo
meio ilha: isto é, ilha de terra, na parte de baixo, com grandes
pedras e árvores, e suja de matinho, capim, o alecrim viçoso
remolhando suas folhagens nágua e o bunda-de-negro verde
visente; e crôa, só de areia, na parte de cima. Uma crôa-com-ilha,
que é conforme se diz. A Crôa-com-Ilha do Malinácio, dita. A
lá, que aonde estava o oculto, a gente ia em canoa, baldear a
munição. Os outros companheiros, afetados de tropeiros, sendo
o Triol e João Vaqueiro, e mais Acrísio e Assunção, de sentinelas,
e Vóve, Jenolim e Admeto, que acabavam de enquerir a carga na
mulada. A gente, jantou-se, já se estava de saída, para toda
viagem. Eu ia com eles. Pois fomos. Nem tive pesar nenhum de não
esperar o sinal da fogueira da mulher casada, filha do Malinácio.
E ela era bonita, sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçada
de cana da bica para os cochos, dos cochos para os tachos.
Menos pensei. A andada de noite principiava como sobre algodão
produzida cuidadosa. Aquilo era munição de contos e
contos de réis, a gente prezava grandes responsabilidades. Se
vinha sem beiradear, mas sabendo o rio. Titão Passos comandava.

De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro
que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe va
achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei.
Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de um meu
dever honesto, Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse,
eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme,

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numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não
guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto, transtornei um
imaginar. Só não quis arrependimento: porque aquilo sempre era
começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já
tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldo vinha comigo, no
mesmo lote, e não caçava minha companhia, não se chegou para
perto de mim, nem vez, não dava sinal de prosseguir amizade. A
gente descarecia de cuidar dos burros, um por um, enfileirados
naquela paciência, na escuridão da noite eles tudo enxergavam.
Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a
combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida,
tinha topado com o Menino? era o que eu pensava. Veja o
senhor: eu puxava essa idéia; e com ela em vez de me alegre
ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu. Sorte? O que
Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina encher o vulto do rio, e se
estralar da outra banda a barra da madrugada. Assaz as seriemas
para trás cantaram. Ao que, esbarramos num sitiozinho, se
avistou um preto, o preto já levantado para o trabalho, descampando
mato. O preto era nosso; fizemos paragem.

Dali, rezei minha ave-mariazinha de de-manhã, enquanto se
desalbardava e amilhava. Outros escovavam os burros e mulas,
ou a cangalhada iam arrumando, a carga toda se pôde resguardar
- quase que ocupou inteira a casinha do preto. O qual era tão
pobre desprevenido, tivemos até de dar comida a ele e à mulher,
e seus filhinhos deles, quantidade. E noticia nenhuma, de nada,
não se achava. A gente ia ao menos dormir o dia; mas três tinham
de sobreficar, de vigias. O Reinaldo se dizendo ser um deles, eu
tive coragem de oferecer também que ficava; não tinha sono,
tudo em mim era nervosia. O rio, objeto assim a gente
observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia larga:
manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O Reinaldo
mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças,
enfileirantes, de toda brancura; o jaburú; o pato-verde, o pato-preto,
topetudo; marrequinhos dansantes; martim-pescador;
mergulhão; e até uns urubús, com aquele triste preto que mancha. Mas,
melhor de todos - conforme o Reinaldo disse - o que é o
passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima:
o que se chama o manuelzinho-da-crôa.

Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar
apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros,
em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era
para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: "É
formoso próprio..." ele me ensinou. Do outro lado, tinha
vargem e lagoas. P'ra e p'ra, os bandos de patos se cruzavam.

"Vigia como são esses..." Eu olhava e me sossegava mais. O sol
dava dentro do rio, as ilhas estando claras. "E aquele lá:
lindo!" Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima
da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás
traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas
coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea as
vezes davam beijos de biquinquim a galinholagem deles. -
"É preciso olhar para esses com um todo carinho..." - o Reinaldo
disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a macieza da
voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser - e tudo
num homem-d'armas, brabo bem jagunço - eu não entendia!
Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um
que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que houve,
foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras.
Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre me lembro. De todos,
o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o
manuelzinho-da-croa.

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Depois, conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e
eu tive uma influência para contar artes de minha vida, falar a
esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por
diante, eu não necessitava de prolongares. "Riobaldo...
Reinaldo de repente ele deixou isto em dizer: - ... Dão par, os
nomes de nós dois..."A de dar, palavras essas que se repartiram:
para mim, pincho no em que já estava, de alegria; para ele, um
vice-versa de tristeza. Que por que?Assim eu ainda não sabia. O
Reinaldo pitava muito; não acerto como podia conservar os
dentes tão asseados, tão brancos. Ao em tanto que, também, de pitar
se carecia: porque volta-e-meia abespinhavam a gente os
mosquitinhos chupadores, donos da vazante, uns mosquitinhos
dansadinhos, tantos de se desesperar. Eu fui contando minha
existência. Não escondi nada não. Relatei como tinha acompanhado
Zé Bebelo, o foguetório que soltei e o discurso falado, na Pedra-
Branca, o combate dado na beira do Gameleiras, os pobres
presos passando, com as camisas e as caras sujadas de secos
sangues. "Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo
homem..." ele no fim falou. Sopesei meu coração, povoado
enchido, se diz; me cri capaz de altos, para toda seriedade certa
proporcionado. E, aí desde aquela hora, conheci que, o
Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes.

Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos
lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que
vale e o que é que não vale?Tudo. Mire veja: sabe por que é que eu
não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa
memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no
escuro. Mas, eu, lembro de tudo, Teve grandes ocasiões em que eu
não podia proceder mal, aindas que quisesse. Por que? Deus vem,
guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior
do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode
medir suas pêrdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim,
conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.

Ai nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo
e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita
que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O que nela
guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde,
pincel e navalha. Dependurou o espelho num galho de
marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já estava cortado baixo.
Depois quis cortar o meu. Me emprestou a navalha, mandou eu
fazer a barba, que estava bem grandeúda. Acontecendo tudo com
risadas e ditos amigos - como quando com seu arreleque por-
escuro uma nhaúma devoou, ou quando eu pulei para apanhar
um raminho de flores e quase cai comprido no chão, ou quando
ouvimos um him de mula, que perto pastava. De estar folgando
assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa, era uma
felicidadezinha que eu principiava. Desde esse dia, por
animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo,
no mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel,
me deu, naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de
que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo
com muita estima. E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros
presentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia, essas
coisas todas. Seja, o senhor vê: até hoje sou homem tratado. Pessoa
limpa, pensa limpo. Eu acho.

Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele
não ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era sozinho no
escuro, me disse, no sinal da madrugada. Sempre eu sabia tal
crendice, como alguns procediam assim esquisito - os
caborjudos, sujeitos de corpo-fechado. No que era verdade. Não me
espantei. Somente o senhor tenha: tanto sacrifício, desconforto

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de se esbarrar nos garranchos, às tatas na ceguez da noite, não se
diferenciando um ái dum êi, e pelos barrancos, lajes escorregadas
e lama atolante, mais o receio de aranhas caranguej eiras e de
cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldo me instruiu aquilo, e me
deixou na beira da praia, alegrias do ar em meu pensamento.
Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu muito,
um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei a tirar a roupa. Mas
então notei que estava contente demais de lavar meu corpo
porque o Reinaldo mandasse, e era um prazer fofo e perturbado.
"Agançagem!" eu pensei. Destapei raivas. Tornei a me vestir
e voltei para a casa do preto; devia de ser hora de se comer a
janta e arriar a tropa para as estradas. Agora o que eu queria era
ímpeto de se viajar às altas e ir muito longe. A ponto que nem
queria avistar o Reinaldo.

Estou contando ao senhor, que carece de um explicado.
Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu
acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice
reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se
cre no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha
fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres!

nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o
que, o sem preceito. Então o senhor me perguntará o que
era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o
que, durando todo tempo, sempre mais, as vezes menos, comigo
se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação
nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia,
mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-
feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele
fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele
estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia
então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo
entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele
sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar
todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele,
dos braços, que as vezes adivinhei insensatamente tentação
dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos.
Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos,
do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou
meu cabelo. Sempre. Do demo: Digo? Com que entendimento
eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O
senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.

Assim mesmo, naquele estado exaltado em que andei,
concebi fundamento para um conselho: na jornada por diante, a gente
tinha de deixar duma banda do rio, ir passar a Serra-da-Onça e
entestar com a travessia do Jequitaí, por onde podia ter tropa de
soldados; mais ajuizado não seria se enviar só um, até lá, espiar o
que se desse e colher outras informações?

Titão Passos era homem ponderado em simples, achou boa a
minha razão.Todos acharam. Aquela munição era de ida urgente,
mas também valia mais que ouro, que sangue, se carecia de todo
cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nas idéias. Ao senhor
confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo - que a assoprada
na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar.
Mas logo me reduzi, atinando que minha opinião era só pelo
desejo encoberto de que a gente pudesse ficar mais tempo ali,
naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assim um roo de
remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão séria em cima,
e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres. Sempre
fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu
efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em
rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção,
rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com

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todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta
deles, cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do
preto Pedro Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da
Fazenda São Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me
atrependo retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes
do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos,
vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e
caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas-
flores, que arma sua cera cor-de-rosa.Tinha a quantidade de
pássaros felizes, pousados nas croas e nas ilhas. E até peixe do rio se
pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o
Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três
dias, quem me perguntou: "Riobaldo, nós somos amigos, de
destino fiel, amigos?" "Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo
amigo seu!" eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me
transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi
as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai,
sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricurí retorce
as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez
de tudo aquilo.

Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi
deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte
pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar
o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que
com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão
Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o
coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele
achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se
Jocà Ramiro era homem bom.Titão Passos regulou um espanto:
uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém.Acho
que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou
ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto
de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento:

- "Bom? Um messias!..." O senhor sabe: preto, quando é dos
que encaram de frente, é a gente que existe que sabe ser mais
agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o
Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver
em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho
amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que
ele não era sempre tranquilo igual, feito antes eu tinha pensado.
Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois,
visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de
opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu
concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal
nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser
parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão
governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim
uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal.
Talvez também seja. Anta entra n'água, se rupêia. Mas, não. Era
não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu
fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do
sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não
me entende. E o mais, que eu estava critiCando, era me a mim
contando logro jigajogas.

"Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo..."
- o Reinaldo veio dizendo. "Vai ver que ele é o homem que
existe mais valente!" Me olhou, com aqueles olhos quando
doces. E perfez: "Não sabe que quem é mesmo inteirado
valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!" Isto
ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito,
não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser.
Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao com-

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padre meu Quelemém. "Do que o valor dessas palavras tem
dentro ele me respondeu "não pode haver verdade
maior..." Compadre meu Quelemém está certo sempre.
Repenso. E o senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para
aumentar meu pêjo de tribulação.

Fim do bom logo vem, mas, O Acrísio retornou: pasmaceira
na barra do rio, a nenhuma novidade. Retornou o Jenolim: o
Jequitaí estava passável. E saímos simples com a tropa, sem me
menos dessossego nem mais receio, serra para cima, pelos
caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio, com três léguas de
marcha. Mazelas de mais pesares. E donde menos temi, no pior
me vi.Titão Passos começou a me perguntar.

Titão Passos era homem liso bom; me fazia as perguntas com
natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de mentir, nem de
me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante, atravessado o
Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós todos campo de fogo e aos
perigos de mortes. As turmas de cavaleiros de Zé Bebelo
campeavam naquele país, caçando gente, sopitando, vigiando. Do povo
morador, não faltava quem, desconfiando de nós, mandasse a eles
envio de denúncia, pois todos queriam aproveitar a ocasião para
se acabar com os jagunços, para sempre. "Morrer, morrer, a
gente sem luxo se cede..." o Reinaldo disse. "... Mas a
munição tem de chegar em poder de Joca Ramiro!" Eu podia pensar
tranquilo na minha morte por ali? Podia pensar no Reinaldo
morrendo? E o que Titão Passos queria saber era tudo que eu
soubesse, a respeito de Zé Bebelo, das malasartes que ele usava
em guerra, de seus aprovados costumes, suas forças e
armamentos.Tudo o que eu falasse, podia ajudar. O saber de uns, a morte
de outros. Para melhor pensar, fui mal-respondendo, me
calando, falando o que era vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o
que eu mesmo quisesse. Mas, traição, não.
Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta
nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudo dentro de
mim não podia. Dou vendido em pêcas riquezas o que eu cansei
naquela hora, minhas caras deviam de estar pegando fogo. Que
se eu contasse, não contasse, essas ansias. Eu não podia, como
um bicho não pode deixar de comer a avistada comida, como uma
bicha-fêmea não pode fugir deixando suas criazinhas em frente
da morte. Eu devia? Não devia? Vi vago o adiante da noite, com
sombras mais apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado
eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro?Titão Passos... o Reinaldo...
De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria
querer contar.

Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que Titão Passos
aceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda tinha,
guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes e coisas, de Zé
Rebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei, sabia
não. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos, taquei tudo
no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam. E, de tudo que
a respeito do resto eu sabia, cacei em mim um esforço de me
completo me esquecer. Depois,Titão Passos disse: "Você pode
ser de muita ajuda. Se a gente topar com a zebelância, você entra
de bico fala que é um deles, que esta tropa você está
levando..." Com isso, me conformei. Aos poucos, mesmo compunha
uma alegria, de ser capaz de auxiliar e pôr efeito, como o justo
companheiro. A que, no bando de Joca Ramiro, eu havia de
prestar toda a minha diligência e coragem. E nem fazia mal que eu
não relatasse a respeito de Zé Bebelo mais, porquanto o prejuízo
que disso se tivesse, por ele eu também padecia e pagava. No
caso, em vista de que agora eu estava também sendo um ramiro,
fazia parte. De pensar isso, eu desfrutei um orgulho de alegria

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de glória. Mas ela durou curta. Ói, barros da água do Jequitaí,
que passaram diante de minha fraqueza.

Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: "Tudo
temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você
fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar
imediato, por culpas de desertor..." Ouvi retardado, não pude
dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que
maneia. Em esquina que me vejo. Bananeira dá em vento de todo
lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem
data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles...
Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de
todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já
principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o
aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver
sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.
Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas que de repente
podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam: por al,
por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves,
atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar
de outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios
daqueles homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades
deles capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude,
não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um
vapor na cabeça, o miôlo volteado. Mudei meu coração de
posto. E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do
medo: grande vão eu atravessava.

A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de
mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais
gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais
de mim, de minha companhia. Por que? Nunca falo queixa, de
nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria
é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo
veiO. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: "Riobaldo,
puxa as orêlhas do teu jumento..." Mas amuado eu não estava.
Respondi somente: - "Amigo...", e não disse nem mais. Com
toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar.
Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou,
sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas isso
procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me
eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de
pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.

Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que
alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente e
pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim
o gole de um pensamento estralo de ouro: pedrinha de ouro.
E conheci o que é socorro.

Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas
primeiro tenho de relatar um importante ensino que recebi do
compadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que naquela
minha noite eu estava adivinhando coisas, grandes idéias.

Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me
ensinou que todo desejo a gente realizar alcança se tiver ânimo
para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de
só fazer o que dá desgosto, nôjo, gastura e cansaço, e de rejeitar
toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que,
maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele
desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de
glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas
mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida
nenhuma. Isso é do compadre meu Quelemém. Espécie de reza?

Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem
pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de se ter algum

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costume. Mas foi aquele grão de idéia que me acuculou, me
argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos,
é que a gente abre os olhos; achei, de per mim. E foi: que, no dia
que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que fosse o vicio de
minha vontade. E não ia dormir, nem descansar sentado nem
deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa,
o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo
se largava de meus peitos, de minhas pernas. O medo já
amolecia as unhas. Iamos chegando numa tapera, nas Lagoas do Córrego
Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons, O que resolvi, cumpri.
Fiz.

Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras
aragens. Cabeça alta - digo. Esta vida está cheia de ocultos
caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá.
Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou, O que há, que se
diz e se faz que qualquer um vira brabo corajoso, se puder
comer crú o coração de uma onça pintada. É, mas, a onça, a
pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta,
a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito
medroso, que tem muito medo natural de onça, mas que tanto
quer se transformar em jagunço valentão - e esse homem afia
sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça, com muita
inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O
senhor não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me vinham
uns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo.
Aguentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos: bis, tris;
ia e voltava. Me deu vontade de beber a da garrafa. Rosnei que
não. Andei mais. Nem não tinha sono nenhum, desmenti fadiga.
Reproduzi de mim outro fôlego. Deus governa grandeza. Medo
mais? Nenhum algum! Agora viesse corja de zebebelos ou tropa
de meganhas, e me achavam. Me achavam, ah, bastantemente.
Eu aceitava qualquer vuvú de guerra, e ia em cima, enorme
sangue, ferro por ferro. Até queria que viessem, duma vez, pelo
definitivo. Aí, quando os passos escutei, vi: era o Reinaldo que
vindo. Ele queria direto, comigo se conferir.

Eu não podia tão depressa fechar meu coração a ele. Sabia
disso. Senti. E ele curtia um engano: pensou que eu estava
amofinado, e eu não estava. O que era sisudez de meu fogo de
pessoa, ele tomou por mãmolência. Queria me trazer consolo?
"Riobaldo, amigo..." me disse. Eu estava respirando muito
forte, com pouca paciência para o trivial; pelo tanto respondi
alguma palavra só. Ele, em hora comum, com muito menos que
isso a gente marfava. Na vez, não se ofendeu. - "Riobaldo, não
calculei que você era genista..." ainda gracejou. Dei a
nenhuma resposta. Momento calados ficamos se ouvia o corrute dos
animais, que pastavam à bruta no capim alto. O Reinaldo se
chegou para perto de mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a
minha dureza, mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei.
Acho que olhei para ele com que olhos. Isso ele não via, não
notava. Ah, ele me queria-bem, digo ao senhor.

Mas, graças-a deus, o que ele falou foi com a sucinta voz:

"Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de
contar a você, e que esconder mais não posso... Escuta: eu não me
chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado
por necessidade minha, carece de você não me perguntar por
quê.Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas se diz.
A vida nem é da gente..."

Ele falava aquilo sem rompante e sem entonos, mais antes
com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa
suspensão.
"Você era menino, eu era menino... Atravessamos o rio
na canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele dia é que
Somos amigos."

170 171

Que era, eu confirmei. E ouvi:

"Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda
este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de
Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço,
Riobaldo..."

Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em
minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E
ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos.
Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de
grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois
queríamos - logo eu disse: - "Diadorim... Diadorim!" com uma
força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava,
gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção,
toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais
os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam.
Diadorim. Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava e
o Barra. Aquele dia fora meu, me pertencia. Íamos por um plaino
de varjas; lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão -
esse Alto-Norte brabo começava. Estes rios têm de correr
bem! eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto,
tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.

Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome
dele foi como dissesse notícia do que em terras longes se
passava. Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome
não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi
curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de
alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo
o ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome
verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não
queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade
dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando,
feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como
toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela
alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar,
mas bate suas asinhas no chão.
Hoje em dia, verso isso: emendo e comparo. Todo amor não
é uma espécie de comparação? E como é que o amor desponta.
Minha Otacilia, vou dizer. Bem que eu conheci Otacilia foi
tempos depois; depois se deu a selvagem desgraça, conforme o
senhor ainda vai ouvir. Depois após. Mas o primeiro encontro meu
com ela, desde já conto, ainda que esteja contando antes da
ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais forte na
lembrança? Pois foi. Assim que desta banda de cá a gente tinha
padecido toda resma de reveses; e que soubemos que os judas também
tinham atravessado o São Francisco; então nós passamos, viemos
procurar o poder de Medeiro Vaz, única esperança que restava.
Nos gerais. Ah, burití cresce e merece é nos gerais! Eu vinha
com Diadorim, com Alaripe e com João Vaqueiro mais Jesualdo,
e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao senhor - vereda acima
até numa Fazenda Santa Catarina se chegar. A gente tinha ciência
de que o dono era favorável do nosso lado, lá se devia de esperar
por um recado. Fomos chegando de tardinha, noitinha já era,
noite, noite fechada. Mas o dono não estava, não, só ia vir no
seguinte, e sôr Amadeu a graça dele era. Quem acudiu e falou foi
um velhozinho, já santificado de velho, só se apareceu no
parapeito da varanda - parece que estava receoso de nossa forma;
não solicitou de se subir, nem mandou dar nada de comer, mas
disse licença d'a gente dormir na rebaixa do engenho. Avô de
Otacilia esse velhinho era, se chamava Nhô Vô Anselmo. Mas,
em tanto que ele falava, e mesmo com a confusão e os latidos de
muitos cachorros, eu divulguei, qual que uma luz de candeia mal
deixava, a doçura de uma moça, no enquadro da janela, lá den-

172 173

tro. Moça de carinha redonda, entre compridos cabelos. E, o
que mais foi, foi um sorriso. Isso chegasse? As vezes chega, às
vezes. Artes que morte e amor têm paragens demarcadas. No
escuro. Mas senti: me senti, Aguas para fazerem minha sede. Que
jurei em mim: a Nossa Senhora um dia em sonho ou sombra me
aparecesse, podia ser assim aquela cabecinha, figurinha de
rosto, em cima de alguma curva no ar, que não se via. Ah, a
mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa!
Otacilia. O prêmio feito esse eu merecia?

Diadorim dira o senhor: então, eu não notei viciice no
modo dele me falar, me olhar, me querer. bem? Não, que não -
fio e digo. Há-de-o, outras coisas.., O senhor duvida? Ara,
mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que ele
gostava de mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim,
digo. Eh, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça:
boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no
alto campo, brabejando; cobra jararacussú emendando sete
botes estalados; hando dôido de queixadas se passantes, dando
febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas
coisas se acreditam. O demônio na rua, no meio do redem unha... Falo!
Quem é que me pega de falar, quantas vezes quero?!

Assim ao feito quando logo que desapeamos no acampo do
Hermógenes; e quando! Ah, lá era um cafarnaúm. Moxinife de
más gentes, tudo na deslei da jagunçagem bargada. Se estavam
entre o Furado-de-São-Roque e o Furado-do-Sapo, rebeira do
Ribeirão da Macaúha, por fim da Mata da Jaíba. A lá chegamos
num de-tardinha. Às primeiras horas, conferi que era o inferno.
Aí, com três dias, me acostumei, O que eu estava meio
transtornado da viagem.

A ver o que eu contava: quem não conhecia o Reinaldo,
ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamos em fim
chegado, sem soberba nenhuma, contentes por topar com tanto
número de companheiros em armas: de todos, todos eram
garantia. Entramos no meio deles, misturados, para acocorar e
prosear caçamos um pé de fôgo. Novidade nenhuma, o senhor
sabe - em roda de fogueira, toda conversa é miudinhos
tempos. Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós o nosso:

roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar. Mas
Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas. Um ou
dois, dos homens, não achavam nele jeito de macheza, ainda mais
que pensavam que ele era novato. Assim loguinho, começaram,
aí, gandaiados. Desses dois, um se chamava de alcunha o Fancho-
Bode, tratantaz. O outro, um tribufú, se dizia Fulorêncio, veja o
senhor. Mau par. A fumaça dos tições deu para a cara de
Diadorim "Fumacinha é do lado do delicado..." o
Fancho-Bode teatrou. Consoante falou soez, com soltura, com
propósito na voz. A gente, quietos. Se vai lá aceitar rixa assim de graça?
Mas o sujeito não queria pazear. Se levantou, e se mexeu de modo,
fazendo xetas, mengando e castanhetando, numa dansa de furta-
passo. Diadorim se esteve em pé, se arredou de perto da
fogueira; vi e mais vi: ele apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era
abusado, vinha querer dar umhigada. E o outro, muito
comparsa, lambuzante preto, estumou, assim como fingiu falsete,
cantarolando pelo nariz:


"Pra gaudér, Gaudôncio

E aqui pra o Fulorêncio?..."


Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o
que havia de haver, eujá sabia... Oap!: o assoprado de um refugão,
e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, arrumou mao
nele, meteu um sopapo: um safano nas queixadas e uma so-

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barbada e calçou com o pé, se fez em fúria. Deu com o Fancho-
Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e o punhal parou
ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, da
parte de riba, para se cravar deslizado com bom apôio, e o pico
de pele, de belisco, para avisar do gosto de uma boa-morte; era
só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava, O fechabrir de olhos,
e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre, eu não queria
presumir de prevenir ninguém, mais queria mesmo era matar, se
carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora justa e certa,
nunca tive medo. Notaram. Farejaram pressentindo: como
cachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartar assim é
perigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os
acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí não quis me
encarar mais. "Coca, bronco!" Diadorim mandou o Fancho
se levantasse: que puxasse também da faca, viesse melhor se
desempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistoso safado, como
tudo tivesse constado só duma brincadeira: "Oxente!
Homem tu é, mano-velho, patrício!" Estava escabreado. Dava nôjo,
ele, com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo
lado. Guardei meu revólver, respeitavelmente. Aqueles dois
homens não eram medrosos; só que não tinham os interesses de
morrer tão cedo assim. Homem é rosto a rosto; jagunço
também: é no quem-com-quem. E eles dois não estavam ali muito
estimados. Comprazendo conosco, outros companheiros deram
ar de amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me
perguntou: "Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje?"
Divertindo, também, para o ar dei resposta: "Só se for com
dinheiro da mãe do jacaré..." Todos riram. De mim não riram, O
Fulorêncio riu também,mas riso de velho. Cá pensei, silencioso,
silenciosinho: "Um dia um de nós dois agora tem de comer o
outro... Ou, se não, fica o assunto para os nossos netos, ou para
os netos dos nossos filhos..."Tudo em mais paz, me ofereceram:

bebi da januária azulosa - um gole me foi: cachaça muito
nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente.

Sempre disse ao senhor, eu atiro bem.

E esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a
bota no primeiro fogo que se teve com uma patrulha de Zé
Bebelo. Por aquilo e isso, alguém falou que eu mesmo tinha atirado
nos dois, no ferver do tiroteio. Assim, por exemplo, no
circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina. Adiante
falaram que eu aquilo providenciei, motivo de evitar que mais
tarde eles quisessem vir com alguma tranquibérnia ou embusteria,
em fito de tirarem desforra. Nego isso, não é verdade. Nem quis,
nem fiz, nem praga roguei. Morreram, porque era seu dia,
deles, de boa questão. Até, o que morreu foi só um. O outro foi
pego preso eu acho deve de ter acabado com dez anos em
alguma boa cadeia. A cadeia de Montes Claros, quem sabe. Não
sou assassino. Inventaram em mim aquele falso, o senhor sabe
como é esse povo. Agora, com uma coisa, eu concordo: se eles
não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo
todo me tocaiando, mais Diadorim, para com a gente
aprontarem, em ocasião, alguma traição ou maldade. Nas estórias, nos
livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e
peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais
engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro
real, esses forcados não servem: o melhor mesmo, completo, é
o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que
alguma tramóia perfaça! Também, sei o que digo: em toda a parte,
por onde andei, e mesmo sendo de ordem e par, conforme sou,
sempre houve muitas pessoas que tinham medo de mim.
Achavam que eu era esquisito.

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Só o que mesmo devo de dizer,como atiro bem: que vivo
ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e
gatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupes pouco me
ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquer cano de
fio: revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote
ou rifle. Honras não conto alto, porque acho que acerto natural
assim é de Deus, dom dado. Pelo que compadre meu Quelemém
me explicou: que eu devo de, noutra vida, por certo em
nação, ter trabalhado muito em mira em arma. Seja? Pontaria, o
senhor concorde, é um talento todo, na idéia. O menos é no
olho, compasso. Aquele Vupes era profeta? Certa vez, entrei num
salão, os companheiros careciam que eu jogasse, mor de inteirar
a parceiragem. Bilhar quero dizer. Eu não sabia, total. Tinha
nunca botado a mão naquilo. "Faz mal nenhum" o Advindo
disse. "Você forma comigo, que sou tão no taco. João Nonato,
com o Escopil, jogam de contra-lado..." Aceitei. Combinado
ficou que o Advindo pudesse me superintender e pronunciar cada
toque, com palavras e noção de conselhos, mas sem licença de
apoiar mão em minha mão ou braço, nem encostar dedo no taco.
É de ver que, mesmo do jeito, não bobeei um ceitil: o Advindo
me lecionava o rumo medido da vantagem, e eu encurvava o
corpo, amolecia barriga e taqueava o meu chofre, querendo aquilo
no verde : era o justo repique umas carambolas de todos
estalos, retruque e recompletas, com recuanço, ladeio perfeito,
efeito produzido e reproduzido; por fim, eu me reprazia mais
escutando rebrilhar o concôco daquelas bolas umas nas outras,
deslizadas... E pois, conforme dizia, por meu tiro me
respeitavam, quiseram pôr apelido em mim: primeiro, Cerzidor, depois
Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas firme não pegou. Em mim,
apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo quieto,
num feitio?

No que foi, no que me vi, no acampo do Hermógenes.

Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no
vendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos, que todos
curtidos no jagunçar, rafaméia, mera gente. Azomhado, que
primeiro até fiquei, mas dai quis assuntação, achei, a meu cômodo.
Assim, isto é, me acostumei com meio-só meu coração, naquele
arranchamento. Propriamente, pessoal do Hermógenes. Digo:

bons e maus, uns pelos outros, como neste mundo se pertence.
Por um que ruim seja, logo mais para adiante se encontra outro
pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com isso, a peito
pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta gravidade.
Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavava e conversa de
festa, tomando tempo. Aqueles não desamotinavam. A ajunta,
ali, assim, de tantos atrás do ar, na vagagem: manga de homens,
por zanzar ou estar à-tôa, ou parar formando rodas; ou uns
dormindo, como boi malha; ou deitados no chão sem dormir só
aboboravam. Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito
com cinta larga de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e
colete preto de fino pano, cidadão; outros com coroça e bedém,
mesmo sem chuva nenhuma; só que de branco vestido não se
tinha: que com terno claro não se guerreia. Mas jamais ninguem
ficasse nó-de-Deus ou indecente descomposto, no meio dos
outros isso não e não. Andando que sentados, jogando jogos,
ferrando queda de braço, assoando o nariz, mascando fumo forte e
cuspindo longe, e pitando, picando ou dedilhando fumo no
da mão, com muita demora; o mais, sempre no proseio. Aventes
baldrocavam suas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse e
menos quisesse, que custou barato. E ninguém furtava! Furtasse,
era perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem bois.

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Ou cuidavam do espírito da barriga, O serviço que cumpriam
era alimpar as armas bem marcadas as cruzes nas feições das
coronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-o-
que-fazer. Por isso se dizia que ali corresse muita
besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham lá até cachorros,
vadiando geral, mas o dono de cada um se sabia; convinha não
judiar com cão, por conta do dono.

Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que
fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão;
ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles
diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que eu
era mesmo de outras extrações. Semelhante por este exemplo,
como logo entendi: eles queriam completo ser jagunços, por
alcanço, gala mestra; conforme o que avistei, seguinte. Pois não
era que, num canto, estavam uns, permanecidos todos se
ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam: que
estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os
dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o
tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em aflito, abobante.
Os que lavravam desse jeito: o Jesualdo mocinho novo, com
sua simpatia , o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles
eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os
dentes de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de
remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São
Francisco piranha redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor
não pense que para esse gasto tinham instrumentos próprios,
alguma liminha, ou ferro lixador. Não: aí era à faca. O Jesualdo
mesmo se fazia, fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de
encalcar o corte da faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia
no cabo da faca, com uma pedra, medidas pancadas. Sem
espelho, sem ver; ao tanto, que era uma faca de cabo de niquelado.
Ah, no abre-boca, comum que babando, às vezes sangue babava.
Ao mais gemesse, repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito
doía. Agüentava. Assim esquentasse demais; para refrescar, então
ele bochechava a breve, com um caneco de água com pinga. Os
outros dois, também. O Araruta procedia sozinho, igual,
batendo na faca com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o
Simião, com um martelinho para os golpes, era quem raspava;
mas decerto o Nestor ao outro para isso algum tanto pagasse.
Abrenunciei. "Arrenego!" eu disse. "Deveras? Então,
mano-velho, pois tu não quer?" o Simião, em gracejo, me
perguntou. Me fez careta; e acredite o senhor: ele, que exercia
lâmina nos do outro, ele não possuía, próprio, dente mais
nenhum nas gengivas conforme aquela vermelha boca
banguela toda abriu e me mostrou. Repontei: "Eu acho que, para
se ser valente, não carece de figurativos..." O Acauã, que ja era
bom conhecido meu, assim mesmo achou de se reagir: "São
gostos..." Mas, um outro, que chegando veio, falou o mais seco:

"Tudo na vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu!"
Olhei para esse, que me deu o apoio. E era um Luis Pajeú
com a faca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do
mesmo nome, das comarcas de Pernambuco. Sujeito
despachado, moreno bem queimado, mas de anelados cabelos, e com uma
coragem terrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que ele
mais não tinha, era uma orêlha, que rente cortada fora, pelo
sinal. Onde era que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela
orêlha? "Será gosto meu não, de descascar dentaduras..."

conciso declarou, falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte,
foi outro falar, de outro, que no instante também ouvi: "Ué,
em minha terra, se afia guampa, é touro, ixi!" E esse um, trolado
demais franco, e desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz
conhecença. Dele tenho, para mais depois.

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Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi.
Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas tão
pobrezinhas, a gente parando assim quase num deserto? E a
nição, tanta, que nem precisaram da que tínhamos trazido, e que
foi levada mais adiante, para os escondidos de Joca Ramiro,
perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela cabroeira
vivente, que estavam ali em seu emprego de cargo? Ah, tinham
roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaça era a lavoura
deles, falavam até em atacar grandes cidades. Foi ou não foi?

Mas, mire e veja o senhor: nas eras de 96, quando os
serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São Francisco,
sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros anos, quando
Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase com
homens mil e meio mil, a cavalo, o povo de São Francisco soube,
se reuniram, e deram fogo de defesa: diz que durou combate
por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na boca das
ruas com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores
cortadas, de través brigaram com o boa população! Daí, aqueles
retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda,
conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns
dados, cercados numas duas ou três casas e um quintal,
guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o major Amaral
tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele. Andalécio
- o que, de nome real: Indalécio Gomes Pereira homem de
grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com
tremores: de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio
comandava e esbarrava, para gritar feroz: "Sai pra fora, cão!
Vem ver! Bigode de homem não se corta!..."Tudo gelava, de só
se escutar. Aí, quem trouxe socôrro, para salvar o Major, foi o
delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo as pressas de
Januária, com punhadão de outros jagunços, de fazendeiros da
política do Governo. Assim que salvaram, mandaram
desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze
juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu
tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e
lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora,
recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do barulhão
em Carinhanha mortandades: quando se espirrou sangue por
toda banda, o senhor sabe: "Carinhanha é bonitinha uma
verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que
sempre foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque
- o pai da coragem. Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem
Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus
cabras, formaram grupo calados, arredados. Andalecio foi meu bom
amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade
acaba com o sertão. Acaba?

Atinei mal, no começo, com quem era que mandava em nós
todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinquenta - nesse meio
o Acauã, Simião, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa obedeciam a
João Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de brabos do Ricardão.
Onde era que estava o Ricardão? Reunindo mais braços de
armas, beira da Bahia. Se esperava também a vinda de Só
Candelário, com os seus. Se esperava o chefe grande, acima de todos
- Joca Ramiro falado aquela hora em Palmas. Mas eu achava
aquilo tudo dando confuso. Titão Passos, cabo-de-turma com
poucos homens à mão, era nãostante muito respeitado. E o
sistema diversiava demais do regime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço
se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder
explicar ao senhor. Assim sendo uma sabedoria sutil, mas
mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se
trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando,
com o governo de bando de bichos caititu, boi, boiada, exem-

182 183

plo. E, de coisas, faziam todo segredo. Um dia, foi ordem:
ajuntar todos os animais, de sela e de carga, iam ser levados para
amoitamento e pasto, entre serras, no Ribeirão PoçoTriste, num
varjal. Para mim, até o endereço que diziam, do lugar, devia de
ser mentira. Mas tive de entregar meu cavalo, completo no
contragôsto. Me senti, a pé, como sem segurança nenhuma. E
tem as pequenas coisas que aperreiam: enquanto estava com meu
animal, eu tinha a capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia
guardar meus trecos. De noite, dependurava a sela num galho de
árvore, botava por debaixo dela o dobro com as roupas, dormia
ali perto, em paz. Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os
trens não podia - chegava o peso das armas, e das balas e
cartuchame. Perguntei a um, onde era que tudo se depositava.

- "Eh, berêu... Bota em algum lugar... Joga fora... Ôxe, tu
carrega ouro nesses dobros?..." Quê que se importavam? Por tudo,
eram fogueiras de se cozinhar, fumaça de alecrim, panela em
gancho de mariquita, e cheiro bom de carne no espeto, torrada
se assando, e batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho.
A farinha e rapadura: quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao
tanto que a carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam
alguns e retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos
misturavam a jacuba pingando no coité um dedo de aguardente,
eu nunca tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os
usares! A ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão,
ajuntava ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação
de carne escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a
Ponta do facão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. A saudade
minha maior era de uma comidinha guisada: um frango com
quiabo e abóbora-d'água e caldo, um refogado de carurú com ofa de
angú. Senti padecida falta do São Gregório - bem que a minha
vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me disse
consolo: "Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos
acuados em buraco..."Assistir com Diadorim, e ouvir uma
palavrinha dele, me abastava aninhado.

Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar
muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que maldavam,
desconfiassem de ser feio pegadio. Aquele povo estava sempre
misturado, todo o mundo. Tudo era falado a todos, do comum:

às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando estivemos com
Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais
gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes
distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto é, eu me acostumei.
Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu empacotava
ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou no pontual,
e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que soubessem
logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: -"Tatarana,
põe o dez no onze..." me pediam, por festar. De duzentas
braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo
só as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me
aperreavam, os coscuvilhos. "Se alguém falou mal de mim,
não me importo. Mas não quero que me venham me contar!
Quem vier contar, e der notícias é esse mesmo que não presta: e
leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!..." eu informei.
O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer meu
pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se
esquecerem, eu pegava o rifle - tive rifle de winchester, até, de
quatorze tiros e dava gala de entremez. "Corta aquele
riscoTatarana!" me aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei.
Para rebater, reproduzia tudo a revólver. "Vem um cismo de
fio de cabelo no ar, que eu acerto." Sobrefiz. Social eu andava
com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre. Ao
que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.

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Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive que era o de
destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seu riso tem
siso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhas tolas
palavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha em
teia. Se não, por que era que já me vinha a idéia desejável: que
joliz havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do
Hermógenes?

A bronzes, O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai
que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele.
Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria
bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui. Entendi
o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de
primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo a
traição, espreitar a gente por conta dos bebelos. Assassinaram.
Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O senhor vigie esses:

comem o crú de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal
não se abrandar nem esmorecer, até Só Candelário, que se
prezava de bondoso, mandava mesmo em tempo de paz, que seus
homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser
ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercicios
de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava
do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole,
soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha
pena de toda cria de Jesus. "E Deus, Diadorim?" uma hora
eu perguntei. Ele me olhou, com silenciozinho todo natural, daí
disse, em resposta: "Joca Ramiro deu cinco contos de réis
para o padre vigário de Espinosa..."

Mas o Hermógenes era fel dormido, flãgelo com frieza.
Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava
valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando
um inimigo foi pego, ele mandou: - "Guardem este." Sei o que
foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha,
o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca, O Hermógenes
não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente
podia caçar a alegria pior nos olhos dde. Depois dum tempo, ia
lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava
vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si,
com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou
falar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta no meio, qual
sem vontade, boca de dôr. Eu não queria olhar para ele, encarar
aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele

- um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro
do rio, pé-puho. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta
ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas, mais,
com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à
gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele
homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho
deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em
claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo
vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo
devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rás, com o inferno da
jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com
todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu
coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí
eu não queria ficar dôido, no nem mesmo. Puxei conversa com
Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido,
de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um
sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me
escutou depressa, tal duvidou de meu juízo: "Riobaldo, onde
é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é dUro,
mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne e
com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bem-

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comportados, bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé
Bebelo e aos cachorros do Governo?!" A espichado, nesse dia
calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de
Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição. Um
nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas
de tristeza.

Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom.
Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber,
constante comer. - "Comeu, lobo?" E vozear tantas asneiras,
mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse:

"Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o
Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados
pesares..." Desentendi, mediante meu querer. Mas não me
adiantou. Daí, persistentemente, essa história me remoía, esse nome
de um Leopoldo. Tomava por ofensa a mim, que Diadorim
tivesse tido, mesmo tão antes, um a migo companheiro. Até que, vai,
cresci naquela idéia: que o que estava fazendo falta era uma
mulher.

E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher
nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. "Saindo por aí",
dizia um, "qualquer uma que seja, não me escapoLe!"Ao que
contavam casos de mocinhas ensinadas por eles,
aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. - "Mulher é gente tão
infeliz..." me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido
as estórias. Aqueles homens, quando estavam precisando, eles
tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me livrou
de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira, que foi,
bonita moça, eu estava com ela somente.Tanto gritava, que
xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a
moça fechados os olhos - não bulia; não fosse o coração
dela rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia
esbarrar. Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha.
Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres,
constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores!
Pudesse, levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio
perto da Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa
se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah,
era que nem eu nos medonhos fosse e, o senhor crê? a
mocinha me aguentava era num rezar, tempos além. Ás almas
fugi de lá, larguei com ela o dinheiro meu, eu mesmo roguei
pragas. Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas
ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma
minha recompensa. O que eu queria era ver a satisfação para
aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa'uarda, sempre formosa,
a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e que a qual,
não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em todo
tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá,
filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu
estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito
devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério
preciso.

Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns
poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os
anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por
todos, estes: Capixúm - caboclo sereno, viajado, filho dos gerais
de São Felipe; Fonfrêdo - que cantava todas as rezas de padre, e
comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde
era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfrêdo, desse já lhe
contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe,
vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei
nesta minha vida; Dada Santa-Cruz, ditO "o Caridoso", queria
sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de

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vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catêcho, mulato claro
era curado de bala. Lindorifico, chapadeiro minas-novense, com
mania de aforrar dinheiro, O Diêlo, preto de beiço maior.Juvenato,
Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para quê que eu fui
querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José
Amigo...

Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é
demônio de ruim, ele ira de não querer ser, capaz até de nessa raiva
matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais dificil não é
um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber
definidO o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.
Ezirino matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o
pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de
contrariar qualquer coisa que a gente falava. Ezirino caiu no mundo.
Daí, começou voz que ele tinha fugido para se bandear com os
zé-bebelos, pago por sua traição, e que Batatinha somente
morreu porque disso sabia.Todo o mundo andava encrêspo, forjicavam
muita cilada e enredos de desconfianças. Mudamos para outros
lugares, mais a coberto, em distância: obra de sete léguas, para a
parte do poente. Muito vi que não estávamos fazendo isso por
escapulir; mas que o Hermógenes,Titào Passos e João Goanhá,
antes acharam de combinar aquilo, em suas conversas - era o
arrumo para melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá
chegaram, com satisfação de todos, dez homens, a Só
Candelário pertencidos. Traziam cargueiros com mais sal, bom café e
uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o
Luzié, alagoano de Alagôas. Nesse dia, eu saí, com esquadra,
fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos
mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.

De manhã cedo, eu soube: tinham até dansado, aquela
véspera. "Diadorim, você dansa?" logo, perguntei. "Dansa?
Aquilo é pé de salão..." quem respondeu foi o Garanço, o de
olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço,
era um mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa
muito agradável de seu natural. Ele tinha idéias, às vezes parecia
criança pequena. Punha nome em suas armas: o facão era torturtím,
o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode. Com ele, a gente ria,
sempremente. Mais o Garanço daxa de procurar a companhia
nossa, minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro
para perto. As vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza,
verdadeira. Diadorim não dizia nada, estava deitado de costas num
pelego, com a cabeça num feixe de capim cortado. Ali naquele
lugar ele contumaz dormia - Diadorim menos gostava de rede.
O Garanço era sanfranciscano, dum lugar chamado Morpará.
Hásde, queria que a gente escutasse ele recontar compridas
passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos
violeiros, que tocavam sentimento geral. Depois, Diadorim se
levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio momento
na beleza dele, guapo tão aposto surgido sempre com o
jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro
de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De
repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no
mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no
capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do
Garanço, só com o violeiro somei. A zangarra daquela viola. Por
não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei.
Eu já não presenciava nada, nem escutava - possuído fiquei
sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório?
A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos
passarinhos de lá, do pôço no córrego, do batido do monjolo dia e
noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos
sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens.

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O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo
o vivido longe alto, com pouco carôço, querendo esquentar,
demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero
enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do
que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.
Mire veja: naqueles dias, na ocasião, devem de ter
acontecido coisas meio importantes, que eu não notava, não surpreendi
em mim. Mesmo hoje não atino com o que foram. Mas, no justo
momento, me lembrei em madrugada daquele nome: de Siruiz.
Refiro que perguntei ao Garanço, por aquele rapaz Siruiz, que
cantava cousas que a sombra delas em meu coração decerto já
estava. O que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da
moça virgem, moça branca, perguntada, e dos pés-de-verso como
eu nunca tive poder de formar um igual. Mas o Garanço já tinha
respondido: "Eh, eh, ô... O Siruizjá morreu. Morreu morto
no tiroteio, entre o Morcêgo e o Suassúapara, passado para cá o
Pacuí..." Do choque com que ouvi essa confirmação de noticia,
fui arriando para um desânimo. Como se assim ele tivesse
falado: "Siruíz? Mas não foram vocês mesmos que mataram?..." Eu,
não. Nessa vez eu tinha restado longe por fora, na Pedra-Branca,
não vi combate. Como era que eu podia? O Garanço tomava
rapé. Era um sujeito de intenções muito parvas. Perguntou se o
Siruiz não seria meu amigo, meu parente. "Quem sabe se
era.., eu respondi, de toleima. O Garanço, vi que não
gostou. Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos
olhos. Nem eu quis indagar o mais, certo estava de que ele
Garanço não sabia nada do que tivesse valor. Mas eu guardava
triste de cór a canção recantada. E Siruiz tinha morrido. Então
me instruiram na outra, que era cantiga de se viajar e cantar,
guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:


"Olerereêe, baiana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu faço
que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio
pra trás..."


O senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de
ruindade, lá como quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar dos
outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho a
caixeta da raiva aberta. Rixava com nenhum, ali, aceitava o
regime, na miudez das normas. Vai, daí, comigo erraram. Um,
errou. Um pai-jagunço chamado Antenor, acho que era coração-
de-jesusense, começou a temperar conversa, sagaz de fiúza, notei.
Ele era homem chegado ao Hermógenes - se sabia dessa parte.
De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber que apreço eu
tinha por Joca Ramiro, por Titão Passos, os outros todos. Se eu
conhecia Só Candelário, que estava por chegar? O giro dos
assuntos ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha querendo
deixar em mim uma ma vazante: me largar em dúvida. Não era?
Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre louvando e
vivando Joca Ramiro. acabou por me dar a entender, curtamente,
o em conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal em estar
tanto tempo por longe, alguns de bofe ruim já calculavam que
ele estivesse abandonando seu pessoal, em horas de tanta guerra;
que Joca Ramiro era rico, dono de muitas posses em terras, e se
arranchava passando bem em casas de grandes fazendeiros e po-

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líticos, deles recebia dinheiro de munição e paga: seô Sul de
Oliveira, coronel Caetano Cordeiro, doutor Mirabô de Meio. Que
era que eu achava?

Eu escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma
coisa. Não tinha nascido no ôntem, cedo tomei experiência de
homens por homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava
formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em
lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes,
emTitão Passos, João Goanhá fortes no fato valor e na lealdade.
Gabei o Hermógenes, principal; bispei. Com isso, aquele
Antenor concordou. A bem dizer, aprovou o quanto eu disse.
Mas realçou mais altamente a fama do Hermógenes, e do
Ricardão, também esses dois seriam os chefes de encher a mão, em
paz regalada mas por igual nos combates. Esse sujeito Antenor
sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças verdes. Vulto
perigoso, nas ações o Garanço me preveniu, com a boa noção
vinda de sua redondice de atinar. Ações? O que eu vi, sempre, é
que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada.
Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo. Aquele
Antenor já tinha depositado em mim o anuvio de uma má idéia:

disidéia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha
como um rabo de gota de orvalho. Que explicação dou ao
senhor? Acreditar, no que ele tinha suso dito, não acreditei. Mas
em mim, para mim, aquilo tudo era - era assim como um lugar
com mau-cheiro, no campo, uma árvore: lugar fedido, onde é
que alguma jaratataca acuou, por se defender do latido dos
cachorros. E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas
menos do que ouvi, real, do que - do que eu tinha de certo modo
adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, quase toda a vez
que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter
COnSOlO legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe,
ferro!
Cacei Diadorim. Mas eu estreava umas ansias. Como fosse,
falei, do novo e do velho; mal foi que falêi: em zanga
desrazoadamente e de primeira entrada. Acho que, por via disso,
Diadorim não deu a devida estimação às minhas palavras. Alheio,
eh. Só ojerizado em estilos ele esteve, um raio de momento, foi
de ouvir que alguém pudesse duvidar do proceder de Joca
Ramiro. Joca Ramiro era um imperador em três alturas! Joca Ramiro
sabia o se ser, governava; nem o nome dele não podia atôa se
babujar. E aqueles outros: o Hermógenes, Ricardão? Sem Joca
Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, deste mundo
desapareciam - valiam o que pulga pula. O Hermógenes? Certo,
um bom jagunço, cabo-de-turma; mas desmerecido de situação
política, sem tino nem prosápia. E o Ricardão, rico, dono de
fazendas, somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro
e ajuntando. Diadorim, do Ricardão era que ele gostava menos:

"Ele é bruto comercial..." disse, e fechou a boca forte,
feito fosse cuspir.

Eu então disse, pelo conseguinte: "A bom e bem,
Diadorim. Mas, se é ou se não é, por que é que não vamos levar
informação sutil a Joca Ramiro, para o enfim?" Aí, refalei muito, ao
tanto que escondi minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei
da caminhação, não estava esquecido de conhecer os homens,
deixando de farear o mudar do tempo? Viesse, Joca Ramiro
podia detalhar o pôdre do são, recontar seus hrahos entre as mãos e
os dedos. Podia, devia de mandar embora aquele monstro do
Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse eh, uái: se
matava! ... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que com um
espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta
maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? ele disse? Nem

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cobra serepente mahna não é. Nasci devagar. Sou é muito
cauteloso.

Mais em paz, comigo mais, Diadorim foi me desinfluindo.
Ao que eu ainda não tinha prazo para entender o uso, que eu
desconfiava de minha boca e da água e do copo, e que não sei em
que mundo-de-lua eu entrava minhas idéias. O Hermógenes
tinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel punia e
terçava. Que, eu mais uns dias esperasse, e ia ver o ganho do sol
nascer. Que eu não entendia de amizades, no sistema de
jagunços. Amigo era o braço, e o aço!

Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim,
é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e
receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que
sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só
isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o
igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só
isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou amigo é que a gente
seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é. Amigo meu
era Diadorim; era o Fafafa, o Alaripe, Sesfrêdo. Ele não quis me
escutar. Voltei da raiva.

Digo ao senhor: nem em Diadorim mesmo eu não firmava o
pensar. Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Em pardo.
Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava,
permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados.
Tem dia e tem noite, versaveis, em amizade de amor.

Antes o que me atanazava, a mór disso crio razoável
lembrança era o significado que eu não achava lá, no meio onde
eu estava obrigado, naquele grau de gente. Mesmo repensando
as palavras de Diadorim, eu apurava só este resto: que tudo era
falso viver, deslealdades. Traição? Traição minha, fosse no que
fosse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no
fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa. E eu não tardei
no meu querer: lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo
para ali, e por que causa, e, sem paga de prêço, me sujeitava
áquilo? Eu ia-me embora.Tinha de ir embora. Estava arriscando
minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. Só
Diadorim. Quem era assim para mim Diadorim? Não era, aquela
ocasião pelo próprio dito de estar perto dele, de conversar e mais
ver. Mas era por não aguentar o ser: se de repente tivesse de ficar
separado dele, pelo nunca mais. E mesmo forte era a minha
gastura, por via do Hermógenes. Malagourado de ódio: que sempre
surge mais cedo e às vezes dá certo, igual palpite de amor. Esse
Hermógenes - belzebú. Ele estava caranguejando lá. Nos
soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube tanto
disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que tirava
seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí,
arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo
possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem
passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de
mim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito
duras. Nas larguezas do sono da gente.

A já, que ia m'embora, fugia. Onde é que estava Diadorim?
Nem eu não imaginava que pudesse largar Diadorim ali. Ele era
meu companheiro, comigo tinha de ir. Ah, naquela hora eu
gostava dele na alma dos olhos, gostava da banda de fora de mim.
Diadorim não me entendeu. Se engrotou.

Assaz, também, acho que me acuso: que não tive um ânimo
de franco falar. Se fosse eu falasse total, Diadorim me esbarrava,
no tolher, não me entendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro -
aquele poder dele. Decerto vinha com o nome de Joca Ramiro!
Joca Ramiro... Esse nem a gente conseguia exato real, era um
nome só, aquela graça, sem autoridade nenhuma avistável, anda-

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vapor longe, se era que andava.Teve um instante, bambeei bem.
Foi mesmo aquela vez? Foi outra? Alguma, foi; me alembro. Meu
corpo gostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas;
mas, quando ia, bobamente, ele me olhou - os olhos dele não
me deixaram. Diadorim, sério, testalto.Tive um gelo. Só os olhos
negavam.Vi - ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu
tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do
corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor
de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os
braços na testa, ficar assim, iôrpa, sem encaminhamento nenhum.
Que é que queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei
vir uma idéia de mais longe. Falei sonhando: - "Diadorim, você
não tem, não terá alguma irmã, Diadorim?" voz minha; eu
perguntei.

Sei lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a
amargura finca, o que é o cão e a criatura. De tristeza, tristes
águas, coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele não tinha:

"Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo..." - ele
declarou. Hê, de medo, coração bate solto no peito; mas de alegria
ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na
parede. - "Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que
morreu seu amigo?" eu indaguei, de sem-tempo, nem sei
porque; eu não estava pensando naquilo. Antes já eu estava para
trás de ter perguntado, palavras fora da boca. "Leopoldo? Um
amigo meu, Riobaldo, de correta amizade..." - e Diadorim
desfez assoprado um suspiro, o que muda melhor. "Até te
falaram nele, Riobaldo? Leopoldo era o irmão mais novo de Joca
Ramiro..." Aquilo, eu já soubesse demais que Joca Ramiro se
realçasse por riba de tudo, reinante. Mas pude ter a língua
sofreada. "Vamos embora daqui, juntos, Diadorim? Vamos para
longe, para o porto do de-Janeiro, para o sertão do baixío, para o
Curralim, São-Gregório, ou para aquele lugar nos gerais,
chamado Os-Porcos, onde seu tio morava..." De arrancar, de meu
falar, de uma sede. Aos tantos, fui abaixando os olhos
constando que Diadorim me agarrava com o olhar, corre que um
silêncio de ferro. Assombrei de mim, de desprezo, desdenhado,
de duvidar da minha razão. O que eu tinha falado era umas
doideiras. Diadorim esperou. Ele era irrevogável. Então, eu saí dali,
querendo esquecer ligeiro o atual. Minha cara estava pegando
fogo.

Andei, em dei, até que lembrei: o Garanço. Bom, o Garanço,
esse ia comigo, me seguia em tudo, era pobre homem à espera
de qualquer ordem cordial. Isto ele mesmo nem sabia, mas era:
que carecia era de alguma amizade, Estava lá, curvado, cabeçudo
como uma cigarra. Estava cozinhando pequís, numa lata. -"Eh,
eh, nós!..." ele assim dizia. Ladeei conversa. Ele me ouvia,
com anuídos, e fazendo uma cara de entender. Não conseguia.
Só conseguia demonstrar os tamanhos de sua cabeça. Ao que
bastava um meu maior cochicho, e o Garanço vinha, servia de
companheiro para fugirmos. O mais que pudesse haver, era ele
primeiro perguntar: - "E o Reinaldo?" porque ja estava
acostumado com eu e Diadorim sermos dois, e ele querer ser o
três. Então, eu respondi: "Segredo, eh, Garanço. segredo, eh,
e vamos!" - e que Diadorim era para vir depois. O Garanço
tinha alguma diferença, por alguma banda de sUà natureza ele se
desapartava da jagunçagem.

Mas eu não cheguei a falar, não quis, não expliquei nada.
Que era que eu ia fazer, às fugas com aquele prascóvio, pelo sul e
pelo norte, nos sertões da Jaíba? Ele só sabia cumprir
obediência, no que eu riscasse, governado por meu querer e por minha
idéia; um companheiro assim não aumentava segurança minha
nenhuma. Quero sombra? Quero éco? Quero cão? Não, com ele

198 199

eu não me fazia, melhor esperar; eu ia ficando. Desse no que
desse; mais um tempo. Algum dia, podia Diadorim mudar de
tenção. Em Diadorim era que eu pensava, de fugir junto com ele
era que eu carecia; como o rio redobra. O Garanço se regalava
com os pequis, relando devagar nos dentes aquela polpa amarela
enjoada. Aceitei não, daquilo não provo: por demais distraído
que sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis em língua.

"Eh, eh, nós..." - o Garanço reproduzia, tão satisfeito.
Minha amizade sobrou um pouco para ele, que era criatura de
simples coração. Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de
minha travessia.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto.
Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já
passaram. Mas pela astucia que têm certas coisas passadas de
fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi
exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas
horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos idéia, isso
sim, tinha escapulido, caladO, no estar da noite, varava dez
léguas, madrugava, me escondia do largo do sol, varava mais dez,
passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas,
encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava, chegava
em terra cidadã, estava no pique. Ou me pegassem no caminho,
bebelos ou hermógenes, me matassem? Morria com um bé de
carneiro ou um áu de cão; mas tinha sido um mais destino e uma
mór coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem pensei sério
em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa.
Desculpa para meu preceito, mesmo. Quanto pior mais baixo se caíu,
maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda
mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui
sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga.
As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis
dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder me
distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e
caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso
medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar -
de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo
meditado foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de
errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar
de si esse medo-de-errar, a gente estava salva. O senhor tece?
Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: será que eu mesmo
já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado? Será, sei.
Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um
ainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eu nem
sabia. Assim que o Paspe tinha agulhas grandes, fio e sovela:
consertou minhas alpercatas. Lindorífico me cedeu, por troco de
espórtula, um bentinho com virtudes fortes, dito de sãossalavá e
cruz-com-sangue. E o Elisiano caprichava de cortar e descascar
um ramo reto de goiabeira, ele que assava a carne mais gostosa,
as beiras tostadas, a gordura chiando cheio. E o Fonfrêdo cantava
lôas de não se entender, o Duvino de tudo armava risada e graça,
o Delfim tocando a viola, Leocádio dansava um valsar, com o
Diodôlfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que queriam ficar
espichados, dormindo o tempo todo, oVentarol roncasse - ele
possuia uma rede de casamento, de bom algodão, com chuva de
rendas rendadas... Aí e o Jenolim e o Acrísio, e João Vaqueiro,
que depunham por mim com uma estima diferente, só porque
tinha viajado juntos, vindo do das-Velhas: "Viva,
companheiro tropeiro..." saudavam. Ao que se jogava truque, e
douradinha e douradão, por cima de couros de rês. Aí a troça em beirada
de fogueiras, o vuvo de falinhas e falas, no encorpar da noite.
Artes que havia uma alegria. Alegria, é o justo. Com os casos,

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que todos iam contando, de combates e tiroteios, perigos tantos
vencidos, escapulas milagrosas, altas coragens... Aquilo, era uma
gente. Ali eu estava no entremeio deles, esse negócio. Não
carecia de calcular o avante de minha vida, a qual era aquela. Saísse
dali,udo virava obrigação minha trançada estreita, de cór para a
morte. Homem foi feito para o sozinho? Foi. Mas eu não sabia.
Saísse de lá, eu não tinha contrafim. Com tantos, com eles,
gente vivendo sorte, se cumpria o grôsso de uma regra, por termo
havia de vir um ganho; como não havia de ter desfêcho geral?
Por que era que todos ficavam ali, por paz e por guerra, e não se
desmanchava o bando, não queriam ir embora? Reflita o senhor
nisso, que foi o que depois entendi vasto.

Desistir de Diadorim, foi o que eu falei? Digo, desdigo. Pode
até ser, por meu desmazelo de contar, o senhor esteja crendo
que, no arrancho do acampo, eu pouco visse Diadorim, amizade
nossa padecesse de descuido ou mingua. O engano.Tudo em
contra. Diadorim e eu, a gente paras à em som de voz e alcance dos
olhos, constante um não muito longe do outro. De manhã a
noite, a afeição nossa era duma cor e duma peça. Diadorim, sempre
atencioso, esmarte, correto em seu bom proceder. Tão certo de
si, ele repousava qualquer mau ânimo. Por que é, então, que eu
salto isso, em resumo, como não devia de, nesta conversa minha
abreviã? Veja o senhor, o que é muito e mil: estou errando.
Estivesse contando ao senhor, por tudo, somente o que Diadorim
viveu presente mim, o tempo em repetido igual, trivial -
assim era que eu explicava ao senhor aquela verdadeira situação
de minha vida. Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o
espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para
tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja? E,
aquele Garanço, olhe: o que eu dele disse, de bondade e
amizade, não foi estrito. Sei que, naquela vez, não senti. Só senti e
achei foi em recordação, que descobri, depois, muitos anos.
Coitado do Garanço, ele queria relatar, me falava: "Fui
almocreve, no Serém.Tive três filhos..."Mas, que sorte de jagunço recluta
era ele assim meninoso, jalôfo e bom. "Êta, e você já
matou seus muitos homens, Garanço?" pois perguntei. O riso
dele ficava querendo ser mais grosso: "Eh, eh, nós... Sou
algum medroso? E mecê encomenda o quê, no rifle que está em
minha mão, mano velho! Eh, não desprevino, não lhe
envergonho o desse..." O Garanço, mesmo afirmo, acho que nunca
duvidou de coisa nenhuma.Toda tardeza dele não deixava. E só.
Comum de benquistar e malquistar.

O senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele Hermógenes
me fazia agradados, demo que ele gostava de mim. Sempre me
saudando com estimação, condizia um gracejo amistoso ou umas
boas palavras, nem parecia ser o bedegueba. Por cortesia e por
estatuto, eu tinha de responder. Mas, em mal. Me irava. Eu
criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de jocas
profundas. Nem olhei nunca nos olhos dele. Nôjo, pelos eternos -
razão de mais distâncias. Aquele homem, para mim, não estava
definitivo. E arre que ele não desconfiava, não percebia! Queria
conversa, me chamava; eu tinha de ir - ele era o chefe. Fiquei
de ensombro. Diadorim notou; me deu conselho: "Modera
esse gênio que você tem, Riobaldo. As pessoas não são tão ruins,
agrestes." " Dele não me temo!" eu respondi. Eu podia
xingar com os olhos. Ai, o Hermógenes me presenteou com um
nagã, e caixas de balas. Estive para nem aceitar. Eu já possuía
revólver meu, carecia algum daquele, de tanto só cano, tão
enorme? Por insistências dele, mesmo, com aquilo fiquei. Cuspi,
depois. Dado que eu nunca ia retribuir! Queria eu lá viver perto de
chefes? Careço é de pousar longe das pessoas de mando, mesmo
de muita gente conhecida. Sou peixe de grotão. Quando gosto, e

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sem razão descoberta, quando desgosto, também. Ninguém, com
dádivas e gabos, não me transforma. Aquele Hermógenes era
matador o de judiar de criaturas filhos-de-deus felão de
mau. Meus ouvidos expulsavam para fora a fala dele. Minha mão
não tinha sido feita para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes
- eu padecia que ele assistisse neste mundo... Quando ele
vinha conversar comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até ao
demônio para vir ficar de permeio entre nós dois, para dele me
apartar. Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio, e
descarregar nele tiros, entre os todos olhos, O senhor tolere e releve
estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu
sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim
mais.

Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio
que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais
forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho
colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.
Coração mistura amores.Tudo cabe. Conforme contei ao senhor,
quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais, Buritís
Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa Catarina. Que quando
só vislumbrei graça de carinha e riso e boca, e os compridos
cabelos, num enquadro de janela, por o mal acêso de uma
lamparina. Mas logo fomos para acomodar, numa rebaixa de
engenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu, com Diadorim, Alaripe, João
Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No que repontávamos de dura
viagem: tudo o que era corpo era bom cansaço. Mas eu dormi
com dois anjos-da-guarda.

O que lembro, tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A
Fazenda Santa Catarina era perto do céu - um céu azul no
repintado, com as nuvens que não se removem. A gente estava em
maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as
flores no campo, os finos ventos maiozinhos. A frente da
fazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. Entre os
currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma restinga de
cerrado, de donde descem borboletas brancas, que passam entre
as réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das horas. E a
fôgo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim, até hoje, o canto da
fôgo-apagou tem um cheiro de folhas de assa-peixe. Depois de
tantas guerras, eu achava um valor viável em tudo que era cordato
e correntio, na tiração de leite, num papudo que ia carregando
lata de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-d'angola ciscando
às carreiras no fedegoso-bravo, com florezinhas amarelas, e no
vassoural comido baixo, pelo gado e pelos porcos. Figuro que
naquela ocasião tive curta saudade do São Gregório, com uma
vontade vã de ser dono de meu chão, meu por posse e
continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos.
Estas coisas eu pensava repassadas. E estava lá, outra vez, nos
gerais. O ar dos gerais, o senhor sabe.Tomamos farto leite.
Trouxeram café para nós, em xicrinhas. Ao que ficamos por ali, à-tôa,
depois de uma conversa com o velhozinho, avô. Otacilia eu revi
já foi na sobremanhã. Ela apareceu.

Ela era risonha e descritiva de bonita; mas, hoje-em-dia, o
senhor bem entenderá, nem ficava bem conveniente, me dava
pêjo de muito dizer. Minha Otacília, fina de recanto, em seu realce
de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. Fui eu que
primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei
minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar
antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de
Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado. Mas Diadorim
agora estava afastado, amuado, longe num emperrêio. Principal
que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas bando. E as

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verdadeiras, altas, cruzando do mato. "Ah, já passaram mais
de vinte verdadeiras..." palavras de Otacília, que contava. Essa
principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e silêncios, a tão.
Toda moça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais.

"Mas, na beira da alpendrada, tinha um canteirozinho de
jardim, com escolha de poucas flores. Das que sobressaiam, era
uma flôr branca - que fosse caeté, pensei, e parecia um lírio -
alteada e muito perfumosa. E essa flôr é figurada, o senhor sabe?
Morada em que tem moças, plantam dela em porta da casa-de-
fazenda. De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu nem
sabia. Indaguei o nome da flôr.

- "Casa-comigo" - Otacília baixinho me atendeu. E, no
dizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu
guardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era?
Daquele curto lisim de dúvidas foi que minou meu maisquerer. E o
nome da flor era o dito, tal, se chamava mas para os
namorados respondido somente. Consoante, outras, as mulheres livres,
dadas, respondem: "Dorme-comigo" - Assim era que devia de
haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha
de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de
mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes.
Nhorinhá prostituta, pimenta branca, boca cheirosa, o bafo de
menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu
Urucuia vai se levar no mar.

Porque, no meio do momento, me virei para onde lá estava
Diadorim, e eu urgido quase aflito. Chamei Diadorim e era
um chamado com remorso e ele veio, se chegou. Aí, por
alguma coisa dizer, eu disse: que estávamos falando daquela flôr.
Não estávamos? E Diadorim reparou e perguntou também que
flôr era essa, qual sendo? perguntou inocente. "Ela se
chama é liroliro..." Otacília respondeu. O que informou,
altaneira disse, vi que ela não gostava de Diadorim. Digo ao senhor que
alegria que me deu. Ela não gostava de Diadorim e ele tão
bonito moço, tão esmerado e prezável. Aquilo, para mim,
semelhava um milagre. Não gostava? Nos olhos dela o que vi foi asco,
antipatias, quando em olhar eles dois não se encontraram. E
Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é dose de
ódio que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais do ódio
do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia,
tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O
senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e
virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu
sangue, e os lábios da boca descorados no hranquiço, os olhos
dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa
moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda
esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos ja se
passaram.

Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de
Otacilia. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O senhor
espere o meu contado. Não convem a gente levantar escandalo
de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. Que Diadorim
tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, fazia
tempo, até. Quase desde o princípio. E, naqueles meses todos, a gente
vivendo em par a par, por altos e baixos, amarguras e perigos, o
roer daquilo ele não conseguia esconder, bem que se esforçava.
Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a gente
estivesse em ofício de bando, que nenhum de nós dois não botasse
mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: "Promete que
temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos
Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avêjo servem só para tirar da
gente o poder da coragem... Você cruza e jura?!" Jurei. Se nem toda

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a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. Mas
Diadorim dava como exemplo a regra de ferro de Joãozinho
Bem-Bem o sempre sem mulher, mas valente em qualquer praça.
Prometi. Por um prazo, jejuei de nem não ver mulher nenhuma.
Mesmo. Tive penitência. O senhor sabe o que isso é? Desdeixei
duma rôxa, a que me suplicou os carinhos vantajosos. E outra,
e tantas. E uma rapariga, das de luxo, que passou de viagem, e
serviu aos companheiros quase todos, e era perfumada, proseava
gentil sobre as sérias imoralidades, tinha beleza. Não acreditei
em juramento, nem naquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas
Diadorim me vigiava. De meus sacrifícios, ele me pagava com
seu respeito, e com mais amizade. Um dia, no não poder, ele
soube, ele quase viu: eu tinha gozado hora de amores, com uma
mocinha formosa e dianteira, morena cor de dôce-de-burití.
Diadorim soube o que soube, me disse nada menos nada. Um
modo, eu mesmo foi que uns dias calado passei, na asperidão
sem tristeza. De déu em demos, falseando; sempre tive fogo
bandoleiro. Diadorim não me acusava, mas padecia. Ao que me
acostumei, não me importava. Que direito um amigo tinha, de
querer de mim um resguardo de tamanha qualidade? Às vezes,
Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de
lei, descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a
ele coisas pesadas. "Não sou o nenhum, não sou frio, não...
Tenho minha força de homem!" Gritei, disse, mesmo
ofendendo. Ele saiu para longe de mim; desconfio que, com mais, até ele
chorasse. E era para eu ter pena? Homem não chora! eu
pensei, para formas. Então, eu ia deixar para a boca dos outros
aquela menina que se agradou de mim, e que tinha cor de dôce-de-
buriti e os seios tão grandes?! Ah, essa agora não estava a meu
dispor, tínhamos viajado muito para longe de onde ela morava.
Mas entramos num arraial maior, com progresso de bordel, no
hospedado daquilo usufruí muito, sou senhor. Diadorim firme
triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre
do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se
não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem tirou
instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas.
Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem, O senhor
releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças
da mocidade. Não estou contando? Pois minha vida em amizade
com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi
melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu - como e que
posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha
vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o
rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.
E ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina.
Naquele primeiro dia, eu pude conversar outras vezes com Otacilia,
que, para mim, hora em mais hora embelezava. Minha alma, que
eu tive; e minha idéia esbarrada. Conheci que Otacília era moça
direta e opiniosa, sensata mas de muita ação. Ela não tinha irmão
nem irmã. Sôr Amadeu chefiava largo: grandes gados em léguas
de alqueires. Otacília não estava nôiva de ninguém. E ia
gostar de mim? De moça-de-família eu pouco entendesse. A ser, a
Rosa'uarda? Assim igual eu Otacília não queria querer; salvante
assente que da Rosa'uarda nunca me lembrei com desprezo: não
ve, não cuspo no prato em que o bom já comi. Sete voltas, sete,
dei; pensamentos eu pensava.

Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas
coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria como em
fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar, O
que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e
galopes, guardada macia e fina em sua casa-grande, sorrindo santinha
no alto da alpendrada... E ela queria saber tudo de mim, mais

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ainda me perguntava. "Donde é mesmo que o senhor é,
donde?" Se sorria. E eu não medi meus alforges: fui contando que
era filho de Seu Selorico Mendes, dono de três possosas
fazendas, assistindo na São Gregório. E que não tinha em minhas
costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente por
cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo aqueles
jagunçoS, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de todos
estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente
deles.

Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não
acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feição do rosto,
não queria mais de minha vida só assim meiamente indagar, Os
de todos lindos olhos dela estavam me assinalando o céu com
essas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive
vergonha. Já era para entardecendo. Vindo na vertente, tinha o
quintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãs pousadas
numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o sol dourejava.
Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas peças
nuvens sem movimento. Mas, da parte do poente, algum vento
suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem
fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas
beiras matas escuras e águas todas do Urucúia, e nesse ceu
sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas
feito de ferro quente e sangues. Digo, porque até hoje tenho isso
tudo do momento riscado em mim, como a mente vigia atrás
dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino: porque eu tinha
negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era
de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti, O sol
entrado.

Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na
rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras nem se
tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de
mim. Eu não queria conversa, as idéias que já estavam se
acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na
beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe
ainda esteve lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O
Jesualdo, Fafafa e João Vaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe
também, repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eu
pensava? Em Otacília. Eu parava sempre naquela
meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos as
mesmas coisas, o que cada um sonhava, quem é que sabia?
"Aquilo é poço que promete peixe..." o Jesualdo
disse. Dela devia de ser. "Amigo, não toque no nome dessa moça,
amigo!..." eu falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era
a sério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, no escuro.
Por longe, a mãe-da-lua suspirou o grito: Floriano,foi,fri,fri...
- que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua
estava se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando,
apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim,
Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um entredizer,
percebi que ele ansiava raiva. De repente.

"Riobaldo, você está gostando dessa moça?"

Aí era Diadorim meio deitado meio levantado, o assopro do
rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava
branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes.

"Não, Diadorim. Estou gostando não..." eu disse,
neguei que reneguei, minha alma obedecia.

"Você sabe do seu destino, Riobaldo?"

Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio
ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros
percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não.

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- "Você sabe do seu destino, Riobaldo?"- ele reperguntou.
Aí estava ajoelhado na beira de mim.

-" Se nanja, sei não. O demônio sabe..."- eu respondi.

"Pergunta..."

Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora, eu não
disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da
cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo
obedece - vivo no momento. Diadorim encolheu o braço, com
o punhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele
dansar produziam, de estar brilhando. E ele devia de estar
mordendo o correiame de couro.

Assisado, me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci.
Eu tinha dó de Diadorim, eu ia com meu pensamento para
Otacília. Me balanceei assim, adiantado na noite, em tanto gaio,
em tanto piongo, com todas as novas dúvidas e idéias, e
esperanças, no claro de uma espertina. Com muito, me levantei. Saí.
Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a lua subia estada,
abençoando redondo o friinho de maio. Era da borda-do-campo que a
mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de árvores da mata
cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se sumiam para
dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar. Ao que fiquei
bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só olhava
para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília deitada,
rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençóis lavados e
soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti que
alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim,
fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter
medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro
tempo. Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma,
entre claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água
do rego, com o frio da noite ela corria morna.Tornei a entrar na
rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto,
senti a respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele.
Não fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e
beijava. E, com o vago, devo de ter adormecido - porque
acordei quando Diadorim no mexe leve se levantou, saíu sem rumor,
levando a capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das
barras no clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.

Mas, cedo no amanhecer, o sôr Amadeu tinha chegado, e
com notícia urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz
recruzava, de lá a quinze léguas, da Vereda-Funda para a
Ratragagem, e nós tínhamos de seguir, sem folga, supraditamente.
No que Nhô Vô Anselmo me deu um dito afeiçoado e diferente
- entendi que o velhozinho sabia de alguma coisa, e que não
desgostava que eu viesse a ficar neto dele. Nós almoçamos e
montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro se
retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor coragem,
e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha, disse que
havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse me
esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse
vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no
coração. Por breve pensei - era que eu me despedia daquela
abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não
que eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era
só mesma Otacília, minha vontade de amor. Mas, com um
significado de paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu
pensava: nas rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com
comedorias e doces; e, no meio do solene, o sôr Amadeu, pai
dela, que apartasse - destinado para nós dois um buritizal
em dote, conforme o uso dos antigos.

212 213

Vim. Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas
pegava pesada de orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. O
melosal maduro alto, com toda sua roxidão, roxura .Mas,o mais,
e do que sei, eram mesmo meus fortes pensamentos.
Sentimento preso. Otacília. Por que eu não podia ficar lá, desde vez? Por
que era que eu precisava de ir por adiante, com Diadorim e os
companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus?
Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota abatida. Mas,
desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com Otacilia.
Destino. Pensava nela. As vezes menos, as vezes mais, consoante
é da vida. As vezes me esquecia, as vezes me lembrava. Foram
esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me
levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim
adivinhava, sabia, sofria.

Essas coisas todas se passaram tempos depois.Talhei de
avanço, em minha histeria. O senhor tolere minhas más devassas no
contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora,
quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o
compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer
não e o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa.
Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo me escutando
com devoção assim é que aos poucos vou indo aprendendo a
contar corrigido. E para o dito volto. Como eu estava, com o
senhor, no meio dos hermégenes.

Destaque feito: Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós. E
tivemos notícia: a légua dali, eles estavam chegando, no meio do
dia, patrulhão de cavaleiros. Légua, não era verdade mas, obra
de seis léguas, o sim. E eram só uns sessenta, por aí.Todo o
tempo eu vinha sabendo que nosso fim era esse, mas mesmo assim
foi feito surpresa. Eu não podia imaginar que ia entrar em fogo
contra os bebelos. De certo modo, eu prezava Zé Bebelo como
amigo. Respeitava a finura dele Zé Bebelo: sempre
entendidamente. E uma coisa me esmoreceu a têrto. Medo, não, mas
perdi a vontade de ter coragem. Mudamos de acampo, para
perto, para perto. "É agora! É hoje!..." O Hermégenes reunia o
pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimo maior de
munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me
cortou de fazer mais perguntas. As armas. Diadorim ia, para
aquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor. Que
era que, aquele tempo, no arranchamento do Hermógenes,
minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre
em pedra, sem pêpa de barro nem pé de turvação. Da voz de
homens e do tinir de armas em má véspera, não se podia deixar
de receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, e muita
coisinha se empequenava. "Zé Bebelo é arisco de aviso,
Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso, deve de ter
outra tropa de guerra, prontos para virem dar retaguarda. Eu sei
bem essa a norma dele... Carece de prevenir o Hermógenes,
João Goanhá,Titão Passos..." eu não retive, e disse. "Eles
sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa..." Diadorim me
respondeu. E eu estava sabendo que eujá dizer aquilo era traição. Era?
Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos
companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era, porque
eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não
foi?

Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba.Tudo
estava sendo determinado decidido, até o que a gente tinha de fazer
depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal em punhados de
quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo, devia de se reunir
em lugar certo comum. Daquela hora em diante, íamos ter de
brigar em pequenas quantidades. Pelas caras dos homens, eu via
que estavam satisfeitos - parecia muito e pouco. Com regozijo,

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um golinho se bebeu. "Toma este breve, Riobaldo. Foi minha
mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu carrego dois..."
Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle de três
canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca tinha dado
fé daquele Feijó? "A vamos. Hoje se faz o que não se faz..."-
um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus. Quem
quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos, acompanhavam.
Outros ainda comiam, zampando, limpavam a boca com as duas
mãos. "Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo!" -
explicavam alguns, que ainda careciam de ir por suas
necessidades. Restantes risadas davam. Ao que faltava nem meia-hora para
o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de moradas e de terras
lavradias, a gente ouvia o gugo da jurití como um chamado
acabado, junto com lobo guará já dando gritos de penitência. -
"Presta uma demão, aqui..." Ajudei. Era um montesclarense
- acho que o cujo nome esqueci - que queria passar tiras de
pano, por sola das alpercatas e peito dos pés, reforçando.
Terminou, e fez os passos de dansa, maneiro nas juntas, assobiava. Aquele
rapaz pensava alguma coisa? "Riobaldo?" - Diadorim me
disse "arruma jeito de mudar de lugar, na hora, sempre que
puder. E põe cautela: homem rasteja por entre as môitas, e vem
pular nas costas da gente, relampeando faca." Diadorim sorria
sério. Um outro me esbarrou, quando passava. Era o Delfim,
violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar? Eu apertei a
mão de Diadorim, e queria sair, andar, gastar.

Conto que chegou o Hermógenes. A voz do Hermógenes,
dando ordens de guerra já disse ao senhor? ficava clara e
correta; um podia dizer: que até ficava. Ao menos ele sabia
aonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do traço. Que
todos cumprissem, que todos soubessem! A partida dos zebebelos
estava com posição no Alto dos Angicos - tabuleirinho de chã.
Podiam ter espalhado sentinelas muito longe, até na beira do
corrego Dinho, ou para lá, em volta, nas contravertentes. Mas,
disso, logo se ia saber, porqual os espias nossos rondavam. O que
se tinha era de chegar, já com o escuro, e engatinhar às ladeiras,
no durado da noite, na arte vagarosa. Só íamos abrir fogo, de
surpresa, no clarearzinho da madrugada. Cada um de seu ponto
melhor, tudo tinha de valer em sonsagato e finice, até se carecia
de respirar só por metade. Se algum topasse com inimigos, por
ma-sorte, antes, ele que escorresse como pudesse, ou
dependesse na faca: atirar com arma é que não podendo. Sendo que
podendo, mas só depois do Hermógenes que era quem era o
dono: o primeiro tiro ele dava. Como cada qual tinha de
atirar com sangue-frio, de matar exato. Porque nosso prazo seria
acabar com todos, com brevidade; mais antes que outros deles
pudessem vir, para um reforço. Mesmo assim, Titão Passos ia
com uns trinta companheiros reguardar o caminho de vinda, à
emboscada, num tombador de pedra. Já vai que o Hermógenes
explicava, devagar, e tudo repetia, com paciência: o dever
absoluto era que até o mais tonto aprendesse, e estava definido o
rumo de tarefa por onde cada um devia de se pôr no chão e
começar a engatinhar, virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de
tudo ja na primeira razão, e, de cada vez que ele repetia, eu
reproduzia em minha idéia os acontecimentos se passando, eu
já estava lá, e rastejava, me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil
nas armas.

Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O
Hermógenes me chamou. Aí as cintas e cartucheiras, mochilão, rede
passada e um cobertor por tudo cobrir - ele estava parecendo
até um homem gordo. "Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar
nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no
próximo de meu cochicho." Para que vou mentir ao senhor? Com

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ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo
aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma.
Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com a aversão, que digo, que foi,
que forte era, como um escrúpulo. A gente o que vida é
é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que
espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro eu
mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com
a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem
apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei
meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no
couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava
amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome
sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima
de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. Eu
era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia
àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: "Eu, Riobaldo,
eu!" Joca Ramiro é que era a obrigação de chefia. Mas Joca
Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei
determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: "Joca Ramiro! Joca
Ramiro! Joca Ramiro! ..."A arga que em mim roncou era um
despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio
nem receio nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o
revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso
no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.

Aí, ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos. Eu? Ele
estava me experimentando? E não tardei: "O Garanço... -
eu disse. "... e este, aqui!" completei, para aquele
montesclarense apontando. Bem que eu queria também o Feijó; mas
deviam de ser só dois, a conta já estava. E Diadorim? o senhor
perguntará. Ah, por Diadorim era que eu não dizia, o
pensamento nele me repassava, O tempozinho todo, naquele soflagrante.
E estúrdio: eu principalmente não queria Diadorim perto de mim,
para as horas. Por quê? Por quê, é o que eu mesmo não sabia.
Seria que me desvalesse a presença dele comigo, pelos perigos
que eu visse virem a ele, no meio do combate; ou seria que a
lembrança de ter Diadorim junto, naquilo, me desgostasse, por
me enfraquecer, agora eu assim, duro ferro diante do
Hermógenes, leão coração? Se sei, sei. Porque era como eu estava. E assim
respondi: que então o Garanço e o Montesclarense iam com a
gente.

Como saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aos três, aos
sozinhos. Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma asada, uma
pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos.
Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente se media em
silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantos matos
baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. Por lá a
coruja grande avôa, que sabe bem aonde vai, sabe sem barulho.
A quando o vulto dela assombrava em frente da gente no ar, eu
fechava os olhos três vezes. O Hermógenes rompia adiante, não
dizia palavra. Nem o Garanço também, nem o Montesclarense.

Em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vai morrer e
matar, pode ter conversa? Só esses pássaros de pena mole,
gerados da noite tantos bacuraus insensatos: o sebastião que
chamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom. Digo
ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Só esforçava tenção
numa coisa: que era que devia de guardar tenência simples e
constância miúda, esperando a novidade de cada momento. Minha
pessoa tomava para mim um valor enorme. Aquele pássaro mede-
léguas erguia vôo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se
abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de

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comum esses fazem. Bobice dele não via que o perigo torna a
vir, sempre?

Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo
era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu ia indo,
cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas;
acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não
queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua
andada, por um trilho. É preciso não roçar forte nas ramagens,
não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença: o
que preza o chão o pé que adivinha. A gente imagina uns
buracões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas
estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor: a noite é da
morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu
mais pensei. No seguinte: como é que curiango canta. Que o
curiango canta é: Curi-angó!
A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes
esbarrou. Conchegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros.
Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando,
enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do
escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara. Cada
um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, pulando pelas
alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma estiva, mas lá se
temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o lugar pior: um
estremecimento me desceu, senti o espaço da minha nuca. Do
escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, o Hermógenes
sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás duma árvore, uma
almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante por suas pedras.
Naquela espera, carecíamos de persistir horas, dando tempo.
Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam com o
cheiro da cara da gente, não concedem sossego. Acender cigarro
- pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os
mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que o
Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que
a mosquitada não deixava? Mas não seria de mim que pudesse
ferrar no sono assim perto daquele homem, príncipe das tantas
maldades. O que eu queria era que tudo sucedesse, mal ou bem
aquela noite tivesse termo de terminada. "Tá aqui, toma..."
ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo me dando, que
em forte cachaça ele tinha acabado de empapar. Era para se
esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de comer, não
aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do serviço de
armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos
deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de
beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. Daí, os
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz
de dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de
conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite
durava.
Haja de contar o que foi - o todo de se escorregar para
cima a encosta até ao ponto, donde a espera de tocaia devia
de ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em
terra, no capim, no chão, e vai, vai - sendo serepente - de
gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo,
semelhante fosse nadando; cotovêlo e joelho é que transpõem. Tudo
um ái de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale
arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por
mais de. As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se
coça a canela com o calcanhar; estando com polâina não
adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta.

Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro
pousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao
inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos,

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no mesmo lugar dão muito aviso. Aí quando é tempo de
vagalume, esses são mil demais, sobre toda a parte: a gente mal
chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor
- é umaesteira de luz de fogo verde que tudo alastra - é o pior
aviso, O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura
muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal
travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Às guardas,
qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo dele.
Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a
barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é
melhor se calcar no estrepe firme com gosto que é o que
mais defende d'ele não se cravar, O inimigo pode estar
engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza, O cheiro
da terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E
uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava
que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas
costas.Trabalhos de unha, O capim escorria, do sereno da noite,
lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento,
se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavél, numa
certa morte dessas. Pior e a surucucú, que passeia longe, noturnazã,
monstro: essa é o que há com mais dôida ligeireza neste mundo.
Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava,
da macega, das folhas, é o que digo ao senhor; me desgostava.
Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu
encolhi. Era um tatú, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o
esfrego de suas muxibas.Tatú-peba, e eu no rés dele. Que modo
que? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes
rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de
bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense
espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-menos,
o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo me
cochichou de mão em concha. "É aqui mesmo..." ele redisse.
Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios pássaros
da noite? pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro dum
araçá-branco formava bolas. Quietei.

Até que o dia deu, que é que foi do meu tempo, que horas
que se passaram? Ai eu podia medir, pelas estrelas que vão em
movimento, descendo no rumo de seu poente, elas viravam. Mas,
digu ao senhor, eu não olhei para o céu. Não queria. Não podia.

Assim espichado, no escabro, um sofre o fresco da noite, o chão
esfriava. Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de dôr-de-
dente ja me indispondo. Aquilo que cochilei dormir, eu em
firme rejeitava. O Hermógenes, um homem existente
encostado no senhor, calado curto, o pensamento dele assanha feito
um berreiro. Aquelas mortes, que eram para daí a pouco, já
estavam na cabeça do Hermógenes. Eu não tinha nada com aquilo,
próprio, eu não estava só obedecendo? Pois, não era? Ao que, o
meu primeiro fogo tocaieiro. Danado desuso disso é o antes
tanto antes, rôr. O senhor acha que é natural? Osgas, que a gente
tem de enxotar da idéia: eu parava ali para matar os outros e
não era pecado? Não era, não era, eu resumi: Osgas...
Cochilei, tenho; por descuido de querer. Dormi, mesmo? Eu não era o
chefe. Joca Ramiro queria aquilo? E o Hermógenes, mandante
perto, em sua capatazia. Dito por uns: no ceu, coisa como uma
careta preta? É erro. Não, nada, ôi. Nada. Eu ia matar gente
humana. Dali a pouco, o madrugar clareava, eu tinha de ver o dia
vindo. Como era o Hermógenes? Como vou dizer ao senhor...?
Bem, em hró de fantasia: ele grosso misturado dum cavalo e
duma jiboia... Ou um cachorro grande. Eu tinha de obedecer a
ele, fazer o que mandasse. Mandava matar. Meu querer não
correspondia ali, por conta nenhuma. Eu nem conhecia aqueles
inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo, povo

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reunido na beira do Jequitaí, por ganhar seu dinheirinho fiel,
feito tropa de soldo. Quantos não iam morrer por minha mão?
Andante que perpassou um vento, entre ele o crico de grilos e
tantos bichinhos divagados. Assaz, a noite, com sombras
vermelhas. O exemplar da morte, dessa, é que é num átimo, tão
ligeira, tão direitinha. As coisas que eu nem queria pensar, mas
pensava mais, elas vinham. Vez o de falar do Geraldo Pedro, que disse:

"Aquele? Hoje ele não existe mais, virou sombração...
Matei..." E o Catôcho, contando doutro: "... Lá tem uns órfãos
meus, lá... Tive de matar o pai deles..." Por que era que falavam
essas perversidades... Por que é que falavam... Por que era que
eu tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo:
se eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve
tiro, bem certo, e corria, ladeira abaixo, às voltas, caçava de me
sumir nesse vai-te-mundo. Ah, nada: então, aí mesmo era que o
fogo feio começava, por todas as partes, de todo jeito morresse
muita gente, primeiro de todos morria eu. Mesmo estava sem
remédio, O Hermógenes mandava em mim. Quê que quer, ele
era mais forte! Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer era
que nós dois saíssemos sobrados com vida, desses todos
combates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a jagunçada, íamos
embora, para os altos Gerais tão ditos, viver em grande
persistência. Agora, aqueles outros, os contrários, não estavam
também com poder de me matar? A asneira. E eu ia, numa
madrugadinha, a cavalo, por uma estrada de areia branca, no Buriti-do-Á,
beira de vereda, emparelhado com um capiauzinho bondoso,
companheiro qualquer, a gente ria, conversava de tantas miúdas
coisas, sem maldade, se pitava, eu ia levando meio saco de milho
na garupa, ia para um moinho, para uma fazenda, para berganhar
o milho por fubá.., sonhos que pensava. À fé: aqueles zebebelos
também não tinham varado o Norte para destruir gente? E pois?!
O que tivesse de ser, somente sendo. Não era nem o
Hermógenes, era um estado de lei, nem dele não era, eu cumpria, todos
cumpriam. "Vou para os Gerais! Vou para os Gerais!" eu dizia,
me dizia. Numa minha perna, então torci o de dar cãibra.
Depois, tirei a dureza dos dedos. A ver, Diadorim, a gente ia indo,
nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros de chão de flôr.
Por quê que eu ia ter pena dos outros? Algum tinha pena de
mim... Cabeça de homem é fraca, repensava, O que se carecia
justo de fazer era acabar logo com a guerra, acabar com aqueles
zebebelos. Pensar em Diadorim, era o que me dava cordura de
paz. Ah, digo ao senhor: dessa noite não me esqueço. Posso? Aos
poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim. Matar,
matar, quê que me importava? D'esa noite esquecer não posso.
Garoou, para a aurora.

Como clareia: é aos golpes, no céu, a escuridão puxada aos
movimentos. A gente estava de costas para as barras do dia. Me
lembro do que me lembro: o Hermógenes cruzou, adiante,
chato no chão, relando barriga em macio. Aquele homem era
danado de tigre, estava cochichando na cabeça do Garanço, depois
com o Montesclarense, mostrava a eles os lugares em que
deviam-de. Arre, voltou para perto de mim, agora veio da outra
banda. Disse: "Tento, Riobaldo..." Eu vi quando o Garanço
rolou, indo, indo, pegou postura na proteção dum cupim
grande; obra de cinco metros para a minha frente, pouquinho para
esta banda da esquerda. No não longe, rumo a rumo, divulguei o
Montesclarense. Eu ainda mudei distância de uns passos:
aproveitei tapação duma árvore de boa grossura - um araçá-de-
pomba, fechado. De sovigia, o Hermógenes não me largava. Doêsse
na gente, mesmo aquele principiozinho de madrugada. Apertava
a necessidade. Por que não se avançava de uma vez, para tudo, vir
às brabas? Ah, não se podia. Se logo no primeiro entremear com

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os bebelos, nós quatro havíamos de restar mortos, cosidos nas
parnaíbas. E, dos companheiros, outros, não se sabia. Sendo
somente que o acampamento dos bebelos devia de estar a uma
hora dessas cercado exato, em boa distância, à roda toda. Tudo
era paciência. Vinha um ventozinho, folheando. Tantos homens
amoitados. que só espiavam: na obrigação refleti. Até achei
bonito, agora. Aí passarinhos que já vão voando, com o
menorzinho ralo de luz eles se contentam, para seu só isso de caçar o de
comer.Triste, triste, um tirirí cantou.Alegre, para mim, a
peitica.

Olhei adiante, curto, lá era que eles estavam: por entre umas
árvores pequenas, dava réstia de claridade, e um formato de
homem, contravisto. Ele ia acender fogo. E apareceram vultos de
outros, levantantes. Com pouco, alguns podiam vir descendo,
buscar mais água no corguinho, se carecessem.Asneiras que
pensei: será que eles gastaram muita água? Será que um esmorece,
por medo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito.
D'o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor,
gostei. "Riobaldo, Tatarana! E o é..." ele me governou, de
repente. Aceitei. Desamarrei mão, de vez pronta: eu já tinha
resumido pontaria: eu tive consolo duma coisa, que era que aquele
homem alto não podia ser Zé Bebelo... Não tremi, e escutei meu
tiro, e o do Hermógenes; e o homem alto caiu certo morto,
rolou na má poeira. Me deu uma raiva, deles, todos. E em toda a
parte, a sobre, o tiroteio tinha começado.

Estrondou. Falavam os rifles e outros: manlixa, granadeira e
comblém. Festa de guerra.

Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. O
senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a gente esbarra e
espera: espera o que vão responder. A gente quer porções.
Demais é que se está: muito no meio de nada. A morte?A coisa que
o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais ter outros
lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar se estragou,
trançado de assoviOs de ferro metal. O senhor ali não tem mãe,
não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado de árvore,
aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao senhor, dou
conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, escorei,
repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita munição,
atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa mão, não
queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com assombro.
Em isso ele me crendo endoidado. Mas eu estava era de repente
pensando em meu padrinho Selorico Mendes.

"Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?!" foi o que
arranhei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que ele. Ri
mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o
Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E aqueles
bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei meu.

"Se todos passam mão em arma e fecham volta de tiroteio, uns
contra os outros, então o mundo se acaba..." acho que
pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente marinhavam. Os
tiros peguei a querer contar. Aquilo como durou, demorava um
oco. O dia tinha clarcado saído: eu todo podendo descrever o
Montesclarense, atrás dum toro de pau e moitas de anduzinho.
Para que conto isto ao senhor? Vou longe. Se o senhor já viu
disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não
cabem em fazer idéia.

Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a gente
não rastejava alterando de lugar, que não era o caso. Quase que
só quando se pega no defendimento é que isso é de se fazer: para
pensarem que se vai em número maior que a verdade. Como
não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de lá
chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era
catando mover alheio cujo descuido, como malandro malandrêia. Nem

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cento-e cinquenta braças era o eito, jaculação minha. Aquilo
servia até para carga de bocamorte. E mais de um, eu etcétera, aí,
pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que para morrer
estavam com dia marcado. Minto? O senhor releve idéias. Era
assim.

Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, de prão, em riba
dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não acabavam.

O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão, debaixo eu suava,
transpirava dos cabelos, e pelo dentro das roupas, de sentir as
cócegas grossas no meio do lombo; e essas dormências numas
partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia avançar? Não, nem.
Os outros picavam forte, o fogo deles não desmerecia.
Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para mostrar mais alvo. Ao
que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço, ali quase
em minha frente, O Garanço tinha arrumado no chão o bissaco e
o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim. Eu
vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas dele,
Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada,
alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu,
com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de
leal qualidade. Então, eu atirava, também. "Bala e chumbo..." -
eu peguei a dizer. "Bala e chumbo... Bala e chumbo..." O lugar
do coração me apertando - eu era carne muita e calor bravo.
"O que foi? Que é?" o Hermógenes me perguntou. -
"Nada não!" respondi. "Bala e chumbo... Chumbo e bala..."
Estrumes! Pelo que foi, de repente: bem apartado, da banda
esquerda de nós, uns homens dos nossos deram figura, se pulando
para diante, aos gritos, investiram contra o contra!

Ao que, eram dois... Três... "Diá!" o Hermógenes
rosnou: "Deu a fúria nesses, bute!" Raspa que eles por lá
entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou,
suspendemos fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o
Montesclarense - coitado! também tinha crescido para avante,
no igual, e, de lá, nele balearam. Caiu, catando cacos. Pobre.
Deu doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no
vespeiro dos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se
acabavam estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara
tivessem aprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povo nosso
demos raiva de logo ai e que foi atirar. O Hermógenes me
resignou os ímpetos: "Tatarana, te trava, não dá de esquentar
arma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Só cobrar o
dizmo." Aquele homem fazia frio, feito caramujo de sombra. A
ver que tive sede, mas minha cabaça não dava gota mais. Guardei
meu cuspe.

Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não se sabe
terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para cima de nossa
redondez de lugar, esses assoviaços.Triplavam. No ferrenho, tive
um tempo de coisa, espécie de mais medo, o que um não
confessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava. Descansava de
todo desânimo. Andando que aquele ataque nosso não servia para
resultado nenhum, e eu carecia de avistar os outros, saber de
qualquer contagem de balanço, de quantos tinham morrido ou
estavam mal. Eu queria saber, dos deles e dos nossos. Combate
sem cabimento! Só o tiroteio, repetido reproduzido. Meio
peguei um pensamento: se o Hermógenes sungasse raiva, se o Ele
desse nele, por um vir? Que mandasse avançasse, a fino de faca,
nós todos tínhamos de avançar? Então, eu estava ali era feito um
escravo de morte, sem querer meu, no puto de homem, no
danadório! E eu não podia virar só o corpo um pouco, abocar
minha arma nele Hermógenes, desfechar? Podia não, logo senti.
Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para
trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem

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regulada somente para diante, somente para diante; e o
Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado - era feito fosse eu
mesmo, Ah, e toda hora ele estava, sempre estava. Que me disse:

"Tatarana, toma, come, e agradece ao corpo um poucado..."
Há-de que estava me oferecendo a capanga, paçoca de carnes.

Tanto que os tiros tinham esbarrado quase em completo, em
partes. Eu, tendo comida minha, de matula, no bornal. Aí, e
munição minha de balas, no surrão. Eu carecia lá do
Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei daquela
carne, nem fome acho que não tinha direito, enguli daquela
farinha? E pedi água. "Mano velho, bebe, que esta é
competente..." ele riu, O que estava me dando, na cabacinha, era água
com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei o cano do rifle,
num duro de môita. Eu olhava aquele bom suor, nas costas do
Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida era assim mesmo,
coração quejando. Até me caceteou uma lombeira.

E, daí, deu-se. Da banda de longe lá pelo tombador de
pedra, onde nossa gente com Titão Passos estavam escondidos
para a esparrela foi um tirotear forte, fogo por salvas. Ah,
então era outra partida de zé-bebelos que deviam de estar
chegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenes esticou
pescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o tiroteio foi
mudando de feição. "Tou gostando não..." o que o
Hermógenes disse. Mais disse: "O diabo deu em erro..." Homem
atilado, cachorral. "Seja que sabidos vieram, eh,
pressentiram! Sei se, por ora, o trabalho está desandado..."Aí, eu estava
escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a
mancha, estava ficando de outra cor... O suor vermelho... Era
sangue! Sangue que empapava as costas do Garanço e eu
entendi demais aquilo. O Garanço parado quieto, sempre
empinado com a frente do corpo, semelhando que o cupim ele tivesse
abraçadO. A morte é corisco que sempre já veio. Ansias, ao em
que bola me vinha goela arriba, do arrocho grosso, imposto, que
às vezes em lagrimas nos olhos se transforma. A bobagem...
"Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má hora!" era o
Hermógenes prevenindo. "Demo!" eu repontei. Mas ele
não entendeu minha soltura. Soprou: "A muita cautela.
Temos, que se foge em boa ordem: os que estão chegando vem
rodear a gente, ao dar retaguarda." E era. Como que esse
maldito tudo sabia, adivinhava o seguinte vivo das coisas, esse
Hermógenes, trapaças! Mas ainda me prezei: quem é que me
segurava de ir?! rastejei de esquinado, os metros, em afogo, carecia
de ver se o Garanço podia ter ajuda. "A p'a trás, mano. Te
cuida!" ouvi o rispe do Hermógenes que eu não me
desgraçasse. Mas não se deixa um cristão amigo deitar seu sangue
no capim das môitas, feito um traste roto, caititú caçado. Peguei,
com meus braços: não adiantava era corpo. Ele estava
defunto de não fechar boca aí, defunto airado. Todo vejo, o sangue
dele a mofos cheirasse. Anda que vinham vôo os mosquitos
chupadores, e mosca-verde que se ousou, sem o zumbo frisso,
perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de vela acesa o
Garanço não ia poder ter. "Vem, tu vem, que estamos no
amem estreitos!" que, enfezado, o Hermógenes chamou. Dei
para trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta: que o
Hermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchado zurro, dos
de jumento velho em beira de campo. Três tantos. Ele estava dando
a retirada. Por outros lados, mais longe, outros o mesmo
onco-e-rincho copiavam. -"Arre, fogo, agora, forte fogo!" o
Hermógenes me mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao que os
companheiros todos atiravam. Assaz à retirada se estava rinchando,
mas os inimigos não sabiam: carecia que eles pensassem que a
gente ia dar um ataque final. Acharam? E sei. A bala com bala

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ripostavam. Mas, nós, nesse entrequanto, rompemos o
arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo, embora, mesmo.
Desunir, assim, verga pior do que avançar. A lanço a lanço, fui, pulei, nos
abertos entre árvores, acompanhei o Hermógenes. Aí, eu já
estava rara lá dele; mas virei e esperei. Porque, na desordem de
mente do alvoroço, aquela hora era só no Hermógenes que eu
via salvamento, para meu cão de corpo. Quem que diz que na
vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também.Vim.
Ainda divulguei, nas sofraldas descentes, homens que corriam, meus
iguais, às vezes se subiam do hamburral baixo, feito acãoada
codorniz. Viemos. Repassamos o corguinho do Dinho, beiramos
uma ipueira. Entramos no cerrado. "Tu tem tudo, Tatarana?
Munição, as armas?" o Hermógenes me indagou. "Tenho,
se tenho!" eu respondi, bem. E ele para mim: "Então, está
certo..."Agora ele falasse grosseado, com modo de chefe e
mando, era assim. E fomos para cinco léguas, entre o norte e o
poente, no Cansanção, lugar aonde um punhado dos da gente devia
de se engrupar. Para lá fomos, de rastros apagados. Caminhamos
prazo dentro de riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de
nosso pisado com ramos as marcas desmanchamos e o mais do
caminho se seguiu por muitos diversos rodeios.

De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida
em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto
dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então,
careço de que o senhor escute bem essas passagens: da vida de
Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que
dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo.
Fui eu? Fui e não fui. Não fui! porque não sou, não quero ser.
Deus esteja!

E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso
bom esconder, num boqueirãozinho, já achamos companheiros
outros, diversos, vindos de armas, e que chegavam
separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um era o Feijó. Será, se tinha
avistado o Reinaldo sem perigo? A meio perguntei. Por causa
que só em Diadorim era que eu pensava. O Feijó em tanto tinha
notado: Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se
retrasou, por uma cacimba de grota. "... Estava com sangue numa
perna de calça. Para mim, foi nada, arranho à-tôa..." O que me
ensombreceu - então Diadorim estava ferido. Aí, eu mesmo
esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu quis lavar os pés, que
muito me doíam. Acho que, de cansado, estava também com dôres
redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço faz tristeza,
em quem dela carece. Diadorim estivesse ali, somentemente,
espaço disso me alegrava, eu não havia de querer conversar
reportório de tiros e combates, eu queria calado a consequência
dele. Ao modo que eu nem conhecia bem o estôrvo que eu
sentia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito altão e
madrugador quem sabe era o pobre do cozinheiro deles
na primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não.
Dó que me dava era do Garanço, e o Montesclarense. Quase
com um peso, por minha culpa dos dois eles eu era quem
tinha escolhido, para conduzir, e depois tudo. Logo esses o
senhor sabe, o senhor segue comigo. Remorso? Por mim, digo e
nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda abaixo, tigre cangussu
estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, um que foi desse rio
de São Francisco, foguista de vapor; depois cá herdou uns
alqueires. Comprou-se para ele, então, uma boa perna-de-pau.
Mas, assim, talvez por se ter sacolejado um pouco do juizo, ele
nunca mais quer sair de casa, nem se levanta quase do catre, vive
repetindo e dizendo: "Ái, quem tem dois tem um, quem tem
um não tem nenhum..." Todo o mundo ri. E isso é remorso?
Desgraça a mando era que eu cumpria, azo de que tivesse perdi-

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do alguma coisa. Porque dó de amizade é num sofrerzinho
simples, e o meu não era. E cheguei no Cansanção-Velho, chamado
também o Jio, dito.

Lá, com pouco, a gente era doze. Os alguns faltavam, dos
que'eram para se reunir ali, mas decerto ainda vinham vir. Num
ponto me agradei: então, em guerra, quase não se morre? E,
mesmo, nas más horas é que vem bom consolo: para o Jio tinha
tocado, de antevéspera, o Braz, nessa antecedência em dois
jumentos ele tinha trazido mantimento de feijão e arroz, e toucinho
para torresmos, e pratos e panela, se cozinhou um jantar. Tanto
que comi, deitei. Dormi impado. Que caso que eu carecia de
pensar, que não fosse que na morte do Garanço e do
Montesclarense - eu não devia nenhum dolo; e que Diadorim ia chegar a vir
também, aonde estávamos, mais tardar no romper da aurora?
Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle, como se vez fosse.
E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os outros
no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, estufando
suas redes penduradas de árvore em árvore.

So vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas: esse
era homem de estranhez em muitos seus costumes, conforme se
dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia não estar querendo ir
dormir, tinha ficado na beira do fogo, remexendo as brasas; num
fusco em vermelho, dava para a cara dele se divulgar. E ele
pitava. Meigo repus o rifle, virei para o outro lado. Adormecer, pude;
mas, com outros minutos, tornei naquele mau susto de acordar.
Isso aconteceu três vezes, reformadas. Jõe Bexiguento reparou
em meu dessossego, veio para o pé de minha rede, sentou no
chão. "Horas destas, tem galo já cantando, noutros lugares..."
- ele falou. Não sei se dei alguma resposta. Agora eu estava
cismado.
Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu colhia
o aviso? Não é que, com muitos, dose disso sucedesse? Eu sabia,
tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse condão, adivinham
o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O
Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era atreito a
esses palpites de fino ar, coraçãoados. Atual isso comigo? Que os
bebelos rodeavam para ali, quem sabe perto já rastejavam. Zé
Bebelo mandava neles. Em todos os momentos, em Zé Bebelo
sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens
emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura, as
contas de juros; depois, de noite, na sala grande, na mesa grande,
se comia canjica temperada com leite, queijo, coco-da-bahia,
amendoim, açúcar, canela e manteiga de-vaca. "Fofo faço, e
em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa cambada
canalha de jagunços!" ele referia, com rompante e festa no
dizer, bebendo seu coité de chá-de-congonha, que de tão quente
pelava. Então, agora, era eu também - Zé Bebelo vinha de lá,
comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado,
naquela ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com
minha vida. Mas eu prezava Zé Bebelo, minha simpatia é uma só,
dada definitiva às altas, sempre fui assim. Sendo que não fosse
ele em sua pessoa, se ele no meio não estivesse, tudo tinha outra
ordem: eu podia pôr meu afinco o-farto destravado, no querer
combater. Mas, brigar, cruzando morte, com Zé Bebelo, eu vi
que era isso que me dava uma repugnancià, em minha
inteligência. Levantei da rede, e convidei Jõe Bexiguento para se botar
mais lenha no fogo. Ele disse: "Convem não. Ocasiões assim,
convém acender nem vela de cera preta..." Enrolei um cigarro.

Contei ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; se não era
agouramento? E ele me apaziguou: que anjo aviso não vinha
desse jeito, antes era uma certeza que minava fininha, de dentro da

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idéia da gente, sem razoado nem discussão, O que eu purgava
era ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de
tiroteio. "Comigo, assim, depois de cada forte fogo, me dá
esse porém. É uma coceira na mente, comparando mal. Faz
regular uns seis anos, que estou na jagunçagem, medo de guerra
não conheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livro
disso, essa desinquietação me vem..."

Pela causa, me disse, era que ele não vencia dormir nem um
pisco, naquela comprida noite, e nem experimentava. Jõe
Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço; duns
meses, disse, andava padecendo da saúde, erisipelava e asmava.
- "Cedo aprendi a viver sozinho. P'ra o Riachão vou, derrubo
lá um bom mato..." Era o projeto em tal, que ele formava vez em
quando. "Trabalhar de amassar as mãos... Que isso é que
sertanejo pode, mesmo na barra da velhice..."
"Você era amigo do Garanço, Jôe?" em manso
perguntei. "Assim, o dito, pela rama. Que fui com de? Deu o fim,
mesmo legal? Acho que esse sempre se esteve meio caipora...
Ele mesmo sabia que era..." Ainda ouvindo as palavras, conheci
que tinha perguntado pelo Garanço Só para depois perguntar por
Diadorim, digo: o Reinaldo. Mas outra coragem não tive. Faltou
razão para mim. Que desconversei: "Caipora se cura, Jõe?
Você sabe rezas fortes?" por aí devo que indaguei; bobéia
minha, assunto. "A que cujo, se caipora não curasse? Todo o
mundo dela tem, nos tempos..." ele me repositou. "...
Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória que Deus me
deu não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas..."

Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus?
Jagunço podia? Jagunço criatura paga para crimes, impondo
o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando.
Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que
sata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão
do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se
estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de
proteção? Perguntei, quente.

-"Uai?! Nós vive..." foi o respondido que ele me deu.
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele,
duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede,
sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um
bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse,
aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do
antes da lua de mel. Discuti alto. Um, que estava com sua rede
ali a próximo, decerto acordou com meu vozeio, e xingou xiu.
Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre
me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o
ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que
o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!
Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com
este mundo? A vida é ingrata no macio de Si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este
mundo é muito misturado...

Mas Jôe Bexiguento não se importava. Duro homem
jagunço, como ele no cerne era, a idéia dele era curta, não variava.

"Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jaguncêio..."
- ele falasse.Tudo poitava simples. Então eu pensei por
que era que eu também não podia ser assim, como o jõe,
porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no sentir
da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste mundo
- as coisas eram bem divididas, separadas. "De Deus? Do demo?"
foi o respondido por ele "Deus a gente respeita, do
demOnio se esconjura e aparta... Quem é que pode ir divulgar o
corisco de raio do bôrro da chuva, no grosso das nuvens altas?" E por

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aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era engraçado.
Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito e precisão, nestes
assuntos. E o Jõe contava casos. Contou. Caso que se passou no
sertão jequitinhão, no arraial de São João Leão, perto da terra
dele, Jõe. Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.

Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria
Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma
noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada.
Maria Mutema chamou por socôrro, reuniu todos os mais
vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal
nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde
apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia
ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã,
o marido foi bem enterrado.

Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito
sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a
dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se
diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota
foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à
igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se
confessava. Dera em carola se dizia só constante na salvação de sua
alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que
não ria esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava OS
olhos do padre.

O padre, Padre Ponte, era um sacerdote - bom-homem, de
meia idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de
todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer,
uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma
mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava
para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita
alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior
escandalo nessa situação com a ignorância dos tempos,
antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial, Os
filhos, bem-criados e bonitinhos, eram "os meninos da Maria do
Padre". E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão
cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu
sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para
levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos
santos-óleos.

Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes:
que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três
dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre
Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele
sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por
ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das
primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela,
terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de
lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa
padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu,
bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de
verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema.
Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser
padre, e não de ser só homem, como nós.

E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no
decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se
viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha
dôres, e em fim encaveírou duma cor amarela de palha de milho
velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo
quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria
Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por

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entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que
não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por
que lei ela procedia e pensava.

Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e
chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres
estrangeiros, fortes e de caras coradas, bradando sermão
forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de
três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando,
tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que
enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada
e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se
brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder,
conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi
grassando aquela boa bem-aventurança.

Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no
seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e
glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quando um dos
missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de
começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a
Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia
em igreja; por que foi, então, que deu de vir?

Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria
Mutema veio entrando, e ele esharrou.Todo o mundo levou um
susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em
meio em desde que de joelhos começada, tem de ter suas
palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionario retomou a
fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no
amem, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa
vermelho, debruçado, deu um sôco no pau do peitoril, parecia
um touro tigre. E foi de grito:

"A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p'ra
fora, ja, ja, essa mulher!"

Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.

- "Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e
da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode
ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas
confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que va
me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos
enterrados!..."

Isso o missionario comandou: e os que estavam dentro da
igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em
fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e
meninos, outras, despencavam no chão, ninguém ficou sem se
ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.

E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu
um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca
estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da
dura bondade de Deus baixasse nela, em dôres de urgência,
antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre
prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se
confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer
exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava
gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum
do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o
marido e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado do pôdre
de todos os estercos Que tinha matado o marido, aquela noite,
sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa
nenhuma - por que, nem sabia. Matou enquanto ele estava
dormindo - assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por
um funil um terrível escorrer de chumbo derretido, O marido
passou, lá o que diz do oco para o ocão do sono para a

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morte, e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver,
não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também
sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário:

disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre
Ponte, porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser
concuhina amasia... Tudo era mentira, ela não queria nem
gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto,
e era um prazer de cao, que aumentava de cada vez, pelo que ele
não estava em poder de se defender de modo nenhum - era um
homem manso, pobre coitado, e padre.Todo o tempo ela vinha
em igreja, confirmava o falso, mais declarava edificar o mal. E
daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em
desespero calado...Tudo crime, e ela tinha feito! E agora
implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as
mãos, depois as mãos no alto ela levantava.

Mas o missionario, no púlpito, entoou grande o Bendito,
louvado seja! e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as
mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens,
porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para
os ouvintes senhores homens, como conforme.

E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com
arcos e cordas de bandeirolas, e espúco de festa, foguetes
muitos, missa cantada, procissão - mas todo o mundo só pensava
naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-
escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando
seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para
cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela exclamava -
tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os
ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a
bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de
Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais
de semana, os missionários tinham ido embora.Veio autoridade,
delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia
de Arassuaí Só que, nos dias em que ainda esteve, o povo
perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem.
Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre,
para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e
edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela
principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria
Mutema estava ficando santa.

E foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que de certo
modo me divagasse. Mas, foi ele acabar de contar, e escutamos o
assovio combinado dos nossos, e demos resposta: era um que
chegava o Paspe se aparecendo macio dos escuros, com
alpercatas sem barulho e o rifle em bandoleira. Ele tinha
formado, para a esparrela, com Titão Passos, agora vinha trazer notícia
dos dele, seguidos para se ajuntarem no covo do Capão; e pedir
ordens. Rio de homem, esse Paspe: que não temia nem se
cansava. Contou: que, aquilo que era para estratagemas, deu foi em
por agua-abaixo, porque os bebelos tinham botado espiação, ou
tomado o faro. Assim, o inimigo contornando, em vez de ir
simples: e tochando resposta antes de pergunta, fogo feio
dois mortos, dos titão passos, companheiros bons: mais três muito
feridos. Guerra tinha disso também.

"Ah, e Zé Bebelo mesmo estava lá, no comando daqueles,
em sua dita pessoa?" perguntei.

"Decerto que estava. A cujo!" o Paspe falou; e pediu
logo quem tivesse um golinho de cachaça.

Devo, então, que perguntei por Diadorim. Puro por
perguntar, sem esperanças de informação. E mesmo, más notícias
eu ainda tinha o receio de ouvir. Serviço que me foi, o Paspe me
respondeu:

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- "Vi, esse por mim passou, até me deu um recado, uai!: é
para você mesmo: Vai, diz por mim ao Riobaldo Tatarana: que eu
tenho um que-Jazer, ao que vou, por dias poucos, com breve estou de
volta.., foi o que falou. Assim passou, a cavalo - onde terá
sido que arrumou montada? Decerto conseguiu algum animal
dos bebelos mesmo, que restou no meio de tiroteio..."

Ouvi e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então,
não podíà ser ele, foras de norma. E ao Paspe reperguntei,
pedindo o exato. Era. Mas não seria, então, que ele estivesse
ferido, numa perna?

Ao que nem não nem sim - mais pelo não que pelo sim... -
o Paspe completou. Não tinha reparado, no relance de tempo. Só
viu que o arreio era um socadinho, quase novo, e o cavalo
alto, desbarrigado, mas pronto de si, riscando com todas as
ferraduras, murzêlo-andrino...

Aí, ái, ôi, espécie de dôr em meus cantos, o senhor sabe.
Agora eu pateteava. Quê que era ser fiel; donde estava o amigo?
Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia.
As certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro.
Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim de tenção me
largava lá sem uma palavra prépria da boca, sem um abraço,
sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo por conta da
amizade! Acho que me escabreei. De sorte que tantos
pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do
corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de
malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto,
que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com
água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado
febre de estupor. Foi assim.

Vou reduzir o contar: o Vão que os outros dias para mim
foram, enquanto. Desde que da rede levantei, com aquele peso
anoitecido, amanhecido nos olhos. Tempo de minha vazante. A
ver como veja: tem sofrimento legal padecido, e mordido e
remordido sofrimento; assim do mesmo que ter roubo sucedido e
roubo roubado. Me entende? Dias que marquei: foram onze.
Certo que a guerra ia indo. Demos um tiroteio mediano, uma
escaramucinha e um meio combate. Que isso merece que se conte?
Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou descrição. Mas não
anuncio valor. Vida, e guerra, é o que é: esses tontos
movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que
vale o que está por baixo ou por cima - o que parece longe e
está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor
que eu sei e senhor não sabe; mas principal quero contar e
o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.Agora, o
senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração
- dou o tampante, e o que for de trinta combates. Tenho
lembrança. Pelo tempo durado de cada fogo, se é capaz até do
cálculo da quantidade de balas. Contar? Do que se aguentou, de
arvoados tiros, e agente atirando a truz, no meio de pobre roça
alheia, canavial cortante, eito de verde feliz ou palhada de milho
morto, que se pisava e quebrava. De vez em que rifle trauteava
tanto, e eram os estalos passando, repassando, que, vai, se
aconchava mão em orêlha, sem saber por quê, feita uma esperança de
se conseguir milagre de algum barulhinho diverso outro,
qualquer, que aquele não fosse, na ensurdescência. E quando tonS de
chuva deu bomba, desmanchando a função de briga e
empapando todos, ensolvando as armas. De se olhar em frente o morro,
sem desconfiança, e, de repente, do nú do morro, despejarem
descarga. De um entrar em poço, atravessando, e mesmo com
água quase até pelos peitos, ter de se virar em direção, e
desfechar. De como, no prazo duma hora só, careci de ir me vendo

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escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de mato e
campo, em virada de espigão, descendo e subindo ramal de
ladeirinhas pequenas, e atrás de cerca, debaixo de cocho,
trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul duma laje grande, e
rolando no bagaço dôce de cana, e rebentando por dentro de
uma casa. E de companheiro em sopas de sangue mais sujeira
de suas tripas, la dele, se abraçando com a gente, de mandado da
dôr, para morrer só mesmo, seja que amaldiçoando, em lei, toda
mãe e todo pai. E como quando, no refêrvo, combatendo no
dano da mormaceira, a raiva de fúria de repente igualava todos,
nos mesmos urros e urros, uns e uns, contras e contrários
- chega se queria combinar de botar fora as armas-defogo,
para o aproximaço de se avir em mãos às duras brancas, para se
oferecer fim, oferecer faca. Isso é isto. Sobejidão. O senhor mais
queria saber? Não? Eu sabia que não. Menos mortandades. Aprecio
uns assim feito o senhor - homem sagaz solerte.

Vir voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudando em raiva
falsa a falta que Diàdorim me fazia. Aí, curti amargos. Por me
casca em chão, que é o figurado de desprezo, e mais tudo o
que em ocasiões dessas se sente, conforme o senhor de certo
conhece e sabe. Mas o pior era o que eu mesmo mais sentia: feito
se do íntimo meu tivessem tirado o esteio-mor, pé de casa. E,
conforme sempre se dá, segundo se está assim em calibre de cão,
e malquerente, repuxei idéias. Me alembrei do que tinha
soprado em intriga o Antenor, e dei razão à cisma dele: quem sabe,
mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a gente se
acabar ali, na má guerra, em sertão plano? E então Diadorim
disso sabia, estava no enrêdo, agora tinha idO para junto de joca
Ramiro que era a única pessoa que ele bastantemente
prezava? Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspi três
vezes forte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem como
eu não é todo capaz de guardar a parte de amor, em desde que
recebe muitas ofensas de desdém. Só que, depois, o que ha, e a
alma assim meio adoecida. Digo, fiquei lazo. Me veio de pensar
em falar com o Antenor. Não fiz. Dúvidas dessas, eu não ia
repartir com estranhas pessoas. E não gostei nunca de homem
intrujão, com esses não começo conversa: não hio e não chio.
Tanto que mesmo foi o Hermógenes que um dia me chamou, veio
caçoando: "Eh, valente tu é,Tatarana! Gosto dessa sua
bizarria..."

- "S'as ordens, s'or..." - eu só falei. Porque, ele, pelo jeito,
logo entendi que ia me fazer algum espontâneo obséquio, ou
me dar alguma boa notícia; todo que um, assim, nessas horinhas,
logo mUda de modo: antes, aproveita um tico para falar de cima
jeitoso de dono bom ou de pai que cede. E foi que não errei. O
que o Hermógenes queria me prometer era que em breve iam
estar acabados aqueles riscos de trabalho e combate, com
liquidados os bebelos, e então a gente ficava livre para lidar
melhormente, atacando bons lugares, em serviço para chefes políticos.
E que, nessa ocasião, ele queria me escolher para comandar uma
Parte dos seus, por ser isso de minha rija competência - cabo
de turma.

Tanto gabado elogio que não me mudou, não me fez.
Descareci. Experimentando o homem, só aproveitei foi para uma
deixa: - "Joca Ramiro..." eu disse, com uma risadazinha minha
velhaca, que entre dois podia pegar qualquer incerto significado.
E me esperei. Mas o Hermógenes se saiu em só dizer, sério,
confioso: que Joca Ramiro era maludo capitão, vero, no real.
Sonsice do Hermógenes? Não, senhor. Sei e vi, que o sincero.
Por que era que todos davam assim tantas honras a Joca Ramiro,

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esse louvo sereno, com doado? Isso meio me turvava. Mas, do
Hermógenes, então, me atormentou sempre aquele meu receio,
que eu carecia de pôr em raiva. Assim, por isso, falei em mim
comigo: "A ele nego água, na boca do pote!" Esconjurar desse
jeito leve me trouxe sossego. Ao que eu carecia. Tanto mesmo
que eu não queria ter de pensar naquele Hermógenes, e o
pensamento nele sempre me vinha, ele figurando, eu cativo. Ser que
pensava, amiúde, em ele ser carrasco, como tanto se dizia,
senhor de todas as crueldades. No começo, aquilo me corria só os
calafrios de horror, a idéia minha refugava. Mas, a pouco, peguei
às vezes uma ponta de querer saber como tudo podia ser, eu
imaginava. Digo ao senhor: se o demônio existisse, e o senhor
visse, ah, o senhor não devia de, não convém espiar para esse,
nem mi de minuto! não pode, não deve-de! São se só as coisas
se sendo por pretas e a gente de olhos fechados.

Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo
que me dava entrante uma tristeza no geral, um prazo de
cansado. Mas eu não meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a
tristonha travessia, pois então era preciso. Agua de riu que
arrasta. Dias que durasse, durasse; até meses. Agora, eu não me
importava. Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da
gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por
regras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio
vira esses desesperos? - desespero é bom que vire a maior
tristeza, constante então para o um amor - quanta saudade... -
aí, outra esperança já vem... Mas, a brasinha de tudo, é só o
mesmo carvão só. Invenção minha, que tiro por tino. Ah, o que
eu prezava de ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para
se estudar dessas matérias...

Daí, eu caçava o jeito de me espairecer, junto com todos.
Conversas com o Catôcho, com Jõe Bexiguento, com o Vove,
com o Feijó - de mais sisudez - ou com Umbelino - o de
cara de gato. Se ria, fora de aperreio de combate muito se vadiava.

Assim-assei, naquela influição. Vinha ordem, então a gente se
reunia em bando grande, depois tornava a em grupozinhos se
apartar. A guerra era a igual. E ali dava de se sentir o faltoso e o
imperfeito, como no mais acontece, em quantidade maior. O São
Francisco não é turvo sempre? E o que se falava mais era em
mulher? Isso fazia muito boa falta. Cada um queria delas, no que
só pensava. As mocinhas próprias de se provar, ou rua alegre
cheia de alegria - o bom sempre melhor, o bom. Amigo meu, o
Umbelino esse que dizia: que, por não ter mulher ali, se tinha
de muito lembrar. Ele era do Rio Siruhim, de um lugar para trás
das cachoeiras.Valia como companheiro, capaz d'armas. Que que
pequeno, era bom. Relembrava: "Já tive uma mulher
amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, em São Romào, e outra, mais,
na Rua-do Fogo..." Essas conversas, com o calor. Calor em que
cão pendura a língua, o senhor sabe. Já viu, por aí? Em Januária
ou São Francisco, tinha estação de tempo em que não se podia
deixar um OVo guardado: com umas duas ou três horas, ja se
estragava. Todos contavam estórias de raparigas que tinham sido
simples somente; essas senvergonhagens. Mas, de noite - é de
crer? - a gente sabia dos que queriam qualquer reles suficiente
consolo. E eram brabos sarados guerreiros, que nunca noutro ar.
Coisas. Canta que cantavam, de dia, nenhum
sabia pé-de-verso direito, ou não queriam ensinar, era só aquela
invenção, e cantando fanhoso no nariz. Ou ficavam dizendo
graças e ditérios. Nem feito meninos não sendo. Por esse semquefazer,
a gente ainda mais comia, quase que por divertimento. Os uns iam torar
palmito, colher mandioca em mandiocalzinho sem dono, dono
tinha fugido longe. Gostei de favas do mato, muito murici, quixaba

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e Jaca. O Fonfrêdo tinha um blilbloquê, a gente brincava de
jogar. Tudo jogado a dinheiro baixo. Os espertos, teve quem pôs a
jogo até bentinho de pescoço, sem dizer desrespeito. E faziam
negócio desses breves, contado que alguns arrumavam até
escapulários falsos. Deus perdoa? O senhor podia perguntar:
Deus para qualquer um jagunço, sendo um inconstante patrão,
que as vezes regia ajuda, mas, outras horas, sem espécie
nenhuma, desandava de lá - proteção se acabou, e pronto:
marretava! Que rezavam. Jôe Bexiguento, mesmo, quis que diversos
tomassem parte em novena, numa mal rezada novena, a santo de
sua redobrada tenção, e a qual ele nem teve persistência para nos
dias medidos completar.

E - mas - o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu
descrever: de vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir e se divertir
no meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo
meco. Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, mais com uma
calça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito
esmolambado na camisa. Até que de barba grande, parecia um pedidor.
E caminhava com os largos passos, mais o muito nas pontas,
vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeava por toda a parte.
Nem eu no achar mais que ele era o ferrabrás? O que parecia,
era que assim estivesse o tempo todo produzindo alguma
tramoia.

Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele
homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com
mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento constante
querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a
inocência daquela maldade. A qual me aluava. O Hermógenes,
numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em
suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito
lobisomem? Adiante de quem, atrás do que? A cruz o senhor
faça, meu senhor! Aí eu acreditei que tivesse de haver mesmo o
inferno, um inferno; precisava. E o demônio seria: o inteiro,
louco, o dôido completo assim irremediável.

Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso. Comigo
eu começava numa espécie, o rôr, vontade de ir para perto,
reparar em tudo que fazia, dele escutar suas causas. Aos poucos, o
incutido do incerto me acostumando, eu não tirava isso da
cabeça. O Hermógefles ele dava a pena, dava medo. Mas, ora vez,
eu pressentia: que do demônio não se pode ter pena, nenhuma, e
a razão está aí. O demônio esbarra manso mansinho, se fazendo
de apeado, tanto tristonho, e, o senhor pára próximo - aí então
ele desanda em pulos e prezares de dansa, falando grosso,
querendo abraçar e grossas caretas - boca alargada. Porque ele é
- é dôido sem cura. Todo perigo. E, naqueles dias, eu estava
também muito confuso.

"Será, o Hermógenes também gosta de mulheres?" eu
careci de saber, perguntei. - "Eh. Aprecêia não. Só se não
gosta..." - um disse. - "Quá. Acho que ele gosta demais é só nem
dele mesmo, demais, demais..." algum outro atalhou. Que
ele era assim eu fiquei em pausas : e os companheiros
todos sabiam do ser; e achavam então que ato assim era possível
natural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o assunto, já
um vinha: - "Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho - lá
tem logradouro. Tem fêmeas..." Esse que disse era o Dute, me
parece; ou foi outro. Mas o Catôcho desafirmou: que tinha
estado lá, não viu ar de mulher-da-vida nenhuma, só uma vendinha
de roça e uma velha pitando cachimbo, no batente duma porta,
pitando cachimbo e trançando peneiras. Que queriam mulheres
principalmente a fim, estava certo; eu também. Eu queria, com

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as faces do corpo, mas também com entender um carinho e
melhor-respeito - sempre a essas do mel eu dei louvor de meu
agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos: graças a
Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as
mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas
bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode, em algum ao
lugarejo, para baixo de lá: do que batucavam, o propuxado das
sanfonas, cachaça muita, as mulheres vinham dar umbigadas,
tiravam a roupa, cavalheiros levavam damas nas môitas, no escuro
do sêbo; outros desafiavam outros para brigar. Para que? Por que
não gotar o geral, mas com educação, sem as desordens? Saber
aquilo entristecia.Tem coisas que não são de ruindade em si,
mas danam, porque é ao caso de virarem, feito o que não é feito.
Feito a garapa que se azéda. Viver é muito perigoso, já disse ao
senhor. No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu
estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça?
De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me
disse que eu estava estando verde, má cara de doença e que
devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido, O Paspe, que
cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de macela, o de erva-dôce,
o de losna. Oi. Pôr, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente
perrengueava.

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de
uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com
raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em
outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho,
soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia
pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo
jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras
horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro
do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que,
o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha
significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me
crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela
raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como
coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora
eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais
nessa agenciaçãO encoberta da vida, fico me indagando: será que
é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor
ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que
Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a
gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma
nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de
raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria
pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da
gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé
Bebelo falava sempre com a máquina de acerto - inteligencia
só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força
para não esparramar raivas. Lembro que naquela manhã também
o calor era menos, e o ar era bondoso. Ai eu à paz com
vontade de alegria - como se estimasse recebendo um aviso.
Demorei bom estado, sozinho, em beira d'água, escutei o fife dum
pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim
que chegando, ele já parava perto de mim.

Ele mesmo me disse, com o sorriso sentido:

- "Como passou, Riobaldo? Não está contente por me ver?"
A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo. Ao
que, pela pancada do meu coração. Aí, mas um resto de dúvida: a
inteira dúvida, que me embaraçava real, em a minha satisfação.
Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então, permaneci;
não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavras dele. Mais
falasse - retardei, limpei a goela.

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"A pois. Por onde andou, se mal pergunto?" - aí falei.
Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida, dita a
minha nos grandes olhos, ele pronunciando:

"Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou
vendo. Você derradeiramente não tem passado bem?"

"Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!"

Ao que Diadorim me deu a mão, que malamal aceitei. E ele
disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho,
recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiro que
pegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão. Menos
entendi. A real que estando ofendido, por que era que não havia
de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura?
Doente não foge para um recanto, ou mato, solitário consigo,
feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bem
que criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado ido, e que
feia ação para aprontar, com parte na fingida estória? As
incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assim afetuoso,
tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer
bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce. Magro ele
estava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco
mancava. Que vida penosa não era capaz de ter levado, tantos dias,
sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com
emplastros de raízes e folhas, comendo o quê? Assunto de fome
e toda sorte de míngua devia de ter penado. E de repente eu
estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do
que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo
todo eu tinha gostado. Amor que amei - daí então acreditei. A
pois, o que sempre não é assim?
Além do que era sazão de sentimento sereno: arte que a
vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos
seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com
assanhamentos. De formas que perdi o semelhar de tantos
manejos e movimentos e a certa razão das ordens que a gente
cumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazer meu
particípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha
Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no meio
desses perigos de fato. Sendo que a sorte também prevalecia do
nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?
Ao que, com João Goanhá de testa-chefe, saímos, uns
cinqüenta, pegar uma tropa de cargueiros dos bebelos, que
vinham ao descuidado, de noite, no Bento-Pedro - lugar num
braço de brejo, arrozal. Surpreender custou barato, bobearam as
sentinelas, sem se haver um grito-de-armas, foi só pôr em fugida.
Aquela carga era enorme, maior em dobro, uma riqueza - tinha
de tudo, até cachaça de pago imposto: as caixas de quarenta-eoito
garrafas cada. Ao tanto levamos os lotes de burros para
esconder no Capão dos Ossos, onde tem carrascais e caminhos
de caatinga pobre, com lagoas secando: as ipueiras verdolengas.
Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontar nos
animais. Aquilo era uma alegria. Minha alma estava: o troteio, a
poeirada que levantavam, os cavalos que rinchavam bem. Acinte
bebi água de de-dentro dum gravatá em flor. Aquelas aranhas
grandes armavam de árvore para árvore velhices de teia. Parecia
que a guerra já tinha se terminado bem. - "Berimbau!" - um
disse - "Agora é gozar gozo..." Mas. - "Ah, e Zé Bebelo?" -
perguntei. Um Federico Xexéu, que vinha de recado, botava o
fácil desânimo: - "Ih! Zé Bebel'? Evém ele, com gentes de
nuvens gentes..." A desléguas, se guerreava. A gente recebia a noticia.
Aí - cavalaria chusma, arruá que chegando, aos estropes,
terras arribavam: - "Eta, é?!" Sendo que era não. Só era Só
Candèlário, de repente. Apareceu, com aqueles muitos homens.

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Sós, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpo dele se
encurtou pela metade. Só Candelário. Esse era alto, trigueiro azul,
quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem
de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente
de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o
Hermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para
enfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo. Se apeou,
ficou um demorado tempo de costas para a gente.
Saudei o Fafafa, que era homem também dele: com os de
Só Candelário, o Alaripe e o Fafafa tinham outra vez aparecido.
O Fafafa, o que ele pois então me falou, numa ocasião terrível...
Ah, mas o que eu antes não contei: o do preso. Antes, como foi
que se passou, como estávamos em bons escondidos, em volta
da casa dum sitiante, no Timba-Tuvaca, casa caiada, casa-detelhas.
Uns em grota, uns em altos de árvores, tinha gente até
dentro de chiqueiro, na lama dos porcos. Aí chegaram os bebelos
- uns trinta? Tiroteamos na suspensão deles, os quantos que
matamos, matamos, os mais fugiram sem após. Um ficou preso.
Nem tinha nenhum ferimento. - "Que é que vão fazer com ele?"
- eu perguntei. Será que iam matar? - "É verdade, acho que sim.
Pois, amigo, a gente tem lá meios para guardar prisioneiro vivo?
Se degola é da banda da direita para a esquerda..." - o que o
Fafafa me respondendo. No que dizia, ele tinha razão. Mas,
quem seria que ia cumprir de dar o fim n'aquele pobre moço? O
Hermógenes? Decerto era ele. Cocei os olhos, eu queria saber e
não saber. Sabia nem o nome, como se chamava o rapaz, que ia
morrer, assim no meio de toda boa ordem, por necessidade nossa
- porque, se solto, ele tornava a se juntar com os outros, dar
relatórios. Vim para a beira do córrego. Vendo como levavam o
rapaz, como ele caminhava normal, seguindo para aquilo com
seus dois pés. Essa injustiça não podia ser! Assim, os que
passavam, depois, que decerto iam para matar, eram outros, não
vi o Hermógenes. Um, um Adílcio, com vaidade de ser capaz da
maldade qualquer, pavão de penas. O outro, Luís Pajeú.
Imaginado, a que iam matar o homem, lá nas primeiras árvores
da capoeira, assim. Ânsia de dó, apalpei o nó na goela, ardi.
Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse, então
eu carecia de uma realidade no real, sem divago! Ajoelhei na
beirada, debrucei, bebi água com encostando a boca, com a cara,
feito um cachorro, um cavalo. A sede não passava, minha barriga
devia de estar inchada, igual a de um sapo, igual um saco de todo
tamanho. A umas cem braças para cima, onde o córrego
atravessava a capoeira, estavam esfaqueando o rapaz, e eu espiava
para a água, esperando ver vir misturado o sangue vermelho dele
- e que eu não era capaz de deixar de beber. Acho que eu estava
com uma febre.

Aquele grande gritar, de se estremecer. Diadorim me
puxou. Só Candelário subido em sela, aforçurado regendo: a
pronto ele queria o punhadão de homens, se ia para o É-Já, p'ra
lá do Bró, em todo o seguir. - "Vamos, Riobaldo! É para se
esperar Joca Ramiro..." Assim Diadorim me empurrou. Montei.
Sem tento, pisei um estribo, o outro o meu pé não achava. -
"Tocar ligeiro, Riobaldo!" - Diadorim me atanazando. Aquilo
que lavorava em minha cabeça - ah, mas, aí, quem é que eu vi?

O rapaz, aquele, o preso, vivo e exato. Também montado num
cavalo. Assim o que me contaram: que não ia morrer, não, iam
matar não, Só Candelário tinha favorecido perdão a ele, por
causa de sua mocidade. - "Ele é baiano, para a Bahia volta,
vamos levar mais adiante, para se soltar, para lá..." Me alegrei de
estrelas. Conforme mais me deram explicação, aquele não
oferecia perigo mais de tornar a se juntar com os outros bebelos e vir

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outra vez de armas contra a gente: porque se tinha providenciado
de rezar nele uma reza de tirar a coragem de
guerra, feito ato, mandraca de se abobar! Tudo tinha graça. Mas,
e o Luís Pajeú e o Adílcio, então, do modo que vi? Pois, esses
passaram com as facas-de-arrasto, mas porque iam ajudar a
retalhar o porco, porção que se levava, dali, em carne e
toucinhos. Ah, eu tinha bebido àtoa gorgol d'água. Se deu
galope. Me pareceu que daí adiante, a partir disso, o tudo era
para só ser a desatinada doidice. Só Candelário galopava em
frente de todos. Se ia - feito o rei dos ventos.
O lugar onde esbarramos, no É-Já, era logo depois da
ponte de pau, que estando esburacada: atravessamos mais
embaixo, mau vau, por espirro de águas e escorrego em lisas
pedras soltadas, no ribeirão lajeal. Ter, lá, ainda não tinha
ninguém; até me deu desengano. Mas tudo, no redor, era verde
capim em beira fresca, aguada e pastos bons. Atrevi que quis: -
"E Joca Ramiro?" Mas Diadorim se compôs: - "Agora, aqui,
Riobaldo, é o ponto: inimigo vindo, morremos; mas nem um
bebelo não tem licença quieta de passar!" Diadorim a tanto
impante, eu debiquei: - "Ah, me importa! Não é o que é se ver
Joca Ramiro? Pois eu estou vendo." - "Rezinga não, Riobaldo. A
horas destas, Joca Ramiro deve de estar investindo aqueles, e
tudo destralhado vencendo..." - foi o que ele perfez. Atrás disso,
eu em ojeriza: - "Você sabe, hem, sabe. Os grandes segredos..."
- fui falei. Mas, em passos desses, Diadorim sempre me apeava.
Como o que reprovou: - "Sei de nada. Sei o que você pode saber
também, Riobaldo. Mas conheço Joca Ramiro, sozinho que
pensa as partes. Conheço Só Candelário - que só comparece é
em fecho de forte decisão..."
Ao que era. Nos dias em que tivemos de montar guarda
nos lajeiros e lajeados, aprendi os rasgos daquele homem. Só
Candelário - como vou explicar ao senhor? Ele era um. Acho
que nem dormia, comia o nada, nada, às pressas, pitava o tempo
todo. E olhava para os horizontes, sem paciência neles, parecia
querer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra. Donde ele era,
donde vindo? Me disseram: desses desertos da Bahia. Passava,
não me olhava. Ocasião, então, Diadorim a ele me mostrou: -
"Este é o meu amigo Riobaldo, chefe..." Aí, Só Candelário me
divisou, sempre me viu. Rir sorrir ele não sabia - mas sossegava
um modo nos olhos, que tomavam um sério bom, por um seu
instante, apagando de serem aqueles olhos encarniçados: e isso
figurava de ser um riso. Que conhecia Diadorim, e prezando
muito, desde vi. - "Riobaldo, Tatarana, eu sei..." - ele falou -
"Tu atira bem, tem o adestro d'armas..." E foi andando; acho que
dele ainda ouvi: ..."amizade nas festas..."? Conseguia nem ficar
parado. E, por um ponto ou outro, que eu não divulguei bem, ele
tinha algum estilo de ar de parecença com o próprio Zé Bebelo.
Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos
sabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E
bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo
ao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele
tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois,
os que eram mais velhos. Lepra - mais não se diz: ai é que o
homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é
que decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de
idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é
que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer.
Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a
camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de
em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele

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furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que
ele tomava certos remédios - acordava com o propor da aurora,
o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para
a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos
dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Só Candelário é o que
mais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta
futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito,
forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado
que mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é,
mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava.
Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.
Tanto que o inimigo não dava de vir, pois bem, a gente
ficava em nervosias. Alguns, não. Feito aquele Luzié, que cantava
sem mágoas, cigarra de entre-chuvas. Às vezes, pedi que ele
cantasse para mim os versos, os que eu não esqueci nunca,
formal, a canção de Siruiz. Adiantes versos. E, quando ouvindo,
eu tinha vontade de brincar com eles. Minha mãe, ela era que
podia ter cantado para mim aquilo. A brandura de botar para se
esquecer uma porção de coisas - as bestas coisas em que a gente
no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem
fidalguia. Diadorim, quando cuidava que sozinho estivesse,
cantarolava, fio que com boa voz. Mas, próximo da gente, nunca
que ele queria. A ver que também fiquei sabendo que os outros
não consideravam naqueles versos de Siruiz a beleza que eu
achava. Nem Diadorim, mesmo. - "Você tem saudade de seu
tempo de menino, Riobaldo?" - ele me perguntou, quando eu
estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha
saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora,
naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo que eu já estava
crespo da confusão de todos. Em desde aquele tempo, eu já
achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés
nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser
como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto
seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava.

Ao do jeito de Só Candelário? Esse variava raja. - "Arre,
que vê, estamos sem noticias, não sei... A notícia, a gente tem de
ir por ela, mesmo entrar no mundo para se buscar!" - isso Só
Candelário quase exclamava. Mandou três homens que saíssem a
cavalo, estrada avante, até a uma légua, colher do que houvesse,
espiar os espias. Me mandou, também. Mas, a bem dizer, fui eu
quem quis: na hora, à frente dei o passo, olhei muito para ele,
encarado. - "Tu Tatarana, vai..." Quando ele falava Tatarana, eu
assumia que ele estava sério prezando minha valia de atirador.
Montei, fui trotando travado. Diadorim e o Caçanje iam já mais
longe, regulado umas duzentas braças. Arte que perceberam que
eu vinha, se viraram nas selas. Diadorim levantou o braço, bateu
mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo
alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo filosofou: refugou baixo e
refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da
estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era, que
estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que
sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do
vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe - a
briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam,
o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no
alto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo quebrado, no
estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti
meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A
gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam
lá adiante, por me esperar chegar. - "Redemonho!" - o Caçanje falou,

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esconjurando. - "Vento que enviesa, que vinga da banda
do mar..." - Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que
fosse: redemunho era d'Ele - do diabo. O demônio se vertia ali,
dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na
hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, no meio do
redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas
palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A
gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram
também. Aí, tocamos.
Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de
escadinhas. Nem pensei mais no redemoinho de vento, nem no
dono dele - que se diz - morador dentro, que viaja, o Sujo: o
que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que
completa tudo em obra; o que a gente pode ver em folha dum
espelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na barra dos
riachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar. Como é que
se podia trazer notícias, para Só Candelário? Notícia é coisa que
se tira, a desejo, do fim do sol? Lá tinha um capão-de-mato. Ou
era mata, muito velha. Os coatis desciam espirrando, de sua
sesta deles, nas árvores, e os jacus voavam para outras árvores,
se empoleirando para o sono da noite, com um escarcéu de
galinheiro. Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um aperto de desânimo
de sina, vontade de morar em cidade grande. Mas que
cidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo. Assim eu
aproveitei para olhar para a banda de donde ainda se praz
qualquer luz da tarde. Me lembro do espaço, pensamentos em
minha cabeça. O riacho cão, lambendo o que viesse. O coqueiro
se mesmando. A fantasia, minha agora, nesta conversa - o
senhor me atalhe. Se não, o senhor me diga: preto é preto?
branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo
de dentro da mocidade. Noitezinha, viemos. Primeira coruja que
a ãoar, eu era capaz de acertar nela um tiro.
Mas Só Candelário não era tolo nas meças. No outro dia,
notícias tivemos. E que! Dali a lá, as notícias todas andaram de
vir, em lote e réstia. Um Sucivre, que fino chegou, esgalopado.
Disse: - "Nhô Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado. Titão
Passos pegou trinta e tantos deles, num bom combate, no
esporão da serra..." Os bebelos se desabelhavam zuretas, debaixo
de fatos machos e zuo de balas. A tanto, a gente em festa
se alegrava Só Candelário subiu no jirau de varas-que tinha
mandado fazer, nele era que dormia sem repousar - e assim
espiou esquecido tempo, espiava as paradas distâncias, feito um
gavião querendo partir em vôo. Agora, era a guerra, mesmo,
estariam rompendo as aleluias, lá por lá. Donde, daí, veio o
Adalgizo: - "Seô Hermógenes passou, obra de seis léguas, vai
dar combate..." Nossa hora de fogo estava perto. Assim os
bebelos tinham de passar de fugida por ali no É-Já, resvés. Só
Candelário chega exclamava, chorava: dizia que nunca tinha
chefiado pessoal tão valente feito nós, com tantas capacidades.
E queria, logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horas tocaiadas;
e de noite com um olho só se ia dormir, que das armas não se
largava. A redobrar as sentinelas, em ave-marias e alvorada.
Combate vem é feito raio cai. Tudo era alarme dado, cuquiada:
um pontapé em tição, o punhado de terra jogado para apagar as
fogueiras, de repente, e se assobiava cruzado. Vez, deram até
tiros: mas nada não era, só um boi loango, com muita fome e
pouco sono, que veio sozinho pastando e deu a cara comprida,
ali foras d'hora, no capinzal bom. - "Tudo que é estúrdio
comparece em tempo de guerra... Vote, vais!" - algum disse. E
teve gente que se riu disso, até à beira da madrugada. Daquilo
tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar
graça no dessossego. Aprendi a medir a noite

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em meus dedos. Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que
vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aos goles, dormida com a
gente encostado em coronha de sua arma. O que carece é acompanheiragem
de todos no simples, assim irmãos. Diadorim e eu, a sombra da gente uma
só uma formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.
Sô Candelário era o chefe ao meu gosto, como eu imaginava. Ah, e Joca
Ramiro?

Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquele alvoroço, na
cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto
chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro!

- "Joca Ramiro!" - se gritava. Só Candelário pulou em sela,
assim como ele sempre era: mola de aço. Deu um galope, em encontro. Nós
todos, de começo, ficamos atarantados. Vi um sol de alegria tanta, nos
olhos de Diadorim, até me apoquentou. Eu tinha ciúme? - "Riobaldo, tu
vai ver como ele é!" - Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia uma
criança pequena, naquela bela resumida satisfação. Como era que eu ia
poder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a toda cavaleirama chegando,
empiquetados, com ferragem de cascos no pedregulho. Eram de ser uns
duzentos, quase tudo manosvelhos baianos, gente nova trazida. Gritavam
vivas para a gente, saudavam. E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num
cavalo branco - cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada,
de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não
sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande,
corada muito, aqueles olhos.

Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O
chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa
em que se reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha
até medo de que, com tanta aspereza da vida, do serão, machucasse aquele
homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais,
na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de
dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.

Sobre o no meio daquele rebuliço, menos colhi de ver e de
escutar. Os chefes tinham apeado dos cavalos, e os homens,
todos, em balbúrdia com sensatez. Sô Candelário não arredava pé
de Joca Ramiro, e explicava as diversas coisas, com grandes
gestos, quase ele não dava conta de se falar. A demora era pouca. Aí
o forte bando tinha de se aluir para adiante, em redobro de
marcha iam para ferrar fogo, em lugar e hora determinados
semelhante se soube. Tempo de beberem um café. Mas Joca
Ramiro veio de lá, em alargados vagarosos passos, queria correr o
acampamento, saudar um e outro, a palavrinha que fosse, um
dito de apreço e apraz. O andar dele -vi certo: alteado e
imponente, como o de ninguém. Diadorim olhava; e também tinha
lágrimas vindo por caso. Decidido, deu um a-trente, pegou a
mão de Joca Ramiro, beijou. Joca Ramiro, que firme
contemplando, só um instante, seja, mas o docemente achável, com um
calor diferente de amizade. A quantia que ele gostava de
Diadorim! - e pousou nas costas dele um abraço. Ao que, se virou
para nós, que estávamos. E eu fiz como Diadorim
- nem sei porquê: peguei a mão daquele homem, beijei também. Todos, os
que eram mais moços, beijavam. Os mais velhos tinham
vergonha de beijar. - "Este aqui é o Riobaldo, o senhor sabe? Meu
amigo. A alcunha que alguns dizem é Tatarana..." Isto Diadorim
disse.A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, fraseou: "Tatarana,
pêlos bravos... Meu filho, você tem as marcas de conciso
valente. Riobaldo... Riobaldo.. ." Disse mais: -"Espera. Acho que
tenho um trem, para você..." Mandou vir o dito, e um cabra
chamado João Frio foi lá nos cargueiros, e trouxe. Era um rifle reiúno,
peguei: mosquetão de cavalaria. Com aquilo, Joca Ramiro me

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obsequiava! Digo ao senhor: minha satisfação não teve beiras.
Pudessem afiar inveja em mim, pudessem. Diadorim me olhava,
com um contentamento. Me chamou de lado. Vi que, mesmo
sendo assim querido e escolhido de Joca Ramiro, ele procedia
mais de ficar de longe, por ninguém se queixar, não acharem que
ali havia afilhadagem. "Não é que ele é mesmo o chefe de
todos? Não é que é mandante?" Diadorim me perguntava.

Era. Mas eu não percebi o vivo do tempo que passava. Eles já
estavam indo de saída. Montado no cavalo branco, Joca Ramiro
deu uma despedida.Vi que ele com os olhos caçou Diadorim. Só
Candelário gritou: - "Viva Jesus, em rotas e vantagens!" E, num
bufúrdio, todos esporaram, andaram, ao assaz. A alta poeira, que
demorava. Aquilo parecia uma música tocando.

Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente,
noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas
armas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o fim
da guerra! "Só Candelário queria ir também, mas teve de
aceitar ordem de ficar..." Diadorim me explicou. Segundo
disse que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de
avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo.
Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo
quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: que nosso
grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer
de vigiar bem os vaus e suas estradas. Diadorim e eu fizemos
parte duma turma dessas, duns quinze homens, chefia de João
Curiol - fomos para a baixa dos Umbúzeiros, lugar feio, com
os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo desse
vau, a gente pega uma chapadinha - a Chapada-da-Seriema-
Correndo. A que parecia mesmo de propósito. Porque foi lá, com
todo o efeito, que a cara da caça se apareceu. Aquilo, terrível.
Conto já ao senhor, duma vez.

Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio.
Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera:
dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é.Tão de repente.
O vento vinha bom, da parte d'eles chegarem, de formas que o
galope pronto se ouviu: Escoramos as armas. Assim que eles eram
uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se
esguichou farta, vero bonito aquilo no sol. Demos fogo.

Do que podia suceder. Vi homem despencado demais, os
cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia fugir,
mas os homens no chão, no cata, cata. Ao que, a gente atirava! Se
morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve um, veio, a
de se duidar, se espinoteava, o cavaleiro não aguentava na rédea,
chegaram até perto de nós, aí todos os dois morreram de
repente. Meu senhor: tudo numa estraga extraordinária. Mas aqueles
eram homens! Trampe logo que puderam, os sobrantes deles se
desapearam e rastejaram, respondendo ao fogo. Ah, puderam
tomar oculto atrás de outras fragas de pedra, nisso a gente não
conseguiu ter mão. Ainda deviam de ser uns dez, ou uns oito. Afa
que gritavam, em febre de ódio, xingando todo nome. A gente,
também. Anhãnhãe, berrávamos fogo, quando sinal de homem
tremeluzia. As balas rachavam as pedras, só partiam escalhas. Um
se mostrou, caiu logo. Munição deles era pouca. Fugir, mesmo,
não podiam. A gente atirava. Aí deviam de ser uns seis que é a
meia-dúzia. "Aoê, sabe quem está lá, comandando?" o
rastejador Roque me disse. "Sabe quem?" Ah, eu sabia. Eu
tinha sabido, o em desde o primeiro momento. Era quem eu não
queria para ser. Era Zé Bebelo!

Assim eu condenado para matar.

Aqui eu não sei o que o senhor não sabe. "A fogo! A crêvo!"
iSto João Curiol gritava. Antes do depois, neles a gente ia ir a
pano de facão. - "Tralha! Lá vai obra, cão, carujo! Roncôlho!"

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isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu não gritei. Diadorim
também atirava calado. Munição deles quase nenhuma. Eles
deviam de ser uns quatro, ou três, O cano do meu rifle
esquentava demais. "Roncôlho! Toma..." Um Freitas, nosso, gritou,
caiu muito ferido. A bala era de Zé Bebelo. Atiramos, grosso.
Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de ser... os
quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo
que eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim,
com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade,
o corpo dele, a idéia dele, tudo que eu sabia e conhecia. Nessas
coisàs eu pensei. Sempre - Zé Bebelo - a gente tinha que
pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos
de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha
goela. Aquela culpa eu carregava? Arresto gritei: - "Joca
Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro
faz questão!..." A que nem não sei como tive o repente
de isso dizer - falso, verdadeiro, inventado...

Firme gritei, repeti.

Os outros companheiros aceitavam aquilo, diziam também,
até João Curiol: - "Joca Ramiro quer este homem vivo!"
- "É ordem de Joca Ramiro!" De lá não atiravam mais. Só bala ou
outra, só. - "Arre, à unha, chefe?" - o Sangue-de-Outro
perguntou. João Curiol respondeu que não. Eles deviam de estar
reservando balas para um final. - "Ordem de Joca Ramiro: é
pegar o homem vivo..." - ainda eu disse. Ali Zé Bebelo eu
salvasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não
me entender. O como são as coisas. Todos me aprovaram e,
aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas,
então, eu não tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu
estava fazendo, que era que eu estava querendo que pegassem
vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois judiarem com
ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em
mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo
sempre por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle e às cartucheiras.
Eu atirava, atirava: queria, por toda a lei, alcançar um tiro em Zé
Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem martírio de
sofrimentos. "Tu está louco, Riobaldo?" Diadorim gritou,
rastejando para perto de mim, travando em meu braço. "Joca
Ramiro quer o homem vivo! Joca Ramiro quer, deu ordem!"

todos agora me gritavam.Assim contra mim, assim todos. O que
eu havia de desmentir? E não vi direito, o fato. O que vi foi Zé
Bebelo aparecendo, de repente, garnizé. O que ele tinha numa
mão, era o punhal; na outra uma garrucha grande, fogo-central.
Mas descarregou a garrucha, atirando no chão, perto dos pés
dele, mesmo. Arrancou poeira. Por trás daquela poeira ele
reapareceu, dava pensamento assim aprumado, teso de briga.
Lampejou com o punhal, e esperou. Ele mesmo estava querendo
morrer à brava, depressamente. Olhei, olhei. De atirar nele, de
todo jeito não tive coragem.Ah, não tinha! E um dos nossos, não
sei quem, jogou o laço. Zé Bebelo mal ainda bateu com um pé,
por se firmar, e caiu, arrastado, voz que gritou: "Canalha!
Canalha!" Mas todos foram nele, desarmaram do punhal. Eu
parei quieto, vago, se me estranho. Não queria, ah não queria que
ele me reconhecesse.

Sobrevinha o tropel grande de cavaleiros. Aos quais: era Joca
Ramiro, com sua gente total. Subiu pó e pó, por ouros, poeira
de entupir o nariz e os olhos. Agarrei de mim, sentado lá, no
mesmo meu lugar, atrás do pedação de pedra. O que eu estava
era envergonhado. O fezuê se fez um enorme. Sendo que
chegavam também os outros grupos nossos, escutei os brados de Sô
Candelário A roda de cavaleiros tantos, no raso, sempre maior.
Algum soprou o buzo de corno de boi.Tocavam para o acampa-

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mento. Mas Diadorim estava me caçando, e mais João Curiol,
pelos mortos e feridos que também tínhamos, e também ali ele
devia de ter perdido algum trem seu, objeto. "Homem
danado..." ouvi o que um dizia. Meus olhos firmavam no chão,
agora eu via que tremia. "Ipa! Zé Bebelo, oxém, ganhou
patente. E estragador!" Eu falei: "É?" e neste entretanto. Ao
menos Diadorim raiava, o todo alegre, às quase dansas:
"Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. A mais, Joca Ramiro
apreciou bem que a gente tivesse pegado o homem vivo..." Aquilo
me rendia pouco sossego. E depois? "Para que, Diadorim?
Agora matam? Vão matar?" Mal perguntei. Mas o João Curiol
virou e disse: "Matar não, Vão dar julgamento..."
- "Julgamento?" não ri, não entendi.

"Aposto que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O homem
estúrdio! Foi defrontar com Joca Ramiro, e, assim agarrado
preso, do jeito como desgraçado estava, brabo gritou: - Assaca! Ou
me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal!... e
foi.Aí Joca Ramiro consentiu, apraz-me, prometeu julgamento
já..." isto o que falou João Curiol, para me dar a explicação.

Agradeci mesmo isso, a cisma não era para pôr peso em meus
peitos. Saímos ainda com João Concliz, a ir em longe arredor,
prevenir os que faltavam. A vinda geral. A gente deTitão Passos e
do Hermógenes mandava aviso de estarem em caminho, Os do
Ricardão já aos tantos chegavam. Saí, com esses de João Concliz.
Fui. Fiz questão. Eu não queria retornar logo, com os outros,
não enxergar Zé Rebelo eu achava melhor. Montamos e
sumimos por aqueles campos, essa estrada, esses pequizeiros.
"Homem engraçado, homem dôido!" Diadorim ainda achava.

"Sabe o que ele falou, como foi?" E me deu notícia.

Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto
cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo,
sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por
dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Rebelo empinou o queixo,
inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse:
-"Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande
cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!"
- "O senhor se acalme. O senhor está preso..." Joca
Ramiro respondeu, sem levantar a voz.

Mas, com surpresa de todos, Zé Rebelo também mudou de
toada, para debicar, com um engraçado atrevimento:
- "Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas,
então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o
que o senhor vai ver..."

"Vejo um homem valente, preso..." aí o que disse Joca
Ramiro, disse com consideração.

"Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa..."

"O que, mano velho?"

"...É, é o mundo à revelia!..." isso foi o fecho do que
Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas.

Assim isso. Tolêimas todas? Não por não. Também o que eu
não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não era criatura
que se prende, pessoa coisa de se haver as mãos. Azougue
vapor...

E ia ter o julgamento.

Tanto que voltamos, manhã cedinho estávamos la, no
acampo, debaixo de forma Arte, o julgamento? O que isso tinha de
ser, achei logo que ninguém ao certo não sabia. O Hermógenes
me ouviu, e gostou: "E e é.Vamos ver, vamos ver, o que não
sendo dos usos..." foi o que ele citou. "Ei, agora é
julgamento!" os muitos caçoavam, em festa fona. Cacei de escUtar
os outros. - "Está certo, está direito. Joca Ramiro sabe o que

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faz..." foi o que disse Titão Passos. "Melhor, mesmo.
Carece de se terminar o mais definitivo com essa cambada!" falou
Ricardão. E Sô Candelário, que agora não se apeava, vinha
exclamando: "Julgamento! E isto! Têm de saber quem é que
manda, quem é que pode!" Ao espraia as margens.

Agora estavam todos mais todos reunidos, estávamos no
acampamento do É-Já, onde ali mal tanto povo cabia, e lotes e
pontas de burros, a cavalhada pastando, jagunços de toda raça
e qualidade, que iam e vinham, comiam, bebiam, bafafavam. Só
Candelário tinha remetido dois homens, longe, no São José
Preto, só para comprarem foguetes, que no fim teriam de pipocar. E
onde estava Zé Bebelo? Apartado, recolhido de toda vista, numa
tenda de lona - essa única que se tinha, porque Joca Ramiro
mesmo se desacostumava de dormir em barraca, por o abafo do
calor. Não se podia ver o prisioneiro, que ficava lá dentro, feito
guardado. Contaram que ele aceitava comida e água, e estivesse
deitado num couro de vaca, pitando e pensando. Gostei, O de
que eu carecia era de que ele não botasse olhos em mim. Eu
apreciava tanto aquele homem, e agora ele não havia de ser meu
pesadêlo. - "Aonde é que vamos? Onde é que esse julgamento
vai ser?" perguntei a Diadorim, quando surpreendi os
suspensos de se ter saída. "Homem, não sei..." ; Diadorim
disso não sabia. Só depois se espalhou voz. Ao que se ia para a
Fazenda Sempre- Verde, depois da Fazenda Brejinho-do-Brejo,
aquela a do doutor Mirabô de Melo.

Mas, por que causa iam dar com aquele homem tamanha
passeata? Carecia algum? Diadorim não me respondeu. Mas, pelo
que não disse e disse, tirei por tino. Assim que Joca Ramiro fazia
questã de navegar três léguas a longe com acompanhamento de
todos os jagunços e capatazes e chefes, e o prisioneiro levado em
riba dum cavalo preto, e todas as tropas, com munição, coisas
tomadas, e mantimentos de comida, rumo do Norte - tudo
por glória. O julgamento, também. Estava certo? Saímos, de
trabuz. No naquele, a gente podia ver resenho de toda geração
de montadas. Zé Bebelo lá ia, rodeado por cavaleiros de guarda,
pessoal de Titão Passos, logo na cabeça do cortejo. Ia com as
mãos amarradas, como de uso? Amarrar as mãos não adiantava.
Eu não quis ver. Me dava travo, me ensombrecia. Fui ficando
para trás. Zé Bebelo, lá preso demais, em conduzido. Aquilo com
aquilo aí a minha idéia diminuia. Tanto o antes, que fiz a
viagem toda na rabeira, ladeando o bando bonzinho de jegues
orelhudos, que fechavam a marcha. A pohreza primeira deles me
consolava - os jumentinhos, feito meninos. Mas ainda pensei:

ele bom ou ele ruim, podiam acabar com Zé Bebelo? Quem
tinha capacidade de pôr Zé Bebelo em julgamento?! Então,
ressenti um fundo desânimo. Sem mais Zé Bebelo, então, o restado
consolo só mesmo podia ser aqueles jericos baianos, que de
nascença sabiam todas as estradas.

Assim passamos pelo Brejinho-do-Brejo, assim chegamos na
Sempre-Verde. Aí fomos chegando. Que me deu, de repente?
Esporeei e galopei, para dianteira, fomentado, repinchando
dessas angústias. Vim. Eu queria sobressalto de estar ali perto, catar
tudo nos olhos, o que acontecia maior. Nem não importei mais
que Zé Bebelo me visse. Passei quase para a frente de todos.
Estavam pensando que eu viesse com um recado. - "Que foi,
Riobaldo, que foi?" gritou para mim Diadorim. Dei nenhuma
resposta. Pessoa ali não me entendia. Só mesmo Zé Bebelo era
quem pudesse me entender.

A Fazenda Sempre-Verde era a casa enorme, viemos saindo
da estrada e entrando nas cheganças, os currais-de-ajuntamento.

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Aquele mundo de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório.
Antes passei, afanhou a porteira, aí fomos enchendo os currais,
com tantos os nossos cavalos. A casa-de-fazenda estava fechada.
- "Não carece de se abrir... Não carece de se abrir..." era
uma ordem que todos repetiam, de voz em voz. Ave, não
arrombassem, aquilo era de amigo, o doutor Mirabô de Melo, mesmo
o ausente. Esbarramos no eirado, liso, grande, de tanto tamanho.
Aí tinham apeado Zé Bebelo do cavalo, ele estava com as mãos
amarradas, sim, mas adiante do corpo, feito algemas. "Ata
amarra os pés também!" algum enfezado gritou. Outro se
chegou, com uma boa peia, de couro de capivara. Que era que
aquela gente pensavam? Que era que queriam? Doideira de
todos. Daí, Joca Ramiro, Só Candelário, o Hermúgenes, o
Ricardão,Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no meio do
eirado, numa confa. Mas Zé Bebelo não estava aperreado.Tomou
corpo, num alteamento feito quando o perú estufa e estoura
- e caminhou, em direitura. Que que pequeno, era bom:
homem às graças. Caminhou, mesmo. "Oxente!" Para diante de
Joca Ramiro, no meio do eirado, tinham trazido um mocho, deixado
botado lá; era um tamborete de tripés, o assento de couro.
Zé Bebelo, ligeiro, nele se sentou. - "Oxente!" se dizia. A
jagünçama veio avançando, feito um rodear de gado -
fecharam tudo, só deixando aquele centro, com Zé Bebelo sentado
simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só Candelário
em pé, o Hermógenes, João Goanhá,Titão Passos, todos!
Aquilo, sim, que sendo um atrevimento; caso não, o que, maluqueira
sé. Sé ele sentado, no mocho, no meio de tudo. Ao que, cruzou
as pernas. E:

"Se abanquem... Se abanquem, senhores! Não se vexem...

ainda falou, de papeata, com vênias e acionados, e aqueles
gestos de cotovelo, querendo mostrar o chão em roda, o dele.
Arte em esturdice, nunca vista. O que vendo, os outros se
franziram, faiscando. Acho que iam matar, não podiam ser assim
desfeiteados, não iam aturar aquela zombaria. Foi um silêncio,
todo. Mandaram a gente abrir muito mais a roda, para o espaço
ficar sendo todo maior. Se fez.

Mas, de repente, Joca Ramiro, astuto natural, aceitou o
louco oferecimento de se abancar: risonho ligeiro se sentou, no chão,
defronte de Zé Bebelo. Os dois mesmos se olharam. Aquilo tudo
tinha sido tão depressa, e correu por todos um arruído
entusiasmado, dando aprovação. Ah, Joca Ramiro para tudo tinha
resposta: Joca Ramiro era lorde, homem acreditado pelo seu valor.

A modo que Zé Bebelo - sabe o senhor então o que ele
fez? Se levantou, jogou para um lado o tamborete, com pontapé,
e a esforço se sentou no chão também, diante de Joca Ramiro.
Foi aquele falatório geral, contente. De coisas de tarasco, assim,
a gente não gostava? E até os outros chefes, todos, um por um,
mudaram de jeito: não sentaram também, mas foram ficando
moleados ou agachados, por nivelar e não diferir. Ao que o
povaréu jagunço, com ansiedade do ver e ouvir o qUe desse,
se espremendo em volta, sem remangar das armas. Aquele povo -
rio que se enche com intervalo dos estremecimentos, regular,
como o piscar de olho dum papagaio. Vigiei o Hermógenes. Eu
sabia: dele havia de vir o pior. Com o que, todo o mundo parado,
formaram uns silêncios. Menos no mais, Joca Ramiro ia falar as
palavras consagradas?

"O senhor pediu julgamento..." de perguntou, com
voz cheia, em beleza de calma.

"Toda hora eu estou em julgamento."

Assim Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido? Mas ele
não estava lorpa nem desfeliz, bom para a forca. Que até capivara
se senta é para pensar não é para se entristecer. E rodou apru-

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mada a cara, vistoriando as caras de tantos homens. Ar que
inchou o peito e o queixo levantou, valendo se valendo. Criatura
assim sente tudo adivinhado, de relâmpago, na ponta dos olhos
da gente. Eu tinha confiança nele.

"Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez. Perdeu
a guerra, está prisioneiro nosso..." Joca Ramiro fraseou.

"Com efeito! Se era para isso, então, para que tanto
requifife?" Zé Bebelo repostou, com toda a ligeireza.

De ouvir, dividi o riso do siso. A pois! Ele mesmo tinha
inventado exigido esse julgamento, e agora torcia o motivo: como
se em fim de um julgamento ninguém competisse de ser
fuzilado... Saranga ele não era. Mas estava brincando com a morte,
que para cada hora livrava. Ao que bastava Joca Ramiro perder
um ponto da paciência, um pouco. Só que, por sorte, paciência
Joca Ramiro nunca perdia; motejou, não mais:

"Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para
cima - me disseram. Mas, de repente, chegou neste sertão, viu
tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto. Sabença
aprendida não adiantou para nada... Serviu algum?"

"Sempre serve, chefe: perdi conheço que perdi.Vocês
ganharam. Sabem lá? Que foi que tiveram de ganho?"

O puro lorotal. E atrevimento, muito. Os jagunços em roda
não entendiam o escutado; e uns indicavam por gestos que Zé
Bebelo estava gira da idéia, outros quadrando um calado de mau
sinal. Até o que disse: "De lá não sai barca!"Assim se diz. Joca
Ramiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí:

"O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os
sertanejos de seu costume velho de lei..."

"Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho
valeu enquanto foi novo..."

"O senhor não é do sertão. Não é da terra..."

- "Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca que
galinha come e cata: esgaravata!"

Que visse o senhor os homens: o prospeito. Aqueles muitos
homens, completamente, os de cá e os de lá, cercando o oco em
raia da roda, com as coronhas no chão, e as tantas caras, como
sacudiam as cabeças, com os chapéus rebuçantes. Joca Ramiro
tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava
vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo
dos bigodes, e falar, como falava constante, com um modo
manso muito proveitoso: "Meus meninos... Meus filhos.. ."Agora,
advai que aquietavam, no estatuto. Nanja, o senhor, nessa
sossegação, que se fie! O que fosse, eles podiam referver em
imediatidade, o banguelê, num zunir: que vespassem. Estavam
escutando sem entender, estavam ouvindo missa. Um, por si, de nada
não sabia; mas a montoeira deles, exata, soubesse tudo. Estudei
foi os chefes.

Naquela hora, o senhor reparasse, que é que notava? Nada,
mesmo. O senhor mal conhece esta gente sertaneja. Em tudo,
eles gostam de alguma demora. Por mim, vi: assim serenados
assim, os cabras estavam desejando querendo o sério
divertimento. Mas, os chefes cabecilhas, esses, ao que menos: expunham
um certo se aborrecer, segundo seja? Cada um conspirava suas
idéias a respeito do prosseguir, e cumpriam seus manejos no
geral, esses com suas responsabilidades. Uns descombinavam dos
outros, no sutil. Eles pensavam. Conforme vi. Só Candelario
duma banda de Joca Ramiro, com Titão Passos e João Goanhá; o
Ricardão da outra, com o Hermógenes. Atual Zé Bebelo foi
começando a conversar comprido, na taramelagem como de seu
gosto - aí o Ricardão armou um bocêjo; e Titão Passos se
desacocorou, com a mão num ombro, que devia de ter algum
machucado. O Hermógenes fez beiço. João Goanhá, aquele ar

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sonsado, quase de tolo, no grosso do semblante. O Hermógenes
botava pontas de olhar, some escuro, nuns visos. Só Candelário,
ficado em pé, sacudia o moroso das pernas.

Joca Ramiro deve de ter percebido aquele repiquete.
Porque ele sobre se virou, para Só Candelário, ao de indagar:

"Meu compadre, que é que se acha?"

Só Candelário fungou, e logo abriu naqueles sestros que
tinha, movimental. Sendo por ele querer se desengonçar e não
podendo: como era alto e magro duro aquele homem! Sarre os
onhos olhos amarelos de gavião, dele, hem. Não achou as
palavras para dizer, disse:

"Ao que a ver! Ao que estou, compadre chefe meu..."
A lesto que Joca Ramiro assentiu, com cabeça, conforme se
Só Candelário tivesse afirmado coisas de sincera importancia.
Zé Bebelo abriu muito a boca, tirando um ronco, como que de
propósito. Alguns, mais riram dele. Em menos Joca Ramiro
esperou um instante:

- "A gente pode principiar a acusação."

Aprovaram, os todos, todos. Até Zé Bebelo mesmo. Assim
Joca Ramiro refalou, normal, seguro de sua estança, por mais se
impor, uma fala que ele drede avagarava. Dito disse que ali,
sumetido diante, só estava um inimigo vencido em combates, e
que agora ia receber continuação de seu destino. Julgamento, já.
Ele mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava para dar opinião
no fim, baixar sentença. Agora, quem quisesse, podia referir
acusação, dos crimes que houvesse, de todas as ações de Zé Bebelo,
seus motivos: e propor condena.

Rés o que começasse, quem? O Hermógenes limpou a
goela. De primeira entrada eu vinha sabendo - esse Hermógenes
precisava de muitas vinganças.

Ele era sujeito vindo saindo de brejos, pedras e cachoeiras,
homem todo cruzado. De uns assim, tudo o que escapa vai em
retinge de medo ou de ódio. Observei, digo ao senhor. Carece
de não se perder sempre o vezo da cara do outro; os olhos.
Advertido que pensei: e se eu puxasse meu revólver, berrasse fogo
nele? Se acabava um Hermógenes - estava ali, são no vão, e
num átimo se via era papas de sangue - ele voltava para o
inferno! Que era que me acontecia? Eu tomava castigo mortal, de
mão de todos? Deixasse que tomasse. Medo não tive. Só que a
idéia boa passou muito fraca por mim, entrada por saKla. Fiquei
foi querendo ouvir e ver, o que vinha mais. Demarcava que iam
acontecendo grandes fatos. Desde, Diadorim, conseguindo
caminho por entre o povo, aí chegou, se encostou em mim; tão
junto, mesmo sem conversar, mas respirava, como era com a
boca tão cheirosa. Há-de haja! o Hermógenes tinha
levantado, para falar:

"Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar
este cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar
atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele - a ver
se vida sobrava, para não sobrar!"

"Quá?!" Zé Bebelo debicou, esticando o pescoço e
batendo com a cabeça para diante, diversas vezes, feito pica-pau
em seu ofício em árvore. Mas o Hermógenes com aquilo não
somou; foi pondo:

"Cachorro que é, bom para a faca. O tanto que ninguem
não provocou, não era inimigo nosso, não se huliu com ele. Assaz
que veio, por si, para matar, para arrasar, com sobejidão de
cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais
cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida não. Acuso
é isto, acusação de morte. O diacho, cão!"

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- "Ih! Arre!" - foi o que Zé Bebelo ponteou. Assim
contracenando, todo o tempo - medo do Hermógenes
remedou, de feias caretas.

"É o que eu acho! É o que eu acho!" - o Hermógenes
então quase gritou, por terminar "Sujeito que é um tralha!"

"Posso dar uma resposta, Chefe?" Zé Bebelo
perguntou, sério, a Joca Ramiro. Joca Ramiro concedeu.

- "Mas, para falar, careço que não me deixem com as mãos
amarradas..."

Nisso não havendo razão ou dúvida. E Joca Ramiro deu
ordem. João Frio, que de perto dele não se apartava, veio de lá,
cortou e desatou a manupeia nas juntas dos pulsos. Que era que
Zé Bebelo ia poder fazer? Isto:

"P'r' aqui mais p'r' aqui, por este mais este cotovelo!..."
disse, batendo mão e mão, com o acionado de desplante. E
riu chiou feito um sõim, o caretejo. Parecia mesmo querer fazer
raiva no outro, em vez de tomar cautela? Vi que tudo era enfinta;
mas podia dar em mal. O Hermógenes pulou passo, fez menção
do reluzir faca. Se teve mão em si, foi por forte costume. E Joca
Ramiro também tinha atalhado, com uma aspação: "Tento e
paz, compadre mano-velho. Não vê que ele ainda está é
azuretado..."

"Ei! Com seu respeito, discordo, Chefe, maximé!" Zé
Bebelo falou. -"Retenho que estou frio em juizo legal,
raciocínios. Reajo é com protesto. Rompo embargos! Porque acusação
tem de ser em sensatas palavras - não é com afrontas de ofensa
de insulto..." Encarou o Hermógenes: "Homem: não
abusa homem! Não alarga a voz!..."

Mas o Hermógenes, arriçado, crível que estivesse todo no
poder bravo de uma coceira, falou para Joca Ramiro e para
todos que estávamos lá falou, numa voz rachada em duas, voz
torta entortada:

- "Tibes trapo, o desgraçado desse canalha, que me
agravou! Me agravou, mesmo estando assim vencido nosso e preso...
Meu direito é acabar com ele, Chefe!"

Vi a mão do perigo. Muitos homens resmungaram em aprôvo,
ali rodeando, os tantos, dez ou vinte círculos, anéis de gente.
Rentes os do bando do Hermógenes chegaram a dar altas
palavras, de calca pá. Questionou-se a respeito disso?Tinham
barulhos na voz. Mesmo os chefes entre si cochicharam. Mas Joca
Ramiro sabia represar os excessos, Joca Ramiro era mesmo o
tutumumbuca, grande maioral. Temperou somente:

"Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo..."

E era verdade.Todo o mundo concordou, pelo que vi de
todos. Só para o nome-da-mãe ou de "ladrão" era que não havia
remédio, por ser a ofensa grave. Com Joca Ramiro explicar
assim, não havia jagunço que não aceitasse o razoável da
ponderação, o relembrado. O Hermógenes mesmo se melou na
atrapalhação das ligeirezas, e aí tinha de condizer. Nada ele não disse:

mas abriu quadrada a boca, em careta de quem provou pedra de
sal. E Zé Bebelo mesmo aproveitou para mudar o aspecto
- para uma certa circunspecção. Se via que ele pensava a curto
ganho no estreito, por detrás daquele sonsar. Tràballiu de idéia
em aperto, pelo pão de salvar sua vida da estrosca.

Imediato, Joca Ramiro deu a vez a Só Candelário, não
deixando frouxura de tempo para mais motim: "Hê, e você,
compadre? Qual é a acusação que se tem?"

Sobre o que, sobreveio Só Candelário, arre avante, aos priscos,
a figura muita, o gibão desombrado. Sobrava fala: "Com
efeito! Com efeito!."- falou.Vai, vai, forteou mais a voz: Só
quero pergunta: se ele convém em nós dois resolvermos isto à

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faca! Pergunto para briga de duelo... É o que acho! Carece mais
de discussão não... Zé Bebelo e eu - nós dois, na faca!..."

Só Candelário mais longe não conseguia de dizer, só repetia
aquilo, desafio, e no mais se mexer, feito com são-guido ou
escaravelho. Sem raiva quase nenhuma - notei; mas também sem
nenhuma paciência. Só Candelário sendo assim. Mas aí Joca
Ramiro remediou, dizendo, resistencioso, e escondeu o de que ria:

"Resultado e condena, a gente deixa para o fim,
compadre. Demore, que logo vai ver. Agora é a acusação das culpas.
Que crimes o compadre indica neste homem?"

- "Crime?... Crime não vejo. É o que acho, por mim é o
que declaro: com a opinião dos outros não me assopro. Que
crime? Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente
não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço aos peitos,
papos. Isso é crime? Perdeu, está aí feito umbuzeiro que boi comeu
por metade... Mas brigou valente, mereceu... Crime, que sei, é
fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a
palavra..."

- "Sempre eu cumpro a palavra dada!" - gritou de lá Zé
Bebelo.

Só Candelário olhou encarado para ele, rente repente, como
se nos instantes antes não soubesse que ele estava ali a três
passos. Só assim mesmo prosseguiu:

"...Pois, sendo assim, o que acho é que se deve de tornar
a soltar este homem, com o compromisso de ir ajuntar outra vez
seu pessoal dele e voltar aqui no Norte, para a guerra poder
continuar mais, perfeita, diversificada..."

Ressaltados, os homens, ouvindo isso; rosnaram de bem, cá
e lá: coragem sempre agradava. Diadorim apertou meu braço,
como sussurrou: "Doideira, dele. Riobaldo, Só Candelário
está dôido varrido..." Ai podia ser. Mas eu tinha relanceado um
afio de onde ódio que ele mirou no Hermógenes, enquanto
falando; e entendi: Só Candelário não gostava do Hermógenes!
Sendo que ele podia até nem saber disso, não ter noção firme de
que não gostava; mas era a maior verdade. Sucinto, só por conta
disso, eu apreciei demais aquele rompante.

Só Candelário esbarrou de falar, secado. Só aos bufos, surdo
de se ver que ele tinha feito o grande esforço todo, sopitante. Se
afundava para os altos.

"Apraz ao senhor, compadre Ricardão?" Joca Ramiro
solicitou, passando a vez.

Aquele retardou tanto para começar a dizer, que pensei
fosse ficar para sempre calado. Ele era o famoso Ricardão, o
homem das beiras do Verde Pequeno. Amigo acorçoado de importantes
políticos, e dono de muitas posses. Composto homem
volumoso, de meças. Se gordo próprio não era, isso só por no
sertão não se ver nenhum homem gordo. Mas um não podia
deixar de se admirar do peso de tanta corpulência, a coisa de zebú
guzerate. As carnes socadas em si - parecia que ele comesse
muito mais do que todo o mundo - mais feijão, fubá de milho,
mais arroz e farofa , tudo imprensado, calcado, sacas e sacas.
Afinal, ele falou: fosse o Almirante Balão:

"Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a
gente viu, o senhor vê, o que a gente sabe o senhor sabe. Nem
carecia que cada um desse opinião, mas o senhor quer ceder alar
de prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boa prova...
Ao que agradecemos, como devido. Agora, eu sirvo a razão de
meu compadre Hermógenes: que este homem é Bebelo - veio
caçar a gente, no Norte sertão, como mandadeiro de políticos e
do Governo, se diz até que a soldo... A que perdeu, perdeu, mas
deu muita lida, prejuizos. Sérios perigos, em que estivemos; o
senhor sabe bem, compadre Chefe. Dou a conta dos companhei-

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ros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode repor?
E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos... Sangue e
os sofrimentos desses clamam. Agora, que vencemos, chegou a
hora dessa vingança de desforra. A ver, fosse ele que vencesse, e
nós não, onde era que uma hora destas a gente estava? Tristes
mortos, todos, ou presos, mandados em ferros para o quartel da
Diamantina, para muitas cadeias, para a capital do Estado. Nós
todos, até o senhor mesmo, sei lá. Encareço, chefe. A gente não
tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a
misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está
acabada e acertada. Assim que veio, não sabia que o fim mais fácil é
esse? Com os outros, não se fez? Lei de jagunço é o momento, o
menos luxos. Relembro também que a responsabilidade nossa
está valendo: respeitante ao seo Sul de Oliveira, doutor Mirabô
de Melo, o velho Nico Estácio, compadre Nhô Lajes e coronel
Caetano Cordeiro... Esses estão aguentando acossamento do
Governo, tiveram de sair de suas terras e fazendas, no que
produziram uma grande quebra, vai tudo na mesma desordem... A
pois, em nome deles, mesmo, eu sou deste parecer. A condena
seja: sem tardança! Zé Bebelo, mesmo zureta, sem
responsabilidade nenhuma, verte pemba, perigoso. A condena que vale,
legal, é um tiro de arma. Aqui, chefe eu voto!..."

A babas do que ele vinha falando, o povaréu jagunço movia
que louvava, confirmava. Aí, nhães, pelos que davam mais
demonstração, medi quantidade dos que eram do Ricardão próprio.
Zé Bebelo estava definito - eu pensei qualquer
rumorzinho de salvação para ele se mermando, se no mel, no p'ra
passar. Mire e veja o senhor: e o pior de tudo era que eu mesmo
tinha de achar correto o razoado do Ricardão, reconhecer a
verdade daquelas palavras relatadas. Isso achei, meio me entristeci.
Por que? O justo que era, aquilo estava certo. Mas, de outros
modos - que bem não sei não estava. Assim, por curta idéia
que eu queira dividir: certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas
errado no que Zé Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que
uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso,
porque o que a gente julga é o passado. Eh, bê. Mas, para o
escriturado da vida, o julgar não se dispensa; carece? Só que uns
peixes tem, que nadam rio-arriba, da barra às cabeceiras. Lei é lei?
Lôas! Quem julga, já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo.

Nisso, Joca Ramiro já tinha transferido a mão de fala a Titão
Passos - esse era como um filho de Joca Ramiro, estava com ele
nos segredos simples da amizade. Abri ouvidos. Idéia me veio
que ia valer vivo o que ele falasse. Aí foi:

"Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta
ocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de
companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá sei de toda a
consciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estou como
debaixo de juramento: sei porque de jurado já servi, uma vez, no júri
da Januária... Sem querer ofender ninguém - vou afiançando.
O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem
crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado
e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é
sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio - achou
guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele escopou
e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora,
a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava
certo, estava feito. Mas o refrêgo de tudo já se passou. Então,
isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. Suas
licenças..."

284 285

Coração meu recomprei, com as palavras de Titão Passos.
Homem em regra, capaz de mim. Cacei jeito de sorrir para ele,
aprovei com a cabeça; não sei se ele me viu. E mais não houve
rebuliço. Só que notei estopim os homens ficando diferentes.
Agora tomavam mais ânsia de saber o que era que iam decidir os
manantas. O pessoal próprio de Titão Passos era que formavam
o bando menor de todos. Mas gente muito valente.Valentes como
aquele bom chefe. "De que bando eu sou?" comigo pensei.Vi
que de nenhum. Mas, dali por diante, eu queria encostar direto
com as ordens de Titão Passos. "Ele é meu amigo..."
Diadorim no meu ouvido falou "... Ele é bisneto de Pedro
Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!" Mas eu nem tive surto de
perguntar a Diadorim o resumo do que ele pensasse. Joca Ramiro
agora queria o voto de João Goanhá o derradeiro falante, que
rente dificultava.

João Goanhá fez que ia levantar, mas permaneceu agachado
mesmo. Resto que retardou um pouco no dizer, e o que disse,
que digo:

"Eu cá, ché, eu estou p'lo que o ché pro fim expedir..."

"Mas não é bem o caso, compadre João.Vocês dão o voto,
cada um. Carece de dar..." - foi o que Joca Ramiro explicou
mais.

A tanto João Goanhá se levantou, espanou com os dedos no
nariz. Dai, pegou e repuxou seu canhão de cada manga.
Arrumou a cintura, com as armas, num propósito de decisão. Que
ouvi um tlim: moveu meus olhos.

"Antão pois antão... ele referiu forte: "meu voto é
com o compadre Só Candelário, e com meu amigo Titão Passos,
cada com cada... Tem crime não. Matar não. Eh, diá!..."

Rezo que ele falou aquilo, aquele capiau peludo, renasceu
minha alegria. Rezo que falou, grosso, como se fosse por um
destaque de guerra. De ripipe, espiei o Hermógenes: esse preteou
de raiva. O Ricardão não acabava de cochilar, cara grande de
sapo. O Ricardão, no exatamente, era quem mandava no
Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. E agora? Que é que tinha
mais de ter? Não estava tudo por bem em bem terminado?

Ah, não, o senhor mire e veja. Assim Joca Ramiro era
homem de nenhuma pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em uma
soberania sem manha de arrocho, perpasseou os olhos na roda
do povo. Ant'ante disse, alto:

- "Que tenha algum dos meus filhos com necessidade de
palavra para defesa ou acusação, que pode depor!"

Tinha? Não tinha. Todo o mundo se olhava, num
desconcerto, como quem diz lá: cada um com a cara atrás da sela. Para
falar, ali não estavam. Por isso nem ninguém tinha esperado. Com
tanto, uns fatos extraordinários.

Haja veja, que Joca Ramiro repetiu o perguntar:

"Que por aí, no meio de meus cabras valentes, se terá
algum que queira falar por acusação ou para defesa de Zé
Bebelo, dar alguma palavra em favor dele? Que pode abrir a boca sem
vexame nenhum..."

Artes o advôgo aí é que vi. Alguém quisesse? Duvidei, foi
o que foi. Digo ao senhor: estando por ali para mais de uns
quinhentos homens, se não minto. Surgiu o silêncio deles todos.
Aquele silêncio, que pior que unia alarida. Mas, por que não
davam brados, não falavam todos total, de torna vez, para Zé
Bebelo ser botado solto?... me enfezei. Sus, pensei, com um
empurrão de força em mim. Ali naquel'horinha meu senhor
foi que eu lambi idéia de como as vezes devia de ser bom ter
grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo
rodar e cumprir os desejos bons da gente. De sim, sim, pingo. Acho

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que eu tinha suor nas beiras da testa. Ou então eu quis ou,
então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metade do povo para
lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da justiça, os outros
nas voltas da cauda do demo! Mas que faca e fogo houvesse, e
braços de homens, até resultar em montes de mortos e pureza
de paz... Sal que eu comi, só.

Abre que, ah, outra vez, Joca Ramiro reproduziu a pergunta:

- "Que se tiver algum..." - e isto e aquilo, tudo o mais.

Me armei dum repente. Me o meu? Eu agora ia falar - por
que era que não falava? Aprumei corpo. Ah, mas não acertei em
primeiro: um outro começou. Um Gú, certo papa-abébora,
beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; esse discorreu:

- "Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião. Que
é - se vossas ordens forem de se soltar esse Zé Bebelo, isso
produz bem... Oséquio feito, que se faz, vem a servir à gente,
mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for... Não ajunto
por mim, observo é pelos chefes, mesmo, com esta vênia. A
gente é braço d'armas, para o risco de todo dia, para tudo o miúdo
do que vem no ar. Mas, se alguma outra ocasião, depois, que
Deus nem consinta, algum chefe nosso cair preso em mão de
tenente de meganhas - então também hão de ser tratados com
maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades... A guerra
fica sendo de bem-criação, bom estatuto..."

Aquilo era razoável. A ver, tinha saído tão fácil, até Joca
Ramiro, em passagens, animou o Gú, com acenos. Tomei coragem
mais comum. Abri a minha boca. Aí, mas, um outro campou
ligeiro, tomou a mão para falar. Era um denominado Dosno, ou
Dôsmo, groteiro de terras do Cateriangongo - entre o
Ribeirão Formoso e a Serra Escura - e ele tinha olhos muito incertos
e vesgava. Que era que podia guardar para dizer um homem
desses, capiau medido por todos os capiaus do meu Norte? Escutei.
"Tomém pego licença, sôs chefes. Em que pior não veja,
destorcefldO meu desatino. É-que, é-que... Que eu acho que seja
melhor, em antes de se remitir ou de se cumprir esse homem,
pois bem: indagar de fazer ele dizer ond'é que estão a fortuna
dele, em cobre... A mô que se diz - que ele possederá o bom
dinheiro, em quantia, amoitado por aí... É sé, por mim, é sé,
com vosso perdão... Com vosso perdão..

Riram, uns; por que é que riram? - rissem. Dei como um
passo adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino em
escola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou de me
reter, decerto assustado: -"Espera, Riobaldo..." tive o siso da
voz dele no ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que eu acho,
disse, supri neste mais menos fraseado:

"Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que
licença eu peço! O que tenho é uma verdade forte para dizer, que
calado não posso ficar..."

Digo ao senhor: que eu mesmo notei que estava falando alto
demais, mas de me abrandar não tinha prazo nem jeito - eu já
tinha começado. Coração bruto batente, por debaixo de tudo.
Senti outro logo no meu rosto, o salteio de que todos a finque
me olhavam. Então, eu não aceitei ninguém, o que eu não queria
era ver o Hermógenes. Não pêr as capas dos olhos nem a idéia
no Hermógenes - que Hermógenes nenhum neste mundo não
tivesse, nenhum para mim, nenhum de si! Por isso, prendi
minhas vistas sé num homem, um que Foi o qualquer, sem nem
escôlha minha, e porque estava bem por minha frente, um
pardo. Pobre, esse, notando que recebia tanto olhar, abaixou a cara,
amassado de não poder outra coisa. No eu falando:

... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do
lado dele, nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de

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lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as
ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi que
briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora,
eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que
honra o raio da palavra que dá! Ai. E é chefe jagunço, de
primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que
prende, nem consentir de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi.
Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido
escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-tôa... E isto
digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e
cumprindo a licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e
por meu cabo-chefe Titão Passos! ..."
Tirei fôlego de fôlego, latejei. Sei que me desconheci.
Suspendi do que estava:
"... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu
este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes
em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras
partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois
então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se
reunir os chefes todos de bandos, com seu cabras valentes,
montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro - só
para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho se
condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte?
Um fato assim é honra? Ou é vergonha?
"Para mim, é vergonha..." - o que em brilhos ouvi: e
quem falou assim foi Titão Passos.
"Vergonha! Raios diabos que vergonha é! Estrumes! A
vergonha danada, raios danados que seja!..." assim; e quem
gritou, isto a mais, foi Só Candelário.
Tudo tão aos traques de-repente, não sei, eu nem acabei o
relanCe que me arrepiou minha idéia: que eu tinha feito grande
toleima, que decerto ia ser para piorar o que foi no eu dizer
que Zé Bebelo não matava os presos; porque, se do nosso lado se
matava, então não iam gostar de escutar aquilo de mim, que
podia parecer forte reprovação. Aos brados bramados de Só
Candelário, temi perder a vez de tudo falar. Aí, nem olhei para Joca
Ramiro - eu achasse, ligeiro demais, que Joca Ramiro não
estava aprovando meu saimento. Aí, porque nem não tive tempo
porque imediato senti que tinha de completar o meu, assim:

- A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido:
soltar este homem Zé Bebelo, a mãvazias, punido só pela derrota
que levou - então, eu acho, é fama grande. Fama de glória: que
primeiro vencemos, e depois soltamos." - em tanto terminei
de pensar: que meu receio era tolo: que, jagunço, pelo que é,
quase que nunca pensa em reto: eles podiam achar normal que
da banda de cá os inimigos presos a gente matasse, mas
apreciavam também que Zé Bebelo, como contrário, tivesse deixado
em vida os companheiros nossos preses. Gente airada...

- "... Seja fama de glória! Só o que sei... Chagas de
Cristo!..."- êta Só Candelário tornou a atalhar. Desadorou-se!
Senhor de bofe bruto, sapateou, de arrompe: os de perto se
afastando, depressa, por a ele darem espaço. Agora o Hermógenes
havia de alguma coisa dizer? O Hermógenes experimentava os
dentes nos beiços. Ricardão fazia que cochilava. Só Candelário
era de se temer inteiro.

Somente que, em vez do trestampo, que a gente esperasse, e
que ninguém bridava, ele Só Candelário espiou para cima, as
pasmas, consoante sossegado estúrdio recitou, assim em tom -
a bonita voz, de espírito:

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"... Seja a fama de glória...Todo o mundo vai falar nisso,
por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e
lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até
divulgado em jornal de cidade..." Ele estava mandarino, mesmo.

Aí eu pensei, eu achei? Não. Eu disse. Disse o verdadeiro, o
ligeiro, o de não se esperar para dizer: "...E, que perigo que
tem? Se ele der a palavra de nunca mais tornar a vir guerrear
com a gente, decerto cumpre. Ele mesmo não há de querer tornar
a vir. É o justo. Melhor é se ele der a palavra de que
vai-s'embora do Estado, para bem longe, em desde que não fique
em terras daqui nem da Bahia..." eu disse; disse mansinho
mãe, mansice, caminhos de cobra.

"Tenho uns parentes meus em Goiás..." Zé Bebelo
falou, avindado de repente. E tabu quando não se aguardava, e
também assim com tanta vontade de falar, que alguns muito se
riram. Eu não ri.Tomei uma respiração, e aí vi que eu tinha
terminado. Isto é, que comecei a temer. Num esfrio, num átimo,
me vesti de pavor. O que olhei - Joca Ramiro teria estado a
gestos? - Joca Ramiro fazendo um gesto, então queria que eu
calasse absolutamente a boca; eu não possuía vênia para
diScOrrer no que para mim não era de minha alta conta. Eu quis, de
repentemente, tornar a ficar nenhum, ninguém, safado
humildezinho...

Mas Titão Passos trucou, senhor-moço.Titão Passos
levantava a testa. Ele, que no normal falava tão pouco, pudesse dar
capacidade de tantas constâncias?

Titão Passos disse: - "... Então, ele indo para bem longe,
está punido, desterrado. É o que eu voto por justo. Crime maior
ele teve? Pelos companheiros nossos, que morreram ou estão
ofendidos passando mal, tenho muito dê..."
Sô Candelário disse: "... Mas morrer em combate é coisa
trivial nossa; para que é que a gente é jagunço?! Quem vai em
caça, perde o que não acha..."

Titão Passos disse: "...E mortes tantas, isso não é culpa
de chefe nenhum. Digo. E mais que esses grandes de nossa
amizade: doutor Mirabô de Melo, coronel Caetano, e os outros -
hão de concordar com a resolução que a gente tome, em desde
que seja boa e de bom proveito geral. É o que eu acho, Chefe. As
ordens..." -Titão Passos terminou.

O silêncio todo era de Joca Ramiro.

Era de Zé Bebelo e de Joca Ramiro.

Ninguém não reparava mais em mim, não apontavam o eu
ter falado o forte solene, o terrivelmente; e então, agora, para
todos os de lá, eu não existisse mais existido? Sé Diàdorim, que
quase me abraçava: "Riobaldo, tu disse bem! Tu é homem de
todas valentias..." Mas, os outros, perto de mim, por que era que
não me davam louvor, com as palavras: - Gostei de ver! Tatarana!
Assim é que é assim! -? Só, que eu tinha pronunciado bem,
Diadorim mais me disse: e que tinha sido menos por minhas
tantas palavras, do que pelo rompante brabo com que
falei, acendido, exportando uma espécie de autoridade que em mim veio. E
para Zé Bebelo eu não tinha olhado. Que era que ele de mim
devia de estar pensando? E Joca Ramiro? Esses se fronteavam:
um ao outro, e o em meio, se mediam.

Rente que nesse resto de tempo decerto cruzaram palavras,
que não deram para eu ouvir. Pois porque Zé Bebelo teve ordem
de falar, devia de ter tido. A licença. Principiou. Foi discorrendo
vagaroso, de entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi: ele estava só
apalpando o vau. Sujeito finério. Aí o qualquer zunzo que
houvesse, ele colhia e entendia no ar - estava com as orêlhas por

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isso, aquela cabeça sobrenadando. Já um pouco descabelado. Mas
serenou sota, para diante.
"Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro,
este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor
de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, Zé
Bebelo, é meu nome: José Rebêlo Adro Antunes! Tataravô meu
Francisco Vizeu Antunes foi capitão-de-cavalos... Demarco idade
de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar
Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rebêlo; e nasci na bondosa
vila mateira do Carmo da Confusão..."
Oragos. Para que a tanta sensaboria toda, essas filosofias? Mas
porém ele pronunciava com brio, sem as papeatas de em antes,
sem o remonstrar nem os reviretes:

"Agradeço os que por mim bem falaram e puniram...
Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, a
frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente
contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu
exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-
Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui
presentes, outros que não estão... Briguei muito mediano, não
obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me
reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco
com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu
queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois,
de vês, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-
entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se
eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca
Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em
mim, para deputado... Ah, este Norte em remanencia:
progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! Mas, no em
mesmo,o afã de política,eu tive e não tenho mais... A gente tem de
sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a
dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi
- isto é por culpa de má-hora de sorte; o que não creio.
Altos descuidos alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo,
e estar defronte de julgamento, isto é que eu louvo, e que me
praz. Prova de que vós nossos jagunços do Norte são civilizados
de calibre: que não matam com o distrair de mão um qualquer
inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a
cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus
outros chefes, comandantes de seus terços. E viva sua valente
jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias. Só que medo
não tenho; nunca tive, no travável..

Anda que fez um gesto bonito. Assaz, ai, se espiritou. Ao
que, de vez, foi grandeúdo:

- "... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos.
Não vim socolor de disfarces com escondidos e logro. Perdi,
por um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter
querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não
confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que
fiz, valeu por bem feito. E meu consueto. Mas, hoje, sei: não
devia-de. Isto é: depende da sentença que vou ter, neste nobre
julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi;
e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia...
Julgamento isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para
que? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste
julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena for às
ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber
sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir,
não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida,
merece e meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço,
fortemente.Também não posso me oferecer de servir debaixo d'armas de

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Joca Ramiro porque tanto era honra, mas não condizia bem.
Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes cumpro!
Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero
vossa distinta sentença. Chefe. Chefes."

Digo ao senhor, foi um momento movimentado.

Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou,
repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco descabe
o lado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um homem. Olhei,
olhei. Só agente mal ouvisse o sussurro de todos lá; que foi bom:
conheci que era. "O sujeito machacá! Assopres!"" Arre,
maluco é mas frege... Capaz que castra garrote com as unhas
dos dedos..." Não o que Diadorim não disse mas ele estava
assim por pálido. Vai, vi os chefes. Eles conversaram um
circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão e Joca
Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e o
Hermógenes eles dois eram chouriço e morcela. Só Candelário
conforme seus conformes, avançante Joca Ramiro sorriu
para Só Candelário. O jeito de João Goanhá - richarte. Só Titão
Passos espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão bom.
tão sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga
- só esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro
ia decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar,
para um dizer em orêlha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num
gesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé
Bebelo. O quando falou:

"O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo
este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos
políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença
vale. A decisão. O senhor reconhece?"

- "Reconheço" Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz,
ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até:
"Reconheço. Reconheço! Reconheço..." estréques estalos de
gatilho e pinguelO - o que se diz: essas detonações.
-"Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás,
o senhor põe a palavra, e vai?"
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E,
pois:
- "A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor
determine minha ida em modo correto, como compertence."
- "A falando?"
-"Que, se ainda tiver homens meus vivos, presos também
por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo,
igualmente..."
Ao que Joca Ramiro disse: "Topo. Topo."
"E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia
nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-de-sela
arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma
munição, mais o de comer para os três dias, legal..."
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: "Topo. Topo!"

"Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a
pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem
voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?"
"Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem..."
- Joca Ramiro aí disse, em final. E se levantou, num de
repente. Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia
- as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos
também, ao em um tempo - feito um boi só, ou um gado em círculos,
ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira
de alegria: todo o mundo já estava com cansaço de dar
julgamento, e se tinha alguma certa fome.

Diadorim me chamou, fomos caminhando no meio da
queleléia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes: ele se amargou,

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engolindo de boca fechada. - "Diadorim" - eu disse - "esse
Hermógenes está em verde, nas portas da inveja..." Mas
Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou dizendo:
- "Deus é servido..." Não sosseguei. Aquele pessoal tribuzava.
O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha: panelas grandes
e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a valer. Tinha
sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por nada não, mas
pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos a lembrança
do Hermógenes, na hora do julgamento. De como primeiro ele,
sortuno, não se sobressaía, só escancarava muito as pernas,
facãozão na mão; mas depois ficou artimanhado, com uma
tristeza fechada aos cantos, como cão que consome raivas. E o
Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas, quando
esbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolando que nem
apostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudo estava
passado, terminado. Estava? Pois, pedi espera a Diadorim, na beira
do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse, desarrear e
escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu cacei onde
estava o Hermógenes, tempo parei perto dele. Virando que eu
quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: - "Mamãezada..."
Ao que seria? O Hermógenes não era nenhum toleimado,
para desfazer na decisão de Joca Ramiro. "Mamãezada"? Mais não
ouvi, relembro que não sei direito. Com pouco, Zé Bebelo
estava dando as despedidas. Se viu, montado num bom cavalo de
duas cores, arreado com sela boa de Minas-Velhas. Deram que
levasse carabina, suas outras armas, e cruz-cruz cartucheiras. Aí
já tinha jantado. E o bornal com matlotagem. Sobre o cavalo se
houve, se upou na sela. Se foi. Saíu em marcha de estrada, sem
olhar para trás, o sol na beira. Só o Triol devia de prestar
acompanhamento a ele, por o uso de resguardado território, de uma
légua. Me deu certa tristeza. Mas a minha satisfação ainda era
maior.

Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram essas
grandes abundâncias. Angú e couve, abóbora moranga cozida,
torresmos, e em toda fogueira assavam mantas de carnes. Quem
quisesse sôpa, era só ir se aquinhoar na porta-da-cozinha.A
quantidade de pratos era que faltava. E assaz muita cachaça se tomou,
que Joca Ramiro mandou satisfazer goles a todos
extraordinária de boa, O senhor havia de gostar de ver aquela ajuntação
de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito como podiam se
rir, na vadiação, todos bem comidos, entalagados. Daí,
escureceu. Homens deitados no chão, escornados até quase debaixo do
mijo dos cavalos pastantes. Eu estava que impava, queria um bom
sono. A ver, fui com Diadorim para o rumo dos pés de fruta,
seguindo o rego. Com a entrada da noite, o passar da água canta
friinho, permeio, engrossa, e a gente aprecia o cheiro do musgúz
das árvores. Zé Bebelo tinha ido embora, para sempre, no cavalo
de duas cores, fez pouca poeira. Nós estávamos no jaz ali,
repimpados, enfunando as redes. Disso não esqueço? Não esqueço. A
gente estava desagasalhados na alegria, feito meninos.

Eu tinha vindo para ali, para o sertão do Norte, como todos
uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmo notar que
vinha mas presado, precisão de agenciar um resto melhor para
a minha vida. Agora me expulsassem? Do jeito, isto é, tinham
repelido para trás Zé Bebelo. Não me esqueci daquelas palavras
dele: que agora era "o mundo à revelia..." Disse a Diadorim. Mas
Diadorim menos me respondeu. Ao dar, que falou: "Riobaldo,
você prezava de ir viver n'Os-Porcos, que lá é bonito sempre
com as estrelas tão reluzidas?..." Dei que sim. Como ia
querer dizer diferente: pois lá n'Os Porcos não era a terra de
Diadorim própria, lugar dele de crescimento? Mas, mesmo enquanto

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que essas palavras, eu pensasse que Diadorim podia ter me
respondido, assim nestas fações: "... Mundo à revelia? Mas,
Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve..." Toleima,
sei, bobéia disso, a basba do basbaque. Que eu dizia e pensava
numa coisa, mas Diadorim recruzava com outras. - "... zé
Bebelo, Diadorim: que é que você achou daquele homem?" -
ainda indaguei. - "Para ele, de agora, não tem dia nem noite - Vai
seu rumo, fazendo a viagem...Teve sorte! Entestou foi com joca
Ramiro - com sua alta bondade..." - foi o que Diadorim me
respondeu. E ficou pensando, ficamos. Aí quando eu acabei até a
pontinha meu cigarro, ainda perguntei: "A ver, quem salvou
Zé Bebelo da morte?" Diadorim, o que quis me dizer foi em
tanto segredo, que ele puxou a beira da minha rede, para a gente
falar quase cara a cara: - "Ah, quem salvou Zé Bebelo de morte?
Pois, abaixo de Joca Ramiro, por começar foi ele Zé Bebelo
mesmo. Depois, numa ponta do dito de Zé Bebelo, tomou figura
Só Candelário - homem esquipático e enorme de si, mas fiel, e
que põe mais de trezentas armas. Cabras que, por um gesto dele,
avançam e matam e matam..." Eu queria que ele tivesse explicado
o fato de outro jeito. Mas Diadorim estava prosseguindo: -
"... A ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente
estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio, meu medo...
Deus não queira..." Depois, ele terminou assim: "...Ao
enquanto Joca Ramiro pode precisar da gente, você mesmo me
prometeu, Riobaldo: a gente persiste por aqui." Prometi outra
vez, confirmei. Desde, no sereno da noite, não se conversou mais,
não me recordo.

Diadorim estava triste, na voz. Eu também estive. Por que?
- há-de o senhor querer saber. Por causa de Zé Bebelo ter ido
embora; e aquilo era motivo? Depois de Paracatú, é o mundo...
Zé Bebelo ido, sei lá bem porque, tirava meu poder de pensar
com a idéia em ordem, e eu sentia minha barriga demais cheia
demais de tantas comidas e bebidas. Só o que me consolava era
ter havido aquele julgamento, com a vida e a fama de Zé Bebelo
autorizadas. O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria
de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo
ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras.

"O que nem foi julgamento legitimo nenhum: só uma extração
estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste
meio do sertão..." - o senhor dirá. Pois: por isso mesmo. Zé
Bebelo não era réu no real! Ah, mas, no centro do sertão, o que
é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!
Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro. Por causa de Zé
Bebelo. Porque, Zé Bebelo, na hora, naquela ocasião, estava
sendo maior do que pessoa. Eu gostava dele do jeito que agora gosto
de compadre meu Quelemém; gostava por entender no ar. Por
isso, o julgamento tinha dado paz á minha idéia por dizer
bem: meu coração. Dormi, adeus disso. Como é que eu ia poder
ter pressentimento das coisas terríveis que vieram depois,
conforme o senhor vai ver, que já lhe conto?

Curtamente: dali da Sempre-Verde, com um dia mais,
desapartamos. O bando muito grande de jagunços não tem
composição de proveito em ocasião normal, só serve para chamar
soldados e dar atrasamento e desrazoada despesa. Constava que João
Goanhá torasse para a Bahia, e que o Antenor seguindo rumo em
beira do Ramalhada, com um punhado dos hermógenes. Novas
ordens, muitas ordens. Alaripe ia vir com Titão Passos. Titão
Passos chamou a gente: Diadorim e eu. Se tinha um roteiro, sendo
para ser: o mais encostado possível no São Francisco, até para lá
do Jequitaí, e mais. Aquilo, por que? A gente não ia junto com
Joca Ramiro, em caso de lhe a ele podermos valer, em caso,
Com maior ajuda, mão a mão? Ah, mas nossa tarefa era de muito

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encoberto empenho e valor: pelo que tínhamos de estanciar em
certos lugares, com o fito de receber remessas; e em acontecer
de vigiar algum rompimento de soldados, que para o Norte
entrassem. Arreamos, montamos, saímos. Naquela mesma da hora,
Joca Ramiro dava partida também, de volta para o São João do
Paraíso. Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete -
ladeado por Só Candelário e o Ricardão, igual iguais galopavam.
Saíam os chefes todos - assim o desenrolar dos bandos, em
caracol, aos gritos de vozear. Ao que reluzia o bem belo.
Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz, cordial. - "Assim, ele me
botou a benção..." - foi o que disse. Dá sempre tristezas algumas,
um destravo de grande povo se desmanchar. Mas, nesse dia
mesmo, em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas.

As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amargoso. E sete,
para chegar numa cachoeira no Gorutuha. E dez, arranchando
entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão
sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente
ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se
espera: digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao quando um belo
dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As muitas águas.
Os verdes já estavam se gastando. Eu tornei a me lembrar
daqueles pássaros. O marrequim, a garrixa-do-brejo, frangos-d'água,
gaivotas. O manuelzinho-da-crôa! Diadorim, comigo. As garças,
elas em asas. O rio desmazelado, livre rolador. E aí esbarramos
parada, para demora, num campo solteiro, em varjaria
descoberta, pasto de muito gado.

Lugar perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã, nome
que chamava-se. Ali era bom? Sossegava. Mas, tem horas em que
me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do
sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista,
não se carecia de fazer nada. Nós estávamos em vinte e três
homens.Titão Passos determinou uma esquadrazinha deles com
Alaripe em testa: fossem para a outra banda do morro, baixada
própria da Guararavacã, esperar o que não acontecesse. Nós
ficamos.

O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era:
bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o
grito a mil do pássaro rexenxão - que vinham voando, aquelas
chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de
mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as
malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar
de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum no meio-
escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não
ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe
novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe
- fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também
razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos,
nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi, sestas
inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se
esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a
beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro
d'água. As vezes chegavam a nado até em cima dUma ilha
comprida, onde o capim era lindo verdêjo. O que é de paz, cresce
por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só
ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do
não-saber. E eu não tinha noticia de ninguem, de coisa nenhuma
deste mundo - o senhor pode raciocinar. Eu queria uma
mulher, qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente,
tanto, que até um referver de mau desejo, no meio da quebreira,
serve como benefício.

Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão,
escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei

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duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo.
Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão
verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados e ali era
vau de gado. "Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que
entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei, na ocasião.
De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na
minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela
tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando
notei que estava com dôr-de-cabeça, e achei que por certo a
tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu
nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso
ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei - um
riachim à-tôa de branquinho - olhou para mim e me disse:
Não... - e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais
para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da
vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o
chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num
pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira
flôr. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas
lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas
fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha
sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de
sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá
movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um
diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com
lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando
acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável.
Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de
mim, me vigiava.

Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta
vida. Tinha notado minha idéia de fugir, tinha me rastreado, me
encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei. o
calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o
verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus
lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço,
tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que
a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é por isso
que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali,
esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado,
era para se dar feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis.
Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: - Que
você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim,
Riobaldo, pegado em mim, sempre!... - que era como se
Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, digo
ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que foi que, em
hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir dele.

A Guararavacã do Guaicuí: o senhor tome nota deste nome.
Mas, não tem mais, não encontra - de derradeiro, ali se chama
é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo,
não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito,
que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto
certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia de
minha vida. Guararavacã o senhor veja, o senhor escreva. As
grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o mundo quer
ficar sem sertão. Caixeirópolis, ouvi dizer. Acho que nem coisas
assim não acontecem mais. Se um dia acontecer, o mundo se
acaba. Guararavacà. O senhor vá escutando.

Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de
Diadorim - de amor mesmo amor, mal encoberto em
amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei
comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei
na hora. Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento

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dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa
esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com
aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a
morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que,
dum mesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era na
borda-da-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um
pouco, por pêjo de vento - o que vem da Serra do Espinhaço
- um vento com todas almas. Arrepio que fuchicava as folhagens
ali, e ia, lá adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o
pendão branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era
o joão-pobre, pardo, banhador. Me deu saudade de algum
buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te que verde,
termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao vento;
saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos
buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece
isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio
põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Mas,
lá na Guararavacã, eu estava bem, O gado ainda pastava, meu
vizinho, cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aos
casais, corriam, catavam, permeio as reses, no liso do campo
claro. Mas, nas árvores, pica.pau bate e grita. E escutei o
barulho, vindo do dentro do mato, de um macuco sempre solerte.
Era mês de macuco ainda passear solitário - macho e fêmea
desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinha andando
sarandando, macucando: aquilo ele ciscava no chão, feito galinha
de casa. Eu ri - "Vigia este, Diadorim!" - eu disse; pensei que
Diadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. O macuco
me olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quase endireito em
mim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou os olhos.
Aquele pássaro procurava o que? Vinha me pôr quebrantos. Eu
podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei. Peguei só
num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu um susto,
trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a cabeça,
cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de costas,
fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro para o
bom adormecer.

O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em
mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente -"Diadorim,
meu amor..." Como era que eu podia dizer aquilo?
Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior,
o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um
Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo
do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras
pessoas - como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um
Diadorim só para mim.Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas,
com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele
Diadorim - que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não
pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar
nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para
um passarinho pegar. Mas - de dentro de mim: uma serepente.
Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e
prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes
meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase
sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em
mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência
de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas,
agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e
era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, sufruía aquilo,
com outras minhas forças. Daí, levantei.

Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era
firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé - isso é que vale.

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Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o
Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e
osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro
Diadorim, que eu tinha inventado. - "Hê, Riobaldo, eh, uê, você
carece de alguma coisa?" ele me perguntou, quem-me-vê,
com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um cigarro. Daí,
voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. "Se é o que é"
- eu pensei - "eu estou meio perdido..." Acertei minha idéia: eu
não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo, la, por paz de
honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não,
pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar
comigo! com uma bala no lado de minha cabeça, eu num
átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia - virava longe no
mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso
- consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio salvo!
Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro no mato - um tiraço
que ribombou. "Ao que foi?" me gritaram pergunta,
sem pre riam do tiro tolo dado. "Acho que um macaquinho
miúdo, que acho que errei..." - eu expendi. Tanto também, fiz de
conta estivesse olhando Diadorim, encarando, para duro, calado
comigo, me dizer: "Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas
só como amigo!..."Assaz mesmo me disse. De por diante,
acostumei a me dizer isso, sempres vezes, quando perto de
Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! - como
se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O
senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no
chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo
da terra. O senhor dorme em sobre um rio?

Segundo digo, o tempo que paramos na Guararavacã do
Guaicuí regulou em dois meses. Bem ermo. De lá, a gente
cruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Todo dia,
trocávamos recado de avisos com o pessoal do Alaripe. Notícia,
nenhumas. Nada não chegava em envio, do que fosse para
chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos campos:
- quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças. De
noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas e
brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas léguas, tinha
uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era amigo nosso.

- "Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a gente,
bem caros prêços que eu pagava..." - assim o que dizia o Paspe,
suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do lavrador,
montados num cavalo magro, traziam feixes de cana, para vender
para a gente. Às vezes, vinham em dois cavalos magros, e eram
cinco ou seis meninos, amontados, agarrados uns nos outros,
uns mesmo não se sabia como podiam, de tão mindinhos. Esses
meninozinhos, todos, queriam todo o tempo ver nossas armas,
pediam que a gente desse tiros. Diadorim gostava deles, pegava
um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para
mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. "Olha, vigia: o
manuelzinho-da-crôa já acabou de fazer a muda..." Um dia, em
que tínhamos caçado uma paca bem gorda, o Paspe pitou de sal
um quarto dela, enrolou em folhas, e deu ao menino mais velho:
- "P'ra tu leva de presente, dá à tua mãe, fala que quem
mandou fui eu..." ele recomendou. A gente ria. Os meninos
receavam o gado: ali no meio tinha reses muito bravas, um dia uma
vaca deu corrida em alguém, querendo bater. Mas, depois, com
o secar, de magros e fracos os bois se atolavam no embrejado, até
morrerem alguns. Os urubús espaceavam, quando o céu
empoeirado. Pousavam no pindaibal do brejo. João Vaqueiro chamava a
gente, ia desatolar os bois que podia. Uns eram mansos: por um
punhado de sal, se chegavam, lambiam o chão nos pés da gente.
João Vaqueiro sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma

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vaca - capins tão bons, o senhor crê? algumas ainda
guardavam leite naqueles peitos. "A gente carecia era de dar um
fogo, se sair por aí, por combate..." sensato se dizia. Que
jagunço amolece, quando não padece.

A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de
demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do
cerradão. Vendiam licêr de banana e de pequí, muito forte,
geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só
um de nós era que ia lá para não desconfiarem. Ia o Jesualdo.
A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que
queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande de sabão de
coco de macaúha, para se lavar corpo. O dono da venda tinha
duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia de explicar à
gente, de dia e de noite, como elas eram, formosuramente.

"Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se tiver licença, ah,
e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou lá, pego uma das
duas, de mocinha faço ela virar mulher..." - o Vove disse. "O
que tu não faz! Porque o que eu quero é o exato: que eu vou lá,
prezado peço em casamento, e noivo..." oTriol contestou. E
o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de sentimento,
cantavam pelo nariz. Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz?
Mas eles não sabiam. "Sei não, gosto não. Cantigas muito
velhas..." eles desqueriam.

Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras
revoaram. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus,
folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns
campeiros, rever o gado daTapera Nhã, no renovame, levaram as
novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples,
pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de
chover cheio foram se emendando. Tudo igual - às vezes é uma
sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que
praziam de gritar, o garcêjo delas, e o socó-boi range cincêrros,
e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo
era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se
ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira estiada, voltou
aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho castanho: e vinha
trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, e que por
dinheirinho bom se pagou. "A vida tem de mudar um dia para
melhor" a gente dizia. Requeijão é com café bem quente que é
mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, outras diversas
vezes.

Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada que
saia do mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de vinda,
nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não era. Era
um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo,
que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que
tudo era lamas, dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios
do cavalo. Esbarrou e desapeou, num pronto ser, se via que
estava ancho com muitas plenipotências. O que era? O Gavião Cujo
abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele gaguejou ar e
demorou decerto porque a noticia era urgente ou enorme.

"Ar'uê, então?!" Titão Passos quis. "Te rogaram alguma
praga?" O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. A fé,
quase gritou:

"Mataram Joca Ramiro!"

Aí estralasse tudo no meio - ouvi um uivo dôido de
Diadorim-: todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras!
Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens. Se
gritava o araral.As vertentes verdes do pindaibal avançassem feito
gente pessoas. Titão Passos bramou as ordens. Diadorim tinha
caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro.

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Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava.
Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para
ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d'água,
que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem
pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-
jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu,
o muito feroz. Não quis apôio de ninguém, sozinho se sentou, se
levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa
fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam
lágrimas.Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os
companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão,
o mundo nas juntas se desgovernava.

- "Repete, Gavião!"

"Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro..."

-"Quem? Adonde? Conta!"

Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços. Secou
todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até atravessado,
na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele
dava um bula e soluço, orço que outros olhos, se suspendia nas
sussurrosas ameaças.Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um
relâmpago em fato.

- "... Matou foi o Hermógenes..."

"Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demônio!
Traição! Que me paga!..." constante não havendo quem não
exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar
para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter
matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo
nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade.
Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto, para
retardar o surgir do medo e a tristeza em crú - sem se saber
por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.

- "... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O
Antenor... Muitos..."

-"Mas, adonde onde!?"

- "A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê,
beira da Jerara lá onde o córrego da Jerara desce do morro do
Vôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi
sido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda.
Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí,
mortos: João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o Cambó,
Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até se deu um
tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do Ricardão era
demais numeroso... Dos bons, quem pôde, fugiram
corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte e tantos
companheiros..."

Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele
agarrou o Gavião-Cujo pelos braços:

- "Hem, diá! Mas quem é que está pronto em armas, para
rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente na vingança agora,
nas desafrontas? Se tem, e ond'é então que estão?!"

"Ah, sim, chefe. Os todos os outros: João Goanhá, Só
Candelário, Clorindo Campêlo... João Goanhá pára com
porçanheira de homens, na Serra dos Quatis. Aí foi ele quem me
mandou trazer este aviso... Só Candelário ainda está para o Norte,
mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertos da Lagoa-do-
Boi, em Juramento... Já foi portador para li. Sendo que se
despachou um positivo também para dar parte a Medeiro Vaz, nos
Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que o sertão pega em
armas, mas Deus é grande!"

"Louvado. Ah, então: graças a Deus! Ao que, CUido, esta
bem..." Titão Passas se cerrou.

312 313

E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados.

Aquilo dava um sutil enorme.

"Teremos de ir...Teremos de ir..."-falouTitão Passos, e
todos responderam reluzentemente.Tínhamos de tocar, sem
atraso, para a Serra dos Quatís, a um lugar dito o Amoipira, que é
perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava
- o mais, as miúcias - parecia que tinha medo de esbarrar de
contar. Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado
entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca
Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca
Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o
pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas,
carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem sofrer.

"E enterraram o corpo?" Diadorim perguntou, numa voz
de mais dôr, como saía ansiada. Que não sabia - o Gavião-Cujo
respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme
cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto
empalidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão Passos
não queria ter as lágrimas nos olhos. "Um homem de tão alta
bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais
tarde, vivendo no meio de gente tão ruim..." ele me disse,
dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço,
como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só
restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com
elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão da
calda. joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova.

A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela
gente do Alaripe. "Pois vamos, Riobaldo!" Diadorim se
pôs. Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os
cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada um engulia suas
palavras. A mesmo estava o céu encoberto, e um mormaço. Mas,
na descambada, Diadorim me reteve, me entregou a ponta do
cabresto para segurar. "De tudo nesta vida a gente esquece,
Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele?"
- me perguntou. Devo que retardei muito em responder, com cara
de não compreensão. Porque Diadorim completou: - "...dele,
a glória do finado. Do que se finou..." E dizia aquilo com uma
misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca vi.
Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado pelas
môitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do cavalo.
Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas demorou
tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para o que havia ver, esporei
e vim puxando o cavalo dele adestro. E aí o que vi foi Diadorim
no chão, deitado debruços. Soluçava e mordia o capim do
campo. A doideira. Me amargou, no cabo da língua. - "Diadorim!"
- chamei. Ele, sem se aprumar, virou o rosto, apertou os olhos
no choro. Falei, falei, meus consolos, e ele atendia, em querelenga,
me pedindo que sozinho fosse, deixasse ele ali, até minha volta.

- "Joca Ramiro era seu parente, Diadorim?" - eu indaguei,
com muita cordura. - "Ah, era, sim.., ele me respondeu, com
uma voz de pouco corpo. - "Seu tio, será?" Que era...
- ele deu, em gesto. Entreguei a ele o cabresto do cavalo, e
continuei ida. Em certa distância, para prevenir os alaripes, e evitar
atraso, esbarrei e disparei tiros, para o ar, umas vezes. Cheguei
lá, estavam todos reunidos, por meu feliz. E estava chovendo, de
acordo com o mormaço. "Trago notícia de grande morte!"
- sem desapear eu declarei. Eles todos tiraram os chapéus, para
me escutar. Então, eu gritei: "Viva a faina do nosso Chefe
Joca Ramiro..." E, pela tristeza que estabeleceu minha voz,
muito me entenderam.Ao que quase todos choraram. -"Mas,
agora, temos de vingar a morte do falecido!" - eu ainda
pronunciei. Se aprontaram num átimo, para comigo vir. -"Mano velho

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Tatarana, você sabe.Você tem sustância para ser um chefe, tem a
bizarria..." - no caminho oAlaripe me disse. Desmenti. De ser
chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade.

Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romper das barras,
saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, muito
branco, os olhos pisados, a boca vencida. Deixamos para trás
aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tão célebre - a
Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais.

Redeando, rumamos, em tralha e tôrto, por aquele a-fora
- agente ia investir o sertão,os mares de calor. Os córregos
estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas em
brejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas
serras. A terrível notícia tinha se espalhado assaz, em todas as
partes o povo fazia questão de obsequiar à gente, e falavam
muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feito flecha, feito faca,
feito fogo. Varamos todos esses distritos de gado. Assomando de
dia por dentro de vilórios e arraiais, e ocupando a cheio todas as
estradas, sem nenhum escondimento: a gente queria que todo o
mundo visse a vingança! Alto do Amoipira, quando terminamos
la, os cavalos já afracavam. João Goanhá, em toda economizada
estatura, foi ver a gente vindo e abriu seus bons braços. Ele
estava com próprios trezentos guerreiros. E sempre outros
chegavam. "Meu irmão Titão Passos... Meu irmão Titão Passos..."
- ele falou, crescente. "E vocês todos, valentes cabras... Agora
é que vai ser a grande briga!" Disse que com três dias se saía em
armas. João Goanhá ia na vaca e no boi: não estava com por'oras.
E Só Candelário, onde era que estava? Só Candelário, piorado
doente, devia de estar um tempo desses nos Lençóis, para onde
portador seguira, com pressa de chamado. Mesmo assim, João
Goanhá desnecessitava de esperar por ele, para aos dois Judas
traidores dar batalha. No que achamos bom conselho. E outros
vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em
ponta. Veio até quem não se imaginou: como aquele Nhão
Virassaia, com seus trinta e cinco cacundeiros - o que
carregava nome de fama por todo o Rio Verde-Grande. E o velho Ludujo
Filgueiras, montesclarense, com vinte e dois atiradores. E o
grande fazendeiro coronel Digno de Abreu, que mandou, seus, trinta
e tantos capangas, também, por Luís de Abreuzinho
comandados, que era dele filho-natural. E o gado em pé que se provia,
para se abater e se comer, chegava a ser uma boiada. Com sacas
de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café - até em carro-
de-bois os mantimentos de fubá e arroz e feijão entregados. Só
em quantidades de munição era que a gente não produzia luxo, e
Titão Passos se entristeceu de não poder ter trazido a nossa, na
Guararavacã tão em vão esperada. Mas a lei de homem não é
seus instrumentos. Saímos em guerra. Ãhã, do norte, da Lagoa-
do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante da
rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota,
cunhado de Só Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas,
não tinham escape. Aindas que se escapassem para o poente,
atravessassem o rio, ah, encontravam ferro e fogo. lá estava Medeiro
Vaz - o rei dos Gerais!

Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das
desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora de paga e perdas,
e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz. Tudo o
melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de
ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não
estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas,
então? Ah, então: mas tem o Outro o figura, o morcegão, o
tunes, o cramulhão, o dêho, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-
encarado, aquele o-que-não-existe! Que não existe, que não,
que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me

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defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do
manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah, só Ela me vale;
mas vale por um mar sem fim... Sertão. Se a Santa puser em
mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao
senhor, e digo: paz. Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é que
podia saber? E foram esses monstros, o sobredito. Ele vem no
maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o cão-miúdo. Não é,
mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo nenhum, por
causa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem, protege
com sua pessoa. Montado, mole, nas costas do Hermógenes,
indicando todo rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim, dentro
do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no lume
dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. O
Hermógenes, que por valente e valentão para demais até
ao fim deste mundo e do juizo-final se danara, oco de alma. Contra
ele a gente ia. Contra o demo se podia? Quem a quem? Milagres
tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir
das unhas da gente, se escaparam o Ricardão e o Hermógenes
- os Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua,
quar-to-de-légua, com toda sua jagunçama, e não vimos, não
ouvimos, não soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e
impedir. Avançaram, calados, escorregando pelos matos, ganhando o
mais poente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sem a
gente perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde,
seu pretume dela escondido no brancor do dia, se presume.
Quando pudemos saber, a distância deles já era impossível. Nós
estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem? E pois demore
o senhor para o pior: o que veio em sobre!: os soldados do
Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de
todos os lados, de supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver
cachorrada caçante. Soldados do Tenente Plínio companhia
de guerra.Tenente Reis Leme, outra. E veio depois, com muitos
mais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca, esse bebia
café em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos, rolamos
por aí aqui, se rolou. A vida é vez de injustiças assim, quando o
demo leva o estandarte. Pois aquela soldadama viera para
o Norte era por vingar Zé Bebelo, e Zé Bebelo já andava por
longes desterrado, e nisso eles se viravam contra a gente, que
éramos de Joca Ramiro, que tinha livrado a vida de Zé Bebelo
das facas do Hermógenes e Ricardão; e agora, por sua ação, o
que eles estavam era ajudando indireto àqueles sebaceiros. Mas,
quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em
máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras
para o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só
geringonciável na capital do Estado?

De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado
de ouvir narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem.
Combatemos o quanto mais pudemos - está aí. Consoante começou,
no Curral de Vacas, perto do Morro do Cocuruto, onde nos
pegaram num relaxo. Fugimos, depois de grande fogo. Fogo
demos daí no Cutica, na Chapada Simão Guedes: mas rodaram com
a gente, de retruz. Serra da Saudade: a gente se desarranjou,
fugimos, bem. Ah, e: Córrego Estrelinhas, Córrego da Malhada
Grande, Ribeirão Traçadal - tudo foram as feiezas. Recito
frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim ficaram em assento de
sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento passado e
glória, é sal em cinza. De tanta maneira Diadorim assistia comigo,
como um gravatá se fechou. Semeei minha presença dele, o
que da vida é bom eu dele entendia.Tomando o tempo da gente,
os soldados remexiam este mundo todo. Milho crescia em roças,
sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o pequí amadurecia
no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju nos

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campos. Ato que voltaram as tempestades, mas entre aquelas
noites de estrelaria se encostando. Daí, depois, o vento
principiou a entortar rumo, mais forte - porque o tempo todo das
águas estava no se acabar. Tenente Reis Leme nos escaramuçando:
queria correr com a gente a pano de sabre. Matou-se montanha
de bons soldados. Estávamos em terras que entestam com a Bahia.
Em Bahia entramos e saímos, cinco vezes, sem render as armas.
Isto que digo, sei de côr: brigar no espinho da caatinga pobre,
onde o cãcã canta. Chão que queima, branco! E aqueles cristais,
pedra-cristal quase de sangue... Chegamos até no cabo do mundo.

Quadrante o que havia, me esconjuro. Parecia que a gente ia
ter de passar o resto da vida guerreando com os praças? Mas
nosso constar era outro, com sangue de urgência aquela luta
de morte contra os Judas e que era briga nossa particular.
Não se tendo recurso competente. Ah, Diadorim mascava. Para
ódio e amor que dói, amanhã não é consolo. Eu mesmeava. Mas,
dando um dia, à gente teve certas noticias: os do Hermógenes
estando senhores arranchados, conforme retouçavam, da banda
de lá do Rio do Chico: nas vertentes da beira da mão direita do
Carinhanha, no Chapadão de Antônio Pereira. Questionou-se
nisso. Se pensou e falou em tudo por fazer e não fazer. Resultado
foi este: que o principal era a gente mandar reforço, para Medeiro
Vaz, uns cinquenta ou cem homens, repartidos em miúdos
grupos, caçando jeito de safança por entre os lugares perigáveis.

Enquanto tanto, João Goanhá, Alípio Mota e Titão Passos, cada
qual de lado seu, deviam de ir desmanchar os rastos na caatinga,
e depois se esconderem, por uns tempos, em fazendas de donos
amigos, até que a soldadesca se espairecesse. E era bom e era
justo. Era certo. Deus em armas nos guardava.

De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João
Vaqueiro, e o Fafafa. Era para o outro lado, era para os meus
Gerais, eu vinha alegre contente. E saímos, com o seguinte risco: o
Imbirussú, a Serra do Pau-d'Arco, o Mingú, a Lagoa dos Marruás,
o Dôminus-VobíSCum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, o Detrás-das-
Duas-Serras. O Brejo dos Mártires, a Cachoeirinha Rôxa, o Mocó,
a Fazenda Riacho-Abaixo, a Santa Polônia, a Lagoa dajaboticaba.
E daí, por uns atalhos: o Córrego Assombrado, o Sassapo, o Pôço
d'Anjo, o Barreiro do Muquém. Nesse meu, caminho fazendo,
tirei minha desforra: faceirei. Severgonhei. Estive com o melhor
de mulheres. Na Malhada, comprei roupas. O vau do mundo é a
alegria! Mas Diadorim não se fornecia com mulher nenhuma,
sempre sério, só se em sonhos. Dele eu ainda mais gostava. E
então se deu que tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara.
Já era o do Chico - o poder dele largas águas, seu destino. A
ver, o porto-de-balsa, que distava pouco. Travessia, ali, podia ser
perigosa, com tantos soldados vizinhantes. A gente se apartar?
Ah, mas o que bastava o balseiro se chamar: "Hô, passador!
Hô, passador! ..." - ele viesse. Assim, para uma invenção, que
se teve. O balseiro só avistando João Vaqueiro e o batata - estes
ele então podia passar, com cinco dos cavalos, falavam que era
para uns caçadores. Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafa
fossem levando os cavalos para um lugar para cima da barra, no
Urucúia, chamado o Olho-d'Água-das-Outras. Lá a gente se
encontrava.

Somente ficados com um cavalinho só, Alaripe e eu,
Diadorim e Jesualdo, andamos beira-rio, no vagarosamente. A gente
esperava o que acontecesse. Ali mais adiante, era um porto-de-
lenha. - "Você tem receio, Riobaldo?" - Diadorim me
perguntou. Eu?! Com ele em qualquer parte eu embarcava, até na
prancha de Pirapora! "Vau do mundo é a coragem..." eu
disse. E, com os rifles escorados, acenamos para uma grande barca
- aquela, a cara-de-pau que tinha no bico da frente era uma

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cabeça de touro, boa-sorte nos dava. O barqueiro tocou um
berro no buzo, encostaram. A gente os quatro, com o cavalo, era
nada - as arrobazinhas. E nós entramos, depois que o patrão
nos saudou, em nome de Nosso Senhor Cristo-Jesus, e disse:

- "Eu cá sou amigo de todos, segundo a minha condição..." E o
Alaripe aceitou dele um gole de cachaça, aceitamos. Jesualdo
disse, repostando: "Amigo de todos? Rio-abaixo, na canoa,
quem governa é o remador!" Bem que rio-acima e que era, mas
com remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo, vento
em pano - nem remeiro com o varejão não carecia de fazer
talento. Pediram notícias do sertão. Essa gente estava tão
devolvida de tudo, que eu não pude adivinhar a honestidade deles. O
sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gente farta jacuba.

"Por onde os senhores vieram?" o patrão indagou.
"Viemos da Serra Rompe-Dia..." respondemos. Mentiras d'água.
Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São Felipe. O
barqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levou a gente
travessia fácil, frenteando a boca do Urucúia. Ah, o meu Urucúia
as águas dele são claras certas. E ainda por ele entramos, subindo
légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos
são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente em
caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo,
num ponto sem praia, onde essas altas árvores - a caraíba-de-
flor-róxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-
de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi
meus Gerais!

Aquilo nem era só mata, era até florestas! Montamos
direito, no Olho-d'Água-das-Outras, andamos, e demos com a
primeira vereda dividindo as chapadas : o flaflo de vento
agarrado nos buritis, franzido no gradeal de suas folhas altas; e,
sassafrazal como o da alfazema, um cheiro que refresca; e
aguadas que molham sempre.Vento que vem de toda parte. Dando
no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade. Mas
liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade
que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não
ensina: o bêco para a liberdade se fazer. Sou um homem
ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível?
Lengalenga. Fomos, fomos.

Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas
marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão
ou areias de corem cimento formadas, e cruzando somente com
gado transeúnte ou com algum boi sozinho caminhador. E como
cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para
a gente um fino sossego sem notícia - todo buritizal e florestal:
ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir,
sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais,
viemos subindo até chegar de repente na fazenda Santa Catarina
nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Que's borboletas! E era
em maio, pousamos lá dois diaS, flôr de tudo, como sutil suave,
no conhecimento meu com otacilia. O senhor me ouviu. Em
como Otacília e eu ficamos gostando um do outro,
conversamos, combinados no noivavel, e na sobremanhã eu me despedi,
ela com sua cabecinha de gata, alva no topo da alpendrada, me
dando a luz de seus olhos; e de lá me fui, com Diadorim e os
outros. E de como viemos, em cata do grosso do bando de
Medeiro Vaz, que dali a quinze léguas recruzava, da Ratragagem
para a Vereda-Funda, e com eles nos ajuntamos, economizando
rumo, num lugar chamado o Bom-Burití. Me alembro, meu é.
Ver belo: o céu poente de sol, de tardinha, a roséia daquela cor. E
lá é cimo alto: pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que

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sim. Na Santa Catarina. Revejo. Flores pelo vento desfeitas.
Quando rezo, penso nisso tudo. Em nome da Santíssima Trindade.
O que o seguinte foi este: o encontro da gente com Medeiro
Vaz, no Bom-Burití, num ressaco, conforme já disse, ele no meio
de seus fortes homens, exatos, naquela bocâina de campo.
MedeiroVaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado,
aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem
velho ser. Cujo eu me disse: "É bom homem..." E ele beijou a
testa de Diadorim, e Diadorim beijou aquela mão. A um assim,
a gente podia pedir a benção, se prezar. Medeiro Vaz tomava rapé.
Medeiro Vaz, mandando passar as ordens. E tinha quartel-mestre.
Subindo em esperança, de lá saímos, para chão e sertão.
Sertão bravo: as araras. O só que Medeiro Vaz comandou foi isto:
"Alelúia!"Diadorim tinha comprado um grande lenço preto: que
era para ter luto manejável, funo guardado em sobre seu
coração. Chapadão de duro. Daí, passamos um rio vadoso - rio de
beira baixinha, só buriti ali, os buritís calados. E a flôr de caraíba
urucuiã - roxo astrazado, um rôxo que sobe no céu. Naquele
trecho, também me lembro, Diadorim se virou para mim -
com um ar quase de meninozinho, em suas miudas feições.
- "Riobaldo, eu estou feliz!..." - ele me diSSe. Dei um sim
completo. E foi assim que a gente principiou a tristonha história
de tantas caminhadas e vagos combates, e sofrimentos, que ja
relatei ao senhor, se não me engano até ao ponto em que Zé
Bebelo voltou, com cinco homens, descendo o Rio Paracatú numa
balsa de talos de burití, e herdou brioso comando; e o que
debaixo de Zé Bebelo fomos fazendo, bimbando xitórias, acho que eu
disse até um fogo que demos, bem dado e bem ganho, na
Fazenda São Serafim. Mas, isso, o senhor então já sabe.
Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já
sabe mesmo tudo que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto.
Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta,
que menos mais, é por atenção no que contei, remexer vivo o que
vim dizendo. Porque não narrei nada à-tôa: só apontação
principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu
veste roupa. O senhor pense, o senhor ache, O senhor ponha
enredo. Vaz assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é
que retôrço meus dias: repensando. Assentado nesta boa cadeira
grandalhona de espreguiçar, que é das de Carinhanha, Tenho
quinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser.
Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu
quero ver essas águas, a lume de lua...

Urubú? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas,
antiquissimo - para morarem famílias de gente. Serve meus
pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por
isso, não tenho. Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa
se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se
dansar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha
culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas,
altas cidades... Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém
diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. O
senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha
ma cedencia. Mas minha padroeira é a Virgem, por orvalho.
Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não escolheram
de ser tão feios tão frios - bastou só que tivessem escolhido de
esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca
desmente, O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei
com Diadorim. Não voltei?Travessias... Diadorim, os rios
verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada,
mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto
coisas ao burití; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti
quer todo azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho.

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Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente
aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer
juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade da
religião. Lá,
nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucúia. O meu Urucuia
vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco,
rio capital.
O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri,
minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selórico Mendes
tivesse de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha
mãe? Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda.
Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra
feio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todo urrando
no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e
voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio veloz
como o pensamento da idéia - mas a água e o chão não queriam
saber dele. Compadre meu Quelemém outrotanto é homem sem
parentes, provindo de distante terra - da Serra do Urubu do
Indaia. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo
em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse
constando de falecido. Só Candelário? Só CandeLário se desesperou
por forma. Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a
requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que se desfez,
enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão arenoso salgado. Só
Candelário não era, de certo modo, parente do compadre meu
Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, de meu
não-saber e querer. Diadorim eu adivinhava. Sonhei mal? E em
Otacília eu sempre muito pensei: tanto que eu via as baronesas
amarasmeando no rio em vidro - Jericó, e os lírios todos, os
lírios-do-brejo - copos-de-leite, lágrimas-de-moça, são-josés.
Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim
do Santíssimo. A Nhorinhá - nas Aroeirinhas - filha de Ana
Duzuza.Ah, não era rejeità... Ela quis me salvar? De dentro das
águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A mais,
com aquela grandeza, a singeleza: Nhorínhá puta dela. E ela
rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha
Miosótis? Não. A Rosa'uarda. Me alembrei dela; todas as minhas
lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo
em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na
madrugada - como os cavalos se arraçôam. O senhor se alembra
da canção de Siruiz? Ao que aquelas crôas de areia e as ilhas do
rio, que a gente avista e vai guardando para trás. Diadorim vivia
só um sentimento de cada vez. Mistério que a vida me
emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles
pássaros, no Rio das Velhas - percebi para sempre. O manuelzinho-
da-crôa. Tudo iSso posso vender? Se vendo minha alma, estou
vendendo também os outros. Os cavalos relincham sem causa;
os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O
senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?
Mas aquele menino, o Valtêi, na hora em que o pai e a mãe
judiavam dele por lei, ele pedia socôrro aos estranhos. Até o
Jazevedão, estivesse ali, vinha com brutalidade de socorro,
capaz. Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente
é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de
muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar
de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo,
o sentir forte da gente - o que produz OS ventos. Só
pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo
de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de
saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O
Reinaldo era Diadorim - mas Diadorim era um sentimento meu.
Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito
aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de braveza.
Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar,

326 327

o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser
mais dansada - só o debulhadinho de purezas, de virar-virar...
Deus está em tudo conforme a crença? Mas tudo vai vivendo
demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se
tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda
hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes
negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a
hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O
demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não e não. Nem sei
explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o
do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igual
aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não
houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia
tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O
pacto de um morrer em vez do outro - e o de um viver em vez
do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto,
com Deus mesmo - posso? - então não desmancha na rãs
tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como
no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça,
e que culpa tem o homem? As vezes não aceito nem a explicação
do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta.
Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É
preciso de Deus existir - a gente, mais; e do diabo divertir a gente
com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa
uma só, diversa para cada um que Deus está esperando
que esse faça. Neste inundo tem maus e bons todo grau de
pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não
serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a
gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não
se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque. Digo ao
senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas,
também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente
sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja.Tenho medo? Não.
Estou dando batalha. É preciso negar o que o"Que-Diga" existe.
Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em
ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças.

O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus
é alegria e coragem que Ele é bondade adiante, quero dizer.

O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora,
no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir.

Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Ôi Mãe, o rio
Soninho, a Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, seja.
Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos,
ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo de chuva
e mais chuva, a gente se fervia - debaixo desses extraordinários
de Zé Bebelo - a gente lambia guerra. Zé Bebelo Voz Ramiro
- viva o nome! A gente vinha sobre o rastro deles, dos hermógenes -
por matar, por acabar com eles, por perseguir. No
borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. As
artes que fugiam. Mas eu com aquilo já tinha inteirado costume.
Era ruim e era bom.

Aí quando muito vento abriu o céu, e o tempo deu melhora,
a gente estava na erva alta, no quase liso de altas terras.
Se ia, aos vintes e trintas, com Zé Bebelo de bota-fogo. Assim expresso,
chapadão voante. O chapadão é sozinho a largueza. O sol. O
céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. As duras
areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que
passavam abandoados de araras - araral - conversantes.
Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove - e
não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva
inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho

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entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O
fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão.
De dia, é um horror de quente, mas para à noitinha refresca,
- e de madrugada se escorropicha o frio, o senhor isto sabe. Para
extraviar as mutucas, a gente queimava folhas de arapavaca. Aquilo
bonito, quando tição acêso estala seu fim em faíscas e
labareda dalalala. Alegria minha era Diadorim. Soprávamos o fogo,
juntos, ajoelhados um frenteante o ao outro. A fumaça vinha,
engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que fevereiro é o mês
mindinho: mas é quando todos os cocos do buritizal maduram, e
no céu, quando estia, a gente acha reunidas as todas estrelas do
ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça
para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitolô. Um Pitolô, sei lá,
cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de
Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase
preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele
contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas
Diadorim sabia era a guerra. Eu, no gozo de minha idéia, era que
o amor virava senvergonhagem. Turvei, tanto. - "Andorinha
que vem e que vai, quer é ir bem pousar nas duas torres da
matriz de Carinhanha..." o Pitolô falava. Eu tinha súbitas outras
minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do
corpo de Diadorim, que era um escondido. E em Otacília, eu não
pensava? No escasso, pensei. Nela, para ser minha mulher,
aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com
ela passeava, no laranjal de lá. Otacilia, mel do alecrim. Se ela
por mim rezava? Rezava. Hoje sei. E era nessas boas horas que eu
virava para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por
cima de estados escuros.

Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era para
gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir gavião guinchar
ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os
veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar
gado, em vancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só
ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que foram trilhas largas
no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força.
Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um
tiro de pistola - isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus
pintos, para esgaravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A
fim, o birro e o garrixo sigritando. Ah, e o sabiá-preto canta bem.
Veredas. No mais, nem mortalma. Dias inteiros, nada, tudo o nada - nem
caça, nem pássaro, nem codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se
navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso
diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos,
toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o
sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé Bebelo, andante,
estava esperdiçando o consistir. É que o Hermógenes só fizesse por se
fugir toda a vida, isso ele não entendia. - "Vai cavacando buraco, vai,
que tu vê!" - oco da paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias,
ele menos falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no
cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma
conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que
estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em
doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na
beira dos acontecimentos - em decisões de necessidade forte e
vida virada - horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente
de prosa já me aborrecia.

A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu
pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a bem-

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dizer, minha nôiva? Mas eu carecia era de mulher ministrada, da
vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nôjo. De
mim, ou dele? As prisões que estão refincadas no vago, na gente.
Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho: e
via, o reparado como ele principiava a rir, quente, nos olhos,
antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome
com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle,
naquelas mãos tão finas, brancamente. Esses Gerais em serras
planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente
pequenino. Como se eu estivesse calçando par de chinelo muito flote;
e eu queria um sinapismo, botim reiúno, duro, redomão.

Agora e os outros? o senhor dirá. Ah, meu senhor,
homens guerreiros também têm suas francas horas, homem
sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o
Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas
môitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo.
"É essa natureza da gente..." ele disse; eu não tinha
perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de
alivio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha
viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu ia
aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz?

Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-
acontecido nos passados. O senhor me entende?
De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber
os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois,
por que? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem
tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria
existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que
tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa
mulher achada: Nhorinhá, a minha moça Rosa'uarda, aquela
mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho
se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito
neblina - noruega movente no frio de agosto.

A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não
dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força
esperdiçada; de tudo me prostrei. Ao que me veio uma ansia. Agora eu
queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum
riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar
num destino melhor. Anda que levantei, a pé caminhei em redor
do arrancho, antes do romper das horas d'alva. Saí no grande
orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se
madruga com céu esverdeado. Zé Bebelo podia pautear
explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os hermógenes e dar
neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se
guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é
que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da
vereda. Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas,
quando o dia clareou de todo, eu estava diante do huritizal. Um
buriti tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros
versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu
nem conheci - aquele Siruiz - eu estava pensando. Versos ditos
que foram estes, conforme na memória ainda guardo,
descontente de que sejam sem razoável valor:


Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p'ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.

Urucuia rio bravo
cantando à minha frição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.

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Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...


Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse
a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu
mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem
de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso
dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na
estreitez da porteira emhola e rela. Sentimento que não espairo;
pois eu mesmo nem acerto Com o mote disso - o que queria e
o que não queria, estoria sem final, O correr da vida embrulha
tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa ,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O
que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar
alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no
meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer,
de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava.
Ao clamar do dia.

Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em
beira do café. Assim, também, por que se aguentava aquilo, era
por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação sempre.
Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões.
Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem:
Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem
cansaço; o Reinaldo que era Diadorim: sabendo deste, o
senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de
carne e ôsso, e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa,
segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito;
João Concliz, que com o Sesfrêdo porfiava, assoviando imitado de
toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o
Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas,
cavalos que haja;Joaquim Bcijá, rastreador, de todos esses sertões
dos Gerais sabente; o Ti pote, que achava os lugares d'água, feito
boi geralista ou buriti em broto de semente; o Suzarte, outro
rastreador, feito cão cachorro ensinado, boa pessoa; o Quêque,
que sempre tinha saudade de sua rocinha antiga, desejo dele era
tornar a ter um pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo,
faquista, perigoso nos repentes quando bebia um tanto de mais;
o Acauã, um roxo esquipático, só de se olhar para ele se via o
vulto da guerra; o Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom
cacete, que nas mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-
mogolense, contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse,
e assim descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse
verdade; o Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que
ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal;José Gervásio,
caçador muito bom;JoséJitirana, filho dum lugar que se chamava
a Capelinha-do-Chumbo: esse sempre dizia que eu era muito
parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto Mangaba,
da Cachoeira do Choro, dizia-se que entendia de toda mandraca;
João Vaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o Coscorão, que
tinha sido carreiro de muito oficio, mas constante que era
canhoto; o Jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, competente
sujeito, só que muito soberbo se ofendia com qualquer brincadeira
ou palavra; o Feliciano, caôlho; o Marruaz, homem desmarcado
de forçoso: capaz de segurar as duas pernas dum poltro; Guima,
que ganhava em tudo jogo de baralho, era do sertão do Abaeté;
Jiribibe, quase menino, filho de todos no afetual paternal; o
Moaçambicão - um negro enorme, pai e mãe dele tinham sido
escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato - a ele fiquei devendo,
sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito mil réis; o Jequiti-

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nhão, antigo capataz arneiro, que só se dizia por ditados; o
Nelsan, que me pedia para escrever carta, para ele mandar para a
mãe, em não sei onde moradora; Dimas Dôido, que dôido mesmo
não era, só valente demais e esquentado; o Sidurino, tudo o que
ele falava divertia a gente; Pacam à-de-Presas, que queria qualquer
dia ir cumprir promessa, de acender velas e ajoelhar adiante, no
São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, caôlho também, com
movimentos desencontrados, dizia que nunca tinha conhecido
mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando a suor de cavalo, se
deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a cara dele;Jôe
Bexiguento, sobrenomeado "Alparcatas", deste qual o senhor, recital, já
sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto,
cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um,José Félix; o Liberato;
o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele
Pan taleão, um Salóstio João, os outros. E que ia me esquecendo
Raymundo Lé, puçanguara, entendido de curar qualquer doença,
e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e
alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitolô, José Micuim, Zé
Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, Pedro Afonso, Zé Vital,João Bugre,
Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, Nestor. E Diodôlfo, o Duzentos,João
Vereda, Felisberto, o Testa-em-Pé, Remigildo, oJásio, Domingos
Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, Simiào, Zé Geralista, o Trigoso, o
Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, Durval Foguista, Chico Vosso, Acrisio e o
Tuscaninho Caramé. Amostro, para o senhor ver que eu me alembro.
Afora algum de que eu me esqueci isto é: mais muitos...
Todos juntos, aquilo tranquilizava os ares. A liberdade é assim,
movimentação. E bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta
terra.

A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além de
que Zé Bebelo comandava. "Ao que vamos, vamos, meu
filho, Professor: arrumar esses bodes na barranca do rio, e impor
ao Hermógenes o combate..." - Zé Bebelo preluzia,
comedindo pompa com sua grande cabeça. Assim de loguinho não
aprovei, então ele imaginou que eu estava descrendo. "Agora
coage tua cisma, que eu estou senhor dos meus projetos. Tudo já
pensei e repensei, guardo dentro daqui o resumo bem traçado!"
- e ele pontoava com dedo na testa. Acreditar eu acreditasse,
não duvidei. O que eu podia não saber era se eu mesmo estava
em ocasiões de boa-sorte.

A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida a
gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá
por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz,
na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou com
casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem,
com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele.Atual,
todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo vinha a ser
até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me doía
inteiro e inchava, sei que a inchação me cansasse muito, sempre
eu queria esbarrar pra água beber. "Se eu tiver de atirar, então
como é que faço? Não posso..." - era outro meu receio.
Admirei, porque o José Félix também tinha tido ferimento, na côxa e
na perna, mas a natureza dele era limpa, o ofendido secava por
si, nem parecendo ser. Assim a primeira vez que me sucedia um
a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas margens do
peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos.
Muito temi por meu corpo. "Ah, minha Otacília" - eu gemi em
mim "Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva
minha você não vai ser..." Uns recomendavam arnica-do-campo,
outros aconselhavam emplastro de bálsamo, com isso rente se
sarava. Aí Raymundo Lê garantiu cura com erva-boa. Mas onde
era que erva-boa se ia achar?

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À Fazenda dosTucanos chegamos, lá esbarramos - é na beira
da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxú. Visitamos o
fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico
longe não se estava. Assim então por que era que não se avançar
logo, às duras marchas, para atacar? "Sei de mim, sei..."
- Zé Bebelo menos disse, sem explicação. Desconheci. Cacei um
catre, cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa
nenhuma não me importei. "Retém as forças, Riobaldo. Vou
campear o remédio, nesses matos..." Diadorim falou. A gente
nos Tucanos ia falhar dois dias, ali ficamos comendo palmito e
secando em sol a carne de dois bois.

No primeiro dia, de tardinha, apareceu um boiadeiro, que
com seus camaradas viajando. Vinham de Campo-Capão-Redondo,
em caminhada para Morrinhos. Por que tinham riscado aquela
grande volta? "O senhor dá paz à gente, Chefe?"- o boiadeiro
perguntou. "Dou paz, damos, amigos..." Zé Bebelo
respondeu. A quieto, o boiadeiro então achou que devia de as
novidades relatar. Que se estava em meio de perigos. Sim. Os
soldados! "Os que soldados, esses, mano velho?" Soldadesca pronta,
do Governo, mais de uns cinquenta. Assim onde era que
estavam? "Ao que estão em São Francisco e em Vila Risonha, e
mais outros deles vão vindo chegando, Chefe; é o que eu ouvi
dizer..." Zé Bebelo, escutando, redondamente. Só quis mais
saber. Se isso, se aquilo. Se o boiadeiro sabia o nome do Promotor
de Vila Risonha, e do Juiz de Direito, do Delegado, do Coletor,
do Vigário. O do Oficial comandante da tropa, o boiadeiro não
acertava dizer. Aquele boiadeiro era homem sério, com palavra
merecida e vontade de estar bem com todos. Tinha uma garrafa
de vinho depurativo na bagagem, me presenteou com um gole,
me fez bens. Pousou lá, no outro dia se foram, muito cedo.
Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais
disposto. Andei andando, vi aquela fazenda. Essa era enorme -
o corredor de muitos grandes passos. Tinha as senzalas, na raia
do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a casa
dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; esse
pátio de fora sendo largo, lajeado, e com um cruzeiro bem no
meio. Mas o capim crescia regular, enfeite de abandono. Não de
todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o qual
veio para perto do Jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até por
dentro do eirado, mansejavam uns bois e vacas, gado reboleiro.
Aí João Vaqueiro viu um berrante bom, pendurado na parede da
sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou: as reses
entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no curral,
para a beira dos cochos, na esperança de sal. "Não faz mês que
o povo daqui aqui ainda estava..." João Vaqueiro declarou. E
era verdade, com efeito, pois na despensa muita coisa se
encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena. Os dois dias
ficaram três, que tão depressa passaram.

Madrugada, no em que se ia partir dali, eu acordei ainda
com o escuro,no amiudar. Só assim acordei, por um rumor,
seria o Simião, que estava dormindo no mesmo cômodo e tacteando
se levantava. Mas me chamou. "A gente vai pegar a cavalhada.
Vamos?" ele disse. Não gostei. "Estou enfermo. Então vou?!
Quem é que rala a minha mandioca?" repontei, áspero. Virei
para o canto; assim eu estava apreciando aquele catre de couro.
O Simião decerto ia, mais o Fafafa e Doristino, estavam bons
para o orvalho dos pastos. Diadorim, que dormia num colchão,
encostado na outra banda, já tinha se levantado antes e
desaparecido do quarto. Ainda persisti numa madorna. Aquela moradia
hospedava tanto - assim sem donos só para nós. Aquele
mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o

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conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí
o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio
demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. Pensei
bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de cavalaria.
"Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!..." de repente
me lembrei, antiquíssimo, aquilo eu carecia de rever. Afôito, corri,
compareci numa janela - era o dia clareando, as barras
quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos enchiam o
curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar todos os
cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E deram um
tiro.

Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube.
Sempre sei quando um tiro é tiro isto é quando outros vão ser.
Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura. Apertei
minha correia na cintura, o seguinte emendando: que nem sei
como foi. Antes de saber o que foi, me fiz nas minhas armas. O
que eu tinha era fome. O que eu tinha era fome, e já estava
embalado, aprontado.

As tantas o senhor assistisse áquilo: uma confusão sem
confusão. Saí da janela, um homem esbarrou em mim, em carreira,
outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo as ordens, de sobre-
voz. Aonde, o que? Todos eram mais ligeiros do que eu? Mas
ouvi: "...Mataram o Simião..." Simião? Perguntei: "E o
Doristino?"" Ãã? Homem, não sei.., alguém me
respondendo. "Mataram o Simião e o Aduvaldo..." E eu ralhei:
"Basta!" Mas, sobre o instante, virei: "Ala, e o Fafafa?" O que
ouvi: "Fafafa, não. Fafafa está é matando!..." Assim era, real,
verdadeiramente de repente, caído como chuva: o rasgo de
guerra, inimigos terríveis investindo. "São eles, Riobaldo, os
hermógenes!" Diadorim aparecido ali, em minha frente, isto
falou. Atiraram um horror, duma vez, tiros e tiros que estavam
contra nós desfechando. Atiravam nas construções da casa.
Diadorim sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei,
o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu.
Respirei os pesos. "Agora, agora, estamos perdidos sem
socorro..." inventei na mente. E raciocinei a velocidade disto: "Ser
pego, na tocaia, é diverso de tudo, e é tolo..." Assim enquanto,
eu escutando, na folha da orêlha, as minúcias recontadas: as
passadas dos companheiros, no corredor; o assoviar e o dar das balas
que nem um saco de bagos de milho despejado. Feito cuspis-
sem o pôr e pôr! Senti como que em mim as balas que
vinham estragar aquela morada alheia de fazenda. Medo nem tive,
não deu para ter - foi outra noção, diferente. Me salvei por um
espetar de pensamento: que Diadorim, tenho franzindo, fosse
mandar eu ter coragem! Ele nem disse. Mas eu me inteirei,
ligeiro demais, num só destorcer. - "Eh, pois vamos! É a hora!"
- eu declarei, pus a mão no ombro dele. Respirei depressa demais.
Aquele me apatetar - saiba o senhor - não deve de ter durado
nem os menos minutos. No átimo, supri a claridade completa de
idéia, o sangue-frio maior, essas comuns tranquilidades. E, por
aí, eu sabia mesmo exato: a gente já estava debaixo de cerco.

Achei especial o jeito de João Cuneliz vir, ansiado cauteloso.
Ação em que qualquer um anda nessas semelhantes ocasiões
- só encostado nas paredes. "Você fica aqui, mais você, e
você... Você dessa banda... Você ali, você-aí acolá..."
arrumação ele ordenava. "Riobaldo, Tatarana: tu toma conta desta
janela... Daqui não sai, nem relaxa. por via nenhuma..."
Arredado, lá embaixo avistei Marcelino Pampa indo para as senzalas
com uns cinco ou seis companheiros. Com outros, Freitas
Macho corria para a tulha; e para o engenho uns junto com Jõe
Bexiguento, dito "Alparcatas". Meus peitos batendo tresdobro
forte, eu dividido naquela alarida. A grave escorei meu rifle, lim-

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po, arma minha, amásia. Ainda reconheci o Dimas Doido e o
Acauã, deitados atrás do cruzeiro do patío. Um daqueles
urucuianos apareceu, mais outro, traziam balaio grande, com
algodão em rama. Mais homens, com sacos de sabugos; foram buscar
outros sacos, carregavam um caixote também. Tudo eles
estavam transportando, por entranqueirar o pátio de fora: tábuas
tamboretes, cangalhas e arreios, uma mesa de carapina retomhada.
Arranjos de guerra esses são engenhados sempre com uma
graça variada, diversa dos aspectos de trabalho de paz - isto vi;
o senhor vê: homens e homens repulam no afã tão unidamente,
sujeitos maneiros, feito o meigo do demo assoprasse neles, ou
até mesmo os espíritos! Suspirei, de bestagem. Ao menos alguém
fungou e me cutucou, era o Preto Mangaba, mandado guarnecer
ali, comigo junto. Preto Mangaba me oferecia dum pão de
doce-de-huriti, repartia, amistoso. Eu então me alembrei de que
estava com fome. Mas o Quim Queiroz trazia mais munição, ele
ajudado por alguns; arrastavam um couro, o couro esse cheio repleto
de munição, arrastavam no assoalho do corredor. Da janela da
outra banda, pus o olhar, espiei o desdém do mufldo, distancias.
Abalavam fogo contra a gente, outra vez, contra o espaço da casa.
Ixe de inimigo que não se avistava. Somente eu queria saber era
se aguentava manejar, como era que estava sentindo meu braço.
Aí ergui mão para coçar minha testa, aí me cismei: e fiz, com
todo o respeito, o pelo-sinal. Sei que o cristão não se concerta
pela má vida levável, mas sim porem sucinto pela boa morte
- ao que a morte é o sobrevir de Deus, entornadamente.

Atirei. Atiravam.

Isso não é isto?

Nonada.

A aragem. Diadorim onde estivesse? Soube que ele parava
em outro ponto, em seu posto em praça. Sustentava, picando
alvos a para a frente, junto com o Fafafa, o Marruaz, Guima e
Cavalcânti, na barra da varanda.Todo lugar não era lugar? Não se
podendo esbarrar, de jeito nenhum, no arrebentar, nas
manivelas da guerra. Aprendi os momentos. Assim, assazmente, João
Concliz tornava a vir, zelante, com Alaripe, José Quitério e
Rasga-em-Baixo. "Espera!" ele mandou. Pelo que vinham
também o Pitolú e o Moçambicão, puxando uns couros de boi. Esses
couros inteiros eram para a gente pregar lá em riba, nas padieiras,
ficarem dependurados de cortinado bambo, nos vãos das janelas.
Depois, o Pacamã-de-Presas mais o Conceiço, socavando com
ferramenta, a fito de abrir torneiras nas paredes por onde
buraco de se atirar. Aquela guerra ia durar a vida inteira? O que
eu atirava, ouvia menos. Mas o dos outros: assovios bravos, o
achispc, isto de ferro as balas apedrejadas. Eu e eu. Até meus
estalos, que a cada, no prúprio do coração. À mira de enviar um
grão de morte acertado naquelas raras fumaças dançáveis. Assim
é que é, assim.

Ah! E então, aí, no súbito aparecer, Zé Rebelo chegou, se
encostou quase em mim. "Riobaldo,Tatarana, vem cá..." -
ele falou, mais baixo, meio grosso com o que era uma voz de
combinação, não era a voz de autoridade. A de ver, o que ele
quisesse de mim? Para eu passar avante na posição, me transpor
para um lugar onde se matar e morrer sem beiras, de maior
marca? Andei e segui, presente que, com Zé Bebelo, tudo
carecia mais era de ser depressa. Mesmo me levou. Mas me levou foi
para um outro cômodo. Ali era um quarto, pequeno, sem cama
nenhuma, o que se via era uma mesa. Mesa de madeira
vermelha, respeitável, cheirosa. Desentendi. Dentro daquele quarto

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como que não entrava a guerra. Mas o pensar de Zé Bebelo -
ansiado eu sabia - era coisa que estralejava, inventante e forte.
"Mais antes larga o rifle aí, deposita..." ele falou. O
depor meu rifle? Pois botei, em cima da mesa, esquinado de
través, botei com o todo cuidado. Ali se tinha lápis e papel. "Senta,
mano..." - ele, pois ele. Ofereceu a cadeira, cadeira alta, de
pau, com recosto. Se era para sentar, assentei, em beira de mesa.
Zé Bebelo de revólver pronto na mão, mas que não contra mim
- o revólver era o comando, o constante revirar e remexer da
guerra. E ele nem me olhou, e me disse:
- "Escreve..."
Caí num pasmo. Escrever, numa hora daquelas? O que ele
explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil
do que entender. Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, que
sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho-pequeno
de estranhos... "Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz
de me matar..." me lembrei dessas palavras. Mas palavras que,
em outra ocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo.
"Escreve..."
O zunzum da guerra acontecendo era que me estorvava de
direito pensar. E Zé Bebelo não estava ali não era para isso, para
pensar por todos? Como que fosse, o papel, para o que carecia,
era pouco. Tinham de caçar mais papel, qualquer, por ali devia
de ter. Enquanto isso, eu cumprisse de escrever, na seca mão da
necessidade.
E ouvimos praga de dôr.
"Ao que foi?" Uns gemidos, despautados, de sorrôgo.
"Companheiro ofendido. O Leocádio..." ouvimos. Sem-modos
se precipitado, Zé Bebelo avançou para ali, para ver. Sem
determinação tomada de ir, eu também já estava lá, atrás dele. O
homem, o primeiro ferido, caído sentado, as pernas estendidas
para diante, as costas amparadas na parede; com a mão esquerda
era que ele Suportava sua testa, mas com a direita ainda segurava
o rifle, que o asno rifle ele não tinha largado. Conforme
Ravmundo Lê já tinha exigido, alguns vinham da cozinha, trazendo
as latas d'água. Raymundo Lé lavava a cara do homem
ensanguentada, do Leocádio. Esse estava atirado pelas queixadas, má
bala que lhe partira o ôsso, o vermelho brabotava e pingava.
"Meu filho, tu aguenta ainda brigar?" Zé Bebelo quis saber. O
Leocádio, que fez careta, garantiu que podia: "O que posso.
Em nome de Deus e de meu São Sebastião guerreiro, o que
posso!" Sempre sendo a careta sem gracejo; pois falar era o que para
ele custava e maltratava. "E da Lei... E da Lei, também... Ah,
então, vamos, faz vingança, menino, faz vingança!" Zé Bebelo
aforçurou. Semelhante só botasse apreço nos fatos por resultar.
Zé Bebelo se endemoninhava.

Segurou meu braço, suscitado de se voltar para a mesa, para
se escrever, amanuense. Pelo discorrer, revólver na mão, às
vezes achei, em minha fantasia, que ele estava me ameaçando. -
"Ei, ai, vamos ver. Que tenho esquadrão reiúno: esses é que vão
vir me dar retaguarda!" ele falasse. Eu escrevesse, com mais
urgência. Os bilhetes missiva para o senhor oficial
comandante das forças militares, outro para o excelentíssimo juiz da
comarca de São Francisco, outro para o presidente-da-câmara
de Vila Risonha, outro para o promotor. "Apresta A massa do
volume deles também dá valor..." ele regendo. Acertei.
Escrevi. O teor era aquilo mesmo, o simples: que, se os soldados
no soflagrante viessem, de rota abatida, sem esperdiçar minuto,
então aqui na Fazenda dos Tucanos pegavam caça grossa, reunida
- de lobo, jaguatirica e onça - de toda a jagunçada maior
reinante no vezvez desses gerais sertões. A rasa, à justa, e cerrar

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com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a Paz e a
Constituição da Lei! Assinado: José Rebêlo Adro Antunes, cidadão e candidato.

No pique dum momento, perdi e achei minha idéia, e
esbarrei. A em pé, agora formada, eu conseguia a alumiação daquela
desconfiança. Assim. Em que maldei, foi: aquilo não seria
traição? Rasteiro, tive que olhei Zé Bebelo, no grude dos olhos. Daí,
a tão claro e aligeirado pensei os prefácios. Aquele tinha sido
homem pago estipendiado pelo Governo, agora os soldados do
Governo com ele se encontravam. E nós, todos? Diadorim e eu,
os tristes e alegres sofrimentos da gente, a célebre morte de
Medeiro Vaz, a vingança em nome de Joca Ramiro? Nem eu sabia
ao certo, depois, no correr de tantos mêses, o extrato da vida de
Zé Bebelo, o que ele tinha realmente feito, somenos se
cumprida a viagem de ida até em Goiás. Soubesse, o pior, era que ele,
por ofício e por espécie, não podia esbarrar de pensar, não podia
esbarrar de pensar inventado para adiante, sem repouso, sempre
mais. A gente estava por conta dele - e sem repouso nenhum
também, nenhum - o portanto. E ele tinha trazido o bando cá
para perto do São Francisco, tinha querido falhar os três dias
naquela fazenda atacável. Quem sabe, então, o recado para os
soldados virem, ele mesmo já não teria enviado, desde tempos?
Idéia, essa. Arre de espanto ah, como quando onça de-lado
pula, quando a canoa revira, quando cobra chicoteia. Désse de
ser? Ao caminho dos infernos para prazo! Aí, careci de querer
a calma. O tiroteio já redobrava. Ouvi a guerra.

Decerto eu estava exagerado. Antes Zé Bebelo havendo de
ser mesmo o chefe para a hora, safado capaz. Nem se desprazia.

"Ôi, xô! P'ra esses, munição não falta?..." ele
escarnecendo disse, quando as descargas vieram em salva mais forte o
fiufiu e os papocos. Ah as balas que partiam telhas e que as
paredes todas recebiam. Cacos caindo, do alto. "Te apressa,
Tatarana, que nós dois temos também de atirar! "Alegre dito. Na
janela, ali, tinham pendurado igualmente um daqueles couros de
boi: bala dava, zaque laque, empurrando o couro, daí perdia a
força e baldava no chão. A cada bala, o couro se fastava, brando,
no ter o choque, halangava e voltava no lugar, só com mossa
feita, sem se rasgar. Assim ele amortecia as todas, para isso era que
o couro servia. "Traição?" eu não queria pensar. Eu já tinha
preenchido três cartas. Não é do tutuco nem do zumbiz das
balas, o que daquele dia em minha cabeça não me esqueço; mas do
bater do couro preto, adejante, que sempre duro e mole no ar se
repetia.

Advindo que algum me trouxe mais papel, achado por ali.
nos quartos, em remexidas gavetas. Só coisa escrita já, de tinta
firme; mas a gente podendo aproveitar o espaço em baixo, ou a
banda de trás, reverso dita. Que era que estava escrito nos papéis
tão velhos? Um favor de carta, de tempos idos, num vigente
fevereiro, 11 , quando ainda se tinha Imperador, no nome dele com
respeito se falava. E noticiando chegada em poder, de remessa de
ferramenta, remédios, algodão trançado tinto. A fatura de
negócios com escravos, compra, os recibos, por Nicolau Serapião da
Rocha. Outras cartas... "Escreve, filho, escrese, ligeiro..." A
traição, então? Altamente eu escutava os gritos dos
companheiros, xingatório, no meio da desbraga do quanto combate, na
torração. Aqui mesmo, esgueirados para a janela, o Duzentos e o
Rasga-em-Baixo agora ombreavam armas, seu vez-em-quando a
ponto atiravam. Assim como não pude, eu esbarrei, outra vez -
e encarei Zé Bebelo sem final.

"Que é? Que é lá?!" ele me perguntou. Devia de ter
me deduzido, dos meus olhos, mesmo melhor do que o que eu
sabia de mim.

346 347

- "A pois... Por que é que o senhor não se assina, ao pé: Zé
Bebelo Vaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo declarou?..."

eu cacei contra, reperguntando.

Ato visível, que ele esteve pego, no usual de seu modo,
assim, de se espantar no ar. Conheci. Às vezes, também, um
atraiçôa, sem nem saber o que é que está produzindo às falsas
hajas! Mas ele não tinha surpreendido a verdade do meu indagar,
- a expedição de minha dúvida. Conforme, prazido consigo,
recachou, e me disse, me engambelando:

"Ah, hã-an...Também pensei.Tanto que pensei; mas, não
se pode... Muito alta e sincera é a devoção, mas o exato das
praxes impõe é outras coisas: impõe é o duro legal...

Aí, fui escrevendo. Simples, fui, porque fui; ah, porque a vida
é miserável. A letra saía tremida, no demoroso. Meu outro braço
também recomeçava a doer, quase'que. "Traição"... sem
querer eu fui lançando no papel a palavra; mas risquei. Uma bala no
couro assoviou soco, outra entrou atrás, entrou com o couro
levantado, deu na parede, defronte, ricocheteou e veio cair,
quente, perto da gente. Ali na parede, tinha um chifre de boi de se
dependurar roupa; até armador de rede era de chifre de boi
naquela Casa. Sumamente, eu esperei o pispissiu de alguma
outra bala, eu queira. Soubesse por que? O pensar caladíssimo de
Zé Bebelo me perturbava.

Mas ele disse: "Que é que é?" - se debruçando - "Que
erro que foi?" Não viu, porque eu já tinha riscado. Mas, então,
ele muito falou. Ia explicando. De noite, no escuro feito, ia
mandar dOiS cabras, dos mais espertos viajeiros, para rastejarem por
ali, furando o cerco, cada um levava ruma igual daquelas cartas.
Assim, Deus azado ajudasse, e eles ou ao menos um deles
conseguisse, então era resumo certo que a sOldadeSca se movimentava
de vir. Apareciam, os trapezavam, apropositavam, arrebentavam
com os hermógenes!
"E a gente?" eu perguntei.

- "Ãe? A gente? A ver, que você não me entendeu? A gente
obra jeito de se escapar, no cererê da confusão..."

Antes, tanto, que era muito difícil eu repostei.

"Ah, sim, dificultoso é, meu filho. Mas pego, é o nosso
recurso. Se não, se outra, que saldo é que temos?" e Zé
Bebelo, do dito, sagaz se rigozijava.

Então, com respeito, eu disse que a gente podia
experimentar de fazer isso mesmo agora: furar uma saída, por entre os
hermógenes, brigando e matando. Eu disse isso. Mas tinha
esquecido que estava era encostado em Zé Bebelo, no questionar. Aí
quem era que podia com a idéia daquele homem, quem era que
se sustentava? A foro, pois, assim ele me respondeu:

"Pois era,Tatarana? Olhe: escuta, pensa esses
hermógenes não são mais valentes do que nós, nem estão em
quantidade maior; mas fato é que eles chegaram a surdas, e nos cercaram,
tomaram tudo quanto há de melhor, nessas posições. Asseados,
é que estão. Agora, nesta hora, a gente forçar um escape, pode
ser que se tenha sorte mas mesmo assim sofrendo muitas
mortes, e sem meios para descontar essas, sem alcance nenhum
para se matar um bom poucado desses inimigos. Tu entende?
Mas, se os soldados chegarem, têm de dar o forte fogo primeiro
contra os hermógenes, fazendo neles muito estrago. Aí, se foge,
com tenção só na escapula. Ao menos, algum lucro se teve... Ah,
tu vê o que se quer? Ah, o que tu também quer, pois não quer?!..."

Não nas artes que produzia, mas no armar de falar assim
ele era razoável. Se riu, qual. Riu? Eu sendo água. me bebeu; eu
sendo capim, me pisou; e me ressoprou, eu sendo cinza. Ah,
não! Então, eu estava ali, em chão, em a-cú acôo de acuado?! Um

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ror de meu sangue me esquentou as caras, o redor dos ouvidos,
cachoeira, que cantava pancada. Eu apertei o pé na alpercata,
espremi as tábuas do assoalho. Desconheci antes e depois - uma
decisão firme me transtornava. E eu vi, fiquei sabendo: me queimassem
em fogo, eu dava muitas labaredas muito altas! Ah, dava.
O senhor acha que menos acho? Mais digo. Mais fiz. Antes veja,
o que eu pensei - o que seguinte ia ser, e ficou formado um
decreto de pedra pensada: que, na hora de os soldados
sobrechegarem, eu parava perto de Zé Bebelo; e que, ele fizesse feição de
trair, eu abocava nele o rifle, efetuava. Matava, só uma vez. E,
daí... Daí eu tomava o comandamento, o competentemente
eu mesmo! e represava a chefia, e forçando os companheiros
para a impossível salvação. Aquilo por amor do rijo leal eu fazia,
era capaz; pelo certo que a vida deve de ser. Mesmo não
gostando de ser chefe, descrendo do enfado de responsabilidades. Mas
fazia. "Aí, pego a faca-punhal e o facão grande..." - tornei a
pensar. Até chegar a hora, eu não ia falar disso com pessoa
nenhuma, nem com Diadorim. Mas fazia, procedia. E eu mesmo
senti, à verdade duma coisa, forte, com a alegria que me supriu:
- eu era Riobaldo, Riobaldo, Riobaldo! A quase que gritei aquele
este nome, meu coração alto gritou. Arre então, quando eu
experimentei os gumes dos meus dentes, e terminei de escrever o
derradeiro bilhete, eu estive todo tranquilizado e um só, e
insensato resolvido tanto, que mesmo acho que aquele, na minha vida,
foi o ponto e ponto e ponto. E entreguei o escrito a Zé Bebelo
minha mão não espargiu nenhum tremor. O que regeu em
mim foi uma coragem precisada, um desprezo de dizer; o que
disse:
- "O senhor, chefe, o senhor é amigo dos soldados do
Governo...
E eu ri, ah, riso de escárneo, direitinho; ri, para me constar,
assim, que de homem ou de chefe nenhum eu não tinha medo. E
ele se sustou, fez espantos.

Ele disse: "Tenho amigo nenhum, e soldado não tem
amigo..."

Eu disse: "Estou ouvindo."

Ele disse: "Eu tenho é a Lei. E soldado tem é a lei..."

Eu disse: "Então, estão juntos."

Ele disse: "Mas agora minha lei e a deles são às diversas:
uma contra a outra..."

Eu disse: "Pois nós, a gente, pobres jagunços, não temos
nada disso, a coisa nenhuma...

Ele disse: "Minha lei, sabe qual é que é, Tatarana? É a
sorte dos homens valentes que estou comandando..."

Eu disse: "É. Mas se o senhor se reengraçar com os
soldados, o Governo lhe repraz e lhe premêia. O senhor é da política.
Pois não é? Ó gente - deputado..."

Ah, é feio ri; porque estava com vontade. Aí pensei que ele
fosse logo querer o a gente se matar. A sorte do dia, eu cutucava.
Mas ruim não foi. Zé Bebelo só encurtou o cenho, no carregoso.
Fechou a boca, pensou bem.

Ele disse: - "Escuta, Riobaldo,Tatarana: você por amigo eu
tenho, e te aprecêio, porque vislumbrei tua boa marca. Agora, se
eu achasse o presumido, com certeza, de que você está
desconcordando de minha lealdade, por malícias, ou de que você
quer me aconselhar canalhagem separada, velhaca, para
vantagem minha e sua... Se eu soubesse disso, certo, olhe...

Eu disse: - "Chefe, morte de homem é uma só...

Eu tossi.

Ele tossiu.

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Diodôlfo, correndo vindo, disse: - "O Jósio está
morrendo, com um tiro no pescoço, lá dele..."

Alaripe entrou, disse: "Eles estão querendo pôr mãos e
pés no chiqueiro e na tulha. Se assanham!"

Eu disse: "Dê as ordens, Chefe!"

Eu disse gerido; eu não disse copiável.

Sei que Zé Bebelo sorriu, aliviado.

Zé Bebelo botou a mão no meu ombro; era o da banda do
braço que doía. "A vamos, a vamos, com macacos e bananas!
A cá, na sala-de-janta, meu filho..." ele instou. À janela. Agachei,
e escorei meu rifle, arma capital. Agora, era obrar. E
aqueles sujeitos estavam loucos?

Cabeça de um se bolou, redondante, feito um coco, por cima
da palha de burití que cobria uma casa de vaqueiro. Adesfechei: e
vi arrebentar em pedaços o casco daquilo. Daí, a dôr me doeu no
ferimento do braço, mordi meus beiços por essa causa. Mas
cacei. Outro afundei logo, cujo varei os peitos, com outra bala
certeira, duas balas. Ave, que afoitos! Ao tanto eu gemia, e
apontava. Eles, em um e um, caíam, aceitavam o poder da morte que
eu mandava. Fiz conta: uns seis, sei, até a hora do almoço
meia-dúzia. Essas coisas, não gosto de relatar, não são para que
eu alembre; não se deve, de. Ao senhor, só, agora, sim: é de
declaração, é até ao desamargado dos sonhos... Que eu ali, jajão.
Conheço quando homem sú disfarça, quando se encolhe
somente ferido, ou mas quando retomba mesmo por desmanchado.
Mortes diferentes, mortes iguais. Pena, se tive? Vá se ter dó de
cangussú, dever finezas a escorpião! Pena de errar algum, eu ter
podia; ah, mas não errava. Deixa que deixavam só uns dois dedos
de corpo em descoberto lateral e minha bala se comportava.
Como aquele meu braço me doendo, ai dôr dôía, de arrancado,
parecendo que um fogo desenraizava tudo, dos ocos, respondia
até na barriga. A cada que eu dava um tiro, forcejava minha careta,
chorejava. Ria, despois. "Aperta esta minha parte de
natureza, com um cabresto, com um pano, companheiro!" eu
supliquei.Alaripe, servente, rasgou uma colcha de cama, me passou
dobras daquelas tiras, arrochadas. Também, doesse que doesse,
que me importava? - arrasos em redor de mim.Trastanto,
derrubei mais um, mais vizinho. Os outros uns. Esse, urubú já
bicou. Esse ia pulando em lanço, para um canto da cerca, esse
repUlOu no ar, esse deu um grito soltado. Menos, veja e mire, eu
catasse de querer espécies de homens, para alvejar, feito se por
cabeça ganhasse prêmio de conto-de-réis. Mas mais, de muitos,
a vida salvei: pelo medo que de mim tomavam, para não avançar
nos lugares pelos tirázios. Ainda demos um tiroteio varrcdor,
ainda batemos. Aí, eles desistiram para trás, desandavam. Assim
pararam, o balançar da guerra parou, até para o almoço, em boa
hora. E então conto o do que ri, que se riu: uma borboleta
vistosa veio voando, antes entrada janelas a dentro, quando junto com
as balas, que o couro de boi levantavam; assim repicava o espairar,
o vôo de reverências, não achasse o que achasse - e era uma
borboleta dessas de cor azul-esverdeada, afora as pintas, e de
asas de andor. "Ara, viva, maria boa-sorte!" - o
Jiribibe gritou. Alto ela entendesse. Ela era quase a paz.

A comida para mim, ali mesmo me trouxeram, todos em
minha pontaria punham prezado valor. O imaginar o senhor não
pode, Como foi que eu achei gosto naquela comida, às ganas, que
era: de feijão, carne-seca, arroz, maria-gomes e angu. Ao que bebi
água, muita, bebi restilo. O café que chupo. E Zé Bebelo, revindo,
me gabou: "Tu é tudo, Riobaldo Tatarana! Cobra voadeira..."

Antes Zé Bebelo me ofereceu mais restilo, o tanto também
bebeu, ás saúdes. Seria só por desconto de um começo de remorso,
por me temer em consciências? A gente sabe mais, de um ho-

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mem, é o que ele esconde. -"Ah, o Urutu Branco: assim é que
você devia de se chamar... E amigos somos. A ver, um dia, a
gente vai entrar, juntos, no triunfal, na forte cidade de
Januária..." aprontado ele falou. Ao que resposta não dei. Amigo?
Eu, ali, do lado de Zé Bebelo; mas Zé Bebelo não estava do lado
de ninguém. Zé Bebelo cortador de caminhos. Amigo? Eu
era, sim senhor. Aquele homem me sabia, entendia meu
sentimento. A ser: que entendia meu sentimento, mas só até uma
parte - não entendia o depois-do-fim, o confrontante.
Assemelhado a ele, pensei. Pensei: eu visse que traindo ele estivesse, ele
morria. Morria da mão de um amigo. Jurei, calado. E, desde,
naquela hora, a minha idéia se avançou por lá, na grande cidade
de Januária, onde eu queria comparecer, mas sem glórias de
guerra nenhuma, nem acompanhamentos. Alembrado de que no
hotel e nas casas de família, na Januária, se usa toalha pequena de se
enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o
pessoal sensato, eu no meio, uns em seUs pagáveis trabalhos, outros
em descanso comedido, o povo morador. A passeata das bonitas
moças morenas. tão socialmente, alguma delas com os cabelos
mais pretos rebrilhados, cheirando a óleo de umbuzeiro, uma
flôr airada enfeitando o espírito daqueles cabelos certos. A
Januaria eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a
gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava,
cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas
cachaças - a vinte-e-seis cheirosa tomando gosto e cor
queimàdà, nas grandes domas de umburana.

Ao menos, daí desajoelhei e vim para a alpendrada, avistar o
que se passava com Diadorim; e eu estipulava meu direito de
reverter por onde que eu quisesse, porque meu rifle certeiro era
que tinha defendido de tomação o chiqueiro e a tulha, nos
assaltos, e então até a casa. Diadorim guerreava, a seu comprazer,
sem deszelar, sem querer ser estorvado. Datado que Deus, que
me livrou, livrava também meu amigo de todo
comezinho perigo. As raivas, naquela varanda, vinham e caíam, demasiadas, vi.
Tiros altos, revoantes: eram os bandos de balas. Assunto de um
homem que estava deitado mal, atravessado, pensei que assim
em pouco descanso. "Vamos levar para a capela..." Zé
Bebelo mandou. Assunto que era o Acrísio, morto no meio; tôrto.
Devia de ter se passado sem tribulação. Agora não caçavam uma
vela, para em provisão dele se acender? "Quem tem um
rosario?" Mas, no sobrevento, o Cavalcânti se exclamou:
"A que estão matando os cavalos!..."

Arre e era. Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada
nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não
tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus
nem justiça de coração, se viravam para judiar e estragar, o rasgável
da alma da gente no vivo dos cavalos, a tôrto e direito,
fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt'-e-baixos entendendo,
saber, que era o destapar do demônio - os cavalos
desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam erguidos
em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos outros,
retombados no enrolar dum rolo, que reholdeou, batendo com
uma porção de cabeças no ar, os pescoços, e as crinas sacudidas
esticadas, espinhosas: eles eram só umas curvas retorcidas!
Consoante o agarre do rincho fino e curtinho, de raiva - rinchado;
e o relincho de medo - curto também, o grave e rouco, como
urro de onça, soprado das ventas todas abertas. Curro que
giraram, trompando nas cercas, escouceantes, no esparrame, no
desembêsto - naquilo tudo a gente viu um não haver de dôidas
asas. Tiravam poeira de qualquer pedra! Iam caindo, achatavam
no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os topetes para cima,
numa tremura. Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de

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tardar no morrer, rinchavam de dôr - o que era um gemido
alto, roncado, de uns como se estivessem quase falando, de
outros zunido estrito nos dentes, no saído com custo, aquele
rincho não respirava, o bicho largando as forças, vinha de apertos,
de sufocados.

"Os mais malditos! Os desgraçados!"

O Fafafa chorava. João Vaqueiro chorava. Como a gente toda
tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não
havia remédio. À tala, eles, os hermógenes, matavam conforme
queriam, a matança, por arruinar. Atiravam até no gado, alheio,
nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o começo, tinham
querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os
animais iam amontoando, mal morridos, os nossos cavalos! Agora
começávamos a tremer. Onde olhar e ouvir a coisa inventada
mais triste, e terrível por no escasso do tempo não caber. A
cerca era alta, eles não tiveram fuga. Só um, um cavalão claro,
que era o de Mão-de-Lixa e se chamava Safirento. Se aprumou,
nas alças, ficou suspenso, cochilasse debruçado na régua - que
nem que sendo pesado em balança. um ponto - as nádegas
ancas mostrava para cá, grossas carnes, rlepois tombou para fora, se
afundou para lá, nem a gente podia ver como terminava. A pura
maldade! A gente jurava vinganças. E, aí, não se divulgava mais
cavalo correndo, todos tinham sido distribuídos derrubados!

Aquilo pedia que Deus mesmo viesse, carnal, em seus
avessos, os olhos formados. Nós rogávamos as pragas. Ah, mas a
fé nem vê a desordem ao redor. Acho que Deus não quer consertar
nada a não ser pelo completo contrato: Deus é uma plantação. A
gente e as areias. Aturado o que se pegou a ouvir, eram
aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquele
rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada de
aflição: e carecia de alguém ir, para, com pontaria caridosa, em
um e um, com a dramada deles acabar, apagar o centro daquela
dôr. Mas não podíamos! O senhor escutar e saber - os cavalos
em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para
morrer e não morrer, e o rinchar era um choro alargado,
despregado, uma voz deles, que levantava os couros, mesmo uma
VOZ de coisas da gente: os cavalos estavam sofrendo com
urgência, eles não entendiam a dôr também. Antes estavam
perguntando por piedade.

- "Arre, eu vou lá, eu vou lá, livrar da vida os
pobrezinhos!..." foi o que o Fafafa bramou. Mas não deixamos,
porque isso consumava loucura. Não dava dois passos no eirado, e
ele morria fuzilamento, em balas se varava, ah. Agarramos
segurado o Fafafa. A gente tinha de parar presa dentro da casa,
combatendo no possível, enquanto a ruindade enorme acontecia. O
senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente
engrossa e acusa buracões profundos, e às vezes dão ronco quase
de porco, ou que desafina, esfregante, traz a dana deles no
nhor, as dôres, e se pensa que eles viraram outra qualidade de
bichos, excomungadamente. O senhor abre a boca, o pêlo da
gente se arrupêia de total gastura, o sohregêlo. E quando a gente
ouve uma porção de animais, se ser, em grande martiriu,
ação na idéia é a de que o mundo pode se acabar. Ah, que é que o
bicho fez, que é que o bicho paga? Ficamos naquelas solidões.
Alembrar que tão bonitos, tão bons, inda ora há pouco esses eram,
cavalinhos nossos, sertanejos, e que agora estraçalhados daquela
maneira não tinham nosso socôrro. Não podíamos! E que era
que queriam esses hermógenes? De certo seria tenção deles
deixar aqueles relinchos infelizes em roda da gente, dia-e-noite,
noite-e-dia, dia-e-noite, para não se aguentar, no fim de alguma
hora, e se entrar no inferno? Senhor então visse Zé Bebelo: ele
terrivelmente todo pensava - feito o carro e os bois se desar-

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rancando num atoleiro. Mesmo mestremente ele comandava:
"Apuremos fogo Abaixado..." ; fogo, daqui, dali, em ira de
compaixão. Adiantava nada. Com pranchas de munição que a
gente gastasse, não alcançávamos de valer aos animais, com o
curral naquela distância. Atirar de salva, no inimigo amoitado,
não rendia. No que se estava, se estava: o despoder da gente. O
duro do dia. A pois, então, me subi para fora do real; rezei! Sabe
o senhor como rezei? Assim foi: que Deus era fortíssimo exato
- mas só na segunda parte; e que eu esperava, esperava,
esperava, como até as pedras esperam. "A faz mal, não faz mal, não tem
cavalo rinchando nenhum, não são os cavalos todos que estão
rinchando - quem está rinchando desgraçado é o
Hermógenes, nas peles de dentro, no sombrio do corpo, no arranhar dos
órgãos, como um dia vai ser, por meu conforme...Assim,
d'hojeem-diante doravante, sempre temos de ser: ele o Hermógenes,
meu de morte - eu militão, ele guerreiro..." Assim o relincho
em restos, trescortado. Aqueles cavalos suavam de derradeira dôr.

Agarrávamos o Fafafa, segurado, disse ao senhor. Mas, mais
de repente, o Marruaz disse: "A bom, vigia: olha lá..." O que
era. Que eles quem havia de não crer? que eles mesmos
agora estavam atirando por misericórdia nos cavalos sobreferidos,
para a eles dar paz. Ao que estavam. "As graças adeus!..." -
exclamou Zé Bebelo, alumiado, com um alívio de homem bom.
- "Ah, é marmo!" o Alaripe exclamou também. Mas o Fafafa
nem nada não disse, não conseguia: o quanto pôde, se assentou
no chão, com as duas mãos apertando os lados da cara, e cheio
chorou, feito criança - com todo o nosso respeito, com a
valentia ele agora se chorava.

Aí, então, se esperou. Durado de um certo tempo,
descansamos os rifles, nem um tirozinho não se deu. O intervalo para
deixar a eles folga de matarem em definitivo nossos pobres
cavalos. Mesmo quando o arraso do último rincho no ar se desfez de
vez, a gente ainda se estarrecia quietos, um tempo grande, mais
prazo - até que o som e o silêncio, e a lembrança daquele
sofrer, pudessem se enralecer embora, para algum longe. Daí,
depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que
conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim,
devagarinho, depressa. Ele existe - mas quase só por
intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no
mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?

Mas conto menos do que foi: a meio, porem dobro não
contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias
nossas. Mesmo eu - que, o senhor já viu, reviro retentiva com
espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo
- mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim,
passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dosTucanos, pelas
balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro!
- nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que
minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um
tempo. Só que alargou demora de anos - às vezes achei; ou às
vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zuo
de um minuto mito: briga de heija-flôr. Agora, que mais idoso
me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda
de valor - se transforma, se compõe, em uma espécie de
decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio
tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem
me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à
gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável?
Não. Esse obedece igual - e é o que é. Isto, já aprendi. A bobéia?
Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba é lavar ouro. Então
onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real
verdade?

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A ser que aqueles dias e noites se entupiram emendados,
num ataranto, servindo para a terrível coisa, só. Aí era um
tempo no tempo. A gente povoava um alvo encoberto, confinado. O
senhor sabe o que é se caber estabelecido dessa constante
maneira? Se deram não sei os quantos mil tiros: isso nas minhas orêlhas
aumentou - o que azoava sempre e zinia, pipocava, proprial,
estralejava. Assentes o reboco e os vedos, as linhas e têlhas da
antiga casarona alheia, era o que para a gente antepunha defesa.
Um pudesse narrar - falo para o senhor crer - que a casa-
grande toda ressentia, rangendo queixumes, e em seus escuros
paços se esquentava. Ao por mim, hora em que pensei, eles iam
acabar arriando tudo, aquela fazenda em quadradão. Não foi. Não
foi, como logo o senhor vai ver. Porque, o que o senhor vai é
ouvir toda a estória contada.
Morreu mais o Berósio. Morreu o Cajueiro. O Moçambicão
e Quim Queiroz, para a gente se sortir, traziam as quantidades
de balas. Rente Zé Bebelo andava em toda a parte, mandando se
atirar econOmiZadO e certeiro. "Ah, oé, meus filhos: não vão
desperdiçar. Matem só gente viva!" - ele trestampava - "... e
coragem, e qué'pe-te! que o morto morrido e matado não
agri de mais..." Aí cada um gritava para os outros valentia de
exclamação, para que o medo não houvesse. Aí os judas xingávamos.
Para não se ter medo? Ah, para não se ter medO é que se vai a
raiva. A sêbo! De dôr do calor de inchação, aquele meu braço
sempre piorava. Alaripe me cedeu, de bondoso, uma vasilha com
água fria, carreou para mim; em entremeio de atirar, eu molhava
bem um pano, torcia por cima do braço, o gotejado frescor de
alívio. Um companheiro sempre me ajudando, conforme
agradeci. Um urucuiano, daqueles cinco urucuianos de Zé Bebelo.
Isso, no instante, estranhei. Notei, de repente: aquele homem,
fazia tempo que não se arredava de mim, sempre me seguindo,
por perto.

Solevei uma desconfiança. Sempre o vulto presente daquele
homem; seria só por acasos? O uruduiano, deles, que o Salústio
se chamava. O que tinha os olhos miudinhos em cara redonda,
boca mole e sete fios de barba compridos no queixo. Arreliado
falei: - "Quê que é?Tu amigou comigo?!Tatu - tua casa..." -
para ele. Semi-sério ele se riu. Comparsa urucuiano dos olhos
verdes, homem muito feioso. Ainda nada não disse, coçou a
barriga com as costas dobradas da mão - gesto de urucuiano. Eu
bati com a minha mão direita por cima da canhota, que pegava o
rifle, e deixei deixada - gesto de jagunço. Apertei com ele:

"Ao que me quer?" Me deu resposta: "Ao assistir o senhor, sua
bizarrice... O senhor é atirador! É no junto do que sabe bem,
que a gente aprende o melhor..." A verdade com que ele me
louvava. Se riu, muito sincero. Não desgostei da companhia dele,
para os bastantes silêncios. Assim é o que digo: que, quando o
tiroteio batia forte, de lá, e daí de repente estiava - aquilo
servia um pesado, salteação. Surdo pensei: aqueles hermógenes eram
gente em tal como nós, até pouquinho tempo reunidos
companheiros, se diz - irmãos; e agora se atravavam, naquela vontade
de desigualar. Mas, por que? Então o mundo era muita doideira e
pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita. Pois
o urucuiano Salústio João mais olhei. Ali, ajoelhado, ele mirava e
atirava. Atirava e léchava os olhos. Quando abria outra vez,
queria ver alguém vivo?

Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas idéias. O pensar
assim produzia mal - já era invocar o receio. Porque, então, eu
sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho. Agora, por me
valer, eu tinha de me ser como os outros, a força unida da gente
mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem

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porteira. Do Hermógenes e do Ricardão? Neles eu nem
pensava. Antes pensei outra vez foi no embuste do urucuiano. Atual
ele se ajoelhava dohroso, com a perna muito atrás, a outra muito
para diante. Aquele homem - achei - estava mandado por Zé
Bebelo, para espreitar meus atos.
A prova que era: de que Zé Bebelo despachava traição. As
espumas dele me espirravam. Será que fosse para o urucuiano
Salústio no primeiro descuido meu me amortizar? Tanto, não
apostei. Zé Bebelo me queria vigiado, para eu não contar aos
outros a verdade. Ora bem, que uns companheiros tinham
avistado os bilhetes eu escrever - o fato esquisito, assim, em hora
de começo de fogo; mas por certo pensasam que era para fazendeiros
amigos nossos, chefes de homens, rogando que viessem,
com retaguarda e reforço. Agora Zé Bebelo temia que eu
candongasse. Aí mandou o urucuiano fazer a minha sombra. Mas Zé
Bebelo carecia de mim, enquanto o cerco de combate desse de
durar. Traidor mesmo tràidor, e eu também não precisava dele
- da cabeça de pensar exato? Ao que, naquele tempo, eu não
sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia
pensar com poder - por isso matava. Eu aqui - os de lá do lado de
lá. A anhanga que em riba da gente despejavam, balaços de
tantos rifles, balas que quebram tetos e portas. Ah, isso era desgraça
sem mão mandante, ofensa sem nenhum fazedor - quase feito
uma chuva-de-pedra, acontecer de trovões e raios, tempestade
- parecesse? Eu ia ter raiva dos homens que não enxergava?
Podia ter? Tinha, toda, era dos que eu matava bem. Mas nem
bem não era mesmo raiva; era só confirmação.

Desse jeito foi que entardeceu, o sol piscou; a gente tendo
perdido a certeza dos horários do dia. Afã de dessossego, era só.
Daí, pegava um cansaço. Fechasse a noite, o perigo podia vir a
ser maior. Os Hermógenes não iam investir, mediante trevas, para
um fim ali dentro, de coronha e faca? Morreu mais o Quiabo.
Outros atestavam uns ferimentos. Por se necessitar da capela, os
defuntos a gente foi levando para um cômodo pequeno e sem
janela, que era pegado na escadinha do corredor. Alaripe apareceu
com uma vela, acendeu, enfiada numa garrafa. Vela sozinha,
para eles todos. Aí as lamparinas e candeias não bastavam?
Debaixo dum alumiar de candeia, Zé Bebelo estava me convidando.
Arte que logo entendi. Ele tinha mandado vir Joaquim Beiju e o
Quipes, para um segredado.
Agora, aqueles dois, era para surtirem, saindo rastejando,
conforme o quiçá; e cada um levava seu punhado de bilhetes,
enviados. Por uma banda um, o outro da outra: o que Deus aprovasse,
chegava. Assim eles aceitaram de cumprir, e motivos não
perguntaram. Tudo em encoberto. Então - se Zé Bebelo guardava
uma tenção honesta - por que, dito e feito, era que não
punha todo o mundo ciente do tramado? Ainda esperei. Mas -
dirá o senhor - por que era que eu também não delatava aquilo,
os efeitos e projetos, ao menos a Diadorim e Alaripe eu não
contava? Deponho que não sei. Aos perigos, os perigos. Só duma
coisa eu forte sabia... Só que eu ia vigiar sempre Zé Bebelo. Ele
trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de
natureza - que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver. Ah, eu ia
ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar.

Joaquim Beijo e o Quipes ainda foram na cozinha, cortar um
de-comer, arranjar matula. Por essa volta, o jacaré mesmo
combatia também, às vezes em que não estava cozinhando, e vinha
atirar, da beira duma janela, com o Mijafôgo. A noite breava
própria; o mais escuro ia ser regulando em antes das dez horas, que
quando depois podia subir um caco de lua. Aos poucos, foi dando
um tão respeitável silêncio, não se atirava de parte nem
de outra, a gente mesma ficava na cautela de não se fabricar rumor

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nenhum, de não se pautear sem necessidade. De noite, o clarão
das pólvoras marca denúncia do lugar do atirador. - "Noite é
p'ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no usável..." -
oAlaripe baixo falou. O cearense bom: esse permanecia em tudo
igual, com ele a gente desproduzia qualquer remorso, o brigar
parava sendo obrigação de vivente, conciso dever de homem.
Por uns assim, eu punia. Por uns, assim, eu devia de ser inteiro
leal, eu mesmo. Mas, então, eu carecia de encostar Zé Bebelo, o
espremer na franca fala. A que ele soubesse de minha lei: a que
ele sem um aviso não se desgraçasse. Mesmo por causa da gente
- porque Zé Bebelo era a perdição, mas também só ele podia
ser a salvação nossa. Então, com ele eu ia falar, o quieto desafio.
Adiantava? Aí não adiantasse. Mas, então, eu carecia de armar
um poder, carecia de subir para cima daquele homem. Eu tinha
de encher de medo as algibeiras de Zé Bebelo. Só isso era o que
valia.

Contra o quanto, ele lavorava em firmes, pelo mais pensável,
não descumpria de praxe nenhuma. Determinou o pessoal, para
sono e sentinela, revezados. Onde perto de cada um dormindo
um parava acordado. Outros rondavam. Zé Bebelo, mesmo, ele
não dormia? Sendo esse o segredo dele. Dava o ar de querer
saber o mundo universo, administrava. Ao quase, que. A água
para a serventia da casa vinha num rego, que beirava a cozinha
encostado, no lateral, descia e passava ainda por baixo da
coberta. À gente podia encher as latas, sem arrisco. "O que eles
hão-de, é de demover o rego, lá em riba, botar fácil a gente a
seco..." - Zé Bebelo ponderou. Mandou reservar quantia repleta: as
vasilhas achadas e procuradas. Fizemos. Mas, de destorcerem o
veio do rego, nunca que sucedeu aquilo. Até o derradeiro final,
correu água bastante, todo o tempo, fresca abarulhava. Ao se
fossem também empeçonhar o de beber? Toleima. Aonde iam
ter sortimento de veneno, para águas correntes corromper?

Deus escritura só os livros-mestres. Na noite Zé Bebelo saíu,
engatinhando por mais escuro, e revestido com as roupas bem
pretas que arranjou, dum e doutro. Ele devia de ter ido até
longe, como rato em beira de paiol que coruja come. Queria era
farejar com os olhos o reprofundo. Voltou, aí deu ordem de
outra coisa: que todos aproveitassem o sem-lua para suas
necessidades boçais, aquelas tapadas estâncias. A gente ia, num vão de
buracos, da banda das senzalas. Assim Zé Bebelo instruiu; e se
virou para mim. "Inimigo que faz igual numeração, ou menor
do que a nossa. Por via disso é que não tomam coragem de dar
assalto, e é também que eles não conhecem o interior desta boa
casa..." Falou o tanto, comigo. Por que era que ele me escolhia,
para os sussurros segredar? Me achava comparsa? - "... Os
beócios, sem idéias... Não chegam a ser contrários para mim!"

ele muxoxou, até desapontado. A modo que eu, em Zé
Bebelo, quase que tinha perdido toda minha fiança. A amizade dele eu
para longe de mim já encostava porquanto que, por mão
minha, no incerto, ele podia ainda vir a precisar de ser matado. Eu
estava em claro. Eu tinha preenchido aqueles bilhetes e cartas,
amanuense, os linguados de papel - eu compartia as culpas. A
invencionice de ambicioneiro. "Riobaldo, Tatarana, tu vem
comigo, porque tu é ponteiro bom, fica de estado-maior meu..."
- ele avolumou. Me inteirei. Ali, era a vez.
Ali Era a alçada para EU fazer E falar o que já disse, que eu
estava com essa razão na cabeça. Se tanto, pensei: "É a minha
viveza..." Pelo que repontei:

- "É. Eu vou, com o senhor, e o urucuiano Salústio vem
comigo. Vou com o senhor, e esse urucuiano Salustio sem
comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou junto

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perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que será
vai ser ou vai não ser..." alastrei, no mau falar, no gaguejável.
Senhor sabe por que? Só porque ele me mirou, ainda mais mór,
arrepentinamente, e eu a meio me estarreci apeado, goro.
Apatetado? Nem não sei.Tive medo não. Só que abaixaram meus
excessos de coragem, só como um fogo se sopita. Todo fiquei
outra vez normal demais; o que eu não queria. Tive medo não.
Tive moleza, melindre. Aguentei não falar adiante.
Zé Bebelo luziu, ele foi de rajada:

"Ao silêncio, RiobaldoTatarana! Eh, eu sou o Chefe!?..."

Saiba o senhor lá como se diz no vertiginosamente:
avistei meus perigos. Avistei, como os olhos fechei,
desvislumbrado. Aí como as pernas queriam estremecer para amolecer. Aí
eu não me formava pessoa para enfrentar a chefia de Zé Bebelo?

Agora, pois. Mas agora não tinha outro jeito. Ah? Mas, aí,
nem sei, eu não estava mais aceitando os olhos de Zé Bebelo me
olhar. "No mundo não tem Zé Bebelo nenhum... Existiu, mas
não existe... Nem nunca existiu.. Tem esse chefe nenhum...Tem
criatura nem visagem nenhuma com essa parecença presente neni
com esse nome..." - eu estabeleci, em mansas idéias, Aceitei os
olhos dele não, agarrei de olhar só para um lugarzinho, naquele
peito, pinta de lugar, titiquinha de lugar aonde se podia
cravar certeira bala de arma, na veia grossa do coração... Imaginar
isso, no curto. Nada mais nada.Tive medo não. Só aquele
lugarzinho mortal.Teso olhei, tão docemente. Sentei em cima de um
morro de grandes calmas? Eu estava estando. Até, quando minha
tosse ouvi; depois ouvi minha voz, que falando a dável resposta:

"Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada...
Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a coisinha
nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma
de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De
nada... De nada.."

Ao dito, falei; por que? Mas Zé Bebelo me ouviu,
inteiramente. As surpresas. Ele expôs uma desconfiança perturbada.
Esticou o beiço. Bateu três vezes com a cabeça. Ele não tinha
medo? Tinha as inquietações. Sei disso, soube, logo. Assim eu
tinha acertado. Zé Bebelo então se riu, modo generoso.
Adiantava? Ainda falou: "Ah, qual, Tatarana. Tu vale o melhor. Tu é
meu homem!..." - para alargamentos. Murmurei o sôsso de
coisa, o que nem era palavras. "A bem, vamos animar esses
rapazes..." amém, ele disse, espetaculava. Daí desapartamos,
eu para a cozinha, ele para a varanda. O que eu tinha feito? Não
por saber mas somente pelo querer eu tinha marcado.
Agora, ele ia pensar em mim, mas meditado muito. Achei.
Agora, ele ia não poder trair, simples, mas havia de raciocinar as
vezes, dar de rédea para trás - do avançado para traição. A certa
graça, a situação dele, aparvada. Eu estava com o bom jogo.

Aquela noite, meu quinhão dormi; no amiudar-do-galo o
tiroteio já principiava renovado. Mas só os tiros espaços para
não esperdiçar, e render porque eles estavam procedendo
como nós, o igual imediato. A guerra fina caprichada, bordada
em bastidor. Fui ver o madrugar a manhã: uma brancura, O
senhor sabe: no levante, clareou o céu com o sol das barras. Mas o
curralão já estava pendurado de urubús, os usos como eles
viajam de todas as partes, urubu, passarão dos distúrbios. E,
quando dava que rondava o vento, o curral fedia. Mas perdoando
Deus tresandava mais era dentro da casa, mesmo sendo enorme:
os companheiros falecidos. Se taramelou o quarto, por tapar
a soleira da porta se forrava com algodão em rama e aniagens, O
fedor revinha surgindo sempre, traspassava. A tanto, depois, a
gente ouviu miados. "Sape! O gato está lá..." algum gri-

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tou. Ah, era o gato, que sim. Saiu, soltado, surripiadamente,foi
tornar a se ocultar debaixo dum catre, noutro cômodo. Carecia
de se oferecer a ele de comer, que quem bem-trata gato
consegue boa-sorte. No menos, na sala-de-fora, ocupei meu ofício, de
mosquetear. A ganho, conforme as vazas, mais de um homem
derrubei, que rolou, em réu, sei que defini. Avistante que os
urubús já destemiam o se combater dos tiros, assaz eles
baixavam, para o chão do curral, rebicavam grosso, depois paravam às
filas, na cerca, acomodados acucados. Quando pulavam de asas,
abanassem aquele fedor. O dia andando, a catinga no ar
aumenta. Aí eu não queria provar de sal, foi farinha seca, com punhado
de rapadura. Na casa toda, como que não se achava um litro de
cal, um caneco de creolina, por vil remédio. Morreu o Quim
Pidão, se botou o corpo por cima dum banco na sala, proxisóriu.
ninguem não queria mais coragem de ir abrir com presteza
quarto dos defuntos. O dia envelhecia. A roubo, estive perto
de Diadorim, quase só para espiar, quase sem a conversação. De
ver Diadorim, com agrado, minha tenência pegava a se
enfraquecer. Outros receios eu concebendo. O prazo que ali assim
íamos ter de tolerar, no carrego da guerra. A gente até carecesse.
no derradeiro durar, de comer somente os couros assados -
conforme ocaso terrível de Potra Cunha, de um diabo, que, em
sua fazenda do Canindé, resistiu ao cerco de Cosme de Andrade
e Olivino Oliviano. Esse Dutra Cunha era o homem de um olho
só. Zé Bebelo bem sabia a história dele. Agora, de Zé Bebelo eu
risse. Montante de outras coisas ainda podiam suceder, de desde
a madrugadinha até à viração da tarde? Mas ninguém falava em
Joaquim Beijú e no Quipes. A uma hora dessas, ou eles já
estavam arriados pelo inimigo, ou então, traquej ando nos caminhos,
a rumo de cidades. Assim - entardecer, anoitecer -
galopassem em algum cavalo arranjado nos campos, e o tempo da gente
eles estendiam. Será que haviam de vir os soldados? Aquele
outro dia, morreu mais o Acerêjo. A tudo, o cheiro de morte velha.

- "O mau-fétido que vai terminar mazelando a gente..."

sempre um dizer. A dita morrinha, até a água que se bebia pegava
na boca da gente. e rançava. A Casa dos Tucanos aguentava as
batalhas, aquela casa tão vasta em grande, com dez janelas por
banda, e aprofundada até em pedras de piçarrão a cava dos
alicerces. A Casa acho que falava um falar - resposta ao assovio
assovioso - a quando um tiro estrala em dois, dois. De embiricica,
entrantes as balas vinham, puxavam um fio de ar. Eh, lascassem!
Mas os companheiros por conta à toa riam, não acrescentavam
cangalha aos pesares. Mesmo, quando se sobrecarregava um rir,
os que estavam mais longe mandavam saber o porquê, ou gritavam
por perguntar, em empenho de combate. A resto, um Zé
Vital deu ataque: o qual era um acesso sacramentado de feioso,
principiando depois que ele se queixava de sentir o nariz quente,
ele mesmo já sabia a data e daí proclamava um grito de porco
com frio, e caía estatelado no chão, duro como um cano de arma;
mas atanazava batendo com os braços e pernas, querendo as
ansias coisa ou criatura em que se agarrar, o onde esbugalhava os
olhos, a boca aspumada, escumando. Se disse: - "Isto é doença
velha pertencida. isto não é fato de guerra..." Acesso que passava
a estado meio semi-morto, num vago - pois deitaram o Zé
Vital numa canastra de couro. Ao para a tarde, para a noite. Aí
tudo navegava. A Casa estava se enchendo de moscas, dessas de
enterro, as produzidas. A cada que cada, elas presumiam o sujo,
em penca maior, pretejavam. Para as coisas que há de pior, a gente
não alcança fechar as portas. Desdenhei Diadorim. De ver
Diadorim, que, em febre de acertar e executar, não tomava
consigo muita cautela, só forcejava por vingança - punições
maravilhosas. Diadorim, mesmo, a cara muito branca, de da alma não

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se reconhecer, os olhos rajados de vermelho, o encôvo. Aquilo
era o crer da guerra. Por que causa? Porque Joca Ramiro
constava de assassinado morrido? A razão normal de coisa nenhuma
não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que é a força - e
que a gente não sabe - assombros da noite. A minha terra era
longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar. A Bigrí
mulher minha mãe, não tinha me rogado praga. Alta manhã
em tudo repetido o igual: o cantar do rifleio, afora o feder ruim
dos mortos e cavalos, e a moscaria, que se esparramava. Mesmo
com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido
ali, no extrato, no meio daquela diversidade, despropósitos,
a morte da banda da mão esquerda e da banda da mão direita,
com a morte nova em minha frente, eu senhor de certeza nenhuma.
Sem Otacília, minha noiva, que era para ser dona de tantos
territórios agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes e
veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a
desordem da vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz que me
aconformar com aquilo eu não queria, desCido na inferneira.
Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu, para se ter um
recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas últimas. Eu queria
minha vida própria, por meu querer governada. A tristeza, por
Diadorim: que o ódio dele, no fatal, por uma desforra, parecia
até ódio de gente velha sem a pele do olho. Diadorim carecia
do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via. Dois rios
diferentes - era o que nós dois atravessávamos? Do lado de
Diadorim restei, um tanto, no afã de escopetear. O inimigo nunca se
via, nem bem o malmal, na fumacinha expelida, de cada uma
pólvora. Arte, artimanha: que agora eles decerto andavam
disfarçados de embaiá - o senhor sabe - isto é, revestidos com
môitas verdes e folhagens. Adequado que, embaiados assim
sempre escapavam muito de nosso ver e mirar. Ah, mas, deles, tiros
vinham, bala estripitriz, e o trapuz de nossas telhas se
despencando. A mãe morte. Quem devia mais, esse morria? "Ô xente!
Não é que pegaram em mim, e eu estou passando, estou ficando
cegado?..." exclamou o Evaristo Caitite, quando descuidou a
meia-banda e levou em si uma carga total. Ele já estava sem jogo
nenhum no corpo, as partes das pernas se esfriavam. Antes quase
rindo se acabou; ficou tão de olhos. - "O que é que ele vê? Vê a
vitória!..." Zé Bebelo se cresceu no dizer. A vitória e os urubus,
que a farto comiam, e o Manuelzinho-da-Croa, meu cavalinho
pedrês, que eu nele não ia poder nunca mais àmontar.
Assustava era o alopro dos companheiros, que não se sujeitavam
mais de dormir, estavam pertencidos perturbados. A caso de se
ter mão na nervosia deles, que queriam dar saída e lanços, avançar
no ar. Doidagem desses comuns repentes, o desfazer do ajuntado.
- "A firmeza, meus filhos. Fôlego e paciência, a gente
sempre tem - é só requerer e repuxar, mais um dedo e outro
dedo dobrado..." - Zé Bebelo media os modos de valer. Assim
sendo, agora, só o remedeio, com as esperanças, extraordinárias.
A um jeito de se escapar dali, a gente, a salvos? Zé Bebelo
era a única possibilidade para isso, como constante pensava e
repensava, obrava. E eu cri. Zé Bebelo, que gostava sempre de
deixar primeiro tudo piorar bem, no complicado. Um gole de
cachaça me deu bom conselho. Sem a vinda dos soldados - se
viessem - a gente não estava perdidos? Zé Bebelo não era quem
tinha chamado os soldados? Ah, mas, agora, Zé Bebelo não ia mais
trair, não ia - e isso só por minha causa. Zé Bebelo carecia
de rédeas de um outro diverso poder e forte sentir, que tomasse
conta, desse rumo a ele. Assim eu estava sendo. Eu sabia. Zé
Bebelo, mesmo nos relances de me olhar, fingia não conhecer
minha vigiação, afetava. Mas ele se estreitava em meus palpos,
conscienciado. Agora, ele tinha de especular, de afinar a cabeça,

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para o trabalho de imaginar maior, achar alguma outra invenção
- para resolver o final com acerto para a vitória de nós todos
- sem traição nem airagem. A tanto, cri, acreditado. Sabia
que Zé Bebelo era muito capaz. Só não ri. "Ao menos outro deles,
dos Hermógenes, quero ver se resgato de abater, até vir o
sereno do anoitecido..." eu meditei. Não deu. Não pude. O
que houve, o conseguinte, foi que Zé Bebelo pegou em meu
ombro. Ele mudou de lugar, e pôs a cara no meio da luz. "Ai,
está ouvindo,Tatarana Riobaldo, está ouvindo?" - ele diSse, com
um sorriso de tão grandes brilhos, que não era de ruindade
nem de bondade. Aquilo foi num dia, devia de estar sendo por
volta de umas três da tarde, pelo rumo do sol. Ouvi!

Mas então, a soldadesca tinha vindo, alcançada, estavam
chegando? Era. Era! Remexendo um rebuliço, de nós todos, mesmo
porque os mais não conheciam aquele mOtivO, de nada. não
soubessem o tencionado. Os praças? O tiroteio deles, pegando
hermógenes de supetão, surpresa bruta, de retaguarda. Os tiros,
que eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... a bala:
bá!... - desfechavam com metralhadora. Aí arrejarrajava, feito
um capitão de vento. Até destroçavam também nas custas da Casa?
"Apre, meninos, faz mal não. A vantagem do valente é o silêncio
do rumor..." - Zé Bebelo sentenciava. Zé Bebelo trepava em
altas serras. Duvidava de nada. Que vencia! Quem vence, é
custoso não ficar com a cara de demônio.

Dele de perto não saí, a atenção e ordem ele recomendava.
O cano de meu rifle era tutor dele?Antes de minha hora, no que
ele mandasse opor e falasse eu não podia basear duvidas. Mas,
desde vez, aquilo a vir gastava as minhas forças. Ali - sem a
vontade, mas por mais do que todos saber - eu estava sendo o
segundo. Andando que Ze Bebelo falecesse ou trastejasse, eu
tinha de tomar assumida a chefia, e mandar e comandar? Outro
fosse eu não; Jesus é guia! É baixo, os homens não iam me
obedecer; nem de me entender eles não eram capazes. Capaz de
me entender e de me obedecer, nos casos, só mesmo Zé Bebelo.
Ajus - pensei - Zé Bebelo, somente, era que podia ser o meu
segundo. Estúrdio, isso, nem eu não sabendo bem por quê, mas
era preciso. Era; eu o motivo não sabendo. Se fiz de saber, foi
pior. O que é que uma pessoa e, assim por detrás dos buracos
dos ouvidos e dos olhos? Mas as pernas não estavam. Ah, fiquei
de angústias. O medo resiste por Si, em muitas formas. Só o que
restava para mim, para me espiritar era eu ser tudo o que fosse
para eu ser, no tempo daquelas horas. Minha mão, meu rifle. As
coisas que eu tinha de ensinar à minha inteligência.

Agora, o que era que se esperava? Só Zé Bebelo decerto
podia responder, mas ele não dava senha de mudança. Onde o
normal. Aí já se via o dia quase em fim, com as cores do sol. Voavam
uns guaxes. Dos soldados e dos judas, quase que não se ouvia
empipoco de arma, só os tiros salteados, a cá e lá, como se
escasso quisessem briga. A gente sobrossosa, nesse ensino de
onça, traiçoeiros todos. Astúcias que manobrando em esconso deviam
de estar, para trás e para os lados, pelo jeito melhor de pegarem
o encoberto dos lugares, querendo enrolar os outros, para o
remate de dar bote. - "Soldado pede é cautela, e o dobro
soldo..." - acho que um disse. Aquela era a ocasião mais arriscada.
Ao que jagunço é isto - o senhor ponha letreiro. Ao encosto no
rifle e apreparo nas patronas - isso era o que bastava. Nenhum
dos companheiros estava desinquieto, nem ralava apreensão.
Nenhum conversava precisando de saber a maneira de se escapulir
vivos dali, da Fazenda dosTucanos. Com a chegada da soldadesca
o que parecia moagem era para eles era festa. Assim uns
gritaram feito araràs machas. Gente! Feito meninos. Disso eu fiz
um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim.

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Então, eu não era jagunço completo, estava ali no meio
executando um erro, Tudo receei. Eles não pensavam. Zé Bebelo, esse
raciocinava o tempo inteiro, mas na regra do prático. E eu?Vi a
morte com muitas caras. Sozinho estive o senhor saiba. Mas
nisso, conforme o acontecido exato, uma coisa muito inesperada
se deu. Da banda do mato, de repente, por cima das môitas de
lobolobo, alguém levantou um pano branco, na ponta de uma
vara.
A gente não tinha licença de abrir fogo no alvo daquele
trapo. Apraz que a gente ia consentir em negócio com os judas?
Aqueles, para mim, guardavam a definitiva marca, e só o que
podiam trazer era a maldição. Mas Zé Bebelo, maneiro em
presteza, já tinha amarrado um grande lenço branco na ponta de um
rifle, e mandou que o Mão-de-Lixa aquilo erguesse e sacudisse
no ar. - "A regra que é regra!"- Zé Bebelo disse "A
solenidade de embaixador sempre se tem de consentir; até para
herege, até para bugre..." Aprovavam, os outros, deram razão. Achei
que estavam com a vontade de saber que noticias eram, o que vir
vinha. Com o que mais admirei: a mensagem daqueles panos
brancos, de lá e de cá, durou um certo tempo. Como tudo nesta
vida carece de direito se acertar.
Depois, um sujeito apareceu, do capim, e veio, devia de ter
passado por um rombo feito na cerca. A certa distância estava,
no eirado, e um dos nossos disse, reconhecendo: "Ah, é o
Rodrigues Peludo, homem devoto do Ricardão..." Que era, que
era os outros companheiros concordaram. Atras desse, meio
engatinhando também, surgiu mais um: "É o Lacrau!" E o
Rodrigues Peludo virava para trás, falava qualquer coisa, parecia
que estava mandando o Lacrau ir s'embora. Mas o Lacrau teimava,
seguia acompanhando o outro. "Xente, dond'é que está
se comparecendo esse Lacrau? Faz tempo que não se tinha
ciência nenhuma dele..." O qual era dos Gerais do Bolôr, terra
jequitinhonha, e homem de certa valia. Caboclo claro. E que, ele
sendo réu, tinha esfaqueado na sala de júri um promotor, em
outroras. De ver os dois, perto, assim pessoas, escada acima, e
presentes em pé, diante da gente, nas decididas condições, achei
muita esquisitice. Rodrigues Peludo levantou os olhos, feito se a
gente estivesse no céu, e saudou normal. Daí disse:

- "Seô Chefe..."

- "Homem, te vira de costa!" - Zé Bebelo regrou.

No assim simples eles obedeceram, tanto um, tanto o outro.
Mas estavam muito armados. Momentos que foram, eu louvei a
coragem calma daqueles dois, que de qualquer longe recanto um
soldado talvez estivesse em poder de derrubar por belprazer.
Porque os soldados não pertenciam nessa cerimônia. Afiguro o
que pensei.

E Zé Bebelo perguntou, impondo ordem de resposta: que
mandatela eles traziam? Do lado meu, o Diodôlfo chiava boca
num dente, conforme Sestro dele, e o José Gervásio sussurrou:
- Tramóia..." Mas Zé Bebelo regia tudo, mão em revólver.
Um homem falar seu recado, de costas, no meio dos contrários,
na boca de tantas armas - o senhor já presenciou essas
circunstâncias? Assim o Rodrigues Peludo deu conta, sem rasgo de
tremor na VOZ:

- "Com sua licença dada, e nos usos, estou trazendo estas
palavras, Seô Chefe, que para repetir ao senhor fui mandado: -
Que, em vistas desses soldados, e do mais, que é contra todos, se
não era mais aproveitável, para uma parte e outra, de se fazer
trato de paz, por uns tempos... E por essa oferta é que venho,
por ordens. Que se serve, ou valor tem, o dito - pergunta
faço; e se o senhor há de estar ou não de acordo, me dando a
resposta que queira dar, para eu levar para os meus chefes..."

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"Que chefes?" Zé Bebelo indagou, sem tom de
nenhuma malícia.

Rodrigues Peludo demorou um ponto, fazendo menção de
virar o rosto, mas o que deixou em tempo de fazer. E contestou:
- "Nhô Ricardão. E seô Hermógenes..."
- "E eles então estão querendo paz?"
- "Estão propondo um acordo correto..."

Em boa distância, do mato do grotal, estralejou um tiro, que
era de fuzil. E uns outros, muito estampidos. O que aquilo me
constou era que era falta de respeito. Tiros que não beiravam por
aqui. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo disse:

- "Homem, vocês podem abaixar o corpo."

Rodrigues Peludo, sempre de costas, se agachou, depositou
o rifle no chão; o Lacrau meio ajoelhado ficou. Agora eles
estavam entre trincheiras.

Agora a roda nossa, ajuntados os muitos companheiros
brabos, com a balagem da boa cachaça: o Marruaz que representou
a dedo O sino-salomão no peito, no rumo do coração; o Preto
Mangaba, que, mudando de estar, esbarrou em mim - do que
me lembro e sei, porque doeU em meu braço; e Diodôlfo cuspio,
forte - soluçou dos estômagos. E o Fafafa, repontante: - "Em
paz, quem é que devolve vida em nossos cavalos?!" Aí o
Moçambicão, atrás de mim, me ressoprou, como um boi reconhecendo
minhas costas. Mas minha mão, por si, pegou a mão de
Diadorim, eu nem virei a cara, aquela mão é que merecia todo
entendimento. Mão assim apartada de tudo, nela um suave de ser era
que me pertencia, um calor, a coisa macia somente. São as
palavras? Mas aí espiei para Diadorim, e ele despertou do que tinha
se esquecido, deixado, de sua mão, que ele retirou da minha
outra vez, quase num repelão de repugno. E ele estava sombrio, os
olhos riscados, sombrio em sarro de velhas raivas, descabelado
de vento. Demediu minha idéia: o ódio é a gente se lembrar
do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da
gente. - "O palavreado, destes!" Diadorim chiou, por
detrás dos dentes. Diadorim queria sangues fora de veias. E eu não
concordava com nenhuma tristeza. Só remontei um pasmo e um
consolo expedito; porque a guerra era o constante mexer do
sertão, e como com o vento da seca é que as árvores se entortam
mais. Mas, pensar na pessoa que se ama, e como querer ficar à
beira d'água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso
esbarre de correr. E Alaripe buliu no bissaco, estava recheando de
novo as suas cartucheiras. Mas isto tudo, que conto ao senhor, se
compartiu de caber em pouquinhos minutos instantes. E do modo
de um prosseguir sem partes. Porque Zé Bebelo, as mãos na
cinta, se encurtava frio em siso, feito uma a cobra. O que disse, o
quanto:

"Homem, e o que mais?"

"Era tudo o que eu já falei, Chefe, seô. Ao que peço vossa
resposta, para conduzir. E em caso de algum acordo, que é de
bom respeito, as ordens tenho, para com meu juramento, fechar
trato..." - foi a resposta de Rodrigues Peludo, com a clara voz
de quem está mais cumprindo do que querendo. Até inveja eu
tive dele: porque, para viver um punhado completo, só mesmo
em instâncias assim.

"Antes bem" - Zé Bebelo glosou, - "quem é que está
rodeando e vexando os outros, e atacando?"
"O em usos... - é a gente... Isto é..." - o Rodrigues
Peludo compôs o confessar.

"Ah. Isto era. Ah, e então?!"

"Ao que vim ajustar é propostas. Ao para salvo e lucro das
nulas partes. As ambas. Caso se vossa Seoria se concorde..."

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Somenos aprumo, nem o tom. Mas, de tudo seja, também, o
que gravei, ai, desse Rodrigues Peludo, foi um ter-tem de
existidas lealdades. Assim que, inimigo, persistia só inimigo,
surunganga; mas enxuto e comparado, contra-homem sem o desleixo
de si. E que podia conceber sua outra razão, também. Assim que,
então, os de lá - os judas não deviam de ser somente os
cachorros endoidecidos; mas, em tanto, pessoas, feito nós, jagunços
em situação. Revés que, por resgate da morte de Joca
Ramiro, a terrível que fosse, agora se ia gastar o tempo inteiro
em guerras e guerras, morrendo se matando, aos cinco, aos seis,
aos dez, os homens todos mais valentes do sertão? Uma poeira
dessa dúvida empoou minha idéia como a areia que a mais
fininha há: que é a que o rio Urucúia rola dentro de suas largas
águas, quando as chuvaradas do inverno. Ali, dos meus
companheiros, tantos mortos. Acaso, que companheiros eram; e agora
o que se depositava deles era o assunto de lembranças, e aquele
amassado e envelhecido leder, que as horas repontava. Constado
que produziam isso, mesmo estando amontoados no cômodo
soturno, entrapadas as frestas da porta, e cá fora se torrando
couros com folhas polvreadas. Mediante os estoques desse mau
cheiro, por certo Rodrigues Peludo e o Lacrau iam orçar a boa
conta de nossos mortos, afora os feridos, leves e graves. Mas Zé
Bebelo anteteve de mandar chamar Marcelino Pampa, João
Concliz. e muitos diversos outros, e o apinho e apessoar, nosso,
ombros em ombros, aprazava efeito de bando significado,
numeroso. Com os vivos é que a gente esconde os mortos. Aqueles
mortos - o Jósio, entortado prestes, com pedaços de sangue
pendurados do nariz e dos ouvidos; o Acrísio, repousado numa
agência quieta, que ele não havia de em vida; o Quim Pidão, no
pormiúdo de honesto, que nunca nem tinha enxergado trem-de
ferro, volta-e-outra a perguntar como seria; e Evaristo Caitite,
com os altos olhos afirmados, esse sempre sido prazenteiro no
meio de todos. Tudo por culpa de quem? Dos malguardos do
sertão. Ali ninguém não tinha mãe? Redigo ao senhor: quando o
raio, quando arraso, o Gerais responde com esses urros. A culpa
daquele Rodrigues Peludo, por um exemplo? Desmenti. O ódio
de Diadorim forjava as formas do falso. Ódio a se mexer, em
certo e justo, para ser, era o meu; mas, na dita ocasião, eu daqui-
lo sabia só a ignorância. A-tôa, até, que estava relembrando o
Hermógenes.Assim, pensando no Hermógenes só por
precisão de com alguém me comparar. E, com Zé Bebelo, eu me
comparar, mais eu não podia. Agora, Zé Bebelo, eu - eu, mesmo eu
- era quem estava botando debaixo de julgamento. Isso ele
soubesse? Ah, naquela cabeça grande, o que Zé Bebelo pensava era o
útil, o seco, e a pressa. De curto ponto, ele disse, concedendo
um final:

"Resolvo. Sendo em séria fiança, eu aceito o intervalo de
armas, com o prazo demarcado de três dias. De três dias: digo!
Agora, homem, tu vai remete isto ao que estiver o seu chefe,
seja lá quem."

"A vou..." - o Rodrigues Peludo se prometeu.

"Se sendo em séria fiança, então de lá um dê três tiros,
pra o trato fechado. Assim assente para esta noite: no instinto em
que a primeirinha estrela se frisar!"

"A vou."

O Rodrigues Peludo repuxava bandoleira do rifle e salvava
saudação. Às vozes do ruído, reponho que nenhum de nós não
sabendo se a decisão de Zé Bebelo era justa e convinhável,
ninguém disse mote de dúvida nem de aprovo. Nisso, no olho do
silêncio, ainda era só o que me prevalecia. Rodrigues Peludo botou
o rifle no sovaco, já no jeito de que ia engatinhar descendo a
escada. Mandava a vontade de um, sabente de si. Zé Bebelo

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mandava, ele tinha os feios olhos de todo pensar. A gente
preenchia. Menos eu; isto é eu resguardava meu talvez.
Mas, ai, de abalo, o Lacrau, que tinha persistido quieto
feito ouvindo santa-missa perto do altar, ele surge se vira-virou,
pelo repente, a traque disse:

"Aqui, eu, eu fico no meio de vós, meu Chefe! a que
vim para isto. Sou homem que sempre fui: do estado de Joca
Ramiro - ele é o das próprias cores... Agora, meu braço
ofereço, Chefe. A por tudo quanto, se sepreponha o senhor de me
aceitar..."

A acarra daquilo, tão exclamante, a forte palavra. Assomo
assim de frechar surpresa, a gente capistrou, grossamente, e sem
fala. Tudo o que ele disse, o Lacrau se empinou em-pé. Onde
mais, deixou o silêncio se perfazer da questão anterior a
suplicação, o concitado. O que era fato imponente, digo ao
Senhor; mire veja, mire veja. Ânimo nos ânimos! A quanto.
semelhavelmente, esse Lacrau não se comportava sem
consciência sisuda, no amor mais a-mão, para se segurar com trincheiras;
mas, assim mesmo, a gente em aperto de cerco, ele tinha
querido vir, para sócio. Alguem ficou como pasmado? Zé Bebelo, não.

"Aqui me praz, que te aceito, rapaz!" Zé Bebelo
deferiu.

A guerra tem destas coisas, contar é que não é plausível. Mas,
mente pouco, quem a verdade toda diz. Trás isso, o Rodrigues
Peludo esbarrou, o instante, mas endurecendo a cabeça, para não
se virar para espiar para o Lacrau. Em tanto que o Lacrau, meio
mostrando o rifle, pronunciou: "Estou na regra, tio mano,
que na regra estou, como senhor de minhas ações, contra quem
eu seja. E a carabina - porque sempre foi minha de posse, arma
que de patrão não ganhei. Estou inteiro..." Ninguém respondeu
palavra. Sendo que o Rodrigues Peludo deixou de contravir, e,
puxando pelo sair assim, escorregou adiante o corpo, se foi.

Numa roda-morta, se esperou, té que de lá, da dobrada duma
ladeirinha, os três tiros eles deram, somando o aprovado. A
tanto, tresmente, também se respondeu desfechando. Aí, para a gente
Zé Bebelo disse: "Sou lá o maluco? Aqueles outros não tem a
constância de observar, não merecem a palavra dada. O que fiz,
foi encaminhar o que vamos pôr em obra. E aceitei nossa
vitória!"

Seja ou não se aquele negócio entendessem, os
companheiros aprovavam. Até Diadorim. Seja Zé Bebelo levantava a idéia
maior, os prezados ditos, uma idéia tão comprida. O teatral do
mundo: um de estadela, os outros ensinados calados. Sempre
sendo, em todo o caso, que Zé Bebelo me semi olhava espreita
do avulso, sob receios e respeito. Só eu, afora ele, ali, misturava
as matérias. Só eu era que guardava minha exata esperação, o
que me engraçava. O que era que Zé Bebelo ia proceder, nas
horas vespertinas, no posto-que? Do que ele tinha pensado e
principiado as tramóias de trair - ia poder largar, e achar feição
para outro salvamento, agora, nessa conjunção? Mas, porem, não
nego que eu, mesmo por estima, queria que ele bem acertasse
na tarefa de meter seu siso, de remerecer. O raciocínio, que dele
eu gostava, constante de admiração; e pela necessidade.
Medonho e esquisito achei, que fosse para ter de matar completo Zé
Bebelo. Como é que? Mas ele abria lugar demais, o perto demais,
sobre papel que não era o pra ele, a meu parecer. Pelo que
eu tinha precisão de me livrar, daquele movimento sem termo
nem nenhumas outras ociosidades. O senhor me organiza?
Saiba: essas coisas, eu pouco pensei, no lazer de um momento.

- "Amigos, agora eu louvo e a todos gabo, cada um qual
melhor. E então vamos voltados: papocar fogo, pra paga, até a

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noitinha se ilustrar!" - Zé Bebelo determinou, tão versado. A
este ponto, que, por se possuir basta munição, a gente se prezasse
de atirar, por sustos e estragos, primeiramente para o aviável
do matinho dos pastos e da baixada, e dos morrotes cerradeiros,
onde existiam uns valos. Com o que, no ablativo do mandado,
Marcelino Pampa ia retornar para as senzalas, o Freitas Macho
para a tulha, e para o engenho o Jõe Bexiguento, sobrenomeado
"Alparcatas". Mas Zé Bebelo reservou que eu estivesse com ele e
mais Alaripe, por se pôr o Lacrau em conversa deposta.

Onde o que o Lacrau teve para relatar era pouco, pouco.

Deu razão das coisas perguntadas. Dizendo que o inimigo se
formava em tanto de uns cem, mas a quanta parte deles de jagunços
mal assentados, sem quilates; ainda aguardavam outra gente
por vir, de refrescos, que decerto em pronto não viessem, por
estorvo dos soldados. Nisso não sabia contar das pessoas nem dos
maiores motivos do Hermógenes e do Ricardão, nem acerca da
morte de Joca Ramiro aumentava passagens mais do que as de
todos já entendidas. Daí, no que Zé Bebelo e Alaripe se
afastaram no corredor, ele Lacrau aliviado se gracejou de rosto, como
falou: "O esmarte homem que é este chefe nosso Zebebéo!
Outro não vi, para espiritar na gente o pavor e a ação de
acerto..."As agudezas. A vez da má verdade.

Fomos. Fui. Para o recanto duma janela, nesse comenos. A
pra efetuar fogo. A ordem não era-de? Desígnios esses, de Zé
Bebelo. Sucinto em cada puxada de gatilho, relembrei o dito do
Lacrau: que Zé Bebelo o que era. Sendo que uma criatura, só a
presença, tira o leite do medo de outra. Aí, Diadorim mesmo,
que era o mais corajoso, sabia tanto? O que o medo é: um
produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas se mexe,
sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo,
coisas que só estão é fornecendo espelho. A vida é para esse sarro
de medo se destruir; jagunço sabe. Outros contam de outra
maneira.
A ordem de se jantar, o Jacaré veio avisando. Comi a pura
farinha. Tomei mais. "Os soldados?" era o que mais se
perguntava. Tinham esbarrado tiroteio, a gente não escutava o
costurar. Medido nas suas partes, o dia estava gastado; beirava o
prazo da decisão. Escogitei. "Diadorim, esta noite, no
começo da hora, você vem para perto, me assiste, comigo." Mas
Diadorim contradisse de querer saber que modos meus que eram,
as tantas espécies. Ainda pensei no Alaripe. A ele me fiz. - "A de
paga, amigo. Ora veja..." o Alaripc divertido me achou. De
qual deles, agora, eu ia cobrar e arrecadar? Acauã ou o Mão-de-
Lixa, ou Diodôlfo?Todos seguiam caminho de seus costumes; no
novo não conseguiam de se nortear. Três tristes de mim! Ali eu
era o indêz? Noção eu nem acertava, de reger; eu não tinha o
tato mestre, nem a confiança dos outros, nem o cabedal de um
poder - os poderes normais para mover nos homens a minha
vontade. Mesmo meu braço do ferimento, que já estava muito
melhorado por si, aí tornou a doer, no injusto, em tanto que isto
se passava. Adrede, no retorcer do vento, apurei o rumo de nossos
cavalos, os ossos de feder, só a lástima. Será que eu fix esse por
dever de peitar pessoas? Ah, nos curtos momentos, eu não ia
explicar a eles coisas tão divagadas, e que podiam mesmo não vir
a ter fundamento nenhum. Porque - eu digo ao senhor - eu
mesmo duvidava. Tivesse de vigiar no estreito Zé Bebelo,
àtràvessar o projeto dele se o caso fosse, que modo que eu ia
enfrentar um homem assim? Ah, o julgamento no Sempre-Verde tinha
sido relaxado em brando para valer preços. Zé Bebelo,
sozinho por si, sem outro sohrecalor de regimento, servisse para
governar os arrancos do sertão? "Não me importo... Não me
importo..." - eu quis, com outras palavras tais. Ali eu não tinha

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risco. Ali alguém ia me chamar de Senhor-meu-muito-rei? Ali
nada eu não era, só a quietação. Conto os extremos? Só esperei
por Zé Bebelo: o que ele ia achar de fazer, ufano de si, de suas
proezas, malazarte.

Deu comigo. "Riobaldo, Tatarana..." Anda que me
encarava, os sagazes olhos piscados. Aquele, me entendia; me
temesse? "Riobaldo, Tatarana, vem comigo, quero ver a opinião,
sem sinal nem prova..."Ali me levou para uma janela da cozinha,
de lá a grande espaço se tinha vista para o morro, com seus
matos. Zé Bebelo pegou o caneco, que encheu no pote d'água.
Também bebi. Assim escutei: ele falava comigo, com o efeito de uma
amizade.

- "Rapaz, você é um que aceita o matar ou morrer, simples
igualmente, eu sei, você é desabusado na coragem melhor
que é a da valentia produzida..."

Só mostrei meus ombros; seja que eu secundei.

"A tão bom: que é que eles agora vão fazer, os da banda
contraria?" aí ele indagou de mim.

"Ora... o que não sei, e saber quero, e a gente
que é que a gente agora vai fazer?" perguntei para cima. Outro
tal, repontei: - "Estou em claro. E estou em dúvida. Todo
tempo me gasta..." - isto assim ditO.

Só que Zé Bebelo queria não ouvir, a seu seguro:

"Te põe no lugar. Hem? O que eles fazem é que, a estas
horas, estão no desembargar, para aquele morro, que é aonde
soldados não apertam cerco. De la foram por esse sul abaixo, via
torta; de madruga já por lá, no Buriti-Alegre, que foram surgir,
escrevo. Agora, bem, maximé? e os soldados? Andam
tomando contas daí, que são lugares rededores, salvante a sapata do
morro, e dela os pertos a cava , porque la, conforme a boa
regra de razão, paravam com os tiros sobre si. Oh, se sabe!"

Noves e nada eu não dissesse.

"A bem. Ã e nós?" Zé Bebelo tornou a indagar.

A resposta não dei. Aquilo tudo eu estava pondo de remissa.

- "Ah, tempo de partida! A gente, nós, vamos é rente por
essa cava, Riobaldo, meu filho. Sem tardada porque daqui a
pois sai é a lua, declaradamente..."

Ao que, já se estava no ponto. Anoitecido. A uma estrela se
repicava, nos pretos altos, o que vi em virtude. A estrelinha, lume,
lume. Assim quem era que tinha podido mais? Zé Bebelo, ou
eu? Será, quem era que tinha vencido?

Quite com isso, no cumprir, entreguei os destinos.

O truztruz. Com pouco, nesse passo, os todos homens se
apessoando, no corpo daquele corredor - as fileiras em
mexemexe desde a sala-de-fora até a cozinha, sobre mais entre os
conspirados silêncios, os movimentos com energias. Arte e tanto, Zé
Bebelo expunha o que recomendava. Sempre uma ou outra
lamparina se acendeu, para os companheiros empalidecidos. Agora a
gente ia romper a pé, sem os recursos, dava dó era a quantia de
munição de se largar ali, no se pôr em salvo. Assaz, então. tudo o
que possível se encheu, de balas e caixas os bornais e
capangas, patronas e cartucheiras. Mas não bastava. A ser que, daí, um
inventou uma fronha de cama: a que, presada com correia ou
corda, para tiracol, concabia tiros em boa dose; e muitos assim
aproveitavam, logo não restou fronha a dispor. Mesmo, a alguma
matula, também, se devia, por garantir. Desde aí, no concorrer
se saía por uma porta. O quanto a noite se atravava de bom
grosso. Adiante primeiro foram mandados João Concliz, Moçamhicão
e Suzarte, para reconhecerem se estava limpo o caminho, rumo
de fuga, sem o estorvável. Ponto que os poucos feridos, que
havendo, se queixavam em condições, mesmo o Nicolau, que se
escorava no rifle e as vezes se retardava. Só ficando na Casa os

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mortos, que não careciam de se rezar a eles adeus, os soldados
amanhã que viessem, que enterrassem. Soformamos diversos
golpes, acho que cinco. Diadorim e eu entramos no derradeiro,
com o comando do próprio Zé Bebelo; e com o Acauã, o Fafafa,
Alaripe e Sesfrêdo, que acompanhavam comigo. Saíram os de
primeiramente, iam um ante outro como um rio a buscar
o baixo; ou um cão, cão. A gente demorava. Aquela cozinha
grande, no cabo do negócio, muito aprisionava, de sobreleve; e
contei os companheiros, as respirações. Sairam outros e outros. Dos
dianteiros, nem se percebia rumor. Toda a hora eu esperava um
tiro e um grito de alto-lá-o-rei! Mas era só o tremer daquela paz
em proporção. Admirei Zé Bebelo. A vez nossa chegada, ali o
acostumar os olhos com o outro mudar. Abaixamos, e saímos
também. Semoveu-se.

Livrados! No escuso, o tudo ajudando, fizemos passagem,
avante mais.Tempo que andamos, contracalados, soprando o
sangue para se esfriar; até que se cobrou veras de perigo não haver,
no regozijo de poupados de qualquer espreita ou agredimento.
Se esbarrou, para ar, um sueto de uns momentos. - "Não é quê
o gato ficou lá..." um, risonho, falou. - "Ah, demais. A lá é
Casa..." - outro se pôs. Aquela à-morte fazenda-grande dos
Tucanos.Vai, eu, o cheiro fartado, bom, de folhas folhagens e
capim do campo, enunciou em meu lembrar o mau-cheiro dos
defuntos, que agora próprio no meu nariz eu nem não aventava
mais. E Zé Bebelo, segredando comigo, espiou para trás,
observou assim, pegando na minha mão: "Riobaldo, escuta, botei
fora minha ocasião última de engordar com o Governo e ganhar
galardão na política..." Era verdade, e eu limpei o haver: ele
estava pegando na mão do meu caráter. Aí, aclarava era o fornido
crescente o azeite da lua. Andávamos. Saiba o senhor, pois
saiba: no meio daquele luar, me lembrei de Nossa Senhora.
A de entre, entramos, pela esquerda e rumo do norte.
Desde o depois, o do poente mesmo. Com foras e auroras,
estávamos outra vez no público do campo. Antes da manhã, agora se
passava aVereda-Grande, no Vau-dos-Macacos. Ao que, em
rompendo a luz toda da manhã, se chegou no sítio dum Dodó Ferreira,
onde a gente bebeu leite e os meus olhos pulavam nas árvores.
Aquilo, de verdade, e eu em mim como um boi que se sai da
canga e estrema o corpo por se prazer. Assim foi que, nesse arraiar
de instantes, eu tornei a me exaltar de Diadorim, com esta
alegria, que de amor achei. Alforria é isso. Sobre mesmo a pé, e
com o peso completo, caminhar pelos Gerais parecia que
pouquinho me cansava. Diadorim o nome perpetual. Mas os
caminhos é que estão se jazendo em tudo no chão, sempre uns
contra os outros; retorce que os falsíssimos do demo se
reproduzem, O senhor vá me ouvindo, vá mais me entendendo.

No sítio desse Dodó Ferreira, o Nicolau e o Leocádio iam
ficar acoitados lá, até que pudessem sarar de todo somenos.
Nós, não. De que desde dali, rifles nas costas, riscamos de rota abatida
para o Currais-do-Padre, para renovame; porque lá se tinha
resguardada uma boa cavalaria. A força de inchar pé e esmorecer
pernas, pelo que aquilo nem foi viagem: era rojão de escabrear,
menção de cativeiros. Desgraça de estrada, as pedras do mundo,
minhas léguas arrependidas. De que serve eu lhe contar minuciado
- o senhor não padeceu feliz comigo ? Saber as revezadas do
capim? Ah, então, que foram: mimoso, sempre-verde, marmelada,
agrestes e grama-de-burro. A caminhada é assim, é ser: despesa
grossa, o abalo. Contra a mera vontade, que meio me lembro
aquelas ladeiras de chapadas. Subindo para terreno concertado,
cada tabuleiro que o fim dele é dificultoso, pior do que batoqueira
de caatingal. Os muitos campos, com tristeza agora bota valesse
menos que alpercata. O vento endureceu. Aí passa gavião, apa-

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nha guincho, de todas as estirpes deles o que gaviãozinho
quiriquitou! E lá era que o senhor podia estudar o juízo dos
bandos de papagaios. O quanto em toda vereda em que se baixava, a
gente saudava o buritizal e se bebia estável. Assim que a
matlotagem desmereceu em acabar, mesmo fome não curtimos, por um
bem: se caçou boi. A mais, ainda tinha araticúm maduro no
cerrado. Mas, para balear uma rês da solta, era o mistér de toda
sorte e diligência, por ser um gado estruso, estranhador. O fumo
de pitar se acabando repentino na algibeira de uns e outros -
bondade dos companheiros era que acudia. E deu daquele vento
trazedor: chegou chuva. A gente se escondendo, divididos, em
baixo dos pequizeiros, que tempesteava. Dormir remolhado, se
dormia, com a lama da friagem. De madrugar, depois, se achava
era pé de onça, circulando as marcas. E a gente ia, recomeçado,
se andava, no desânimo, nas campinas altas. Tão território que
não foi feito para isso, por lá a esperança não acompanha. Sabia,
sei. O pobre sozinho, sem um caxalo, fica no seu, permanece,
feito numa crôa ou ilha, em sua beira de vereda. Homem a pé,
esses Gerais comem.

Diadorim vinha constante comigo. Que viesse sentido,
soturno? Não era, não, isso eu é que estava crendo, e quase dois
dias enganoso cri. Depois, somente, entendi que o emburro era
mesmo meu. Saudade de amizade. Diadorim caminhava correto,
com aquele passo curto, que o dele era, e que a brio pelejava por
espertar. Assumi que ele estava cansado, sofrido também. Aí
mesmo assim, escasso no sorrir, ele não me negava estima, nem
o valor de seus olhos. Por um sentir: às vezes eu tinha a cisma de
que, só de calcar o pé em terra, alguma coisa nele doesse. Mas,
essa idéia, que me dava, era do carinho meu.Tanto que me vinha
a vontade, se pudesse, nessa caminhada, eu carregava Diadorim
livre de tudo, nas minhas costas. Até, o que me alegrava, era uma
fantasia, assim como se ele, por não sei que modo, percebesse
meus cuidados, e no próprio sentir me agradecendo. O que
brotava em mim e rebrotava: essas demasias do coração.
Continuando, feito um bem, que sutil, e nem me perturbava, porque a
gente guardasse cada um consigo sua tenção de bem-querer, com
esquivança de qualquer pensar, do que a consciência escuta e se
espanta; e também em razão de que a gente mesmo deixava de
escogitar e conhecer o vulto verdadeiro daquele afeto, com seu
poder e seus segredos; assim é que hoje eu penso. Mas, então,
num determinado, eu disse:

- "Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de
que nunca fiz menção..." - o qual era a pedra de safira, que do
Arassuaí eu tinha trazido, e que à espera de uma ocasião sensata
eu vinha com cautela guardando, enrolada numa pouca de
algodão, dentro dum saquitel igual ao de um breve, costurado no
forro da bolsa menorzinha da minha mochila.

De desde quis falei, Diadorim quis muito saber o presente
qual era, assim apertando comigo com perguntas, que sem
aperreio deixei de responder, até de tarde, quando fizemos estância.
A parança que foi conforme estou vivo lembrado numa
vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais, de agua
muito simplificada. Aí, quando ninguém não viu, eu saquei a
mochila, desfiz a ponta de faca as costuras e entreguei a ele o
mimo, com estilo de silêncio para palavras.

Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem
querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os
olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos.
Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério, apertou os
beiços e sem razão sensível nem mais, tornou a me dar a
pedrinha, só dizendo:

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"Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de
aceitar um presente assim, agora. Aí guarda outra vez, por um
tempo. Até em quando se tenha terminado de cumprir a
vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu recebo..."

Isso, de arrevés, eu li com hagá; e mesmo antes, quando
apontou no rosto dele, para o avermelhar de cor, a palidez de espécie.
Delongando, ainda restei com a pedra-de-safira na mão, aquilo
dado-e-tomado. Donde declarei:

"Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que ja
é o depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por
si, e vingança não é promessa a Deus, nem sermão de sacramento.
Não chegam os nossos que morremos, e os judas que
matamos, para documento do fim de Joca Ramiro?!"

Ah foi ele me ouvir e se encurtar, em duro que revi, que
nem ossos. Ao crespo de um com a afronta a meia-goela e os
olhos davam o que deitavam. O que durou só um átimo, tanto
que ele teve mão em seu genio, conciso com um suspiro; mas
mesmo me retrouxe remoque:

"Riobaldo, você teme?"

Tomei sem ofensa. Mas muita era minha decisão, que eu já
tinha aperfeiçoado lá na Fazenda dos Tucanos, e que só vinha
esperando para executar com mais regimento de ordem, quando
se tivesse chegado no Currais-do-Padre, conforme meu sistema
nesses procedimentos.

"Tem que temerei! Você, aí faz o que em seu querer
esteja. Eu viro minha boa volta..."

Dar o mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. Eu
guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor botei, no bolso do
cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim respirava muito.
Dele foi o relance:
- "Riobaldo, você pensa bem: você jurou vinga, você é leal.

E eu nunca imaginei um desenlace assim, de nossa amizade...

ele botou-se adiante. - "Riobaldo, põe tento no que estou
pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de
uns tempos, é meu pressentir: que você pode mas encobre;
que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a
guerra varia de figura..."

Arredei: "Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me
toca..."

Da maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável
diguice, queria abrandar minha opinião. Então eu ia crer? Então eu
não me conhecia? Um com o meu retraimento, de nascença,
deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros - eu era o
contrário de um mandador. À pra, agora, achar de levantar em
sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos
instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era
para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele, não era para à
força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam
de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai
virando tigre debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão!
Me desinduzi. Talento meu era só o aviável de uma boa pontaria
ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal me ouvia,
achavam que eu era zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo
eu não era capaz de falar a ponto. A conversa dos assuntos para
mim mais importantes amolava o juízo dos outros, caceteava. Eu
nunca tinha certeza de coisa nenhuma.

Diadorim disse: "Ei, retentêia! Coragem faz coragem..."

Demais eu disse: "Sou Capitão-General?!..."

Antes tantas astúcias, em empalhar que eu não fosse
embora, que eu ficasse preso naquele urjo de guerra, sem cabo nem
ponta, sem costas nem frente, e que maçaxa. Recachei. A mão

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dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi afracar. E em duro
repostei, com outra ombrada:
"Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre.
Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no mundo..."
Verdadeiro meu propósito era esse, como está dito. Eu não
caturrava. Eu sou assim amor-com-amor, e ingratidão não. E bem
por isso Diadorim não persistiu, com palavras cordatas; mas por
fim disse, de motêjo, zombariazinha:

"Então, que quer mesmo ir, vai, Riobaldo, eu sei que você
vai para onde: relembrado de rever a moça clara da cara larga,
filha do dono daquela grande fazenda, nos gerais da Serra, na
Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, como
se combinam..."

Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em Otacilia. Nem
maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou:

- "Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de
presente de noivado..."

Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do
cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente
parava debaixo dum paratudo - pau como diz o goiano, que é a
caraíba mesma - árvore que respondia à saudade de suas irmãs
dela, crescidas em lonjão, nas boas beiras do Urucúia. Acolá era
a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, burití
revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos
companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de Diadorim,
nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara já
revoava.

"Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva
para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da
feiticeira... Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do
mundo, dá açúcar e sal a todo passante..."

Não era na Rama-de-Ouro era na Aroeirinha. Mas, por
que era que ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável
lembrança? Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que
eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido. Nhorinhá
- flôrzinha amarela do chão, que diz: - Eu sou bonito!... E tudo
neste mundo podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio.
Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava por
destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazeres e
sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá a sem mesquinhice,
para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que,
de que gostava de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana
Duzuza. O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus
cocos na vereda - as águas levam em beiras, o coquinho as
águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro
se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo.

"Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina.
Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço.
gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor...
Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos
dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem:
camisa de cassa branca, com muitas rendas... a noiva com o
alvo véu de filó..."

Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel
de flôr. E me embebia o que estava me ensinando a gostar da
minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito
se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas
borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé.
Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no
estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com
óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais.
E Otacilia tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto

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íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de
imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília
indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de
tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente
ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o
começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa
sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um
passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de
Diadorim sucedia uma estranhez - alguma causa que ele até
de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga,
muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim
foi que foi. Até que vieram uns companheiros, com João Concliz,
Sidurino e João Vaqueiro, que ajuntaram lenhas e armaram um
fogo bem debaixo do paratudo. Ao relançar das labaredas, e o
refreixo das cores dando lá acima nos galhos e folhas, essas
trocavam tantos brilhos e rebrilhos, de dourado, vermelhos e
alaranjado às brasas, essas esplendências, com mais realce que todas
as pedras de Arassuaí, do Jequitinhonha e da Diamantina. Era dia-
de-anos daquela árvore? Ao quando bem anoiteceu, foi assim. A
gente só sabe bem aquilo que não entende.

O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria
recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial;
mas não posso. Coisas que se deitaram, esqueci fora do
rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum. Acho
que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu
gostava demais dele.

Na surgida manhã, saímos, para a parte final da caminhada.
Zé Bebelo, certa hora, me chamou. Inda que avante, Zé Bebelo
mesmo devia de estar curtindo más e piores: fio que ele
amargava a vitória que tinha inventado. Noção dos inimigos nossos, que
seja lá por onde, puxavam posse de sua munição e de suas
montadas e cargas, socorridos de tudo quanto careciam. "Um
Hermógenes quer tomar conta do sertão dos Gerais..." eu
tirei liberdade para dizer. Mesmo mais indiretas disse; e isso me
realiviou, no dizer, pouco somente, que era só por picardia.
Direto, disso, Zé Bebelo não me respondeu; ele pensava as mil
coisas. Em tanto, nesses cálculos de meditação, ele ligeiro
sobrezumbia com os beiços, e balangava às esquerdas-e-direitas as abas
enfunadas do chapéu; e às vezes assoprava sem ser por cansaço
de marcha. O que das idéias sobrava, era que ele referia: "Ainda
não entendo... Ainda não entendo... Até agora, reconheço, ele
tem tido uma sorte... Sapo sem-colarinho, rei-gordo... Mas, deixa
a gente ir e vir, que os ovos e dúzias ele paga! ..." Do
Hermógenes discursava orçamento do Hermógenes. E, de ouvir que à
sorte do Hermógenes existia alta, isso me penou, tanto me
certificava. Aí fiquei a menos. Nem eu não queria arreliar Zé
Bebelo. Mas, para mim, ele estava muito errado: pelos passos e
movimentos, porque gostava prático da guerra, do que provava um
muito forte prazer; e por isso não tinha boa razão para um
resultado final. Assim achei, espiando o alto céu, que é com as nuvens
e os urubús repartido. Deponho: de que é que aqtlilo me
adiantava? E chuvas dadas, derramadas. Aí, vai, chegamos no Currais-
do-Padre.

O lugar que não tinha curral nenhum, nem padre: só o
buritizal, com um morador. Mas o ao em redor, em grandes
pastos, era o capim melhor milagroso - que o que deixava de ser
provisório rico era o meloso de muito óleo, a não ver uns fios do
santa-luzia azul, e do duro-do-brejo, nas baixadas, e, nos altos
com pedregal, o jasmim-da-serra. De lá vinham saindo
renascidos, engordados, os nossos cavalos, isto é, os que tinham sido de
Medeiro Vaz, e que agora herdávamos. Regozijei. Ëscolhi um,
animal vistoso, celheado, acastanhado mundo, que vem me pa-

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receu;e dei em erro, porque ele era meio sendeiro e historiento.
Daqui veio que o nome que teve foi de "Padrim Selorico". Mas o
dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo
possuia um livro, capeado em couro, que se chamava o "Senclér das
Ilhas", e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o
primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só tinha
conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito
a extraordinárias.
Além de que, tudo o que eu tivesse de resolver, de minha
vida, fui deixando para os seguintes. Dia de ser de chuva, que
madrugou tarde: boi nos cinzentos. E os pássaros de passagem
precisavam de gritar muito uns para os outros. Diadorim
moderava o falar comigo, e me ver, recolhido em certo vexame,
receoso; eu achei. Já disse ao senhor? dia a dia ele raiava, em
formosura. E chuva alta, que envinha, estava mandando urubú
voar para casa. Os cavalos pastavam com mais pressa. Nunca, em
todos meus tempos, eu vi inverno tamanho demorado. Era para
espera. Mesmo assim, Zé Bebelo pôs ordem de se ir. Porque
estávamos quase todos montados em pêlo, carecíamos de tocar
para o Curral Caetano, onde se tinha quantidade grande de
arreios guardados. Depois, daí, para buscar munição, na Virgem-
Mãe. Prazo não se perdia. Aos caminhos barrancosos, de sopega,
feito torrão de açúcar preto se derretendo, empapados. Aos
barros fomos, como perdidas criaturas, de se rir, se chorar. É
mas o senhor sabe o que isso é? aqueles nossos cavalos não
tinham ferraduras.
Pra mais onde? Ah, aonde os altos bons: o Chapadão do
Urucúia, em que tanto boi berra. Mas nunca chegamos nem na
Virgem-Mãe. Afiguro, desde o começo desconfiei de que estávamos
em engano. Rumos que eu menos sabia, no viável. Como a
serra que vinha vindo, enquanto para ela eu ia indo, em tantos
dias: longe lá, de repente os olhos da gente percebem um fio de
tremor - se vê é um risquinho preto, que com léguas andadas
vira cinzento e vira azul - daí, depois, parede de morro se faz.
No arquear dali, foi que se pegou o primeiro caminho achado,
para se passar. Bem baixamos. Os rios estavam sujos, em
espumas. Não havendo a ajuda de Joaquim Beijú, que estava dando
para dela se sentir falta. Zé Bebelo, em assarapanto, até os dedos
da mão dele não deixavam de se perpassar, contando rosário nas
tiras da rédea. Que andávamos desconhecidos no errado. Disso,
tarde se soube quem que guiava tinha enredado nomes: em
vez da Virgem-Mãe, creu de se levar tudo para aVirgem da Laje,
logo lugar outro, vereda muito longe para o sul, no sítio que tem
engenho-de-pilões. Mas já era tarde.

Trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua
lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de vez,
não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos Gerais
um calor terrível. Aí, quem sofreu e não morreu, ainda se lembra
dele. Esses meses do ar como que estavam desencontrados.
Doenças e doenças! Nosso pessoal, montão deles, pegou a
mazelar. Mas isto eu refiro depois. O senhor já que me ous iu até
aqui, vá ouvindo. Porque está chegando hora d'eu ter que lhe
contar as coisas muito estranhas.

Quadrante que assim viemos, por esses lugares, que o nome
não se soubesse. Até, até. A estrada de todos os cotovelos.
Sertão, se diz , o senhor querendo procurar, nunca não
encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão
vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o próprio, mesmo. Ia
fazendo receios, perfazendo indagação. Descemos por umas
grotas, no meio de serras de parte-vento e suas maes árvores. O
pongo de um ribeirão, o boqueirão de um rio. O Abaete não era;
se bem fosse que parecia: largo rio Abaeté, no escalavrado, beiras

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amarelas. Aquele rio fazia uma grande volta, acolá, clareado,
com a vista de uns coqueiros. Ali era um lugar longe e bonito,
como que me acenava. Mas não endireitamos para ele, porque o
rumo determinado era outro, torando desviado muito,
consoante. E mais maninhava. Topar um vivente é que era mesmo grande
raridade. Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma
mulherzinha fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de
pau, na porta de uma choça, de burití toda. Outro homem quis
me vender uma arara mansa, que a qual falava toda palavra que
tem á. Outra velha, que estava fumando o pito de barro. Mas ela
enrolou a cara no chale, não se ajuizaram os olhos dela. E o gado
mesmo vasqueava: só por pouco acaso um boi ou vaca, de
solidão, bicho passeado sem dono. Veado, sim, vi muitos: tinha vez
que pulavam, num sonhoso, correndo, de corta campo, tanto
tantos uns dois, uns três, uns vinte, em grupos mateiros e
campeiros. Faltava era o sossego em todo silêncio, faltava rastro
de fala humana. Aquilo perturbava, me sombreava. Já depois,
com andada de três dias, não se percebeu mais ninguém. Isso foi
até onde o morro quebrou. Nós estavamos em fundos fundos.
Isto é, nos arrampadouros. Tinha uma estrada, aí na subida
dela houvesse coisas. Uns galhos de árvores colocados -
ramalhos e jaribaras - forma de sinal: para não se passar. Mas esse
aviso havia de ser particular, para o uso de outros, não para o
nosso destino. Não respeitamos, de jeito nenhum. Fomos indo.
No entrar numa guapira, se redobrou o achado daquelas ramas
verdes, que não obedecemos. Eu vinha adiante, com o Acauã e o
Nelson, instruindo o caminho. Já estávamos pelas rédeas, para
outra subida de ladeirà: mas aí escutamos o latir de cachorros. E
enxergamos um homem - no alto da virada - uns homens.
Esses estavam com espingardas.
Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam
manejos para voltarmos de donde estávamos. Por certo não
sabiam quem a gente era; e pensavam que três cavaleiros menos
valessem. Mas, entendendo que do caminho não desgarrávamos,
começaram a ficar estramontados. Um eu vi, que dava ordens:
um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os
outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que
não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos
trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em
lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de jaguacacaca.
Eram uns dez a quinze. Não consegui sentido no que eles
ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas. Queriam cobrar
portagem? Andavam arrumando alguma jerimbamba? Não
vinha avançar assim por cima deles, logo, mas também dar
recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos, neles quase
encostados. Iamos esperar o resto do pessoal. E eles, ali confrontes,
não explicavam razão nenhuma. Só um disse:

-"Pode não... Pode não...

E renuía com a cabeça, o banglafumém, mesmo quando
falava, com uma voz de qualidade diversa, costumada daquela terra
de lugar; e os outros renuindo também: "Ah, pode não... Pode
não..." - com o vozeio soturno.

Nos tempos antigos, devia de ter sido assim.

Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha divulgado
nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se amontar num
jUmento - esse era o unico animal-de-sela que ali tinham. Acho
que montou para oferecer à gente maior vulto de respeito;
tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio vindo, para
primeiro se presenciar. Olhei para todos. Um tinha a barba muito
preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, mesmo em dia de
tão calorosas, ele estava trajado com uma baeta vermelha,

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comprida, acho que por falta de outra vestimenta prestável. Ver
a ver o sacerdote! "Ih! Essa gente tem piôlho e muquiranas..."
- o Nélson disse, contrabaixo. Todos estavam com alguma
garantia: que eram lazarinas, bocudas baludas, garruchas e
bacamartes, escopetas e trabucão - peças de armas de outras
idades. Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito,
mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer
só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saêta.
Um, zambo, troncudo, segurava somente um calabôca, mas
devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O
quanto feioso, de dar pena, constado chato o fôrmo do nariz, estragada
a boca grande demais, em três. Outro, que tinha uma fôice
encabada muito comprido, e um porongo pendurado a tiracol
por uma embira, cochichava com os restantes uma séria falação:
a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito
o demônio gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino
acudia.Todos eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e
polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim
não tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo,
eles eram dôidos. Como é que, desvalimento de gente assim,
podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o
que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem
salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão,
os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, o Acauã
sabia deles. Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem
não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos,
em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e suas mulheres,
seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em
dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes
formando mesmo arruados. Aí plantavam suas rocinhas, às
vezes não tinham gordura nem sal. Tanteei pena deles, grande
pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia?
Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso,
ralando salitre das lapas, manipulando em panelas. Que era uma
pólvora preta, fedorenta, que estrondava com espalhafato,
enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta
fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador.
Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam viver?

E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram a
primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande
número numeroso. Quase eu queria me rir, do susto então dos
catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto
onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que
porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue,
Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para
o da fôice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e que
foi quem veio adiante, saudar Zé Bebelo e render explicação:

"Ossenhor utúrje, mestre, a gente vinhemos, no
graminhá... Ossenhor utúrje..."

Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos
baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos
santos, encomendação de mortos, responsório.

"Ossenhor utúrje, mestre... Não temos costume... Não
temos costume... Que estamos resguardando essas estradas...
De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão
com a doença, que pega em todos... Ossenhor é grande chefe,
dando sua placença. Ossenhor é Vossensenhoria? Peste de bexiga
preta... Mas povoado da gente é o Pubo - que traslada do brejão,
ossenhor com os seus passaram perto de lá, valor distante meia-
légua... As mulheres ficaram, cuidando, cuidando... A gente
vinhemos, no graminhá. Faz três dias... Cercar os caminhos. O
povo do Sucruiú estão dizendo : nem não estão enterran-

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do mais os defuntos deles... Pode querer vir algum, com recado
trazendo a doença, e esta é a razão... Veio um, querendo pedir
auxílios, relatar bobagens, essas mogúncias e brogúncias... Mas
teve de voltar, devéras retornou, não demos passagem. Estão com
a maldição, a urros. Castigo de Deus Jesus! Povo do Sucruiú,
gente dura de rúim... Ossenhor utúrje, mestre: convém
desemmendar deste lado, não passar no Sucruiú, respraz... Bexiga da
preta!..."

E aquele homem - o Dos-Anjos - tinha largado a fôice no chão,
botou o pé em riba; e abria os braços, depois ficou de mãos
postas, acho que estava produzindo algum feitiço, com os olhos
todos fechados. Ele era magro, magro, da vista da gente não se ter.
Os outros deles, devagarosamente tinham vindo se chegando
tamhém. Zé Bebelo, seguro que por não se rir sem caridade, armou
rosto reverso, aquele semblante serioso; e eles desconfiaram.
Porque um, que era velhusco e estava com o chapéu-de-palha
corroído nas todas beiras, apareceu com um dinheiro na palma
da mão, oferecendo a Zé Bebelo, como em paga por
perdoamento. A que era um dohrão de prata, antigo do Imperador,
desses de novecentos e-sessenta réis em cunho, mas que na Januaria
por ele dão dois mil-réis, ainda com senhoriagem de valer até
dez, na capital. Mas Zé Bebelo, com alta cortesia, rejeitou
aquele dado dinheiro, e o catrumano velho não bem entendeu, pelo
que permaneceu um tempo, com ele ofertado na mão. Assim os
outros não entrediziam palavras, que só arregalados espiavam,
para Zé Bebelo e para a moeda, olhavam como se estivessem
prestando conta de suas fortes invejas. O jeito de estremecer,
deles, às vezes, era todo, era de banda; mas aquilo sendo da
natureza constante do corpo, e não temor - pois, quando pegavam
receio, iam ficando era mais escuros, e respiravam com roncado
rumor, quietos ali. Que aqueles homens, eu pensei: que nem
mansas feras; isto é, que no comum tinham medo pessoal de
tudo neste mundo.

Como que o senhor visse os catrumanos rir! O da fôice
tornou a apanhar a fôice, o no jegue ficou segurando o chapéu em
respeito, o velho beobôbo sumiu seu dobrão de prata em alguma
algibeira. A mais eles todos riram, as tantas grandes bocas, e não
tinham quase nenhum dente. Riam, sem motivo justo, agora
mas para nos agradar. Cônscio, o da fôice criou ânimo, mesmo
indagou:
- "O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor
está servido de estando vindo, chefe cidadão, com tantos
agrega dos e pertences?"

"Ei, do Brasil, amigo!" Zé Bebelo cantou resposta, alta
graça. "Vim departir alçada e foro: outra lei em cada
esconso, nas toesas deste sertão..."

O velho agiu o pelo-sinal. Ia remenicar alguma outra coisa.
Mas Zé Bebelo, completo de escutar e ver, deu não com a mão,
abriu a marcha. Tocamos. Ora vi as derradeiras caras daqueles
catrumanos, que mostravam por nossa causa muitos pasmos de
admiração, e a cobiça que tinham de fazer cento-e-dobro de
perguntas, que por receio de atrevimento nunca perguntavam. Só
dos rifles: - "Úixe-te, isto é lazarinha moderna?..." Donde um
deles, o montado no jegue, ainda gritou um conselho: que a gente
então principiasse volta, no buritizal duma lagoazinha, da banda
da mão direita - por via de se evitar de passar por dentro do
Sucruiú - e que, retomada a estrada, no quebrar da mão
esquerda, num vau perto da mata virgem, era só se andar as sete
léguas, num sitio se chegava, de um tal de seôr Abrão, que era
hospitaleiro... Isso aquele homem recomendou, não por serviço
de préstimo, eu pelo tom e jeito bem entendi: gritou, no fim
assim, a fito somente de que os seus outros vissem que ele bem

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possuía coragem também de dar voz, perante presença nossa, de
tantos grandes jagunços donos de arejo d'armas. Mas Zé Bebelo
descrendo de temer o que eles anunciavam, do arraial onde
estava alastrando a varíola reinante, deu ordem de seguirmos, em
reto em diante em frente.

Rir, o que se ria. De mesmo com as penúrias e descômodos,
- o a gente carecia de achar os ases naquele povo de sujeitos, que
viviam só por paciência de remedar coisas que nem conheciam.

As criaturas.

Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha
vida. Como que marquei: que a gente ter encontrado aqueles
catrumanos, e conversado com eles, desobedecido a eles - isso
podia não dar sorte. A hora tinha de ser o começo de muita
aflição, eu pressentia. Raça daqueles homens era diverseada
distante, cujos modos e usos, mal ensinada. Esses, mesmo no trivial,
tinham capacidade para um ódio tão grosso, de muito alcance,
que não custava quase que esforço nenhUm deles; e isso com
poderes da pobreza inteira e apartada; e de como assim estavam
menos arredados dos bichos do que nós mesmos estamos: por
que nenhumas más artes do demônio regedor eles nem
divulgavam. Só o mau fato de se topar com eles, dava soloturno
sombrio. Apunha algum quebranto. Mas mais que, por
avirem medida, haviam de ter rogado praga. De pensar nisso, eu
até estremecia; o que estremecia em mim: terreno do corpo,
onde está a raiz da alma. Aqueles homens eram orelhudos, que a
regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando. E para
obra e malefícios tinham muito governo. Aprendi dos antigos.
Capatazia de soprar quente qualquer ódio nas folhas, e secar a
árvore; ou de rosnar palavras em buraco pequeno que abriam no
chão, tapando depois: para o caminho esperar a passagem de
alguém, e a ele fazer mal; ou guardavam um punhado de terra no
fechado da mão, no prazo de três noites e três dias, sem abrir,
sem largar: e quando jogavam fora aquela terra, em algum lugar,
nele com data de três meses ficava sendo uma sepultura... De
homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro
nenhum, o senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém
nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da
gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com
vida cerrada no costume de si, o senhor é de externos,no sutil o
senhor sofre perigos.Tem muitos recantos de muita pele de
gente. Aprendi dos antigos. O que assenta justo é cada um fugir do
que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são
longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente,
o rico longe do pobre. O senhor não descuide desse
regulamento, e com as suas duas mãos o senhor puxe a rédea. Numa o
senhor põe ouro, na outra prata; depois, para ninguém não ver,
elas o senhor fecha bem. E foi o que eu pensei. Aqueles
catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de pensar
neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho eu
apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas
armas, as coisas e minhas roupas. Amargo que acabavam comigo,
sem escrúpulos, hom'essa, que nem tinham, porquanto eu era
desconhecido e forasteiro. De doente, OU ferido perdendo meu
sangue, que eu estivesse, algum deles ia ser capaz de me ceder
gole duma cuia d'água? Draste eu duvidava deles. Duvidava dos
fojos do mundo. E por que era que há de haver no mundo tantas
qualidades de pessoas uns já finos de sentir e proceder, acomodados
na vida, tão perto de outros, que nem sabem de seu
querer, nem da razão bruta do que por necessidades fazem e
desfazem. Por que? Por sustos, para vigiação sem descanso, por
castigos? E de repente aqueles homens podiam ser montão,
montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desento

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cando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos,
tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de
serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem
ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir
depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e
desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas
da Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas,
com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos,
nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das
igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava?
Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se
esconderem - Deus me diga? Nem me diga o senhor que não
- aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo: que nele
não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto
poder existindo só para os braços da maior bondade. Isso foi o
que eu pensei, muito redoído, no estufo do calor vingante. E foi
por durante quase uma hora, montado no meu cavalo ruim
chamado Padrim-Selorico, a passo por aqueles ruins campos, até se
chegar perto do povoado do Sucruiú, onde que estava arranchada
a horrorosa doença, por cima da pior miséria. Bobéia minha?
Porque os companheiros, indo cuidando de seu ramerrão
comum, nenhum não punha tento em dessas idéias. Então era Só
eu? Era. Eu, que estava mal-invocado por aqueles catrumanos do
sertão. Do fundo do sertão. O sertão: o senhor sabe.

Mas em tanto, então levantei o meu entender para Zé
Bebelo - dele emprestei uma esperança, apreciei uma luz. Dei tino.
Zé Bebelo, em testa, chefe como chefe, como executava nossa
ida. Da marca de um homem solidado assim, que era sempre
alvissareiro. Por ele eu crescia admiração, e que era estima e fiança,
respeito era. Da pessoa dele, da grande cabeça dele, era só que
podia se repor nossa guarda de amparo e completa proteção, eu
via. Porque Zé Bebelo previa de vir, cá em baixo, no escuro
sertão, e, o que ele pensava, queria, e mandava: tal a guerra, por
confrontação; e para o sertão retroceder, feito pusesse o sertão
para trás! E era o que íamos realizar de fazer. Para mim, ele
estava sendo feito o canoeiro mestre, com o remo na mão, no
atravessar o rebelo dum rio cheio. "Carece de ter coragem... Carece de
ter muita coragem..." - eu relembrei. Eu tinha. Diadorim vindo
do meu lado, rosável mocinho antigo, sofrido de tudo mas
firme, duro de temporal, naquelas constâncias. Sei que amava, não
amava? Os outros, os companheiros outros, semelhavam no
rigor umas pobres infâncias na relega - que deles a gente
precisasse de tomar conta. Com Zé Bebelo da minha mão direita, e
Diadorim da minha banda esquerda: mas, eu, o que é que eu era?
Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé
Bebelo era o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado,
montado, e muito chão adiante.Viajar! mas de outras
maneiras: transportar o sim desses horizontes!...

Desde, porém, como já entrávamos no perto do Sucruiú,
conforme as léguas que os cascos de nossos cavalos contando,
era de ver que voz Zé Bebelo dava, se queria em reto ou atalho.
Ah, em reto, foi. Mas nenhum de nós teve sobrôsso. O que era,
era. Aquele desgraçado lugar devia de estar lá acolá, no pião alto
do campo, em seu sempre. Obra de um tiro de carabina. E como
deviam de estar cozinhando, com tanto fogão, porque subia para
o pedaço de céu um povôo de fumaças, feito andassem por
lá renovando pastos desfora de tempo. Fazia fole de calor. Mas, entre
as vertentes, no corguinho rabo serelepe que passamos, de
beiras de terra preta, só os animais foram que beberam a toda sede:
que, nós, mesmo da água corrente a gente se receava. Donde é que
decorre a peste? Até o ver o ar. A poeira e miséria. Azul
desbotado poído, sem os realces. O sol carregando de envelhecer antes-

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mente as folhagens - o começo do mês de junho já dava
parecença de alto fim de agosto. Aquele ano declarava de não se ter
nem frio, pelo legal. De que valeram as tantas chuvas? Aí este
mundo de sertão tinha se perdido eu mesmo me disse. Como
que íamos atravessar o Sucruiú, lá se chegava. O qual eram as
cafuas em suas construções, no entremeio da fumaça. Essas
choupanas. Gente? Não se divulgava. É certo que não se tinha medo
maior. Antes todos queriam avistar de perto, de passagem, o que
aquilo de verdade fosse. Só que se tinha confiança nos bentinhos
e veronicas. E de repente correu aviso que Jõe Bexiguento e o
Pacamã-de-Presas sabiam reza para São Sebastião e São Camilo
de Lélis, que livram de todo mal vago. Como se ter? Como se
aprender, também? Tempo não dava. Mas o que vieram
dizendo, de um em um, se virando para trás nos cavalos: que não
se carecia. Assim aqueles dois iam praticar resumida a oração, e
cada um, da gente, consigo reproduzisse, constantemente, as
fortes ave-marias e padre-nossos, que isso bastava. Assim foi que
fizemos. Avante eu rezei.

Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado
que era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Au
demais rezando, ao real vendo - eu vim. Casas coisa
humana. Em frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas
de hosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada
e esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com
aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi,
cuspi, no entrêcho de minhas rezas.Voz nem choro não se ouviu,
nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as
pessoas mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas mor
que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga
se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que
branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão
estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando todo o
tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras - isso que deviam
de ter por todo remédio. Nem davam fé de nossa vinda, de seus
lugares não saíam, não saudavam. Do perigo mesmo que estava
maldito na grande doença, eles sabiam ter quanta cláusula.
Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que
estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam
sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com um
fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme.
Mesmo que os cavalos nossos indo íam devagar, que é como se vai,
quando tOdOs rezando sozinhos em cima deles, devagar duma
procissão. Não se perturbou palavra. E foi que dali acabamos de
surgir da arrepoeira e fumaça de estrume, e o corusco de
labareda alguma, e a mormaceira. Deus que tornasse a tomar conta
deles, do Sucruiú, daquele transformado povo.

Olhei o ilustre do céu. Dado dava de um estar soto-livre,
conseguido se soltar das possibilidades horrorosas. Revi todos
e Diadorim, que era uma cortesia de bondade. Não espiei para
trás, não ver de enxergar o fim daquelas casas, no vaporoso
pardo-azulado, no exalante. E o que rogava eram coisas de salvação
urgente, tão grande: eu queria poder sair depressa dali, para
terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza,
- terras que não fossem aqueles campos tristonhos. Eu levava
Diadorim... Mas, de começo, não vi, não fui sentindo que queria
poder levar também Otacília, e aquela moça Nhorinhá, filha de
Ana Duzuza, e mesmo a velha Ana Duzuza, e Zé Bebelo, Alaripe,
os companheiros todos. Depois, todas as demais pessoas, de meu
conhecimento, e as que mal tinha visto, além de que a
agradecida formosura da boa moça Rosa'uarda, a mocinha Miosótis, meu
mestre Lucas, dona Dindinha, o comerciante Assis Wababa, o
Vupes - -Vúsps... Todos, e meu padrinho Selorico Mendes. To-

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dos, que em minha lembrança eu carecia de muitas horas para
repassar. Igual, levava, ah, o povo do Sucruiú, e, agora, o do Pubu
- os catrumanos escuros. E que para o outro lugar levava
restantes os cavalos, os bois, os cachorros, os pássaros, os lugares:
acabei que levasse até mesmo esses lugares de campos tão tristes,
onde era que então se estava...Todos? Não. Só um era que eu
não levava, não podia: e esse um era o Hermógenes!
Aí dele me lembrei, na hora: e esse Hermógenes eu odiasse!
Só o denunciar dum rancor mas como lei minha entranhada
costume quieto definitivo, dos cavos do continuado que tem na
gente. Era feito um nôjo, por ser. Nem, no meu juízo, para essa
aversão não carecia de compor explicação e causa, mas era
assim, eu era assim. Que ódio é aquele que não carece de nenhuma
razão? Do que acho, para responder ao senhor: a ofensa passada
se perdoa; mas, como é que a gente pode remitir inimizade ou
agravo que ainda é já por vir e nem se sabe? Isso eu pressentia.
Juro de ser. Ah, eu.
Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover
desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no
mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam
o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo n- os
outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu o que
quero e sohrequero : é que ninguém tem o direito de fazer
medo em mim!
São os momentos, se sei. Senti um cansaço. Adiantamos
ligeiro, depois que passado o vau da mata-virgem, e tenteávamos
pelo encontrável. O sol ia entrando, vi o céu nos roxos, nos
vermelhos. Misturamos numa baixada, no capim cacheado. Umas
lavourinhas. Daí, lá se estava, no retiro do Abrão, onde o campo
larguêia. Era uma boa casa. Mas, de dentro, saíram, de repente,
por suas portas, uns homens, que fugiam corridos, feito ratos se
escapulindo do toucinho de um jacá.

Sendo que Zé Bebelo assim na dianteira sempre cavalhava,
vente, superintendeu que não perseguíssemos aqueles tais, nem
neles se atirasse por comprazimento. O que estavam era em mão
de roubando, se soube; como que tinham até sacos, para
carregar dentro as coisas. Num átimo, eu reluzi quem que eles
podiam ser. Só acertei. Pois não foi que um deles, errando no
abrir da fuga, demorou, e perdeu as facilidades; então, veio do
nosso lado, embrafustado, quase debaixo dos cavalos. Era um
pretinho.

Um rapazola retinto, mal aperfeiçoado; por dizer, um
menino. Nú da cintura para os queixos. As calças, rotas em todas as
partes, andavam cai'caindo; ele apertou perna em perna. Arfava
chiado, como quem, por todo engano de pressa, tivesse chupado
na boca um gole quente de café demais. Bezerro doente, de mal-
de-ano, às vezes faz assim. Cuido que por não perder de todo as
calças como vestimenta, ele se ajoelhou chato no chão, mais
deitado do que ajoelhado. "A benção!" pois disse. E a
dele rodou ligeira, pois, quando se notou, tinha tirado do bojo
do saco o que estava lá: que era um pé de alpercata de homem,
um candieirozinho pequeno, desses que vinham da Bahia, uma
escumadeira de cozinha e um arranjado envernizado de couro
preto, que nem boldrié - que tudo jogou fora, para uma banda,
o longe que pôde. Seguinte o que, mostrou à gente o saco vazio,
e com isto dizendo, arquejado:

"Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada..."

Isso tudo se deu curto, que nem o mijar dum sapo; e dum
modo tal inocente, de quem visse risse. E em coisa tão tola
declarada assim a gente até crê razão, por ser tão afã de absurdo.

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- "Donde é que vocês vieram, dond'é?" Zé Bebelo
indarguiuu.

"A gente quer voltar para casa... Semos, sim, e do Sucruiú,
nhor sim..."

Arte que a aproveitar, ele tornou a atar melhor o resumo de
embira, que cinturava aqueles molambos de calças. E se
encolhia, temia; e se ria. Que nome era capaz de ter?

- "Guirigú... Minha graça é essa... Sou filho de Zé Câncio,
seu criado, sim senhor..."

Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia
de ter prática de todos os sofrimentos. Olhos dele eram
externados, o preto no meio dum enorme branco de mandioca
descascada. O couro escuro dele era que tremia, constante, e
tremia pelo miúdo, como que receando em si o que não podia ser
bom. E quando espiava para a gente, era de beiços, mostrando a
língua à grossa, colada no assoalho da boca, mas como se fosse
uma língua demasiada demais, que ali dentro não pudesse caber;
em bezerro pesteado, às vezes, se vê assim. Menino muito
especial, jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à primeira,
era capaz da bondade de desfechar nele um tiro certo, pensando
que padecia agonia, e que carecesse dessa ajuda, por livração.

- "Guirigo, qu'é que vieram caçar aqui? Fala!"

"O quê qu' a gente veio caçar, sim senhor? Eles vieram,
eu também vim... Buscar de comer..."

"Ih, que's, menino! Quem te vê comer essa tralha que
você amoitou aí no saco..."

O pretinho espichado no chão sacudia a cabeça, que não que
não, que parecia ter gosto de poder negar assim. "Mas O de
comer todo se acabou..." Havia de negar tudo, renegava: até que
tivesse tido mãe, nascido dela, até que a doença brava estivesse
matandO o povo do Sucruiú, os parentes todos dele. A gente queria
que aquele traste de menino sentisse em si, e se entristecesse,
por tantas suas desditas chorasse uma lágrima, a lagrimazinha
só, por um momento que fosse. Ah, ele fizesse logo isso, a gente
ficava desconsolado e legitimo no triste, a gente ficava
tranquilizados. Qual, o menino preto negava. O que ele afirmava, no
descaramento firme de seu gesto, era que nem era ninguém, nem
aceitava regra nenhuma devida do mundo, nem estava ali,
defronte dos cascos dos cavalos da gente. Ah, queria salvar seu
corpo, queria escape. Se abraçava com qualquer poeira. De mais,
não queria saber. Que podia, que fosse logo embora! Zé
Bebelo consentiu ordem. E ainda jogou um pedaço de rapadura,
que ele aparou, fácil, como numa abocada. "Pra tu adoçar
essa tua tripinha preta!" foi o que Zé Bebelo gritou. E aquele
menino, sem fungar, sem olhar para trás, pulou em rumo,
maneiro e leviano, se sumiu por onde carecia de ir. Não pensei que
fosse tão pequeno, conforme mesmo era.

"Coitadinho, os dentes dele estavam alumiando de
hrancos..." Diadorim disse.

"Hem? Hem?" Zé Bebelo falou "O que imponho é
se educar e socorrer as infâncias deste sertão!"

Eu ia fazer o sinal-da-cruz, mas com a mão não cheguei a
bulir, porque isso me pareceu falta de caridade, pensando no
menino pretinho.

E, com o determinado costumeiro, de se espalhar os de
vigia, por todas as quatro bandas, mais o movimento de procura
dum pasto bem fechado e conveniente, tomamos conta de tudo
e entramos naquela casa, para ver o visível e se fazer fogo de
aprontar nosso jantar na fornalha de sua grande cozinha.
Virgem! digo ao senhor: o interior dela dava pena, nunca vi nada
tão remexido e roubado. Total o que era de jeito de se carregar, o
em arcas e em trouxas, e que no comum duma casa remediada se

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acha, faltava. Não se encontrou uma peça de roupa, uma
lampàrina de folha, uma folhinha na parede, um gancho de rede, uma
raspadeira, um cabresto pendurado, uma esteira, uma vasilha,
uma coisa alguma em que se pegar. Eram só as mesas, os catres,
os bancos.Tinham limpado a carne daquele costelame. Por onde
andaria o dono? Mas se ficou sabendo que o nome dele não era
em verdade Abrão, mas Habão, que assim se chamava. Consoante
o diploma de patente, que no chão, num canto, avistei, lavrado
preenchido cerimonial, de que esse Habão era Capitão da
Guarda-Nacional, em válidos títulos. Aquele retiro se chamava o Valado.
Com pouco mais uns dias que se passassem, o pessoal do Sucruiu
era capaz de desmanchar até o prédio da casa, por seus esteios e
caibros. Para não falar que, de gado, galinhas e porcos, e cachorros
e o mais, nem sinal se divulgava. Sobravam só os passarinhos,
soltos, como de toda parte no igual, que piaram uns momentos,
pelo acabar da tardinha, alegres assim no empobrecido.
Vai, dentro de lá, num quarto, muito recanto, sediava,
escuro que já fazia, um oratório em armariozinho, construido
pregado na parede; que estava com suas poucas imagens e um
toco para se acender, de vela benta. Nisso não tinham
desrespeitado de mexer. E nós, então, cada um depois dum, viemos au
quarto-do-oratório beijar a santa maior, que era no seu manto
como uma boneca muito perfeita, que era a Minha Nossa
Senhora Mãe-de-Todos. Se comeu, se dormiu.
Se acordou, bem o digo. Cada dia é um dia. E o tempo estava
alisado. Triste é a vida do jagunço - dirá o senhor. Ah, fico me
rindo, O senhor nem não diga nada. "Vida" é noção que a gente
completa seguida assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia
é um dia. Ora, mais, ordens já para antes do vir da aurora se
cumprir, dali Zé Bebelo já tinha dado. E foi se saber: o Suzarte,
o Tipote, e outros, com o João Vaqueiro, rastreavam redobrados,
onde em redor, remedindo o mundo a olho e faro. Tudo eles
achavam, tudo sabiam; em pouquinhas horas, tudo tradiziam. O
chão, em lugares, guardava molde marcado dos cascos de
muitíssimas reses, calcados para um rumo só - um caminho eito.
Aqueles rastros tinham vigorado por cima da derradeira lama da
derradeira chuva. E de quantidade e de quanto tinha chovido
- eles liam, no capim e nos regos de enxurradas, e na altura da
cheia já rebaixada, a deixa, beiradas do ribeirão. Pelo comido
pastado das reses, também, muito se reconhecia. Aos passos dos
cavaleiros e cachorros. As pessoas da casa tinham viajado para a
banda de oestes. Mas o gado, escolhendo por si e sem tocada,
mas depois de solto por boa regra, pegara ida espaçada mais
virante acima, aonde devia haver, para se lamber, salinas de
barreiro. E bastantes outras coisas eles decifravam assim, vendo espiado
o que de graça no geral não se vê. Capaz de divulgarem até
os usos e costumes das criaturas ausentes, dizer ao senhor se
aquele seô Habão era magro ou gordo, seria forreta ou mão-aberta,
canalha inteirado ou razoável homem-de-bem. Porque,
dos centos milhares de assuntos certos que parecem mágica de
rastreador, só com oTipote e o Suzarte o senhor podia rechear
livro. E ainda antes do meio-dia subir, desemalocaram duas
gordas novilhas, carneadas fartas para a nossa refeição. Um bom
entendedor, num bando, faz muita necessidade.

E aquele lugar, o Valado, eu aceitei - o senhor preste
atenção! -; para ficar, uns meus tempos, ali, ainda me valia. Senti
assim, meu destino. Dormindo com um pano molhado em cima
dos olhos e com a nuca repousada numa folha de faca, de noite o
destino da gente às vezes conversa, sussurra, explica, até pede
para não se atrapalhar o devido, mas ajudar. Crendice? Mas
coração não é meio destino? Permanecer, ao menos ali, eu quis. Mas
Zé Bebelo duvidou de ficar. Zé Bebelo suscitado determinou

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que a gente fosse mais para adiante. Ele concebia medo.
Conheci. Estava.

Zé Bebelo pegou a principiar medo! Por que? Chega um dia,
se tem. Medo dele era da bexiga, do risco de doença e morte:
achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o mau-ar, e
que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo demais.Tanto
ri. Mas ri por de dentro, e procedi sério feito um pau do campo.
Assim mesmo, em errei; disso não sabia. Mas o cabedal é um só
do misturado viver de todos, que mal varêia, e as coisas
cumprem norma. Alguém estiver com medo, por exemplo,
próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o
senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem
sua redobra e tresdobra, que até espanta. Pois Zé Bebelo, que
sempre se suprira certo de si, tendo tudo por seguro, agora
bambeava. Eu comecei a tremeluzir em mim.

Pelo que umas cinco léguas andamos. De medo, meio,
conforme decerto, aquele algum seô Habão também tinha se ido.
Carecíamos? Merecer logo ao menos uma semana de quieto, e
que era justo; pois nenhum não estava mais em sua saúde. Esses
homens do Sucruiú, cercados da banda outra pelos catrumanos,
ei que só podiam achar espaço por estes lados, eles sim. Nós no
nosso. Eu sei que um se mexer a esmo é sempre fácil; e que com
o cansaço é que se tapa o desânimo. Mas, o que eu queria, real,
era estar sarado de alguma demorada doença, comendo aos
poucos o meu caldo com angú, e, em invernia de chuva fria esfriada,
me esquentando perto do borralho de um fogão, e galo de
manhã cantando em algum terreiro. Era para ir? Fôssemos. Disso
deslavava. Descemos a Vereda do Ouriço-Cuim, que não tinha
nome verdadeiro anterior, e assim chamamos, porque um bicho
daqueles por lá cruzou. Chapadas de ladeira pouca. Depois, uma
lomba, com o cerradão. E por fim viemos esbarrar em lugar de
algum cômodo, mas feio, como feio não se ve. Tudo é
gerais... - eu pensei, por consolo. Um homem, que com a machadinha
na mão e sua cabaça a tiracol tratava de desmelar
cortiço num pau do mato, esse indicou tudo necessario e deu a menção
de onde é que estávamos. Na Coruja, um retiro taperado.

E ali, redizendo o que foi meu primeiro pressentimento, eu
ponho: que era por minha sina o lugar demarcado, começo de
um grande penar em grandes pecados terríveis. Ali eu não devia
nunca de me ter vindo; lá eu não devia de ter ficado. Foi o que
assim de leve eu mesmo me disse, no avistar o redondo daquilo,
e a velhice da casa. Que mesmo como coruja era - mas da
orelhuda, mais mor, de tristes gargalhadas; porque a suindara é tão
linda, nela tudo é cor que nem tem comparação nenhuma, por
cima de riscas sedas de brancura. E aquele situado lugar não
desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma agüinha
chorada, demais. Até os buritís, mesmo, estavam presos. O que
é que buriti diz? É: - Eu sei e não sei... Que é que o boi diz:
- Me ensina o que eu sabia... Bobice de todos. Só esta coisa o senhor
guarde: meia-légua dali, um outro córgo-vereda, paradO, sua água
sem-cor por sobre de barro preto. Essas veredas eram duas, uma
perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho
brejão, tão fechado de môitas de plantas, tão apodrecido que em
escuro: marimbús que não davam salvação. Elas tinham um nome
Conjunto que eram as Veredas-Mortas. O senhor guarde bem.
No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente
dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via uma encruzilhada.
Agouro? Eu creio no temor de certos pontos. Tem, onde o senhor
encosta a palma-da-mão em terra, e sua mão treme pra trás ou é
a terra que treme se abaixando. A gente joga um punhado dela
nas costas e ela esquenta: aquele chão gostaria de comer o
senhor; e ele cheira a outroras... Uma encruzilhada, e pois! -

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o senhor vá guardando... Aí mire e veja: as Veredas Mortas... Ali eu
tive limite certo.

Os ruins dias, o castigo do tempo todo ficado, em que
falhamos na Coruja, conto malmente. A qualquer narração dessas
depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da
memória. E o senhor não esteve lá. O senhor não escutou, em
cada anoitecer, a lugúgem do canto da mãe-da-lua. O senhor não
pode estabelecer em sua idéia a minha tristeza quinhoã. Até os
pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou
são os tempos, travessia da gente?

Daí, despropositou o frio, vezmente. E quase que todos
companheiros já estavam adoecidos.

Refiro ao senhor que, da bexiga-brava, não. Mas de outra.
enfermidades. Febres. Em algum trecho, por falta de sinal, a gente
devia de ter arranchado no sezonático. Agora, a maior parte dos
companheiros tremiam em prazos, com a intermitente.
Remédio que valesse, de todo faltava. Aquilo afracava, no diário;
homens perdiam a natureza. E um andaço de defluxo, que
também me baqueou. Pior não estive; mas eu, de mim, sei.Todos,
de em antes, me davam por normal, conforme eu era, e agora,
instantantemente, de dia em dia eu ia ficando demudado. Com
uma raiva, espalhada em tudo, frouxa nervosia. "É do
fígado..." me diziam. Dormia pouco, com esforços. Nessas horas
da noite, em que eu restava acordado, minha cabeça estava cheia
de idéias. Eu pensava, como pensava, como o quem-quem
remexe no esterco das vacas.Tudo o que me vinha, era só entreter um
planejado. Feito num traslo copiado de sonho, eu preparava os
distritos daquilo, que, no começo achei que era fantasia; mas
que, com o seguido dos dias, se encorpava, e ia tomando conta
do meu juízo: aquele projeto queria ser e ação! E, o que era,
eu ainda não digo, mais retardo de relatar. Coisa cravada. Nela
eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras do rio
finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos sete
fios.

Ah, mas aquilo, por terrível que fosse, eu tinha de levantar,
mas tinha! Em tal já sabia do modo completo, o que eu tinha de
proceder, sistema que tinha aprendido, as astúcias muito sérias.
Como é? Aos poucos, pouquinhos, perguntando em conversa a
uns, escutando de outros, me lembrando de estórias antigo
contadas. A maneira que quase sem saber o que eu estava fazendo e
querendo. De em desde muito tempo. Custoso pior não sendo,
no arrevesso. Só o que demandava era uma fúria de quente
frieza, dura nos dentes, um rompante de grande coragem. Ao que
era por tanto negrume e carregume, a mais medonha
responsabilidade possível - ato que só raro mas raro um homem acha o
querer para executar, nesses sertões todos.

Vai, um dia, eu quis. Antes, o que eu vinha era adiando
aquilo, adiando. Quis, assim, meio às tantas, mesmo desfazendo de
esclarecer no exato meus passos e motivos. Ao que, na moleza,
eu tateava. Digo! comecei. Tinha preceito. O que seja
primeiro, não se coma, não se beba, e é; se bebe cachaça... Um gole
que era fogo solto na goela e nos internos. Não quebrava o jejum
do demo. No que eu confiei que estava pronto para ir avante: no
que eram obras de chão e escuridão. Engano meu. A aguardar,
até à hora, eu carecia de não deixar que nem um liozinho de
idéia comum em mim esvoaçasse. Deixei. Aí foi um instante:

Diadorim estava perto de mim, vivo como pessoa, com aquela
forte meiguice que ele denotava. Diadorim conversou, aceitei a
companhia dele. Logo larguei meu começo de mão, relaxei
aqueles propósitos. Cacei comida. Comi tanto, zampei, e meu corpo
agradecia. Diadorim, com as pestanas compridas, os moços olhos.
Desde aí, naquelas outras coisas não queria pensar, e ri, pauteei,
dormi. A vida era muito normal, mesma, e certa bem que estava.

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Tanto o engano. Os três dias passados, eu reproduzi tudo
com uma qualidade de remorsos, aquelas decisões. Sonhei coisas
muito duras. O porque era pior, agora, que eu tomei sombra
vergonhosa, por ter começado e não ter tido firmeza para levar
acabado. E a herança de minhas queixas antigas. Conforme eu
pensava: tanta coisa já passada; e, que é que eu era? Um raso
jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu
podia ter sido capaz de pelejar certo, de ser e de fazer; e no real
eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastêjo, trançar
o vazio. Mas, por que? eu pensava. Ah, então, sempre achei:
por causa de minha costumação, e por causa dos outros. Os
outros, os companheiros, que viviam à-tôa, desestribados; e viviam
perto da gente demais, desgovernavam toda-a-hora a atenção, a
certeza de se ser, a segurança destemida, e o alto destino possível
da gente. De que é que adiantava, se não, estatuto de jagunço?
Ah, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e tinha
cisma de todo o mundo. Apartado. De Zé Bebelo, mais do que de
todos.

Zé Bebelo doente não estava. Doença, com ele? Sendo o que
a um assim não podia permitido; só se perdesse de todo o siso. A
não ser por essa malacafa. Ei, pois, ele estava caipora. Logo
Daí tinha conta a nossa reles perdição, aquele atrasamento geral.
Zé Bebelo para mim, tinha gastado as vantagens. Zé Bebelo
murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada
que falava era mais de se reproduzir, aqueles exageros bonitos
tamanhos rasgos. Só dizendo que tínhamos de esperar mesmo
ali, até que os adoecidos sarassem. Assim em impossibilidades.
Tudo o que acontecia, era a má-sorte. Não digo por um ZéVital,
que tornava a dar ataque, dos de entortar boca escumante e se
esbracejar e espernear com madeira de braços-e-pernas que
quem eram. Mas uma jararaca picou o Gregoriano: era aquela. a
rastejo no capim e nas folhas caídas, nem chegava a quatro
palmos - e com poder de acabar - e o Gregoriano morreu, em
nobres horas. E mais conto o que com um Felisberto se dava.
Assaz em aparências de saúde, mas tendo sido baleado na cabeça,
fazia já alguns anos; uma bala de garrucha a bala de cobre, se
dizia - que estava encravada na vida de seus encaixes e carnes
em ponto onde ferramenta de doutor nenhum não alcançava de
escrafunchar. Aí, com o intervalo dos meses, e de repente, sem
razão entendível nenhuma, a cara desse Felisberto se esverdeava,
até os dentes, de azinhavres, ficava mal. Ao que os olhos
inchavam, tudo fuseado em verde, uma mancha só, o muito grande. O
nariz entupia, inchado. Ele tossia. E horror de se ver, o metal do
esverdêio. Daí, feito flôr de joaninha-silva em muito sol, do meio-
dia para a tarde, virava era azul. Aquilo era para poder sarar?
Quando que?A tosse dum garrote entisicado. Dizia naquelas horas
que estava sem visiva, nada não enxergava. A maior felicidade
era ele não saber quem tinha acertado nele aquela bala, não
carecer de imaginar onde era que tal pessoa estava, nem de ódio
constante de repensar nela.

Mas que em desregra a gente se comportava, então, de parar
ali envelhecendo os dias, na Coruja, como fosse menos-e-mais
para aproveitar a carne fresca e de-sol que na campeação se
conseguia, as boiadas daqueles sertões, Sempre Zé Bebelo não
desistia de palavrear, a raleza de projetos, como faz-de-conta. A mó
de moinho, que, nela não caindo o que moer, moi assim mesmo,
si mesma, mói, mói. As doenças se curassem? Minhas dúvidas.
Aí, quem não pegara a maleita padecia por outros modos -
mal-de-inchar, carregação-do-peito, meias-dôres; teve até
agravado de estupor. Adiantemente, me desvali. O que me coçava,
que nem se eu tivesse provado lombo de capivara no cio. A ser, o
fígado, que me doía; mas não me certifiquei: apalpar lugar de

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meu corpo, por doença, me dava um desalento pior. Raymundo
Lê cozinhou para mim um chá de urumbeba.

Era um recurso para aliviar meu achaque, e era dado com
bondade. Isso mesmo - foi o que eu disse a Raymundo Lê,
agradecido: "É um recurso para aliviar meu achaque, e estou vendo
que é dado com bondade..." Alaripe pegou a gabar a virtude
mezinheira das mais raízes e folhas. "Até estas aqui, duvidar,
devem de poder servir, em doses, de remédio para algum
carecer, só que não se sabe..."- ele disse, por uma môita rosmunda
de frei-jorge, esfiada em tantos espetos, e a pavoã por perto
crescida. Ali, naquela hora, eu conferi como era usual a gente
estimar os companheiros, em ajuntado. Diadorim - que graças-a-Deus
estava de todo são - com os cuidados todos depunha
assisado por mim. E o Sidurino disse: - "A gente carecia agora
era de um vero tiroteio, para exercicio de não se minguar... A
alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando..."
Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o
sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu
despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpêjo:
e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com
efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com
sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não
refugando a sacrificios para socorros. Mas, no fato, por alguma
ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um
arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães -
eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente
cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O
horror que me deu o senhor me entende? Eu tinha medo de
homem humano.

A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei:
e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume
da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas
todas, de uma vez! Aí, para mim que não tenho rebuço em
declarar isto ao senhor - parecia que era só eu quem tinha
responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não
depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me
emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me
respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina
outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer,
sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que
agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos,
avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo
assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus
amigos?! O senhor releve o tanto dizer, mas assim foi que eu
pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só queria era ter nascido em
cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente! E tudo
conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa
nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro.

Ateado no que pensei, eu sem querer disse alto: "... Só o
demo..." E: "Uém?..." um deles, espantado, me indagou.
Aí, teimei e inteirei: - "Só o Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o
Muito-Sério o cão extremo!" Eles acharam divertido. Algum
fez o pelo-sinal. Eu também. Mas Diadorim, que quando ferrava
não largava, falou: - "O inimigo é o Hermógenes."

Disse, me olhou. Seja, fosse, para agradar o meu espírito.
Arte de docemente, o que eu não pensei, o que eu reproduzi,
firme:

- "Que sim, certo! O inimigo é o Hermógenes..."

Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que olhos
podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já estava
noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os
outros embora, O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-

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de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem
ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava
de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era
o julgamento do Hermógenes.
Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes - como ele se
chamava; hoje, neste sertão, todo o mundo sabe, até em escritos no
jornal já saiu o nome dele. Mas quem me instruiu disso, na
ocasião, foi o Lacrau, aquele que à custa de riscos conseguira nos
Tucanos se baldear para o meio de nós, consoante relatei. A ele
dei de perguntar, ao mau respeito, muitas coisas. Assaz de
contente, ele me respondia. Se era verdade, o que se contava? Pois
era - o Lacrau me confirmou - o Hermógenes era positivo
pactário. Desde todo o tempo, se tinha sabido daquilo. A terra
dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía gados e
fazendas, para lá do Alto Carinhanha, e no Rio do Borá, e no Rio
das Fêmeas, nos gerais da Bahia. E, veja, por que sinais se
conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção?
Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem
adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim
de qualquer aperto. sempre sohrevinha para corregimento alguma
revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse
segredo? "Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma
em pagamento. Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz
com alma?..." O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a
natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele
tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste
mundo. "Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz.
O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue
certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão..."
Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme
medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do
que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por
cima de todos. - "Você, que não cede nenhum valor à alma,
VOCê, Lacrau, era capaz de fechar desse pacto?" - eu indaguei.

- "Ah, não, mano, quero lá não navegar por detrás das coisas...
Coragem minha é para se remedir contra homem levado feito
eu, não é para marcar a meia-noite nessas encruzilhadas,
enfrentar a Figura..." Calado, considerei comigo. Esse Lacrau tirava a
sensatez da insensatez. Outras informações ele disse. O senhor
não é comO eu? Sem crer, cri.

Às parlendas, bobéia. O medo, que todos acabavam tendo
do Hermógenes, era que gerava essas estórias, o quanto famanava.
O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do sertão então não
houvesse, por bem dizer, um homem mais homem? Os outros, o
resto, essas criaturas. Se o Hermógenes, arrenegado, senhoraço,
destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo para toda certeza, a
maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com
Joca Ramiro, em tantas alturas. Assim eu discerni, sorrateiro,
muito estudantemente. Nem birra nem agarre eu não estava
acautelando. Em tudo reconheci: que o Hermógenes era grande
destacado daquele porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando
se vê quando se vem da banda da Mãe-dos-Homens - surgido
alto nas nuvens nus horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo
ser; um homem, que havia. Mas Diadorim era quem estava
certo: o acontecimento que se carecia era de terminar com um.
Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a
roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo
para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa
afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo
do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se
tinha. O que eu pensei. deu de ser assim.

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Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de
tudo Lhe referir, ditas conforme digo - não toco no nome de
Otacília? Nela eu queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada vez,
achava mais custoso. A ser que se nublando a sustância da
recordação, a esquecida formosura. Assim a nossa conversação de amor,
lá na Santa Catarina, não consistisse mais do que em uma história
alheia, escutada de outra pessoa contar. Sei que eu queria uma
saudade. Para isso rezei, a todas as minhas Nossas Senhoras
Sertanejas. Mas rebotei de lado aquelas orações, na água fina e no ar
dos ventos. Elas, era feito eu lavrasse falso, não me davam
nenhuma cortesia. Só um vexame, de minha extração e da minha
pessoa: a certeza de que o pai dela nunca havia de conceder o
casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, entalado na
perdição, sem honradez costumeira. As quantias por paga! O
senhor entende, o que conto assim e resumo; pois, no estado do
viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um dia é todo
para a esperança, o seguinte para a desconsolação. Mas eu achei.
aí, a possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O
senhor não quer, o senhor não está querendo saber?

Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar.
Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse.

"Ah, qualquer dia destes, qualquer hora..." era como eu
me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para
confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela
fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade
real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E,
agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o
resto... Aquilo era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o
Maligno - fechar o trato, fazer o pacto!

Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade.
Também tive. Ah, hoje, ah! - tomara eu ter! Rir, antes da hora,
engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: ai,
de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura
dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.

E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi comigo:

- É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para
sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não
foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar
alguma visão. O que eu tinha, por mim - só a invenção de
coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum tivesse feito
por que era que eu não ia poder? E o mais é peta! - nonada.
Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte
das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre
chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de
homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima
dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado,
medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como
se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não
acreditava, mesmo quando estremecia. T'arreneguei.

Com isso, o tempo mais parava. Também, fazia mais de mês
que a gente estava naquela tapera de retiro, cujo a Coruja era que
era o nome, por um desses impossíveis de Zé Bebelo. Ao que mais
foi que aconteceu ali? Bem, passa um bando de papagaios, o
senhor pensa que eles levaram de sua pessoa alguma diversão. Mas
os papagaios estão voando já longe, e o rumor deles, conforme o
vento, faz que nem estivessem retornando. Diadorim esse
nunca teve instante desiludido. Sempre eu gostava muito dele. Só
que não falasse; por aquele tempo eu quase não abria boca para
Conversação.

E se deu que chegaram lá dois homens, quando não se
esperava, um deles se vendo que sendo patrão, e o outro algum
vaqueiro de seu serviço. Aí logo se soube: era o dono daqueles

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lugares, do retiro do Valado, principalmente; e ele, conforme já
disse, seô Habão se chamava. Ali, quando dei fé, ele já tinha se
apeado; estava curvado para o chão, mas seguro com a mão
esquerda na rédea de seu cavalo. Era um homem de boa idade,
vestido com brim azul encorpado escuro, e calçando pretas
hotas joelhudas. Quando levantou o olhar, outra vez, notei que tinha
boa catadura. Mas o cavalo - esse me entusiasmou: era um
animal gateado, grande, com imponência e todo brio, de rabejo
vasto; e mais tarde o senhor verá o que ele era; cavalo de cara
alta, de beiço mole, cavalo que debruça bem e que em poço
bebia remolhando a testa. Ele sabia olhar redor-mirado a gente,
com simpatias ou com desprezos, e respirava para dentro dos
peitos a maior quantidade de ar que desejava, por quantas ventas
tão largas ele tinha. Bem, dele depois lhe conto.

Seô Habão estava conversando com Zé Bebelo. Admirei a
noção dele: que era uma calma muito sensata e firmada, junto
com um miúdo comportamento. E vigiava os traços simples do
arredOr, não perdendo azo de reparar em todas as coisas, como
era que estavam em que pé. Olhares de dono o senhor sabe. E
assim foi que ele declarou a Zé Bebelo que, na ocasião, estava
desprevenido, não transportava consigo o dinheiro razoável. Mas
que, se a gente desse a ele o gosto de seguirmos até à verdadeira
sua fazenda-grande que possuía, na vertente do Resplandor, daii
a umas vinte léguas de lonjura, ele havia de fornecer ademais uns
auxílio, em espórtulas. E ele falou aquilo com tantas sinceras
medidas - a gente se capacitando do profundo que o dinheiro
para ele devia de ter valor. Por aí, vi que ele era adiantado e
sagaz. Porque: ema, no chapadão, é a primeira que ouve e se
sacode e corre - e mesmo em quando tenha razão.

Mas, com seus modos guerreiros, Zé Bebelo abriu um gesto,
à fidalgamente, nem deixando o outro estipular:
- "Ah, isso não, patrício meu amigo, he, mas
absolutamente! A gente não é gente da desordem... É favor, de sobra, nós já
devemos ao senhor pela pousada em suas terras e pelas
cabeças de gado de sua posse, que temos carneado, por precisão de
sustento..."

O homem depressa pronunciou que tinha prazer naquilo,
que sua boiada toda estava às ordens; mas, como por uma regra,
perguntou assim mesmo quantas cabeças, mais ou menos, a
gente já tinha consumido. Assim ele dava balanço, inquiria, e espiava
gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão, homem
carecesse de cuidar comercial. Eu pensei: enquanto aquele
homem vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava. E ele
era sertanejo? Sobre minha surpresa, que era. Serras que se vão
saindo, para destapar outras serras. Tem de todas as coisas.
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer
outras maiores perguntas.

Fiquei notando. Em como Zé Bebelo aos poucos mais proseava,
com ensejos de ir mostrando a valia declarada que tinha,
de jagunço chefe famoso; e daí, sutil, se reconhecia da parte dele
um certo desejo de agradar ao outro. Por causa que o outro era
diferido, composto em outra séria qualidade de preocupações. E
seô Hahão, que escutava com respeito, devagarzinho pegava a
fazer perguntas, com a idéia na lavoura, nos trabalhos perdidos
daquele ano, por desando das chuvas temporãs e do sol grave, e
das doenças sucedidas. O que me dava a qual inquietação, que
era de ver: conheci que fazendeiro-mór é sujeito da terra
definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório.

E Zé Bebelo mesmo se cansava de falar demonstrado.
Porque seô Hahão, mansoso e manso, sem glória nenhuma, era um
toco de pau, que não se destorce, fincado sempre para o seu

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arrumo. Ele só entendia de assuntos triviais, mas cuidava deles
com uma força vagarosa, verdadeira, de boi-de-côice. E, no mais,
nem ouvia, apesar de toda a cortesia de respeito, quando se
falava em Joca Ramiro, no Hermógenes e no Ricardão, em tiroteios
com os praças e na grande tomada, por quinhentos cavaleiros, da
formosa cidade de São Francisco que é a que o Rio olha com
o melhor amor. Daí, assim ia sendo que, mesmo sem sentir, o
próprio Zé Bebelo se via principiando a ter de falar com ele em
todas as pestes de gado, e na boas leiras de vazante, no feijão-da-
seca e nos arrozais cacheando, em que os passarinhos de Deus
viram em a ma praga. Com efeito, nos intervalos daquela
dividida conversa, não sei o que Zé Bebelo sentia nem achava. Eu, digo
me disse: que um homem assim, seô Hahão, era para se
querer longe da gente; ou, pois, então, que logo se exigisse e
deportasse. Do contrário, não tinha sincero jeito possível: porque ele
era de raça tão persistente, no diverso da nossa, que somente a
estancia dele, em frente, já media, conferia e reprovava.

Mas, sei lá, só por um doente desejo de necessidade de ver
bem se aquilo era, o certo foi que não sosseguei até poder me
presenciar com ele, perto a perto, e inventar conversacão. E nem
custoso não me foi, porque ele passou ali com a gente muitas
horas, quase que o dia todo. Dei um jeito, fazendo como se
menos quisesse, e vim em fala. Seó Habào me olhou com tanta
norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as
palavras primeiras, que tinha aprontado para declarar.

"Seô Capitão Habão..." eu disse; e num relance eu
conheci que estava também tendo de falar o p'r' agradar.

Assim, o que dissertei foi que eu sabia do título de capitão
que ele usufruía, por ter relido o diploma, na casa do Valado, que
de roubos a furtos a gente do Sucruiú tinha devastado. E contei a
ele que a referida patente eu tinha por cautela apanhado do chão
e guardado dentro do oratório, por detrás das imagens dos
santos.

Ele nem deu ar de interesse no fato, não me agradeceu por
isso; perguntou nada. Disse:

- "A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que
morreram: foram só dezoito pessoas..."

E o que indagou foi se eu soubesse se tinham feito muitos
estragos nos canaviais. - "... O que eles deixaram em pé, e que
lobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de dar uns carros,
se move moagem..." Agora ele conservava os olhos sem olhar,
num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos. Disse
que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de
rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles
do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos
redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem
calor nenhum, deu em mim, de repente, foram umas nervosias.
Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em canga,
criaturas de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva
desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era antipático. Eu tinha
era um começo de certo desgosto, que seria meditável. - "Para
o ano, se Deus quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O
feijão, milho, muito arroz..." Ele repisava, que o que se podia
estender em lavoura, lá, era um desadoro. E espiou para mim,
com aqueles olhos baçosos - aí eu entendi a gana dele: que nós,
Zé Rebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente
pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito
jornaleiros dele.Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida,
que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal:
cobiçava a gente para escravos! Nem sei se ele sabia que queria.
Acho que a idéia dele não arrumava o assunto assim à certa. Mas
a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda

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confesso declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô
Habão. Porque ele era um homem que estava de mim em tão
grandes distâncias. A raiva não se tem duma jiboia, porque jiboia
constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de
reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com a
chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor
que não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A alegria dele
era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta
carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé Bebelo, que
esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de ficar cheio de
influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se
transformar aquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para
um bom Governo, para esse ó-Brasil! Em peta, que, um seo
Habão, esse não se entusiasmava. Era so os carros-de-bois
carreando a cana. E ele dava ordens. Ordem que dava, havia de
ser costumeira e surda, muito diferente da de jagunço. Cada
pessoa, cada bicho, cada coisa obedecia. Nós íamos virando
enxadeiros. Nós? Nunca! Mas, então, eu antes queria ver chegar duma
vez os do Hermógenes, em galopadas e gritos, berrando ritles
em todo fogo, e ai para se ouvir, e sangue para quem ver pudesse.
Aí era que iam saber o que sebaceiro é! E, por um despique,
foi que acertei meu correão com as armas; e pronunciei:

"Duvidar, seô Habão, o senhor conhece meu pai,
fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!"

Pensei que ele nem fosse acreditar. Mas, juro ao senhor: ele
me olhou com muitos outros olhos. Aquele olhar eu aguentei
facilitado. Seô Habão sacudia em sim a cabeçona, surpreendido
mas circunstante. - "Dou notícia... Dou notícia..."- ele
quase que se lastimou. Nem sei se ele sabia que meu Padrinho
Selorico Mendes fosse, como era, muito mais fornecido de renome e
avultado em posses, conforme até por estes sertões do gerais se
contava. Regozijei, devagar; mas não regozijei completo. Do que
destapei que um desses, com a estirpe daquele seô Habão,
tirassem dele, tomassem, de repente, tudo aquito de que era dono
e ele havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe, e
tatear, toda a vida, feito céguinho catando no chão o cajado, feito
quem esquenta mãos por cima dum fogo fumacento. A
misericórdia, também, eu quase tive. Natureza da gente não cabe em
nenhuma certeza. De ver o homem, em pé, diante de mim,
recrescer e tornar a minguar - isto tudo no meu juízo - nem sei
de que estimas me esquecia e de que outras me lembrava. E,
com pouco, no rebaixar do sol, ele tornou a amontar no seu
cavalo gateado, belo, e se foi, de rompida, no rumo tôrto do
Valado.

Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de
animação, fato que ao senhor retardei: devido que mesmo um
contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de
uma vez. Pois foi que o vaqueiro tal, que acompanhava o seô
Habão, em conversa distraída com algum ou com outro, por
acasos mencionou que um bando de uns dez homens, jagunços
também, pelo dito e visto, andavam parapassando, como que à
espera de destino, em entre o Fazendão Felício que é na beira da
estrada-mór para esse poente todo e o Porto velho da Remeira,
no rio Paracatú aonde, menos dia, mais dia, todo o mundo
acaba vindo chegando. Depressa então falaram o assunto ciente
para Zé Bebelo, que reconheceu, pela descrição: "Chagas de
Cristo! É eles, ei, egüei... Só pode que pode ser é mesmo o João
Goanhá, com uns outros..." E instantâneo expediu, para lá, dois
próprios, que tocassem ligeiro como sem senões e voltassem
trazendo os comparsas amigos. Isso com a certa alegria se ouviu,
porque eram novidades acontecendo.

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Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei em
consciência. O aquilo. Ah, que agora eu ia! Um tinha de estar
por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não
existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que?Tem alguma ocasião
diversa das outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia.
Porque eu estava sabendo se não é que fosse naquela noite, nunca
mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse intimado. E
tanto mesmo nas idéias pequenas que já me aborrecendo, e por
causa de tantos fatos que estavam para suceder, dia contra dia.
Eu pensava na vinda de João Goanhá, e que a gente carecia de
sair de novamente por ali, por terras e guerras. Pensei naquele
seô Habão, que nem num transtorno? Mais não sei. E essas coisas
desconvinham em mim, em espécie de necessidade. A não de
apartar à-tôa dali - das Veredas-Mortas!

Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu
estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu firme estava.
Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo. Dou:
que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a
alegria é que a gente realiza bem mesmo até as tristes ações.
Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de
confiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não
cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a agüinha das grotas
grugucjàr sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o que
eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo queria que ele
permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, essa
lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora ainda
marque em meu favor. Deus me tenha!
Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha - hora em que
capivara acorda, sai de seu escondido e vem pastar. Deus é muito
contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer,
como fui.
Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa;
depoiS, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois,
era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as estopas - eram
uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a
concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha. E
escolher onde ficar o que tinha de ser melhor debaixo dum pau-
cardoso - que na campina é verde e preto fortemente, e de
ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma
outra árvore nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa porque
no chão bem debaixo dela é que o Careca dansa, e por isso ali
fica um círculo de terra limpa, em que não cresce nem um fio de
capim; e que por isso de capa-rosa-do-judeu nome toma. Não
havia. A encruzilhada era pobre de qualidades dessas. Cheguei lá,
a escuridão deu.Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira
treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as
espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não
queria escutar meus dentes. Desengasguei outras perguntas. Minha
opinião não era de ferro? Eu podia cortar um cipó e me enforcar
pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos: quem-é-que
quem que me impedia?! Eu não ia temer, o que eu estava
tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que era
o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes
de comida da terra, não possuia sangue derrarnavel. Viesse,
viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais.
Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o
ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era eu mais mil
vezes - que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance
tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num rôr de nada.

Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não
percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do
escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O chi-

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rilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado.
Arrepia os cabelos das carnes.

E não conheci arriação, nem cansaço.
Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia.Tinha de
vir, demorão ou jajão. Mas, em que formas? Chão de
encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. De
repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com o silêncio
das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto?
O Morcegão? O Xú? E de um lugar tão longe e perto de
mim, das reformas do Inferno ele já devia de estar me
vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar, desarmado de
si, entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir de tapados
buracos e tomar pessoa?Tudo era para sobrosso, para mais medo;
ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não
me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquej asse.
Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me lembrar
de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso,
eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira
razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era
que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que
queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria
era ficar sendo!

E foi assim que as horas reviraram. A meia-noite vai
correndo.., eu quis falar. O cote que o frio me apertava por
baixo. Tossi, até. "Estou rouco?" "Pouco... eu mesmo
sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o
tempo espiando para cima, para esse céu: nem o setestrelo,
nem as três-marias, já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda
rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase
encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos ramos.
E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de
se ver.

Ao que não vinha a lufa de um vendaval grande, com Ele
em trOnO, contravisto, sentado de estadela bem no dentro, O
que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o
desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah,
eu queria, eu podia. Carecia. "Deus ou o demo?" sofri um
velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que?
Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar
melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não
fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudO O
mais alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! "Acabar
como Hermógenes! Reduzir aquele homem! - e isso
figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de
alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me
lembrava - feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e
mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por
diante da gente entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia,
p'r' ali, amassava. Mas, Ele o Dado, o Danado sim: para se
comigo - eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d'Ele - e
entestar comigo - eu mais forte do que o Ele; do que o pavor
d'Ele - e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei
sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento.
Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali,
eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio
do pé-de-vento, o ró ró girado mundo a fora, no dohar, funil
de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no nieio do
redemunho... Ah, ri; ele não. Ah eu, eu, eu! "Deus ou o Demo?
- para o jagunço Riobaldo!"A pé firmado. Eu esperava, eh! De
dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu
repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego
- dá maisforça, de maior-coragem. A que vem, tirada a man-

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do, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da
gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia
maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada
sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir?
Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo
de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às
não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.
Remordi o ar:
"Lúcifer! Lúcifer!..." aí eu bramei, desengulindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o volteio dum ser-só
que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão
arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de
passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.
- "Lúcifer! Satanaz! ..."
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente
mesmo, demais.
"Ei Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!"
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras,
- foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu que
é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me
ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que
medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o
arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adêjo, um
gozo de agarro, daí umas tranquilidades - de pancada. Lembrei
dum rio que viesse adentro a casa de meu pai.Vi as asas, arquei o
puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais?A peta, eu
querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente
mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem
do sagrado. Absolutas estrelas!
Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como
que já estivesse rendido de avesso, de meus íntimos esvaziado.
- "E a noite não descamba!..."Assim parava eu, por reles
desânimo de me aluir dali, com efeito; nem firmava em nada minha
tenção. As quantas horas? E aquele frio, use reduzindo. Porque a
noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe - que mais não
fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende?
Despresenciei. Aquilo foi um huracão de tempo.

A mór, bem na descida, avante, branquejavam aqueles
grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. Dos marimbús, das
Veredas Mortas. Garôa da madrugada. E, a bem dizer por um
caminho sem expedição, saí, fui vindo m'embora. Eu tinha tanto
friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de
retorno, para a beira dos huritís, aonde o pano d'água. A
claridadezinha das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era
bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até nem
não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que devia
de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era
que sentia um frio, de si, friôr de dentro e de fora, no me rigir.
Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem
assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.

Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o
esboço no céu, no mermar da d'alva. As barras quebrando. Eu
encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns de meu
corpo. Ao perto d'água, piorara aquele desleixo de frio. Abracei
com uma árvore, um pé de breu-branco. Anta por ali tinha
rebentado galhos, e estrumado. - "Posso me esconder de mim?..."
Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que
estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na
madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um
morcegão caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi com

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fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aràtim
no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma
mina d'água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes.
Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor o senhor não
puxa o céu antes da hora! Ao que digo, não digo?

Cheguei no meio dos outros, quando o Jacaré estava
terminando de coar café. - "Tu treme friúra, pegou da maleita?"
- algum me perguntou. - "Que os carregue!" - eu arrespondi.
E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede.

Arte o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu
queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite.
Assim eu estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento,
fui escogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem
p'ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar,
so, não. O demônio e o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mór.
Apôrro!

Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei
mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que de
primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um
sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu
pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora reluzia
com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas
diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito
remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha
própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual,
assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo tempo.

Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, como
seguinte, vim aceitando esse regime, por justo, normal, assim. E
fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita,
COntente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me afoitei
logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da tristeza
pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava.
- "Uai, tão falante, Tataranaç Quem te veja..." me
perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim debicavam.

Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados
umas passagens de meu tempos, e depois descrevendo, por
diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam
desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu
repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos. Mas, o
que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros
de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me entendiam.
Tanto, que, foi só entenderem, e logo pegaram a rir. Aí riam, de
miséria melhorada.

- "Os mestres, que está certo, amigo..." - o Àlaripe
dissesse.

- "Deveras, está certo, mano-velho..." outro, o Rasga-
em-Baixo, inteirou.

Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro Rasga-em-Baixo, o qual
entornava de lado a cabeça, gastando ar demais,
três vezes forte, e fuchicando o nariz, numa fungação. Desentendi
e impliquei.

- "Certo de que, nesta vida? Pois eu nem costumo nunca
xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por receio de que seja
mesmo verdade..."

Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, apreciando me
OUvir, eu contei a estória de um rapaz enlouquecido devagar, nos
Aiáis, não longezinho da Vereda-da-Aldeia: o qual não queria
adormecer, por um súbito medo que nele deu, de que de alguma
noite pudesse não saber mais como se acordar outra vez, e no
inteiro de seu sono restasse preso.

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Mais me acudiam dessas fantasias. E eu relanceei, de
repente, e falei o que era que a gente precisava:
"Urgentemente é se mandar portador, a lugar de
farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se terminar
com a maleita, em definitividade!"

Disse, e daí todos aprovaram; mais Zé Bebelo com aquilo
concordou, de imediato. Portador foi.
Eu tinha enjôo de toda pasmacez. Com Zé Bebelo, falei:

"Chefe, o que se tem de obrar: enviar algum comparsa
esperto, que cace de entrar para o bando dos Judas, para no meio
deles observar o serviço que se passa, e remeter para a gente as
notícias e deixar traço nos lugares. Ou que mesmo dê jeito de
liquidar mãomente o Hermógenes proporcionando venenos,
por um exemplo..."

"A maluqueira, Tatarana, isso que Você está definindo..."
Zé Bebelo me contestou.

- "Maluqueiras é o que não dá certo. Mas só é maluqueira
depois que se sabe que não acertou!" eu atalhei, curto; por
que eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e porque, que
alguém falasse contra, por cima das minhas palavras, me dava
raiva.

Zé Bebelo retardou em me rever. Do fim, o dizer:

"Um homem, para a façanha assim, só mesmo se...

"Sol procura é as pontas dos aços..." eu cortei, sem
meio medir o razoado. Ao tanto que Zé Bebelo completava:

- "...eu... ou você mesmo,Tatarana. Mas a gente somos
garrotes remarcados."

Mas, daí, me entendendo bem, ele fechou assim:

- "Riobaldo, tu é um homem de estúrdia valia..."

A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas
presenças, todos tinham mesmo de ser sinceros. Só nos olhos das
pessoas é que eu procurava o macio interno delas: só nos onde os
olhos.

O José Vereda cachimbava, sentado perto de seus pertences.

O Balsamão estava ali junto. Esse era maneiras-grossas, homem
de muito sobrecenho. Derradeiramente eles estavam muito
amigos, mesmo porque os dois eram da mesma terra - geralistas
das campinas. Má vontade me veio, de dizer, eu disse: "Assunto
aí não é capaz que haja?Tôrto, tôrto, nasceu morto... Olh'
lá, caso se um de vocês tem mulher bonita e nova, quando
retornarem para casa..." Isso podia ser razão de desguisado. Eu
queria rixar? Figuro de cientificar ao senhor: o costume meu
nunca tinha sido esse. Agora, era que eu me espiritava só para
arrelias e inconveniências. E, aí, quando uns estavam querendo
tirar oração, por ser dia de domingo, não estive que não falasse:

- "Reza é começo de quaresma..." Os que riram, riram. Foram
deixando de lado aquela mexida igrejeira. Apondo em balança,
que é que isso me representava? Tudo eu palpava com os pés,
nisso eu respingava um tardar.

Daqui veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus
modos. A entender me deu, e eu reminiquei, com soltura de
palavras: como é que ia tolerar conselho ou contradição? Agravei
o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os olhos tão
abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado
daquilo - num vem-vem de amor. Amor é assim - o rato que
sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão!

Conferindo que nem vergonha eu tive. Não ter vergonha
como homem, é fácil; dificultoso e bom era poder não se ter
vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o senhor Verá:
como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o maior
segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha conversado,
de me dizer:

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"Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido
parente meu..."

Isso dava para alegria, dava para tristeza. O parente dele?
Querer o certo, do incerto, coisa que significava. Parente não
- o escolhido é o demarcado. Mas, por cativa em seu destinozinho
de chão, é que árvore abre tantos braços. Diadorim
pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido para o meu amor
o amor de Otacília. Otacília quando eu pensava nela, era
mesmo como estivesse escrevendo uma carta. Diadorim, esse, o
senhor sabe como um rio é bravo? E, toda a vida, de longe a
longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte,
de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: "Nós
dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que separação
é dever tão forte?..." Aquilo de chumbo era. Mas Diadorim pensava
em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca
Ramiro - José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o Chefe, o
pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia. Não venci as
ácidas picuinhas, no relembrar:

- "Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre o Urucuia
e o Pardo... O Hermógenes..."

Ele acinzentou a cara. Tremeu, aos pingos, no centrozinho
dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que guerreava delicado e
terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse maninel, mas
diabrável sempre assim, como eu agora eu estava contente de ver.
Como era que era: o unico homem que a coragem dele nunca
piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu
invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.

E, em relance em mais, eu já estava carecendo de declarar
aos companheiros todos os erros que vínhamos pagando, por
motivo do ultimamente, conforme agora eu ladino deduzia. Disse,
com modos, ao próprio Zé Bebelo, que isto de mim escutou:
- "... Sem tenção de descrédito ou ofensa, Chefe, mas
duvido de que bem fizemos em restar todos aqui, comprando cura
de doenças. Mais ajuizado certo não seria se ter remetido meia-
dúzia de cabras, dos sàos, que tivessem ido buscar a munição
nesse lugar, a Virgem-Mãe, e trazer? Munição já estava aqui, e a
gente estava mais garantidos..."

Zé Bebelo em mal amargo ele espinoteou com a cabeça,
arejou os queixos. Desde, depressinha, me explicou a maior
razão, com palavras baixas. Porque ele de tudo já soubesse: foi
então que me disse que o extravio nosso tinha sido mais completo;
porque a gente tinha vindo em má rota, em vez da Virgem -Mãe
para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei. Em outras ocasiões, uma
notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa viagem, eu
achava até divertido. Figuro explicando ao senhor: desde por aí,
tudo o que vinha a suceder era engraçado e novo, servia para
maiores movimentos. Com essas levezas eu seguia a vida.

Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais
- estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida manhã, orçado o
sol, e eles redondeavam no aprazível tropilha grande, pondo
poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um rebuliz? Dou
confesso o que foi: era de mim que eles estavam espantados. Aí
porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu. O que é que
cavalo sabe? Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre
relincha exagerado. Ardido aquele nitrinte riso fíninho, e, como não
podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já escumavam
e retremiam, que com as orêlhas apontavam. Assim ficaram, mas
murchando e obedecendo, quando, com uma raiva tão
repentina, eu pulei para o meio deles: - "Barzabú! Aquieta, cambada!"
- que eu gritei. Me avaliaram. Mesmo pus a mão no lombo
dum, que emagreceu à vista, encurtando e baixando a cabeça,
arrufava a crina, conforme terminou o bufo de bufôr.

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Notei que os companheiros reparavam a estranhez daquilo,
dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam, formados no
costume de jagunços, que é de frouxas essas leviandades.

"Barzabú!" - ó gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas.
E eu parava, rente, no meio de todos, que de volta aceitavam
minha presença, esses cavalos.

- "Tu sendo peão amansador domador?!"- que o Ragásio
caçoou comigo. Mas eu me virei, e já se ouvia outro tropel: era
aquele seô Habão, que chegava. Vinha com três homens,
estroteantes gentinha trabalhosa. E o animal dele, o gateado
formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seô Habão
saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o rabo
no chão; o cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto no ar.

- "Barzabu!"- xinguei. E o cavalão, lão, lão, pôs pernas para
adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. Me
obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade.

O seô Habão estava ali, me desentendeu nos olhos. Ele ficou
a vermelho. Mas eu acho que, homem só vendido ao dinheiro e
ao ganho, às vezes são os que percebem primeiro o atiço real das
coisas, com a ligeireza mais sutil. Ele não gaguejou. Melhor me
disse:

"Se este praz ao senhor... Se ele praz ao senhor... Lhe
dou, amigavelmente, com bom agrado: assim como ele está,
moço, ele é seu..."

Não acreditei? Reafirmo ao senhor: meu coração não pulsou
dúvidas. Agradeci, como meu brio; peguei a ponta do cabresto.
Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com suas
manchas e riscas - ah, como ele pisava peso no chão, e como
ocupava tão grande lugar! Até passeei um carinho nas faces dele, e pela
tábua-do-pescoço a fora. Meu o bicho era, por posse, e assim
revestido, conforme estava que era com um socadinho bom,
com caçambas de pau. Mas sendo que, dividido o instante, eu já
ali pensei: por que seria que o seô Habão se engraçava de me
presentear de repente com uma prenda dum valor desse, eu que
não era amigo nem parente dele, que não me devia obrigação,
quase que nem me conhecia? Aos que projetos ele engenhava em
sua mente, que possança minha ele adivinhava? A pois, fosse.
Aquele homem me temia? Da admiração de meu povo todo, dei
fé, borborinho com que me rodeavam. Certo, deviam de estar
com invejas. Fosse! E a mãe!... A primeira coisa, que um para ser
alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos
outros restantes... Me rêjo, me calêjo! Só por causa daquele cavalo,
até, eu fui ficando mais e mais, enfrentava. Não me riram.

"É deveras... Animal de riqueza: gratádo, farto e
manteúdo..."

"Sorte é isto. Merecer e ter..."

"Ainda bem que foi bem empregado..."

Só dissessem. Disfarcei meu regozijo. Disse logo foi a tenção
de maiores idéias em desejos segundo a como apeirado
aquele eu já queria: que arreado à gaúcha, com peitoral com pratas
em meia-lua, e as peças dos arreios chapeadas de belo metal.

"Ara, que assim ouvi, Tatarana: o nome que ele vai
chamar é mesmo Barzabú?" algum caçoou de me perguntar.

- "A não, meu compadre torto! Sossega a velha... nome
que dou a ele, d'ora em diante, conferido, é este - quem que
aprender, aprende! que é: o cavalo Siruiz..." assim fui
que eu respondi, sem tempo nenhum para pensamento. Montei.

Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras
ladroalmente. Pois Zé Bebelo estava aparecendo ali, e eu atinei,
ligeiro, com o que não tinha refletido. Ao que: oferecer e
receber um presente daquele, naquelas condições, era a mesma coisa
que forte ofender Zé Bebelo. Um dom de tanto quilate tinha de

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ser para o Chefe. Reconheci, aí. Mas não tirei para trás. Não
desapeei. É de ver que, conforme em mim, nesses enquantos,eu
já devia de estar fitando Zé Bebelo com um certo desprezo. la
haver o que ia haver, e eu não me importei. Um qualquer chefe
de jagunço havia de ter ímpeto de resolver aquilo fatal. Aí,
esperei. Teria sido uma tenção dessas, de arder a desordem no meio
nosso, a razão do seô Habão? Pensei o dito, num interim. E
pensei pontudo em minhas armas.

Mas Zé Bebelo, acabando de saber o acontecido, mirou em
mim, somente, poupado risonho:

"Tal te fica bem, Professor, amontado nesse estampo,
queremos havemos de te ver garboso, guerreando as boas
batalhas... Em hora!..." foi o que ele disse, se me seja que gostou
pouco. Choveu para o meu arrozal! Ah, mesmo só inteligência,
so, era que que era aquele homem. Desapeei.

Como por um rasgo, para solércias, dei o cabresto ao Fafafa.
Disse: "Tu desarreia, amilha e escova, tu trata dele..." : e
isso fiz, porque o Fafafa, que tanto gostava simples de cavalos,
era o prestante para cuidar dum animal, em mesmo que dele não
sendO. Mas eu tinha dado uma ordem. Assim me refiz. E o seô
Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se
tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo
recebia.

Saí, uns passos. Eu estava dando as costas a Zé Bebelo. Ele
podia, num relance, me agredir de morte, me atirar por detrás...
- atentei. Esbarrei em meu caminhar, fiquei assim parado,
assim mesmo. O medo nenhum: eu estava forro, glorial,
assegurado; quem ia conseguir audácias para atirar em mim? As deles
haviam de amolecer e retombar, com emortecidos braços; eu
podia dar as costas para todos. O que o Drão - o demonião -
me disse, disse: seria só? Olhei para cima: pegaram nas nuvens
do céu com mãos de azul. Aquela firme possança; assim
permaneci, outro tempo, acendido. Eu leve, leve, feito de poder correr
o mundo ao redor. Ao senhor eu conto, direto, isto como foi,
num dia tão natural. Será que, de cousas tão forçosas, eu ia poder
me esquecer? Aquele dia era uma véspera.

Em tanto o seô Habão jantou com a gente. Raymundo Lê
repartiu com os carecidos as pastilhas de remédio. Diadorim meu
amigo estava. Zé Bebelo me chamou adeparte, me expondo
especializado diversas coisas que pretendia reformar de fazer.
Alaripe conversou comigo. E dessa derradeira conversa quero
referir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se
falou muito nessas orações de curar a gente contra bala de
morte, e em breves que fecham o corpo. Alaripe então contou uma
estória, caso sucedido, fazia tempos, no giro do sertão. O qual
era o seguinte.

Um José Misuso uma vez estava ensinando a um Etelvininho,
a troco de quarenta mil-réis, como e que se faz a arte de um
inimigo ter de errar o tiro que é destinado na gente. Do que deu
o preceito: "... Só o sangue-frio de fé é que se carece pra,
na horinha, se encarar o outro, e um grito pensar, somente: Tu
erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de lado, não acerta
em
mim, tu erra, tu erra,filho de uma cã!..." Assim ele ensinou ao
Etelvininho, o Misuso. Mas, aí, o Etelvininho reclamou: "Ara,
pois, se é só isso, só issozinho, pois então eu já sabia, mesmo por
mim, sem ninguem me ensinar ja fiz, executei assim, umas
muitas vezes.." - " E fez igualzinho, conforme o que eu defini?"
- indagou o José Misuso, duvidando. "Igualzinho justo. Só
que, no fim, eu pensava insultado era: ... seu filho duma cóia!..."
- o Etelvininho respondeu. "Ah, pois então" o José Misuso
cortou a questão "... pois então basta que tu me pague só uns
Vinte milréis..."

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A gente muito rimos todos. A hora a ser de satisfa, alegrias
sobejavam. Se caçoou, se bebeu, um cantou o sebastião.
Mansinho, mãe, chegaram as voltas da noite. Dormi com a cara na lua.
Acordei. A madrugada com luar, me lembro, acordei com o
rumor de cavaleiros que vinham chegando, no esquipado, e que
travavam repentino com áspero estremecimento os cavalos:
br'r'r'uuu... Calculei: uns dez. Ao que eram. Levantei, pulando
de minha rede, quem podiam esses ser? Todos os companheiros
nos rifles, e eu não tinha escutado aviso de sentinelas. Madrugada
essa boa claridade. Luar que só o sertão viu. Vim dele.

"Aí é o nosso João Goanhá, com os cabras..." disse
Diadorim, que tinha a rede dele armada da minha a uns três
passos. Assim era. João Goanhà, o Paspe, Drumõo, o compadre Ciril,
o Bobadela, o Isidoro... Tornar a encontrar companheiros
desses, aí é que se põe significado na vida, se encompridando se
encurtando. O João Goanhá, gordo, forte, barbudo. Era a dele
uma barba muito fechada, muito preta.Veio do luar, chegou bom.
Todo o mundo falava, a gente se abraçavam. Com pouco o fogo
se acendia, para o café, para algum almoço. Enquanto isso, Zé
Bebelo, formado em pé, o mais rompante que pudesse, pedia
noticias por interrogação.

Antes, as verdades, essas, as coisas comuns, conforme foi
que se passaram. Mais não sei? Mesmo não tinha botado idéia na
cabeça, acabando de despertar de meu sono. Diadorim era o que
estava alegrinho especial: só se ele tinha bebido. Diadorim, de
meu amor - põe o pezinho em cera branca, que eu rastreio a
flôr de tuas passadas. Me recordo de que as balas em meu
revólver verifiquei. Eu queria a muita movimentação, horas novas.
Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte,
ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucúia é um
rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a
verde, veredas, marimhús, a sombra separada dos buritizais, ele.
Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um
huraquinho d'água mata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa.
Casinha que eu fiz, pequena ô gente! para o sereno
remolhar. O Urucúia, o chapadão derredor dele. Estas árvores:
essas árvores. Conversa, Zé Bebelo: conversa, com as marrecas
chocas, no meio das varas do juncal. Mesmo na hora em que eu
for morrer, eu sei que o Urucúia está sempre, ele corre. O que
eu fui, o que eu fui. E esses velhos chapadões d'ele, dos
Couros, de Antônio Pereira, dos Arrepiados, do Couto, do
Arrenegado. Um homem é escuro, no meio do luar da lua - lasca de
breu. Dentro de mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu
vejo um sonho - um sonho eu tive. O fim de fomes. Ei, boto
machado em toda árvore. Eu caminhei para diante. Em, ô gente,
eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível.

Não era de propósito, o senhor não julgue. Nem não fizeram
espantos. Não exclamei, não pronunciei; só disse.

"Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?"

Só perguntei. Sei por que? Só por saber, e quem sabe por
excessos daquela minha mania derradeira, de me comparecer
com as doidivãs bestagens, parlapatal. De forma nenhuma eu
não queria afrontar ninguém. Até com preguiça eu estava. A
verdade, porém, que um tinha de ser o chefe. Zé Bebelo ou João
Goanhá. Um para o outro olharam.

- "Agora quem é que é o Chefe?"

Somente eu estava por cima da surpresa deles? Zé Bebelo -
o pensante, soberbo e opinioso. João Goanhá - duro homem
tão simples, vindo por meio de dificuldades e distancias, desde a
outra banda do rio, caçar a lei da companhia da gente, como um
costume necessário, que sem isso ele não conseguia direito se
pertencer. Com meUs olhos tomei conta.

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"Quem é que é o Chefe?!" - repeti.

Me olharam. Saber, não soubessem, não podiam como
responder: porque nenhum deles não era. Zé Bebelo ainda fosse?
Esse pardejou. E, o João Goanhá, eu vi aquele mestre quieto se
mexer, em quente e frio, diante das minhas vistas nem não
tinha ossos: tudo nele foi encurtando medida gesto, fala, olhar
e estar. Nenhum deles. E eu - ah - eu era quem menos sabia
- porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo! Olharam
para mim.

"Quem é qu' ...

E... Ao que o pessoal, os companheiros todos, convoca dos,
fechavam roda. Eu felão. Não me entendessem? Foi que alguns
dos homens rosnaram. E foi esse Rasga-em-Baixo, o principal
deles, esse, pelo que era, pelo visto, oculto inimigo meu que
buliu em suas armas... Sanha aos crespos, luziu faca, no a-golpe...
Meu revólver falou, bala justa, o Rasga-em-Baixo se fartou
no chão, semeado, já sem ação e sem alma nenhuma dentro. E aí
o irmão dele, José Félix: ele tremeu muito lateral; livrou o ar de
sua pessoa; outro tiro eu também tinha dado...

"É o Chefe?!..."

Ato de todos quietos permanecidos, esbarrados com tanta
singelez de choques. Ah, eu, meu nome era Tatarana! E
Diadorim, jaguarado, mais em pé que um outro qualquer, se asava e
abava, de repôr o medo mor. Ele veio marechal. Se viram, se
sentiram, decerto que acertaram: pelos altos de nós dois; e
porque logo aí Alaripe, o Acauã, o Fafafa, o Nelson, Sidurino,
Compadre Ciril, Pacamã-de-Presas e outros e outros já
formavam do lado da gente. Tenho de chefiar! eu queria, eu
pensava. Isso eu exigia. Assim. João Goanhá se riu para mim. Zé
Bebelo sacudiu uns ombros.
Ali, era a hora. E eu frentemente endireitei com Zé Bebelo,
com ele de barba a barba. Zé Bebelo não conhecia medo. Ao
então, era um sangue ou sangues, o etcétera que fosse. Eu não
aceitava muita parlagem:

- "Quem é que é o Chefe?" eu quis.

Se quis, foi com muita serenidade. Zé Bebelo retardou. Eu
social, encostado. Conheci que ele tardava e pensava, para ver o
que fazer mais vagarosamente.

- "Quem é-que?" eu brando apertei.

Eu sabia do respirar de todos. Durasse mais, aquilo eu já
largava, por me cansar, por estar achando cacete. Minha vontade
estrôina de paliar: Seu Zé Bebelo, velho, tu me desculpe... eu
calei. Zé Bebelo se encolheu um pouco, só. Aí ele não tremeu
no sucinto dos olhos.

"A rente, Riobaldo! Tu o chefe, chefe, é: tu o Chefe fica
sendo... Ao que vale!..." - ele dissezinho fortemente, mesmo
mudado em festivo, gloriando um fervor. Mas eu temi que ele
chorasse. Antes, em rosto de homem e de jagunço, eu nunca
tinha avistado tantas tristezas.

"Sendo vós, companheiros..." eu falei para em volta.

Tantos, tantos homens, os nos rifles, e eles me aceitavam.
Assim aprovaram. O Chefe Riobaldo. Aos gritos, todos
aprovavam. Rejuravam, a pois. A esses resultados. No que eram com
solenidade, sinceridade.Tudo dado em paz. Só aqueles dois
amaldiçoados irmãos, baldeados mortos, na ponta de unha. Ali,
enterrar aqueles dois seria faltar a meu respeito. Amém.Tudo me
dado. O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea
dum fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um
falso narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que
acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo
da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do

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momento. Assim. Arte que virei chefe. Assim exato é que foi,
juro ao senhor. Outros é que contam de outra maneira.

Ao fim, depois que João Goanhá me aprovou, revi os
aspectos de Zé Bebelo. Acertar com ele.
"O senhor, agora..." eu quis dizer.
- "Não, Riobaldo..." ele me atalhou. - "Tenho de
tanger urubú, no m'embora. Sei não ter terceiro, nem segundo.
Minha fama de jagunço deu o final..."

Daí, riu, e disse, mesmo cortês:

- "Mas, você é o outro homem, você revira o sertão... Tu é
terrível, que nem um urutú branco..."

O nome que ele me dava, era um nome, rebatismo desse
nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto
que logo gritavam, entusiasmados:

"O Urutu-Branco! Ei, o Urutu-Branco!..."

Assim era que, na rudeza deles, eles tinham muita
compreensão. Até porque mais não seria que, eu chefe, agora ainda me
viessem e dissessem Riobaldo somente, ou aquele apelido apodo
conome, que era de Tatarana Achei, achava.
Vai, e eu, por um raio de momento, eu tinha concebido que
carecesse de tirar a vida a Zé Bebelo, por maior sossego de meu
reger, no futuramente; e agora eu estava quase triste, com pena
de ver que ele ia-s'embora. O divertido havia de ser, sim isso, de
levar Zé Bebelo comigo, de sotenente, através desse atraves. Ah,
homem como aquele, não se matava. Homem como aquele, pouco
obedecia. A ele mandei fornecer mais um cavalo, e um cargueiro
com mantimento, coisas, munição melhor. Dali a hora,
mesmo, ele pegou caminho. Para o sul. Vi quando ele se despediu e
tocou com o bom respeito de todos ; e fiquei me
alembrando daquela vez, de quando ele tinha seguido sozinho para
Goiás, expulso, por julgamento, deste sertão. Tudo estava sendo
repetido. Mas, da vez dessa, o julgamento era ele, ele mesmo,
quem tinha dado e baixado. Zé Bebelo ia s'embora, conseguintemente.
Agora, o tempo de todas as doideiras estava bicho livre
para principiar.

De seguida, parado persisti, para um prazo de fôlego. Aí vendo
que o pessoal meu já me obedecia, prático mesmo antes da hora.
Como que corriam e mexiam, se aprontando para saída,
sacudiam no ar os baixeiros, selavam os cavalos. Tantos e tantos, eu
sabia o nome e o defeito maior de cada um daqueles homens, e
tantos seus braços e tantos rifles e coragens. Aí eu mandava. Aí
eu estava livre, a limpo de meus tristes passados. Aí eu
desfechava. Sinal como que me dessem essas terras todas dos Gerais,
pertencentes. Por perigos, que por diante estivessem, eu aumentava
os quilates de meu regozijo. A fé, quando eu mandasse uma
coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer jeito. "Tenho
resoluto que!" e montei, com a vontade muito confiada. Dali
a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata. Estradeei. Nem
olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o trinca-ferro.
Uma arara chiou cheio; levou bala, quase. Atrás de mim, os
cabras deram vivas. Eles vinham, em vinham. Eu contava, prazido,
o tôo dos cascos.

Dei galope. No Valado chegamos, conforme íamos retornar,
por assim. De galope, como esta dito. Gente, gentinha, nos
rodeou, roceiros em seu serviço. Aquele seô Habão, incluso, muito
estarrecido. Esbarramos parada. O que eu carecia era de uns
instantes sempre meus, para estribar meu uso. Era primeira viagem
saída, de nova jagunçagem; e as extraordinárias cousas, para que
todos admirassem e vissem, eu estava em precisão de fazer. E vi
um itambé de pedra muito lisa; subi lá. Mandei os homens
ficassem em baixo, eles outros esperavam. Minha influência de afã,
alegria em artes, não padecesse de se estorvar em monte de pes-

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soas nenhumas. De despiço, olhei: eles nem careciam de ter
nomes por um querer meu, para viver e para morrer, era que
valiam. Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo.

Fiquei lá em cima, um tempo. Quando desci, umas coisas eu
resolvia. Aonde se ia; em cata do Hermógenes? Ah, não. Antes,
primeiro, para o Chapadão do Urucúia, onde tanto boi berra. Ao
que me seguissem. Ah, mas, assim, não. O que foi o que eu
pensei, mas que não disse: Assim não...

E veio perante minha presença o seô Habão, mais antecipado
que todos; macio, atarefadinho, ele já me sussurrava. Homem
esse! Ele queria me oferecer dinheiro, com seus meios queria
me facilitar. Ah, não! de mim ele é que tinha de receber, tinha de
tomar. Agarrei o cordão de meu pescoço, rebentei, com todas
aquelas verônicas. As medalhas, umas delas que eu tinha de em
desde menino. Fiz gesto: entreguei, na mão dele. O senhor havia
de gostar de ver o ar daquele seô Habão, forçado de aceitar
pagamento do que nem eram correntias moedas de tesouro do rei,
mas costumeiras prendas de louvor aos santos. Ele estava em
todos tremores contorme esses homens que não tem
vergonha de mostrar medo, em desde que possam pedir à gente
perdão com muita seriedade. Digo ao senhor: ele beijou minha mão!
Ele devia de estar imaginando que eu tinha perdido o siso. Assim
mesmo, me agradeceu bem, e guardou com muito apreço as
medalhas na algibeira; até porque, não podia obrar de outra
forma. Matar aquele homem, não adiantava. Para o começo de
concerto deste mundo, que é que adiantava? Só se a gente tomasse
tudo o que era dele, e fosse largar o cujo bem longe de lá, em
estranhas terras, adonde ele fosse preta-e-brancamente
desconhecido de todos: então, ele havia de ter de pedir esmolas... Isso,
naquela hora, pensei. Ah, não. E nem não adiantava: mendigo
mesmo, duro tristonho, ele havia ainda de obedecer de só
ajuntar, ajuntar, até à data de morrer, de migas a migalhas...

As verônicas e os breves ele vendesse ou avarasse para os
infernos. Comigo só o escapulário ainda ficou. Aquele escapulário,
dito, que conservava pétalas de flôr, em pedaço de toalha de altar
recosturadas, e que consagrava um pedido de benção à minha
Nossa Senhora daAbadia. Que, mesmo, mais tarde, tornei a
pendurar, num fio oleado e retrançado. Esse eu fora não botava, ah,
agora podia desdeixar não; inda que ele me reprovasse, em hora
e hora, tantos meus malfeitos, indas que assim requeimasse a
pele de minhas carnes, que debaixo dele meu peito todo
torcesse que nem pedaço quebrado de má cobra.

E, num reverter de mão, eu já estava pensando: o que eu ia
fazer com ele, com o seô Habão, por alguma alvíssara de mercê.
Porque, em fato, ele merecia, e eu a ele devia. Porque ele tinha
vesprado em reconhecer meu poder, antes de outro qualquer; e
mesmo um barão de presente dele tinha sido, e era, aquele meu
formoso cavalo Siruiz, em qual eu estava amontado.

Aí, me lembrei, de uma coisa, e isso era próprio encargo
para ele, cabendo em sua marca de qualidade .Me lembrei da
pedra: a pedra de valor, tão bonita, que do Arassuaí eu tinha
trazido, fazia tanto tempo. Tirei o embrulhinho, da bolsa do cinto.
Apresentei a ele. Eu falei:

- "Seô Habão, o senhor escute, o senhor cumpra: pega este,
mimo, zelando com os dedos todos de suas mãos... ja e ja, o
senhor viaje, num bom animal, siga rumo dos Buritís Altos,
cabeceira de vereda, para a Fazenda Santa Catarina..."

E mais disse: que era para entregar, de minha parte, à moça
da casa, que Otacília se chamava, a qual era minha sempre nôiva.
Mas não dando razão de nomear minha pessoa pelos altos
títulos, nem citando chefia de jagunços... Mas somente prezar que

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eu era Riobaldo, com meus homens, trazendo glória e justiça em
território dos Gerais de todos esses grandes rios que do poente
para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto
Deus dura!

Ah, não: em Deus não falasse. Seô Habão pôs atenção;
perturbado mas sisudo, ele cogitava. O que ele dizia, carecia de ser
repetido, esfiando o assunto nas pontas dos dedos, tostões. Ser
rico é um diverso dissabôr? Que um pudesse se acautelar assim,
me atanazava. Quem era? O que por primeira vez reparei: que
ele tinha as orêlhas muito grandes, tão grandonas; até, sem
querer, eu tive de experimentar com a mão o tamanho medido das
minhas. Melhor trazer esse sujeito comigo, perto mais perto,
para poder vigiar, por todas as partes? Melhor, não; o melhor
seria desmanchar a presença dele em definitivas distâncias.

Não vou comer teus peitos, teu nariz, teus duros olhos moles...
- eu pensei. Mas ele também tinha alguma espécie de chefia.
Eu virei a cara, andei três passos, dando com Diadorim. "O
que eu tolero e desentendo, esse homem: que é, porque, dele,
não se consegue ter raiva nem ter pena falei. Mas vi um
adêjo sombrio no meu amigo, condenado que era de tristeza que
não quer ceder suas lágrimas. O quanto, por causa da pedra de
topázio? - eu reconheci. Eu não tinha tido dó de Diadorim.
"Dei'stá, tem tempo, Diadorim, tem tempo..." pensei, a meio.
Da amizade de Diadorim eu possuía completa certeza. E mais
não me amofinei. De manhã cedo, o senhor esbarra para pensar
que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à gente, muito
forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E eu
estava naquelas impaciências.Trasmente que, em Otacília, mesmo,
verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter saudade.
Otacília estava sendo uma incerteza - assunto longe começado.
Visse, o que desse, viesse. O seô Habão ia, levava a pedra de topázio,
a vida do mundo ia vivendo, coração dá tantas mudanças; meus
dizimos eu pagava. O pássaro que se separa de outro, vai voando
adeus o tempo todo. Ah, não, eu não rio, riachos! - não me
amofinava. Aquela tristeza de Diadorim eu não aceitei, nem ceitil
não recebi. Ingratidão, para o mais-tarde.

Mas o seô Habão não queria ter terminado: negócio que
carecia ainda de algum ponto. Dei licença. Ele perguntou, sonseante:
... se eu não prazia de enviar por ele algum recado também para
o senhor meu pai, Selorico Mendes, dono dO São Gregório, e de
outras boas e ricas fazendas?... Eu achei graça, acenei que sim:
disse que fosse, reproduzisse a minha saudação... E então foi que
o seô Habão levantou a cara, aquietado até mediante sorriso.
De sorte que, para corrigir em siso a tranquilidade daquilo, eu
determinei: "O senhor vá logo, logo, de rota abatida... E de
lá não quero nenhuma resposta..." - enquanto ri, de ver como
ele me obedecia expresso, sem nececidade de caráter.

Onde que, mal dele livre me vi, gritei, despachado, pelos
demais. Dand' ordens: "A rodar por aí, me trazerem os
homens!"

Que's homens? Os todos que fossem e houvesse. "Quem
tiver instrumento - a toque! Quem gostar de dansar, arre
melhor! P'r àpreparo, trazer as mulheres também... Com que as
músicas, de lá, lá, lá..." Tudo tinha de semelhar um social. Ao
pois, quem era que ordenava, se prazia e mandava? Eu, senhor,
eu: por meu renome, o Urutú Branco... Ah, não. Festa? Eu já
estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de
homens, e formar todos de guerreiros. A com a gente, a que
viessem. Aquilo valia? Os outros não falaram, decerto não acharam
ou acharam. Ou quanto mais que, eles, os meus, só mesmo o
mover por me agradar, só, era o que de si desejavam; e aquela

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minha lei era divertida. Saíram, espalhados sendo, em caçar, em
boa alarida.

Mas trouxeram. Me trouxeram, rebanhal, os todos
possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos alguns com as caras
secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na areia; outros
- um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de não
terem tido a doença. Os que fingiam não me temer, achavam mais
favorável querer ter vindo por próprio conselho; mal-abriam boca
em risos, Dei que pronto todos provassem gol d'alguma
cachaça. Aquela gente depunha que tão aturada de todas as pobrezas e
desgraças. Haviam de vir, junto, a mansa força. Isso era
perversídades? Mais longe de mim - que eu pretendia era retirar
aqueles, todos, destorcidos de suas misérias. Até que fiz Ah, mas,
mire e veja: a quantidade maior eram aqueles catrumanos - os
do Pubo. Eles, em vozes. Ou o senhor não pode refigurar que
estúrdia confusão calada eles paravam, acho que, de ser
chamados e reunidos, eles estasam alertando em si o sair de umpavôr. Ao
depois, quando dei brado, queriam se alinhalinhar, mesmo,
solertes, como se por soldados reconhecidos. Seriam eles assim
bons no ruim, para guerra serviam, para meter em formatura:

Tanto todo o mundo achava graça, meus jagunços queriam pago
de. Ah, os catrumanos iam de ser, de refrescos. Iam, que nem
onças comedeiras! Não entendiam nada, assim atarantados, com
temor ouviam minha decisão. "Filhos-da-mãe!" - eu
declarei. Tive de repente fé naqueles desgraçados, com suas
desvalidas armas de toda antiguidade, e cabaças na bandola, e panelas
de pólvora escura e fedor de fumaça ceguenta. Adivinhei a valia de
maldade deles: soube que eles me respeitavam, entendiam em
mim uma visão gloriã. Não queriam ter cobiças? Homens sujos
de suas peles e trabalhos. Eles não arcavam, feito criminosos?

"O mundo, meus filhos, é longe daqui!" eu defini. - Se
queriam também vir? perguntei. Ao vavar: o que era um dizer
desseguido, conjunto, em que mal se entendia nada, Ah, esses
melhor se sabiam se mudos sendo. Dei brado. Indaguei dum.
Tomou um esforço de beira de coragem, para me responder.
Esse aquele era o do chapéu encartuchado, rapaz moço.
Respondeu que Sinfrônio se chamava: e indicou outro - que era o pai.
Aquele outro, o pai, era um homem sem pescoço. Respondeu
que se chamava Assunciano. E indicou outro. Mais adiante não
deixei. Deixasse, iam de dedo em dedo me passando para o
daquelas pernas de fora, que Osirino era, as pernas forradas de
lama seca; ou para o que coçava suas costas em pau de árvore,
feito um bezerro ou um porco. Visli a sorrateira malícia nos
jeitos deles. E mais o do jegue - no jegue amontado,
permanecendo de perfil, aquele bronzeado jumento que tinha, o
homem por nome Teotrásio; e só não desamontava do jegue por
ordem minha, que em antes eu tinha dado. Ele me disse: - "Dou
louvor. Em tudo, chefe, vos obedecemos ."-ele disse; e de lá
se virou o focinho branco do jumento. O homem Teofrasiu
limpou a goela; mas com respeito. "Assim vos prazido, chefe.
Pedimos vossa benção..." E eu concedi que o Teofrásio, meio
chefim deles, o do jegue: que o jegue pudesse trazer. Daí houve
porém. Que um, o sem pescoço, baixinho descoroçoou, na
desengraça, observou: "... Quem é que vai tomar conta das
famílias da gente, nesse mundão de ausências? Quem cuida
das rocinhas nossas, em trabalhar pra o sustento das pessoas de
obrigação?..." O que falou, tinha falado por todos. - "...Pra os
roçados? Pra os plantios..." E mesmo um outro, de mãos postas
como que para rezar, choramingou: - "Dou de comer à mea
mul'é e trêis fi'o', em debaixo de meu sapé..."- e era um homem
alto, espingolado, com todos os remendos em todos os molambos.

"Como é a tua graça, seô?" - indaguei. Se chamava Pedro

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Comprido. Mas, aí, eu já tinha pensado. "Pois vamos! As
famílias capinam e colhem, completo, enquanto vocês estiverem
em glórias, por fora, guerreando para impôr paz inteira neste
sertão e para obrar vingança pela morte atraiçoada de Joca
Ramiro!" - eu determinei. "Ij' Maria, é ver, nós, de Cristo,
jagunceando..." - escutei, dum. Daí, declarei mais: "Vamos
sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as
vantagens, de toda valia. E só vamos sossegar quando cada um já
estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres,
moças sacudidas, p'ra o renovame de sua cama ou rede!..."Ah, ó
gente, oh e eles: que todos, quase todos, geral, reluzindo
aprovação. Mesmo os meus homens. Fiz gesto, com meu
contentamento. Queria o que só me faltou - que foi que o jumento do
homem zurrasse. Eu ia transformar os regimentos desses foros.
Convoquei todos nas armas. "E o Borromeu? E o Borromeu?"
- ainda perguntavam. Quem era que esse Borromeu? Mandei
vir. Um cego; ele era muito amarelo, escreiento, transformado.
- "Responde, tu velho, Borromeu: que é que tu faz?" - " Estou
no meu canto, cá, meu senhor... Estou me acostumando com o
momentozinho de minha morte..." Cego, por ser cego, ele tinha
direito de não tremer. - "Tu é devoto?" - " Pecador pior.
Pecador sem o que fazer, pede preto, pede padre..."Apontou com o
dedo. Levei os olhos. Não vi nada. É assim, a esmo, que os cegos
fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. - "Ah, meu senhor,
eu sei é pedir muitas esmolas Pois, então, que viesse também
o Borromeu, viesse. Mandei que montassem o dito num cavalO
manso, que da banda da minha mão direita devia sempre de se
emparelhar. Alguns riram. E, pelo que riram, de certo não
sabiam que um desses, viajando parceiro com a gente, adivinha
a vinda das pragas que outros rogam, e vão defastando o
poder delas; conforme aprendi dos antigos. E, por nada, mais
me lembrei, de repentinamente, do menino pretozinho, que na
casa do Valado a gente tinha surpreendido, que furtando num
saco o que achava fácil de carregar. E tiveram de campear esse
menino. Ele estava amoitado, o tempo todo, com a boca no chão,
no meio do mandiocal. Quando foi pego, xingava, mordia e
perneava. Ele se chamava Guirigó; com olhares demais, muito
espertos. "Guirigó, tu vem vestido, ou nó?" Como que não
vinha? Aprontaram um cavalo para ele só, que devia de se
emparelhar com o meu, da banda de minha mão esquerda. Há-de há,
meu povo! Todos tocamos. Cavalos que chegassem, bastados,
tinha não: mas, por diante, animais alheios a gente topasse, para se
assenhorear, a laço e mãos. Os muitos vinham a pé, aqueles
catrumanos ainda meio vigiados. Ver o seguinte. Eu queria esses
campos. Pernoitamos, com marcha de dez léguas, assim mesmo.
Terçando um total de projetos, com os entusiasmos, no topo da
cabeça minha, poder não pude dormir, mesmo com o cansaço
em que estava, na noite não preguei os olhos. Mas conversei
surgidamente com os que paravam, espalhados, de sentinelas e
mandei acender foguinhos de assar mandioca e fogueiras de
iluminar. Ah, a gente ia encher OS espaços deste mundo adiante.

Aonde é que jagunço ia? A vã, á và.Tinha minha vontade, de
estarem toda a parte. Mas, quadrando que primeiro, mais para o
norte: para o Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra. Que
eu recordava de ver o rio meu beber em beira dele uma
demão d'água... Ah, e essas estradas de chão branco, que dão mais
assunto à luz das estrelas. Eu pensei, eu quis. E o Hermógenes,
os Judas? Ara, inimigo, o senhor dê um passo, em rumo
qualquer, lá em sua frente o senhor encontra o mau... Eu não tinha
todo tempo? Safra em cima, eu em minha lordeza. Mesmo
deitado, eu sentia que estava caminhando, galopando. Quando a
madrugada bateu as asas, eu já estava abotoando a espora. Outra

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vez, eu digo: tem botim novo flote, e chinelo velho redomão. O
dia ia ser lindo de leveza! pelas beiradas do céu. Forramos o
estômago; e saímos, deslizando com a manhã, com o merujo do
orvalho. O que eu via: alto de mata e além! As coisas todas eu
pensava, e nada nenhuma não me sombreasse. Algum medo não
palpitava frio por detrás de meus olhos; e, por via disso, eu de
todos era o chefe, mesmo em silêncio singular. Conforme assim,
chegamos, no Pé-da-Pedra, fazenda da Barbaranha. Em perto de
sete léguas. E o que aí foi, lhe conto.
Ao entrementes, eu achei graça: em que o Alaripe, João
Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, e mesmo Diadorim, e
outros mais velhos, não carecessem de formar conselho. As lérias.
Meu direito era contrariar as regras todas do chefe que antes
fora; para mim, só mesmo o que servia era à solta a lei da
acostumação. Aí, não viessem me dizer que a gente estava só com três
dias de farinha e carne-seca. Toleima. Todo boi, enquanto vivo,
pasta. Razão e feijão, tudo dia dão de renovar. A coragem que
não faltasse; para engulir, a pôlpa de huriti e carnes de rês brava.
As leguas, eu indo, eles me seguindo. "Tu está vendo o
tamanho do mundo, Guirigó? Que é que tu acha de maior boniteza?"
- Assim eu perguntei, àquele sacizinho de duas pernas, que preto
reluzente afora os graúdos olhos brancos, me remedindo,
da banda de minha mão canhota sempre viesse, encarapitado sobre seu
alto cavalo. E ele, a cuja senvergonhice: - "De todas as coisas,
boniteza melhor é dessa faquinha enterçada, de metal, que o
senhor travessa na cintura..." Segundo tinha botado desejo no meu
punhal puxável de cabo de prata, o dioguim. "A pois: no
primeiro fogo que se der, se tu não abrir boca e choro bué, por
medos, a dita faca tu ganha, presenteada..." - eu prometi. A
falta de mantimentos, por isso eu ia encurtar rédeas, travar o
passo? A toleima. A outra receita que descumpri, era a de
repartir o pessoal em turmas. Cautelas... Que não. Eu fosse ter
cautela, pegava medo, mesmo só no começar. Coragem é matéria
doutras praxes. Aí o crer nos impossíveis, só. "Seo Borromeu,
está gostando destes Gerais, hem seo Borromeu?"- ao cego, da
minha outra banda, perguntei, por desfrute. - "Ah, Chefe: é
sempre amanhecendo manhã, e aqui a gente merece tudo -
vento que não varêia de ser... Mas vento que vem dos amáveis..."
- ele me respondeu. - "... O que não vejo, não devo; não
consumo..." - continuou respondendo. Ele gostava de conversar,
mas também preparava no silêncio. la sacolejando em cima da
sela do animal, noutra quietação diversa. Podia dar conselho?
"Arte de jagunço, meu Chefe? Isto é ofício bonito, para o vivo."
O ditado desses, só somente para rir eu aceitava. Mas, dividir
minha gente, por oras, eu detestava de obrar. Por causa que o
que me prazia mais era contemplar o volume profundo da ida
deles, de esquadrão.

De a de lado. Todos eles passarem, tropeando, nós todos, o
rumor constante dos cascos. Cavalo, cavalaria! Cortejo que fazia
suas voltas, pelos ermos, pelos ocos, pelos altos, a forma duma
mistura de gente amontada, uma continuação grande, solevando
para adiante o aprumo de meus homens, os chapéus deles quase
todos bem engraxados com sêho de boi e nata de leite, em ponta
os canos dos rifles de guerra, a tiracol. Com qual seguimento?
Só, o que esperava a gente, era o pouso para jantar; passeata para
a estreladatarde Mas, do que um falava, outro mal ouvia e ria;
do que esses se riam, outros ainda falavam. Prosapeavam. Me
prazia. Me prazia o ranger o couro das jerebas, aquele chio de
carne em asso. A poeira avermelhava e branqueava: poeiras que
punham o vento mais áspero. Uns homens em cavalos e armas.
Quem visse, fuga fugia, corria: tinham de temer, vigiando com
seus olhos escondidos no mato em beiras de estrada. Até os bi-

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chos, do cerradão, que escutam o começo de tudo, de seu longe
e de seu perto, e logo sabem esperar, ocultos no rareamento,
assim não se viam, nenhuns, não se achavam; os pássaros sempre
já tinham revoado. Ah, não, eu bem que tinha nascido para
jagunço. Aquilo para mim que se passou: e ainda hoje é
forte, como por um futuro meu. Eu estou galhardo. Naquilo, eu
tinha amanhecido. Comi carne de onça? Esquipando, eu queria
que a gente entrasse, daquele jeito, era em alguma grande
verdadeira cidade.

Só as vezes, em repente de receio, eu ainda olhei em vão -
com as presenças de Zé Bebelo me cismava. Se o que sei. Com
um arranco de freio, raciocinado. Mas, dando de rédeas sem
descanso, derrubei dos ombros aquele meu costume, Zé Bebelo
terminara. Só os meus homens. Escutava, olhava - e eram aqueles:
que muitas estrepolias ainda iam decerto agir, e muita má gente
matar. Aos dez e dézes, digo, afirmo que me lembro de todos.
Esses passam e transpassam na minha recordação, vou
destacando a contagem. Nem é por me gabar de retentiva cabedora, nome
por nome, mas para alimpar o seguimento de tudo o mais que
vou narrar ao senhor, nesta minha conversa nossa de relato, o
senhor me entende? A mesmice dos cabras jagunços - no
contemplar a cavalhada no passo, os animais dando dos quartos,
comuns assim, que não fazem penachos, que não tiram
arredondamentos da magreza. Os filhos nascidos de distritos de lugares
diversos, mas agora debaixo da minha estima completa,
dever de coração enérgico. Até os capiaus e os catrumanos copiavam o
comportamento, uns amontados, outros restantes apressados
mesmo a pé, e iam pegando o exato. Até o catrumano Teofrásio,
em seu jegue, que, como prestável jumento, cumpria hem seu ir,
desde que tinha companhia de outros animais. E o Guirigó e
Borromeu - eu meando os dois, ao alcance de qualquer minha
mão. Sempre, mesmo como sempre. Mas, um, era Diadorim
montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito
ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo
bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite -
Diadorim, que era o Menino, que era o Reinaldo. E eu. Eu? Nos
estribos de ferro, freio de ferro, silha forte e silha mestra - e o
par de coldres! Assaz, então, cantaram:

Olererê, Baiana,
eu ia e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, oh Baiana,
e volto do meio p'ra trás...

Ao demais eu ouvi, soturno sorridente.

Ora vez, que, desse jeito, fomos entortando, entre as duas
chapadas, encalço da estrada do rio; e se chegou na fazenda cercà
que era por Lá, a Barbaranha dita, em um lugar redondo e
simples, no Pé-da-Pedra. O que eu já disse ao senhor, respeitante.
Mas acrescento que o dono, no atual, era um seu Ornelas -
Josafá Jumiro Ornelas, por nome todo.

- "De uns três dias foi o São João, então amanhã é o São
Pedro -alguém disse, de voz.

Soubessem que esse seo Ornelas era homem bom
descendente, posseiro de sesmaria. Antes, tinha valido, com muitos
passados, por causa de política, e ainda valesse, compadre que era
do Coronel Rotílio Manduca em sua Fazenda Baluarte.

-"Ao que ele tem, mas tem, mesmo, muita coragem?!"
eu me fiz.

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"Aí falam em sessenta ou oitenta mortes contáveis..." o
Marcelino Pampa afiançou "... e ainda não esmoreceu os
ânimos..." Chegamos, com proceder seguro, e o céu por cima dali
estava muito sereno. Na fazenda tinham levantado um mastro, na
frente do pátio; vi movimentos de gente. As mulheres, na boca
do forno fumaçando, mexiam com feixes verdes de mariana e
vassourinha e carregavam as latas pretas de assar biscoitos, Só
aqueles formosos cheiros das quitantas e do forno quente
varrido, já confortavam meu estômago. No mastro, que era arvorado
para honra de bandeira do santo, eu amarrei o cabresto do meu
cavalo.

Mas não desordem nem coagi, não dei em nenhuma desbraga.
Eu não estava com gosto de aperrear ninguém. E o fazendeiro
senhor dali, de dentro saiu, veio saudar, convidar para a
hospedagem, me deu grandes recebimentos. Apreciei a soberania dele,
os cabelos brancos, os modos calmos. Bom homem, abalável.
Para ele, por nobreza, tirei meu chapéu e conversei com pausas.

-"Amigo em paz? Meu chefe, entre, a valer: a casa velha é
sua, vossa..." - ele pronunciou.

Eu disse que sim. Mas, para evitar algum acanhamento e
desajeito, mais tarde, também falei: "Dou todo respeito, meu
senhor. Mas a gente vamos carecer de uns cavalos..." Assim logo
eu disse, em antes de vir a amolecer as situações e estorvar o
expediente negócio a boa conversação cordial.

O homem não treteou. Sem se franzir nem sorrir, me
respondeu:

"O senhor, meu chefe, requer e merece, e com gosto eu
cedo...Acho que tenho para coisa de uns cinco ou sete, em
estado regular."
E eu entrei com ele na casa da fazenda, para ela pedindo em
voz alta a proteção de Jesus. Onde tive os usuais agrados, com
regalias de comida em mesa. Sendo que galinha e carnes de
porco, farofas, bons quitutes ceamos, sentados, lá na sala. Diadorim,
eu, João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, Alaripe e uns
outros, e o menino pretinho Guirigó mais o cego Borromeu
- em cujas presenças todos achavam muita graça e recreação.

A dona fazendeira era mulher já em idade fora de galas; mas
tinham três ou quatro filhas, e outras parentas, casadas ou
moças, bem orvalhosas. Aquietei o susto delas, e nenhuma falta de
consideração eu não proporcionei nem consenti, mesmo porque
meu prazer era estar vendo senhoras e donzelas navegarem
assim no meio nosso, garantidas em suas honras e prendas, e com
toda cortesia social. A ceia indo principiando, somente falei
também de sérios assuntos, que eram a política e os negócios da
lavoura e cria, Só faltava lá uma boa cerveja e alguém com jornal
na mão, para alto se ler e a respeito disso tudo se falar.

Seu Ornelas me intimou a sentar em posição na cabeceira,
para principal. - "Aqui é que se abancava Medeiro Vaz, quando
passou..." - essas palavras. Medeiro Vaz tinha regido nessas
terras.Verdade era? Aquele velho fazendeiro possuia tudo.
Conforme jagunço de meio-ofício tinha sido, e amigo hospedador,
abastado em suas propriedades. De ser de linhagem de família, ele
conseguia as ponderadas maneiras, cidadão, que se representava;
que, isso, ainda que eu pelejasse constante, tarde seria para bem
aprender. Na verdade. Aquela hora, eu, pelo que disse, assumi
incertezas. Espécie de medo? Como que o medo, então, era um
sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos logo
tomava. Aos poucos, essas coisas tiravam minha vontade de comer
farto.

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-"O sertão é bom.Tudo aqui é perdido, tudo aqui é
achado..." - ele seu Ornelas dizia. - "O sertão é confusão em grande
demasiado sossego..."

Essa conversa até que me agradou. Mas eu dei de ombros.
... Para encorpar minha vantagem, às vezes eu fazia de conta que
não estava ouvindo. Ou, então, rompia fala de outras diversas
coisas. E joguei os ossinhos de galinha para os cachorros, que ali
nas margens esperavam, perto da mesa com toda atenção. Cada
cachorro sungava a cabeça, que sacudia, chega estalavam as
orêlhas, e aparava certeiro seu osso, bem abocava. E todos, com
a maior devoção por mim, e simpatias, iam passandO os osSoS
para eu presentear aos cachorros. Assim eu mesmo ria, assim
riam todOs, consentidos. O menino Guirigó comeu demais,
cochilava afundado em seu lugar, despertava com as risadas. Aquele
menino já tinha pedido que um dia se mandasse costurar para ele
uma roupa, e prover um chapéu-de-couro para o tamanho de
sua cabeça dele, que até não era pequena, e umas cartucheiras
apropositadas. "Tu é existível, Guirigó...Vai pelos proveitos e
preceitos... - eu caçoava. Aí caçoei: -"Duvidar, é só dar um
saco vastoso na mão dele, e janela para pular, para dentro e para
fora: capaz de supilar os recheios e pertences todos duma casa
grande de fazenda, feito esta, salvo que seja..." E eu bem que já
estava tomando afeição aquele diabrim. Pois, com o Guirigó, as
senhoras e moças conversavam e brejeiravam, como que só com
ele, por criança, elas perdessem o acanhamento de falar. Mas
o seo Ornelas permanecia sisudo, faço que ele afetava de
propósito não reparar no menino. Pelo tudo, era como se ele reprovasse
minha decisão de trazer para a mesa semelhantes companhias. O
menino e o cego Borromeu - aqueles olhos perguntados. -
"As colheitas..." - seu Ornelas supracitava. Homem sistematico,
sestronho. O moderativo de ser, o apertado ensino em
doutrinar os cachorros, ele obrava tudo por um estilo velhoso, de
outras mais arredadas terras sei se sei. E quase não comia. Só,
vez outra, jogava na boca um punhado seco de farinha.

"Oxalá, o senhor vai, o senhor venha... O sertão
carece... Isto é, um homem forte, ambulante, se carece dele. O
senhor retorne, consoante que quiser, a esta casa Deus o traga..."

Solei um vexame, por não saber a resposta concernente, nuns
casos como esse resposta que eu achava que devia de ser uma
só, e ajusta, como em teatral em circo em pantomima bem
levada. O que é igual quase um calar. À puridade, eu sentia assim:
feito se estivesse pego numa ignorância - mas que não era de
falta de estudo ou inteligência, mais uma minha falta de certos
estados. O que são bobéias: limpei goela, mudei de cara.

"... Amigo meu, Medeiro Vaz, a outra ocasião, travou combates
no Conta-Boi, daqui a duas léguas... Contra os de um Tolomeu
Guilherme. Defunto amigo Medeiro Vaz, que a alma dele Deus
haja... Adiante comandava em frente, para o exemplo...
Enterramos os melhores mortos..." o homem descrevia. "Eu
sei!" eu disse, mesmo nada tencionando dizer. A ver: e que é
que achava de mim aquele surdo velho? Ah, ele expunha os cabelos
brancos, mas faltava em barba que cofiasse. "Senhor saiba,
ao que Medeiro Vaz mesmo foi que entre todos me respondeu, nos
olhos da morte, me determinou para capitanear e dar governo..."
Tolomeu Guilherme, que conheço, é um que deve de estar
presentemente embarcando cargas, no porto em Pirapora... Mas
sou, de mim, o Urutú-Branco, Riobaldo que Tatarana já fui; o
senhor terá ouvido? Aí o mais esse sertão tem de ver, quem mais
abre e mais acha!" assim eu disse, um pouco enfurecido.

"Pois maior honra é a minha, meu Chefe: que em posto de dono,
na pobreza desta mesa, somente homens de alta valentia e valia
de caráter se sentaram..." ele glosou, sem sobrosso de per-

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turbação. Dobrei, de costas, castanheteei para os cachorros.
Assim ele havia de sentir o perigo de meu desprazer; havia de
recear, de mim, aquilo - como o outro diz: ...quando o burro dá
as ancas!...

Aí, no rever do instante, percebi os olhos de Diadorim, que
me juntavam com uma das mocinhas de lá, das que estavam
servindo, a mais vistosa de todas. A mocinha essa de saia preta e
blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça - que para mim
é a forma mais assentante de uma mulher se trajar. Ela estava
parada, em pé, no meio das outras, quase encostada na parede.
O olhar de Diadorim era que estava me indicando: que para aquela
mocinha ia meu admirar. Administrado, chamei: "A senhora
meninazinha, chega aqui mais perto, me faça obséquio da
bondade..." E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que tinha as
mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede. A ela
perguntei a graça.

- "É minha neta..." - foi seo Ornelas quem disse. E mal
nem ouvi o nome com que ela me respondeu. Assussurrada, só
gostei de ver como ela se mexia por ficar quieta - vergonhosa
como uma coalhada no prato.
Mas, nos tons do velho Ornelas, eu tinha divulgado um
extravago de susto, recuante, o leve medo de tremor. Isso foi o que
me satisfez. Aquele homem, visconde e portoso em tudo, ah,
pelo mulheriozinho de sua casa ele não encobria o comprado,
eh, sua família dele. A avaliar o de Diadorim, por igual, como
mostrava - outros olhos - o arregalo de ciúmes. Aqui digo:
que se teme por amor; mas que, por amor, também, é que a
coragem se faz.
Deu silêncio. Aquilo tardou assim: feito o tamanduá a língua
põe, feito quem quer comungar. A mocinha me tentando, Com
seu parado de águas; a boniteza dela estexe em minhas
carnes. Ela perigou. Não perigou: no instante, achei em minha idéia,
adiada, uma razão maior que é o sutil estatuto do homem
valente. Aquela formosura, aquela delicadezazinha, então podiam
mesmo ser assim, em toda segurança feito ela fosse, por um
exemplo, filha minha. A mocinha, eu de repente queria, eu
gostava de dar a ela muito forte proteção. Diadorim não imaginasse
isso. Os olhos de Diadorim não me reprovavam - os olhos de
Diadorim me pediam muito socêrro. Seo Ornelas empalidecido.
Certo que, num rebimbo de raio, eu - pronto! - o Ornelas
estava caído muito a morto, com uma bala entrolheôlho antes
de notar sequer que eu tinha pensado em arisco de mover nas
armas. Diadorim caso fosse, ele eu desarmava; e meus homens
estariam ali, todos de pé, fechando praia de mar. A
menina-mocinha, que eu agarrava nos braços, era uma quanta-coisa
primorosa que se esperneia... Mas eu não quis! Ah, há-de-o, quanto e
qual não quis, digo ao senhor: e Deus mesmo baixa a cabeça que
sim: ah, era um homem danado diverso, era, eu - aquele jagunço
Riobaldo... Donde o que eu quis foi oferecer garantia a ela
por sempre. Ao que debati, no ar, os altos da cabeça. Segurei
meus cornos. Assim retido, Sosseguei - e melhor. Como que,
depois do fogo de ferver, no azeite em corpo de meu sangue
todo, agora sochupei aquele vapor fresco, fortíssimo de
vantagens de bondades.

- "Menina, tu há de ter noivo correto, bem apessoado e
trabalhador, quando for hora, conforme tu merece e eu rendo praça,
que votos faço... Não vou estar por aqui, no dia, para festejar.
Mas, em todo tempo, vocês, carecendo, podem mandar chamar
minha proteção, que está prometida igual eu fosse padrinho
legitimo em bodas!"

Alto estive, atrás do que falei. Ela se assustou, outra vez, sem
capacidade nenhuma, ainda mais ao avermelhar. E eu também

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mercês colhi - da alegria veraz, nos meus olhos de Diadorim
Será que será, que por contentar profundo Diadorim eu tinha
feito aquilo resoluto? Ou por outra, por aquele próprio velho
homem, seo Ornelas, que nesse intervalo de instantes dizendo
estava:

- "Agradece, minha filha, as todas palavras deste grande
Chefe, que é declarado sagrado nosso amigo, perante as voltas
todas que o mundo dá e der!"

Realmente, então eu virei para ele. E, daí, deveras foi afoito
que eu quis com ele outras conversas, e prezei a amizade daquele
homem dos sertões transatos. O quanto fiz perguntas. Aceitei o
chá de laranjeira, com que sempre dei bem, numa tigela grande,
com capricho desenhada. Minha gente junto comigo escutava.

- "O senhor tem noção de quem Zé Bebelo é?"- eu
indaguei, uma hora, por me confirmar.
"Zé Bebelo? Pode ser, não digo... Mas figuro que, esse
nome, nunca ouvi, não, meu senhor..." - foi o que ele
respondeu.

Ao que isso era um fato possível? Ele não sabia De Zé
Bebelo, nem do Ricardão, nem do Hermógenes, ele não sabia
nem a preposição. Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era
ilusão de haver e não se saber. O mundo ali tinha de ser de se
recomeçar... "Sou de pouca política, me desfiz de ser... -
ele externou. O chefe próprio dele, ele não citou; feito se eu
ignorasse o qual era. Célebre, esse, também - é que o senhor
pode ter conhecido igualmente, pois era um que viajava amiude
até no Rio de Janeiro, se bem que famanado homem de cabras
em armamentos, na política de jagunçagem. Aquele
sequinho, espigadinho, vestido cidadão, com mãozinhas pequenas,
pezinhos - e do ar sempre assustado constantemente. Dele sozinho,
o que se diz: umas duzentas mortes! Conheceu, o senhor?
No barranco do São Francisco o Coronel Rotílio Manduca
- em sua Fazenda Baluarte! Agora, paz.

Mas aí eu perguntei a respeito daquele seô Habão, só mais
para variação de conversa, mudando o propósito. Em resposta
assim ouvi:

- "Esse um, vem a ser até parente de minha mulher, e longe
meu aparentado... Mas de desde mais de uns dez anos que
cortamos conhecimento."

E como eu atalhei o assunto, por convinhável nas boas
normas, pois a lembrança dum inimigo deixa qualquer homem
agastado, o seo Ornelas relatou à gente diversos casos. E o que em
mente guardei, por esquipático mesmo no simples, foi o
seguinte, conforme vou reproduzir para o senhor.

O qual se deu da parte da banda de fora da cidade da Januária.

Seo Ornelas, nessa ocasião, tinha amizade com o delegado
dr. Hilário, rapaz instruído social, de muita civilidade, mas
variado em sabedoria de inventiva, e capaz duma conversação tão
singela, que era uma simpatia com ele se tratar. "Me ensinou
meio-mil de coisas... A coragem dele era muito gentil e
preguiçosa... Sempre só depois do final acontecido era que a gente
reconhecia como ele tinha sido homem no acontecer...

Ao que, numa tarde, seo Ornelas - segundo seu contar -
proseava nas entradas da cidade, em roda com o dr. Hilário mais
outros dois ou três senhores, e o soldado ordenança, que à
paisana estava. De repente, veio vindo um homem, viajôr. Um capiau
a pé, sem assinalamento nenhum, e que tinha um pau comprido
num ombro: com um saco quase vazio pendurado da ponta do
pau. - "... Semelhasse que esse homem devia de estar chegando
da Queimada Grande, ou da Sambaíba. Nele não se via fama de

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crime nem vontade de proezas. Sendo que mesmo a
miseriazinha dele era trivial no bem-composta..." Seo Ornelas departia
pouco em descrições: "...Aí, pois, apareceu aquele homenzém,
com o saco mal-cheio estabelecido na ponta do pau, do ombro, e
se aproximou para os da roda, suplicou informação: O qual é
que é, aqui, mó que pergunte, por osséquio, o senhor doutor delegado? -
ele extorquiu. Mas, antes que um outro desse resposta, o dr.
Hilário mesmo indicou um Aduarte Antoniano, que estava lá -
o sujeito mau, agarrado na ganância e falado de ser muito
traiçoeiro. - "O doutor é este, amigo - o dr. Hilário, para se rir,
falsificou. Apre, ei - e nisso já o homem, com insensata
rapidez, desempecilhou o pau do saco, e desceu o dito na cabeça do
Aduarte Antoniano - que nem fizesse questão de aleijar ou
matar... A trapalhada: o homenzinho logo sojigado preso, e o
Aduarte Antoniano socorrido, com o melôr e sangue num
quebrado na cabeça, mas sem a gravidade maior. Ante o que, o dr.
Hilário, apreciador dos exemplos, só me disse: - Pouco se vive, e
muito se vê... Reperguntei qual era o mote. Um outro pode ser a
gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém...- o dr. Hilário
completou. Acho que esta foi uma das passagens mais instrutivas
e divertidas que em até hoje eu presenciei...

Tal, e outras, contou o seo Ornelas, senhor de prosa muito
renovada. Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão;
ainda que às vezes eu ficasse em dúvida: se competia, sendo eu
um chefe, aturar que um outro fiasse e tecesse, guiando a fala. E
também com o tardio da noite, veio a hora de se desapcar da
mesa, e eu teimei em rejeitar oferta de cama em catre em quarto
ou sala, mas fui fora, caçar o meio da minha gente; por sinal que
armei rede por entre cajueiro e jenipapeiro, perto dos currais, e,
para o segundo sono, mudei de rearmar, de faveira para faveira,
lá para dentro duma cerca. Mas, na mesa, aquele menino Guirigo,
na senvergonhice inocente de sua pouca geração, tinha
adormecido completo antecipadamente, e eu consenti que as mulheres
carregassem o coitadinho diabinho, pesado como um de
maioridade, e levassem para dormir sei lá onde, por entre colchão e
lençol. A vida inventa! A gente principia as COisas, no não saber
por que, e desde aí perde o poder de continuação porque a
vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.
Assim eu tinha trazido o pretinho Guirigó, do Sucruiú, e agora ele
estava indo para se deitar no limpo e fofo, nos braços das jovens
e donzelas carregado. Somente que, inteirado no sono, ele
mesmo disso não soubesse, nem aproveitasse, do que em sua
existência dele era que estava se sucedendo. - "A pois, boa noite o
senhor tenha, Chefe, com um aprazível amanhecer..." assim
seo Ornelas me saudou. Ao que eu, regozijado e bem servido,
retribuí a ele, quase com aquelas mesmas palavras.

As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barharanha,
eu aplico, não por vezo meu de dar delongas e empalhar o tempo
maior do senhor como meu ouvinte. Mas só porque o compadre
meu Quelemém deduziu que os fatos daquela éra faziam
significado de muita importância em minha vida verdadeira, e
entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, que com a lição solerte
do dr. Hilário se tinha formado. Aí, narro. O senhor me releve e
Suponha.

No outro dia, acordei com a boca amarga e doce, e o través
de baixar alguma ordem comandando; esse dia com essa noite
não se pertencia. Achamos, de recrutagem, os cavalos que
pudemos -o que foram os dez, os burros e mulas também contados.
O Seo Ornelas honrava os atos. Além do que quis que eu
falhasse, para a festa, com o meu povo; mas achei mais sobressaído ir
mesmo embora, exato. Semeei para trás de mim o bom ensejo,
para poder ser de vir a colher, mais para diante, outros assim tão

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bons e melhores. Sincero o dito, a gente agradeceu, subindo
todos em selas, e a limpo seguimos - a manhã ainda com diversas
claridades. Seo Ornelas externou as despedidas, com o x'totó de
foguetes, conforme se lembrou de mandar começar a soltação,
cujos por bem uma meia-dúzia. O pessoal deu vivas, gloriando o
mastro com a bandeira do santo. Ao que, pelo mais, puxei em
frente, pondo meu cavalo: com espora, rédea e pernas. Deciso.
Rompemos umas duas léguas, em estradas de muita areia.
Mas eu já estava agastado. O que nesta vida muda com mais
presteza: é lufo de noruega, caminhos de anta em setembro e
outubro, e negócios dos sentimentos da gente. Assim, de repente, eu
achei: que a conversa com aquele seo Ornelas tinha me
rebaixado. Aos poucos eu tivesse perdido a vigiação de minha alçada, no
acaso da presença dele, debaixo daqueles telhados. A opinião das
outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla
aos tantos, mesmo sem a gente saber, com a maneira da idéia da
gente! Se sério, então, um tinha de apertar os dentes, drede em
amouco, opor seus olhos. A cuspir para diante. Alguma instância
das outras pessoas, pegava na gente, assim feito doença, com
retardo. Apartado de todos era a norma que me servia no
sutil e no trivial. A culpa minha, maior, era meu costume de
curiosidades de coração. Isso de estimar os outros, muito ligeiro,
defeito esse que rue entorpecia. O tanto que, daí depois, essas
pessoas andavam em minha desilusão: de repente todos estavam
endoidecendo... Do agravo, como ia em pensar, achei asperezas
até na goela; e o cuspe não cabia em minha boca, salgado como
um suadouro de cangalha. Aí então, estou lembrado, vendo como vi
oAlaripe de mim a curta distância - e que, em tudo comedido,
guardava o balanceio brando no coxim da sela, de vaqueiro de
gado tangedor. Chamei para ele vir.

- "Ah, o velho entregou os cavalos, hem, Alaripe? Coração
dele aguou..." blasonei. "... Deu por paz. Alaripe, ei, essa
paz não te enjoa?" - "Ah, é deveras... A uns, é o que sucede..."
"- Mas a paz não é boa? Então, como é que ela enjôa, assim
mesmo?""- Natureza da gente, mal completada" "-Tudo tu
ve, Alaripe: eu acho que o enjôo da paz será também algum
outro medo da guerra..."" Pode que seja."" É mas só o medo
da guerra é que vira valentia..." - "Mal bem não entendo meu
chefe, mas deve de ser..." "- Pois não é? Só quando se tem rio
fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte..."

Assaz essas coisas, eu inventava em fala, para ter meus eixos,
meus aços. A boca do boi quer sal - o sal do barro vermelho. Eu
estava chamando umas bizarrias Força dessa minha maneira:
eu estava pelo calor de tudo. E a gente ia indo, aquela comprida
cavalhada. Um ribeirão raso e estreito se passou nem bem
seis braças. Riacho desses que os que vão morrer chamam de
rio-Jordão. Todo o mundo passou, por tanto, diante de mim, eu
esbarrado em pé - isto é, a cavalo.

A virar o ar, viemos. em caminho não se descansou um dia.
Agora eram os brejos da beira do Paracatú. Mas eu tinha
conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do rôr daquilo eu
não conciliava, conforme perseguia, custoso vermelho meu.
Somente quis, nem podia dizer aos outros o que queria. somente
então uns versos dei, que se puxaram, os meus, seguintes:

Hei-de às armas, fechei trato
nas Veredas com o Cão.
Hei-de amor em seus destinos
conforme o sim pelo não.
Em tempo de vaquejada
todo gado é barbatão:
deu doideira na boiada
Soltaram o Rei do Sertão

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Travessia dos Gerais
tudo com armas na mão...
O Sertão é a sombra minha
e o rei dele é Capitão!...

Arte que cantei, e todas as cachaças. Depois os outros à fanfa
entoaram mesmo sem me entender, só por bazófias mas
rogando no estatuto daquela letra e retornando meu rompante;
cantavam melhor cantando. De todos, menos vi Diadorim: ele
era o em silêncios. Ao de que triste: e como eu ia poder levar em
altos aquela tristeza? Aí eu quis: feito a correnteza. Daí, não
quis, não, de repentemente. Desde que eu era o chefe, assim eu
via Diadorim de mim mais apartado. Quieto; muito quieto é que
a gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a
gente. E já se estava antefrente do Paracatú que também recovava
o pouco e escasso. Esbarrei não, nem examinei o adiante. Demiti
meu cavalo n'água. Os outros me acompanharam. Assim
atravessamos.

Vai, viemos, viemos. Esses dias em ondas. Sei só as encostas
que subi, a festo. O Chapadão: céu de ferro. E era a lua-nova.
Aquelas pedras brancas, que de noite tanto esfriam. As caraíbas
estavam dando flôr. Por ponto de meu corpo, medi o enrolar dos
longes ventos. Aí se viu, em seus couros, um vaqueiro
pessoalmente. A esse, perfiz: - "Amigo ô amigo, aqui é aqui?"Ao que
ele confirmou: "Aqui, o senhor, meu senhor, os senhores
tão nos andares do rio Urucúia..."Aos campos. Sentei que
estava. Estrela gosta de brilhar é por cima do Chapadão. Tanta
doideira fiz? A prazo. Como aquela vista reta vai longe, longe, nunca
esbarra. Assim eu entrei dentro da minha liberdade. Ói, grita,
arara, araraúna, para a tua voz desenrouquecer! O Chapadão é
uma estada, estando. Somente eu sabia respirar. Sumo bebi de
mim, e do que eu não me tonteava. Só estive em meus dias. E
ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o eco daquele
tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o senhor
arranque, declara o real daquilo, daquilo - sem traslado... Ali eu
diante de portas abertas, por livre ir, às larguras de claridade...
Acho que foi assim.
Assim. Mas alguém me impediu. Ou era que mesmo desse
jeito tinha de ser? Urubús perpassaram, extremamente, e para o
poente vinham. Diadorim me chamou, pegando em meu braço.
Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por
minha salvação, a minha perdição. Ou foi que minha Nossa Senhora
da Abadia mandou que assim tivesse de ser? Mas Diadorim tirou
o açôite de minha ação, ele me puxou, eu segurado, o propósito
para trás. Nas grimpas, naquelas, o significado duma coisa tive,
que depois lhe relato. Ah, só no azul do anoitecer é que o
Chapadão tem fim.

Foi na descida de algumas ladeiras, no se costear um barrocão.
Diadorim disse: - "Estou aqui, te vejo mesmo, Riobaldo!"

Eu disse: "- Ah, não. Ah, paz!"

Ele disse:" - A uma coisa eu te digo, Riobaldo..."

Eu disse: - "Pois fala."

Diadorim disse - a voz dele se paliava: - "Por querer bem
é que eu falo, Riobaldo..." - feito o sussurro, nessas veredas
mão mansa, de tardinha, descabelando o buritizal.

Eu disse: - "Vai dizendo!" ; falei uma segunda palavra.

A testa dele merujava, coisas grossas gotas - mesmo se
temesse? - aquele suor devia de se gelar. Ai era um aviso, que
ele queria me fornecer?

Aí eu não queria ouvir o que fosse, de repente eu não queria,
eu não queria, fiz de ficar indignado. No eu no meu, não
tivessem de me dar a toda aprovação?Ao redor de mim, assim obede-

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cessem.A chefia sabe chefiar. Por certo, que, para ajagunçagem
os Gerais mal serviam. A pobreza daquelas terras, sé pobreza, a
sina tristezinha do pouco povo. Aonde o povo no rareado, pelo
que faltava de água naquelas chapadas; e a brabeza do gado, que
caminhava em triste achar. Desejar de minha gente, seria que se
atravessasse o do-Chico - ir em cata de vilas e grandes arreiais,
adonde se ajustar pagas e alugar muitos divertimentos.
Conforme no renovável servisse: ir aonde houvesse política e eleição.
Sabia disso. Eu não era pascácio. Um chefe carece de saber é
aquilo que ele não pergunta. E mesmo eu sempre tive diversas
saudades.

Reprazia, para mim, um dia reverter para o rio das Velhas,
cujos campais de gado, com coqueiral de macaúbas, meio do mato,
sobre morro, e o grande revôo baixo da nhaúma, e o mimoso
pássaro que ensina carinhos - o manuelzinho-da-crêa...
Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de amor. Amor em
perto, as vezes sossega, em muitos adiamentos ao homem da
branca barba. "Tempo de guerrear!" eu disse, paraAlaripe,
o Pacamã-de-Presas, o Acauã e o Fafafa: meus contra-guias. Em
qualquer parte eu não podia arvorar bem fincado meu mastro-
de-guerra? Primeiro, então, por ali mesmo, na areia roxa, para
tomar o instinto do ar, a gente recruzava. Mas, dirá o senhor:
e o Hermógenes? A guerra não era para ser contra o Hermógenes,
os Judas? Sim, sei. Mas, eles, no meu ir eles iam vir, haviam-de.
Sabia isso era eu no coxim da sela, suor nosso. Seguindo,no raso
e no monte, das areias tirando brilhos. A mal o mundo serenava,
de tardinha, quando os jaés cantavam. Ou silêncio tão devassado,
completo, que nos extremos dele a gente pode esperar o lãolalão
de um sino. Diadorim não me entendesse? Ele entendia?

Assim, eu tivesse muito ódio, Diadorim havia de me
entender. Mas eu estava acontecido. Por exemplo, vinha uma boiada,
que passou, no bom-balanceio. Aqueles vaqueiros, esses com os
laços enrodilhados nas garupas, e que, por prazer, aboiavam.
Apreciei de ver como todos souberam jeito de esconder o medo
que de mim deviam de ter. Boiada com rumo na barrra do
Paracatú, salvante que mudassem de roteiro. Mas a gente ia por lados
contrários. Deles até carneamos duas rêses. Se assou carne na
moda do povo dos Gerais - que era com espeto de vara de
folha-miúda, tanto tempo se esbrazeando para estorricar, o naco
de carne se torrava como um fumo, e o gosto daquele cheiro se
supria forte, só por si punha a boca da gente aguando. Dada a
mais cachaça ao menino Guirigó e ao cego Borromeu: para eles
falarem coisas diferentes do que certas, por em si desencontradas,
diversas de tudo. Conselhos me davam? Mesmo só o igual ao que
pudesse dar o cajueiro-anão e o araticúm, que consoante o
senhor escrito apontará sobejam nesses campos. Mas a minha
sina formava o rebrilhar; em tudo, digo ao senhor. Conforme
fatos houve.

Da mulher que me chamaram: ela não estava conseguindo
botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa mulher
assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papirí à-toa.
Eu fui. Abri, destapei a porta - que era simples encostada, pois
que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um
tranço de huriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora.
Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma
caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e
pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no
pouco chão, olhos dela alumiaram de pavêres. Eu tirei da algibeira
uma cédula de dinheiro, e falei: - "Toma, filha de Cristo,
senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer
defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo..." Digo ao senhor:
e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mu-

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lher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir:
"Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a
começar!..." - e saí para as luas.

Aquelas obras, então, Diadorim não visse? Ah, conselho de
amigo só merece por ser leve, feito aragem de tardinha palmeando
em lume-d'água. O amor dá as costas a toda reprovação. E era o
que Diadorim agora desfazia em mim, no amargoso.

- "Repuno: que você está diferente de toda pessoa,
Riobaldo... Você quer dansação e desordem..."

Mexi meu cuspe dentro da boca.

- "...A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o
que está demudando, em você, é o cômpito da alma - não é
razão de autoridade de chefias..."

Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as certas
sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da
gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras? Ai,
demorei. Eu ia aceitar essa repreensão? Ah, nunca. E,
desaguardadamente, eu atinei com outro motivo, para opor: a extratada
conversa, que Diadorim tinha tido, adeparte, com o arrieiro de
uma tropa. Perguntei, contra:

- "O segredo, com o velho arrieiro da tropa, Diadorim,
que se falaram era de minha pessoa?"

Essa tropa, que passara por nós, dias antes, rumava para o
Abaeté, com carga de fumo, mantas de borracha, couros de onça
e de lontra e cera de palmeiral, pouca coisa. Fossem atravessar o
rio, num porto; iam passar por terras minhas conhecidas, OOS
sertões menores... Agora, eu queria saber.

- "Aquele levou um recado meu. Instruí o homem que
levasse um recado..."

- "Um recado, de mim? Aí hei, que?! Malfiz?!..."
- "Um recado. Mais tu não pergunte, Riobaldo: que, o que
fiz, foi."

Dizendo, Diadorim se arredou de mim, com uma decisão de
silêncio. Não vê, que nem precisava. Eu tinha guardado meus
ouvidos. Eu não queria escutar o reto, naquela ocasião, por
desânimo de ser. Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse,
não soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte em
que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas, no ermo
da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo? E, mesmo,
na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão pois. O
pacto nenhum negócio não feito. A prova minha, era que o
Demônio mesmo sabe que ele não há, só por só, que carece de
existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa, podia
carregar nômina; rezo o bendito! Trastempo, mais outras coisas
sobrevinham, mas por roda normal do mundo, ninguém podia
afiançar o contrário. Após pedra por sobre pedra, não guardo
lembrança. Eu era o chefe. Vez minha de dar comando e estar
por mais alto. Zé Bebelo tinha de todo desaparecido. Agora, o
que se carecia, era de se pegar mais munição. Todos deviam de
me obedecer completamente. Só eu não queria abusar. Por que
não queria? Ah, então, eu estava em dúvidas. Até por isso era que eu
estremecia, fino, no ouvir certas menções. A haver a coisa que de
longe me ameaçasse, feito o vem-vem das núvens de chuva. O
demo, mesmo assim, podia me marcar? Se não fosse, como era
que Diadorim viesse vir com aquelas palavras? Acho que eu não
era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.

Do que Diadonim se estranhava, era do seguinte: tinha sido o
que aconteci com um sujeito senhor, um que disse se chamar
nhô Constâncio Alves, que topamos no Chapéu-do-Boi. E
também do desgraçado do homenzinho-na-égua, com o cachorro

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dele, que vieram vindo, três léguas depois daquele. As coisas vãs
esparramaveis.

De que tivesse neste mundo um tal nhô Constâncio Alves, o
que era que eu ponderava com isso? Mas ele mesmo ali loguinho
falou: que era nado no pé da serra de Alegres, e sendo da minha
primeira terra, também. Foi bem tratado. Mas disse que podia
o ser de ter me conhecido, quando eu menino. Isso me disse aquele
nhô Constâncio Alves. Queria recompensas? Aos princípios,
não desgostei de prosear com um antigo assim, compatrício,
asseado em suas roupas e bem-avindo. Aí ele tomou café, com a
gente. A dar, que o homem foi se avontadeando, encompridando
as respostas; eu mesmo dava jeito para que ele tomasse coragem.

Até que, um certo momento, o pretinho Guirigó se chegou
sorrateiro, e emitiu em minha orêlha. - "Iô chefe.., arenga
do menino Guinigó, que às vezes bem não regulava. O capeta -
ele falou no capeta? Ou então, só de olhar para ele, e escutar, eu
pensei no capeta; mas, que era do capeta, eu entendi. Daí, de
repente, quem mandava em mim já eram os meus avessos. Aquele
homem tinha quantia consigo: tinha consciência ruim e
dinheiro em caixa.., assim eu defini. Aquele homem merecia
punições de morte, eu vislumbrei, adivinhado. Com o poder de
quê: luz de Lúcifer? E era, somente sei. A porque, sem prazo, se
esquentou em mim o dôido afã de matar aquele homem,
tresmatado. O desejo em si, que nem era por conta do tal dinheiro: que
bastava eu exigir e ele civilmente me entregava. Mas matar,
matar assassinado, por má lei. Pois não era? Aí, esfreguei bem
minhas mãos, ia apalpar as armas. Aí tive até um pronto de rir: nhô
Constâncio Alves não sabia que a vida era do tamanhinho só
menos de que um minuto...

Ah, mas, então, do sobredentro de minhas idéias - do que
nem certo sei se seja meu uma minha-voz, vozinha forte demais,
de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta ocasião
que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem,
miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar,
então, em meus grandes palácios. No coração da gente, é o que
estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a
vozinha dizia: - "Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o
diabo fincou pé de governar tua decisão!..." A anteguarda que
ouvi, e ouvi seteado; e estnibei minhas forças energias. Que como?
Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o
primeiramente. Só orçava. O instante que é, é - o senhor nele se
segure. Só eu sem.

Mas, aquilo de ruim-querer carecia de dividimento e não
tinha; o demo então era eu mesmo? Desordenei quase, de
minhas idéias. Eu matava um tiquinho, só? Em nome de mim, eu
não matava? Só forcejei por sobrenadar alto em mente o mando
daquela vozinha. Eu, eh, masquei meus beiços, eu arrebentasse.
Vi que acabava tendo de matar, e era o que tu mesmo queria.
Como que tivessem espalhado, ombro com ombro, pelos
inteiros cabíveis do Chapadão, os diabinhos, mil e mil, tocando lindas
violas - para acabar com o que eu mesmo me falasse, e de mim
quisesse por valia me entender, contra o que o demonio-mestre
tinha determinado... Sendo que mal resisti, nas últimas, saiba o
senhor. Ah, mas. E é preciso, por aí, o senhor ver: quem é que
era e que foi aquele jagunço Riobaldo! Pois em instantâneo eu
achei a doçura de Deus: eu clamei pela Virgem... Agarrei tudo
em escuros mas sabendo de minha Nossa Senhora! O
perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para
uma vida inteira...

Súbito sendo - pois, pois - que um recurso eu tive, e por
uma greta me sai, levando a salvo comigo o desgraçado nhô
Constâncio Alves. O conforme foi: que isto eu espiritei: que fa-

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zia a ele uma pergunta. Respondesse a mal, morresse; mas, de
outro jeito, recebia perdão. Aí a pergunta seguinte:

- "Se sendo que o senhor é de minha terra, a pois:
conheceu um homem que se chamava Gramacêdo? Será, o senhor é
parente dele?"

Só esperei. Ele dissesse que tinha conhecido o outro, e, aí,
morria, por eu não poder não-matar; por quanto a salvação dele
mermava, que nem morrão de candeia. E assim, com obrigação
minha mesma, eu tinha para sempre combinado.

Mas nhô Constâncio Alves era para ganhar, no azo daquilo,
pelo que deu, de resposta:

- "Gramacêdo? Sinto dizer, mas esse eu nunca vi, nem dele
ouvi falar. Tenho parentescos com ninguém de tal nome..."

A minha mão já tinha estado para o revólver, brandamente.
Nhô ConstâncioAlves percebeu o mal-amém. Confuso como se
rebaixou um pouquinho no tamanho: ele devia de estar abrindo
os joelhos, por tremor de medo nas pernas. Aí ele mesmo então
achasse que carecia de muito morrer? num pingo eu pensei.
traiçoeiro. O medo mostrado chama castigo de ira; e só para isso
é que serve. Ah, mas ah, não! ; eu tinha decidido. Tinha ou
não tinha. Eu? Assim, noutro repingo: arejei que toda criatura
merecia tarefa de viver, que aquele homem merecia viver por
causa de uma grande beleza no mundo, à repentina. Um anjo
voou dali? Eu tinha resistido a terceira vez. Agora, nhô Constâncio
Alves estava delivrado de perigo. Só que eu gritei:

- "O senhor tem seu dinheiro?"

Ligeiro, novo, o homem caçou com suas mãos o surrãozinho,
que abriu: estava cheio de notas, bem enroladas e embrulhadas
num pano; e assim me dava, me presenteava. Mirei aquele triste
pescoço. O que em seco ele foi engolindo: que podiam ser as
contas todas dum terço.

Aproximei o cobre. O ele, nhô ConstâncioAlves, deixei que
fosse embora. Nem espiei para dele não ver as costas. Mas, aí,
então, para me pacificar e enterter o Outro, eu tive de falar alto:
- "Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas
estradas, paga!"
Eu disse. Eu ia cumprir?
De seguida, o primeiro veio, logo mais adiante; quase no
se inteirarem três léguas. Conforme houve fatos, coisa que se
pasSOU. E foi numa várzea, com uns boizinhos ali bem pastando.
Demos com um sujeito, aparecido viajor. Ele vinha numa égua.
Essa égua era acastanhada, com alguma altura. Aqueles arreios,
de velhos, era que desfaziam. Um cabo da rédea estava sendo de
couro, mas o outro de sedenho. A égua também cambaiava. O
homem tinha cara de focinho, avançando o formato dos ossos da
boca: não tinha queixo. Desgraçado desse homem, pelo que em
sua vida ia ser, pelo que seus aspectos indicavam. Nem merecia
dó, assim achei. Mas, na companhia dele, atrás, vinha também
um cachorrinho.

Eles esbarraram. O cachorrinho pegou a latir, nesse ofício
que quase todo cão tem, de ser presumido valente. O homem
bambeou de si, em cima da égua, ele estava pecando de pavor.
Como que, num só relance ele transformou três caras. E para o
pretinho Guirigó me virei, por perguntar:

- "Aqui, este, deveras eu mato?"

- "Senhor mata? Senhor vai matar?" o pretinho só se saiu
pelos olhos.

Ao que escutei queixos e dentes do homem bater. Súdito
indivíduo assim não tinha ação de voz nem tirava um suplicar.
Tudo o que não sabia, ele adivinhava. Previsse que ia morrer só
para indenizar do perdão dum outro, só por preencher o lugar
que devia de ser o do nhô Constâncio Alves?

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Ah, não. Agora, a vontade de matar tinha se acabado! Sei e
soube: por certo que o demo, agora, escondia sua intenção, por
desconfiar de que eu não fosse querer cumprir. Com ele, meu
senhor, assim é: sempre escolhe seus estilos. Ao mais, dessa vez,
ele sabia que não carecesse de me azuretar. Sabia que eu estava
até com enjôo da situação daquele homem da égua, meu gosto
era permitir que ele fosse s'embora, forro de qualquer castigo.
Mas sabia igual que eu estava na estrita obrigação de matar -
porque eu não podia voltar atrás na promessa da minha palavra
declarada, que os meus cabras tinham escutado e glosado. Ah, o
demo bem me conhecia! Devia de estar no astuto, ali por perto,
feitor, se pagodeando de mim: querendo ver bem boa execução,
do meu dever de crime. E o homem da égua o nada de tUdo
espiava, por mais inteiriço não se ser se forcejava, e um espírito
de silêncio ele gemia. Aí onde era que estava o anjo-da-guarda
dele? Aí tinha de morrer. Carecia de morrer, porque o diabo,
por novaS voltas, no nó de compromisso tinha me pegado; e porque
outro ao-menos-remédio não havia. O cachorrinho por sua
vez entendia isso, e latiu, cainhava, ganiz; mais conseguido do
que o dono ele sabia dar de gemer. Mas eu estava pensando
redobrado.

Como era que eu ia matar aquele sujeito, anunciado de
pobre, e matar em vez de um outro, sadio em bojo, e rico? Aquilo
era justiça? Vai ver, ele nem conhecesse o nhô ConstâncioAlves,
nem soubesse quem fosse. Era justiça? Era possível? Eu pensei.
O que era que Zé Bebelo, numa urgência assim, no arco,
inventava de fazer? Eu tinha a preguiça de falar perguntas.

Os outros, parados em volta, esperàvam, por apreciar.
Ninguém não tinha pena do homem da égua, mirei e vi.
Consideravam de espreitar meu procedimento. A aflêima de assim loguinho
ter de botar e ouvir minhas palavras no ar, me agravou. E foi
entãO, para retardar os momentos, que ao cego Borromeu eu
indaguei:

- "Seja o que, companheiro velho? E eh lá isso?..."

Atabafado. Até porque, de pedir avisos a um cego, assim, em
públicas varas, eu tivesse de me vexar.

- "Se é se é, Chefe? A-hem? Se é o que mecê sumeteu,
enhém? Senhor quer que seja que se mate um tal?"
sem-termo do cego me respondeu, sem-razão. Ao que eu tinha trazido
aquele comigo, para a nenhuma utilidade. - "Senhor mesmo é
que vai matar?" o menino Guinigó suputou, o diabo falou com
uma flauta. "Te acanha, dioguim, não-sei-que-diga! Vai sêbo..."
- eu ralhei. Onde os outros riram rabo.

Mas, entre isso, o homem condenável, em cima da égua,
amontado sempre, chorava por si mesmo, sensato sério; chorava,
decerto, o ter crescido de sua longe meninice. Nem
perguntei o nome dele, nem donde era que era. Um naqueles casos, de
nada carecia nem necessitava. A cara dele, pelo malaventurar, se
quebrava das formas e cor, e perpassava - ele era um ser com a
cara desmanchada.Aí o Acauã, por um gesto de aviso meu,
assestava nele, sobrestante; porque, mesmo no magoar do terror, por
vez um se assopra de adoido, dá bote, dá nas armas. Agarrado
todo na égua, só encolhido, encarapitado o pobre.

"Vai sêbo!" - eu tornei a xingar o menino-de-infância.

Adforma que eu tinha de resolver. Antes ligeiro, para os meus
homens não me acharem aparvo. Ou o demo. O demo? Ainda
que muito eu sei. Agora esse se prespinitava por lá, sabível mas
invisível; e ele estava se rindo de mim, meu próximo.

Ah, não! Somei que tive pena do homem? A cachorrinha se
latia. Mas, como era que eu podia atirar numa triste pessoa
daquelas, que semelhava com os ombros debaixo de todas
ventanias? A cachorrinha perturbava os cavalos. Aperto do dever que

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eu tinha de cumprir, de editada palavra. Ou eu temi também o
Tranjão, oTibes, o Cujo, que eu mesmo ajustara por meu vigiador?
Seja o que; hoje mais rezo. O homem nas costas da égua,
desinquieta, que agora dava debate. Decerto porque, animal de
montada, no que percebe aquele humano pavor alheio, o todo
desprezo ao cavaleiro está obrigado a demonstrar. Conseguinte que,
sobre assim, todos riram mais: "Oé, eh, ele já está se
deixando!" algum reparou. Se via? Se o homem dera de obrar,
mesmo permeando para a sela, que se sujava? Às caçoadas,
constavam de querer ver aquilo. Daí, o cachorro, por resguardo de seu
dono, agrediu os cavaleiros com o qual a latição dele, e os
arreganhos, os cavalos de uns desgostavam e se empinavam, por
reboliz. O homem, mesmo, era que se franzia, no não dizer, não
desbobeava. Ah, e Zé Bebelo! repentino relembrei, as
remotas vezes. Os cavalos saltando assim, os cavaleiros bramando:
recordação de Zé Bebelo. Só Zé Bebelo servia para apurar um
impedimento desses, no deslindar. Onde ele? Ah! Ah e foi aí
então que estouradamente achei: fortes idéias! Rapatrás, fazendo
meu cavalo também se arquear e empinar, às patas -
eu disse. Disse, que bradei - num entusiasmamento daqueles
mesmos de Zé Bebelo - a fala igual à de Zé Bebelo, na baralhada
em pompa dos animais, arre crinas, na arroubagem de
arruaça. Eu pronunciei:

- "Rai'-a-puta-pô! Não tenho que matar este desgraçah,
porque minha palavra prenhada não foi com ele: quem eu vi,
primeiro, e avistei, foi esse cachorrinho!"

Só um assarapanto de silêncio. Daí, me vivavam. Todos
entenderam, me admiraram. A tanto que sei. Agora, eu, digo ao
senhor: dele, do Demo naquele instante agora era eu
quem ria!

- "Ei-ei, gente, segura o cão!" dei ordem. Num
trêstempo a cachorrinha estava pega, se esbrabejava. No que uma
peia, um laço, ou um cabresto, eram desconformes para isso,
então o Pacamã-de-Presas e o Jiribibe arrumaram uma jarda de
fina corda, com ela se amarrou o bichinho num pé de assa-leitão.

- "Não deixem ela uivar... Não deixem ela uivar..." foi o que
o cego Borromeu disse, pelo modo ele tinha medo de uivado de
cachorro. "A bom, cachorro a gente enforca..." o
menino Guirigó deu atrevimento de ensinar. Mandei que esse menino
fosse para mais longe, perder as influências. Deram uma
palmada na anca do cavalo dele, que o João Vaqueiro puxou, para ir
exilar os dois em boa conveniente distancia.

"Um cachorro, quando se enforca, chora lágrimas - os
olhos dele regulam com os de gente..." foi o que o Alaripe
disse, com simples voz. A tudo, pensei. Agora, matar aquela
cachorrinha? O que menos eu pudesse, só mesmo por pragas. Pelo
tanto que a cachorrinha se prezava correta, latindo tão relatado.
Ah, não! Ah, não, não matava. Mais, por aí, eu também já tinha
aprendido das sutilezas. Tornei a transdizer:

- "Adonde! ... E nem não foi essa cadela. A égua, essa é que
foi a que primeiro deu nas minhas vistas!"

Real, mudando o propósito e para que isto bem se
entenda. Fio que me aprovaram. Divertidos, todos; quem é que ia me
contrariar? Eu era senhor dali e daqui: eu falando, ficava sendo.
Do Demo, mesmo, não tirei noção. Agora eu estava com outra
pressa. "Desapeiem o homem, mandemos embora, que se
vá!" em ato ordenei. Até porque ele se cessava sem
entendimento das coisas, sem ação. Transes que em instante temi:
aquele homem morresse, roqueado no medo, rebaixado dessa forma
- então, ah, aí, então, o destino de lugar, para mim, estava
definitivo: se sendo nas extremas do fim do Inferno... Com jeito,

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com asco, uns dos meus cumpriram meu mandado,
desamontaram o homem, e o homem quase nem se impunha de ficar em
pé. "Tu foge fora daqui, tu te vai embora!" eu disse, tive de
gritar. Aí ele entendeu, e saíu. Por um momento, pensei que
fosse correr. Mas esbarrou, sem espiar para trás. Agora era que
achava pranto, com bem de choro: estava chorando soluços fortes,
igual se fosse criança pequena. Aquilo não tinha nenhuma
sensatez e me dava gastura, astúcia que remexia com minhas
resistências. Aborrecidos, os do meu pessoal gritaram com ele, que
tornou a pegar a correr, ao tom dos brados. Ainda esbarrou, outra
vez, devia de estar chorando, conforme os ombros dele se
sacudiam. Arrochei. Assim foi em arrebrusco: sobreveio em mim a
estúrdia arfagem de chorar também eu nas margens do mar.
Não quis e nem pude. Ânsia que meus olhos, para dentro, davam
em escuro. As graças d'arte sabe o senhor : na escuridão,
não se chora, por não se ver, como não se pita cigarro... Com
isso, desgostei de mim. Ah, no final da vez, o que ria o riso
principal era ele, o demo. O Tisnado! Assim, por causa da judiação
que eu, mesmo por querer salvar a vida dele, eu tinha procedido
de demorar assim, com aquele homem. Antes tivesse logo
matado. Como é que se podia desrespeitar tudo desse jeito, numa
desgraçada pessoa, roupeada? Como é? E o homem não tinha
vislumbrado de espiar para trás, para saber de sua cachorrinha. E
a cachorrinha estava ali, hem amarrada na dignidade. Tanto ela
não latia mais, que todos tinham se esquecido dela. Agora
colhi em mim um estado de desânimo. A ser, que, por conta
daquele homem, por meus desmandos, quem sabe eu ia ter, mais
para adiante, de pagar, com graves castigos?

Algum tempo estava se passando, daí já tinham desarreado a
égua, e o lombilho e os baixeiros botaram dependurados num
galho de árvore de beira estrada. Ali estava aquele magro animal.
preso somentemente no cabresto, que o Fafafa segurava; assim
esperavam que eu desse cabo dela, eu mesmo, ou que mandasse
outro fazer, segundo tinha sido a minha decisão. A cachorrinha,
essa, eu pensei: eu dava para Diadorim, que perto todo o tempo
tinha ficado, calado durante tudo. E, pois, era a hora de minha
acertação, mesmo com a contrariedade. Ao dito, porque eu
tinha começado a desastrada estória, que um final razoável carecia
de ter. Suficiente sacar garrucha, e mirar o tiro na testa da égua,
que se debruçava de pernas abertas, se acabando. A tanto, pois?

Ao que o Fafafa, que não teve poder em si de se consentir
silêncio, virou para mim, e disse: "Nosso Chefe, com vênia eu
peço: o senhor aceite de eu pagar em dinheiro o prêço deste
inocente animal, que seja poupado... A egüinha não é de todo
ruim..."

Aonde que ele disse, outros secundaram: eu deixasse.
Repente meu foi meio irado; porque até o Fafafa me atravessava.
Os demais, a ver que reprovavam minha decisão, de que a égua
se matasse. A gente revoltosa? Ah, não; que, em seguida, gostei,
eu mesmo. Instante em que me prazia ouvir o meu pessoal
diScordar daquilo, com a égua, a frio e por fria razão. Do demo era
que eles discordavam! Rapaziada boa, solerte. Só que, assim, como
eles queriam, não estava em meu regulamento resolver. Vender,
não vendia a vida da égua ao Fafafa. Ah, não. Resumi um recurso,
por aí alerta. O que foi como pronunciei:
- "Delibero o certo: o primeiro que eu vi, foi essa égua. Ela
tinha de receber a morte..." Ah, mas égua não é gente, não é
pessoa que existe. É que? Ah, então, não é cabível que se mate a
égua, por tanto que a minha palavra decidida era de se matar um
homem! Não executo. A alçada da palavra se perdeu por si e se
gastou pois não está dito? Acho e dou que o negócio veio ao
terminado.

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Verdadeiramente, com alegria, foi que todos me aprovaram.
Ou seja que me admiravam em real, pela esperteza de toda
solução que eu achava; e mesmo nem sabiam que essas minhas
espertezas eram cobradas da manha do Tentador. Contente, tanto, e
descontente, comigo, era que eu estava. Porque essas coisas, de
certo modo, me tiravam o poder do chão. Mas, uma na outra, eu
limpei o seco de minhas mãos.

"Aí, correr alguém, em tempo de campear outra vez esse
homem..." eu disse. "Trazer, a modo de se dar a ele
dinheiro, se dar de comer e um café, e tornar a entregar a ele o que
é dele..."

Eu falava era por devolver a égua. E o Suzarte, José Gervásio
e Jiribibe, torcendo em galope, foram pelo homem. A égua, que
se soltou, caçava môitas de capim, para pastar. Com o que, já que se
estava por descanso e espera, e se tinha boa aguada na vereda
perto, o Jacaré armou a trempe e coou café. Sentei, na sombra
dum pau-dôce, fiquei ouvindo os gabos que os em redor de mim
me dessem, como arras de procedimentos maiores.

"Tal a tal, o Chefe tira mais finíssimas artimanhas do que
o Zé Bebelo próprio..." um disse.

"À fé, que determina com a mesma justiça que Medeiro
Vaz..." - outro falou, mais aduloso.

Isso, bom louvo, sossegava a minha perturbação. Aquela hora,
eu estimava meus homens, que vivessem, que falassem. Mas, para
afirmar idéia e respeito de que eu estava em minha chefia
independente, mandei que aquietassem, pelo que eu ia aproveitar
para uma sesta de sonéques. Aprazia escutar o ventinho do
chapadão, com o suave rumor que assopra e faz, nas folhas do bate-
caixa. A cachorrinha, amarrada mesmo, se sujeitava de não latir:
figuro que alguém estava dando a ela pedaços de carne-seca.
Alembro que eu ainda podia caber nesse domingozinho de
tranquilidade. O melhor - ah, pensei, o melhor de tudo! -
era que o Anhangão não aparecesse, não se visse porfiando no
meio de todos; e que mesmo o mais certo era d'ele, demo, não
competir, por não ter nenhuma existência.
Tirei minha madorna, a pouco. Suzarte, Jiribibe e José
Gervásio já retornavam, com o vazio tido, sem o resultado algum.

"... Sujeito se sumiu nesse mundo, carregando com o rastro,
medo dele era medonho... Só achamos o nada dele..." assim
rendiam explicação. Que é que se podia remediar? Seguir nossa
marcha, sem mais tardanças. A gente largava a égua ali, acaso
algum dia o homem voltava, ou dela por boca de outros tinha
notícia. Amontamos. E a cachorrinha? "Reinaldo, essa tu quer?"
- perguntei a Diadorim. Meante o que, ele melhor respondeu:
"Só convem se soltar a coitadinha, de seguro ela vai se encontrar
com onde estiver o dono.. ."E ele mesmo desatou.Valia o senhor
ver o raio de amor que tangeu a cachorrinhazinha: que latiu suas
alegrias e airada correu, sem nenhuma demora, feito fosse para
um pronto destino, há-de asas! Foi ela em longe desaparecer, e
nós tocamos, no caminho contrário. À égua ficou lá, pastando;
e o arreio do homem, como um espantalho, pendurado no ramo
de árvore, até as moscas do campo já se ajuntassem nele.

Do que acontecido, me senti muito livre. Trotei, adiante. Eu
ia, à meia-rédea, não me instava, não pensava. Será - mal
pergunto eu ao senhor - que viajei este sertão com o Outro sendo
meu sócio? Vá retro! Mas não tenho modo de entender como
Diadorim estranhou meus semblantes. E por via disso é que
tinha sido a nossa conversação por causa do de que agora lhe
dei conta miudamente.

Do que discuti com Diadorim, do que derradeiro ele me
disse, me ficou um retardo. Aquele passo me envergonhava. Como

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ser? Eu queria e não queria ouvir não queria e queria. Resto
de toda resposta, que tivesse, tinha de ser acusação. E eu quis.
Deu o que me deu, e eu vim, perguntar forçado; sentido,
perguntei:

- "O recado mandado, Diadorim, tu diz.Teu falar no exato
dever de toda lealdade, é que eu a duras exijo o que me
reverte!..."

"Sou teu amigo. O recado aquele, Riobaldo, pedi ao
arreiro para dar a uma mulher..."

"Ah, então foi para uma moça, para a filha do fazendeiro
da Santa Catarina, que Otacília é, e que é minha nôiva; será?"

- "Riobaldo, pois foi. Em que é que você malda?"

Ao que, por praga, eu relutei no freio. Até o campolino meu
cavalo assumiu um espanto. Porque surpreendi o mundo
desequilibrado rústico, o que me pertencia e o que não me
pertencia. Se a vida coisas assim às horas arranja, então que segurança
de si é que a gente tem? Diadorim me olhava. Diadorim
esperou, sempre com serenidade. O amor dele por mim era de todo
quilate: ele não tartameava mais, de ciúme nem de medo. Disse
assim:
"Pedi a ela que rezasse por você, Riobaldo... Assim pela
esperança de saudade que ela tivesse, que não esbarrasse de rezar,
o todo tempo, por costume antigo..."

No argame, no esquisito desgosto de meu espírito, vi que,
mesmo antes dele falar, eu já sabia que aquilo era o que ele
não evitava de me dizer. Rude que ainda reperguntei, mesmo
assim:

- "Ah, não! Ah, você acha que eu careço de suas rezas
orações, por minha ajuda, Diadorim?"

- "Acho, de manhã à noite, Riobaldo... Demais. Nem sei
mesmo se alguém te botou o malefício... Tua mãe, mesma, que
estivesse viva, achava..."

Mor, mor, aí, recebi surto de meu sangue, forte, no corpo da
cara e na beira das orêlhas, e logo doeu no meu beiço o que eu
estava me mordendo, assim para não insultar Diadorim com
nomes que fossem da maior ofensa. Com um tapa na rédea, eu tirei
de perto dele a cara de meu cavalo.

- "Acha tua vida, rapaz! Careço é de menos amizades..."
ainda eu maldisse, me apartando. Ao que bem pensei: -
"Hás-de! Rezas essas, o contra? Atira, tu, em anta, com chumbo fino..."
- e ri mamente. O que era que me transtornava, do meio para
o fim, por essa fraseação?

Sendo que, depois logo, quando esbarramos a caminhada do
dia, eu fiz questão de não querer prosa nem presenças de
ninguém, para que vissem que eu estava pensativo de projetos, e
raivoso. Tristonho. A gente parava no findar do Chapadão, longe
do poente, segundo se ia indo, por meu comando. As muitas
sérias coisas referi comigo, quando eu estava provando a fresca da
tarde.

Por curto: minto, se não conto que estava duvidoso. E o
senhor sabe no que era que eu estava imaginando, em quem. Ele é?
Ele pode? Ainda hoje eu conheço tormentos por saber isso;
trastempo que agora, quando as idades me sossegam. E o demo
existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente próprio
- feito remanchas n'água. A saúde da gente entra no perigo
daquilo, feito num calor, num frio. Eu, então? Ao que fui, na
encruzilhada, à meia-noite, nas Veredas Mortas. Atravessei meus
fantasmas? Assim mais eu pensei, esse sistema, assim eu menos penso.
O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: esse
negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando esperei,
chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a
quem não existe? Não será o pior?... Ah, não: não declaro.
Desgarrei da estrada, mas retornei meus passos. O senhor segurado

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não acha? Ao que tropecei, e o chão não quis minha queda. De
hoje em dia, eu penso, eu purgo. Eu tive pena de minhas velhas
roupas. E rezo. Para a minha reza, Deus dá as costas, mas abaixa
meio ouvido. Rezo. Queria ver ainda uma igreja grande, brancas
torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão. Como que
algum santo ainda não há de vir, das beiras deste meu Urucúia? E
o diabo não há! Nenhum. É o que tanto digo. Eu não vendi
minha alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada.
Diadorim só desconfiava de meus mesmos ares. Escuto o claro riso
dele, que era raramente; quer dizer: me alembro. Compadre meu
Quelemém me dá conselhos, de tranquilidade. O que ele renova
é: "... Em presente e futuros.. ." Eu sei.
Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o
que eu pelejei para achar, era uma só coisa - a inteira - cujo
significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que
era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo,
estrei to, de cada uma pessoa viver e essa pauta cada um tem,
mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é
que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas,
esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava
sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada
dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue
ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa
conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano
fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo
falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e
vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada
pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em
teatro, para cada representador sua parte, que antes já foi
inventada, num papel...
Ora, veja. Remedêio peco com pecado? Me tôrço! Com essa
sonhação minha, compadre meu Quelemém concorda, eu acho.
E procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só
que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha mão.
Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela
podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe:
tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi?
Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao
senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu
medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor:
então, a alma, a gente vende, só, e sem nenhum comprador...
Divulgo o meu. Essas coisas que pensei assim; mas pensei
abreviado. O que era como eu tivesse de furtar uma folga nos
centros de minha confusão, por amor de ter algum claro juízo
- espaço de três credos. E o resto já vinha. O senhor verá, pois.
Porém mais além.

Na serra dolatú, o frio ali é tal, que, em madrugadas, a
gente necessita de uns três cobertores. Na Serra dos Confins,
meados de julho, lá já está sovertendo o laçaço dos ventos,
desencontrados, de agosto; como que venta: árvores caídas. Aonde
eu ia, todos achavam natural. Chefe é chefe. Será que eles não
sabiam que eu não sabia aonde ia? Isto é digo isto é. Não
soubessem os começos e os finais. Dalgum modo, eu estava indo
e sabendo. Sobre como é que a coruja conseguiu modo de poder
voar sem se escutar o rumor do vôo? Ao que eu estava
sofismado. Menos que não guardei raiva de Diadorim, nem
sentimentos. O desar que ele tinha falado e feito, aquela ruim conversa
nossa, não deixou nem nublo: melhor fugiu, de todo, de minha
lembrança.
O palpite meu, primeiro, era de chegar até na Serra do Meio
- cruzar na Cachoeira-do-Urucúia. Daí, desisti. De repente,

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torci direto para o norte; foi no Lagamar, a travessia. Mas, fujo
de dizer: que, antes, no Lugar-do-Touro, se arrecadou a exata
munição. Ainda antes se dando, dias, que a gente tinha recebido
uma boa surpresa. O Quipes!
Assim o Quipes, que retornava, depois de tantos meses. De
desde que tinha cumprido a ordem de sair por travesso socorro,
de lá ondonde estávamos cercados em combates, na Fazenda dos
Tucanos - o senhor se alembrará. Ele vinha certo e alegre. E,
de ver um companheiro assim se aparecer, de ausências, a gente
ganhava mais mocidade.

Lampeiro, o Quipes entrado em boas roupas, montado num
bom cavalo amarelo, pitando maço de cigarros de fábrica; rico
feito um Mascarenhas. Arte que puxava um burro e uma burra,
adestros, e tinha comprado coisas: até trempe e caçarolaS, e
car real e chocolate em pó. Ao fagueiro, pujante, mesmo.

- "Ara, veja, como passou? E dond' é que soube de nós?"

eu em atiço perguntei.

- "Ao que pois,Tatarana: em faltas de noticia, formei meu
pião por aí... Ja estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi-
Mãe, em Morrinhos... O Urucúia não é o meio do mundo?" -
assim ele se temperou.

O que não era toda a verdade. O que ele estava era recém-
chegando. E me tratou de Tatarana... O seja que tivesse vivido
esses tempos tangendo urubú, adformas que vinha agora na
ignorancia de que eu é que era o Chefe. Indagou por Zé Bebelo; e
pois de Zé Bebelo mesmo ele tudo não sabia. Nem o parar do
Hermógenes. Nem não tinha nenhum sinal do Joaquim Beijo,
assim como aviso de outas novidades do mundo não deu. Só, por
terminar, se gabou de ter tido duas ofertas: para servir de
jagunço de Dona Adelaide, no Capão Redondo, e do Coronel Rotílio
Manduca - em sua Fazenda Baluarte.

-"Ah, entrei, gozando de minha pessoa de paz, até nas
cidades de Januária e São-Francisco..." - ainda proseou. Devia de
ser verdade. Assim como verdade completa que, a burra e o
burro, e a tralha, ou o dinheiro para tudo adquirir, ele devia de ter
roubado tomado em terra de riquezas. Tal que disse: "Isto eu
bem comprei, na venda do José Vassalo..." Desajuizado gastador,
esse o Quipes.

Tanto ouvi, muito macambúzio. Onde que então, eu varava
mundo, em comando, e ainda não se prezava o meu nome. Eu -
o Urutú-Branco! Ser Chefe de jagunço era isso. Ser o que não
dava realce qualquer um podia, fazendeiro com posses, mau
em políticas. O sertão tUdO não aceita?A minha pessoa era nada,
glória de Zé Bebelo era nada. O que dá fama, dá desdém. O
menos de me importar. O que eu carecia era de dar primeiras
batalhas. Suspender a alta coragem, adiante de meus cabras. Ou
será que já estavam mas era se aplicando no vagavagar?
Cigano sou? - eu pensei, enraivecido. Tinha o norte, para a gente.
dei ordem. Aí torcemos caminho, numa poeira danã. A reto
viemos beirando o Ribeirão da Areia, de rota abatida. O que era
que eu tencionava fazer? O senhor espere.

Narro que não rendi melindres do feito de Diadorim, digo
- o recado enviado. Mas, à vez, balancei uma inquietação,
daquilo, que era para eu bem estranhar, a decisão dele de tanto
absurdo. Essas desordenadas da vida da gente: tudo o que
estoura manso e guampa quieto, e que só tem a razoável explicação
para quem está mesmo longe dos motivos. Ao meio do meio
duma coisa eu tinha certeza: que Diadorim não ia me mentir. O
amor só mente para dizer maior verdade. Diadorim me
compassava; por força. Mas, para mandar à minha Otacília assim aquela
embaixada, era porque ele soubesse, no zelo de seu coração, que
então Otacília me tinha amor. E tanto igual sabia também de

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mim? Naqueles dias, era. Abrandei minha lembrança em
Otacília, que sincera me aguardasse, em sua casa, em seu meigo estar.
Agora eu ia indo às avessas de lá, da Santa Catarina, mas, de
arribada, minha intenção de saudade vinha voltando.Tudo, nesta vida,
é muito cantável.

Até, a seguir, por um afino de momento eu me arrepiei -
trás da testa. Ato do que meio confuso imaginei, por um vão
imaginar: que, me querendo-bem - a mais de meu merecimeno
- e crendo que eu enfrentava os duros riscos, ela Otacília pudesse
praticar o estouvamento gentil de se fugir de casa e ir
aventurada em minha cata, por todos os pousos deste sertão...
Ah, ela vinha, montada num bom cavalo corcel, aparecia de
repente, por meu nome perguntando. E eu declarava a grandeza
real dela, definida bem do meu lado, na frente do grande bando
de meus homens... Assim, de jeito tão desigual do comum,
minha vida grangeava outros fortes significados. E isso variou em
meu pensamento, inesperado de ligeiro supor, que, a bem
notado, nem foi um pensar. Arremêdo de sonho, também, não seria
de ser. Então, emendando de novo o vero juízo, tive um receio,
por causa que aquilo podia ser aviso do que estivesse por vir,
rumo de profecias.

Otacília - me alembrei da luzinha de meio mel, no
demorar dos olhares dela. Aquelas mãos, que ninguém tinha me
contado que assim eram assim, para gozo e sentimento. O corpo -
em lei dos seios e da cintura todo formoso, que era de se ser
e logo decorar exato. E a docice da voz: que a gente depois
viajasse, viajasse, e não faltava frescura d'água em nenhumas tOdas
as léguas e chapadas... Isso tudo então não era amor? Por força
que era. E pelo sim receei: será tivesse Diadorim falseado fala, e
o recado na verdade fosse outro - o para ela vir, afoitamente,
que eu dela muito carecia? Divulgo o desuso disso, que era
extravagâncias. Mas o senhor acreditando que alguma coisa humana
é de todo impossível, então é que o senhor não pode mesmo
ser chefe de jagunço, nem na menor metade só de um dia-linho,
nem somente nos vastos imaginados. Ora essas! -digo. Se
Otacília viesse, aparecesse lá em no meio de nós - que seguimento
de coisas havia de suceder?

A bobéia, toleima. Otacilia estava guardada protegida, na casa
alta da Fazenda Santa Catarina, junto com O pai e a mãe, com a
família, lá naquele lugar para mim melhor, mais longe neste
mundo. E eu, sem ser por motivo ou razão, cada dia tocava com
a minha gente por contrárias bandas, para mais apartado de
donde ela assistia. Ao cada dia mais distante, eu mais Diadorim, mire
veja. O senhor saiba - Diadorim: que, bastava ele me olhar
com os olhos verdes tão em sonhos, e, por mesmo de minha
vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele,
do existir dele, do morno que a mão dele passava para a minha
mão. O senhor vai ver. Eu era dois, diversos? O que não entendo
hoje, naquele tempo eu não sabia.

Máximo me lembro é de que, na minguante, se estava no
veredal das cabeceiras de um córrego, lugar de desmedidas
pastagens, adonde os cavalos usufruirem descanso. A lá esbarramos
e paramos, por uns dias. Me lembro, eu quis escreser uma carta.

Essa minha carta, eu podia destacar um homem, dos
ligeiros, ele ia levava em mão, à Otacília, minha nôiva, trazia a
resposta. O que eu cogitei de escrever era muito singelo: às notícias
de minha saúde, pergunta de como era que ela e os parentes iam
passando, saudações de lembranças. Admiro que achei natural de
não falar coisa de minha glória de chefia, por oras. Por que? Pois.
E tive vontade de traçar uns versos também; mas que a aragem
não ajudava a deduzir. Era uma sinceridade muito dificultosa.
Escrevi metade.

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Isto é: como é que podia saber que era metade, se eu não
tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Pois isto o
digo por riso, por graça; mas também para lhe indicar importante
fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e
remeti, quase em data dum ano muito depois... Digo o porque?
Próprio porque não pude. Guarde o senhor: não pude completo.
Mas, guarde, por outra: o dia vindo depois da noite - esse é o
motivo dos passarinhos...

Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi.
O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez. Mas não
se avexe, não queira chuva em mês de agostO. Ja conto, já venho
- falar no assunto que o senhor está de mim esperando. E escute.

Tinha o Maligno?

As vezes, penso. Um boneco de capim, vestido com um
paletó velho e um chapéu roto, e com os braços de pau abertos em
cruz, no arrozal, não é mamolengo? O passopreto vê e não seio,
vem, os passarinhos se piam de distância. Homem, é. O senhor nunca
pense em cheio no demo. O mato é dos porcos-do-mato... - O
sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão,
acolá é a caatinga. Quem entende a espécie do demo? Ele não
fura: rascrava. Demorar comigo ele podia. E, o que não existe de
se ver, tem força completa demais, em certas ocasiões. A ele
vazio assim, como é que eu ia dizer: - "Te arreda desta minha
conversa!"?...Ao que, pois, o que eu ia pondo, na carta, era
quase que uma ordenada lembrança, a igualzinha repetição daquilo
de Diadorim: - que ela rezasse por mim, Otacília, orações
rezasse... Ia. Ah, mas, aí, houve. Amoleci mão antes de coração:
não pude. Não pude, diabralmente, desarrazoado - por outras
fortes ordens... -; e então de repente tive vergonha, desgostei
de estar querendo escrever aquela carta. Desisti, guardei na
mochila aquela metade. Um homem é um homem, no que não vê e
no que consome. Ah, não. Otacília, eu não merecia. Diadorim
era um impossível. Demiti de tudo.

O demo, tive raiva dele? Pensei nele? Em vezes. O que era
em mim valentia, não pensava; e o que pensava produzia era
dúvidas de me-enleios. Repensava, no esfriar do dia. A quando é o
do sol entrar, que então até é o dia mesmo, por seu remorso. Ou
então, ainda melhor, no madrugal, logo no instante em que eu
acordava e ainda não abria os olhos: eram só os minutos, e, ali
durante, em minha rede, eu preluzia tudo claro e explicado.
Assim: Tu vigia, Riobaldo, não deixa o diabo te pôr sela... isto eu
divulgava.Àí eu queria fazer um projeto: como haxa de escapulir
dele, do Temba, que eu tinha mal chamado. Ele rondava por me
governar? Mas, então, governar pudesse, eu não era o Urutu
Branco, não vinha a ser chefe de nada, coisa nenhuma! Ah, eu
carecia dum jeito, dum esperto socôrro, para tentear com o Sujo
em suas próprias portas, e mediante me pôr livre de fim fatal.
De que modo?

Mas acontece que o instante entre o sono e o acordado era
assaz curto, só perpassava, não dava pé. Eu não podia me firmar
em coisa nenhuma, a clareza logo cessava. Daqueles avisos e
propósitos, o montante movimento do mundo me delia, igual a um
secar. E eu mesmo estava contra mim, o resto do tempo. Não
estava? Todo o mundo, cada dia, me obedecia mais e mais me
exaltavam. Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular,
num átimo, da rede, feito fosse para evitar aquela inteligencinha
benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do meio do meu
Coração. Num arranco, desfazia aquilo - faísca de folga,
presença de beija-flôr, que vai começa e já se apaga e daí já estava
inteirado no comum, nas meias-alegrias: a meia-bondade
misturada com maldade a meio. Agora levantava, puxava e arreava meu
Siruiz, cavalo para alvoradas. Saia sozinho.

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Sair na escuridão, o senhor sabe: aqueles galhos de árvores
batendo na cabeça da gente. Sempre eu ia até longe; quando
voltava, encontrava o pessoal se aprontando, café já coado, cavalaria
em fila para a viagem. Uma vez, inda mais longe fui, do que nas
outras. E dei com o lázaro.
Ele se achava como que tocaiando, no alto duma árvore, por
o se esconder, feito uma cobra ararambôia. Quase levei o susto. E
era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo, um
terminado. Para não ver coisas assim, jogo meus olhos fora! Promovi
meu revólver. Aquele de repente se encolheu, tremido; e tremeu
tanto depressa, que as ramagens da árvore enroscaram um
rumor de vento forte. Não gritou, não disse nada. Será que possuía
sobra dalguma voz? Eu tinha de esmagalhar aquela coisa
desumana.

Dum fato, na hora, me lembrei: do que tinham me contado
da vez em que Medeiro Vaz avistou um enfermo desses num
goiabal. O homem tinha vindo lamber de língua as goiabas
maduras, por uma e uma, no pé, com o fito de transpassar o mal
para outras pessoas, que depois comessem delas. Uns assim
fazem. Medeiro Vaz, que era justo e prestimoso, acabou com a
vida dele. Isso contavam, já de dentro do meu ouvido. A quizília
que em mim, ânsia forte: o lázaro devia de feder; onde estivesse,
adonde fosse, lambuzava pior do que lesma grande, e tudo
empestava da doença amaldita. Arte de que as goiabas de todo
goiabal viravam fruta peçonhenta... e d'eu dar no gatilho: lei
leal essa, de Medeiro Vaz...

- "Ô guaimoré!" - xinguei. E gritei pulhas. Acho que
insultava era por de certo modo retardar meu dever? Ele não
respondeu. Em ante mim, assim, ninguém não respondesse? Mas
fincava de me olhar: ah, ele tinha dois olhos, no meio das folhas da
folhagem. Muito coitado ele era o senhor esteja de acordo.
Mas, aí, foi que vi e repeli o quê que é ódio de leproso! Na
cabeça daqueles olhos, eu armei minha pontaria.

E ouvi o vir dum cavaleiro. Esperei. Não dissessem que eu
tinha baleado à traição o maldelazento, com escondidos de não
ter testemunhas. Quem vinha? Em já madruga-manhã, tudo
elareado, reconheci: Diadorim! Embolsei a arma, sem razão.
Diadorim me perseguia? "Vigia, Diadorim: tu pune por este?!"
eu havia de indagar, apontando o esconso do leproso. "Estou aqui,
te vejo é você mesmo, Riobaldo. . ."- ele ia dizer -"...
Riobaldo, tem tento!" ... A imaginação dessa conversa, eu pensei de
relance, como uma brasa chia em dentro de vasilha d'água. Assim
estremeci, eu ente. Porque, do bafo mesmo de minha idéia
vã, eu estava catando tal anúncio de acusação: Tu traz o
Arrenegado... Eu e ele o Dê?! Então, num sutil, podia mesmo
ser que ele quisesse estar tomando conta de mim? - Aí, nem
nunca, nem! - eu rosnei, riso. Espinoteei na sela, feito
acordado dum cochilo de cão. E Diadorim tropeava chegando. Mas eu
virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo:
rompemos em galope que era um abismo...

-Eh, diogo! dianho!... Eh diogo, eh dião...

Retos, fomos, desabalando, que um quarto-de-légua quase,
por doidejo. Nós três? Que eu pensei. E esbarrei, por tanto; meu
cavalo sacudiu o pescoço todo. Espiei em roda, até com a mão.
Não vi o demo... Meu espírito era uma coceira enorme. Como
eu ia poder contra esse vapor de mal, que parecia entrado dentro
de mim, pesando em meu estômago e apertando minha largura de
respirar? Aí eu carecia de negar pouso a ele. A nega. Eu quis! Eu
quis?

Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado no
lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a
coisa viva, e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos.

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Contemplei Diadorim, daquela distância. Montado sempre, teso
de consciência, ele me parecia mais alto de ser, e não bulia, por
mim avistado. E o lázaro? Ah, esse, que se espertasse, que fugisse,
para não falecer... Que é que adiantava que, àquela hora, os
passarinhos cantassem, acabando de amanhecer o campo sertão?
A enquanto sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo muito
longe, neste mundo, tudo restava em doente e perigoso,
conforme homem tem nôjo é do humano.

Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de
homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa! Se não, então por
que era que ele não dava cabo do mal, ou não deixava o mal dar
logo cabo dele? Homem, ele já estava era morto. Que o que
Diadorim dissesse; que dissesse. Que aquele homem leproso era
meu irmão, igual, criatura de si? Eu desmentia. Como era que,
sabendo de um lázaro assim, eu ia poder prezar meu amor por
Diadorim, por Otacília?! E eu não era o Urutú Branco? Chefe
não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso.
Esporeei, voltando. "Não sou do demo e não sou de Deus!"
pensei bruto, que nem se exclamasse; mas exclamação que
havia de ser em duas vozes, uma muito diferente da outra. Vim
feito. Tornei a empunhar o revólver. Mas completei, eu mesmo,
aquilo que Diadorim decerto ia me responder: "Riobaldo, tu mata
o pobre, mas, ao menos, por não desprezar, mata com tua naão
cravando faca - tu vê que, por trás do pôdre, o sangue do
coração dele é são e quente..." Encostar nele a ponta de minha
franqueira de cabo prateante? Toma! Tu cai no chão...
Agalopando assim, joguei fora meu revólver. Joguei ou foi um ramO
de rompe-gibão que rolou arrancando a arma de meu pulso.
Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia mão, rapava; ele
deu um bufo de burro.Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado
para se ir, graças que não assisti á arriação dele: decerto
descendo às pressas, se escapando de gatas nas môitas de Feijão-bravo.
Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por não saber se
matava ou não matava, caso ele ainda estivesse lá. Do leproso.

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado,
reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo
comum. Os olhos vislumbre meu que cresciam sem beira,
dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo
meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao
senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele se foi a
imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A
Santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito,
e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por
si não alcança.

Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava
separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por
profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito
eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em
suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me
franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O
sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o
senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos
governa... Aquilo eu repeli?

Antes que Diadorim mesmo abrisse boca para me sorrir, me
falar, eu tive de fazer uma coisa. A meio em ânsia, meio em
astucia; meio em raiva. Como foi que peguei o vivo de tal idéia, em
gesto, como se deu de que me alembrei daquilo? Homem, não
sei. Mas enfiei mão: por entre armas e cartucheiras, e correias
de mochilas, abri à berra meu jaleco e a minha camisa. Ai peguei
o cordão, o fio do escapulário da Virgem que em tanto cortei,
por não poder arrebentar e joguei para Diadorim, que aparou
na mão. Ia me fazer alguma pergunta, que eu não consenti, a

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voz dele era que mais significava. Isto é, porque eu primeiro
falei, como resumo. - "Hei-á, voltar - que o povoão está de
minha espera!" eu enfim disse: eu ainda estava respirando
muito ligeiro demais.

Assim eu dava era ordem, como convinha. Eu não estava de
francamentes. Para mim, um palmo, àquela hora, podia medir
três braças. Apertei. Nem meu cavalo carecia disso: era eu
encolher um pé, e ele já via vôo. À paz! Mas Diadorim, vez de logo
vir, tocou em contrário. Sustentei em esbarro meu Siruit, a ver
querendo as curiosidades. Diadorim estava indo lá, modo de
caçar e recolher o revólver, que de minha mão tinha caído. Num
repousozinho de coração, calado eu agradeci à amizade dele essa
fineza. Daí, vim. Sempre longe em frente, portanto que meu
cavalo soberbo não dava alcance para ele se emparelhar. Daí,
cantei. Mesmo mal, me cantei por causa que via que, medeando
tão grandes silêncios, era que Diadorim tomava mais sorrateiro
poder em meu afeto, que não era possível concernente. Entre
isso, chegamos de volta no arranchamento. Mas cheguei lá foi
para ter ocupação de uma estúrdia novidade. Com os urucuianos.

O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos homens,
catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto-Urucúia. Os
primeiros que com Zé Bebelo tinham vindo surgidos, e que com
ele desceram o Rio Paracatú, numa balsa de talos de burití. Esses
sempre mereceram pouca história da gente, por quietos e certos,
bem procedidos, sujeitos de furtadas palavras. Agora eles
comigo queriam um entendimento. Um Diodato, esse era o cabo
deles. Formou em frente dos outros, puxando a parlagem.

Queriam conversa comigo em só, apartada. Eu apreciasse
aqueles homens. A valentia deles estava por dentro de muita seriedade.
Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol - o
povo diz. As lérias. Como contam também que nos Gerais goianos
se salga o de-comer com suor de cavalo... Sei lá, sei? Um lugar
conhece outro é por calúnias e falsos levantados; as pessoas
também, nesta vida. Mas aqueles cinco me condiziam .Admirei de
ver que eles todos ainda estavam a pé, mas com dobros e bissacos
nas costas, feito prontos para pedestre viagem. Sisudez deles ainda
semelhava maior. Então constitui meus ouvidos, para o cabecilho
Diodato.
- "Praz vosso respeito, Chefe, a gente decidiram... A gente
vamo-s'embora. Praz vossas ordens..." - o homem me disse,
assim mesmo, casmurro com serenidade. Tive de ver bem suas
feições, uma cara assim aos poucos se examinava.

Entendi, mas reperguntei. O homem não coçou a cabeça.
Olhos de santo de madeira. O nariz dele era bem grande, nariz
que não se empinava. Só tinha a barbazinha que tem um queixo
de cavalo.

O homem não coçou a cabeça. Firme disse. Queriam irs'embora,
duma vez; careciam. Ah, eles bem que conheciam a
regra: que um jagunço sai do bando quando quer - só tem que
definir a ida e devolver o que ao chefe ou ao patrão pertence. As
armas, eles não devolviam, porque eram deles; mas, como
tinham de primeiro vindo a pé, largavam bem agora Os cavalos.
Pegavam era um tanto de matula - trivial de farinha e carne
seca, e rapadura, para uns três dias, mal. Mesmo assim, era
doideira, achei. Doideira tencionarem vagar reto dali donde
estávamos, alto ermo, distantes brenhas. Por que é que iam, nem
esperando eu desse minha primeira ganhada?

- "A isso, meio acontecidos, Chefe... A conforme a gente
carece, praz vosso respeito, senhor, sim.. ." - o homem meio
respondeu, bastante sincero. Reparei no chapéu na cabeça dele,
que era de couro de veado suassú-apara, com macias abas e
formato muito composto. A cara dele mesmo dava um ar honrável,

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circunspecto, por mal que com manchas, sarro de alguma velha
moléstia, semelhando nódoas de caldo de cajú. "Sua graça,
toda, é Diodato de que?" indaguei. "Diodato Nariz, por
alcunha..." ele disse; disse, de brancura. Conheci como eu
nunca tinha dado tento d'atenção naqueles homens, cuja valia.
Assim que eles eram, de batismo: é o Pantaleão, Salústio João,
João Tatu e O-Bispo. Naquela hora, era que eu punha tino. Nun ca
mais tive notícia desses. Hoje, repenso. Naquela hora, eu cogitava
jeito de conservar todos em companhia. Remei minhas perguntas. Donde que eram?

- "Desses córregos..." Do Buriti-Comprido, Tamboril,
Cambaúha, Virgens, Mata Cachorro, das Cobras... Para cima
Barra da-Vaca, Arinos,... Em sertão são. Isso, que são lugares. E
que é que me adiantava saber que tinham suas ocas por lá? O que
eu inventei de conhecer era donde tinham estado, quando Zé
Bebelo deu com eles, que vinha voltando de Goiás. "Ah,
senhor sim, nas beiras... Roças do rio São Marcos, senhor sim, no
Esparramado... Fazenda duma Dona Mogiana..." Cabras dessa
Dona Mogiana? Eram. Tinham sido. Mas com sua labuta de
plantações. Que qualidades de crimes eles tinham feito, para
principiar, crimes de boa inerência? E por que era que tinham querido
vir com Zé Bebelo? Isso eu quis perguntar. O que de repente
perguntei:

-"Por via de que é que vocês desespiritaram de seguir
vinda com a gente?" Falei, e refuguei para não ter falado; que gabo e
questão não são regra de se negociar. Mas o homem Diodato,
distanciado duma minha pergunta dessas, esbarrou vez, demorão;
mesmo num desajeito, ele fungava. E ele comigo não tinha
ajuste, mas não queria me ofender sem a razão. Chega olhou para os
companheiros, que acenavam devagar com as cabeças, mas numa
maneira brandazinha de sonsa, fora de tudo o mais, para não se
entender se é sestro ou anuído - que é do jeito comum como
essa gente CostUma.

- "Ara, senhor, sim..." - por fim ele falou resposta: - "...
que a influência esmoreceu... A gente gastou o entendido..." -
e estava quase meio envergonhado.

Eu disse: "A pois?"

- "Não vê, Chefe, praz vosso respeito: as coisas
demudaram... Que viemos com siô Zé Bebelo... Vai, a gente
gastou o entendido..." - ele disse.

- "O que Zé Bebelo falou, quando chamou vocês?"

- "A foi. Quando chamou, senhor sim..."
- "Ele prometeu vantagens?"

- "Não se diz... Chamou. Falou misturado... A gente
viemos."

- "E o que é que falou?"

- "Agora, a gente não sabe mais. Falou muito razoável... Falou
muito razoável... Agora, com perdão vosso, a gente esquecemos, a gente
gastou o entendido... Mas muito razoável falou..."

De irritado, de afleima, dei o discutir:

- "Pois, por que é, então, que não foram logo, com Zé Bebelo,
quando Zé Bebelo se foi?"

- "Deixamos o tempo dos outros passar... Não temos
questão... Não temos questão..."

Mirei e vi: o que desde de antes me invocava. Aquele
homem, por uns astutos indícios, se apartando, ele desconfiasse de
ruim. Aqueles outros homens, os do todo sertão, das brenhas, os
com as ventas largas para baixo, cada-Um um Cãl, que era
que eles achavam em meu ser? Repensei: ah! Ah, então, para
avaliarem prova a dúvida deles, tixe um recurso. A manha, como
de inesperadamente de repente eu muito disse:

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

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Senhor vendo como foi, o supetão de susto que ele teve,
arregalado conforme me olhava e naquilo ouvido não acreditava,
o tanto que retardou para responsar, todo baixo, o: ... Para sempre...
Ah. Despedidos estavam, podiam ir. Ah.
Ah, não. A bobéia. Se ele em fato estranhou, foi somente
porque, no afã de querer pronunciar sincero demais o santíssimo nome,
eu mesmo tinha desarranjado fala - essas nervosias...
E eles iam s'embora, conforme desisti de sobreguardar
esses homens. Do jeito, de que é que me valiam? O contrato de
coragem de guerreiros não se faz com vara de meirinho, não é
com dares e tomares. Fino que me abespinhei, por conta. Ao que
aqueles homens não eram meus de lei, eram de Zé Bebelo. E Zé
Bebelo era assim instruído e inteligente, em salão de fazenda?
Desisti, dado. Não baboseio. E o mais? Era como alguém dizendo:

- "Vai declarar seca, por esse Norte, e homem e mulher vão
vir.. ." A vida é um vago variado. O senhor escreva no caderno:
sete páginas... Aqueles urucuianos não iam em cata de Zé
Bebelo, conforme sem nem satisfação fiquei sabendo. Voltavam de volta
para os seus recantos. Quartel de mandioca, em qualquer parte
se planta; e o senhor derruba um mato, faz um chão bom, roça
também se semeia... Eles foram embora, deixei levarem os
cavalos. Reparti com eles alguma quantia, e com alegria se
arregalaram: dinheiro é sempre amigo-seja... Estúrdio é o que digo,
nesta verdade que, eu livre longe deles, desaluídos é que eles
estavam comigo; mas, eu quisesse com gana o préstimo deles,
então só me serviam era na falsidade... O senhor me entende? E
digo que eles eram homens tão diversos de mim, tão suportados
nas coisas deles, que... por contar o que achei: que devia de ter
pedido a eles a lembrança de muito rezarem por meu destino...
Mas, de desertarem de mim, então, será que era um agouro?
Não sei. Que sei?Tive fé em mim sozinho. O que juro, e que sei,
é que tucano tem papo!...

Achava. Adiante, dias de caminho, achei de querer e não
querer, em contrários instantes: que rezassem por mim, a rogo e
paga. Reza boa, de outros, singela, que mais me valese essas
avemariazinhas, novenas. Assim conforme Diadorim tinha
dido o recado, para minha Otacília, mediante o arneiro de uma
tropa. Pelejei por afirmar a idéia nisso, que próprio depois eu
enxotava. As vezes as melhores haviam de ser as rezas de mais
longe, desconhecidamente. Me lembrei de um homem, de
minha meninice. Um do outro lado do rio, O sujeito que escondia
uma oração tão entremunhada, desguisada, que duvido mesmo
um padre aquilo entendesse, e desse licença. Pois, ora, me
servia. Ou a mulher que teve seu meninozinho parido no chão do
rancho, no povoado dos papudos; ela me devia mercês, então
não podia encaminhar a Deus, por mim, nem um louvamém?

"Só será que o arneiro passa e vai, na Santa Catarina?..." Isso
perguntei a Diadorim. O que perguntei era por uma opinião. Eu
queria pensar nisso, de tarde, nos repontos. De assento. Mas logo
esse sossego manso me largava nuvenzinha dele.Vaqueiro pode
laçar o lugar do ar? Às voltas e revoltas, eu pelejava contra o meu
socorro. Hoje, eu sei; pois sei, por que. Mas eu não falava sozinho.
Figuro que estava em meu são juízo. Só que andava às tortas,
num lavarinto.Tarde foi que entendi mais do que meus olhos,
depois das horrorosas peripécias, que o senhor vai me omir. Só
depois, quando tudo encurtou. Dei decreto de fim em essas
esquisitices.

No que não perguntei, Diadorim me respondeu? "A
muita coragem, Riobaldo... Se carece de ter muita coragem Ah, eu
sabia.A coragem, eu?Aí quem era que me vencesse, nesse dever,

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alirolé, quem podia afrontar minha presença, feito môrro
padastro?Tinha mãos e ações, que davam para lavar meus trajes. Mas,
o que Diadorim disse, não me fez mossa. Dou exemplo. Do que
houve e se passou, uma vez, no Carujo, um arraial triste, em
antigos tempos. O povo dali fugiu, por alguma guerra ou pressa,
fecharam a igrejinha com um morto lá dentro, entre as velas...
Eu gostava de Diadorim corretamente; gostava aumentado, por
demais, separado de meus sobejos. Aquilo, davandito, ele tinha
falado solto e sem serviço, era só uma recordação, assim um
fraseado verdadeiro, ditado da vida, O que não fosse destinado
para ele nem para mim, mas que era para todos. Ou, então,
sendo para mim, mas em outros passados, de primeiro. Ali naquele
lugar, o Carujo, no reabrirem, depois de uns mêses, a igreja, o
defunto tinha se secado sozinho... Ao por tanto, que se ia,
conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse.
Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for
enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a
lado, par a par, a vai-a-vida inteira. Que: coragem é o que o
coração bate; se não, bate falso.Travessia - do sertão a tola
travessia.

Só aquele sol, a assaz claridade o mundo limpava que nem
um tremer d'água. Sertão foi feito é para ser sempre assim:
alegrias! E fomos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos
avermelhadas campinas. Lá tinha um caminho novo. Caminho de
gado.

Arte que eu achei o meu projeto.

Só digo como foi: do prazer mesmo sai a estonteação, como
que um perde o bom tino. Porque, viver é muito perigoso...
Diadorim, o rosto dele era fresco, a boca de amor; mas o
orgulho dele condescendia uma tristeza. Matéria daquilo que me
desencontrava; motivo esse que me entristeceu? A nenhum. Eu
já estava chefe de glórias. Nem Diadorim não duvidava do meu
roteiro - que fosse para encontrar o Hermógenes. Desse jeito
a gente ia descendo ladeiras. Ladeiras areentas e com pedras,
com os abismos dos lados; e tão a pique, que podiam rebentar os
rabichos dos arreios, no despenhado; no ali descer os cavalos
muito se agachavam de ancas, feito se os pescoços deles se
encompridassem; e montões de pedras para baixo rolavam. Até ri.
Diadorim ainda cria mais no meu fervor em se ir perseguir o
Hermógenes. Essas ladeiras era que me atrasavam. Depois dali,
eu ia ter muita pressa demais.

Agora, o senhor saiba qual era esse o meu projeto: eu ia
traspassar o Liso do Sussuarão!

Senhor crê, sem estar esperando? Tal que disse. Ainda hoje,
eu mesmo, disso, para mim, eu peço espantos. Qu' é que me
acuava? Agora, eu velho, vejo: quando cogito, quando relembro,
conheço que naquele tempo eu girava leve demais, e assoprado.
Deus deixou. Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele. Eh!

o que o senhor quer indagar, eu sei. Porque o senhor está
pensando alto, em quantidades. Eh. Do demo? Se é como corujão
que se vôa, de silêncio em silêncio, pegando rato-mestre, o qual
carrega em mão curva... No nada disso não pensei; como é que
pudesse? A invenção minha era uma, os minutos todos, tivesse
um relógio. A atravessar o Liso do Sussuarão. la. Indo, tini ficando
airoso.

Por forma como a gente rodeou outra volta, não se passando
no Vespê e no Bambual-do-Boi, nenhum de meus homens não
tirou palpite desse propósito. Pasmo deles ia ser. Daí, uns
desconfiavam, de se estar onde estávamos. Donde a perto dele umas
poucas cinco léguas: o desmenso, o raso enorme por detrás
dos mêrros. E a gente dava a banda da mão esquerda ao
Vão-do-Oco e ao Vão-do-Cóio: esses buracões precipícios - grotão onde

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cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas, o rio
passa lá no mais meio, oculto no fundo do fundo, só sob o bolo
de árvores pretas de tão velhas, que formam mato muito
matagal. Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de descer e ir
ver, aindas que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco
matoso escalavrado, entre as moitarías de xaxim. Ao certo que la
em baixo dá onças - que elas vão parir e amamentar filhos nas
sorocas; e anta velhusca moradora, livre de arma de caçador. Mas
o que eu falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é
coisa, é grossa, mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terta
brava, que pode matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma
semana.

No que eu no meu destino não pensei. Diadorim, em
sombra de amor, foi que me perguntou aquilo:

"Riobaldo, tu achasses que, uma coisa mal principiada,
algum dia pode que terá bom fim feliz?"

Ao que eu, abirado, reagi:

"Mano meu mano, te desconheço?! Me chamo não é
Urutú-Branco? Isto, que hei-de já, maximé!"

Diadorim persistiu calado, guardou o fino de sua pessoa. Se
escondeu; e eu não soubesse. Não sabia que nós dois estávamos
desencontrados, por meu castigo. Hoje, eu sei; isto é: padeci. O
que era uma estúrdia queixa, e que fosse sobrôsso eu pensei.
Assim ele acudia por me avisar de tudo, e eu, em quentes me
regendo, não dei tino. Homem, sei? A vida é muito discordada.
Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras
todas do Cão, e as vertentes do viver.

O que na hora achei, foi que Diadorim estivesse me
relembrando de Medeiro Vaz não ter conseguido cruzar a travessia do
raso. Mas Diadorim, também, não adivinhou meu espírito. Pois,
por aquela conta, mesma, era que eu queria. Sobre o que eu era
um homem, em sim, fantasia forra, tendo em nada aqueles
perigos, capaz do caso. Para vencer vitória, aonde nenhum outro
antes de mim tivesse! Respinguei dessas faíscas constantes. Eu,
o cujo do orgulho, de mim, do impossível.

Descia e subia a fumaça da noite. Esbarramos. Era numa
curta vereda, duns brejos, buritizalzinho. Acendemos fogo. Aí mal
dormi, fortíssimo no meu segredo. Um meu primeiro sono, sim.
O resto, foi ondas. Reprazer cru dessa espiritação - eu ardia
em mim, e em satisfa contente, feito fosse véspera duma
patusqueira.

As forças me amanheceram acordado.

Adiante da gente, o mangabeiral. Depois, o raso. Aí o Liso do
Sussuarão - em fundo e largo, as cinquenta léguas e as quase
trinta léguas, das mais. Ninguém me fazia voltar a seco de lá.
Aquela hora, eu só não me desconheci, porque bebi de mim
- esses mares. Também eu não ia naquilo sem alguma razão, mas
movido merecido. Por conta do Hermógenes? Nossos dois
bandos viajavam em guerra e contraguerra, e desenrolando
caminhos, por esses Gerais, cães, se caçando. Só que o sertão é
grande ocultado demais. Então, eu ia, varava o Liso, ia atacar a Fazenda
dele, com família. Ovo é coisa esmigalhável. E a bem. Para
vencer justo, o senhor não olhe e nem veja o inimigo, volte para a
sua obrigação. Mas eu dava as costas à cobra e achava o ninho
dela, para melhor acerto. Ao que, esse não tinha sido o arrojo de
Medeiro Vaz?

O dia parava formoso, suando sol, mesmo o vento
suspendido. Vi o chão mudar, com a cor de velho, e as lagartixas que
percorriam de leve, por debaixo das môitas de caculucage. O
pessoal meu não devia de estar com inquietação? Vi uma coruja
- mas corujinha entortadeira; e coruja só agoura mesmo é em
centro de noite, quando dá para risã. E cuspi no branco leite

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duma maria-brava, que toda às sãs cheirosa florescia. Era a hora.
Repuxei os freios, bem esbarrando. Equei os meus homens.
- "Aqui, gente."

Guerreiros em minha presença! Com certo reboliço, como
todos vieram, para saber daquela novidade. Declarei a eles.
Todos me entenderam? Em fila as caras todas ficando iguais. Me
seguissem? Ah, nenhum não tinha ar do que ia ser, e que fazia
tantos dias eu tencionava. Nem João Goanhá, Marcelino Pampa,
João Concliz, nem oAlaripe. Nem Diadorim. Diadorim me olhou
tremeluzentemente: de coragem, de disposto. Ele, sim. Mas, os
outros? Seria que medissem meu mor atrevimento? Era feito se
eu estivesse aloucado extenso.

Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz
mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo, sem nada!
Aprofundar naquele raso perverso o chão esturricado,
solidão, chão aventêsma mas sem preparativos nenhuns, nem
cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para
carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem
tropa de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos
embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá,
quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e
enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para
colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo,
o que não é o homem, e sua, dele, obediência? Isso, não pensei
mas meu coração pensava. Eu não era o do certo: eu era o
da sina! E nem enviei adiante nenhuma patrulha de farejadores
nem Suzarte, Nelson ou o Quipes, que tapejassem; nem o
Tipote para trilhar e entender, ver se divulgava os socorros:
alguma grota duvidável d'água.

Se o cada um que se valesse, cada um que me seguisse. -
"Agora vamos entrar, para pernoitar lá dentro..." eu
determinei. Só era se aviar. Mas o menino Guirigó, mal me ouvindo,
falou:

-"A gente? A gente."

Esse era um menino, eu não devia de mandar alguém
conduzir o Guirigó de volta, para que em lugar seguro deixassem? No
ar não fiz. Se não, por que era então que ele para tudo tinha
vindo? Os outros, não me cumprissem, eu havia de voltar de lá,
dar de mão de minha tenção? Nuncas. Só melhor sozinho eu ia.
Ia, por meus brancos ossos.Transe, tempo, que esperei a resposta
deles. Dei a palavra! Meus homens. Ah, jagunço não despreza
quem dá ordens diahradas.
"Se amanhã meu dia for, em depois-d'amanhã não me
vejo."
"Antes de menino nascer, hora de sua morte está marcada!"
"Teu destino dando em data, da meia-noite tu vivente não
passa..."
Os que diziam assim eram todos eles, secundando os
cabecilhas. Valentes que eram, e como foram se animando. Ao que me
obedeciam, ao meu melhor em redor. A gente andou no comum,
até ao fim do grameal. Aí, se estava, se esbarrava, frente a frente
com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu.
Sol em glória. Eu pensei em Otacília; pensei, como se um
beijo mandasse. Soltando redeas, entrei nos horizontes. Aonde
entrei, na areia cinzenta, todos me acompanhando. E os cavalos,
vagarosos; viajavam como dentro dum mar.

O senhor vê e vê? Alguém a alto me levou, alguém, salvo a
um seguinte. Águas não desmanchavam meu torrão de sal. Ah,
nem eu não tive incerteza em mente. Assim fomos. Aí eu em
frente adiante.
A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em
passo em passo, usufruiam quinhão da minha andraja coragem.

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Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem
refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios?Tudo
ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas
pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. Todos;
bem, todos, tirante um. Que conto.

O que era que o raso não era tão terrível? Ou foi por
graças que achamos todo o carecido, nãostante no ir em rumos
incertos, sem mesmo se percurar? De melhor em bom, sem os
maiores notáveis sofrimentos, sem em-errar ponto. O que era,
no cujo interior, o Liso do Sussuarão? era um feio mundo,
por si, exagerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus tufos
de capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até não-onde a
vista não se achava e se perdia. Com tudo, que tinha de tudo. Os
trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas - cavalo
repisa em pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza
em-sobre pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava
encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou,
o que deu pronto mormaço, e refresco. Tudo de bom
socôrro em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato... Que é que
chupavam, por seu miudinho viver? Eh, achamos rêses bravas
gado escorraçado fugido, que se acostumaram por la, ou que de
lá não sabiam sair; um gado que assiste por aqueles fins, e que
como veados se matava. Mas também dois veados a gente caçou
e tinham achado jeito de estarem gordos... Ali, então, tinha
de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abêlha. O dar de
aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores.
Todo o tanto, que de sede não se penou demais. Porque,
solerte subitamente, pra um mistério do ar, sobrechegamos
as sim, em paragens. No que nem o senhor nem ninguém não crê:
em paragens, com plantas.
De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber de
quem foi que veio a idéia dessa combinação. Qual foi que a gente
se apartou, em grupos de poucos, jornadeando com a maior
distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse qualquer
coisa diversa, podia dar sinal, chamando os outros para novidade
boa.

Eu que digo. Mesmo, não era só capim áspero, ou planta
peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarrôxa,
um mandacarú que assustava. Ou o xique-xique espinharol,
cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flôr
dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho luiz-cacheiro.
Ah, não. Cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarço
no chão, e começavam as folhagens que eram urtigào e assa
peixe, e o neves, mas depois a tinta-dos-gentios de flôr belazul,
que é o anil-trepador, e até essas sertàneja-assim e a maria-zipc,
amarelas, pcspingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito
melindrosa flôr, que também guarda muito orvalho, orvalho pesa
tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva-curraleira... E a
quixabeira que dava quixahbas.

Digo se achava água. O que não em-apenas água de
touceira de gravatá, conservada. Mas, em lugar onde foi córrego
morto, cacimba d'água, viável, para os cavalos. Então, alegria. E
tinha até uns embrejados, onde só faltava o burití: palmeira alalã
pelas veredas. E buraco-pôço, água que dava prazer em se
olhar. Devido que, nas beiras o senhor crê? se via a
coragem de árvores, árvores de mata, indas que pouco altaneiras:
simaruba, o aniz, canela do-brejo, pau amarante, o pombo; e
gameleira. A gameleira branca! Como outro tempo se cantava:


Sombra, só de gameleira,
na beira do riachão...

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Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto,
eu apalpei os cheios. O respeito que tinham por mim ia
crescendo no bom entendido dos meus homens. Os jagunços meus, os
riobaldos, raça de Urutú-Branco. Além! Mas, daí, um pensamento
que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento
então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto
nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que
quanto de mim ia tirar cobro? "Deixa - no fim me ajeito..." -
que eu diSSe comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou não
conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai,
crescendo e se esquecendo...
Daí, mesmo, que, certa hora, Diadorim se chegou, com uma
avenca. Para meu sofrer, muito me lembro. Diadorim, todo
formosura.
- "Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo..."
- ele disse; e de medo não tremia, que era de amor - hoje sei.
-"Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto.
Daí, quandO tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma
coisa. VOU contar a você.
Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi,
mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim
mais me disse, desentendi metade.
Só sei que, no meio reino do sol, era feito parássemos numa
noite demais clareada. Assim figuro. Dentro de muito sol, eu
estava reparando uma cena: que era um jumentinho, um jegue ja
selvagem caatingano, no limpo do campo caçando o que roer,
assaz pelos cardos.
Eu não tinha de tomar tento em coisas mais graves? Mire
veja o senhor. Picapau vôa é duvidando do ar. Que tal Zé Bebelo
- na hora me lembrei - quando mal irado, ou quando conforme
querendo impor medo a todos: - "Norte de Minas! Norte de
Minas...!" o que bramava. E ele estava com a razão. Mas Zé
Bebelo era projetista. Eu, eu ia por meu constante palpite.
Usando de toda ajuda que me vinha, mas prevenido sempre contra o
Maligno: que o que rança, o que azéda. As traças dele são novas
sempre, e povoadas tantas, são que nem os tins de areia grãoindo
em areal. Então eu não sabia?!

Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o homem
rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade: um, troncudo, pardaz,
genista, filho não sei de que terra. Assim, casta de gente?

Ah, não. Por meu bem, eu estava em todo o meu siso. Até
mais. "Não faço caso!" - eu disSe, isto é: pensei dizendO. Eu não
queria somar com aquilo nenhum; porque cheirava ao Cujo:
esses estratagemas. Era do demo - eu tirei um enredo. "Pois,
então, paz..." eu falei, me falei. "Não faço conta... me
prometi. Eu estava em manhas. Estive que estive no embalançar,
em equilibrável. Tico tanto pensei. Mas tudo era frisado ligeiro,
ligeiro, feito cavalo que pressente fúria de boi.

Aí escutei a voz - a voz dele tremia nervosa, como de
cabrito; da maneira que gritou - à briga. Um desfeliz. Levei os
olhos.

Ah, quem o homem era, eu já sabia, ele se chamava
Treciziano. O bruto; para falar com ele, só a cajado. Eu sabia. Rebém,
que desconfiei do demo. Ali esse Treciziano era fraco de
paciências; ou será que estivesse curtindo mais sede do que os outros
- segundo esse tremor das ventas - e pegou a malucar?
Diziam que ele criava dor-de-cabeça, e padecia de erupções e
dartros. Estava falando contra comigo, reclamando, gritou uma
ofensa. Homem zuretado, esbrasêia os olhos. Eu, senhor de
minhas inteligências, como fica tlito. Eu estava podendo refletir,
em passo de jumento. - "Siô, deixa o padre of recer missa..." -
- falei para mim mesmo. Eu queria tolerar, primeiro:

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porque o demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva.
Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de
energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia
esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas
sem pau nem pedra. Que dessa - chefe eu - o O não me
pilhava...

Mas ah! quem diga: um faz, mas não estipula. O que
houve, que se deu. Que vi. Com a sede sofrida, um incha,
padece nas vistas, chega fica cego. Mas vi. Foi num átimo. Como que
por distraído: num dividido de minuto, a gente perde o tino por
dez anos. Vi: ele o chapéu que não quebrava bem, o punhal
que sobressaía muito na cintura, o monho, o mudar das caras...
Ele era o demo, de mim diante... O Demo!... Fez uma careta,
que sei que brilhava. Era o Demo, por escarnir, próprio pessoa!

E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo...

O demo? Em mim, danou-se! Como vinha, terrível, naquele
agredimento de boi bravo. Levantei nos estribos. "E-hê!..."
Esse luzluziu a faca, afiafe, e urrou de ódio de enfiar e cravar, se
debruçando, para diante todo. Tirou uma estocada. Cerrei com
ele... A ponta daquela pegou, por um mau movimento, nas
coisas e trens que eu tinha na cintura e a tiracol: se prendeu ali, um
mero. As asas que eu com a minha quicé, a lambe leal
pajeuzeira em dura mão, peguei por baixo o outro, encortei-
recortei desde o princípio da nuca - ferro ringiu rodeando em
ossos, deu o assoviào esguichado, no se lesar o cano-do-ar,
mijou alto o sangue dele. Cortei por cima do adão... Ele Outro
caiu do cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros
apagados... Morreu maldito, morreu com a goela roncando na
garganta!

E o que olhei? Sangue na minha faca bonito brilho, feito
um verniz veludo... E ele: estava rente aos espinhos dum
mandacaru-quadrado. Conforme tinha sido. Ah-oh! Aoh, mas ninguem
não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, era
mesmo o do Treciziano!

A morte dele deu certo. E era, segundo tinha de ser? E tinha
de ser, por tanto que o demo não existe! As tramóias,
armadilhas... Nem nunca mais, daí por diante, eu queria pensar nele.
Nem no pobre do Treciziano, que estava ali, degolal, que eu
tinha... Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavôres disso
- da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo.

Somente todos me gabaram, com elogios e palavras prezáveis,
porque a minha chefia era com presteza. Fosse de tiro, tanto não
admiravam a tanto, porque a minha fama no gatilho já era a qual;
à faca, eh, fiz! E do outro grupo, longe mas que era o mais perto,
da banda da mão esquerda, um escutou ou viu, e veio. Era o
Jiribibe, mocinho Jiribibe, num cavalo preto galopeiro.
Diadorim tinha disparado tiro, só esmo; de nervosia. Dentro de
Pouco, todos iam ficar cientes da proeza daquele homem tão morto:
das beiras do corte lá nele a pele subia repuxada, a outra
para baixo tinha descaído tamanhamente, quase nas maminhas
até; deixavam formado o buraco medonho horrendo, se
aparecendo a toda carnança. Aí Alaripe esclareceu: "Ao que sei,
este era da Serra d'Umã..." O de tão longe, o sapo leiteiro! Uns
estavam remexendo nele não tinha um pêlo nos peitos. Assim
queriam desaliviar aquele corpo, das coisas de valor principais.
Do que alguém disse que ele guardava: um dixe, joiazinha de
prata; e as esporas eram as excelentes, de bom metal.
Não turveei. Morte daquele cabra era em ramo de suicídios.
"A modo que morreu? Ele foi para os infernos?" indagou
em verdade o menino Guirigó. Antes o que era que eu tinha com
isso, como todos me louvaram? Sendo minha a culpa a morte,
isto sei; mas o senhor me diga, meussenhor: a horinha em que

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foi, a horinha? Como que o cego Borromeu garrou um fanhoso
recitar, pelos terços e responsos. Medo de cego não é o medo
real. Diadorim me olhava - eu estivesse para trás da lua. Só aí,
revi o sangue. Aquele, em minha roupa, a plasta vermelha fétida.
Do sangue alheio que grosso me breava, mal me alimpei o
queixo;eu, desgostoso de sangue, mas deixava, de sinal? Ah, não,
pois ali me salteou o horror maior. Sangue... Sangue é a coisa
para restar sempre em entranhas escondidas, a espécie para
nunca se ver. Será por isso também que imensa mais e a oculta glória
de grandeza da hóstia de Deus no ouro do sacrário - toda
alvíssima! e que mais venero, com meus joelhos no duro chão.

Por mais, o corpo ali ficava, para o ar do raso. Sumimos de la
há-de que tocavamos, adiante. A viajadamente eu ia, desconversei
meu espríto. Até às aleluias!

Que, como conto. Aquele Treciziano tinha redobrado
destino de triste-fim de louco. Pois nem bem três léguas andadas, daí
depois, a gente saía do Liso, como que a ponto: dávamos com
uma varzeazinha e um esporão de serra; chapadas, digo. Apeei na
terra cristã. Se estava no para ver esses campos crondeubais da
Bahia.

Adiante vim para pedir gole d'água, todo pacífico, no
rancho de um solteiro; esse deu informação de que, dez léguas em
volta, o povoal ia existindo sem questão. Somente seguimos. Dali
antes, a gente tinha passado oAlto-Carinhanha - lá é que o
Rei-Diabo pinta a cara de preto. Onde chegados na aproximação do
lugar que se cobiçava. Dado dia e meio - descrevendo no rumo
que certo achamos - logo se havia de ter a casa da raça oio
Hermógenes! Lei de que íamos dar lá, madrugando madrugada,
Pegando todos desprevenidos, em movível supetão. Pois o
Hermógenes parava longe, em hora recruzando meus antigos rastros,
estes rasgos ele não adivinhava. Aí era o meu contrabalanço. Ah!
choca mal, quem sai do ninho...
Ao que, por isso, não tardamos; não tivessem a primeira
noticia da gente. Não se tomou nem um dia de fôlego. A trote e a
chouto, vencemos uma grande noite - e demos lá, no luzir
d'alva. Abarcamos as condições do lugar, em cerco, entendidos
uns com uns, por meio de avisos: que eram canto de acauà e
assovio de macaco. Porque sempre eles deviam de ter alguns
curimbabas na defesa: capangas e carabinas. Daí, só se esperou o listrar
da primeira barra e a ponta da manhã estremecente. Segundo nosso
uso. Demos fogo.

Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via
disso mesmo resumo; não gloso. No fim, o senhor me completa.
Mas, fazia tempo que não se dava combate, e o propor da gente
era tribuzana, essas ferocidades assim.

A casa da fazenda - aquele reto claro caiado; mas era um
casarão acabando o tope do morrete; enganando, até parecia
torta. Varejamos o total a tiro. Aí, e o que se gritava!:
azurradamente...
Aqueles que estavam lá eram homens ordinários - derreteram
debaixo do pé de meus exércitos. O que foi um desparate!
Como que já estavam de asas quebradas, nem provaram resistências:
deles mal ouvi uns tiros. E a gente, nós, estouramos para o
centro, a surto, sucre, destrambelhando na polvorada. feito
rodeio de vento. Assaz. Do que fiz, desisto.Todos não fizeram?
Volvido, receei que Diadorim não me aprovasse; mas Diàdorim
concordou com os fatos, em armas, em frente. O que se matou e
estragou - de gente humana e bichos, até boi manso que lambia
orvalhos, até porco magro em beira de chiqueiro. O mal regeu.
Deus que de mim tire, Deus que me negocie... A vez.
De seguida, tochamos fogo na casa, pelos quinze cantos
mortos. Armou incendião: queimou, de uma vez, como um pau de
umburana branca... E de lá saímos, quando o fogo rareou,
tardezinha. E, na manhã que veio, acampou-se em beira-d'água de

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sossego. A gente traspassava de cansaços, e sobra de sono. Mas,
trazida presa, já em muito nosso poder, estava a merecida, que se
queria tanto a mulher legal do Hermógenes.

Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo
destino. Assim estava com um vestido preto, surrado muito
desbotado; caiu o pano preto, que tinha enlaçado na cabeça, e ela
não se importou de ficar descabelada. Deixaram: ela sentar,
sentou. Nunca encurtou a respiração. Devia de ter sido bonita, nos
festejos da mocidade; ainda era. Deram a ela de comer, comeu.
De beber, bebeu. A curto, respondeu a algumas duas ou três
coisas; e, logo depois de falar, apertava demais a boca fechada,
estreitos finos beiços. Mas falava quase assoviado. Figuro que não
mascava fumo nem cachimbava, mas mesmo assim cuspia em
roda; mas não passava a sola do pé, por cima, para alimpar o
chão, como é costume de se fazer, nessas condições. Adverti que
estava descalça, e assim devia de ser fora do uso, decerto por
causa da hora e confusão em que tinha sido pega. Se arranjou
para ela par de alpercatas. Ela soubesse que não se pertencia com
a gente. Aceitou meu olhar, seca, seca, com resignação em
quieto ódio; pudesse, até com as unhas dos pés me matava. Enrolou a
cara num xale verde; verde muito consolado. Mas eu já estava
com ela com os olhos dela, para a minha memória. Magreza,
na cara fina de palidez, mas os olhos diferiam de tudo, eram
pretos repentinos e duráveis, escuros secados de toda boa água. E a
boca marcava velhos sofrimentos? Para mim, ela nunca teve nome.
Não me disse palavra nenhuma, e eu não disse a ela. Tive um
receio de vir a gostar dela como fêmea. Meio receei ter um
escrúpulo de pena; certo não temi ahrir razão de praga. Muito
melhor que ela não carecesse de vir. Ser chefe, às vezes é isso:
que se tem de carregar cobras na sacola, sem concessão de se
matar... E ela ficava assim embiocada, sem semblantes, com as
mãos abertas, de palmas para cima como se para sempre
demonstrar que não escondia arma de navalha, ou porque pedisse
esmola a Deus. Lembro dessa mulher, como me lembro de meus
idos sofrimentos. Essa, que fomos buscar na Bahia.

É de ver que não esquentamos lugar na redondez, mas
viemos contornando só extorquindo vantagens de dinheiro, mas
sem devastar nem matar - sistema jagunço. E duro capitaneei,
animado de espírito. O Jalapão me viu, os todos Gerais me
viram demais. Aqueles distritos que em outros tempos foram do
valentão Volta-Grande. Depois, mesmo Goiás a baixo, a vago. A
esses muito desertos, com gentinha pobrejando. Mas o sertão
está movimentante tOdo-tempo - salvo que o senhor não vê - é
que nem braços de balança, para enormes eleitos de leves
pesos... Rodeando por terras tão longes; mas eu tinha raiva surda
das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva
porque eu não era delas, produzido... E naveguei salaz.Tem as têlhas
e tem as nuvens... Eu podia lá torcer o azul do céu por minhas
mãos?! Virei os tigres; mas mesmo virei sendo o Urutu-Branco,
por demais.

Somente que me valessem, indas que só em breves e poucos,
na idéia do sentir, uns lembrares e sustancias. Os que, por
exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigrí minha mãe me
ralhando; os buritis dos buritis - assim aos cachos; o existir de
Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-
da-crôa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muito
salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não
são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia
do Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na cabeça, sem
tempo para grandes tristezas; e a minha Otacília.

No sirgo fio dessas recordações, acho que eu bateava outra
espécie de bondade. Devo que devia também de ter querido ou-

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tra vez os carinhos daquela moça Nhorinhá, nessas ocasiões. Por
que será que, aí, eu não formei a clareza disso, de a-proposito?

Por lá, adiante, na vastança, era rumo de onde ela agora morava.
Isso, sim, andadamente. Mas não conheci; e demos volta.
Tempos escurecidos. O que meus olhos não estão vendo hoje, pode
ser o que vou ter de sofrer no dia depois-d'amanhã.
Ao que inventei, enquanto assim se vinha, por pobres
lugares, aos poucos eu estive amaestrando os catrumanos, o senhor
está lembrado deles; ensinando aqueles catrumanos, para as
coisas de armas, do que houvesse de pior. Eles já prometiam puxo;
eh, burro só não gosta é de principiar viagens. Aprovei, de ver o
Teofrásio, principal deles, apontando em homem malandro
inocente, com a velha garrucha que era a dele, com os dois canos
encavalados. Mas, que atirasse, não consenti. Zé Bebelo havia de
admitir assim, de se fazer excessos? Ali, quem se lembrava de Zé
Bebelo eram minhas horas de muita inteligência. Assim, ele
ainda vivesse, certo havia de ter algum dia notícia do que eu estava
executando: que a gente trazia a Mulher; com ela agarrada em
mãos, se ia necessitar o Hermógenes a dar combate.
Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silencio, a
cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo.
Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricurí, por se tapar
do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou
reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era aquela
suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa
capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio
então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma
esperança já completada. Deus que dele-me livrasse!
Mas, o homem em quem o catrumano Teofrásio com sua
garrucha antiquíssima apontou, era um velho. Desse, eu digo,
salvei a vida. Socorrido assim, pelo fato d'eu não conseguir
conhecer a intenção da existência dele, sua razão de sua
consciência. Ele morava numa burguéia, em choça muito de solidão,
entre as touças da sempreviva-serrã e lustro das folhagens de
palmeira-pindoba.

Eu, com outros, tinha subido no tope do môrro, que era de
espalha-ventos. De lá do alto, a mente minha era poder verificar
muitos horizontes. E, mire veja: em quinze léguas para uma
banda, era o São Josezinho da Serra, terra florescida, onde agora
estava assistindo Nhorinhá, a filha de Ana Duzuza. Assunto que,
na ocasião, meu espírito me negou, digo o ditO. Além, além.
Dela eu ainda não tinha podido receber a carta enviada. Para
mim, era só uma saudade a se guardar. Hoje é que penso.
Nhorinhá, namorã, que recebia todos, ficava lá, era bonita, era a que
era clara, com os olhos tão dela mesma... E os homens,
porfiados, gostavam de gozar com essa melhora de inocência. Então,
se ela não tinha valia, como é que era de tantos homens?
Mas, no vir de cimas desse morro, do Tebá - quero dizer:
Morro dos Ofícios redescendo, demos com o velho, na porta
da choupã dele mesmo. Homem no sistema de quase-dôido, que
falava no tempo do Bom Imperador. Baiano, baroa de piassaba;
goiano-baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho
em seu paiol. Meio sarará. A barba, de capinzal sujo; e os cabelos
dele eram uma ventania. Perguntei uma coisa, que ele não
caprichou de entender, e o catrumano Teofrásio, que já queria se
mostrar jagunço decisivo, o catrumano Teofrásio bramou -
abocou a garruchona em seus peitos dele. Mas, que não deu tujo.
Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito
valor. Comigo conversou. Com tudo que, em tão dilatado viver
ele tinha aprendido. Deus pai, como aquele homem sabia todas
as coisas práticas da labuta, da lavoura e do mato, de tanto tudo.
Mas, agora, que tanto aforrava de saber, o derrengue da velhice
tirava dele toda possança de trabalhar; e mesmo o que tinha apren-

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dido ficava fora dos costumes de usos.Velhinho que apertava muito
os olhos.

Seria velhacal? Não fio. E isto, que retrato, é devido a
esturdia opinião que divulgou em mim esse velho homem. Que, por
armas de sua personalidade, só possuía ali era uma faquinha e um
facão cego, e um calabôca - porrête esse que em parte ocado e
o recheio de chumbo, por valer até para mortes. E ele mancava
estragado: por tanto que a metade do pé esquerdo faltava,
cortado - produção por picada de cobra - urutú geladora, se
põe. Animado comigo, em fim me pediu um punhado de sal
grande regular, e aceitou um naco de carne-de-sol. Porque, no comer de
comum, ele aproveitava era qualquer calango sinimbú, ou gambás,
que, jogando neles certeiramente o calabôca, sempre conseguia
de caçar. Me chamou de: - "Chefão cangaceiro..."

Acabando que, para me render beneficio de agradecimento,
ele me indicou, muito conselhante, que, num certo resto de
tapera, de fazenda, sabia seguro de um dinheirão enterrado
fundo, quantia desproposital. Eu fosse lá... ele disse ; eu escavasse
tal fortuna, que merecida, para meus companheiros e para
mim... "Aonde, rumo?" indaguei, por comprazer. Ele
piscou para o mato. Por lá, trinta e cinco léguas, num Riacho-das-
Almas... ToLeima. Eu ia navegar assim para acolá, passar matos,
furar a caatinga por batoqueiras, por louvar loucura alheia?
Minha guerra nem não me dava tempo. E, mesmo, se ele sabia
assim, e verdade fosse, por que era que não ia, muito
pessoalmente, cavacar o ouro para si? Derri dele, brando. Por que é que se
dá conselho aos outros? Galinhas gostam de poeira de areia -
suas asas... E o velho homem - cujo. Ele entendia de meus
dissabôres? Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo... E
possuía era meu caminho, nos peitos de meu cavalo. Siruiz.
Alelúia só.
E o velho, no esquipático de olhar e ser, qualquer coisa em
mim ele duvidava dela. Mas que é que era? que é que era?!...
Eu carecia de indagar. E, mesmo porque a chefe não convem
deixar os outros repararem que ele está ansiando preocupação
incerta - tive de indagar leixo, remediando com gracejo
diversificado: "Mano velho, tú é nado aqui, ou de donde? Acha
mesmo assim que o sertão é bom?..."

Bestiaga que ele me respondeu, e respondeu bem; e digo ao
senhor:

"Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!:
ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o
senhor mesmo."

Respondeu com uma insensatez, ar de ir me ferir, por tanto;
jacaré já! Respondeu, apontando com o dedo para o meu peito.
Desgostou de meu debique? Dele o dito, eu não decifrava.
Sertanejo sem remanso. Mas desabandonamos aquilo, às pressas,
porque o velho assoava o nariz com todos os dedos de uma mão, em
modo que me deu nôjo. Descemos flauteando o resto do môrro.
Quando chegamos cá no acampo, as ramas d'árvores já iam
pegando o pó da noite. Ermo meu?

Do que hoje sei, tiro passadas valias? Eh - fome de bacurau
é noitezinha... Porque: o tesouro do velho era minha razão.
Tivesse querido ir lá ver, nesse Riacho-das-Almas, em trinta e cinco
léguas e o caminho passava pelo São Josezinho da Serra,
onde assistia Nhorinhà, lugarejo ditoso. Segunda vez com
Nhorinhá, sabível sei, então minha vida virava por entre outros
morros, seguindo para diverso desemboque. Sinto que sei. Eu havia
de me casar feliz com Nhorinhá, como o belo do azul; vir aquém-de.
Maiores vezes, ainda fico pensando. Em certo momento, se o
caminho demudasse se o que aconteceu não tivesse
acontecido? Como havia de ter SidO a ser? Memórias que não me dão

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fundamento. O passado - é ossos em redor de ninho de
coruja... E, do que digo, o senhor não me mal creia: que eu estou
bem casado de matrimonio - amizade de afeto por minha
bondosa mulher, em mim é ouro toqueado. Mas se eu tivesse
permanecido no São Josezinho, e deixado por feliz a chefia em
que eu era o Urutu-Branco, quantas coisas terríveis o vento-das
nuvens havia de desmanchar, para não sucederem? Possível o
que é - possível o que foi. O sertão não chama ninguém às claras;
mais, porem, se esconde e acena .Mas o sertão de repente
se estremece, debaixo da gente... E - mesmo - possível o que
não foi. O senhor talvez não acha? Mas, e o que eu estava dizendo,
mas mesmO pensando em Nhorinhá, por causa. Dói sempre
na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se
desprezou... Mas, como jagunços, que se era, a gente rompeu
adiante, com bons cavalos novos para retroco. Sobre os gerais planos
de areia, cheios de nada. Sobre o pardo, nas areias que
morreram, sem serras de quebra-vento.

Com a campina rôxa brandamente, vagarosa por onde
fomos, tocamos, querendo o poente e tateando tudo, chapada sem
lugar de fim. Só os punhados daquele capim de lá, com sua
magra dureza, O para bem valer era que, agora, quando alguem
com o nosso brabo cortejo deparava, seriam gente já distante,
desconhecida dela, e que não diziam mais: - "Aquela é a dona
de um seô Hermógenes, que estão remetendo para as enxovias..."

Essa mesma não dava trabalhos; a mulher ocultada no xale
verde, como dizer. A mulher sem resgate - isto é dizer: que ia
para morte de outro homem a sina sorte. Eu tinha era receio
de que ela adoecesse. Dei as todas ordens, de bom tratamento.
Tanto a tanto, decidi disposto que não se entrasse com bruteza
nos posoados, nem se amolasse ninguém, sem a razoável necessidade.
Também pelo que aquilo não me dava glória, e eu ia para
um grande fim. Até estixe nervoso.

Desde as crondeúbas, nascidas em extraordinarias
quantidades, e os montes de areia quase alvos, com as seríemas por cima
perpassando, e o mais, tudo eu tinha avistado. Que vi córrego
que corta e salga, e comi coco de ouricuri. Desordens
não me tentavam, o assaltar e o rixar. Agora, para essas e outras
qjagunçagens - assim mesmo como para pautear a-toa, de abocabaque
- eu não tinha interesse de tempo. Não por moleza ou falta de
hombridade; ah, não: tanto em que durou minha chefia, e acho
mesmo que de dantes, eu aguentei tudo o que é cão e leão.
Corrijo e digo: só o frio é que mal tolerei. Quando geava, dormi
deveras estreito entre diversas fogueiras, o frio desdiz com
jagunço. A gente indo, ali mesmo nos altos tabuleiros, enchemos
surrões com talos de canela de ema, boa acendedora de fogo. A
canela de ema de qualidade crescida mais de metro, acertante.
Depois da madrugada, de guardado eu bebia um chá de jurema,
me restabelecesse todos os ânimos. Daí diante, melhor, foi
desamainando a friagem das madrugadas. E já fazia tempo que
eu não passava navalha na cara, contrario de Diadorim Minha
barba luzia grande e preta, conferindo conspeito - isto eu mesmo
podia fácil ver, mirando na folha da água, quando meu cavalo
Siruiz se dehruçava para beber em qualquer riachinho da largura
de duas braças. Estórias!

Consabido que meus homens, por sincera precisão de
mulher, armavam querer de trazer umas delas, pegadas pelas beiras
de estradas, me vinham com lelê disso. O que eu, enérgico,
debelei e reprovei: não se estava ainda em ponto para esse desmazelo
de bem-passar. Pelo mal de que essas mulheres não davam para
ser ao menos uma para cada um, e, por via de jús dessas
condições, a companhia delas podia estragar a lei do viver da gente,

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com arrelias de vuvú e rusgas. O que ajuntávamos, trazendo, era
cada bom cavalo que se pegasse. E tocamos concosco cinquenta
e-tantas rêses, de gado baiano; à-toa. Por campos gramados, quando
havendo, isso ia mais sem estorvo, em conformes. Depois,
piorou. Mas outras coisas melhoraram. O senhor tenha na
ordem seu quinhão de boa alegria, que até o sertão ermo satisfaz.
Digo mesmo de meu expor, falante de mulheres. Quando se
viaja varado avante, sentado no quente, acaba o coxim da sela
fala de amores. E eu surgia em sossego assim, passo compasso, o
chapadão tão alargante. Lá o ar é repousos. Os hermógenes
andasam por bem longe. E nunca que pelotão de soldados havia de
ali vir, por cima de nossas batidas. Sossego traz desejos. Eu não
lerdeava; mas queria testa simples, achar um arraial bom, em
feira-de-gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado
de pés dansando. Mas, por lei, eu carecia de nudezes de
mulher. Nesses dias, moderei minha inclinação. Baixei ordens
severianas: que todos pudessem se divertir saudavelmente, com
as mulheres bem dispostas, não deixando no vai-vigário; mas não
obrassem brutalidades com os pais e irmãos e maridos delas,
consoante que eles ficassem cordatos. Estatuto meu era esse. Por
que destruir vida, à-toa, àtôa, de homem são trabalhador? Zé
Bebelo não teria outro reger... E vejo, pergunto: donde era que
estava então o demo, perseguição? Devo redizer, eu queria
delicias de mulher, isto para embelezar horas de vida. Mas eu escolhia
- luxo de corpo e cara festiva. O que via com um desprezo
era moça toda donzela, leiga do são-gonçalo-do-amarante, e
mulher feiosa, muito mãe-de-família. Essas, as bisonhas, eu
repelia. Mas, daí então, me deram notícia do Verde-Alecrim.
Joguei de galope. Torei o cavalo para lá.

Guia era um exato rapaz, vaqueiro goiano do Uruú. Esse
me discriminou - o Verde-Alecrim formava somente um povoado:
sete casas, por entre os pés de piteiras, beirando um claro riozinho.
Meia-dúzia de cafuas coitadas, sapé e taipa-de-sebe. Mas tinha
uma casa grande, com alpendre, as vidraças de janelas de
malacacheta, casa caiada e de têlhas, de verdade, essa era das mulheres-
damas. Que eram duas raparigas bonitas, que mandavam no
lugar, aindas que OS moradores restantes fossem santas famílias
legais, com suas honestidades. Cheguei e logo achei que lugar tal
devia era de ter nome de Paraíso.

Antes, primeiro, pensei em todos, para o justo quinhão,
porque eu era chefe. Reparti o pessoal em grupos, determinando que
saíssem indo adiante, com via por trechos remarcados, Pois
mesmo a poucas léguas de lá aonde eu, eles iam achar, por um
exemplo, dois arraiais - o Adroado e o São Pedro - e até o
Barro-Branco, que era um vilório. Entanto que, Diadorim,
conforme conveniente, enviei também expresso - ele comandasse
os guias tenteadores. Tudo pronto, vim, acompanhado só com
uma guarda de dez homens. O que eu não disse que o Verde
Alecrim ficava em aprazivel fundo, no centro de uma serra
enrodilhada. Dum alto, se via, duma olhada e olhar. Esporeei, desci,
de batida.

Aí cheguei bem de mão. Meus homens, deixei que fossem
para as casas domésticas, conversar casadas e suas crias. Eu apeei
na das duas. Escolhi assim. Bom, quando há leal, é amor de
militriz. Essas entendem de tudo, práticas da bela-vida. Que
guardam prazer e alegria para o passante; e, gostar exato das pessoas,
a gente só gosta, mesmo, puro, e sem se conhecer demais
socialmente... Eu chegasse de noite, e elas estavam com casa
alumiada, para me admitir. Como que o amor geral conserva a mocidade,
digo de Nhorinhá, casada com muitos, e que sempre
amanheceu flôr. E, isto, a tôrto digo, porque as duas não se
comparavam com Nhorinhá, não davam nem para lavar os pés dela.

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Mas que, porém, beleza a elas também não faltava, isto sim.
Uma Maria-da-Luz era morena: só uma oitava de canela.
Os cabelos enormes, pretos, como por si a grossura dum bicho
- quase tapavam o rosto dela mesma, aquela nhazinha-moura.
Mas a boquinha era gomo, ponguda, e tão carnuda vermelha se
demonstrava. Ela sorria para cima e tinha o queixo fino e
afinado. E os olhos água-mel, com verdolências, que me esqueciam
em Goiás... Ela tinha muito traquejo. Logo me envotou. Não era
siguilgaita simples.
A outra, Hortência, meã muito dindinha, era a Ageala, conome
assim, porque o corpo dela era tão branquinho formoso, como
frio para de madrugada se abraçar... Ela era ela até no recenso
dos sovacos. E o fio-do-lombo: mexidos curvos de riacho
serrano, desabusava. Comprimento exato dele, assim, o senhor
medir nunca conseguia. No meio delas duas, juntamente, eu
descobri que até mesmo meu corpo tinha duros e macios. Aí eu era
jacaré, fui, seja o que sei.
No meio daquela noite, andei com fome, não quis cachaça.
Me descansei, comi uma coalhada muito fria. Comi bolo com
cidrão. Bebi bom café, adoçado com um açúcar de primeira,
branco igual. Porque as duas minhas-damas eram ricas; dizer: deviam
de ter muito dinheiro de prata aforrado. Por lá, na casa delas, era
ponto de pernoite de lavradores de posses, feito estalagem, com
altas pagas. Mas as duas, mesmas, provinham de muito boas
famílias, a Ageala Hortência era filhá de grande fazendeiro
paranãnista, falecido. Eram donas de terras, possuíam aquelas roças de
milho e feijão nas vertentes da serra, nos dependurados. Ali
mesmo no Verde-Alecrim, delas era toda a terra plantável. Por isso,
os moradores e suas famílias serviam a elas, com muita harmonia
de ser e todos os préstimos, ohsequiando e respeitando
conforme eu mesmo achei bem: um sistema que em toda a parte devia
de sempre se usar.

Como se deu que, enquanto se bebia o café, escutamos uma
tosse, da banda de fora. E era do homem que eu tinha deixado de
vigia. O qual tinha acontecido de ser o Felisberto o que, por
ter uma bala de cobre introduzida na cabeça, vez em quando
todo verdeava verdejante, como já foi dito. E então elas duas
pensaram em se mandar o Felisberto entrar para provar do café
também, dando que não é justo ficar um desconfortado no
sereno, enquanto os outros se acontecem. Sendo as duas, o senhor
vê, pessoas muito bondosas.

Assenti, boamente, nisso, em que elas estavam com a razão.
Só que, pelo respeito, eu sendo Chefe, não ia poder deixar o
Felisberto me avistar assim, perfeito descomposto nú, como eu
estava. Maria-da-Luz aí trouxe uma roupagem velha dela, que
era para eu amarrar na cintura, tapando as partes. Experimentei.
Daí, entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a
mulher, e desatei aquilo, joguei longe.Tornei a vestir minhas
roupas, botei até jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum saranga?
Eu podia dar bofetadas não fosse a só beleza e a denguice
delas, e a estróina alegria mesma, que meio me encantava.

O Felisberto entrou, saudou, comeu e bebeu. Naquela
ocasião ele estava passando bem, normal. Só assim, ao
silenciosamente. Entendo que mais fosse para o galhardo que para o
semgraça, rapaz desses de que as mulheres se arregalam. Em ver,
seria mais moço do que eu, mais calmo. Não quisesse ardêres
com damas, quisesse oS pOUCOS recantos para devagar se resignar.
Não cobiçou a qual, ou agrados. Nem na hora reparei que a
Maria-da-Luz com ele se olhasse. Só bem, o que ela refletiu,
quando o Felisberto, comido e bebido, tornou a sair, ela me
diSse: - que, se eu no caso dúvida não pusesse, o Felisberto podia

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com ela se introduzir, no outro cômodo, por variação dumas
duas horas, constante que nesse breve prazo eu ainda restava
felizardo com a Ageala Hortência. Danado eu disse que não; e
ela: "Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e vai
fortunosamente.Tu não repartindo, tu tem?..." assim ela me
modificou. A doidivã, era uma afiançada mulher. No sertão tem
de tUdO.
E eu tinha falado meu não, era mais somente porque não
se pode talhar na regra: de se se pandegar com sentinela posta. Eu
era o chefe. O Felisberto era sentinela. Aquela casa de lugar
- as delícias que estavam - eu melhores neste mundo não achasse,
pensei. Eu quisesse reinar lá. pelos meus prazeres. O senhor
sabe: eu chefe, o outro sentinela. Esse Felisberto, pelo jeito, ia
viver tão escasso tempo, podia bem que nem fizesse mais conta
do oficio. Sendo o mais que pensei: eu, sentinela! O senhor sabe.
Ah - ainda que no nocivo desses andares - eu conseguia meditar
minhamente: ah, eu não tive os chifres-chavelhos nem os
pés de cabra... Ali, pelos meus prazeres eu quisesse me reinar,
descambava para fecho de termo. A morte estava com esse Felisberto,
coitado desgraçado. A coisa estranha que uma bala de arma
tinha entrado nos centros da cabeça mesma dele, recessos da idéia
dele de lá, de vezes em vezes, perturbava com excessos: daí
um dia, em curto, era a morte fatal. Agora, podia bem ser que
ele quisesse largar de mão de ser jagunço? Aquele fato daquela
bala entrada depositada no dentro de um e que não se podia
tirar de nenhum jeito, nem não matava de uma vez, mas não
perdoava na data - me enticava. Aquele homem, mesmo com a
valia e bizarria dele, eu pudesse querer mais no meu bando? As
duas mulheres, belezas assins, dando delícias, bilistrocas...
Outra idéia eu tixe. Se eu sei: eu sentinela! Só não posso dar uma
descrição ao senhor, do estado que eu pensei, achei; se sei em
bases.
Amanheceu claro. Mas Maria-da-Luz não era logrã, isso
conheci, no ver como ela olhou para o Felisberto, com modos
mimosos. Quem sabe ele havia de gostar de ficar para sempre
permanecido ali? Perguntei. O Felisberto se riu, tão incerto feliz,
que eu logo vi que tinha justo pensado. E elas, demais. - "Deixa
o moço, que nós prometemos. Tomamos bom cuidado nele, e
tudo, regalado sustento. Que de nada ele há-de nunca sentir
falta!"Tanto elas disseram, que tudo transformavam. Mulheres. E o
Felisberto ia permanecer, a siso, arrecadado na sujeição dësçes
deleites; podia ter um remédio de fim de vida melhor? Em tal,
abracei o companheiro, e abracei as duas, dando para sempre a
minha despedida e fazendo mostra de falar de farto. Mulheres
sagazes! Até mesmo que, nas horas vagas, no lambarar, as duas
viviam amigadas, uma com a outra se soube. O que, quando
eu já ia saindo, acharam de me dizer? Isto:

"Mas, você já vai, mesmo, nego? Visita-de-médico?.. ."
Como não pude sofrear meu rir.

Reuni meus outros meus homens. Abalei de la. Bem que eu
sentia - eu exalava uma certa inveja do Felisberto. Mas, aí,
eu estimei o Felisberto, como se ele fosse um meu irmão. Como
Céu há, com esplendor, e aqui beleza de mulher que é sede.
Deus que abençôe muito aquelas duas. A pois, me ia, e elas
ficavam as flores naquele povoadozinho, como se para mim ficassem
na beira dum mar. Ah: eu sentinela! o senhor sabe.

Assim eu queria me esquecer de tudo, terminada aquela
folga. O dever de minha hombridade. Aí mais, quando tornei a
rever Diadorim, constante vi, que andava à minha espera com os
companheiros, num papuã, matando perdizes. E encaminhei para
Diadorim, com a meia-dúvida. Eu não tinha razão? Porque Dia-

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dorim já sabia de tudo. Como sabia? Ah, o que era meu logo
perdia o encoberto para ele, real no amor. "Riobaldo, você
vadiou com as do Verde-Alecrim... Você está comprazido?" -
ele de franca frente me perguntou. Eu tibes. Corri mão por meu
peito. Mas admirei que Diadorim não estivesse jeriza. Mesmo,
ele ao leve se riu, e o modo era de malina satisfação.

"Você já está desistido dela?" em fim ele indagou.

"Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas velhacas
palavras..." eu só fiz que respondi, redatado.

Mediante porque: aí logo entendi, no instante. E ele cerrou
a conversa. Porque eu entendi: que a referida era Otacília.
Minha nôiva Otacília, tão distante - o belo branco rosto dela aos
poucos formava nata, dos escuros...

Tudo isto, para o senhor, meussenhor, não faz razão, nem
adianta. Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivendo o
que me faltava. Tão mixas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu
sou do sentido e reperdido. Sou do deslemhrado. Como vago
vou. E muitos fatos miúdos aconteceram.

Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.

Pelo que, do trecho, voltamos. Para mais poente do que lá,
só uruburetamas. E o caminho nosso era retornar por essas gerais
de Goiás como lá alguns falam, O retornar para estes gerais de
Minas Gerais. Para trás deixamos várzeas, cafundão, deixamos
fechadas matas, O joão-congo piava cânticos, triste lá e ali em
mim. Isto é, minto: hoje é triste, naquele tempo eram as
alegrias. Suassú-apara corria da gente, com a cabeça empinada qua-
se nas costas, protegendo para não prender nas árvores sua
galhadura dele. Galheiro suassú-pucú com sua fêmea suassú-apara.
Um dia, vez, se matou uma sucurí, de trinta-e-seis palmas,
que de ar engravidava. Dava lugares, em que, de noite, se estava
de repente no cabo do revólver, ou em carabinas, mesmo; e
carecia de se acender maiores fogueiras, porque, do cheio oco do
escuro, podia vir cruzar permeio à gente algum bicho estranhão:
formas de grandes onças, que rodeando esturravam ou a mãe-
da-lua, de vôo não ouvido, corujante; ou de supetão, às brutas,
com forte assovio, vindo do lado do vento, algum macho d'anta,
cavalo-rão. E foi aí que o Veraldo, que era do Serro-Frio,
reconheceu uma planta, que se chamasse guia-tôrto, se certo
suponho, mas que se chamava candêia na terra dele, a qual se acendia
e prendia em forquilha de qualquer árvore, ela aí ia ardendo
lumiosa, clara, feito uma tocha.

Atravessamos campos. Dias, tão claros, céu de toda altura. A
mais voavam eram os gaviões. Goiás estava pondo fogo nos seus
pastos. Arte que fumaçava, fumaceava, o tisne. O sol rôxo
requeimão. Tive uma saudade de outras audácias. Morreu o Pitolô,
por bala de arma que disparou sem ser por querer de ninguém
- caso muito acontecível. Num sítio Padre-Peixoto, morreu o
Freitas Macho, também, de uma dôr forte no vão da barriga,
banda-da-mão-direita; remédio de chá nele não produziu o vera
efeito. Alaripe teve uma carregação-dos-olhos. O Conceiço
destroncou o braço, deu trabalho e dôres, para se repor no lugar.
Advertido que, antes, dessas passagens assim não lhe vinha
minuciando, e que elas corretamente sempre se dão; mas que
eram somente as mortes sérias serenas, doutras desgraças
diversas, ou doenças para molestar.

E dos fazendeiros remediados e ricos, se cobrava avença, em
bom e bom dinheiro: aos cinco, dez, doze contos, todos tinham
mesmo pressa de dar. Com o que, enchi a caixa. E abriam para a
gente pipotes de cachaça, a qual escanceavam. Se jantava
banquete, depois um coreto se cantava. As vezes, não sei porque, eu
pensava em Zé Bebelo, perguntava por ele em outros tempos; e
ninguém conhecia aquele homem, lá, ali, O de que alguns tives-

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sem noticia era da fama antiga de Medeiro Vaz. Daí, me dava
raiva de ter pensado refletido em Zé Bebelo. Bobéias. E,
andantemente, só me engracei foi duma mulher, casada essa, que, com
tremor enorme, me desgostou neste responder: "Ai, querendo
Deus, que o meu marido quiser..."Ao que eu atalhei: "Ah,
pois nem eu não quero mais não, minha senhora dona. Não estou
de maneira." E, sem ser de propósito, até botei mau-olhado num
menino pequeno, que estava perto.

Quem assim viemos. Mas, conto ao senhor as coisas, não
conto o tempo vazio, que se gastou. E glose: manter firme uma
opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão
grande, é dificultoso, Vai viagens imensas, O senhor faça o que queira
ou o que não queira - o senhor toda-a-vida não pode tirar os
pés: que ha-de estar sempre em cima do sertão. O senhor não
creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto.
Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito
desastroso. O senhor...

Tornei mais certeza da minha chefia. Quer ver que eu tinha
deixado de parte todas as minhas duvidas de viver, e que apreciava
o so-estar do corpo, no balanço daqueles dias temperados tão
bem, quando o céu varreu. Dias tão claros,Tanto que as cigarras
chiavam em grosas; e de que tal-arte valessem por um atraso das
chuvas do ano, alguns já queriam desejar. Não foi. Mas eu cria
por mim nas melhores profecias. E sempre dei um trato
respeitável amistoso aos homens de valia mais idosa, vigentes no sério
de uma responsabilidade mais costumeira. Esses eram João
Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, Alaripe e outros uns
restantes que mereciam de si; e não me esqueci das praxes.
Tirante que não pedi conselhos. Mas não houvesse: mas, pedir
conselho - é não ter paciência com a gente mesmo; mal hajante...

Nem não contei meus projetados. O Rio Urucuia sai duns matos -
e não berra; desliza: o sol, nele, é que se palpita no que
apalpa. Minha vida toda.., E refiro que fui em altos; minha chefia.

Diadorim mesmo mal me entendeu. Qual que recordo, foi
num durante de tarde, a incertas horas, quando se vinha por um
selado, estirão es campante. Nós dois em dianteira, par de
homens; um diabo de calor; e os cavalos pisavam légua destinada de
cristal e malacachetas Céu e céu em azul, ao deusdar. O senhor
vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo.

E o que Diadorim me disse principiou deste jeito assim: que
perguntou, esconso, se eu queria aquela guerra completamente.
Tal achei áspero - que ele me condenava o vir dando tantas
voltas, em vez de reto para topar o inimigo ir. Remeniquei:

- "Uai, Diadorim, pois você mesmo não é que é o dono da
empreita?!" - e, mais, meio debiquei, com estas: - "Que eu,
vencendo vou, é menos feito Guy-de-Borgonha..." Acho que, as
palavras que eu disse, agora não estou trastejando...

Mas Diadorim repuxou freio, e esbarrou; e, com os olhos
limpos, limpos, ele me olhou muito contemplado. Vagaroso, que
dizendo:

"Riobaldo, hoje-em dia eu nem sei o que sei, e, o que
soubesse, deixei de saber o que sabia..."

Demorei que ele mesmo por si pudesse pôr explicação. E foi
ele disse: "Por vingar a morte de Joca Ramiro, vou e vou e
faço, consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que
indo vou não com meu coração que bate agora presente, mas
com o coração de tempo passado... E digo...

Afirmo que não colhi a grã do que ele disse, porque naquela
hora as idéias nossas estavam descompassadas surdas, um do
outro a gente desregulava. E o tom mesmo de sério que ele
impunha rumou meu pensamento para outros pontos: o Urutuia
- lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel

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é enorme - sombreia o mundo... E Diadorim podia ter medo? -
duvidei. Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz
oco no ânimo do mais valente qualquer... Com tanto, eu fui e
disse:

" Tudo na vida cumpre essa regra..."

Duvidei pouco. Diadorim não temia. O que ele não se
vexou de me dizer:

"Menos vou, também, punindo por meu pai Joca
Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo,
no querer e cumprir..."

Nem considerei. "É, o Hermógenes tem de acabar!" -
eu disse. Diadorim, ia ter certas lágrimas nos olhos, de
esperança empobrecida. Me mirava, e não atinei. Será que até eu achasse
uma devoção dele merecida trivial? Certo seja. Não dividi as
finuras. Mas, também, afiguro que responder mais não pude, por
motivos de divertência. Qual que, na hora, deu de dar, diante,
um desvôo de tanajuras, que pelas grandes quantidades delas,
desabelhadas, foi coisa muito valente, para mim foi o visto nunca
visto: em riscos, zunindo como enchiam o ar, caintes então,
porque a lei delas é essa, como porque o corpo traseiro pesa tão
bojudo, ovado, bichão maduro, elas não aguentam o arco de voar,
iam semeando palmos de chão, de preto em acobreadas, e tudo
mesmo cheirava à natureza delas, cheiro cujo que de limão ruivo
que se assasse na chapa. Bagos dessas, muito mundialmente...
Caso que os cavalos se espantavam, uns na só cisma até refugando.
E o menino Guirigó, de ver mais que todos, tocou cá para
adiante, com gritos e arteirices, tão entusiasmável; como tanto
aprovei, porque o menino Guirigó do Sucruiú eu tinha botado
viajante comigo era mesmo para ele saber do mundo. Mas o esbagoar
estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da
gente, chume-chume, fantasiado duma chuva de pedras, e elas
em tudo caíam, e perturbavam, nos ombros dos homens, e no
pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei
muitas, e outras que depois tive de sacudir fora da crôa de meu
chapéu, por asseio. Içá, savitú: já ouvi dizer que homem faminto
come frita com farinhas essa imundície... E os pássaros, eles sim,
gaviãozinho, que no campo esmeirinhavam, havendo com o que
encher os papas. Mas bem porém que cada tanajura, mal ia
dando com o chão, no desabe, sabia que tinha de furar um buraco
ligeirinho e se sumir desaparecida na terra sem escôlha de
sorte, privas de suas asas, que elas mesmas já de si picavam
desfolhadas, feito papelzinho. Isso é dos bichos do mundo; uso. Mas,
então, quando mirei e não vi, Diadorim se desapartou de meus
olhos. Afundou no grosso dos outros. Ai de! hei: e eu tinha mal
entendido.

E o senhor tenha bons estribos: que informo que o que disse
se deu bem em antes dele Diadorim ter tido a conversa com a
mulher do Hermógenes. Que agora, do que sei, vou tosquejar.
Como de fato, desamarrou o tempo. Formou muita chuva,
Com assim, emendados chovidos três dias, então certificamos
de permanecer esse tempo em prédio, e enchemos a Fazenda
Carimã, que era de um denominado Timóteo Regimildiano da
Silva; do Zabudo, no vulgar. Esse constituía parentesco proximado
com os Silvalves, paracatuanos, cujos tiveram sesmarias, na
confrontação das divisas, das duas bandas iguais. Do Zahudo: o
senhor preste atenção no homem, para ver o que é um ser esperto.
Primeiro, encontramos de repente com ele, quando se ia por
um assente chapadazinha dessas, de capim fraco. Conciso já
principiava a chuviscar, e eu estava pensando: que, por ali,
menos longe, algum rancho ou alguma casa de sitiante havia de
vagar. Nessa mesma horinha, o tal se apareceu. Conforme vinha,
num cavalo baio, com uma daquelas engraçadas selas cutucas,

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que eles usam, e introduzido em botas-de-montar muito boas,
dessas de couro de sucurijú, de que eles faziam antigamente. No
natural, que foi ele ver a gente e levou choque.
Instantezinho, porém, se converteu, Isto, que se desapeou,
ligeiro, e tirou o chapéu, com cortesia mór, com gesto de braço,
e manifestou:

"Senhores meus cavaleiros, podem passar, sem susto e
com gosto, que aqui esta é um amigo..."

"Amigo de quem?" eu revidei.

"Vosso, meussenhor cavaleiro... Amigo e criado..."

Esperança dele era ver a gente pelas costas. Com ele apertei.
aonde que morasse? "Lá daquela banda, meussenhor...
Sitiozinho raso..." outrarte ele respondeu, nhento, pasmado.
Atalhei: "A pois, pra lá vamos, adonde menos chôva. O senhor
mostre." Aí ele remudou os modos, falando em muito
aprazimento, em honras de sinceridade. A fazenda era ali, só a uns
passos. Assim ele já se astuciava.
Do Zabudo, homem somítico, muito enjoativo e sensato.
Requeri dele o prêmio - que marquei em arras de sete contos
- e ele se desesperou, conforme caretas, e suas costas das mãos,
mesmas, uma e depois a outra, diversas vezes ele beijava.
Sempre gemendo que não e que sim, pediu vênia de me noticiar
como os negócios da lavoura para ele nos derradeiros três anos
andavam desandando, com peste que no gado deu e redeu, e
praga no canavial: por via dela, nem fervia mais safra. E, tudo
que falava, explicava e redizia, mesmo se fiou de querer me
levar, debaixo de temporal, para exemplificar minhas vistas com o
pejorativo de suas posses... Por causa da caceteação, concedi
rebates, acabei deixando o estipulado em trêis-contos-quinhentos; e
também por receio de se pegar em mim a nhaca daquele atraso.
Se bem que, no repleto de dinheiro ganho goiano, como
estando, eu descarecia de sistema de bruteza com ninguém. E
mesmo se traçou que o sustento nosso ele por metade fornecia
gracioso, sem estipêndiO; escatimava, mas dava. Ao tanto que o
resto eu pagava caro, e os percebidos: certas dúzias de
ferraduras, o milho para os animais, umas mantas de toicinho e dez
quartilhos de cachaça que, em justo dizer, nem prestava. Bom,
lá, era o fumo de rolo. E, já dava de ser: como desemboque, eu
pagasse a ele só para se comportar calado. Por fim, penso, a falha
nossa lá, para aquele do-Zabudo, ficou quase de graça.

E dito e referido, que chovia em Goiás todo, assistimos
dentro de casa, só saindo no quintal para chupar jaboticabas. A gente
tinha baralhos, se jogou, rouba-monte e escôpa, porque truque
eu não consentia, por achar que me faltava floreado rompante
para os motes gritos, que nesse endiabrado jogo compertencem;
e mesmo por achar vadiado, para a minha chefia. Então bem,
enquanto a gente formava essa distração, o do-Zabudo ia e
vinha, flauteando, excogitando decerto - para ratinhar e sisar a
gente com mangonhas - outras velhaquices choradas. E foi, de
repente, ele se chegou com esta, que não se esperava por barato
nem caro: - Que a nhã senhora, aquela, suplicava o favor dum
particular com o moço chamado Reinaldo...

Essa, nhã, refiro, era a mulher do Hermógenes; que em
reserva fechada se tinha, no quarto-do-oratório. E Diadorim,
saber o senhor tem, era o conhecido por "Reinaldo".

Que me invocou - o senhor vai dizer - me causou espantos?
Havia-de. Eu estava na sala-de-jantar, jogando, com João
Goanhá, João Concliz e Marcelino Pampa. Alaripe, com a baciinha
de lixívia em areia e com estopa, na soleira da porta para o
quintal, acendrava as armas. Ele falou: - "Deus que, olh' lá: que se o
Reinaldo não dá cabo da criatura..." Descontamos. - "Eh, ela
será que faz mandraca?" - João Goanhá alvitrou, com essas risa-

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das. - "Ara, para obrar bom feitiço, que valha, diz-se que só
mesmo negra, OU negro..." Isto que Marcelino Pampa deu de
opinião, enquanto pegava o sete-belo com o sete-de-paus. Eu
joguei, e João Goanhá somou seis e trêis, na mesa, conforme
pegou com um valete, e escopou. Diadorim se tinha
encaminhado para onde estava a mulher, para ir ouvir o que ela queria que
ele ouvisse.

Tocou minha vez de baralhar e repartir cartas. Ou seria
algum pedido que ela tivesse de fazer a ele, bem. Daí, mau Goanha
esteve dizendo que a mulher rogava era por sua liberdade. E eu
deSconversei, observando casual, primeiro a respeito do luxo de
tantos anéis de João Goanhá gostava de botar em cheios dedos;e
depois chamei atenção para as goteiras abertas na têlha-vã
daquele grande cômodo, que se carecia de dispor umas latas em
diversos pontos e até uma gamela, no meio da mesa, fim de se
aparar águas da chuva. Mas, mesmo por mim, eu já tinha perdido
a simpatia no divertimento do jogo, e me ergui d' lá, fui ver
à coisa nenhuma, no alpendre, onde até homens dormiam
madraços, aborrecidos com um chover tão constante.

Diadorim não vinha, não dava de sair do quarto-do-oratório.
E, quando foi que veio, não me contou nada. O que disse,
comum: "Ah, ela só chorou mágoas..." Não perguntei passo.
Devido que não perguntei logo a primeira, depois foi não
ficando bem, para o meu brio, o perguntar. Diadorim se atarantava
quieto, nem não era correto o que ele estava fazendo,
escondendo fatos. Palavras que vieram a gume em minha boca, foram
estas: Que eu não gostava de hipocrisias... Pensei, e não
disse. Eu podia duvidar das açôes de Diadorim? Lá ele alguma
criatura para traição? Rosmes! Idéia essa não aceitei, por plausível
nenhum. Mas, de motivo como me desgostei, assim resolvi a
saída da gente dali da Carimã no instante mesmo, e dei ordem.
Fossem trazer os cavalos, e arrear, atrás do tempo que fizesse
enxurradas tais, nuvens grossas, eco nubloso e trovão em ronco.
Chuvas com que os caminhos se afundavam.

E assim cumpriram. Mas, aí nem bem os cavalos vieram no
curral, se deu uma estiada muito repentina - por um montão
de vento. O céu firmou, e sol, com todos os bons sinais Ante o
que - por isso e por tanto a admiração do pessoal foi de
grandes mostras. E eu vi que: menos me entendiam, mais me
davam os maiores poderes de chefia maior.

Só o do-Zabudo, saiba o senhor, parava fora da roda, sem
influência nenhuma, feito um tratante. saiba o senhor que assim
ele ainda me veio, com visagens e embaraços, por amortecer a
paga, pedindo ágios de calote e prazos mercantis. Agora - mais
que tudo - saiba o senhor uma coisa, a que ele, para os fins,
executou na hora da confusão da saída, no zafamar. Pois de
repente trouxe e ofertou a Diadorim, de regalo, uma caixeta da
boa e melhor marmelada goiana, dada a valores: "Ademais o
senhor prove o de que demais gostará... A de Santa Luzia, perto
desta, perde por famosa..." Dando aquilo a Diadorim, ele não
queria disfarçado me agradar, por vantagens? Se sei. O que é que
estivesse adedentro das idéias daquele homem? O jeito estúrdio
e ladino de olhar a gente, outrolhos e que na hora não me fez
explicação. Sendo que, mediado esse obséquio a Diadorim, ele
conseguiu mesmo me adular. Saranga fui, eontracontas, contra
aquele paranãnista lordaço. Ele se saiu quite, por pouco não
pegou até dinheiro meu emprestado. Mesmo pelos cavalos e
burros que cedeu, recebeu igual quantidade dos nossos, bem
melhores, somente que estavam cansados. Teve até permissão de
conservar o dele próprio, o baio, que disse ser de venerada
estimação, por herdado pessoal do pai. Nele, amontado prazido,
naquela dita cutuca, pandegamente, pois ainda veio, por quarto-

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de-légua, fazendo companhia à gente. Coisa assim, não se vê.
Tanto ambicionava, que nem temia. Sempre me olhava, finório,
com as curiosidades. E assim. Agora, o senhor prestou toda a
atenção nesse homem, do-Zabudo? O diabo dele, O senhor me
diga: o senhor desconfiou de alguma arte, concebeu alguma
coisa?

Sumimos de lá. Em cinco léguas, vi o barro se secar, O
campo reviçava. Mas concedi que a viagem viesse à branda, serenada.
Queria, quis. O burrinho de Nosso Senhor jesus Cristo também
não levava freio de metal... Isso, na ocasião, emendo que não
refleti. Razão minha era assim de ter prazos, para que meu
projeto formasse em todos pormenores. Mas isto afianço ao
senhor também eu não sentia açoite de malefício herege
nenhum, nem tinha asco de ver cruz ou ouvir reza e religião. Mesmo,
me sobrasse tempo algum de interesse, para reparar nesses
assuntos? Eu vinha entretido em mim, constante para uma coisa:
que ia ser. Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o
Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que
bate. Mas, por esturdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não
poitava raiva. Mire veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa,
para minhas proezas, um destaque entre minha boa frente e o
Chapadão. Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que um
fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu
-eu carecendo de derrubar a dobradura dele, para remediar
minha grandeza façanha! E perigo não vi, como não estava
cismando incerteza. Tempo do verde! Êpa, eu ia erguer mão e
gritar um grito mandante e o Hermógenes retombava, Onde
era que estava ele? Sabia não, sem nenhuma razoável notícia; mas,
noticia que se vai ter amanhã, hoje mesmo ela já se serve...
Sabia; sei. Como cachorro sabe.
Assim, o que nada não me dizia isto é, me dizia meu
coração: que, o Hermógenes e eu, sem dilato, a gente ia se trentear,
em algum trecho, nos Gerais de Minas Gerais. Eu conhecia, A
pressa para que?Ao ir, ao que ir aí contra a Serra das Divisões
ou sobre o Rio São Marcos. Estrada-real, estrada do mal. Como
de fato, aquilo estava impossível, breado de barro alto, num
fundo, num desmancho, que comia com engôlo as ferraduras
mesmo cravadas novas, e assujeitava a gente a escorregão e
tombos, teve animal que rachou canela, quebrou pescoço. "Este
caminho tem tripas..." se dizia bem. As loucuras. E a jorna
não rendia, não se podia desvelar o pisar. Retardamos. Retardar,
mesmo se me dava de agradável. Eu ia numa caçada, com o grande
gosto, ah, Pois não era? Mais tempo se gastou, esbarrados em
casas-de-fazendas ou em povoados. Melhor - por lá, também,
haviam de aprender a referir meu nome, De em desde, bem que
já cumpriam de me recompensar e me favorecer, pela vantagem:

porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes. O Hermógenes -
pelejei para relembrar as feições dele, Achei não. Antes devia
de ser como o pior: odiado com mira na gente. - "Diadorim..."
- pensei - "... assopra na mão a tua boa vingança..." - o
Hermógenes: mal sem razão... Para poder matar o Hermógenes era
que eu tinha conhecido Diadorim e gostado dele, e seguido
essas malaventuranças, por toda a parte?

Retardamos. Até que, tomando sazão boa no veranico
seguimos em fim, estrotejando. Parávamos léguas perto das
divisas, mandei ir vigias e dianteiros. Conferi meu povo nas armas.
Tudo prazia. O barranco mineiro ou o barranco goiano. Da beira
de Minas Gerais, vinha um mato vagaroso.

E piorou um tico o tempo, em Minas entramos, serra-acima
com os cavalos esticados. Aí o truvisco; e buzegava. O
ladeirão, ruim rampa, mas pegamos a ponta da chapada. Foi ver,

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com o vento nas orêlhas, o vento que não varêia de musicas.
Tudo consabia bem, isto sim, digo; no remedido do trivial,
espaço de chuva, a gente em avanço por esses tabuleiros: fazia rio
por debaixo, entre as pernas de meu cavalo. Sertão velho de
idades. Porque - serra pede serra - e dessas, altas, é que o
senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se
dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão
distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros:
urubú, gavião - que sempre voam, as imensidões, por sobre...
Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se
abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais
longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele...

Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a rôr, a rodo... Dali de
lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não?
Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é
asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está escrito
tem constante reforma - mas que a gente não sabe em que
rumo está em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?

Meus homens adianteiros retornaram, que vindos com uma
notícia: os hermógenes, bando enorme, tocavam meio para cá
- decerto também já cientes de meu caminhar! Era o devido.
Se estremeceu, de pressas. Vim. Viemos. Trastopamos com uns
campeiros e outros, que vaquejavam, ou que levando gado de
volta para o caatingal, por não morrerem suas rêses todas, de
pastar o capim novo dos Gerais, que cresce cheio de areia. Mas esses
não sabiam de nada coisíssima. A gente contornou, por se chegar
primeiro no Nestor, na Vereda-Meã, e no Coliorano, depois do
Mujo. Vãozinho-do-Mujo, esse acho que era certo também, o
nome. Mas o Coliorano morava num buritizal de lagoa, e fazia
chapéus-de-palha fabricados; dos melhores. Nele e no Nestor,
carecia de se chegar, em antes do Hermógenes que lá se tinha
côito de munição. Contornamos. Muito brejo e sapal já estavam
de volta. Os rios andando sujos, e umbuzeiros dando flor. Mas a
cheia de todo rio carregava muito cuspe de espuma por cima -
sinal de que ela ia aumentando, com maiores chuvas nas
nascentes. Assim mesmo assim, não perdemos de breve chegar e de
arrecadar munição que se queria, total toda. Arredondamos.
Agora, em hora. Que era que faltava? Comigo- redor de mim!
- quem quisesse guerra...

Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu
pessoal, feito fossem irmãos meus, da semente dum pai e na madre
de uma mãe gerados num tempo. Meus filhos. Para que relembrar,
divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Dôido - que
xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse,
ou até algum mosquitinho chupador. Do Diodôlfo mexendo
os beiços num bis-bis: que era que sem preguiça nenhuma rezava
baixo, ou repetia coisas de mal, da vida alheia, conversando com
si-mesmo. Do Suzarte tomando olhos de tudo, chão, árvores,
poeiras e estilos de vento, para guardar em sua memória aqueles
lugares em léu. Do Sicrano João, em ancas de seu burro; e do
Araruta - de toda confiança: esse homem já tinha para mais de
umas cem mortes. Do Jiribibe, que a recorrer, da guia à culatra,
por necessidade de cada coisa ouvir, recontar e saber. Ou do
Feliciano - que abria muito o olho são, para melhor entender o
que a gente dizia? Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita voz,
algôa cantiga sentimental. João Concliz, dobrando um assovio
comprido sem fim, como esses que são dos tropeiros dos
campos goianos? Ou o José do Ponto com o Jacaré tocando os
cargueiros, com sua tralha de cozinhar...

Mas refiro miúdos passos. Coisinhas que a gente vislumbra
em ocasião de momento, e que quase não esquecem, com pena.
Pois eu pensasse a breve na responsabilidade que a minha era,

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quando via um homem idosamente respeitável, como Marcelino
Pampa e que já tinha sido chefe - seguindo por seu próprio
gosto, no meio do andamento dos outros, ou esbarrar o cavalo
nos freios, e, esbarrado assim, mesmo sem virar a cara para mim,
mas abaixar um pouco a cabeça, e ficar escutando e meditando o
meu conselho. Ou quando um daqueles jagunços mais velhos
recomendava a qualquer rapaz como era que deviam de ter
cautela, no lidar com as armas de conjunto, e com a munição nas
canastras: pois de tudo calados cuidavam; porque então, em
sentir, era como se fosse coisa de paz, arranjos miúdos em casa da
gente. Ou mesmo quando eu avistava um daqueles catrumanos,
gente toda trazida, deportados por mim da terra deles. Esses me
davam estima? Ah, acho que me achavam. Antes teriam um
admirado receio, o medo maior. E tinha uns como digo ao
senhor que relembro tudo - esse, Assunciano: quando se falava
em fogo, ele já ficava com o corpo para diante, meio entortado;
é que ele era magro, mas ovante, barrigudo mediamente; e, de
um qualquer um chapéu simples, mas um pouco mais enfeitado
ou novo, ele já demonstrava mirar de boba inveja... Meus filhos.

Mas, não durava daí, menosmente, eu esquentava outra vez
meus altos planos, mais forte; eu refervesse. Eu era assim. Sou?
Não creia o senhor. Fui o chefe Urutú-Branco depois de ser
Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei,
largaram de mim, na remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a
bondade. Só que não entendo quem se praz com nada ou pouco;
eu, não me serve cheirar a poeira do cogulo - mais quero
mexer com minhas mãos e ir ver recrescer a massa... Outra sazão,
outros tempos. Eu ia para sofrer, sem saber. E, veja, se vinha, eu
comandei: - "É guerra, mudar guerra, até quando onça e
couro... É guerra!.. "Todos me aprovavam. Ainda mesmo que com o
cantar:

"Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó Baiana:
e volto
do meio
p'ra trás!"


Assim, aquela outra - que o senhor disse: canção de Siruiz
- só eu mesmo, meu silêncio, cantava.

Sofreado de minha soberba, e o amor afirmante, eu senti o
que queria, conforme declarado: que, no fim, eu casava desposado
com Otacilia - sol dos rios... Casava, mas que nem um rei.
Queria, quis. - E Diadorim? - o senhor cuida. Ingratidão
é o defeito que a gente menos reconhece em si? Diadorim - ele ia
para uma banda, eu para outra, diferente; que nem, dos brejos
dos Gerais, sai uma vereda para o nascente e outra para o poente,
riachinhos que se apartam de vez, mas correndo, claramente, na
sombra de seus buritizais. Outras horas, eu renovava a idéia:
que essa lembrança de Otacilia era muito legal e intrujã; e que
de Diadorim eu gostava com amor, que era impossível. É. Mire e
veja: o senhor se entende? Deixe avante; conto. Mesmo, nos dias,
o que era, era ir - vir, corrijo. Até sem ter aviso nenhum, eu me
havia do Hermógenes. Pressentidos, todos os ventos eu farejava.
O Hermógenes, com seu pessoal dele - que nem em curvas
colombinhando, rastejassem, comprido grôsso, mas sem bulha,
por debaixo das folhas secas... Mas eu estava fora de minha
bainha. As vezes, eu acordava na metade certa da noite, e estava

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descansado,como se fosse alto dia.Vão da noite, quando o mato
pega a adquirir rumores de sossegação. Ou quando luava, como
nos Gerais dá, com estrelas. Luava: para sobressair em azul de
luz assim, só mesmo estrela muito forte.

E chegamos! Aonde? A gente chega, é onde o inimigo
também quer. O diabo vige, diabo quer e ver... A pois! Sincero,
senhor: os campos doTamanduá-tão; o inimigo vinha, num trote
de todos, muito sacudido. Se espandongaram... Campos do
Tamanduá-tão o senhor ai escreva: vinte páginas... Nos
campos do Tamanduá-tão. Foi grande batalha.

Não se instruiu que. Nem não houve aviso. Dei guerra. Como
se quis: lei a lei, e fogo a fogo. Era na força da lua.

Tamanduá-tão é o varjaz - que dum topo de ladeira se
avistava; e para lá descemos por encanado de cava, quase grota, que
a vertente entalha. Mas mais de mil bois, ou cavalos e éguas uns
oitocentos, se carecesse, cabiam de bom pastar ali naquele
baixadão, de raso em raso. Ao muito escuro, duma banda, existia
um travessão de mato. Outro braço de mata, da outra banda.
Com que, contornada essa mata, a gente estava sempre naquilo
que Tamanduá-tão é: a enorme vargem. Porque, para tudo quanto
havia, o nome era aquele só - que Mata-Grande do Tamanduá-tão,
e Mata-Pequena do Tamanduá-tão, e tudo. Por mesmo, do
Tamanduá-tão era a casa-de-fazenda de muitos antigos
tempos, quando tinha tido senzalas e um engenho-de-pau-em-pé.
Mas já estava esquecida, arruinada em esteios e com restos de
parede fechando matagalzinho em cima de montes de terra e
pedras, em fim de taperada. Bem sim, que, por perto, assistia
alguma pobre gente vinda, cultivando: o quanto se via roça,
milharais, feijoal faceiro. Gente, mal se viu. E do Tamanduá-tão era a
Vereda, com seus buritís altos e a água ida lambida, donzela de
branca, sem um celamim de barro. Diz-se que lá se pesca, e
gordas piabas. Por cima dela sei é de muito tiro, Tinha um cocho no
chão, no campo; o gado ouvia e se fugia, bravo. Às beiras
daquela, minha gente galopou a vereda toda, susã-jusã feito
estivessem sendo surucuiú em fêmea, percorrente doidada... E o
inimigo dava para trás! Não achavam esconso... Assim é que se
principiou.

A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar, definir
para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo. O
senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a
ponta de cada braço: cada uma é uma... Pois, na de cima, era
donde a gente vinha, e a cava. A da banda da mão-direita nossa,
isto é, do poente, era a Mata-Grande doTamanduá-tão. Rumo a
rumo, a da banda da mão-esquerda, a Mata-Pequena do Tamanduá-tão.
A de baixo, o fim do varjaz - que era, em bruto, de
repente, a parede da Serra do Tamanduá-tão, feia, com
barrancos escalavrados. Os barrancos cinzentos, divulgando uns
rebolos e relombos, barrancos muito esquisitos como as costas de
fila de muitos animais... Mas, agora, o senhor assinale, aqui por
entremeio, de onde é a Serra doTamanduá-tão e a Mata-Grande
do Tamanduá-tão, mais ou menos, os troços velhos da casa-de-
fazenda, que tanto se desmantelou toda; e, rumo-a-rumo no
caminho da Serra para a Mata-Pequena, essas rocinhas de pobres
sitiantes. Aí o senhor tem, temos. A Vereda recruza, reparte o
plaino, de esguêlha, da cabeceira-do-mato da Mata-Pequena para
a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas em curtas curvas,
como no sucinto caminhar qualquer cobra faz. E tudo. O resto,
ceu e campo. Tão grandes, como quando vi, quando no fim: que
ouvi só, no estradalhal, gritos e os relinchos: a muita poeira, de
fugida, e os cavalos se azulando...

Mas, primeiro, antes, teve o começo. E aí teve o antes-do-
começo; que o que era a gente vindo, vindo. E vindo bem.

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Mal au justo, que, para tão cedo, assim, aquilo não se esperava. A
gente vinha acabando a serra. Serra da Chapada. Somente para
daí descer, e traduzir essas campinas, a grandeza de vargem.

Deles, inimigos, não se tinha aviso nenhum, nem espiaçãO. Eu
podia saber? Eu era uma terrível inocência. E de tudo miúdo eu
dava de comer à minha alegria. Assim, o por exemplo, quando
eu quis experimentar a valia de meus catrumanos. Um, o Dos-
Anjos. Esse degozava de mostrar que tinha tomado entendimentos:
presto manejava. Achei graça no tirintim ligeiro, como ele
recarregou a comblém. Mas era uma arma sem trocha, e muito
envelhecida, abaixo de todas as menos, até com cano já gasto. -
"X'eu cá ver o arcabuz, mano-velho..." eu arrecadei. Ele nem
queria entregar; conforme que disse, triste: "É a méa combléia...
- e escogitava na arma. Esse, merecia. Que fossem arranjar
arranjar para ele uma outra, consentã - rifle chapeado ou
mão 27, OU carabina qualquer, bala de chumbo. E aí o Dos-Anjos
me desofereceu o trabuco dele velho; mais que avexado, e
menino manso me olhava... Mas Marcelino Pampa - acho que foi
- quando a gente acabou de rir, pagou boa lembrança: disse
que, num brugo, a meio indo para o pique do morro, Medeiro
Vaz tinha deixado guardado, uma vez, um feixe de armamento
de soldados. Que eram cinco fuzis mauser, oleados bem, num
caixote, escondidos no fundo dum grande solapo, no paredão.
Se dizia.Tanto que lá nem bicho mateiro não ia, tirante macaco;
e que por tudo, por certo, deviam de estar uso. - "Por que é
que Medeiro Vaz escondeu?" - "Por, no tempo, não ter servível
munição..." - " E agora se tem, que dê?" - " A pois."

Eu disse ao senhor: eu não sabia do inimigo, nem o inimigo
de mim, e nós vínhamos para se-encontrar. Então? Ah, mas eu
parei mais alto - estive muito mais alto, mesmo; e foi assim a
sol. Pois logo a gente quebrou caminho, trepando encosta, lá
para aquelas burguéias. Os nenhuns fuzis não achamos, adentro
do cavernal, que era muito espaçoso, só com uns morcegos, que
habitavam. E eu, por um querer, diSSe que ia subir mais, até no
cume. Poucos foram os que comigo vieram. As alturas.

Poucos; me lembro do Alaripe. Posto, pois foi porque foi.
Que estávamos já voltando descendo do ponto do alto, o vento
bobeando na cara da gente - e bela-vista adiante, muito
descrita. Caminhando, mesmo, a gente tinha enrolado cigarros, que
não estava sendo azado de acender, por via do encano do ar,
que ventainhava. Esbarramos. Alaripe bateu binga. Mas, repronto,
mesmo encolheu o corpo, e apontou, exclamando surdo: -
"Há, lá: no quembembe.. ." - o que, quemhembe, na linguagem
da terra dele, vinha a ser: na virada, na tombada... Como com
efeito, acolá, na Serra do Tamanduá-tão, vertente abaixo, vinha
um cavaleiro. E eram muitos outros.

Esses, eles! Mas nós já tínhamos tomado recato.
"Maximé...." - eu disse. E o que eu senti, ah, não foi receio, nem
estupor, nem arrocho, O que eu senti foi nada, coisa nenhuma:
coisa-nenhuma em branco, ao redor da minha movimentação...

Quantos com que, assim viessem, se guerreava; mas sempre
um chefe é uma decisão. Falei. E, quando mesmo dei tento, já
tinha determinado as ordens justas carecidas; tudo atinado o
senhor veja, e tal. Primeiro, que uns três homens fossem levar
para aquela dita solapa do morro os que não eram mãos-d'armas:
- que o menino Guirigó, o cego Borromeu e a mulher do
Hermógenes, que lá esperassem o final de tudo. E para isso escolhi
também o catrumano Dos-Anjos, que logo vi que bem escolhi,
portanto que ele, na primeira coisa que pensou, foi na quantia de
comida que para eles se deixasse. Daí, o da guerra, exato, muito
singelo: repartir a gente em três drongos, que íamos descer à
serra em diversas bocainas diferentes. Eu, com o meu, normal

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rente. João Goanhá, da banda da mão direita; Marcelino Pampa
da banda da mão esquerda: eles fossem para ladear, e revir e
cometer, dando todas retaguardas!

Num átimo. Discutido assim, o pessoal se arrumou para ir, já
indo; jagunço nunca dilata. Mas os de João Goanhá e os de
Marcelino Pampa, primeiramente, que deviam de longe. Eu, com
os meus, tinha mais tempo, convinha mesmo retardar. Estive
contando os cavalos. -"Te arma bem, Diadorim!" eu disse.

"Te arma bem, mano meu mano!" Por que foi que eu disse?
Então, o senhor me confere: que eu ingrato não era, e que nos
cuidados de meu amor Diadorim sempre estava. E amor é isso: o
que bem-quer e mal faz? Apalpei meu selim, que minhas pernas
esquentavam. Empunhei o parabelo. Alguns dos homens ainda
aproveitavam a espera para comer o que tivessem, e um quis me
obsequiar com a metade duma hroa de brote, de se roer, e outro
que trazia um embornal-de-couro cheio com cajús vermelhos e
amarelos. Rejeitei. Por mesmo que naquele dia eu estava de jejum
quebrado só com uma jacuba. Nem quis pitar. Não por nervoso.
Mas eu sabia que era o minuto e não era a hora. E o do
embornal com oS cajús, sendo um João Nonato, diamantinense,
decidido agradável me disse: "Hoje, Chefe, depois que se
ganhar, com o bom gol se festeja?" Ói, sim. E de repente eu disse
dizer: "Tu, menino, tu vem adiante, mano-velho:
emparelhado comigo... Tu me dá sorte!" Deixamos de esporas.

Descendo na cava, por feliz a gente vinha em oculto. E,
justo, já em baixo, no principiar da várzea, era um capim com mais
viço, capinzal do fresco de pé-de-serra. Capim mais alto do que
eu nele a gente se tapava. Coincidido que, permeio o verde
dos talos, a gente via algumas borboletas, presas num lavarinto,
batendo suas asas, como por ser. Caiu o açucar no mel! Porque,
igual também convím que podíamos laolear um tanto; e, daí,
separei, de cabeça, um grupo de homens, que iam ir com o Fafafa:
esses avançarem primeiramente - como a certa isca
perturbando o cálculo do inimigo, ao dar o dar. Respiramos tempo,
naqueles transitórios. De rechêgo, coçando as caras no capim
em pontas, que dava vontade de se espirrar. Só o rumor que se
Ouvia era o dos cavalos abocanhando. Eu tinha pressa de um
final, mas o que ia mor em mim era um lavorar de paciência:
talento com que eu podia ficar retardando lá, a tOda a vida. Safas
- que eu podia dar também um pulo, enorme, sustirado,
repentemente. Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem. O
capinzal repartia tudo diverso: o abafo do ar e o fresco de lugar
de grota - frio e calor, lado dum doutro, nas finas folhas mesmo
da folhagem. Mas o calor vinha subindo era pernas acima, no
meu corpo: o que os meus pés, de tão quentes, suavam. E eu não
enxergava o chão; mas o cheiro do lugar ali era de barro amarelo
massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se embalançava na
sela, banda para banda, na suavidade essa - conforme
temperação, de que o espírito necessitava. Sendo o muito quieto, para
não assustar os pássaros que comem sementes no capim, porque
o revôo deles havia de dar ao inimigo alto aviso no ar.

Sobre isto, eu tirei um pé do estribo e ajoelhei no coxim da
sela. Porque era a hora de olhar; mirei e vi. Como o inimigo
vinha: as listras de homens, récua deles: passante de uns cém.
Tive mão em tudo, eles ainda estando longe. Fafafa encostou dois
dedos no meu joelho, como se até às mudas quisesse poder
receber a ordem. Ele esperava um instante certo de meu respirar. Eu
brinquei com a mão no arção. Vez de um, vez: todos e todos. Falo
o dito de jagunço: que eles mesmos não conseguiam saber se
tinham algum medo; mas, em morte, nenhum deles pensava. O
senhor xinga e jura, e por sangue alheio.

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Daí, reolhei. Avistei que vinham e tinham destacado um
galope, festinho adiante, uns tais, que se enviassem de vigiar a
cava e a passagem de sobe serra, como cautela. Fechei os olhos,
e contei. Até dez, aguentei não, que me deu um deciso ja em
sete. "Tu é tu, Fafafa!" eu disse. E ele gritou: "Xé, do
campo!" -; e correu as esporas. E eu vi o virar dos cavalos -
partindo rompendo, amassando cama no capinzal. Seja que, os
homens para acompanharem o Fafafa, eu medi em número e
soltei, feito em porteira de gado: e pouco passaram de vinte. E eu
retinha a duro os outros, que queriam também ir. E Diadorim,
desses. - "Eu!" - que Diadorim disse. Eu disse: - "Não!" -
como agarrei embaixo a rédea do cavalo dele. Por que foi
que fiz? Bastava o meu mando. Aquilo não tinha significado. Só fiz
querer Diadorim comigo; e a gente se cabia entre riscos do verde
capim, assim eu Diadorim enxergava, feito ele estivesse
enfeitado. Se escutando os grandes gritos e tiros: que eram os de
Fafafa destruindo a anteguarda dos contrários. Amontado no
instante, mas eu mesmo assim tive prazo para me envergonhar de
mim, e para sentir que Diadorim não era mortal. E que a presença
dele não me obedecia. Eu sei: quem ama é sempre muito
escravo, mas não obedece nunca de verdade...

Aí, me alteei, e tive: que era o começo da grande batalha.
Sobre o soprar, o Fafafa indo em frente, mais os dele, gritando
alardes!

No que, os outros, os hermógenes, também, que primeiro
formavam mó, depressa alargaram espaço, se abrindo uns dos
outros - mato de gente. Eles tresfuriavam assim, aos urros
zurros, quantidade que eram; eh, sabiam vir, à cossa. E tiros
pouco ouvi; mas, no liso seco estradal, do meio do campo, deu
um pano de poeira, empenachada. Eu bebi gotas: digo, isto é,
que amola esperei mais. Como o Fafafa, de propoSital - porque
aqueles outros podiam recachar - retardava a ida avante, num
meio-galope somente, muito enganador. A avistar melhor, quase
trepei de todo na sela, meu animal cumprindo de não bulir, porque
era cavalo consciencioso. Mas, enquanto iSSo, saiba o senhor
o que foi que fiz! Que fiz o sinal-da-cruz, em respeito. E isso era
de pactário? Era de filho do demo? Tanto que não; renego! É
mesmo me alembro do que se deu, por mim: que eu estava crente,
forte, que, do demo, do Cão sem açamo, quem era era ele -
o Hermógenes! Mas com o arrojo de Deus eu queria estar; eu
não estava?!

Foi o instante de tempo que era o momento. Só chamei João
Concliz: "Agora é agora.." E joguei a rumo. "Lá vai obra!"
Meu cavalo saiu às cabeçadas.Todos atrás de mim, no arranque; e
era o mundo mesmo. Gritei de sussus: - "Vale seis! - e toma
nove!..." - nas grimpas da voz... E eles meus, gritando tão feroz
que semelhavam sobre-vindos sobre o ar. Menos vi. Mas todo o
todo doTamanduátão se alastrou em fogo de guerra.

Suspenso ouviu? - escapei, à de banda, com meu bom
cavalo, repuxei as rédeas. Só assim permaneci, eu estava debaixo
duma árvore muito galhosa; canjoão. Que pensei. E rompeu tiro,
romperam, na polvorada. Até o capim dava assovio. E, por tudo
se desejar de ver, tantamente demorava e ficava custoso, para em
alguma justa coisa se afirmar os olhos. O que era leito grande
mesa posta, cujos luxos motivos, por dizer, alguém puxa a toalha
e, vai, derruba... Quem era que ia poder botar naquilo uma
ordem, para um fim com vitória? E estralou bala... Repisei
minhas estribeiras, apertei as pernas nas espendas. Eu tinha de
comandar. Eu estava sozinho! Eu mesmo, mim, não guerreei.
Sou Zé Bebelo?! Permaneci. Eu podia tudo ver, com friezas,
escorrido de todo medo. Nem ira eu tinha. A minha raiva já estava
abalada. E mesmo, ver, tão em embaralhado de que é que me

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servia? Conservei em punho meu revólver, mas cruzei os braços.
Fechei os olhos. Só com o constante poder de minhas pernas, eu
ensinava a quietidão a Siruiz meu cavalo. E tudo perpassante
perpassou. O que eu tinha, que era a minha parte, era isso: eu
comandar. Talmente eu podia lá ir, com todos me misturar, enviar
por? Não! Só comandei. Comandei o mundo, que desmanchando
todo estavam. Que comandar é só assim: ficar quieto e ter
mais coragem.

Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou aquilo,
nessa minha hora? Me vissem! Caso que, coragem, um sempre
tem poder de mais sorver e arcar um excesso igual ao jeito
do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do
peito, por cheio que cheio, emendando respiração... À fé, que fiz.
Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei -
refiro ; mas um nome só eu falava, fortemente falado baixo, e
que pensado com mais força ainda. E que era: Urutú Branco!...
Urutú Branco!... Urutú Branco!... Cujo era eu mesmo.
Eu sabia, eu queria.

E quando a guerra para o meu lado relambeu, feito
repentina labareda dum fogo. Uns vieram. E os tiros, deles, bala
batia e rebatia. Cortavam capim do chão, que riscavam com
punhado de terra. Tch'avam partes de ramos da árvore por cima de
mim, e vagens do angico, que então reconheci por isso. Como
quieto fiquei. Eu não era o chefe? Mesmo que uma carga de rifle
se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, e que outra, zoante,
em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas dei
desprezo. Mas, eu tivesse alargado braço e movido mão, para com
tiros de meu revólver ripostar, e eu mal morto estava ponto
que enquadrado de passantes balas, que rentes, até quentes.

Urutu Branco... - eu só relembrei, sussurrado ditoso, como
quando com mocinha meiga se namora. Cachaças que em minha
alegria. Em vento. E balas, mais, só; num enorme num minuto.
Mas, bem: que, aluir dali, eu não aluía. Morresse tive
preguiça de pensar mas, morresse, então morria três-em-pé, de
valente: como o homem maior valente no mundo todo, e na hora
mais alta de sua maior valentia! À fé, que foi. Dei em lagoa, de
tão filho tranquilo...

E, de arrepelo, tudo demudou.Aqueles torceram os cavalos,
revertendo para se espraiarem por longe. Que era porque os de
João Goanhá tinham se avindo de contornar, no cabo do mato e
cometiam urrando o grosso do inimigo, por detrás. "Fó! Ficiu!"

que se diz. Que tínhamos de percalçar e de vencer. E aqueles
dianteiros hermógenes, que tinham vindo, campavam fuga, de
batida. E um, do cavalo preto, que bobeou, o Paspe, o Sesfrêdo e
o Suzarte foram nele, galopando num embolo! reformaram
feia nuvem. E o corpo dele, no retém, foi jogado morto, se
tangeu duro no ar, ressaltou: feito uma tábua... Assim um outro, se
desatinando João Vaqueiro, apeado, acertou nele diversas
vezes. Esse redurvou tatú e tal. Ele veio cair, perto exato de
mim, ferido muito grave, conforme gemia. "Desarma, mas
não acaba de matar, mano-velho..." a João Vaqueiro eu disse.
Aquele homem inimigo derrubado jeremiava, cris, querendo
enterrar as unhas na casca dum pau. O queixume que ele
exprimia: que tinham mesmo de perder, por terem vindo com os
cavalos deles tão sovados, e avante em empresa tão contrária... De
tudo se espiolhava, suave praguejante, aí com três costelas
derrotadas. Mas, água, ele pedia, cristão. Sede é a situação que é
uma so, mesmo, humana de todos. Rebaixei o corpo e dei nas
mãos dele a minha cabaça, quase cheia, e que era boa como um
cantil. Rústico, fechei os ollios, para não me abrandar com pena
das desgraças. Nem não escutei; que ouvido também se fecha.
No cavalo, eu estava levantado. Campo que me competia co-

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mandar, dito. Tudo em mim, minha coragem: minha pessoa, a
sombra de meu corpo no chão, meu vulto, O que eu pensei
forte, as mil vezes: que eu queria que se vencesse; e queria quieto:
feito uma árvore de toda altura!
Tiroteio fechava.
E o pessoal de Marcelino Pampa apareceu também,
surgindo, para maior mal dos hermógenes. Matamos neles. Pegamos
pelos lados. Confiro o que foi, O senhor só se ouvia era
carabina, repetindo. Fogo doTamanduá-tão: o senhor saiba. E, pá!,
ainda no pior do meio, eu adivinhei sabendo: que meu comando
tinha dado certo, e que dali a vau tudo estava já ganho, desfêcho
do fim desse final. Somente para colher o maduro, eu podia
sobreviver. Sei que risquei joguei de galope, em cima. Ao que
vim, aonde que tudo se estardalhava. Dei gritos. Arte que abria
no rifle; e matava. Donde era que estava o Hermógenes?A uivos,
atrás duns, rompemos em linha na vereda.Todo huriti levou bala.
A mais, o inimigo não tinha o recurso de se apostar por
tanto que perdiam os cavalos. Advindo que o baixadão dali flao
dava esconderijos de mato para tocaia à jagunça. E os poucos
foram os que pegar as distantes brenhas conseguiam, ou o cheio
do capinzal, aonde não íamos desentocar ninguém. Aqueles
deviam de estar de faca em fúria na mão, cobrejando; somente por
meio de cachorros-mestres, afirmados em caça de gente, era que
podiam ser pegos, o que não se tinha, Os mais, em desrédea,
meteram dôida fuga, enquanto mal pudessem, de debaixo de
balaços. Menos de poucos passaram. Ao ráscampo em viemos,
soprando a perseguição. Tinha um valo, varamos um mato de
lobeiras. Aí era para a banda das rocas novas. Uns morrinhos;
demos fogo. Uma tapera, outra tapera. Demos fogo. Poucos dos
poucos deles escaparam. Os que desladeavam, caíam, por nossos
esteiras. Era um relanço bem fatal...

Mas, um homem grande que como pulou abaixo do
cavalo grande, que baleado fora alcançou jeito de correr, e
encontrou uma cafúa, em frente. Entrou. De lá, decerto, ia mandar
bala. E então nós, a gente, todos, desistindo de mais longe
perseguir os sobrantes, cercamos por completo aquela choupana, de
regular distância, caçando jeito de entrincheiramento. Ia ser o
terrível. Que quem era, aquele homem? - "Ah, o Ricardão!"
- se gritava. E eu mesmo sabia. Determinei uma descarga. Cafúa
de burití, que estremeceu, como que se entortando de lugar,
arreganhada em partes. A gente atirando, atirando, com pouco
ela ia desaparecer, desmanchada. Mas eu dei ordem de paz.

"E adonde estará o Hermógenes, próprio?" eu indaguei.
Alguém soubesse. De se ter ouvido algum deles, ferido ou
agarrado preso: que o Hermógenes não fazia parte atual daquele bando
- mais acontecia de andar, com outros, muito adiantado dali,
vinte léguas, avanço no poente. Mas, então? E quase nossa gente
toda já estava vinda, para apreciarem o derradeiro aprumo do
Ricardão. Eu dei comando.

"Seô Ricardão, o senhor saia para fora!" - eu gritei, do
protegido donde estava.

Ele não deu resposta. Daí: "Pau de fogo, minha gente!"
eu procedi. Pipocaram. Durante o que, a cafua começava nas
últimas. Mas de dentro ninguém não ripostou; nem um tiro, nem.
Ele estivesse morto? Não tinha munição? Esperei o engolir em
seco três vezes. Daí, regritei: - "Seô Ricardão, o senhor se
saia!..." E ele, no esquisito, respondeu: - "Vou sair!" - com
um grito natural. Enérgico, para o meu povo, eu ordenei muita
paz. E o todo silencio. Espiei.

Lá acolá, o homem abriu devagar os cacos de porta. Saiu,
deu uns passos. Como vinha, alto, chapéu na cabeça, até meio
sorridente. Não se esbugalhava. Assim estivesse pensando que ia

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ter julgamento? Achei que. E ele não estava ferido. Caminhou
mais. Sendo que e, aí, foi minha idéia? ah, não; mas vi que
Diadorim, de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num
tirte-guarte: atirei, só um tiro. O Ricardão arriou os braços, deu
o meio do corpo, em bala varado. Como no cair, jogou uma sua
perna para lá e para lá. Como caíu, se deitou. Se deitou,
conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas nós estávamos
vendo que ele já morto já estava.

Acho deveras que todo o mundo respirou com suspiro. Digo
que esta minha mão direita, quase por si, era que tinha atirado.
Segundo sei, ela devolveu Adão à lama. Só estas minhas artes de
dizer as fantasias...
"Não enterrem este homem!" eu disse.

A justiça. Mas, mesmo, como é que se ia poder enterrar a
quantidade deles, mortos naquele dia?

Ao quando retornávamos para a Serra, eu ia olhava o céu,
vez em quando. Primeiro urubú que passou foi vindo dos
lados do Sungado-do-A - esse se serenou bem, que me parecia
uma amizade de aceno. Avoêje...

Mas o que ia suceder por diante!

Somenos sei, e conto mal certo, o que os três dias foram, no
seguinte. Se soalerte o senhor, que estamos descambando: o
senhor mesmo se prepare; que para fim terrível, terrivelmente.

Eu podia? Como é que vou saber se é com alegria ou
lágrimas que eu lá estou encaixado morando, no futuro? Homem anda
como anta: viver vida. Anta é o bicho mais boçal... E eu, soberbo
exato, de minha vitória! Conforme prazia o dito do cego
Borromeu, que não se entristecia: "Ah, eu nunca botei em antes o
nariz nestes campos..." Soscrêvo. Mas, ele, o que carecia de
querer saber, às vezes perguntava. Desses lugares, o divulgado
natural, pedia pergunta. Aí, glosava:

Macambira das estrelas,
quem te deu tantos espinhos?

Tibes! Eu, não. Ia demandar de outros o que eu mesmo não
soubesse, a ser: nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente?
Não me respondiam. Ninguém mesmo ninguém. A gente vive
não é caminhando de costas? Rezo. O que é, o que é: existível
como fundo d'água. Agora eu cismo que o cego Borromeu
também só do que já sabia era que indagava. Se não, se não, o senhor
verse, como bula santa; a cita não é revelável:?

Macambira das estrelas,
xique-xique resolveu:
Quixabeira, bem me queira,
quem te ama, Bem, sou eu...

Soletrei tudo. Assim ele cantava. Atras, o menino Guirigó, se
envelhecendo, sobre outro cavalo. E a mulher do Hermógenes,
montada também, magra malvaz, como podia estar indo em cima
duma nuvem. Ela desenrolava a cara, daquele xale verde, sem
vexame nenhum, e o que espiava da gente era por riba do
queixo. Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia? Ela
consia, ela bebia; em um tempo, prazida e moça, tinha se casado.
Só com desgosto dos prazos da vida foi que enxerguei aquela
mulher... Coisa dita não disse. A pois. O dia estava por dado. Sol
rachava os barros. A mulher, o menino e o cego - aqueles saíram,
tocaram. Estavam por ordem minha trazidos do brugo do
morro, mas sendo levados, sempre de guarda, para o arraial
do Paredão: estipados com conduta de dez homens.

Esta é que era a razão: que o Hermógenes, da banda do
poente, podia vir. Viesse feito! Como que estavam engrossados com

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quantidade de bandidos jagunços se soube e alguns
daqueles, escapes com vida do Tamandua-tão, já devia de ter ido a ele,
levasse aviso. Soltei a faro meus vigiadores - para ter as
distâncias vindo medidas. Ah, mas, demeio a parte-do-poente e
o Paredão, a passagem certa era um lugar muito plausível, no
morro, e que se chamava o Cererê-Velho. Aonde fomos.

Estugados, em boa marcha. Até que o mormaço bateu as asas.
Deu trovão, com ventos trapes. Dizendo todos, disso, que ia breve
chover para minha desvantagem. Em beira do mato, no
Cererê-Velho, se trabalhou com facão em ramagem e cipó, armando
tipóias e latadas. Como que melhorou a experiência do tempo,
adiando; esbarrou o vento rufado. Mas aquele trabalho nosso era
carecido, folgar não se pôde; nem para palavra minha com
Diadorim, que era de todo dia; conforme bem alembro. Noitou.
Conforme fui dormir, recansado de falfa. Dormir por pouco.
Conforme foi, é que o meu espírito não queria. Que, de repente,
acordei.

Madrugada de meia-noite. A lua já estava muito deduzida, o
morro e o mato misturados. Relanceei em volta.Todo o mundo
dormindo. Só o chochôrro mateiro, que sai de debaixo dos
silêncios, e um o-o-o de urutau, muito triste e muito alto. Depois,
ouvi o uivado inteiro dum cão. Os companheiros todos
dormindo, acordado só eu, alevantado de noite. Pesou por diante de
meu coração. Devi aquele cão mal-uivante? Idéia tristezinha, que
me veio. Por que era que só eu tinha acordado, desoras, tão antes
de todos?

Mas eu mesmo queria prosperar de olhos abertos, carecia.
O que produzia, era eu aguentar até passar o arrocho no
coração. Deus que me punia - que hora tem - ou o demo pegou a
regatear? E entendi que podia escolher de largar ido meu
sentimento: no rumo da tristeza ou da alegria longe, longe, até ao
fim, como o sertão é grande...

Arte que espiei arriba, levei os olhos. Aquelas estrelas sem
cair. As Três-Marias, o Carretão, o Cruzeiro, o Rabo-de-Tatú, o
Carreiro-de-São-Tiago. Aquilo me criou desejos. Eu tinha de
ficar acordado firme. Depois, daí, vi o escuro tapar, de nuvens. Eu
ia esperar, fazendo uma coisa ou outra, até o definitivo do
amanhecer, para o sol de todos. Ao menos achei de tirar, do tôo da
noite, esse de-fim, canto de cantiga:

Remanso de rio largo...
Deus ou o demo, no sertão...


Amanheceu com chuva. Mundo branco, rajava. Deu raio, deu
trovão, escorremos água; e tudo que se pensou ou se fez foi em
montes de lama. Diz o senhor, sim: assim é dia-de-véspera?
Receio meu era só pela fuga de cavalos. Escapulissem - eles
sabem como o Gerais é espaçoso; como no Gerais tem disso: que,
passando noite tão serena, desse de manhã o desabe de repente
daquela chuva... E igual, de feito, que antes do meio-dia estiou,
calibre que ventava. Sol saído; e é ligeiro, agente vendo, que essa
areia seca seus estados... Medi horas. Só o cruzo de meus
cavaleiros, amontados todos, enchendo e povoando o saco-de-campo,
como abelhas na umburana... Surjo que sabiam o que não
sabiam: eles estavam desinquietos em modos.

E os vigieiros chegando, conforme voltavam da espiação,
mesmo molhados ensopados. Um disse: "Por longe, não
estando viajando para cá... Só se com retardo.. ."Adonde estava o
Hermógenes? O céu botava mais nuvens. Daí, outro: - "Deles,
nada..." E eu expedi ainda outros: que saíssem e fossem e vis-

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sem, mais mestres, batessem aquelas beiradas de maior mundo.

Que modo que senseei, do vazio do tempo em redor e que eu
entredisse: "O Sertão vem?" Vinha.Trinquei os dentes. Mordi
mão de sina. Porque era dia de antevéspera: mire e Veja. Mas
isso, tão em-pé, tão perto, ainda nuveava, nos ocultos do futuro.
Quem sabe o que essas pedras em redor estão aquecendo, e que
em uma hora vão transformar, de dentro da dureza delas, como
pássaro nascido? Só vejo segredos. Mas que o inimigo já estava
aproximado, eu pressenti: se sabe, pela aperreação do corpo
como que se querendo ter mais olhos; e até no que-é do arraigado
do peito, nas cavas, nas tripas. O Hermógenes estava para
arremeter, de rancor, se mexendo nos escuros. A guerra estava
aprazada em batalha, ali no CererêVelho? Mas meus homens, os
troados hrabos jagunços, por uma palavra minha desatribulados,
agora ao ar que esperavam por mim.

E aí foi quando veio o Suzarte, que desde depois do
Tamanduá-tão, tinha saído enviado até mais longe, para espreitar e
espiar como cachorro correndo os ventos. Chegou, parecia galopando
num cavalo já morto. Esbarrou, O cavalo halo, como
desmanchado - que arqueava triste as pernas dianteiras - descansou
tudo no chão, que da boca e das ventas ajorrava sangue:
rebentado dos estômagos e dos peitos. Mas o Suzarte, que antes do
ranger sela já tinha escapado os pés das estribeiras e pulado solerte
no chão, tomou um átimo, e relatou: - "Eles estão."E - para o
resto - ele apontou com o dedo.

O Hermógenes, mór maldito! Ele vinha errado de mim, os
hermógenes, eles. Davam arte de contornar da banda do norte,
às tantas, O Suzarte tinha avistado, no dia antes, o movimento
dos vigias costaneiros, e definido, de remoto, o corpo do bando:
poeira duns oitenta... Era o Hermógenes. Contornava, feito
gavião, vônje, como comigo não tinha nenhuma lei de
combinação; e esse era o direito dele, de ás-avessas de guerra!A um mal
o mal; mas o perigo de astúcia aquela hora mudava maior de
lugar. Porque eles podiam vir e sobrevir. Ou menos retos; ou,
mesmo - enquanto a gente parava ali, oferecidos, em cama-de-caça
- também eles dispunham de revirar, de supeto, no Paredão,
por outra banda, e arrebatar a Mulher, contra meus só
dez homens, fazer o que quisessem, e para depois emendarem caminho
para o Cererê-Velho, em nós, com toda retaguarda... Revesti
isso, num relance. Arvorei a minha chefia. Meus jagunços
esperavam a certa decisão: aí eles nem me olhavam. - "Maximé..."
- eu disse. Resumi. Apre, o que eu ia dizendo, no meio do som de
minha voz, era o que o umbigo de minha idéia, aos ligeiros
pouquinhos, manso me ensinava. E era o traçado.

Tanto que dei ordem. Repartição de gente - se carecia -:
determinei assim. Metade - metade. Os com João Goanhá e
João Concliz ficavam, altos, no Cereré Velho, cumprindo espera
afoita. E chamei os outros, e Marcelino Pampa de soto-comando:
rompemos para o Paredão. Tudo se quatreou num pronto, no
volver-voltear dos cavalos. Já um giro dava nos campos, já a
gente se esquipava. E, Diadorim, que vinha atrás de mim uns metros,
quando virei o rosto vi meu sorriso nos lábios dele. Íamos
redeando resolutamente, dando as costas para o sol-entrando.
Dividi idéia da guerra que ia ser, no brutalhal. Vindo a cavalo
assim, era que eu pensava melhor, nas menos margens.

Do Cererê-Velho até no Paredão, seis léguas; e eu tinha de
deixar ao menos um homem em cada meia-légua, em estação,
para em caso serem capazes de traspassar recado, de tudo por
tudo, com a rapidez da guerra. Eu fiz, só ia sendo. Todo o resto,
que viesse, todo o igual. E meus homens cumpriam, capitalmente.
Alegria do jagunço é o movimento galopado. Alegria! Eu disse?

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Ah, não, eu não. O senhor de repente rebata essa palavra,
devolvida, de volta para os portos da minha boca...

Que foi, o dito?

Novas novidades.


Conforme vínhamos, a sério tocar, e já a bem uma légua do
Paredão se estava, quando apareceu oTrigoso. Esse retornava de
traquejar as beiras da banda do sul, e estivesse jejuno virgem de toda
nossa ciência derradeira. Do Hermógenes nem nada sabia
- pois, justo. Mas queria por força relatar. Disse coisas sem
proveito. Disse. Carecia de impor no meu espírito o rebuliço, de
esfriar em mim o sangue nas veias?!

- "... No Saz - uma veredinha, três léguas abaixo -
Chefe... Vaqueiro que achei, que me disse, remendando mensagem:
que é um homem, chamado Abrão, com uma moça bem
arrumada... Que vem vindo, beiradeando o rio, e a tralha deles
trazem em dois burros cargueiros, e condução de dois camaradas..."

Ele falou. E foi a coisa mais de repente, na minha vida.
Otacília! Como tudo neste mundo podia ser, e como a minha mente
tinha logo puxado de arranco, das palavras doTrigoso, todo
verdadeiro significado! Inteirei, comigo: Seô Habão? Vigia se ele
não traz consigo uma donzela formosíssima, ou se traz em-apenas
desilusão... E oTrigoso disse, estava dizendo completo. Ela era!
Otacília. Otacília. Eu tinha de escutar, outra vez, oTrigoso da verdade
das coisas menos sabia. Imaginar, eu imaginava. Otacília - a
vinda dela, sertão a dentro, por me encontrar e me rever, por
minha causa... Mas achava a guerraria de todos os jagunços
deste mundo, raivando nos Campos-Gerais.Terríveis desordens em
volta dela, longe saída de casa de seu pai, sem garantias
nenhumas... Que proteção ia poder dar a ela esse seô Habão, com dois
pobres camaradas perrengues, tudo tão malaventurado, como se
estavam? Enguli amargos. Me rodeavam meus homens, o
silêncio deles me entendia, como bem cientes. Reperguntei: quem
sabe, se assim paravam na beira do rio, se então não deviam de
ter retrocedido caminho, se encaminhando também para o
Paredão?

"Ah, que não, Chefe.Vaqueiro me disse: de la para la, iam
indo... Fugindo do perigo para o perigoso... E, no Paredão,
mesmo dito, já não tem mais pessoas de séde. As famílias todas, e os
moradores, camparam no pé, desgarrados, assim que o medo
chegou lá... O medo é demais de grande."

Estremeci, mor. Eram as horas. Só de ouvirem falar no vago
do Paredão, meu povo afastava os cavalos, já querendo regalopar.
Entendi e mais entendi, rodei mão na cara. Incerteza de chefe,
não tem poder de ser - eu soubesse bem. Mas, era eu ali, em
sobregovêrno, meus homens me esperando, e lá Otacilia
carecendo do meu amparo. E a guerra que podia dar de recomeçar,
na boca dum momento, ou antes. Que de mim? Que diversas
honras diferentes homem tem, umas as outras contrárias. Na
estreitura, sem tempo meu, eu podia desdeixar meus homens? E
tinha de ir. Não por bons-e-belos, ah. Mas minha Otacília vinha,
em hora tão despertencida, de todas a vez pior. Eu podia
requerer amor: Me dê primavera? Vi tudo indeciso de mim, estarrecido
- as pedras pretas no meio do capim, o campo esticado. Só fiz
que no forte do sentir eu pudesse era este ameaço de reza: - Me
dê o meu, só, e que é o que quero e quero!... - ao Demo ou a Deus...
A lá eu ia. Otacília não era minha nôiva, que eu tinha de prezar
como vinda minha mulher? Meio do mundo.

Vai, e eu disse: lá ia, no vou e volto; e já mesmo. Se diz -
era um pulo. Para revir e dar guerra, tempo havia de ter. Os
outros fossem, para o Paredão, tocassem. Já estava escurecendo.

Só mais que, nesse propósito, muitos acharam de me
acompanhar: alegando que, à tal coisa, como chefe, eu carecia de não

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querer sozinho ir. Abanei cabeça. Em assim, aceitei dois: Alaripe
e o Quipes - companhia que me bastava. Eu não ia desarrumar
negócio, afracar o forte de minha gente, com mais homens
arrecadados. E sendo o de ser. Arremessei ordens, joguei meu cavalo.
Porém, porém: e esbarrei, em saida. Esbarrei, para repontar
Diadorim, que vinha vindo. A lá, que é?! eu disse, asp'ro.
Dia dorim quisesse me acompanhar, eu duvidava, de que motivos.
Não me respondeu. Li nele a forma duma ira, como apertou os
olhos em direitura do campo. Tu não vai para o Paredão, tu teme?
eu ainda buli. Diadorim me empaliava, a certas, O ódio
luzente, nele, era por conta de Otacília... Ele me ouviu e não
disse, ladeando o cavalo. Mirou meio o chão; vergonha
que envermelhou. Agora ele me servia dáv'diva d'amizade e eu
repelia, repelia. Mas, fora de minha razão, eu precisei com
urgência de ser ruim, mais duro ainda, ingrato de dureza. Invocava
minha teima, a balda de Diadorim ser assim. Tu volta, mano. Eu
sou o Chefe! - pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que
tinha a inocência enorme, respondeu assaz:

- "Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre..."

Ainda vi como ele - com a mão, que era tão suave em paz e
tão firme em guerra - amimava o arçao do selim. Repostei um
feio xingo. Bramei isso, porque o azo de Diadorim me
transtornava. Dei de rédea. Com um raspo de galope, peguei junto com
Alaripe e o Quipes, que mais adiantados me aguardavam. Nemn
espiei para trás - não ver que Diadorim obedecia, mas como
devia de parar estacado lá, té que o meu vulto desaparecesse.
Desjustiça. Mas como a obrigação do dia me arrolava. E em tudo
não pensei, tocando para ir fazer-e-acontecer, aos baqucs do
coração. O senhor diria, dirá: como naquela hora Diadorim e eu
despartavamos um do outro feito, numa água só, uns
torrãozinho de sal e um torrãozinho de açúcar... Fui, com desejos
repartidos.

Tropear cavalgada - nós três: o Quipes, Alaripe e eu -
meio a esmo, isso é que se tinha. Refiz o frio da idéia. Mas, nos
primeiros ares, nem consegui. Eu despropositava. Dia dôrim é
dôido... - eu disse. Todo me surripiei, instanteante: tanto
porque Diadorim" era nome só de segredo, nosso, que nunca
nenhum outro tinha ouvido. Alaripe só fez que susteve cara de não
entender, e disse somente: Hem? Mas, aí, eu desmanchei o
encoberto, dado dando o do passado, me desimportava;
consoante expliquei: - "Diadorim" é o Reinaldo... Alaripe ficou em
silêncio, para melhor me entender. Mas o Quipes se riu: -
"Dindurinh'... Boa apelidação... Falava feito fosse o nome de um
pássaro. Me franzi. - O Reinaldo é valente como mais valente,
sertanejo supro. E danado jagunço... Falei mais alto. - Danado...
repeti. Alaripe, por respeito, confirmou: - Ah, danado é... Por
que era que não dava outro jeito, dele comigo conversar, que
não fosse com essas reverências?

E a noite já tinha completado escuro, sem lua ainda aparecida,
eu não podia avistar a cara dele como formava opinião, as
palavras que eu falei ficaram sendo sem dono. - Otacília é minha
noiva, Alaripe. Se alembra dela? Antes de outros silêncios, ele
me respondeu: - Alembro... Lá é um fazendão bom... Até me
desgostava o modo zeloso do Alaripe sempre guiar o caminho, cuidados
com que separava os galhos e ramagens de árvore, para o meu
cômodo de seguir. E a gente estava quase a passo em passo.
Donde de conversar desisti muito. A que a qual a escuridão tapava
toda boca.

Aonde para que eu ia? - e carecia de ir, conforme meu
dever. Mas minha Otacília não devia de ter escolhidu justa essa
ocasião, tão destacada de propósitos, para vir aventurar entre

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homens de morte essa delicadeza, sem proteção nenhuma, filha-
de-família... Alaripe e o Quipes não descuidavam de tomar
tento em tudo, nos lados, no arredor figurável que era tempo de
guerra, em brenhas de noite, e algum inimigo menos-se-espera
podia surgir para o mal. Aonde se ia? Rumo dado, reto em cima
da Vereda do Saz, ou seguir seguido, rio Paracatú arriba? Tudo
como que tudo se me dava à raiva - tanto por causa desse
vaqueiro, trazedor de relatos. Nem eu soubesse certo se era o seo
Habão, se era Otacilia...

A quase metade do céu tinha suas estrelas, descobertas entre
os enuveados para chuva. O setestrêlo, no poente, a uma braça:
devia de regular umas nove horas. Nesse ponto, deu de se ouvir
um rumor grande, para dentro do cerrado, removendo nas
galharias. Só fizemos que esbarramos, rifles em mãos. - É anta...
- o Quipes disse, conhecedor alertamente. Alguma onça, a
espera de lua. Otacília a tudo estava exposta, por culpa de maus
conselhos. O seô Habão entregou a ela a pedra de ametista...
eu falei. Alto falei; e não queria que o Alaripe ressoasse: ...
entregou a ela a pedra..." Isto é: a pedra era de topázio! - só no
bocal da idéia de contar é que erro e troco o confuso assim.
Diadorim sofria mais de tudo, quem sabe, por conta da dádiva
daquela pedra. Otacília não devia de ter vindo. Eu.... Essas
andanças! Agora, aonde era que se ia encontrar viajor, ou aquele
herda-mãe de vaqueiro, para obrigar a definir notícia? Mas o
vaqueiro aquele não teria o certo pouso. Só atrás de seu gado
urucuiano. Todo o mundo se fugia, do Paredão e de toda parte, suas
trouxas nas costas. A quando se divisou um foguinho adiante no
campo, seja que pensei: gente arranchada no ar, em caminho para
lugar nenhum... Não era. Somente foguinhozinho avoável assim
azulmente, que em leve vento se espalhava: fogo-fá, jan-dla-foz.
O que não se achava, o que eu pensava. Eu era diferente de
todos? Era. Susto disso - como me divulguei. Alaripe, o Quipes,
mesmo o calado deles, sem visagens, devia de ser diverso do
meu, com menos pensamentos. Era? Sei que eles deviam de
sentir por outra forma o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir
desparêlhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos campais.
Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo -
misturado. Como quando viajando assim, no escuro da noite, a idéia
da gente cheia de atormentamentos, e de repente o cavalo bufa,
batendo o vulto da cabeça branquenta, e chamando atenção para
o cheiro do suor dele, que vale por uma persistência, com
paciência de responsabilidade... Aquela noite estava podendo mais
do que a minha decisão? Soubesse não sei. Noite lembrada em
mim, de sereno a orvalho.

Revi madrugar, quando esbarramos, na beira duma vereda
pagã, por repouso. Aurora: é o sol assurgente - e os passarinhos
arrozeiros. Cá o céu tomou as tintas. Aí retoquei muita
lembrança madraça, como se estivesse no antigamente. Fez falta foi um
café; mas comemos farofa, bebemos gole d'água. O Quipes
apanhou araticúm maduro, ele vivia cuidando de achar as frutas em
árvores e môitas. EAlaripe ajuntou gravetos e acendeu uns fogo;
só por calor e costume, só, que não se tinha o que quentar nem
assar. Medito como aos poucos e poucos um passarinho maior ia
cantando esperto e chamando outros e outros, para a lida deles,
que se semêlha trabalho. Me passavam inveja, de como devia de
ser o ninho que fizessem - tão reduzido em artinha, mas modo
mandado cabido, com o aos-fins-e-fatos. E o que pensei: que
aquela água de vereda sempre tinha permanecido ali, permeio às
touças de sassafrás e os buritís dos ventos e eu, em esse dia, só
em esse dia, justo, tinha carecido de vir lá, para avistar com eles;
por quê que era? Bobéia... Eu estava cansado, com uma dôr na
ilharga.

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Por desenfastiar, conversei. A veja, Alaripe: que nome será
que esta vereda havia de ter, o que merecesse denominado? Alaripe,
agachado ali mesmo, se virou para mim, esbarrando de assoprar o
fogo: - Figuro que ela algum nome já tem, só que não se saiba.A modo
que, pegando algum morador depor perto, se indaga... ele melhor
me respondeu. Mas eu contradisse que não se precisava. Forrei
chão, para um cochilo. De qualquer jeito, a paragem ali tinha de
ter demora, carecia de se dar um lombo aos cavalos. Para o que o
dia ia ser, eles requeriam um descanso, e pastar; cavalo são
desdenha de dormir, o senhor sabe: bicho que só come, come, come.
O sono me conseguiu. Ferrei em mais de umas duas horas.
Por que tudo refiro ao senhor, de tantas passagens? Ah, pelo
que quando acordei, retenha o seguinte. Acordei sentido e mal à
parte. Amargava. Devia de ir ter cólicas. As ânsias essas, mesmo
com outro cansaço. Feito sem repouso nenhum, daquelas horas.
Assim: eu sem segurança nenhuma, só as dúvidas, e nem soubesse
o que tinha de fazer. Acordei foi com o vozeio de Alaripe e o
Quipes, que já esperavam por mim, e estavam naquela pauteação
trivial deleS, coisas sem nenhum fundamento. Depois, Alaripe
tirou da capanga um vidro que tinha cachaça dentro, me
ofereceu o primeiro gole. Era um vidro meão, claro, nato remédio de
frasco. Com alívio, tomei. Mas era um alívio mesmo assim
triste, e eu descri; eu quis discorrer qualquer noção. O que é que
tu acha do que acha, Alaripe? Ele não me conheceu: principiou a
definir do Paredão, do Cererê-Velho, do Hermógenes. Atalhei:
- que não isso; que da vida, vagada em si, no resumo? A pois,
isto... Homem, sei? Como que já vivi tanto, grossamente, que degastei a
capacidade de querer me entender em coisa nenhuma... Ele disse, disse
bem. Mas eu entiquei: Não podendo entender a razão da vida, é só
assim que se pode ser vero bom jagunço... Alaripe esbarrou, como ia
quebrar em duas uma palma seca de buritirana. Me olhou, me
falou: Se só de entender, cá comigo, eu entendo. Entendo as coisas e as
pessoas... Respondeu, disse bem. De mim, então, entendia?
Desjuízo, que me veio. Eu ia formar, em roda, ali mesmo, com o
Alaripe e o Quipes, relatar a eles dois todo tintim de minha vida,
cada desarte de pensamento e sentimento meu, cada caso mais
ignorável: ventos e tardes. Eu narrava tudo, eles tinham de
prestar atenção em me ouvir. Daí, ah, de rifle na mão, eu mandava,
eu impunha: eles tinham de baixar meu julgamento... Fosse bom
fosse ruim, meu julgamento era. Assim. Desde depois, eu me
estava: rogava para a minha vida um remir - da outra banda de
um outro sossego...

Pensei; quase disse. Aquilo durou o de um pingo no ar. Eu
havia de? Ah, não, meu senhor. Deu um momento, me tirou
disso; e tanto bastou. Doidice, tontura de espírito... - eu
repensei, reposto em pé. Xô! O ypsilone dum jegue eu era - zote, do
que arrenego, cabeça orelhalmente? Ali eu era o Chefe, estava
para reger e sentenciar: eu era quem passava julgamentos!
Então, falei:

- "Vão sozinhos, vocês dois, beira-rio, procurando. Eu não posso
ir mais, por meu dever. Retorno, já, para o Paredão..."
Alaripe ainda cruzcruzou: - "A gente - pode ser que lá a gente faz
falta...

Mas eu fechei. Sendo o que eu mesmo não podia, ao menos
esses eu mandava. Fossem, já fossem. Eles tinham de encontrar a
minha Otacília, a ela render boa proteção. Amontamos, os três.
Ainda esperei a saída deles.

Até me lembro de que, escabreado, na hora de saudar e
tocar, Alaripe ainda apontou para a linha de mato, vereda-acima,
achando: Como que avisto, por detrás d'árvores, passar a marcha
dum cavaleiro... Não era. Não era, porque o Quipes não viu,
conforme confirmou que não viu; e o Quipes tinha olho de gavião

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grande. Aí, pensei: será, o Alaripe estava sendo um homem se
envelhecendo? Amigo meu e meu estranho. Até me lembro,
pensei assim.

Retornei, enquanto eles dois iam para a outra banda. Agora
eu mudava, para motivos: chega estremeci de influência, aos
aosares de guerra. Deixei de parte a cisma, do mesmo jeito com
o que, ainda fazia pouquinho, eu tinha afrouxado ânimo; ah, a
gente larga urgente o real desses estados. Agora minha alegria era
mais minha, por outro destino. Otacília ia ter boa guarda. E
então, uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim com
certo susto, na liberdade. Constante o que relembrei: Diadorim,
no Cererê-Velho, no meio da chuva ele igual como sempre,
como antes, no seco do inverno-de-frio. A chuva água se lambia
a brilhos, tão tanto riachos abaixo, escorrendo no gibão de
couro. Só esses pressentimentos, sozinho eu senti, O sertão se
abalava?

Desfechei. Naquela corrida, meu cavalo teve as dez pernas.
E cheguei no Paredão, na derradeira boa-luz da tarde.

Diadorim, me esperava, demais. Ainda vi a alegria no rosto
dele.

O Paredão. O senhor ponha. Como esvoaça mosca gorda, de
donde se matou boi. Tudo estava perfeito tranquilo. Diadorim
- com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme
do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura;
e em peito a torta-cruz das cartucheiras. Os mais, zelando nas
armas, corriam os dedos, apalpavam por afago. Conversei com
todos. Aqui a guerra que queriam guerra. Assim os meus
catrumanos: quais as caras deles iam ficando de demônios; mais
feio no demônio é o nariz e os beiços...

Conferi as sentinelas. Fui ver onde tinham botado a Mulher
- ela fechada num quarto, no sobrado. Ficasse remetida lá, sobpé
de guarda. O sobrado marcava o meio quase da rua. Mas, para a
gente em armas, de que é que valia aquele arraial inteiro, tão
vazio? Determinei: deixar lá mesmo só uns poucos, como vigias.
Tanto o resto todo, para um ponto viemos, circunstância de umas
duzentas braças, aonde um lugar mais alto desenhado, que seria
para porta dos caminhos e apropriado para ali se resistir.
Formamos bons preparos. Minha mãe vivesse e viesse, ela mesma por
nenhum descuido mero não havia de poder me reprovar.

Assim apreciei a gente as mansas e as hravas a minha
jagunçada. Agora eles estavam arrumando o mundo de outra
maneira. Tudo se media munição, e era fuzil e rifle se
experimentando. A guerra era de todos. A juízo, eu não devia de
mestrear demais, tudo prescrevendo: porque eles também tinham
melindre para se desgostar ou ofender, como jagunço sabe honra
de profissão. Dos modos deles, próprios, era que eu podia me
saber, certificado, ver a preço se eu estava para ser e sendo exato
chefe. Com modos, eu falasse: "Oih', vigia, fulano: aí está
bom; mas lá acolá não é melhor?" e receava que ele
respondesse, me explicando por que não era, não. Eu questionava,
comigo, que eles deviam de lavorar maior raiva. Raiva tampa o
espaço do medo, assim como do medo a raiva vem. Reparei isto:
- como nenhum não citava o nome do Hermógenes. Aí estava
direito que no imigo, em véspera, não se prosêia. Mal que um
disse: "Ele não é laço: - é argola..." Ou outro, que: "Ele
adôida..." Mas os mais não glosavam. Com o que prazi. Gastura
que eu tinha era só de que, a ventos vai, um fosse acrescentar:

"... Ele é pactário..."

Ah. E que fosse? Menção não era de se afirmar, regalia
nenhuma. Pois o demo não é de todos?! Alt'arte abri o meu maior
sentir: que eu havia de ter a vitória... Dali, o Hermógenes não
saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio deles

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Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um ódio por
causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante para tras o
revento todo. A modo que o resumo da minha vida, em desde
menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes naquele
dia, naquele lugar. Pelejei para recordar as feições dele, e o que
figurei como visão foi a de um homem sem cara. Preto,
possuindo a cara nenhuma, feito se eu mesmo antes tivesse esbagaçado
aquele oco, a poder de balas... E tudo me deu um enjôo. Tinha
medo não. Tinha era cansaço de esperança.

Também eu queria que tudo tivesse logo um razoável fim,
em tanto para eu então poder largar ajagunçagem. Minha
Otacilia, horas dessas, graças a Deus havia de parar longe dali,
resguardada protegida. O tudo conseguisse fim, eu batia para lá,
topavà com ela, conduzia. Aí eu aí desprezava o oficio de
jagunço, impostura de chefe. Sei quem é chefe? Só o gatilho de arma-
de-fogo e os ponteiros do relógio. Sensato somente eu saísse do
meio do sertão, ia morar residido, em fazenda perto de cidade.
O que eu pensei: ... rio Urucúia é o meu rio - sempre
querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele vira e
recai claro no São Francisco... Agora, Alaripe e o Quipes,
regulando, deviam de já ter achado a minha Otacília, demais, pelo
Paracatu-acima, tão longe; e até semelhasse invenção, isto que,
na madrugada, eu mesmo também tinha estado em caminho de
lá, em tão precipitados surtos. Artezinha. Sei o grande sertão?
Sertão: quem sabe dele é urubú, gavião, gaivota, esses pássaros:
eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé,
com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas...

Nessas e noutras muito extremadas coisas eu tornava a
pensar, o espírito em meia-mão, por diante permeio os outros meus
entretimentos de-verdade. Agora tudo estava pronto, das
obrigações - afora a de esperar, que é a que regasta e se recoze.
A noite foi se esquentando assaz. Ali também, por avisante,
se acendia fogueira. Mas o campo esparramava muito vagalume.
Os homens formando grupos, acocorados assim, eles
conversavam. O quase que o legal, agora, era de se caçoarem uns dos
outros, desafiando quem fosse ser medroso ou duvidado na
coragem. Razão disso meava uma confiança, a mais, eu escutando
satisfeito aquelas bobices com que eles porfiavam: - "Caranguejinho,
sem cachaça tu vai?" - " Eh, não: tu! Vai saudar o gado!" Pelos
risos e debiques que divertissem, de todos eu percebia a forte
certeza. Cada cada-um, dali a pouco, ia ser perigoso, de nele se
encostar, feito um sapo que espirra. - "Que te falo: amarra o burro,
que a carga é sua..." - "Minha, a carga está salva... Mal a bem, oxente,
quero é ver o que vou ler..." Assim se zé-zombavam. Aos ditos
ditados, feito estivessem jogando um truque, sem baralhos nenhuns.
Por que é que aquilo me comprazia? E Diadorim parava calado
próximo de mim, e eu concebia o verter da presença dele, quando
os nossos dois pensamentos se encontravam. Que nem um
amor no ao-escuro, um carinho que se ameaçava - "... Tiroteio
fêrvo, se será! Aí é que vou ver um mais menino que o J'bibe..." - "Se tu
não sabe, você vai saber: que eu já fiz minha fama... ""Jiribibe? Pois,
aquele, eh: ele pede esmola ao rei..." E reproduziam muitas essas
gaitagens. Agora estavam acostumados com a hora do lugar, e
para qualquer repente refrescados. Igual a um gado que vem
num pasto novo, e anda e fareja, reconhecendo tudo, mas depois
tudo aceita e então começa a resfeição. Agora, agora, sim, meus
homens estavam em ponto de fogo. Melhor mesmo não irem
dormir, antes de forte sono, por se evitar espertina de criatura
sozinha, em espera de possível má morte. Tive pena deles?
Disser isto, o senhor podia se rir de mim, declarável. Ninguém
nunca foi jagunço obrigado. Sertanejos, mire veja: o sertão é uma
espera enorme.

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Vai, vai, uma hora eu perguntei a Diadorim: - "A Mulher
dissesse alguma coisa?" Isto eu não sabia por que era que estava
indagando. Aí eu não queria ciência de se a Mulher tivesse falado
alguma coisa trivial. Eu quisesse achar de saber era se ela
alguma doidice de profecias havia de ter pronunciado? Diadorim
disse: "Não."Mas ele devia de estar curtindo outro instar de
outro assunto. Sustido eu sabia: o que era dele sempre pensar o
imaginável de Otacília... Depois de remedir o tamanho de um
silêncio, ele mesmo veio: E o Alaripe, mais o Quipes; aonde foi
que ficaram? Esse ciúme de Diadorim, não sei porque, daquela
vez não me deu prazer de vantagem. E eu desdenhei, na meia-
resposta: Por aí... que eu disse. Aí era o cão da noite, que
meu beiço indicava. Vagalumes, mais de milhar. Mas o céu estava
encoberto, ensombrado. Sofismei. Meio arrependido do dito,
puxei outra conversa com Diadorim; e ele me contrariou com
derresposta, com o pique de muita solércia. Me lembro de tudo.
O que me deu raiva. Mas, aos poucos, essa raiva minou num
gosto concedido. Deixei em mim. Digo ao senhor: se deixei,
sem pêjo nenhum, era por causa da hora a menos sobra de
tempo, sem possibilidades, a espera de guerra.Ao que, alforriado
me achei. Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu
tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro, assim, eu tinha
aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava,
referido, na fantasia da idéia. Diadorim - mesmo o bravo
guerreiro - ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era
beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e
mansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza o que é? E o
senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para
outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de
gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer
palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu
me encorajava: no dizer paixão e no fazer pegava, diminuia:
ela no meio de meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como
iam poder se gostar, mesmo em singela conversação por
detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta,
um o outro. E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu
descuidei, e falei: ...Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse
espiar a cor de seus olhos... -; o disse, vagável num esquecimento,
assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso.
Diadorim se pôs pra trás, só assustado. - O senhor não fala sério!
- ele rompeu e disse, se desprazendo. "O senhor" que ele
disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com
meu patetear. - Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... eu
disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombarias, recompondo
o significado. Aí, e levantei, convidei para se andar. Eu
queria airar um tanto. Diadorim me acompanhou.

Era uma noite de toda fundura. Estava dando um vento,
esquisito para aquele tempo, por ser um vento em-hora do lado
suão, em-hora do norte, conforme se riscando um fósforo, ou
jogando punhado de areia fina clara para cima, se conhecia.
Andamos. Mas, agora, eu já tinha demudado o meu sentir, que era
por Diadorim uma amizade somente, rei-real, exata de forte,
mesmo mais do que amizade. Essa simpatia que em mim, me
aumentava. De tanto, que eu podia honestamente dizer a ele o
meu bem-querer, constância da minha estimação.

Não disse. Por quê que não disse, foi porque o perigo da
ocasião me invocou: achei que podia ser agouro, em véspera de
guerra, a conversa afeiçoada assim. Diadorim em que era que
ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube, não sei, a
minha morte esta pergunta faço... Como certo é que só do
sem-mais de coisas falamos, sem nenhuma expedição. Até que o
vento revirou: mudando inteiro, que vinha era só do norte, confor-

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me neste lado da minha cara ele só se fez quente, refrescando. O
sertão ventou rouco. Com formas que logo se ajuizou de poder
supravir chuva forte, e carecido foi que determinamos de retornar
com tudo, para se ir dormir mesmo nas casas do arraial, só uns
poucos homens de vigia se deixando naquele alto, a padrasto. E
isso era o exato, mas me aborreceu demais e me cansou, mais do
que as outras peripécias. Consabido que na noite antes eu tinha
viajado em todo regime das estrelas, e mais ainda no dia, afora as
duas ou três horinhas de sono, de madrugada. Foi eu ver um
catre, e me trespassei. Ainda disse uma recomendação: que,
tirante caso resoluto, em hora qualquer não me chamassem.
Dormi mortalmente. Essa, foi noite que eu dormi: sendo o chefe
Urutu-Branco, mesmo dizer o jagunço Riobaldo...

Acordei último. Alteado se podia nadar no sol. Aí, quase que
não se passavam mais os bandos de pássaros. Mesmo perfiz: que o
dia ia dever ser bonito, firme. O calor fortalecia, e logo ia se
secando o chão, umas poças de lama e as árvores com gotêjos
porque de noite tinha caído uma bruega. Bebi café, comi um
naco de carne gorda, repassada na farinha, mastiguei um taco de
rapadura. Enquanto vi, meu pessoal discorria na mesma disposição,
influentes como antes. Tornamos para o ponto demonstrado
de espera, cada um caçando seu atrincheirado. Chegou o
Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: nenhumas novidades.
Para o Cererê-Velho recambiei aviso: nenhumas novidades,
minhas também. O que positivo era, e do que os meus
vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, mesmo, por
mais, que eu quisesse ficar prevenido, o dia era de paz. Todos
percebessem. Era uma paz gritável. Será que não vão vir?

algum maldisse, no rifle se escorando. Vez vendo, duvidei.
Chegou a me dar desânimo, fato que não viessem e a gente ter de
adiar fim, recomeço, rodando por esse mundo a fora em vã
caçada. - Ah, não! - retemperei. Homem nenhum podia deixar a
mulher sojugada presa em mão de outros, e demorar desistido
de ataque. Vinha que vinha, mais hora menos hora. Todos
esperassem. E eu mesmo de todas minhas armas não larguei, quando
desci para momento de lavar o corpo no rio. Que tão perto era.
E, de lá, todo movimento dos meus eu avistava.

Duvido? Desavistei foi na mente, não foi dos olhos. Como
que o avio de descangar as armas de sobre mim e as cartucheiras,
e o vagar de tirar a roupa e remolhar os pulsos, e fazer menção
para entrar na água com conforto essas ações tiravam conta
do meu estar, como um alívio de sossego. Eu tinha a certeza de
paz, por horas. E o demo me disse? Disse; mas foi assim: tiros!

Choque que levei foi feito um trovão. Começou a se bradar.
Os gritos, tiros. Que foi, mesmo, que eu primeiro ouvi?
Primeiro, dum pulo bruto, eu já estava lá, pegando minhas roupas,
armado prestes. E vi o mundo fantasmo. A minha gente -
bramando e avisando, e descarregando: e também se desabalando
de lá, xamenxame de abêlhas bravas. Mas, por que? - eu
desentendi; e tornei a entender, depressa demais: que o inimigo dera
de se estourar, todo de-repentemente, da banda outra, lugar
donde não devia de vir, nem ali possível de ser esperado. Eles
eram quantidade. Crú e crú que avançavam, avançando, como
que já iam tomar o Paredão, as casas na ponta do arraial. Estarreci.
Que, na prema da minha ausência, o muito mundo se acabava.
Tudo diferente da cartada. E eu sei o que é estupor: que eu tinha
pegado calça e camisa em mão, e esbarrei, num demorado sem
termo, no meio de me revestir, e eu num latêjo frouxo
pensando: - Não chego em tempo... Não adianta... Não chego em tempo
nenhum...

Sei lá o tanto que isso durou? E eu via o meu pessoal avançar
também, com brabura e diligência, na outra ponta, a modo de

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impedir que o arraial fosse tomado... Porque o Paredão era uma
rua só; e aquilo ficou de enfiada um cano de balas. Mas, no
mesmo ar de ar em que eu via aquilo, lavorei pensando: que eu
era tonto, e burro, e idiota as mil vezes, porque agora estava
perdida irremediavelmente minha ocasião, e a guerra descambava,
fora do meu poder... E eu acabei de me enroupar, mal mal, e
escutava essas vozes: - Tu não vai lá, tu é dôido? Não adianta... Não
vai, e deixa que eles mesmos uns e outros resolvam, porque agora eles
começaram tudo errado e diferente, sem perfrição nenhuma, e tu não tem
mais nada com isso, por causa que eles estragaram a guerra... Assim
ouvi, sussurro muito suave, vozinha mentindo de muito amiga
minha. O meu medo? Não. Ah, não. Mas meus pêlos crescendo
em todo o corpo. Mas essa horrorizância. Daquela doçura
nojenta de voz. E senti meu corpo muito grande. Me xinguei. Um
sujeito vinha correndo, nele eu quase atirei. Desertor? Ah, não,
esse o Sidurino era, correndo por um cavalo. Ah e bem fosse!
- ia voltear para o Cererê-Velho, chamar, trazer reforço, para
darem retaguarda. E eu casei com meu rifle, vim, vim, vim.
Desconheci temor nenhum. Vivo em vida, me ajuntei com os
companheiros. Meus homens! - dei ordens. As balas estralejavam.

Foi fogo posto. Arrasar que vem de para onde não se olha:
feito forte sol; e vem como sol nascendo! Rachavam lascas,
espatifavam. Aí podiam descascar os arvoredos de uma dessas,
floresta toda inteira... Apraz que os ares!

Ah esses meus jagunços - apragatados pebas - formavam
trincheira em chão e em tudo. Eles sabiam a guerra, por si, feito
já tivessem sabido, na mãe e no pai. Só se aos uivos urros, se
zurrava. Aí como tomei chegada e peguei postura. Valia ver
- comandar? Gritei: - "Chagas de Cristo!..." Os meus davam
ainda outros gritos. A carabina, em mãos, coisa mexedora. A gente
disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das
casas. E guardávamos o emboquc da rua. Diz que lê?; diz-que
escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando cinco
deles, cinco dedos, cinco mãos. A gente tinha de caber em
buracos escavacados. A cabeça da gente é que dá voltas, mesmo no
esconderijo, como para se desviar. Mas não se tem medo a gasto.
Eu dizia: tré! e botava bililica na agulha. Amanso! Eu queria
que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: "Toma
cautela, Riobaldo..." Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto
dele se principiava dos olhos. Eu comandava? Um comanda é
com o hoje, não é com o ontem. Aí eu era Urutú-Branco: mas
tinha de ser o cerzidor,Tatarana, o que em ponto melhor
alvejava. Medo não me conheceu, vaca! Carabina. Quem mirou em
mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu não ter morrido:
milagremente. A morte de cada um já está em edital. Dia de
minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute. Mas o
inimigo fuzuava tiroteio total.

Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o
renje uim-uim dessas, perto de nossos cabelos - eles sobem, de
si ; e chega a doer de nervoso: mas dói real, como se umas
daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas feito
dôr que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos,
pontudamente, igual quando às vezes se come sorvête de gelo... Era a
cara pura da morte. Av'ave! Marcelino Pampa, logo esse. Nem
olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia
encostar no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da
boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele. Semelhava que
um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente,
vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive,
sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela nos

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olhos, ranho môco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e
restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era
ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente
que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim,
com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer.

E uma vela acêsa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo
alumiar a primeira indicação para a alma dele - que se diz que
o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e
da de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima
dum vestígio de lama - porque ali de noite tinha chovido; e
Diadorim panhou o chapéu-de-couro, com qual tapou o rosto
do dono. A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse companheiro,
Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-
de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pá-pá!
falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.

Mas a gente tinha conseguido de firmar possessão -
agarramos mais da metade do arraial, do arruado. O sobrado restou
nosso. Com ansêio, olhei, para muito ver, o sobrado rico, da banda
da mão direita da rua, com suas portas e janelas pintadas de azul,
tão bem esquadriadas. Aquela era a residência alta do Paredão,
soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada a Mulher,
de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos.
Da parte de cima, das janelas, e das portas, no rés, vez a vez
meus homens descarregavam. Aquele sobrado, sobradão, parava
lá, sobre sereno me prazia tudo comandando.

Ir lá?

"Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio. Em
baixo, na venda, uns quatro..." quem me informou disso foio
Jiribibe, em meu ouvido carecendo de altear voz, tanto que
espingardaria estrondava.

- "Pouco é, para ações. Tu vai lá, Riobaldo..." quem me
disse foi Diadorim, em tanto. Surriada zuniu. O tutuco das
balas, e as que batiam no chão, as raivosas, tirando terra.

Atirei, seco. Umas três ou quatro vezes. Carreguei em
novamente.

-"Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais
perigoso..." eu falei, muito alerta.Tudo que Diadorim aconselhasse,
eu punha de remissa; a modo de que com pressentimentos.

- "Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe.
Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu
mais alcança... Constante que, aqui, o negócio está garantido..."
- ele disse, mansinho, de me persuadir.

Troquei o rifle-papo pelo máuser, movi mão, fogo. Nesse
ato, nem sei se matei. As artes, lá, o sobrado, que torna mirei e
admirei. Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele,
firme se mostrando, feito veada-mãe que vem aparecer e refugir,
de propósito, em chamariz de finta, para a gente não dar com o
veadinho filhote onde é que está amoitado... Aquele sobrado era
a torre. Assumido superior nas alturas dele, é que era para um
chefe comandar reger o todo cantão de guerra!

"Eu vou..."-; fui.

Deixado João Curiol no meu lugar, e esse tinha muita valia.
Rastejei, tomei saída, conforme tinha de ir: pelos quintais das
casas. Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O
querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse
meio de vida.

Avancei, furando os terreiros e as hortas das casas, eu
debaixo de armas, nos arreios. Toda a parte ali tinha gente nossa, que
com brados me saudavam: conforme vale, quando um chefe
mostra mor valentia. Gente com o Jõe Bexiguento, sobrechamado
o "Alpercatas". E estava lá o João Nonato que dava boa-sorte,

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com o bom ar. Avancei, rompi uma cerquinha de taquara,
contornei um pano de muro, onde o Paspe tinha furado os adobes,
cavando torneiras. E dei fé: que o Jiribibe vinha me
acompanhando. O menino bom. Os olhinhos dele a gente só via era
porque eram inventados de pretos. "Será, da banda de lá,
estão bem governando, os clavinoteiros?" ele me disse. Aí, por
que me dizia? Soubesse não que o brinquedo agora era mortal?

Sobre o que, se riu, me apresentando: o que era, no fofo da
terra, debaixo duma roseira, um gatinho preto-e-branco,
dormindo seu completo sossego, fosse surdo, refestelado: ele estava até
de mãos postas... Mas, perto de mim, veio grão d'aço que
varou cheiamente um pé de mamoeiro. "Vigia, te abaixa!"
- eu ralhei com o Jiribibe. A gente ouvia a urração, ou cita seja,
destempurada, dos inimigos, e um desentoàr de cantiga, que toda
pessoa era filho-da, segundo a qual. Aos canalhas! Mas mais
xingava o Jiribibe, ripostando. Daí, depressa, ganhamos trincheiras,
atrás dum fôrno de assar biscoitos: e herraram punhadão de
disparos, para nosso lado, chega semelhava rajada de chuva-de-
pedra. Lugar danoso! Aguardamos, deitados. - "Te foge,
Jiribibe, que figuro eles têm gente atirando de cima de árvores..."
- eu total aconselhei. Assim rastejávamos. E pouco faltava para o
quintal do sobrado: só uma cerca miúda, com um xuxuzeiro
dependurado com xuxus grandes; eram uns xuxus enormes.
"Vam' bora, Chefe!" - que o Jiribibe gritou. E caiu morto, para
pra cá acertado na testa. Não gritei, e rastejei. Ao quando dar
o derradeiro lance, na porta da cozinha do sobrado, derrubei
uma bacia grande, que lá em-pé encostada estava. Aí entrei.Aquela
bacia atrás de mim levou uma carga de tirázios, com a qual
retiniu toda, lata velha... No eu entrar, os que ali vi me saudaram:
"Epa, Chefe!" Respondi: "Eh, êpa!" E, naquele instante,
pensei: aquela guerra já estava ficando adoidada. E medo não
tive. Subi a escada.

O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O
senhor avista meus cabelos brancos... Viver não é? é muito
perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é
que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu,
depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha
narração?

Subi aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos meus
passos, e avisando: "Quem evem sou eu, minha gente!"

repetido. Aquilo meio sombrio, o ar que dava era como de ser
antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu mesmo arfava um
pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote fresco
- imaginei. "É eu! minha gente..." eu disse; mesmo
assim eles se assustaram primeiro, depois tomaram satisfação por
me ver. Os que na sala que dava para a frente da rua estavam, os
quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas armas; e o
menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no banco,
encostado na parede para o interno. Esses dois, muito juntos, como que
tremiam um tanto; deviam de estar rezando.

"Que e a mulher?" eu indaguei.

O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num
quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho, para ele
davam tantas portas, por detrás duma delas tinham fechado a
mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego Borromeu.
Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me
entregar; rejeitei. "Tem talha d'água, por aqui?" eu disse, eu
tinha uma pressa desordenada, de certo. "Diz que lá em baixo
tem..." foi o que o menino Guirigó me deu resposta. Entendi
que ele curtia sede, igualmente, e querendo comigo ir por
seguro temia descer sozinho a escada. E o cego Borromeu, tam-

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bém, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, mole,
fazendo desse rumor de quem termina de mastigar rapadura.
Me enjoou. Mas ele não tinha comido alguma coisa. Não tive
comigo: "Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me dá
respeito e agradece interesses de ter tomado conta de você, e
trazido em companhia minha, por todas as partes?!" Eu disse. Ele
disse: "Deus vos proteja, Chefe, dê ademão por nós todos... E de tudo
peço perdão." Ele se ajoelhou. Ouvir e ver isso me embaraçasse,
eu já pegava ponta de remorso. Porque esse homem, sem visão
carnal, de valia nenhuma, maldade minha era que tinha sido a
trazida dele, de em desde o começo de lugar onde ele cumpria
sua vida. E agora ele devia de padecer o redobrado medo,
concebendo que vai ou vai a gente fugisse dali, e ele para trás parasse,
para as unhas dos outros. Mas a cena desses todos pensamentos
em mim foi ligeira demais, conforme não tinham geração. A meio
me lembro, e conto, é só para firmar minha capacidade. Como o
reslumbre, que, no tento da hora, eu prezei em Otacilia, juízo
vago. Como para a janela eu fui, quase que na imaginação de
botar meu olhar e haver de ver, no longe tal, o lugar aonde ela
andava. Conto, para o senhor conhecer quanta espécie de causa,
no mover da mente, no mero da tragagem de guerra. E o José
Gervásio e o Araruta, cada um em beira duma janela, agachados,
carabinas em mãos, as cheias cartucheiras. Para mim era que
olhavam, estudados, querendo algum qualquer sinal. E aí uma bala
alta abelhou, se seguindo sozinha, muito rente, com cujo
barulho de música que fez eu conheci que era de comblém. Eu tinha
de dar mais espertação ainda àqueles dois. Tenência. Para uma
janela me cheguei. E endureci no rifle. Em volta relanceei. Eu
- o bedegas!

Saiba o senhor: eu estava ali, assim em padastro de todos, de
do ar, de rechego, feito que em jirau-de-espera, para castigar
onça assassina. Vi ou não vi? Só espreitei. Dono do que lucrei, de
espreitar. Uns deles, num terreiro acolá, manobravam a gosto,
nas mas armas. Assestei. Um era um sujeitão, muito baiano nos
trajes. Do gatilho do rifle, no triz, me mandei nele. Aquele caíu
tôrto; o outro completou. Assim eram três: o derradeiro
percebeu que tinha céu, e correu, dando gambetas. Zumba! levou não
sei quantas esburacadoras, na tampa de suas costas... Ah, ali
valia; donde que eu estava. Ao mesmo quando revingaram, com
umas descargas, despejadas. Dei atrás, mas sobranceei, de talaia.
Fazia bem duas horas que aquela batalha tinha principiado. Se
estava no poder do meio-dia.

De graça berra é o boi, tirante a vaca. Dessa daquela vez,
tudo não acabava sem um fim ferrado que o Hermógenes não
era cão de desmorder os dentes; e ele vinha de cinquenta léguas!
Toada tinha de ter um prazo. E há um vero jeito de tudo se
contar uma vivença dessas! Os tiros, gritos, éco, baque boléu,
urros nos tiros e coisas rebentáveis. Dava até silêncio. Pois
porque variava, naquele compasso: que bater, papocar, lascar, estralar
e trovejar - truxe cerrando fogo; e daí marasmar, o calado
de repente, ou vindo aos tantos se esmorecendo, de devagar.
Tempo que me mediu.Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para
pensar tem uma coisa! : eu vejo é o puro tempo vindo de
baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a
vida da morte: imperfeição. Bobices minhas o senhor em mim
não medite. Mas, sobre uns assuntos assim, reponho, era que eu
almejava ter perguntado a Diadorim, na véspera, de noite,
conforme quando com ele passeei. Naquela hora, eu cismasse de
perguntar a Diadorim:

"Tu não acha que todo o mundo é dôido? Que um só
deixa de dôido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o
amor? Ou em horas em que consegue rezar?"

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Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me dar
resposta:

- "Joca Ramiro não era dôido nenhum, Riobaldo; e ele,
mataram..."

Então, eu podia, revia:

- Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então,
quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente,
numa fazenda, em boa beira do Urucúia... O Urucúia, perto da
barra, também tem belas crôas de areia, e ilhas que forma, com
verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os
mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade -
jaburú e galinhol e garça-branca, a garça-rosada que repassa em
extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-
crôa, que pisa e se desempenha tão catita - o manuelzinho não
é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?..."

Podia ser? Impossivelmente.

Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a
Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito
de munição e meus armamentos, e avio de guerra. Véspera. As
horas é que formam o longe. Mas, agora, ali, em ocasiões de
morte, eu repisei; e, mesmo, amontado no momento, que era
que eu ia dizer a Diadorim, se perto de mim ele parasse? Hoje,
não sei. Não soubesse, naqueles adiantes. Ali, por onde eu
estava, eu marcava muito suave a mão da morte; feito um boiadeiro,
que, em janela ou porta, ou tábua de curral ou parede de casa,
por todas as partes por onde anda, carimba remarcada a amostra
do ferro dele de seu gado, para se conhecer. Assim. Como
lembro, que eu tinha uma dôr-de-cabeça; era uma dôr-de-cabeça
forte, fincada num ái só, furante de verrumas. Aguentei. Devia
de ser da sede.

Dá, deu: bala beija-florou. Zúos ao que rachavam
ombreiras das janelas, estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que
caíam quase como colhidas, no assoalho do chão-tinham
dansado de ricochete e ficavam para lá, amolgadas, feito
pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se esfriar,
de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter
sido a vida de uma pessoa. O José Gervásio e o Araruta recuaram
para o meio da sala, me recomendaram me acautelasse. Mas eu
permaneci. Disse que não, não, não. Minhas duas mãos tinham
tomado um tremer, que não era de medo fatal. Minhas pernas
não tremiam. Mas os dedos se estremecitavam esfiapado,
sacudindo, curvos, que eu tocasse sanfona. Aí, gritei: "Estrumes!"
Deram fuzilada. Fogo fechado, as cargas de pólvora e o despejar
e assoviar como o vento ronda, no final das águas... Mesmo
assim eu queria e visava, dali não saí, do vão aberto, não dando
de meu poder. Desfechei bem. Por mim, meu desprezo, como
essas assoviantes deles varejavam... Eu não estava caçando a morte
- o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior.
Macho com meu fuzil reiúno, dei salvas. Tive fechado o corpo?
Quero que não; não pergunto. Não morri, e matei. E vi. Sem
perigo de minha pessoa.

Aí, quando foi, momental, peguei susto: lá em baixo, muito
estava demudando. Só se fez que, inesperadamente, parte do povo
do Hermógenes, que tantos eram - a rascorja! - tinham
alcançado de rodear por trás da minha gente, na ponta da rua,
tomando retaguarda. Iam vencer, fosse possível?Temi por todos.
Ah, não, que não regiam. D'ind'hoje, o amigo meu João Vaqueiro
eu estou vendo: mais homem, mais moreno, arrenegando de
todos os macacos, nem suor ele não desperdiçava.., o que ele
vestiu, vestiu, couro e... e vai embora, dando muito as costas...

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lá adiante, acometendo, contra outros outros... Morreu, que
O mataram. Em obra de umas cem braças.

Ah, não! Os nossos aguentavam o relance, arre disparando, a
mastro de balas; foi um fogo...

E eu, hesitado nos meus pés, refiz fé: teve o instante, eu sabia
meu dever de fazer. Descer para lá, me ajuntar com os meus,
para ajudar? Não podia, não devia de; daí, conheci. Ali, um
homem, um chefe, carecia de ficar naquele meu lugar, no sobrado.
Mas, resoluto, mandei ao Araruta e ao José Gervásio, que
fossem, mas fossem! Eles mesmos queriam ir. Eles desceram a
escada. Estado daquele fogo era um pipoco mal-acreditado.Tudo
não sendo guerra? - entendi. Um panelão na trempe, o que se
cozinhava... Sobrestive. Surgindo o fim, eu restava desandado ao
para trás, sozinho só, com os dois. O menino Guirigó - uma
mão apertando as costas da outra, seguidos esses
estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em dôr, tudo
uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os
olhos.

Tive pena. Não ouvi nada; eu disse: - "Deveras?" Eu disse:
"Vocês têm paciência, meusf filhos. O mundo é meu, mas é demorado..."
A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo, a gente
ganhava: a gente ganhava.., a gente ganhava! Antes bati uma
palmada firme, no liso da minha coronha. A vitória! Ah - a vitória
- eu no meio dela, que com os ventos arrastado...

E não era? Durou dali a meia-hora, nem bem, e vislumbrei
outro alvoroço, mas da ponta da outra banda, e festivo para mim,
me dando milagre. - Eh, doar! Eh, dunga!Ao que era que tal era
que: repentemente, o pessoal meu do Cererê-Velho, sequazes
de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os
hermógenes pelas costas davam a toda retaguarda! De alegre ser,
destampei tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado enorme.
O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser
os trezentos e tantos reinando ao estral de ser jagunços...
Teria restado mais algum trabuco simples, nos Gerais? Não
tinha. E ali era para se confirmar coragem contra coragem, à rasga
de se destruir a toda munição. Dessa guisa enrolada: como que
lavrar uma guerra de dentro e outra de fora, cada um cercado e
cercando. Recompor aquilo, no final? Só com a vitória. Duvidei
não. Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu, sobre
vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava.
E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo.
Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e tudo se
desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas
claras... Conheci. Enchi minha história. Até que, nisso, alguém
se riu de mim, como que escutei. O que era um riso escondido,
tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde
desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que
isso era idéia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar
a cita: ...Satanão! Sujo!... e dele disse somentes - S... -
Ser... Sertão...

Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para
trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos;
feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal
que perguntei:

- "Você é o Sertão?!"

- "Ossenhor perfeitamém, ossenhor perfeitamém... Que
sou é o cego Borromeu... Ossenhor meussenhor..." - ele retorquiu.

- "Vôxe, uai! Não entendo..." - tartamelei.

Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a
falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual assim
todas as partes de minha cara, que tremiam - dos beiços, nas

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faces, até na ponta do nariz e do queixo. Mas me fiz. Que o ato
do medo não tive. Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele
estava no aparvoado; mas não se abancando no banco: que
melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nôjo. Mas nôjo
medo é, é não? Destemor maior Deus não me desse, segundo
retornei a praça da janela, donde eu dava e mandava.
Sobreolhava. Ah, máuser e winchester que assoviamzinho sutil. E
chio de espingardão velho antigo. Chumbeou. Há-de varavam.
Como refiro, que também eu não persistia ali aparte de tudo,
desperdício; mais antes: quem se avultasse, baqueava... Carabina.

Sucinto que se passou, horas tantas, estalos e estrondos
estouros, sotrançando no chicotear das balas-balas, sempre disso.
Sempremente. Ao constante que eu estive, copiando o meu
destino. Mas, como vou contar ao senhor?Ao que narro, assim refrio,
e esvaziado, luiz-e-silva. O senhor não sabe, o senhor não vê.
Conto o que fiz? O que adjaz. Que eu manejava na mira. Dava,
dava. E que não pronunciei insultos e gritos, mesmo porque
minha boca, a modo que naquele preciso tremor, me mal-obedecia.
Sapateei, em vez, bati pé de pilão nas tábuas do assoalho tão
surdo - o senhor é capaz que escute, como eu escutei? É que o
furor da guerra, lá fora, lá embaixo, tomava certa conta de mim,
que a quase eu deixava de dar fé da dôr-de-cabeça, que forte me
doía, que doesse vindo do céu-da-boca, conforme desde, aos
poucos, que o fogo tinha começado. E que água não provei
bebida, nem cigarro pitei. Esperançando meu destino: desgraça de
mim! Eu! Eu...

Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O
senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo? O senhor
conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que morte é
choro e sofisma terra funda e ossos quietos... O senhor havia
de conceber algum aurorear de todo amor e morrer como só
para um. O senhor devia de ver homens à mão-tente se matando
a crer, com babas raivas! Ou a arte de um: tá-tá, tiro e o outro
vir na fumaça, de à-faca, de repelo: quando o que já defunto era
quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou
contar.

Tudo estava tão pendurado para o fim... Derradeiro ainda
foi, que eu virei para trás, para repreender o cego Borromeu; e
que eu estava com dormente dôr, nos braços. Sem-ordem
daquele cego, estúrdio, agachado lá, cocoral. Só fez que disse,
bronco: "Quem me dê um de-comer?" Respondi: ralhei. Ah, há-de-o,
singular ficasse, mesmo ali, mascando fumo grosso e
cuspindo amarelo e preto... Dei num suor. Vozeiro dele, então,
de repente: que principiou a cantar, ele estava cantando um
louvado...

Como os braços me testemunhavam um peso... Mesmo
estranhei, quando fui notando que o tiroteio da rua tinha pousado
termo; achei que fazia um certo minuto que o fogo teria
sopitado. Cessaram, sim. Mas gritavam, vuvú vavavá de conversa ruim,
uns para os outros, de ronda-roda. Haviam de ter desautorizado
toda munição? Olhando, desentendi. Atirar eu pudesse? Acho
que quis gritar, e esperei para depoismente, mais tarde. Mesmo
o que vi: aquele mexinflól. E que quem saía duma porta, para ir
se juntar com o bando de todos armou, segurando frente de
si engatilhada uma garrucha de dois canos, pôs a mira que era
o catrumano Teofrásio, como se fosse braço-d'armas! E vi,
chefiando os dele, o Hermógenes! Chapéu na cabeça era um bandejão
redondo... Homem que se desata...

Entendi. O senhor me socorre.

Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham
cruzado grande e dôido desafio, conforme para cumprir se
arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma;

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e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim
movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim
mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela
rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz.
Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar
armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu e
lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em
fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava,
supilando minhas forças? "Tua honra..." Minha honra de homem
valente! eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo.
O fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o
queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que
trespassei de horror, precipício branco.

Diadorim a vir - do topo da rua, punhal em mão, avançar
- correndo amouco...

Áí, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu
estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão
animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar
uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude.
Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham,
num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao
que fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ansia por
um livramento... Quando quis rezar e só um pensamento,
como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual: ...o
Diabo na rua, no meio do redemunho. .. O senhor soubesse...
Diadorim eu queria ver segurar com os ... Escutei o
medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano,
dronho nos cabelões da barba... Diadorim foi nele...
Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e
baralharam, terçaram. De supetão... e só...
E eu estando vendo! Trecheio, aquilo rodou, encarniçados,
roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e
pernas rodejando, como quem corre, nas entortações... O diabo
na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho
debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha,
e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como
corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia,
num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável.
A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios... O diabo na
rua, no meio do redemunho... Assim, ah mirei e vi o claro
claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah,
cravou no vão e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou
para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria
um socôrro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda;
e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do arrebatado no
momento, foi poder imaginar a minha Nossa-Senhora assentada
no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá em baixo era fel
de morte, sem perdão nenhum. Que enguli vivo. Gemidos de
todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim.
No céu, um pano de nuvens... Diadorim! Naquilo, eu então pude,
no corte da dôr: me mexi,mordi minha mão, de redoer, com ira
de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns
tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei.
Eu estou depois das tempestades.

O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o
pouco? O Urucúia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos
para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor
enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira
dele, meio dele?.. .Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante
o que vem do Céu. Eu sei.

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Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal
sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com
meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos do
menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus
braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo,
dado ataque, mas que não tivesse espumado nem babado.
Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de
outros -o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e oAcauã
- que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei
de todo como no instante em que o trovão não acabou
dC rolar até ao fundo, e se sabe que caiu o raio...

Diadorim tinha morrido mil-vezes-mente para
sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram.

"É a guerra?!" eu disse.

- "Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João
Goanhá e o Fafafa, com uns dos nossos, ainda seguiram
perseguindo os restos, derradeira demão.. ." João Concliz deu
resposta. "O Hermógenes está morto, remorto matado..."
- quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo...
Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido
do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra
todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de
terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer
rir cara sepultada... Um Hermógenes.

Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando:
por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia.
Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na rua, João Goanhá tinha
carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando
retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. Suspendi
minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro,
as pernas teimando em se entesar, num emperro, que às vezes
me empalhava. Sendo que me levantei, sustentando, e caminhei
os passos; as costas para a janela eu dava.

Nesse ponto, foi que oAlaripe e o Quipes vinham chegando.
Notícia de Otacília me dessem; eu custava a me lembrar de
tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios, do que vinham,
desiludidos da viagem deles:

"Era a vossa nôiva não, Chefe..." o que Alaripe
relatava. "O homem se chamava só Adão Lemes, indo conduzindo
a irmã dele, fazendeira, cujo nome é Aesmeralda... Iam de volta
para suas casas... os que, então, no Porto-do-Ci deixamos, na
barra do Caatinga..."

Tanta gente tinha o mundo... eu pensei.Tanta vida para a
discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros nossos;
perguntei:

"Mortos, muitos?"

"Demais..."

Isto o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema
de amigo. Solucei em seco, debaixo de nada. Agora um me
dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando de abrir
covas para enterro, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar
para mim; que rejeitei. "E o Hermógenes?" aí foi o que o
Alaripe perguntou.

Como estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do
corredor a mulher do Hermógenes. Ela visse. - A senhora chegue na
janela, dona, espia para a rua... - o que João Concliz falou. Aquela
Mulher não era malina. A senhora conheça, dona, um homem
demôiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do
ferro... Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo
só de leve a cabeça, com respeito de seriedade. Eu tinha Ódio
dele... ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não estava
bem de mim, da dôr que me nublou, tive de sentar no banco da

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parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos,
eu em malmolência. Tomaram as roupas da mulher nua? Era a
Mulher, que falava. Ah, e a Mulher rogava: Que trouxessem o
corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes...

Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando:
"Traz Diadorim!" conforme era. "Gente, vamos trazer.
Esse é o Reinaldo..." o que o Alaripe disse. E eu parava ali,
permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. Ai,Jesus!
- foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.

Aquela mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes
que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já
frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais
levados de verdes... Burití, do ouro da flôr... E subiram as
escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim
- será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não
olhei bem - como que garças voavam... E que fossem campear
velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha,
em volta do escuro do arraial...

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a
Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como
que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de
Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele
permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como
jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e mascara, sem
gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara
economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de
duráveis... Não escrevo, não falo! para assim não ser: não foi, não
é, não fica sendo! Diadorim...

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava
rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher
abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro
simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o
corpo. E disse...

Diadorim nó de tudo. E ela disse:

"A Deus dada. Pobrezinha..."

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não
contei ao senhor e mercê peço: mas para o senhor
divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo
somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim
era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dôr
não pode mais do que a surpresa. A côice d'arma, de coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão
terrível; e levantei mão para me benzer mas com ela tapei foi
um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim!
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente
nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci,
retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a
Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos
eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que
cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de
dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome
chamar' eu exclamei me doendo:

"Meu amor!..."

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não
presenciar o mundo.

A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de
roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as
mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que
tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas

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de lágrimas de-nossa-senhora. Só faltou - ah! - a pedra-de-
ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que
acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim.
Como tinham idO abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar,
primeiro eu quis: "Enterrem separado dos outros, num aliso
de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba..." Tal que
disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com
a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos
meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura
deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do
sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde, o céu vem abaixando.
Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais
do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba.

Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o
dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras aí ultimei
o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. Ao
que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e os dos
catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, na
terra deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me despedi, há-
de ver que esturdiamente, sem continuação de continuação. Ainda
encomendei a João Curiol, que era um baiano bom, na palavra e
no caráter, que providenciasse o retorno daquela, para onde
quisesse ir outra vez.

Desapoderei.

Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar
sé: és Veredas-Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo
revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido,
repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu
queria me abraçar com uma serrania? Mas, nessa parte, de muito
mal me lembro, pelo revés em minha saúde. Ao que eu ia, de
repente, me vinha um assombramento de espírito, muita vez
tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos
espaços, eu restava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu
nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de Presas, o Quipes, oTriol,
Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me cuidavam; esses
tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem, vinham
comigo; e o Fafafa, mais João Nonato e Compadre Ciril, que
vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha.

Chapadão. Morreu o mar, que foi.

Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar
contra minha tristeza? O dito, vim, consoante tracado. Num
lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para outro cavalo. E
um sitiante, no Lambe-Mel, explicou que o trecho, dos
marimhús, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-
Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que compadre meu
Quelemem mais tarde me confirmou. Daí, mais para adiante, dei para
tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor
entende, resenha duma viagem. Cantar que o senhor fosse. De
aí, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer.

Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por
primeiro, de revêxo. Depois me botaram para dentro duma casa
muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu
conhecimento estavam me deitando num catre.

Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão
forte especial - nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era
tamanha tanta, como nunca se viu - o Alaripe depois me disse
que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir

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contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que
o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e que,
endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobúm, suplicava alívio
do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele
latas e baldes d'água, ao constantemente, até para evitar que, de
tudo devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no
cômodo, de incêndios... Doidice. Em dansa de demônios, que
nem não existem. Pois, então, só a doença não bastasse? O
tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto foi? Mas, quando
dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem sol,
mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela
casinha pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde
sem eu saber tinham me levado.

Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo
Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis
alvos, recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me
quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que
eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos,
numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu me
esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a
alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de
pedras.

Mas aquele seo Ornelas era homem de muita bondade,
muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa.
Todos - a senhora dele, as filhas, as parentas - me cuidavam.
Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que
eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem,
e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para
derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais dajagunçagem. Fui indo
melhor.
Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em
rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um
pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília.

Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre
novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais
linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor. Ela
tinha vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos se praziam,
me davam Otacília, como minha pretendida.

Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e grande o
amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior,
outro amor, necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O
que confessei. E eu, para nôjo e emenda, carecia de uns tempos.
Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse. Uns dias ela
ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente.

Ela tinha certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina,
renovar; e trajar terno de sarjão, flôr no peito, sendo o da festa de
casamento. Eu fui, com o coração feliz, por Otacília eu estava
apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa
melhor, como até hoje ela é minha muito companheira - o senhor
conhece, o senhor sabe. Mas isto foi tantos meses depois,
quando deu o verde nos campos.

Eujá estava de todo bom, firme para as arremessadas,
quando ali na Barbaranha se surgiu para mim igualmente a visita de
seo Habão - ele com o seo Ornelas se tivessem entre tempos
pacificado. Homem baseado. Demonstrou que tinha muita
satisfação em me ver, assim como para mim vinha trazendo outro
cavalo de presente - o qual era ruço-rodado, ordem de valor e
estampa. Ali agraciado aceitei, meu sinceramente. Mas ele
portava causa maior a que tinha ido confirmar e saber, e agenciar,
por seus bons préstimos. E era que meu padrinho Selorico Men-

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des acabara falecido, me abençoando e se honrando, orgulhoso
de meus atos; e as duas maiores fazendas ele tinha deixado para
mim, em cédula de testamento. Seô Habão queria logo me levar
lá, no Curralim, no Corinto, para eu entrar em paz de posses.
Rejeitei; adiei, isto é. Porquanto, de fato, fui, e tudo recebi em
limpo, sem precisão de tocar demandas, por falta de outros mais
legítimos herdeiros, e o que também devido dou ao advogado
meu que zelou a sucessão - Dr. Meigo de Lima.
Só que isso foi mais tarde.

Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir,
conforme a ordem que meu coração mandava.Tudo agradeci, dei a
despedida, ao seo Ornelas e os dele - gente-do-evangelho. Saí
somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de
minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não
cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina
uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço.

Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos.
Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati;
triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar:
alguma velha, ou um velho, que da história soubessem dela
lembrados quando tinha sido menina e então a razão rastraz
de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso
não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento,
o Peixe-Crú, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-
Chumbo. Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe
- batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos
enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um
11 de setembro da éra de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Marins que nasceu para o dever de
guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo
de amor... Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha
que a vida é tristonha?

Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O
existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de
sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?

E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido.
Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o
cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes
conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele
imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em
mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada;
e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para quê
eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília tamhem se
aumentava, aos bêrços primeiro, esboço de devagar. Era.

Passado esse tempo, conforme foi, pouca tardança.

Mas, então, quando se estava de volta, m'emhora vindo,
peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé
Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com
aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando léguas para cima,
perto do São Gonçalo do Ahaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz
para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado
em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, hcirando aquele rio. O
senhor sabe o rio Abaeté, que é entristecedor - audaz de belo:
largo tanto, de môrro a môrro. E em minha vida eu já pensava.

Zé Bebelo gritou: "Safa! Safas!..." e me abraçou como
amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada
tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo
aposto e condizente.

"Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana, Professor..." ele
concisou. "Tu quis paz?"

620 621

Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de
tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu estava
feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos.

"Estais p'ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus
termos! A ganhar o muito dinheiro - é o que vale... Pó d'ouro
em pó... o que ele me disse.

E era a pura mentira. Mas podia ser verdade.

Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte
mestreava. Como logo me pregou:

-"Há-té! Acabou como Hermógenes?A bem.Tu foi o meu
discípulo... Foi não foi?"

Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam. Mas,
então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:

- "A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber
certa a vida..."

Eu ri, de nós dois.

Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.

E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que ele
tinha. Aí, ái, fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para
a capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para
advogado. "Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com
retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama
devida...""- Da minha, não senhor!"- eu fechei. Distrair gente
com o meu nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três
dias, não descansou de querer me aliviar, e de formar outros
planejamentos para encaminhar minha vida. Nem indenizar
completa a minha dôr maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo não
era homem de não prosseguir. Do que a Deús dou graças!

Porque, por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse:

- "Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai
lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu
sai e vai lá. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o
mundo."

Mesmo escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao quando
despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será que
ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: "Safas!" -
maximé.

Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo,
para meu destino começar de salvar. Porque o bilhete era para o
Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã - Vereda do Burití
Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o
algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais
planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras, biból, e
mussulim. O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto
dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso... Até
com o Vupes lá topei.

Compadre meu Quelelém me hospedou, deixou meu
contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com
aquela enorme paciência calma de que minha dôr passasse; e que
podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha,
assaz.

Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:

"O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!"

Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu:

"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender,
as vezes, são as açoes que são as quase iguais..."

E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar
passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi,
no levantar do dia. Auroras.

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase
barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de

622 623

mina? Cumpro. o Rio de São Francisco - que de tão grande se
comparece - parece é um pau grosso, em pé, enorme...
Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não
existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto.
Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É O que eu digo, se
for... Existe é homem humano. Travessia.






Casório?!
Marian Keyes


Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!


CONTRACAPA:
LUCY SULLIVAN VAI SE CASAR...SERÁ?
Lucy nem ao menos tem namorado (para falar com
franqueza, ela não tem assim tanta sorte no amor). Mas a
senhora Nolan jogou o tarô e previu que Lucy estará
entrando na igreja, a caminho do altar, dentro de um ano.
As amigas que dividem o apartamento com Lucy ficaram
estarrecidas com a notícia. S ela for embora, isso vai
acabar pondo fim ao seu maravilhoso estilo de vida, que
consiste em comer quentinhas, beber muito vinho, levar
rapazes para o apartamento e jamais fazer uma faxina na
casa. Mas Lucy as tranqüiliza, dizendo que anda ocupada
demais brigando com a mãe e se preocupando com o
irresponsável do pai para pensar em se casar.
E há um pequeno problema: não existe nenhum
namorado na jogada. Entretanto, Lucy conhece Gus, o
lindo e nada confiável Gus, e começa a se perguntar: será
que ele poderá ser o futuro Senhor Lucy Sullivan? Ou
quem sabe Chuck, o americano bonitão? Ou Daniel, o
maior paquerador do mundo? Ou quem sabe Jed, o novo
rapaz que foi trabalhar na firma?
Será que Lucy vai encontrar a sua alma gêmea? Leia
este livro se você estiver a fim de chorar de tanto rir e ficar
sem trabalhar por uma semana.
























CAPÍTULO 1
Quando Meredia me lembrou de que nós quatro, do
escritório, havíamos marcado uma consulta com uma
taróloga na segunda-feira, meu estômago se revirou
ligeiramente, pelo choque.
— Você esqueceu — acusou Meredia, balançando a cara
gorda.
Eu esquecera mesmo.
Espalmando as mãos por sobre a mesa, ela me avisou:
— Nem mesmo pense em dizer que não vai.
— Saco — murmurei, porque era exatamente isso que
eu pensava em fazer.
Não que eu tivesse objeções sobre conhecer o futuro.
Pelo contrário, isso era até um pouco divertido.
Especialmente quando chegava a parte onde as videntes
me diziam que o homem dos meus sonhos estava para
aparecer a qualquer momento, essa parte era sempre
hilária.
Às vezes, até mesmo eu ria.
Só que eu estava duranga. Embora tivesse acabado de
receber o salário, minha conta parecia um país arrasado,
pós-holocausto, com cadáveres por toda parte, pois no dia
em que recebi o contracheque gastei uma fortuna em óleos
aromáticos que prometiam me rejuvenescer, me energizar
e levantar meu astral.
Além de me levar a falência, embora não especificassem
isso na embalagem. Acho que a idéia era me deixar
rejuvenescida, energizada e com o astral tão alto que eu
não ia me importar com o resto.
Assim, quando Meredia lembrou que eu me
comprometera a pagar trinta libras a uma mulher para
que ela me dissesse que eu ia viajar por sobre o mar e
possuía um pouco de mediunidade, compreendi que ia
ficar sem almoçar por duas semanas.
— Acho que não vou poder pagar... — disse, nervosa.
— Voce não pode dar para trás agora! — trovejou
Meredia. — A Sra. Nolan vai nos dar um desconto. Nós
três vamos ter que pagar mais caro se você não for.
— Quem é essa tal de Sra. Nolan? — perguntou Megan,
desconfiada, interrornpendo o jogo de paciência e olhando
por cima do computador.
— A taróloga — respondeu Meredia.
— Mas que tipo de nome é esse, "Sra. Nolan"? — quis
saber Megan.
— É um nome irlandês.
— Não! — Megan sacudiu os cabelos louros,
aborrecida. — Estou perguntando que tipo de nome é esse,
"Sra. Nolan?" para uma taróloga. Ela devia se chamar
Madame Zora ou algo desse tipo. Ela não pode ter esse
nome, "Sra. Nolan". Com um nome desses, como é que a
gente vai acreditar no que ela prevê?
— Bem, é o nome dela. — Meredia parecia magoada.
— Mas por que ela não troca? — insistiu Megan. — Deve
ser fácil fazer isso. Pelo menos é o que me disseram. O que
acha você, que todas as pessoas se chamam Meredia?
Uma pausa para fazer suspense.
— Ou elas deveriam chamar você de "Carol"? —
continuou Megan, triunfante.
— Não, não deveriam — respondeu Meredia. — Porque o
meu nome é Meredia.
— Claro que é — afirmou Megan, com sarcasmo.
— É mesmo — retrucou Meredia, com raiva.
— Então mostre a sua certidão de nascimento —
desafiou Megan.
Megan e Meredia não se cruzavam na maioria dos
assuntos, e especialmente a respeito do nome de Meredia.
Megan era uma australiana toda prática, com um alarme
antimentiras eternamente ligado. Desde que começara a
trabalhar no escritório como estagiária, vinha insistindo
que Meredia não era o verdadeiro nome da colega. Talvez
ela estivesse certa. Embora gostasse muito de Meredia, eu
tinha de reconhecer que o seu nome possuía um ar assim
meio de coisa inventada às pressas, de improviso.
Só que, ao contrário de Megan, eu não me importava
com isso.
— Então não é mesmo "Carol"? — Megan pegou um
caderninho na bolsa e riscou um dos nomes de uma lista.
— Não — respondeu Meredia, com firmeza.
— Certo — disse Megan. — Acabei com a letra "C". Hora
de passar para o "D". Seu nome é Daphne? Deirdre?
Dolores? Denise? Diana? Dinah?
— Não enche! — reagiu Meredia. Estava quase chorando.
— Parem vocês duas. — Hetty colocou a mão com
delicadeza no braço de Megan, porque esse era o tipo de
coisa que Hetty fazia. Embora fosse toda elegante, ela era
uma boa pessoa, que vivia colocando paninhos quentes
nas brigas. Por causa disso, é claro que não era muito
divertida, mas ninguém é perfeito.
Assim que a gente a conhecia, dava para notar que ela
pertencia à classe alta. Nao só porque parecia urn cavalo,
mas também porque rinha roupas horríveis. Embora
tivesse só uns trinta e cinco anos, usava saias de tweed e
vestidos floridos que mais pareciam relíquias de família.
Jamais comprava roupas novas, o que era, uma pena,
porque uma das melhores formas de as mulheres do
escritório se relacionarem bem era estourarem o salário
logo no dia seguinte para exibir roupas novas umas para
as outras.
— Como eu queria que aquela vaca australiana fosse
embora daqui! — murmurou Meredia para Hetty.
— Provavelmente é o que vai acontecer logo, logo —
tranqüilizou-a Hetty. .
Então, completou com uma coisa bem elegante:
— Cabeça para cima!
— Quando é que você vai embora daqui, hein? —
Meredia quis saber de Megan.
— Assim que juntar uma grana, sua gorducha —
replicou Megan.
Megan planejava viajar por toda a Europa, mas estava
temporariamente sem dinheiro. Assim que conseguisse
juntar o bastante, ela ia viajar, como constantemente nos
lembrava, para a Escandinávia, ou para a Grécia, ou para
os Pirineus, ou para a Costa Oeste da Irlanda.
Até esse momento, Hetty e eu tinhamos de separar as
brigas terríveis que quase sempre pintavam.
Eu tinha quase certeza de que muito da animosidade
entre elas vinha do fato de que Megan era alta, bronzeada
e linda, enquanto Meredia era baixa, gorda e feia. Meredia
tinha inveja da beleza de Megan, enquanto esta
despresava o excesso de peso de Meredia. Quando Meredia
não conseguia achar roupas que servissem nela, em vez de
soltar gemidos animadores como o resto de nós, Megan
esbravejava:
— Pare de choramingar, rolha-de-poço, e faça uma
droga de dieta!
Meredia jamais fez isso. Assim, estava condenada a fazer
os carros se desviarem, assustados, cada vez que pisava
na rua. Porque, em vez de tentar disfarçar seu tamanho
avantajado com listras verticais e cores escuras, ela
parecia querer chamar ainda mais a atenção para seu
peso. Costumava usar o visual "em camadas".
Camadas em cima de camadas e mais camadas de
tecido. Sério, gente, era muito pano! Hectares de panos,
metros e mais metros de veludos, drapeados, franzidos,
dobrados e amarrados, ancorados por broches,
acompanhados de lenços de pescoço que desciam e se
prendiam em volta de sua gigantesca circunferência.
E quanto mais cores, melhor. Carmesim, vermelhão,
laranja forte, vermelho-fogo e fúcsia.
E tudo isso só no cabelo. Ela adorava usar hena.
— Ou ela vai embora daqui ou quem sai sou eu —
murmurou Meredia enquanto olhava com ar ameaçador
para Megan.
Mas isso era tudo onda. Meredia já trabalhava no
escritório há muito tempo. Pelo que ela contava, desde a
pré-história. Na verdade, estava só com oito anos de em
presa, e jamais conseguira mudar de função. Nem fora
promovida. Jogava a culpa disso na administração, que
era preconceituosa com o seu tamanho (embora não
houvesse nenhum empecilho à ascensão rápida dos
homens rechonchudos, o que os levava a alcançar os
postos mais elevados da companhia).
Enfim, como eu tinha coração mole, nunca discutia com
Meredia. Consegui até mesmo me convencer de que ficar
sem dinheiro ia ser até bom. Ver-me forçada a ficar sem
almoço por duas semanas ia ser um golpe fatal para a
dieta perpétua que eu fazia.
E Meredia me lembrou de um detalhe que eu esquecera:
— Você acabou de terminar com o Steven — disse ela. —
Está precisando mesmo visitar uma tarologa.
Embora eu não gostasse de reconhecer, talvez ela tivesse
razão. Agora que acabara de descobrir que Steven não era
o homem dos meus sonhos, era só uma questão de tempo
antes de eu começar a fazer algumas pesquisas
paranormais, a fim de descobrir quem, exatamente, seria.
Esse era o tipo de coisa que minhas amigas e eu fazíamos,
embora fosse tudo farra, e ninguém pretendesse acreditar,
de verdade, na cartomante. Pelo menos nenhuma de nos
ia admitir que acreditara nela.
Pobre Steven. Que grande decepção ele fora.
Especialmente depois de as coisas terem começado de
forma tão promissora. Achei que ele era lindo. Sua beleza
apenas mediana tinha sido ampliada, pelos meus olhos,
ao nível de Adonis, por causa dos seus cabelos louros
encaracolados, as calças pretas de couro e a moto. Ele
parecia selvagem, perigoso e despreocupado. Bem, isso era
de esperar, não é? Para que serviam as motos e as calças
pretas de couro, a não ser para representar o uniforme de
um homem selvagem, perigoso e despreocupado?
Evidentemente, achei que não tinha a mínima chance de
conquista-lo, que alguém maravilhoso como ele teria urn
monte de garotas a sua disposição, e é claro que não ia
demonstrar nenhum interesse por alguém tão comum
como eu.
Porque eu era comum mesmo. Certamente parecia
comum. Tinha urn cabelo castanho ondulado, bem
comum, e gastava tanta grana em alisantes que não
receberia salário algum se o meu contracheque fosse pago
diretamente à farmácia que ficava perto do trabalho. Tinha
olhos castanhos comuns e, como castigo por ter pais
irlandeses, exibia uns oito milhões de sardas bem comuns,
uma para cada irlandês que morreu de fome na época da
grande escassez, como meu pai costumava dizer quando
estava meio alto e um pouco sentimental a respeito da
"velha terrinha".
Apesar de todas as minhas características comuns,
Steven me chamou para sair e agia como se gostasse de
mim.
A princípio, eu mal conseguia entender como é que
um homem tão sexy quanto Steven queria ficar comigo.
Evidentemente, eu não acreditava em uma só palavra
que saía de sua boca. Quando dizia que eu era a única
garota em sua vida, imaginava que ele estava mentindo;
quando dizia que eu era adorável, eu me perguntava por
qual ângulo, e dava voltas para inspecionar o meu reflexo
e descobrir o que é que ele queria de mim.
Na verdade, não me importava com as mentiras,
simplesmente achava que esse era o tipo de coisa que a
gente tinha de aceitar para ter um homem como Steven.
Levou algum tempo para eu compreender que ele estava
sendo sincero, e não dizia a mesma coisa para todas as
garotas.
Então, resolvi que estava maravilhada com aquilo, mas,
na verdade, estava era confusa. Tinha certeza de que ele
levava outra vida, totalmente secreta, uma vida sobre a
qual eu não deveria saber nada: saídas no meio da noite
em cima da sua Harley, para fazer sexo na praia com
mulheres desconhecidas, esse tipo de coisa. Ele parecia
ser assim.
Esperava ter um breve caso com ele, bem passional,
uma montanha-russa de sentimentos, em que meus
nervos iam viver retesados a espera de seu telefonema,
para finalmente eu sentir o corpo inundado pelo êxtase
quando ele realmente me telefonava.
Só que ele sempre ligava na hora que marcava. E
sempre dizia que eu estava linda, não importa a roupa que
eu usasse. Em vez de me sentir feliz, comecei a me sentir
pouco à vontade.
O que eu via era exatamente o que havia para ver, e me
senti cortada, de forma estranha.
Ele começou a gostar demais de mim.
Certa manhã, acordei e lá estava ele, apoiado no
cotovelo, olhando para mim. "Você é linda", ele murmurou,
e tudo me pareceu totalmente errado.
Quando transávamos, ele dizia: "Lucy, Lucy, ai, meu
Deus, Lucy" , milhões de vezes, todas elas de forma quente
e passional, e eu tentava me juntar a ele, repetindo os
gemidos quentes e passionais, mas acabava me sentindo
simplesmente uma idiota.
E quanto mais ele parecia se apegar a mim, mais eu me
desligava, até chegar a um ponto em que mal conseguia
respirar perto dele.
Sentia-me sufocada por tanta adulação, estrangulada
por tanta admiração. Eu não era assim tão] atraente, não
podia deixar de perceber, e se ele achava que eu era, isso
queria dizer que havia algo de muito errado com ele.
— Por que você gosta de mim? — vivia perguntando a ele.
— Porque você é linda! Ou porque você é sexy! Ou
porque você é muito feminina! — Eram as respostas
nauseantes que ele me dava.
— Não, não sou — replicava eu, desesperada. — Como é
que você pode dizer que sou?
— Até parece que você está querendo me dar o fora —
dizia ele, sorrindo carinhosamente.
Foram os carinhos dele que provavelmente me deixaram
louca.
Seus sorrisos suaves, seus olhares suaves, seus beijos
suaves, suas carícias suaves, tanta suavidade era um
pesadelo.
E ele era todo grudento comigo. Senhor Grude, eu não
agüentava mais!
A todo lugar que íamos, ele segurava a minha mão,
orgulhosamente me exibindo como "sua mulher". Quando
estávamos no carro, ele plantava a mão na minha coxa;
quando assistíamos televisão, ele só faltava subir em mim.
Estava sempre pegando em mim, passando o dedo no meu
braço, fazendo cafuné ou coçando minhas costas, até eu
não agüentar mais e empurrá-lo para o lado.
"Homem-velcro" era como eu o chamava secretamente,
depois de um tempo.
No final, já estava dizendo isso na cara dele.
À medida que o tempo passava, eu queria me rasgar
toda e arrancar a pele fora cada vez que ele me tocava, e
só de pensar em fazer sexo com ele já me deixava enjoada.
Um dia, ele me disse que adoraria ter um jardim imenso
e um punhado de filhos, e aí eu disse: "Chega!"
Terminei com ele imediatamente.
Não conseguia entender como foi que um dia pude achá-
lo tão atraente, porque, a essa altura, eu não conseguia
imaginar homem algum na face da Terra que fosse mais
repulsivo. Ele continuava com os mesmos cabelos louros,
as calças de couro e a moto, mas isso tudo já não me
enganava.
Eu o desprezava por gostar tanto de mim. Ficava me
perguntando como é que ele podia se contentar com tão
pouco.
Nenhuma das minhas amigas conseguiu entender o
motivo de eu ter terminado com ele. "Mas ele era tão
legal!", era uma das frases que todas diziam. "Mas ele era
tão bom para você..." era outra. "Ele é um tremendo
partido!", protestavam todas. Diante disso, eu replicava:
"Não, não é. Um tremendo partido não é assim tão fácil de
conseguir."
Ele me desapontara.
Eu esperava desrespeito, e em vez disso consegui
dedicação. Esperava infidelidade, e em vez disso consegui
um compromisso. Esperava uma relação tumultuada, e
em vez disso consegui uma relação previsível. Além de
tudo (e esse era o maior desapontamento de todos), eu
esperava um lobo e acabei com um cordeiro.
Sei que é desagradável quando o cara legal de quem você
tanto gosta demonstra ser um canalha completo,
mentiroso e com duas caras. Mas é quase tão mau quando
o cara que você pensava ser um galinha em quem não se
pode confiar prova que é, na verdade, um sujeito
descomplicado e legal.
Passei uns dois dias tentando descobrir por que eu
gostava dos caras que não eram bons para mim. Por que
eu não conseguia gostar dos que eram?
Será que eu ia sempre desprezar todos os homens que
me tratassem bem? Será que era o meu destino querer
apenas os homens que não me quisessem?
Acordei no meio da noite, me perguntando a respeito do
meu amor-próprio. Por que eu só me sentia confortável
quando me tratavam mal?
Foi quando entendi que a frase "mulher gosta de
apanhar" já rolava ha centenas de anos, e então relaxei —
afinal, não fui eu que fiz as regras.
E daí se o meu homem ideal era um sujeito egoísta,
confiável, infiel, leal, traidor, traiçoeiro, um paquerador
adorável que me achava o máximo, nunca ligava na hora
em que combinava, fazia me sentir a mulher mais especial
de todo o universo e tentava ganhar todas as minhas
amigas? Era minha culpa que eu quisesse um namorado
tipo "metamorfose ambulante", um homem que fosse
várias coisas conflitantes ao mesmo tempo?




CAPÍTULO 2
Parecia haver uma ligação direta entre a dificuldade de
se chegar à casa de uma taróloga e a sua reputação.
Quanto mais inacessível e desanimadora a localização de
sua residência, melhores e mais confiáveis eram as suas
previsões. Essa era a idéia geralmente aceita.
Isso significava que a Sra. Nolan devia ser brilhante,
porque e1a morava em um subúrbio distante e horroroso
nos arredores de Londres. Tão obscuro e escondido que
tivemos de ir ate lá no carro de Hetty.
— Por que não podemos ir de ônibus? — perguntou
Megan, ao ouvir Hetty avisar que todo mundo ia ter de
rachar a gasolina.
— Os ônibus não vão mais até lá — disse Meredia, de
forma vaga.
— Por que não? — insistiu Megan.
— Porque não — explicou Meredia.
— Mas por quê? — eu continuava intrigada.
— Houve um... problema — resmungou Meredia, e isso
foi tudo o que explicou sobre o assunto.
Na segunda-feira, as cinco em ponto, Megan, Hetty,
Meredia e eu nos encontramos na escadaria externa do
nosso local de trabalho. Hetty foi buscar o carro onde o
deixara estacionado a vários quilômetros dali, pois
estacionar no centro de Londres era assim mesmo.
Finalmente, partimos.
— Vamos deixar para trás este lugar amaldiçoado —
sugeriu uma de nós. Não sei exatamente qual de nos
pronunciou esta frase, porque sempre dizíamos isso na
hora de ir para casa. Embora ache que não deve ter sido
Hetty.
A viagem foi um pesadelo. Passamos horas no tráfego
engarrafado ou então passando por subúrbios
desconhecidos, até que entramos em uma rodovia. Depois
de andarmos por mais algumas décadas, viramos em uma
estrada secundária e, finalmente, chegamos a um
conjunto residencial.
E que conjunto residencial.
Eu e meus dois irmãos (Christopher Patrick Sullivan e
Peter Joseph Mary Plunkett Sullivan, como eles foram
batizados por minha mãe, católica fanática) fomos criados
em uma casa de conjunto residencial, de forma que me
permito criticar esses conjuntos e seu aspecto desumano
sem correr o risco de ser chamada de liberal radical.
Só que o conjunto em que fui criada não tinha um
aspecto tão apocalíptico como aquele em que a Sra. Nolan
morava.
Dois imensos blocos de apartamentos pintados de cinza
pareciam torres de sentinela acima de centenas de
casinhas cinzentas paupérrimas. Dois vira-latas vagavam
por ali, sem rumo, com a esperança de achar alguém para
morder.
Não havia jardins, nem plantas, nem arvores. Nem
grama.
Ao longe, havia uma pequena fileira de lojas. Quase
todas fechadas por tábuas, com exceção de um bar, uma
loteria e um depósito de bebidas. Talvez tenha sido obra
da minha imaginação muito ativa, mas, em meio a
escuridão do entardecer, eu poderia jurar que vi quatro
homens a cavalo passando na frente do bar. Até ali, tudo
bem. A Sra. Nolan, pelo jeito, era ainda melhor do que eu
imaginara.
— Meu Deus! — disse Megan, com a cara retorcida de
nojo. — Que buraco.
— É mesmo, não é? — sorriu Meredia, com orgulho.
No meio de todo aquele panorama cinzento havia um
pequeno terreno que algum paisagista achou, obviamente,
que poderia ser um oásis de jardins verdejantes, onde
famílias sorridentes se espalhariam, tomando sol. Só que
já fazia muito tempo que não nascia grama ali.
Sob a luz difusa dava para ver um grupo formado por
umas quinze crianças reunidas naquele espaço. Estavam
todas amontoadas em volta do que parecia, de forma
preocupante, um carro incendiado.
Embora estivéssemos em urn dia frio de março, a
noitinha, nenhuma das crianças estava de casaco (nem
mesmo casaquinhos leves). Assim que nos viram,
interromperam a atividade criminal que deviam estar
planejando e correram em nossa direção, aos berros.
— Minha nossa! — gritou Hetty. — Tranquem as portas!
As quatro portas foram travadas ao mesmo tempo,
enquanto as crianças cobriam o carro como um enxame,
olhando para nós com seus olhinhos sofridos e experientes.
O que as fazia parecer ainda mais assustadoras era o
fato de estarem com o rosto sujo de fuligem,
provavelmente do óleo ou da tinta do carro incendiado.
Aquilo parecia pintura de guerra.
Elas abriam e fechavam a boca, parecendo dizer algo.
— O que é que elas estão falando? — perguntou Hetty,
aterrorizada.
— Acho que estão perguntando se viemos para ver a Sra.
Nolan— respondi, sem muita certeza.
Abri a janela uns poucos centímetros e, em meio ao
tumulto e à algazrra, consegui descobrir que era
exatamente aquilo que elas estavam nos perguntando.
— Ufa! Os nativos são amigáveis. — Sorriu Hetty,
enxugando o suor da testa com estardalhaço e respirando
fundo, aliviada.
— Fale com eles, Lucy!
Nervosa, abaixei o vidro um pouco mais.
— Hã... Viemos ver a Sra. Nolan — disse eu.
Uma cacofonia de vozes estridentes foi a resposta:
— A casa dela é aquela ali.
— Ela mora lá.
— É aquela!
— Vocês podem deixar o carro aqui mesmo.
— A casa dela é aquela.
— Bem ali.
— Vou mostrar para vocês.
— Não, deixe que eu mostro!
— Não, sou eu que vou mostrar!
— Não, eu é que vou mostrar!
— Mas fui eu que vi primeiro!
— Você ficou com o último grupo!
— Vá se foder, Cherise Tiller!
— Não, vá você se foder, Claudine Hall!
Um arranca-rabo violento estourou entre quatro ou
cinco das garotas menores, enquanto continuávamos
sentadas dentro do carro, esperando que elas parassem.
— Vamos saltar. — Megan parecia um pouco entediada
com aquilo. Era preciso mais do que um bando de
crianças semi-selvagens para assustá-la. Abrindo a porta
com determinação, saltou e passou por cima de duas
crianças que se engalfinhavam na calçada.
Então Hetty e eu saímos também.
Assim que Hetty colocou o pé fora do carro, uma
garotinha esquelética que parecia ter trinta e cinco anos
começou a puxar o seu casaco.
— Olha, eu e minha amiga aqui vamos tomar conta do
seu carro — prometeu ela.
A amiga, que era menorzinha, ainda mais esquelética e
parecia um macaco pouco amigável, concordou com a
cabeça, em silêncio.
— Obrigada — disse Hetty, com horror estampado no
rosto enquanto tentava tirar a garotinha da sua frente.
— Vamos ficar olhando para que nada de mau aconteça
com ele — disse a garorinha, seca como um graveto, dessa
vez com a voz um pouco mais ameaçadora e ainda
segurando a ponta do casaco de Hetty, com força.
— Dê algum dinheiro para elas — sugeriu Megan,
irritada. — Na verdade é isso que ela está querendo.
— Como assim? — perguntou Hetty, indignada. — Não
vou fazer isso. É chantagem.
— Você quer que as rodas ainda estejam no carro
quando a gente voltar ou não? — insistiu Megan.
A garotinha e a amiga com carinha de macaco
observavam pacientemente o diálogo, com os braços
cruzados. Agora que uma mulher experiente e sensata
como Megan entrara no papo, elas sabiam que o resultado
ia ser favorável.
— Tomem — disse eu, dando uma libra para a
menininha de trinta e cinco anos.
Ela aceitou com um aceno de cabeça.
— Agora, será que podemos ir ver o que nos reserva o
futuro, por favor? — perguntou Megan, impaciente.
Meredia, a gorda covarde, permanecera escondida no
carro durante todo o primeiro contato com as Crianças do
Inferno. E esperou até que todas elas se afastassem antes
de sair do carro.
Porém, no instante em que as crianças a viram emergir
do carro, voltaram correndo a toda velocidade. Não era
todo dia que uma mulher gigantesca, vestida de vermelho
dos pés à cabeça, em veludo pregueado e o cabelo
combinando, aparecia rolando em seu caminho. Quando
tal fato acontecia, porém, elas sabiam como tirar o maior
proveito, reconhecendo uma diversão gratuita de imediato,
fazendo pouco e debochando.
Os guinchos, urros e risadas que surgiram daquelas
paródias de crianças foram de arrepiar os cabelos.
Os comentários variavam de "porra! olha que vaca
gorda!" a "porra! ela vestiu as cortinas da mãe!", "porra!
aquilo não e horrível?" a "porra! onde estao os barcos do
Greenpeace?".
Pobre Meredia! Com o rosto tão vermelho quanto todo o
resto, ela atravessou toda a curta distância até a porta da
frente da Sra. Nolan como se fosse o Flautista de Hamlin,
com u, enxame de horríveis fedelhos correndo e dançando
atrás dela, rindo e atirando insultos. Uma atmosfera de
carnaval se estabeleceu, como se o circo estivesse
chegando à cidade, enquanto Hetty, Megan e eu nos
acotovelávamos de forma protetora em volta de Meredia,
fazendo inúteis tentativas com as mãos para enxotar as
crianças dali.
Então chegamos a casa da Sra. Nolan. Só podia ser
aquela. Tinha revestimento de pedra, janelas de vidro
duplo e uma pequena varanda envidraçada, que se
projetava para fora. Todas as janelas tinham cortinas finas,
rendadas, e lindas persianas de laminas estreitas. Os
peitoris das janelas estavam lotados de enfeites,
cavalinhos de louça, cachorros de vidro e canecas de metal,
além de bichinhos peludos em pequenas cadeiras de
balanço de madeira. Evidentes sinais de prosperidade que
faziam a casa se sobressair de todas as outras em volta. A
Sra. Nolan devia ser uma espécie de estrela entre as
tarólogas.
— Toque a campainha — disse Hetty para Meredia.
— Eu não. Toque você — reagiu Meredia.
— Mas você já esteve aqui antes — explicou Hetty.
— Deixem que eu toco — suspirei, esticando o braço e
apertando o botão.
Quando os primeiros acordes de Greensleeves
começaram a soar pela sala, Megan e eu tivemos de
prender o riso.
Meredia se virou e nos lançou um olhar furioso,
cochichando:
— Calem a boca. Mostrem um pouco de respeito. Esta
mulher é a melhor. Ela é o máximo.
— Ela está vindo. Ai, meu Deus, ela está vindo —
sussurrou Hetty, rouca de empolgação ao ver uma sombra
que se moveu por trás do vidro fosco da porta da varanda.
Hetty não costumava sair muito de casa.
— Nossa, Hetty, você precisa aprender a se controlar! —
disse Megan, com desdém.
A porta se abriu e em vez de uma mulher exótica,
sombria e com cara de médium, um rapaz de cara
emburrada nos encarava.
Uma criança pequena com o rosto todo sujo colocou a
cabeça de fora, por trás das pernas do rapaz.
— Sim? — disse ele, olhando para cada uma de nós.
Seus olhos se arregalaram, mostrando um leve choque ao
avistar Meredia em toda a sua vermelhidão.
Nenhuma de nos falou. Todas tínhamos nos vestido em
estilo classe média, bem discretas. Até mesmo eu, que era
mais para classe operária.
Hetty deu uma cotovelada de leve em Meredia, que deu
uma leve cotovelada em Megan, que, por sua vez, me
cutucou de leve com o cotovelo.
— Fale alguma coisa — soprou Hetty.
— Não, fale você — murmurou Meredia.
— E então? — indagou mais uma vez o rapaz de cara
fechada, de forma pouco gentil.
— A Sra. Nolan está? — perguntei.
Ele me olhou desconfiado, e então decidiu que eu tinha
um ar confiável.
— Ela está ocupada — rnurmurou.
— Fazendo o quê? — quis saber Megan, impaciente.
— Está tomando chá — respondeu ele.
— Bem, então podemos entrar e esperar por ela? —
perguntei.
— Ela está nos esperando — arriscou Meredia.
— Viajamos de muito longe — explicou Hetty.
— Viemos seguindo uma estrela do Oriente — completou
Megan, prendendo o riso atrás de nós.
Todas três se viraram para ela ao mesmo tempo e
franziram a testa.
— Desculpem — resmungou ela.
O rapaz se mostrou mortalmente ofendido pela falta de
respeito com a sua mãe, avó ou seja lá o que a Sra. Nolan
fosse dele, e fez menção de fechar a porta.
— Não, por favor, não faça isso! — implorou Hetty. —
Ela já pediu desculpas.
— Pedi sim — confirmou Megan com ar alegre e sem
parecer nem um pouco arrependida.
— Está certo então — disse ele, a contragosto, deixando-
nos entrar em uma sala minúscula.
Mal havia espaço para nós quatro.
— Esperem aqui — ordenou ele, e entrou em outro
cômodo.
Devia ser a cozinha, pelo barulho de louça, a fumaça e o
cheiro de ovos fritos que vieram lá de dentro quando ele
abriu a porta, desaparecendo tudo em seguida assim que
ele tornou a fechá-la.
Não havia um só centímetro nas paredes que não
estivesse coberto com quadros, barômetros, tapeçarias ou
ferraduras. Meredia se moveu ligeiramente e derrubou da
parede a fotografia de uma família muito grande. Ao se
agachar para pegar a foto que caíra no chão, seu traseiro
derrubou outras dez fotos.
Durante décadas ficamos ali na sala, andando de um
lado para outro, totalmente ignoradas, enquanto os sons
de risos e conversa continuavam a vir de trás da porta
fechada.
— Estou morrendo de fome — disse Megan.
— Eu também — concordei. — O que será que eles estão
comendo, hein?
— Isso tudo é ridículo — declarou Megan. — Vamos
embora.
— Por favor, esperem — pediu Meredia. — Ela é
maravilhosa. Sério, ela é mesmo.
Finalmente, a Sra. Nolan terminou o chá e surgiu no
meio de nós. Não consegui evitar o desapontamento ao
avistá-la. Ela parecia tão comum... Não tinha a cabeça
coberta por um lenço vermelho, e não havia sequer uma
argola de ouro à vista.
Usava óculos, £izera permanente no cabelo, vestia um
blusão bege com calça de moletom e, o pior de tudo,
estava de chinelos. Além do mais, era baixinha! Não sou
muito alta, e ela mal batia na minha cintura!
— Certo, meninas — disse ela, de forma rápida e
decidida, com sotaque de Dublin. — Quem é a primeira?
Meredia foi na frente. Depois, Hetty. Em seguida, eu.
Megan ficou por último, a fim de esperar para ver se nos
três achávamos que o dinheiro tinha valido a pena.











CAPÍTULO 3
Quando chegou a minha vez, entrei no que era,
evidentemente, a . "sala boa" da casa. Mal consegui passar
da porta, porque o ambiente estava entulhado com móveis
e tralhas. Havia um biombo todo trabalhado junto de um
enorme aparador de mogno que rangia sob o peso de uma
pilha de outros enfeites. Havia banquinhos e mesinhas por
todo lado que olhássemos, além de um conjunto estofado
em veludo marrom que ainda estava coberto com o
plástico original.
A Sra. Nolan estava sentada em uma das poltronas
cobertas de plástico e fez um gesto para que eu me
sentasse na poltrona na frente.
Enquanto entrava, abrindo caminho por entre os móveis
até chegar à poltrona, comecei a me sentir nervosa e
empolgada. Porque, apesar de a Sra. Nolan ter a aparência
de quem se sentiria mais à vontade ajoelhada, limpando o
chão da cozinha de Hetty, ela conseguira a sua
maravilhosa reputação como vidente por algum motivo.
— Sente-se, minha querida — disse ela.
Eu me sentei, com o traseiro apoiado na ponta da
poltrona coberta de plástico.
Ela olhou para mim. De forma astuta? De forma sábia?
E falou. Em forma de profecia? Em forma de presságio?
— Você percorreu um longo caminho para chegar até
aqui, minha querida — disse ela.
Dei um pulo. Não esperava que já fôssemos começar tão
depressa. E que ela fosse acertar na mosca logo de cara.
Sim, era verdade, eu percorrera realmente um longo
caminho, desde os tempos da minha infância no conjunto
residencial em Uxbridge.
— Sim — concordei, hesitando um pouco, ainda abalada
por sua percepção profunda.
— O tráfego estava engarrafado, querida?
— Quê? O quê? Hã... o... tráfego? Não, até que não —
consegui responder.
Entendi. Ela estava só puxando assunto. A sessão de
leitura de cartas ainda não começara. Que
desapontamento. Bem, deixei pra lá.
— Sim, minha querida — suspirou ela. — Se eles
conseguirem terminar aquela porcaria de viaduto, vai ser
um milagre. Atualmente, com o engarrafamento e a fila de
carros buzinando a noite toda, a gente nem consegue
dormir direito.
— Hã... sim — concordei.
Por algum motivo, conversar sobre o tráfego e os
engarrafamentos naquele momento não me parecia
apropriado.
Então ela foi direto ao que interessava:
— Bola ou cartas? — perguntou, de repente.
— Co... como disse? — perguntei, com
educação.
— Bola ou cartas? Bola de cristal ou cartas de
tarô?
— Ah! Bem, deixe ver... Qual é a diferença?
— Cinco libras.
— Não, estou falando... deixa pra lá. Cartas, por favor.
— Certo — disse a Sra. Nolan e, com isso, começou a
embaralhar as cartas com a habilidade de um jogador de
pôquer veterano.
— Agora você deve embaralhá-las um pouco, querida —
disse ela, entregando-me as cartas. — Mas tenha cuidado!
Haja o que houver, não as deixe cair no chão.
Deixá-las cair no chão devia representar má sorte,
avaliei, compreendendo tudo.
— Tenho problemas de coluna — explicou ela. — O
médico disse "nada de se abaixar". Agora, faça uma
pergunta a si mesma querida — orientou-me ela. — Uma
pergunta que você queira ver respondida pelas cartas,
querida. Mas não me conte nada, querida. Não preciso
saber qual é a pergunta — e fez uma pequena pausa,
olhando para os meus olhos de forma significativa —,
minha querida.
Eu podia ter escolhido uma de várias perguntas. Por
exemplo: "haveria um fim para a fome no mundo?", "os
cientistas iam descobrir a cura da Aids?", "haveria paz no
planeta?", "será que alguém ia conseguir fechar o buraco
na camada de ozônio?". De forma curiosa, porém, descobri
que a pergunta para a qual eu realmente queria uma
resposta era: "Algum dia vou conhecer um homem legal?"
Engraçado isso.
— Já decidiu qual é a sua pergunta, querida? — quis
saber ela, pegando o baralho de volta.
Fiz que sim com a cabeça. Ela começou a arremessar as
cartas por sobre a mesa a uma velocidade espantosa. Eu
não sabia o que aquelas figuras significavam, mas achei
que não pareciam muito promissoras. Parecia haver um
monte de espadas em várias delas, e isso não podia ser
coisa boa, não é?
— Sua pergunta tem relação com um homem,
querida? — perguntou ela.
Mas isso não impressionou nem mesmo a mim.
Isto é, eu era uma mulher jovem. Tinha poucas
preocupações na vida. Bem, na verdade, tinha muitas.
Uma jovem da minha idade só ia pensar em buscar a
ajuda de uma cartomante por dois motivos: carreira ou
vida amorosa. E se ela estivesse com problemas na
carreira, provavelmente ia fazer alguma coisa de útil a
respeito por conta própria.
Como ir para a cama com o chefe.
Assim, restava apenas a opção da vida amorosa.
— Sim — respondi, com jeito cansado —, tem a ver com
um homem.
— Você tem tido pouca sorte no arnor, querida — disse,
compr eensivo.
Novamente, não me deixei impressionar por aquilo.
Sim, eu andava tendo pouca sorte no arnor. No entanto,
mostre-me uma mulher que não seja assim!
— Há um homem louro no seu passado, querida —
afirrnou ela.
Imagino que ela estivesse se referindo a Steven. Mas,
pensei, quem é que não tinha um homem louro em seu
passado?
— Ele não era o homem certo para você, querida —
continuou ela.
— Obrigada — disse eu, um pouco aborrecida, porque
esse fato eu já descobrira sozinha.
— Não desperdice lágrimas por causa dele, querida —
aconselhou-me ela.
— Pode deixar.
— Porque há outro homem a caminho, querida —
afirmou ela, abrindo um sorriso imenso.
— Sério? — quis saber, deliciada com aquilo, inclinando-
me mais para perto dela e sentindo o plástico da poltrona
guinchar por baixo das minhas coxas. — Agora sim!
— É verdade — disse ela, analisando as cartas. — Estou
vendo casamento, aqui.
— É mesmo? — eu quis saber. — De quem? Meu?
— Sim, querida — disse ela. — Seu.
— Sério mesmo? Quando?
— Antes que as folhas caiam no chão pela segunda vez,
querida.
— Como disse?
— Antes que as quatro estações passem uma vez e
metade de outra — explicou ela.
— Desculpe, mas acho que ainda não estou
entendendo — disse eu, sem graça.
— Em um ano — decidiu ela, parecendo um pouco
chateada.
Fiquei um pouco desapontada. Se era em um ano, ia
acontecer no inverno, e eu sempre me imaginara casando
na primavera! Isto é, nas raríssimas vezes em que eu me
imaginara casando.
— Não dá para esticar este prazo para um pouco mais
de um ano, dá? — perguntei.
— Minha querida — respondeu ela, com firmeza —, não
sou eu que determino essas coisas. Sou simplesmente a
mensageira.
— Desculpe — murmurei.
— Bem — continuou ela, em um tom de voz mais
gentil—, vamos dizer que a previsão vai acontecer em até
dezoito meses, para garantir.
— Obrigada — disse, achando que aquilo tinha sido
muito respeitável da parte dela. Então eu ia me casar!,
pensei. Isso era algo monumental. Especialmente se
considerarmos que eu já ficaria feliz com um namorado.
— Estou me perguntando quem poderia ser ele... — falei.
— Você precisa ter cuidado, querida — avisou ela. — A
princípio, pode ser que você não o reconheça como a
pessoa que realmente é.
— E vou conhecê-lo em uma festa?
— Não — disse ela, com ar profético. — No primeiro
momento, pode ser que ele não pareça ser quem é.
— Ah, quer dizer que ele vai mentir para mim — disse,
compreendendo tudo. — Bem, acho que é sempre assim
mesmo. Por que esse aí seria diferente?
E dei uma risada.
A Sra. Nolan pareceu aborrecida.
— Não, querida — explicou, irritada. — Eu quis dizer
que você precisa tomar cuidado para não usar antolhos
nessa procura. Talvez você tenha que buscar este homem
e olhar para ele com visão clara, sem medos. Pode ser que
ele não tenha dinheiro, e você não deve humilhá-lo. Pode
ser que ele não seja bonito, mas você não deve zombar
dele.
Que ótimo!, pensei. Eu devia saber! Um mendigo todo
deformado.
— Entendo — respondi. — Então ele vai ser feio e pobre.
— Não, querida — replicou a Sra. Nolan, já desesperada,
deixando de lado o linguajar místico. — Estou dizendo que
pode ser que ele não seja o seu tipo preferido de homem.
— Entendo — respondi.
Se ao menos ela tivesse falado isso logo de cara. Visão
clara e sem medos, tá bom!...
— Então — continuei —, quando Jason, o garoto de
dezessete anos, todo sardento, que usa aquelas roupas
largas horrorosas me encontrar na sala da xerox e me
convidar para sair, a fim de curtir uma drogas, eu não
devo mais rir na cara dele e responder que só Dia de São
Nunca.
— Essa é a idéia, querida — disse a Sra. Nolan,
parecendo satisfeita—, pois a flor do amor pode brotar nos
lugares mais inesperados e você deve estar sempre pronta
para colhê-la.
— Compreendo — balancei afirmativamente a cabeça.
Mesmo assim, eu tinha de estar muito a perigo para
Jason ter alguma chance. Mas não havia necessidade de
contar isso à Sra. Nolan.
Enfim, se ela era realmente boa naquilo, já sabia de tudo.
Começou a apontar com rapidez para as cartas e soltar
frases curtas, indicando desse modo que a sessão estava
chegando ao fim.
— Você vai ter três filhos, duas meninas e um menino,
querida.
E continuou:
— Jamais vai conseguir ser rica, mas vai ter muita
felicidade, querida.
Disse também:
— Você tem uma inimiga no trabalho, querida. Ela tem
inveja do seu sucesso.
Nessa eu tive que rir. Foi um riso meio amargo. Ela
também ia cair na risada se soubesse como o meu
emprego era humilhante e horrível.
Nesse ponto ela fez uma pausa.
Olhou para as cartas e, então, olhou para mim. Algo que
parecia preocupação estava estampado em seu rosto.
— Vejo uma nuvem sobre você, querida — disse ela, bem
devagar. — Uma escuridão, uma tristeza...
De repente, para meu horror, senti um nó na garganta.
Uma nuvem escura, era exatamente assim que eu
descrevia as crises de depressão que às vezes me
atacavam. Não era aquele tipo comum de depressão, como
"bem que eu gostaria de ter uma saia de camurça",
embora eu sofresse desse tipo de depressão também.
Desde os dezessete anos, porém, eu tinha crises de
depressão clínica, de verdade.
Balancei a cabeça, quase sem conseguir falar.
— Sim — sussurrei.
— Você vem carregando este peso há muitos anos —
disse baixinho, olhando para mim com muita
solidariedade e compreensão.
— Sim — sussurrei de novo, sentindo os olhos se
encherem de lágrimas.
— E você vem carregando o fardo quase totalmente
sozinha — disse, com gentileza.
— Sim — concordei, sentindo uma lágrima descer
lentamente pelo rosto. Ai, meu Deus! Aquilo era horrível.
Pensei que tinha ido até ali para me divertir. Em vez disso,
aquela mulher, uma completa estranha, conseguira
enxergar a minha essência, e me tocara em um ponto
onde poucos seres humanos haviam conseguido.
— Desculpe — funguei, enxugando o rosto com a mão.
— Não se preocupe, querida — disse ela, entregando-me
um lenço de papel que pegou em uma caixa que,
obviamente, estava ali ao lado para esse tipo de coisa. —
Isso sempre acontece.
Esperou mais alguns instantes enquanto eu me
recompunha, e então começou a falar novamente:
— Tudo bern, querida?
— Sim... — funguei. — Obrigada.
— Tudo vai melhorar, querida. Mas você não pode se
afastar das pessoas que querem ajudá-la. Como poderão
ajudá-la se você não permitir que elas se aproximem de
você?
— Não sei exatamente o que a senhora esta querendo
dizer — resmunguei.
— Talvez não saiba, querida — concordou ela, com ar
gentil—, mas espero que descubra.
— Obrigada — tornei a fungar —, a senhora foi muito
gentil. Obrigada pelo namorado, por me ver casada e tudo
o mais. Foi muito bom ouvir isso.
— Não há de quê, querida — disse ela, parecendo
satisfeita. — São trinta libras, por favor.
Paguei a ela e me levantei da cadeira com o plástico
barulhento.
— Boa sorte, querida — disse ela. — Por favor, pode
mandar vir a próxima jovem?
— Quem é a próxima? — pensei alto. — Ah, é a Megan,
não é?
— Megan! — exclamou a Sra. Nolan. — Não é um lindo
nome? Ela deve ser do País de Gales.
— Não, na verdade é australiana — retruquei e sorri. —
Obrigada mais uma vez. Bye-bye.
— Bye-bye, querida — concordou ela, sorrindo. Voltei
para a sala minúscula, onde as outras três caíram em
cima de mim, cheias de perguntas. "E então?", "o que foi
que ela disse?", e "valeu a pena gastar essa grana?" (essa
última foi feita por Megan).
— Sim. — disse a ela. — Vale a pena você entrar.
— Só entro se vocês todas me prometerem não comentar
nada umas com as outras até eu sair e estarmos juntas
novamente — anunciou Megan, com cara feia. — Não
quero perder nada!
— Por mim, tudo bem — suspirei.
— Vaca egoísta — murmurou Meredia.
— Cuidado, gorducha — disse Megan, entre dentes.















CAPÍTULO 4
Quando Megan surgiu de volta, uns vinte minutos
depois, já estava na hora de enfrentar novamente a noite
escura, a fim de descobrir o que os filhos do Demo tinham
feito com o carro.
— Ele vai estar inteiro, não vai? — perguntou a pobre
Hetty, ansiosa e já quase correndo.
— Sinceramente, espero que sim — respondi,
caminhando apressada, logo atrás dela. Esperava que sim,
de verdade. As chances de conseguir chegar em casa de
algum outro modo eram muito pequenas.
— Jamais devíamos ter vindo — disse ela, sentindo-se
horrível.
— Ora, mas é claro que devíamos — replicou Megan,
com espiírito de grupo. — Eu me diverti muito.
— Eu também — veio a voz de Meredia, arrastando-se
pesadamente, uns cinqüenta metros atrás de nós.
De forma incrível, o carro estava inteiro.
Assim que aparecemos na esquina, a garotinha que
devia estar tomando conta do carro surgiu do nada. Não
sei que olhar ameaçador lançou a Hetty, mas foi o
bastante para que ela imediatamente tateasse em busca
da bolsa, a fim de pegar mais umas duas libras para dar a
garotinha.
Não vimos nenhuma das outras crianças, mas dava para
ouvir os gritos, berros e guinchos, além do barulho de
vidro se quebrando, em algum lugar ali perto.
Ao passarmos de carro pelo conjunto, vimos um
punhado delas. Estavam fazendo alguma coisa com uma
caminhonete. Destruindo-a completamente, me pareceu.
— Essas crianças já não deviam estar na cama? —
perguntou Hetty, ansiosa e assustada pelo seu primeiro
encontro com um bairro pobre. — Onde estão os pais
delas? O que estão fazendo? Certamente deviam tomar
alguma providência.
As crianças adoraram nos ver novamente. À medida que
o carro se aproximava delas, começaram a rir, a gritar e a
apontar para nós às gargalhadas. Obviamente, pareciam
ainda estar com grande interesse em Meredia. Três ou
quatro meninos começaram a perseguir o carro;
conseguiram correr ao lado do veículo por algum tempo,
rindo e fazendo caretas para nós, e levou algum tempo até
que conseguíssemos nos livrar deles.
Assim que percebemos que conseguíramos escapar
ilesas dos pirralhos, relaxamos. Era a hora de contar tudo
o que a Sra. Nolan dissera, e nós quatro estávamos muito
empolgadas. Todas queriam saber o que as outras
"ganharam", como garotinhas na barraca de pescaria em
uma festa junina, comparando seus prêmios. "O que você
conseguiu? Mostre a sua prenda. Olhe só a minha."
O barulho dentro do carro era ensurdecedor, com
Meredia e Megan disputando para contar suas histórias.
— Ela descobriu que eu era australiana! — exclamou
Megan, empolgada. — Disse que vai haver uma espécie de
ruptura com o passado, um corte na minha vida, mas
coisas boas vão acontecer por causa disso, e vou
conseguir encarar tudo de forma maravilhosa, do jeito que
costumo fazer — disse o finalzinho da frase de forma um
pouco convencida. — Então talvez seja a hora mesmo de
pôr o pé na estrada novamente — continuou. — De
qualquer modo, não vou precisar olhar mais para as caras
feias de vocês por muito tempo!
— Ela disse que eu ia receber um dinheiro — disse
Meredia, feliz.
— Que bom! — exclamou Hetty, parecendo
estranhamente amarga. — Assim você vai poder me pagar
as vinte libras que me deve.
Reparei que Hetty estava mais quieta do que de costume.
Não estava fazendo bagunça conosco, nem entrando no
clima de gozação e empolgação. Continuava apenas
dirigindo o carro, olhando direto para a frente.
Será que seu corpo sensível ainda estava em estado de
choque pelo contato próximo com aquelas crianças da
classe operária? Ou será que era alguma outra coisa?
— O que foi que ela te disse, Hetty? — perguntei, um
pouco preocupada. — Previu alguma coisa de ruim para
você?
— Sim — respondeu Hetty, baixinho. Parecia que estava
quase chorando.
— O que foi? O que ela previu? — explodimos todas ao
mesmo tempo, chegando o rosto mais para perto dela,
ansiosas por ouvir as previsões terríveis: acidentes,
doenças, mortes, falências, execuções de hipotecas,
aquecedores explodindo, sei lá.
Ela me disse que muito em breve vou encontrar o grande
amor da minha vida — explicou, quase chorando.
Um silêncio profundo baixou sobre o carro. Puxa vida!
Isso era mau. Muito mau.
Muito mau mesmo.
Pobre Hetty!
É desagradável, para uma pessoa, descobrir que vai
encontrar o grande amor de sua vida quando já é casada e
tem dois filhos.
— Ela disse que vou ficar com a cabeça totalmente
virada por ele — fungou Hetty. — Vai ser horrível! Jamais
aconteceu um caso de divórcio na minha família! E quanto
a Marcus e Montague? (Ou poderia ter sido Troilus e
Tristan? ou Cecil e Sebastian?) Eles já estão achando o
colégio interno tão difícil de agüentar, como é que vão lidar
com o embaraço adicional de ter uma mãe largada?
— Ora, querida — disse eu, tentando ser simpática —,
foi tudo brincadeira. Provavelmente nada disso vai
acontecer.
Isso só serviu para fazer as lágrimas de Hetty
aumentarem.
— Mas por que não posso encontrar o grande amor da
minha vida? Eu quero encontrá-lo.
Megan, Meredia e eu trocamos olhares chocados. Minha
nossa! Aquilo era muito irregular. Será que a normalmente
calma, sã e controlada (eu diria até mesmo chata) Hetty
estava tendo algum tipo de chilique?
— Por que eu não posso me divertir um pouco? Por que
eu tenho que ficar atrelada a vida inteira com o velho Dick,
aquele chato de galochas? — quis saber ela.
E batia com a palma da mão no volante a cada vez que
dizia "eu", fazendo o carro se desviar da estrada de forma
alarmante, invadindo a outra pista. Em volta de nós, todos
estavam buzinando, apavorados, mas Hetty parecia não
perceber.
Eu estava assombrada. Já trabalhava com Hetty há uns
dois anos e, apesar de jamais termos sido almas gêmeas,
achei que a conhecia muito bem.
Houve um silêncio de embaraço no carro enquanto
Meredia, Mega e eu engolíamos em seco, tentando
encontrar, sem conseguir, um jeito de dizer coisas
consoladoras.
Foi a própria Hetty que salvou a situação. Não era à toa
que ela tinha uma prima em décimo quarto grau,
transferida três vezes de local de trabalho, sempre
funcionando como assistente da rainha. Hetty não
freqüentara uma escola caríssima para sair de lá sem ter
aprendido a amenizar situações sociais desconfortáveis.
— Sinto muito — disse ela, subitamente voltando a ser a
Hetty de sempre, a educação e gentileza em pessoa,
elegante, serena, reservada e de volta ao seu lugar, com
firmeza. — Sinto muito, meninas — repetiu. — Vocês
precisam me desculpar.
Limpando a garganta, colocou as costas eretas e
levantou os ombros indicando que não havia mais nada a
comentar sobre aquelê assunto. Dick e a sua chatice
extrema não eram mais assuntos para discussão.
Que pena! Sempre tive vontade de saber mais sobre
aquilo. Porque, para ser franca, Dick me parecia, mesmo,
ser extremamente chato. Por outro lado, como já disse, e
falo isso da forma mais gentil possível, também achava
Hetty uma chata.
— E então, Lucy? — perguntou ela, falando rápido e
desviando as últimas migalhas de interesse para longe
dela. — O que a Sra. Nolan predisse para você?
— Para mim? — perguntei. — Ah, sim... ela disse que
vou me casar.
Outro silêncio desceu sobre o carro.
Outro silêncio daqueles, provocados pelo choque.
A descrença de Megan, Meredia e Hetty era tão palpável
que até parecia uma quinta pessoa dentro do carro. Mais
um pouco e ela ia acabar tendo de rachar a gasolina
também!
— Sério? — perguntou Hetty, conseguindo, não sei como,
pronunciar dezesseis sílabas com uma só palavra.
— Foi — respondi, na defensiva. — O que há de tão
estranho nisso?
— Na verdade, nada — disse Meredia, de forma gentil. —
É que, você sabe, você não tem tido muita sorte com os
homens.
— Não é que a culpa seja sua, é claro — acudiu Hetty,
apressada, com todo o tato.
Hetty tinha muito tato.
— Bem, foi isso o que ela me falou — confirmei, com
cara amarrada.
Elas realmente não sabiam o que dizer diante daquilo, e
a conversa ficou meio parada, até que finalmente voltamos
à civilização. Fui a primeira a saltar, porque morava em
Ladbroke Grove. A última coisa que ouvi, ao sair do carro,
foi Meredia contando para quem quisesse ouvir que a Sra
Nolan vira para o futuro dela uma viagem por sobre o mar,
e também afirmou que ela possuía um pouco de
mediunidade.








CAPÍTULO 5
Eu dividia um apartamento com duas outras garotas,
Karen e Charlotte. Karen tinha vinte e oito anos, eu, vinte
e seis, e Charlotte, vinte e três. Éramos um mau exemplo
umas para as outras, e gastávamos muito do nosso tempo
bebendo garrafas de vinho e pouco do nosso tempo
lavando o banheiro.
Quando entrei em casa, Karen e Charlotte já estavam
dormindo. Normalmente íamos para a cama cedo nas
noites de segunda-feira, para nos recobrarmos dos
excessos do fim de semana.
Karen deixara um bilhete sobre a mesa da cozinha,
avisando que Daniel ligara para mim.
Daniel era um amigo meu e, embora fosse o mais
próximo que se possa ter da idéia de um homem fixo em
minha vida, não me envolveria romanticamente com ele
nem que o futuro da raça humana dependesse de nós.
Portanto, isso serve para dar a vocês uma idéia do quanto
a minha vida estava sem uma presença masculina.
Minha vida estava na variedade "homem em
quantidades reduzidas", o tipo de vida "homem light".
Daniel era maravilhoso, realmente era. Os namorados
vinham, os namorados iam (e podem acreditar, eles iam
mesmo), mas eu sempre podia contar com Daniel para
representar o papel de namorado na minha vida, me
chatear com comentários machistas e dizer que preferia a
saia mais curta e mais apertada.
E ele não era feio não, pelo menos foi o que me falaram.
Todas as minhas amigas diziam que ele era lindo. Até
Dennis, meu amigo gay dizia que ele não chutaria Daniel
para fora da cama nem se ele estivesse comendo um
saquinho de batatas fritas embaixo dos lençóis. Sempre
que Karen atendia o telefone e era ele, começava a fazer
caras e bocas, como se estivesse tendo um orgasmo. Às
vezes, Daniel vinha até o nosso apartamento e, depois que
ele ia embora, Karen e Charlotte se deitavam na ponta do
sofá em que ele estivera sentado e se retorciam todas,
fazendo ruídos com a boca como se estivessem em êxtase.
Eu não entendia o porquê de toda aquela agitação.
Afinal, Daniel era amigo do meu irmão Chris, eu já o
conhecia há anos, anos e mais anos.
Simplesmente o conhecia bem demais para me
interessar por ele. Ou para ele se interessar por mim,
tanto faz.
Houve um momento, certa vez, milhares de anos-luz
atrás, em que Daniel e eu lançamos um para o outro
sorrisos tímidos durante uma música do Duran Duran, e
pensamos em trocar uns beijinhos. Mas, pensando bem,
acho que isso não aconteceu realmente. Pelo menos não
me lembro com clareza de nenhuma vez em que tivesse me
sentido desse jeito com ele. Acho que apenas imaginei que
sim, porque, em meio às emoções desenfreadas da minha
adolescência, naquela época eu vivia a fim de quase todo
mundo do sexo oposto.
No fundo, foi bem melhor que Daniel e eu não
sentíssemos atração um pelo outro, porque, se tivéssemos
transado, Chris teria de se dar ao trabalho de tentar
espancar Daniel, por ele ter violado a honra de sua irmã, e
eu não queria trazer esse tipo de problema para ninguém.
Karen e Charlotte, equivocadamente, invejavam o meu
relacionamento com Daniel.
Costumavam balançar a cabeça, incrédulas,
dizendo:
— Sua sortuda de uma figa! Como é que você consegue
se sentir tão a vontade perto dele? Como é que consegue
até ser engraçada e fazê-lo rir? A gente mal consegue
pensar em alguma coisa para falar!
Mas isso era fácil para mim, porque eu realmente não
sentia interesse por ele. Quando me interessava de
verdade por alguém, entrava em pânico, derrubava as
coisas e puxava assunto, dizendo coisas como "você já
imaginou como se sentiria se fosse um radiador?".
Olhei para o bilhete que Karen deixara para mim —
havia até mesmo uma mancha no papel que ela marcara
com uma seta, explicando "isso é baba" — e me perguntei
se devia ligar para o Daniel. Decidi que não, porque ele
podia já estar na cama.
Acompanhado, se é que me entendem.
Ah, que se danassem o Daniel e sua vida sexual! Eu
queria falar com ele.
O que a Sra. Nolan me dissera estava entulhando minha
cabeça. Não aquela parte sobre eu me casando, pois é
claro que eu não era tola o bastante para levar isso
realmente a sério.
O que ela dissera, porém, sobre me ver debaixo de uma
nuvem escura me fizera lembrar das crises de depressão e
do quanto elas foram terríveis. Eu podia acordar Karen e
Charlotte para conversar, mas resolvi que não.
Além do fato de que elas iam virar umas araras
enfurecidas se fossem despertadas do sono por outra
razão que não fosse uma festa improvisada, nenhuma das
duas sabia nada a respeito da minha depressão.
É claro que, às vezes, eu dizia que estava deprimida, e
quando me perguntavam "mas por quê?", e eu lhes
contava a respeito de um namorado infiel, ou um dia ruim
no trabalho, ou não conseguir entrar na saia que
comprara no verão passado, elas se mostravam mais do
que solidárias.
Mas não imaginavam que, às vezes, eu ficava deprimida
com "D" maiúsculo. Daniel era uma das poucas pessoas
fora da minha que realmente sabiam.
Eu tinha vergonha de me sentir assim. As pessoas
achavam que a depressão era uma doença mental e que,
em conseqüência dela, eu era uma doida completa com
quem precisavam falar bem devagar e de quem era melhor
se manter longe. Ou, mais freqüentemente, achavam que
não existia essa história de depressão, e tudo era apenas
um conceito vago e neurótico. A versão atualizada da
pessoa que "sofre dos nervos", que todo mundo
considerava como "uma pessoa que sente pena de si
mesma, sem motivos". Ou achavam que eu estava
simplesmente de frescura, entregando-me a alguma
ansiedade adolescente que já passara totalmente da data
de validade. E que tudo o que eu tinha de fazer era
simplesmente "me controlar", "sair fora dessa" e "levar a
vida na esportiva".
Eu conseguia entender essa atitude, porque todo mundo
fica deprimido de vez em quando. Faz parte da vida, faz
parte do pacote, dias ensolarados e outros com dor de
ouvido.
As pessoas ficam deprimidas por causa de dinheiro (por
não terem o bastante, é claro, não a preocupação do tipo
"o dinheiro não está indo muito bem na escola" ou "ele
perdeu muito peso ultimamente").
Coisas desagradáveis aconteciam com as pessoas:
relacionamentos eram rompidos, empregos eram perdidos,
os aparelhos de televisão enguiçavam dois dias depois de
acabar a garantia e assim por diante. E as pessoas se
sentiam péssimas a respeito dessas coisas.
Eu sabia de tudo isso, mas a depressão que me
acometia não era uma crise ocasional de tristeza, ou uma
dose da insatisfação brava do tipo Holly Golightly, *
embora eu também sentisse essas coisas, aliás, com
freqüência. Mas também um monte de gente sente isso,
especialmente se tiver bebido muito e dormido pouco a
semana inteira, mas esse tipo de tristeza e de insatisfação
brava era coisa de criança se comparado com os demônios
negros e assassinos que desciam sobre mim de vez em
quando para brincar de crucificar a minha cabeça.A
minha não era uma depressão comum, ah, não, a minha
era o modelo super, de luxo, topo de linha, versão
completa.
Não que isso parecesse óbvio de imediato na primeira
vez em que a pessoa me via. Eu não me sentia podre o
tempo todo. Na verdade, durante boa parte do tempo eu
era brilhante, envolvente e tinha personalidade marcante.
Mesmo quando me sentia terrível, fazia força para não
aparentar. Só quando as coisas começavam a ficar tão
desesperadoras que já não dava mais para esconder é que
eu me enfiava na cama por um período que variava de dois
dias a uma semana, e esperava aquilo passar. O que
invariavelmente acontecia, mais cedo ou mais tarde.
A pior crise de depressão que tive foi, na verdade, a
primeira.
Tinha dezessete anos, era o verão em que terminara a
escola e então, sem motivos, a não ser os óbvios, enfiei na
cabeça a idéia de que o mundo era um lugar muito triste,
solitário, injusto, cruel e doloroso.
Ficava deprimida por causa de coisas que estavam
acontecendo com pessoas de recantos longínquos do
mundo, gente que não conhecia nem, provavelmente, viria
a conhecer, ainda mais se considerarmos que o motivo
principal de eu me sentir daquele jeito era o fato de eles
estarem morrendo de fome, ou de alguma praga
contagiosa, ou pelo fato de que a sua casa lhes tinha caído
por sobre a cabeça durante um terremoto.
Chorava diante de qualquer notícia que visse ou ouvisse,
fossem elas desastres de carro, povos famintos, guerras,
programas de tevê sobre as vítimas da Aids, histórias de
mães que morreram e deixaram filhos pequenos,
reportagens sobre esposas espancadas, entrevistas com
homens que perderam o emprego nas minas de carvão,
aos milhares e sabiam que, mesmo tendo apenas quarenta
anos, jamais conseguiriam emprego novamente. E também
artigos de jornal a respeito de famílias de seis pessoas que
eram obrigadas a se alimentar com cinqüenta libras por
semana, além de imagens de mulas maltratadas. Até
mesmo aquela vinheta que mostravam no final do
noticiário, em que aparecia um cão correndo em volta de
uma bicicleta, dizendo "quero salsicha!", me causava uma
dor profunda, porque eu sabia que era apenas uma
questão de tempo até que o cãozinho acabasse morrendo.
Um dia achei uma luva de criança na calçada perto de
casa. Era toda em lã azul e branca, e a dor que isso me
provocou foi insuportável. Pensar em uma pequena
mãozinha enregelada, ou na outra luvinha, tão sozinha
sem a sua companheira era tão pungente que eu
derramava lágrimas quentes, soluçando sem parar a cada
vez que olhava para a luva.
Depois de algum tempo, já não saía de casa. E logo
depois, nem levantava mais da cama.
Era horrendo. Eu sentia como se estivesse envolvida
pessoalmente com cada foco de tristeza que havia no
mundo.
Era como se eu tivesse uma rede mundial de dor dentro
da cabeça, uma rede maior do que a Internet, e cada
átomo de pesar que já havia existido estivesse sendo
canalizado através de mim, antes de ser empacotado e
enviado a diversas áreas, como se eu fosse a
centralizadora da miséria humana.
Minha mãe entrou em ação. Com a eficiência de um
ditador que se sente ameaçado por um golpe de Estado,
me impôs uma restrição total de notícias. Fui banida da
frente da televisão e, por coincidência essa foi uma
daquelas vezes em que meus pais tinham deixado alguns
pagamentos em atraso — provavelmente o aluguel —, e os
oficiais de justiça apreenderam vários itens da nossa
mobília, incluindo a televisão, levando-os sob custódia, de
modo que eu não teria assistido à tevê de qualquer jeito.
Todas as noites, quando meus irmãos chegavam, minha
mãe os revistava na porta da frente e recolhia qualquer
jornal que eles pudessem ter escondido em algum bolso,
para só então permitir que entrassem em casa.
Não que a sua repressão à imprensa fizesse alguma
diferença. Eu tinha uma admirável capacidade de localizar
uma tragédia, por menor que fosse, em qualquer lugar, e
conseguia chorar até mesmo diante da descrição de
pequenos bulbos de flores que morriam sob as nevascas,
no inverno, conforme soube por uma revista de
jardinagem, meu único material liberado para leitura.
Finalmente, o doutor Thornton foi chamado, não sem
antes se passar um ou dois dias em que toda a casa foi
limpa e arrumada de forma frenética, em homenagem a
sua chegada. Ele diagnosticou depressão e — surpresa,
surpresa! — me prescreveu antidepressivos, que eu não
queria tomar.
-De que vão adiantar esses remédios? — eu soluçava,
olhando para ele. — Os antidepressivos vão trazer de volta
os empregos daqueles pobres homens em Yorkshire? Vão
ajudar a encontrar o par dessa... dessa... (a essa altura,
eu já estava ofegante e falando de forma incompreensível,
por causa do choro)... dessa LUVINHA!? — lamentei.
— Ah, quer calar a boca e parar de falar nessa porcaria
de luvinha? — repreendeu a minha mãe, com rispidez. —
Ela já me encheu o saco com essa historia de luvinha de lã,
doutor. Pode deixar que ela vai adorar tomar essas pílulas.
Minha mãe era como muitas daquelas pessoas que não
conseguiram terminar os estudos, e acreditava que
qualquer um que tivesse freqüentado a universidade,
especialmente os médicos, eram pessoas parecidas com o
papa, em sua infalibilidade. Tomar narcóticos prescritos
por eles era uma espécie de coisa mística e sagrada.
(Eu não sou digno de recebê-lo, mas diga apenas uma
palavra e serei curado.)
Além do mais, ela era irlandesa, tinha um tremendo
complexo de inferioridade e achava que tudo o que os
ingleses sugeriam tinha de estar certo (o doutor Thornton
era inglês).
— Deixe comigo! — minha mãe assegurou ao doutor
Thornton. — Vou fazer com que ela tome os remédios.
E foi o que fez.
Depois de algum tempo, comecei a me sentir melhor.
Não feliz, nem nada desse tipo. Ainda sentia que
estávamos todos condenados e que o futuro era um lugar
desolado, todo cinza, mas não ia fazer mal se eu me
levantasse da cama por meia hora para assistir a
Eastenders *.
Depois de quatro meses, o doutor Thornton disse que já
era hora de eu parar de tomar os antidepressivos. Toda a
família segurou a respiração, esperando para ver se eu ia
conseguir voar com minhas próprias asas ou mergulhar
em parafuso de volta para aquele terrível inferno da
luvinha abandonada.
Só que a essa altura eu já começara as aulas de
secretariado e readquirira a fé no futuro, ainda que de
forma frágil.
Novos horizontes se abriram com o curso. Aprendi
muitas coisas estranhas e fantásticas.
Fiquei surpresa ao saber que a veloz raposa marrom
pula sobre o cão preguiçoso, * que antes de "b" e "p" sem-
pre se usa "m", e nunca "n", e que se eu começar uma
carta dizendo "Prezado Senhor" e terminar com a palavra
"Afetuosamente", o mundo pode se acabar de uma hora
para outra.
Aprendi a dominar a difícil arte de me sentar com um
notebook fininho no colo e de cobrir uma página inteira
com cobrinhas e rabiscos. Trabalhei duro para ser a
secretaria perfeita, avançando rapidamente para o nível de
quatro Bacardis e Cocas light em uma única noitada com
as garotas, e o meu conhecimento sobre os produtos em
estoque na Miss Selfridges** era, nessa época,
enciclopédico.
Jamais me ocorreu que talvez eu devesse ter feito
alguma outra coisa na vida. Por muito tempo, achei que
era uma honra tão grande ter a chance de fazer
treinamento para secretaria que nem sequer percebi o
quanto aquilo me entediava. E mesmo que eu tivesse
percebido o quanto aquilo me entediava não teria
conseguido escapar porque a minha mãe, uma mulher
muito determinada, mostrava-se inflexível sobre aquilo ser
o melhor para mim. Ela chegou a chorar de alegria no dia
em que peguei o meu diploma, o qual provava que eu
conseguia movimentar os dedos tão rápido que dava para
escrever quarenta e sete palavras por minuto.
Se o mundo fosse mais justo, ela teria se matriculado
nos cursos de datilografia e estenografia, e não eu, mas
não foi assim que as coisas aconteceram.
Da escola, fui a única garota da sala que fez secretariado.
Tirando Gita Pradesh, que fez faculdade de educação física,
todas as outras ficaram grávidas, se casaram, arrumaram
emprego de repositoras de prateleiras nas lojas Safeway,
ou uma combinação dessas três opções.
Eu era muito boa na escola, ou, pelo menos, tinha muito
medo das freiras e da minha mãe para ser um fracasso
completo.
Só que também tinha medo de algumas das outras
garotas na sala para ser um sucesso total. Havia uma
gangue de garotas "espertas" que fumavam, usavam
delineador, tinham peitos muito desenvolvidos para a
idade e, segundo os boatos, faziam sexo com os
namorados. Eu vivia doida para me tomar uma delas, mas
não tinha chance, porque, às vezes, tirava boas notas.
Certo dia tirei sessenta e três em uma prova de biologia
e tive sorte de escapar com vida, o que não foi muito justo,
já que as questões eram sobre o sistema reprodutor
humano, e elas provavelmente sabiam muito mais a
respeito do assunto do que eu, e teriam tirado notas muito
mais altas se pelo menos tivessem se dado ao trabalho de
aparecer para fazer a prova.
Sempre que havia um teste na escola, porém, elas
traziam atestados de doença falsos, assinados pelas mães.
As mães eram ainda mais assustadoras do que as filhas,
e se as freiras levantavam alguma dúvida a respeito da
autenticidade dos atestados e tascavam uma merecida
punição nas alunas, as mães — e, às vezes, até os pais —
vinham até a escola e provocavam o maior tumulto,
ameaçando agredir as freiras, acusando-as de chamar as
filhas de mentirosas e avisando aos berros que iam "dar
parte" delas.
Uma vez, quando Maureen Quirke trouxe três atestados
no mesmo mês, cad a um deles pedindo para que ela fosse
dispensada da prova por estar menstruada, a irmã
Fidelma a esbofeteou e perguntou: "Você acha que eu sou
idiota, garota?" Poucas horas depois, a Sra. Quirke chegou
à escola como um anjo vingador. (Como Maureen contou,
tempos depois, a parte mais engraçada de tudo aquilo era
que, na verdade, ela estava grávida naquela época, embora
ainda não soubesse disso quando escreveu os atestados.)
A Sra. Quirke berrou para a irmã Fidelma: "Ninguém tem
o direito de encostar o dedo em minhas filhas. Ninguém, a
não ser eu e o Sr. Quirke!
Vá arrumar um homem, sua ameixa seca ridícula, e
deixe minha a minha Maureen em paz!"
Então, marchou de forma arrogante através dos portões
da escola, arrastando Maureen pela mão e dando tapas
nela por todo o percurso até em casa. Eu soube disso com
detalhes porque, ao chegar em casa na hora do almoço,
meu pai voou em cima de mim, doido para saber das
novidades dizendo: "Eu vi a filha dos Quirke passando
com a mãe pela rua ainda há pouco, e a mãe estava
metendo a porrada na filha. Conte logo, o que aconteceu?"
Assim, quando parei de tomar antidepressivos e fui
estudar secretariado, minha depressão não voltou com
toda a fúria, mas também não foi embora de vez. E, por
estar morrendo de medo de ficar deprimida novamente, eu,
que não queria mais tomar remédios, dediquei a minha
vida a encontrar as melhores formas de manter a nivem
escura a distância, au naturel.
Queria banir por completo a depressão da minha vida,
mas tive que me contentar em deixa-la represada,
constantemente reforçando minhas trincheiras emocionais.
Desse modo, junto com a natação e a leitura, combater a
depressão se transformou em um hobby. Na verdade, a
natação não era assim um hobby no sentido literal. Seria
mais apropriado coloca-la sobre o gênero Combate à
Depressão, subgênero Exercícios, categoria leve.
Eu lia tudo que caía em minhas mãos a respeito do
assunto "depressão, e nada me levantava mais o astral do
que uma história boa e suculenta sobre alguém famoso
que sofria horrores por causa dela.
Reportagens sobre pessoas que passavam meses a fio na
cama, sem comer, sem falar, só olhando para o teto, com
as lágrimas descendo lentamente pelas faces e desejando
energia suficiente para se matar me deixavam
extremamente empolgada.
Eu estava em companhia de gente muito importante.
Churchill chamava a própria depressão de "meu cão
negro", só que, aos dezoito anos, isso me deixava confusa,
porque eu adorava cães. É claro que isso foi antes de a
imprensa inventar os pit bulls.
Depois disso, passei a compreender exatamente o que
Winston sentia.
Sempre que eu entrava em uma livraria, fingia que
estava só dando uma olhada nas novidades e, antes de
perceber, já passara direto pelos lançamentos, pelas
seções de ficção, crime, ficção científica, culinária,
decoração e histórias de horror, continuava em frente pela
seção de biografias (dando só uma paradinha para ver se
alguma vítima de depressão publicara recentemente a
historia de sua vida) e, de algum modo, como em um
passe de mágica, sempre acabava na seção de auto-ajuda,
onde passava horas a fio lendo livros que pudessem me
consertar ou apresentassem a solução mágica que levaria
embora, ou pelo menos aliviaria, as garras corrosivas que
estavam quase sempre comigo.
É claro que muitos desses livros de auto-ajuda
aconselhavam tantas coisas doidas que eram capazes de
jogar a pessoa mais feliz e equilibrada no desespero. Havia
alguns que até mesmo um daqueles malucos nascidos em
San Francisco teria dificuldade de encarar sem cair na
risada. Títulos como Fobia de Ir para a Rua? Não Saia de
Casa sem Este Livro ou Cleptomania — Um Guia para
Você se Servir à Vontade não estavam muito fora das
possibilidades.
Apesar disso, eu normalmente gastava algum dinheiro
em um pequeno volume que me encorajava a "sentir o
medo e ir em frente assim mesmo" ou quem sabe "curar a
minha vida", ou que ensinasse que talvez não fosse uma
má idéia "redescobrir a minha criança interior", ou que me
levasse a refletir sobre "por que preciso de alguém que me
ame antes de gostar de mim mesma" .
Do que eu precisava mesmo era de um livro de auto-
ajuda que me ajudasse a parar de comprar livros de auto-
ajuda, porque eles não ajudavam em nada.
Como diria meu pai, eles "só serviam para uso sanitário",
o que é que isso significasse.
Os livros me faziam sentir culpada. Não bastava apenas
lê-los. Para que funcionassem, eu tinha de fazer coisas
como, por exemplo, ficar em pé na frente de um espelho e
dizer para mim mesma cem vezes que eu era linda.
sso se chamava "afirmação". Ou passar meia hora todas
as manhãs imaginando que estava embebida em amor e
afeição. Isso se chamava "visualização". Ou fazer listas de
todas as coisas boas em minha vida. Isso se chamava
"fazer listas de todas as coisas boas em minha vida".
Normalmente eu lia o livro, fazia tudo o que ele sugeria
durante dois dias e depois ficava cansada, ou entediada,
ou era pega de surpresa pelos meus irmãos enquanto
conversava de modo sedutor olhando para o meu reflexo.
(Nunca esqueci a gigantesca gozação que tive que aturar
por causa desse mico.)
Tentei um monte de outras coisas: óleo de prímula
vespertina, vitamina B6, exercicíos em excesso, fitas de
auto-ajuda de ação subconsciente, para tocar quando
dormimos, ioga, pilates, tanque de flutuação, massagem
aromaterápica, shiatsu, reflexologia, a dieta do levedo, a
dieta que corta o levedo, a dieta que corta o açucar, comi-
da vegetariana, a dieta "encha-se de carne" (não sei se
existe um nome para isso), um ionizador, um curso de
pensamento positivo, terapia do sonho, regressão a vidas
passadas, oração, meditação e terapia das luz solar (um
feriado em Creta, para ser precisa). Por algum tempo não
comi nada a não ser laticínios, mas depois abandonei os
laticínios por completo (entendi errado o artigo, na
primeira vez que li), e finalmente senti que se eu tivesse de
passar mais um dia sem comer uma barra de chocolate
iria acabar me matando de qualquer jeito.
Apesar de nenhuma dessas medidas ter se mostrado
como a Solução Definitiva, pelo menos funcionaram por
algum tempo, e nunca mais fiquei tão deprimida quanto
na primeira vez.
Só que a Sra. Nolan dissera algo sobre a ajuda estar ao
meu alcance, se ao menos eu a buscasse. Gostaria de ter
levado um gravador para a sessão, porque não conseguia
me lembrar exatamente do que ela falara.
O que ela queria dizer com aquilo?
A única coisa na qual conseguia pensar era que talvez
ela estivesse insinuando que eu devia procurar ajuda
profissional e me consultar com algum tipo de conselheiro
ou terapeuta, ou um psico-isso ou aquilo. O problema é
que, um ano antes, eu já fora me consultar com uma
espécie de terapeuta. Resolvi vê-la por algum tempo, pelo
menos por umas oito semanas, e aquilo acabou sendo um
desperdício de tempo.

















CAPÍTULO 6
Seu nome era Alison e eu costumava me consultar com
ela uma vez por semana. Sentávamos em uma salinha
simples e tranqüila para tentarmos descobrir o que havia
de errado comigo.
Apesar de termos descoberto um monte de coisas
interessantes, como o fato de que eu ainda guardava
mágoa de Adrienne Cawley por ela ter me presenteado com
um jogo que dizia na caixa "para crianças de dois a cinco
anos", no meu sexto aniversário, não me pareceu que eu
estivesse descobrindo mais do que já conseguira por mim
mesma, em incontáveis noites de insônia.
Naturalmente, a primeira coisa que Alison e eu fizemos
foi uma psicoterapêutica caça às bruxas que se chamava
"Cherchez la Famille", onde tentávamos jogar na minha
família a culpa por tudo o que havia de errado com a
minha psique danificada.
Mas não havia nada de estranho com a minha família, a
não ser as esquisitices normais.
Tinha um relacionamento perfeitamente normal com
meus dois irmãos, Chris e Peter. Isto é, passei toda a
infância odiando-os profundamente e eles retribuiam isso
de modo fraternal e bem tradicional, fazendo da minha
vida um inferno. Obrigavam-me a ir ao mercado para eles
quando eu não queria, monopolizavam a televisão,
quebravam meus brinquedos, rabiscavam o meu dever de
casa, diziam que eu era adotada e os meus pais
verdadeiros estavam na cadeia por roubarem um banco.
Depois confessavam que era tudo brincadeira e a minha
mãe verdadeira, na realidade, era uma bruxa. E quando
mamãe e papai saíam para ir ao pub, contavam-me que
eles haviam fugido, nunca mais iam voltar e eu ia ser
levada para um orfanato, onde seria espancada e só
poderia comer mingau queimado e tomar chá frio. As
tradicionais brincadeiras entre irmãos.
Contei tudo isso para Alison, e quando cheguei à parte
sobre papai e mamãe irem ao pub ela se agarrou nesse
detalhe, com alegria:
-Conte-me tudo sobre as vezes em que seus pais saíam
para beber — pediu ela, recostando-se na cadeira e
remexendo-se toda para ficar mais confortável, pronta
para a imensa torrente de revelações que esperava que se
seguissem.
— Não posso lhe contar nada — expliquei. — Minha mãe
não bebe.
Alison pareceu desapontada.
— E o seu pai? — perguntou ela, esperançosa, vendo
que nem tudo estava perdido.
— Bem, ele bebe — respondi.
Ela adorou ouvir isso.
— Bebe? — perguntou ela, em um tom de voz
extragentil. — E você quer conversar sobre isso?
— Bem, quero — respondi, meio confusa. — Só que não
há nada de especial para contar a respeito disso. Quando
falei que ele bebe, não quis dizer que ele tem um problema.
— Hummmmm — concordou ela, gentilmente,
entendendo tudo. — E o que você quer dizer com "tem um
problema"?
— Não sei — respondi. — Acho que estou falando de
meu pai ser alcoólatra. E ele não é.
Ela não disse nada.
— Ele não é. — Ri. — Desculpe, Alison, eu adoraria
contar a você que o meu pai passou toda a minha infância
embriagado, que nunca tínhamos dinheiro suficiente, que
ele batia em todos, gritava conosco, tentava fazer sexo
comigo e dizia para a minha mãe que estava arrependido
por ter se casado com ela.
Alison não me acompanhou na risada e me senti
ligeiramente tola.
— O seu pai realmente dizia que estava arrependido por
ter se casado com a sua mãe? — perguntou ela, com
calma e dignidade.
— Não — respondi, meio sem graça.
— Não? — insistiu Alison.
— Bem, quase nunca — admiti. — E só quando estava
bêbado. E isso era quase nunca também.
— E você achava que a sua família jamais tinha dinheiro
suficiente? — perguntou ela.
— Não, jamais tivemos pouco dinheiro — respondi, com
firmeza.
— Ótimo — disse Alison.
— Olhe, isso não é bem verdade — eu me vi forçada a
admitir. — Sempre estávamos com pouco dinheiro, mas
isso não acontecia porque o meu pai bebia, é que
simplesmente a gente... não tinha muito dinheiro.
— E porque vocês não tinham muito dinheiro? — quis
saber Alison.
— Porque meu pai não conseguia arrumar emprego —
expliquei, ansiosa. — Veja só, ele não possuía nenhuma
qualificação profissional porque teve que largar os estudos
aos catorze anos, quando seu pai morreu e ele foi obrigado
a tomar conta da mãe.
— Entendo — disse ela.
Na verdade, papai costumava dizer um monte de outras
coisas a respeito do seu desemprego, mas eu me senti
estranhamente relutante em contar isso a Alison.
Uma das memórias mais claras da minha infância era a
de papai sentado à nossa mesa da cozinha, explicando de
forma passional os defeitos do sistema econômico.
Costumava dizer que no mercado de trabalho inglês os
irlandeses sempre ficavam com "a ponta cagada do
bastão", e que Seamus O'Hanlaoin, Michael O'Herlihy e o
resto deles não passavam de uma cambada de vermes e
"baba-ovos", porque puxavam o saco dos chefes ingleses
pela frente, mas metiam o pau neles pelas costas. E que,
embora Seamus O'Hanlaoin e Michael O'Herlihy e todo o
resto pudessem ter seus empregos, pelo menos ele, Jamsie
Sullivan, tinha integridade.
Isso deveria ser muito importante para ele, porque vivia
repetindo essa frase.
E repetiu ainda mais vezes no dia em que Saidbh
O'Herlihy e Siobhán O'Hanlaoin foram para a Escócia com
uma excursão da escola, e eu não.
Não queria contar nada disso a Alison porque temia que
isso pudesse ofendê-la, caso ela tomasse a condenação de
meu pai aos possíveis chefes ingleses como algo contra ela.
Comecei a contar a Alison sobre os empregos que meu
pai tentou e não conseguiu, mas ela cortou as minhas
lembranças:
— Vamos ter que deixar isso para a semana que vem —
E se levantou.
— Oh, já está na hora? — perguntei, abalada pela forma
abrupta como a sessão terminara.
— Sim — disse Alison.
Uma onda de culpa me inundou. Eu preferia não ter
parecido desleal com o papai.
— Olhe, não quero que você fique achando que meu pai
não era um homem legal ou algo desse tipo — disse,
desesperada. — Ele é adorável, e eu o amo muito.
Alison lançou-me um sorriso de Mona Lisa, sem deixar
transparecer nada, e disse:
— Vejo você na semana que vem, Lucy.
— Estou falando sério, ele é ótimo — insisti.
— Sim, Lucy — e sorriu mais, dessa vez mostrando os
dentes. — Vejo você na semana que vem.
E a semana seguinte foi pior ainda. De algum modo,
Alison conseguiu arrancar de mim a história de eu não ter
ido à Escócia com a excursão da escola.
— Você não se importou? — quis saber ela.
— Não — respondi.
— Não sentiu raiva do seu pai? — perguntou.
— Não — respondi novamente.
— Mas por que não? — A essa altura, ela já estava me
parecendo desesperada. Foi a primeira vez em que eu a vi
mostrar alguma emoção.
— Porque simplesmente não fiquei com raiva —
expliquei.
— Qual foi a reação do seu pai quando ficou claro que
você não poderia ir? — perguntou ela. — Você se lembra?
— É claro que lembro — disse, surpresa. — Ele me falou
que a sua consciência estava limpa.
Na verdade, "minha consciência está limpa" era uma
coisa que papai dizia muitas vezes. "Consigo pegar no
sono assim que caio na cama" era outra. E ele tinha razão.
Muitas vezes ele conseguia pegar no sono antes de ir para
a cama. Isso normalmente acontecia nas noites em que ele
havia bebido um pouco.
De algum modo, também acabei contando tudo isso
para a Alison.
— Conte-me sobre essas noites em que ele... hã... bebia
um pouco — pediu ela.
— Ai, você faz isso parecer tão ruim — reclamei. — Não
era assim tão mau, era até legal. Ele apenas, sabe,
cantava e chorava um pouco.
Alison olhou para mim sem dizer nada e, para quebrar o
silêncio, eu me apressei em completar:
— Mas não era triste quando ele chorava, porque eu
sabia que, de um modo curioso, ele estava contente por
estar triste, se você entende o que quero dizer.
Alison obviamente não entendia.
— Vamos continuar a conversar sobre isso na semana
que vem — disse ela. — A sessão terminou.
Mas nós não voltamos a conversar sobre aquilo na
semana seguinte, porque eu nunca mais voltei ao
consultório de Alison.
Eu me sentira manipulada por ela, obrigada a ser cruel
a respeito de papai, e a sensação de culpa era horrível.
Além disso, era eu que estava deprimida, portanto não
conseguia compreender por que razão duas sessões
inteiras haviam sido devotadas ao meu pai e a quanto ele
bebia ou não bebia.
Do mesmo modo que seguir dietas faz você engordar,
senti que fazer análise lhe traz problemas. Portanto,
sinceramente esperava que a Sra. Nolan não estivesse
sugerindo que eu fosse procurar outra Alison, porque eu
não queria fazer isso não.
CAPÍTULO 7
Teríamos esquecido tudo sobre a Sra. Nolan e a
experiência seria relegada a algum sótão escuro e
empoeirado de nossas lembranças se duas coisas não
tivessem ocorrido.
A primeira coisa que aconteceu foi a previsão de Meredia,
que se tornou realidade. Bem... mais ou menos...
No dia seguinte à nossa ida à cartomante, Meredia
chegou ao trabalho balançando alguma coisa acima dos
cabelos tingidos, com jeito triunfante.
— Olhem só! — comandou. -Olhem, olhem, olhem!!
Hetty, Megan e eu pulamos das nossas mesas e fomos
ate Meredia para olhar. A coisa que ela estava balançando
sobre a cabeça era um cheque.
— Ela disse que eu ia receber um dinheiro, e recebi
mesmo — gritou Meredia, toda excitada, enquanto
executava alguns passos imprudentes de dança que
derrubaram nove ou dez pastas no chão e lançaram ondas
sísmicas por todo o prédio.
— Mostre, mostre — implorei, tentando agarrar o cheque
da mão dela. Só que, para uma mulher tão grande, ela era
surpreendentemente ágil.
— Vocês sabem há quanto tempo estou esperando por
este dinheiro? — lançou ela, olhando de uma para
outra. — Vocês tem idéia de quanto tempo faz que estou à
espera disto?
Mudas, nós três balançamos a cabeça. Meredia
certamente sabia como manter a platéia hipnotizada.
— Pois saibam que estou a espera disto há meses —
bramiu ela, jogando a cabeça para trás. — Literalmente,
meses.
— Que maravilha — disse eu. — Isto não é incrível?
— De quem é este cheque? — quis saber Hetty.
— De quanto é ? — quis saber Megan, perguntando a
única coisa realmente importante.
— É um reembolso do do Clube do Livro — cantou
Meredia, alegremente. — Vocês simplesmente não
conseguem imaginar o número de cartas que tive que
mandar para eles até conseguir essa grana de volta. Já
estava a ponto de ir até Swindon pessoalmente, para
reclamar.
Megan, Hetty e eu, confusas, trocamos olhares.
— Isso é do Clube do Livro? — perguntei, lentamente. —
Um reembolso do Clube do Livro?
— Sim — confirmou Meredia, suspirando de forma
dramática. — Foi a maior lengalenga. Eu disse que não
queria o livro do mês, mas eles o enviaram mesmo assim,
e então...
— Quanto foi que você recebeu? — interrompeu Megan,
de forma abrupta.
— Sete cinco zero — disse Meredia.
— E isso são setecentos e cinqüenta libras ou sete libras
e cinqüenta? — perguntei, já temendo pelo pior.
— Sete libras e cinqüenta — disse Meredia, parecendo
aborrecida. — Que papo é esse de setecentos e cinqüenta?
O livro do mês tinha que ser de ouro maciço para que eu
pagasse tanto assim por ele. Fala sério, Lucy, às vezes
acho você meio estranha!
— Entendo — disse Megan, de forma realista. — Você
recebeu um cheque de sete libras e cinqüenta, a quarta
parte do que pagou para a Sra. Nolan abrir as cartas, e
está achando que a previsão dela de que ia entrar em uma
grana preta se realizou? Foi isso mesmo o que aconteceu?
— Foi — disse Meredia, indignada. — Ela não falou
quanto eu ia receber. Disse apenas que o dinheiro vinha.
— E veio mesmo! — acrescentou ela, na defensiva.
— O que há de errado com vocês? — gritou, enquanto
todas nós voltávamos de mansinho para nossas mesas,
com o rosto cheio de desapontamento. — As expectativas
de vocês são altas demais! Esse é o problema.
— Por um instante achei que as previsões iam todas se
realizar. Só que, pelo jeito, não vou encontrar o grande
amor da minha vida... — disse Hetty, com tristeza.
— E não vou ver o corte que vai ser o divisor de águas
da minha vida — disse Megan. — A não ser que seja um
corte de tecido.
— E eu não vou me casar — disse eu.
— Sem chance — concordou Megan.
— Nenhuma — disse Hetty, dando um suspiro longo.
O papo foi interrompido pela chegada do nosso chefe,
Ivor Simmonds. Ou Ivor Veneno, como às vezes o
chamávamos. Ou "aquele cretino sem-vergonha", como
outras vezes também o chamávamos.
— Caríssimas damas — cumprimentou-nos, com uma
cara que dizia que ele achava que nós éramos qualquer
coisa, menos damas.
— Bom-dia, Sr. Simmonds — disse Hetty, com um
sorriso educado.
— Nham-nham-nham... — ruminou o resto de nós.
Isso foi porque nós o odiávamos.
Sem nenhum motivo em particular. Não era por causa
de sua ausência completa de senso de humor — como
Megan dizia, os médicos deviam ter removido
cirurgicamente todo o seu carisma quando ele nasceu.
Também não era por sua baixa estatura, ou o cabelo ralo
cor de cenoura desbotada, ou sua barba medonha
também da cor de cenoura desbotada. Ou os óculos
escuros vagabundos, ou seus lábios gorduchos e
vermelhos que sempre pareciam molhados ou, o pior de
tudo, seu traseiro redondo e caído, com formato feminino,
ou seu terno curto vagabundo e sebento que mal cobria o
dito traseiro, ou a marquinha do elástico da cueca que
dava para ver nos fundilhos da calça do terno sebento.
É claro que todos esses fatores ajudavam. Basicamente,
porém, nos o odiávamos porque ele era o chefe. Essa era a
regra geral.
A repugnância que sentíamos por ele era muito útil de
vez em quando. Certo dia, quando Megan estava toda
enjoada depois de uma noitada regada à cerveja com licor
de pêssego, esse nojo foi de grande ajuda.
— Se pelo menos eu conseguisse colocar tudo para
fora — reclamou ela —, ia melhorar um pouco.
— Imagine que está transando com o Ivor — sugeri,
ansiosa para ajudar.
— É— disse Meredia, toda alegrinha. — Imagine que
você está dando um beijo de língua nele, com aquela boca
e aquela barba. Argh!
— Nossa — murmurou Megan, arrotando de leve. —
Acho que está funcionando...
— E aposto que ele beija fazendo barulho — completou
Meredia, com o rosto deliciosamente retorcido de horror.
— Depois pense em como ele fica só de cuecas — sugeri.
Imagine só. Aposto que ele não usa cuecas normais. Nada
de cuecas largas, dessas com corte moderno.
— Não, ele não usa essas mesmo — confirmou Hetty,
que normalmente não entrava na nossa pilha.
Viramo-nos para ela, todas ao mesmo tempo.
— Como é que você sabe? — perguntamos, em uníssono.
— Porque... hã... dá para ver... vocês sabem... a marca
do elástico. — E Hetty corou delicadamente.
— Certo, a gente aceita — concordamos.
— Aposto que ele usa calçolas — disse eu, toda
empolgada. — Calçolas daquelas bem grandes, cor-de-rosa,
bordadas, com a cintura quase nas axilas, e a mulher dele
tem que comprá-las para o marido em lojas de senhoras,
porque não dá para encontrar nenhum tamanho que sirva
nele em lojas comuns.
— E imagine só como é que deve ser o pinto dele —
sugeriu Meredia.
— É!... — disse eu, já sentindo o estômago começar a se
revirar. — Aposto que é pequeno e mirrado, meio
ressecado, e ele deve ter pentelhos cor de cenoura
desbotada e...
Isso foi o bastante. Megan saiu em disparada da sala e
voltou, toda sorridente, dois minutos depois.
— Uau! — sorriu ela. — Que torpedo. Alguém tem pasta
de dentes?
— Francamente, Megan — disse Hett, com frieza. —
Você às vazes me cansa.
Megan, Meredia e eu trocamos olhares e levantamos as
sobrancelhas, imaginando o que tinha deixado Hetty,
normalmente agradável e educada, tão irritada.
Por uma feliz coincidência, o Sr. Simmonds parecia nos
odiar tanto quanto nós a ele.
Lançava-nos olhares furiosos, entrava em sua sala e
batia a porta.
Meredia, Megan e eu nos mexíamos, parecendo
atarefadas, e ligávamos os computadores. Hetty não fazia
nada disso, porque o seu já estava ligado.
Hetty fazia quase todo o serviço do escritório.
Houve um período muito preocupante assim que Megan
chegou à empresa; ela trabalhava muito, muito mesmo.
Não só aparecia na hora, como também começava logo a
trabalhar se chegasse mais cedo. Não abria o jornal,
olhando para o relógio e dizendo "mais três minutos. Esses
canalhas não vão ter nem um segundo a mais do que me
pagam", como o resto de nós fazia.
Meredia e eu a levamos para um canto e explicamos que
ela não só estava colocando os nossos empregos em risco
como também poderia acabar com o próprio emprego, se
houvesse redução no quadro.
("E aí, quem é que ia para a Grécia?") Depois desse dia
ela maneirou um pouco, e chegou até a dar algumas
mancadas. Passamos a nos dar muito melhor depois disso.
"Deixa isso pra Hetty fazer" era o lema do escritório. Só
que Hetty não sabia disso.
Eu não conseguia imaginar por que motivo Hetty
trabalhava. Certamente ela não precisava do salário.
Meredia e eu chegamos a conclusão de que os quadros de
todas as instituições de caridade em Londres deviam estar
lotados, quando Hetty resolveu que estava entediada e
precisava se distrair, então ela baixou suas pretensões e
veio trabalhar para nós.
O que não era muito diferente de fazer caridade.
Na verdade, Meredia e eu costumávamos dizer,
brincando, que trabalhar para a Companhia Wholesale
Plásticos e Metais era exatamente a mesma coisa que fazer
um trabalho caritativo, já que nossa remuneração era
patética de tão irrisória.
O dia seguia. Voltamos ao trabalho. Mais ou menos.
Ninguém voltou a mencionar a Sra. Nolan, nem o grande
amor da sua vida, nem as grandes mudanças e cortes
bruscos, nem receber dinheiro ou eu me casar.
Mais tarde, nesse mesmo dia, minha mãe telefonou, e
me preparei para ouvir a descrição de algum desastre,
porque ela jamais me ligava só para bater papo, jogar
conversa fora e me ajudar a desperdiçar alguns preciosos
minutos do tempo da empresa. Não, ela ligava apenas
para relatar catástrofes, de forma tensa. Mortes eram o
seu tema favorito, mas qualquer coisa parecida servia. A
possibilidade de diminuição do número de funcionários na
empresa em que meu irmão trabalhava, um caroço na
tireóide do meu tio, um incêndio em um celeiro em
Monaghan ou uma prima solteira que engravidou (essa era
uma das favoritas, disputando o posto com mortes entre
as lâminas de uma colhedeira de grãos).
— Você conhece Maisie Patterson? — perguntou ela,
animada.
— Sim — respondi, pensando "Maisie quem?...", mas
sabendo por experiência própria que era melhor dizer que
conhecia, senão ia ficar ali o dia inteiro conhecendo a
árvore genealógica de Maisie Patterson. ("Ela era uma das
filhas dos Finertan, antes de se casar... mas é claro que
você sabe quem são os Finertan, não se lembra da vez em
que você era pequena e eu a levei na casa deles, uma casa
bonita, muito grande, com portões verdes, que ficava logo
depois da casa dos Nealon?... Você sabe quem são os
Nealon, não se lembra de Bridie Nealon, naquele dia em
que ela lhe trouxe dois biscoitos Marietta, mas é claro que
você sabe o que são biscoitos Marietta, não se lembra de
que você ficava espremendo o recheio para ele sair pelos
furinhos?...").
— Bem... — disse a minha mãe, fazendo um pouco de
suspense. Maisie Patterson fora, obviamente, ao encontro
do Criador, mas não tinha graça contar apenas isso.
— Sim — disse eu, paciente.
— Ela foi enterrada ontem! — exclamou, por fim.
— Mas por que eles a enterraram? — perguntei,
docemente. — Ela os estava perturbando? Quando é que
vão deixá-la sair lá de dentro?
— Rá... Você é muito engraçadinha — disse minha mãe,
com tom amargo, chateada pelo fato de a notícia não ter
me deixado espantada nem abalada. — Você precisa lhes
mandar um cartão de condolências.
— Mas como foi que isso aconteceu? — perguntei,
tentando deixá-la mais animada, — Ela prendeu a cabeça
nas lâminas da colhedeira de grãos? Foi soterrada no silo
por toneladas de milho? Ou será que foi atacada por uma
galinha?
— Nada disso — respondeu ela, aborrecida. — Não seja
ridícula! Você não lembra que ela já estava morando em
Chicago há um tempão?
— Ah... ha... é mesmo.
— Não, foi terrivelmente triste — afirmou ela, baixando a
voz alguns decibéis em sinal de respeito, e nos quinze
minutos que se seguiram me colocou a par de todo o
histórico clínico de Maisie Patterson. As misteriosas dores
de cabeça que ela começou a sentir de repente, o monte de
remédios que lhe receitaram para curar as dores de
cabeça, a tomografia computadorizada que teve de fazer
quando os remédios não adiantaram nada, os raios X, a
mudança de medicação, as torturas pelas quais passou no
hospital, sendo espetada e apalpada por especialistas
perplexos, os resultados que finalmente saíram, todos
negativos, assegurando que ela não tinha nada e,
finalmente, o Toyota vermelho que a atropelou de frente,
rompeu-lhe o baço e a fez entrar no outro mundo dando
cambalhotas.
Na quinta-feira, o dia começou mal e depois piorou.
Ao acordar sentindo-me péssima, não poderia saber que
a "previsão" de Megan estava destinada a se tornar
realidade naquele mesmo dia.
Se eu soubesse disso, talvez conseguisse sair da cama
com mais facilidade.
Do jeito que eu estava, era duvidoso saber se ia
conseguir me livrar do abraço quente e amoroso dos meus
lençóis.
Sempre achei difícil levantar da cama de manhã cedo.
Esse foi um dos legados da crise de depressão da
adolescência ou pelo menos era isso que eu gostava de
dizer.
Provavelmente era só um caso de preguicite aguda, mas
chamar de depressão fazia com que eu me sentisse menos
culpada.
Mal consegui me arrastar até o banheiro e, ao chegar lá,
tive um trabalhão para me obrigar a tomar banho.
Meu quarto estava congelando, não consegui achar
calcinhas limpas e não passara nenhuma roupa, portanto
fui obrigada a usar as mesmas roupas que usara para
trabalhar na véspera, as quais eu jogara no chão na noite
anterior; e também não achei nenhuma calcinha limpa no
armário de Karen nem no de Charlotte, então acabei indo
para o trabalho com a parte de baixo do biquíni.
Ao chegar à estação do metrô, vi que todos os jornais
bons já haviam esgotado e acabara de perder um trem.
Enquanto esperava pelo seguinte, achei que devia comprar
um pacote de gotas de chocolate na máquina da
plataforma e, pela primeira vez, a porcaria de máquina
funcionou direito. Comi as gotinhas deliciosas em dois
segundos e imediatamente comecei a me sentir culpada,
preocupando-me com o fato de que talvez estivesse com
algum distúrbio alimentar, para ficar colocando tanto
chocolate dentro do estômago assim, logo de manhã cedo.
Fiquei arrasada.
O tempo estava frio e úmido e parecia haver tão pouco
de bom no dia que se iniciava que me deu vontade de
estar em casa, em minha cama quentinha, assistindo a
Richard e Judy,* enchendo-me de batatas fritas e biscoitos,
com pilhas de revistas coloridas do lado.
Mesmo que Megan tivesse dormido apenas por cinco
minutos a noite inteira, ela conseguia se levantar a tempo
de passar a roupa com que ia para o trabalho. E se não
tivesse nenhuma calcinha limpa, conseguia sair de casa
com antecedência, a fim de dar uma passada em algum
lugar para comprar calcinhas novas. Não que fosse
possível Megan ficar sem calcinhas limpas, porque ela
sempre lavava as roupas todas muito antes de sua gaveta
de calcinhas ficar vazia.
Mas os australianos são assim mesmo. Organizados.
Trabalhadores. Capazes.
O dia prosseguia sem novidades. De vez em quando,
fantasiava que ia acontecer um desastre aéreo igual ao
que houve na cidade de Lockerbie, e que um avião ia
despencar do céu bem em cima do meu escritório. De
preferência bem em cima da minha mesa, só para garantir.
Eu não ia mais precisar ir para o trabalho durante séculos.
Poderia estar morta, é claro, mas e daí? Mesmo assim,
continuava sem precisar ir trabalhar.
A porta da sala do Sr. Simmonds ficava se abrindo a
toda hora, ele saía pisando duro com a bunda balançando
e jogava alguma coisa na minha mesa, ou na de Meredia,
ou na de Megan, e gritava: "quarenta e oito erros só nesta
folha! Você está melhorando!", ou "qual de vocês anda
comprando ações do Liquid Paper?", ou algo desagradável
desse tipo.
Ele jamais era cruel com Hetty, porque tinha medo dela.
Sua elegância servia para lembrar ao chefe que ele era
apenas um garoto da classe média que subira um pouco
na vida, mas ainda usava ternos de tecido sintético.
Mais ou menos às dez para as duas, quando eu estava
quase cochilando na mesa enquanto lia um artigo a
respeito de como o café na verdade pode ser muito bom
para a saéde, de novo, e Meredia estava roncando
baixinho na mesa dela, com uma imensa barra de
chocolate ao alcance da mão, um pequeno drama explodiu
no escritório. A retumbante previsão de Megan começou a
se tornar real.
De certo modo...
Megan entrou de repente, cambaleando, com o rosto
branco como o de quem viu um fantasma e sangue
escorrendo pela boca.
— Megan! — berrei, alarmada, pulando da cadeira. — O
que houve com você?
— Ahn? Que foi? — perguntou Meredia, acordando com
um solavanco, meio confusa, com um fino fio de baba
pendendo do lado esquerdo da boca.
— Não foi nada — respondeu Megan, mas parecia
hesitante, e se sentou sobre a minha mesa. O sangue
escorria pelo queixo e pingava na blusa.
— Preciso chamar uma ambulância — continuou Megan.
— Nossa, claro que não! — disse eu, em pânico,
entregando-lhe um monte de lenços de papel, que ficavam
empapados de sangue no mesmo instante. — Deixe que eu
faço isso! É melhor você descansar um pouco aqui.
Meredia, mexa esse rabo gordo e me ajude a recostá-la um
pouco!
— Não, não é para mim, idiota — disse Megan, irritada,
afastando Meredia para longe dela. — É para o cara que
voou da bicicleta e aterrissou em cima de mim.
— Ai, meu Deus! — exclamei. — Ele está muito
machucado?
— Não — respondeu Megan, lacônica —, mas garanto
que vai ficar depois que eu acabar com ele, ah, vai. Vão
precisar de um saco preto para levá-lo, e não de uma
ambulância.
— Onde ele está? — quis saber Meredia.
— Bem aí na frente, caído na rua, atrapalhando o
tráfego — respondeu Megan.
Ela estava, realmente, muito revoltada.
— Alguém esta cuidando dele? — perguntou Meredia,
com um lampejo de cobiça nos olhos.
— Um monte de gente! — berrou Megan. — Vocês,
ingleses, adoram um bom acidente, não é?
— Bem, é melhor eu ir até lá para dar uma olhada nele,
mesmo assim — disse Meredia, arremessando-se
pesadamente em direção a porta. — Pode ser que ele
esteja em estado de choque, e posso cobri-lo com o meu
xale.
— Não precisa não — reclamou Megan, com o sangue
brotando enquanto falava. — Alguém já jogou um casaco
em cima dele.
Mas Meredia já se fora. Ela sabia reconhecer quando
uma oportunidade batia na sua porta. Embora tivesse um
rosto bonito (apesar de muito gordo), fazia pouco sucesso
com os homens. Os únicos homens que regularmente a
perseguiam eram aqueles que tinham uma "quedinha" por
mulheres altamente obesas.
E, como Meredia costumava dizer, com dignidade,
"quem quer um homem que só a deseja por causa de seu
corpo?".
Só que a alternativa era quase tão ruim quanto isso, na
minha opinião. Ela gostava de conhecer homens quando
eles estavam se sentindo vulneráveis, tanto emocional
quanto fisicamente; cuidava deles, tornava-se
indispensável, oferecia todo o apoio que uma pessoa
fragilizada poderia precisar.
O único ponto fraco dessa tática é que, no instante em
que eles melhoravam o bastante para andar com as
próprias pernas, era exatamente isso que faziam. Davam
no pé e fugiam dos abraços amorosos de Meredia com o
máximo de velocidade que suas pernas recém-curadas
permitiam.
— Bem, é melhor eu cuidar deste caos aqui — disse
Megan, limpando a boca com a manga da blusa.
— Não seja ridícula! — exclamei. — Você vai ter que
levar uns pontos.
— Não, nada disso — retrucou ela, com cara de
deboche —, isso não foi nada. Você já viu o que as lâminas
de uma colhedeira de grãos podem fazer com os braços de
um homem quando...
— Ai, deixe de ser tão... tão... australiana! —
exclamei. — Você precisa levar pontos. Precisa ir até o
hospital. Vou com você.
Se ela achava que eu ia perder a oportunidade de ficar
uma tarde inteira longe do trabalho, podia tirar o
cavalinho da chuva.
— Não, é claro que você não precisa ir comigo — disse,
com cara azeda. — O que você acha que sou? Uma criança
pequena?
Nesse instante, a porta do escritório se abriu e Hetty
entrou, voltando do almoço. Pareceu adequadamente
estarrecida diante da mostra de Apocalipse Now que
tomara conta do rosto de Megan.
Dois segundos depois, o Sr. Simmonds também chegou,
igualmente vindo do almoço. Almoçaram separados, era o
que ele parecia peculiarmente interessado em demonstrar.
Parece que os dois tinham se encontrado por acaso na
porta do prédio, ao voltar do almoço. Não que alguém
estivesse ligando para isso.
Ele também pareceu estarrecido. Estava obviamente
preocupado o sangue de Megan que estava sendo
derramado, mas acho que ele ainda estava mais
preocupado com o lugar onde o sangue de Megan estava
sendo derramado. Sobre as mesas e pastas e telefones e
cartas e documentos do seu pequeno império precioso.
Disse que, evidentemente, era melhor que Megan fosse
até o hospital, e é claro que eu devia ir com ela também, e
quando Meredia voltasse para avisar que a ambulância
chegara, poderia ir ate lá, junto conosco. Quanto a Hetty,
era melhor que ela ficasse, porque ele precisava de alguém
para segurar as pontas ali no forte.
Enquanto eu desligava alegremente o meu computador e
pegava casaco, de repente me ocorreu que, seja o que for
que o Sr. Simmonds queria que Hetty segurasse,
certamente não era o seu forte.















CAPÍTULO 9
Ao entrarmos na ambulância, não havia lugar para
Meredia. Senti mal-estar por causa daquilo. Só que com
todo o equipamento, os dois para-médicos, o ciclista ferido,
Megan e eu, simplesmente não sobrava lugar para colocar
uma mulher do tamanho de um elefante. Sem se deixar
abater, ela avisou que ia pegar um táxi e se encontraria
conosco lá.
Enquanto saíamos do local do acidente, me senti assim
como uma espécie de pop star, talvez por causa das
janelas fumê e a pequena multidão de curiosos que
olhavam para nós.
Todos estavam relutantes em ir embora, agarrando-se
aos minutos finais da empolgação causada pelo acidente,
antes de voltar a cuidar de suas vidas, desapontados por
ver o drama se encerrar e ainda mais desapontados por
ninguém ter morrido.
— Ele parecia estar bem, não parecia? — comentou um
transeunte com outro.
— Parecia — foi a resposta entristecida.
Passamos horas sentados em cadeiras duras, no
ambulatório de acidentados completamente lotado,
sobrecarregado de vítimas e enlouquecido. Gente com
ferimentos muito piores do que os de Megan ou os de
Shane (o ciclista de quem, a essa altura, já estávamos
íntimos) se sentava conosco, igualmente à espera, com
firme resignação, segurando no colo os membros ou
órgãos que haviam perdido e conseguira recuperar. Macas
com gente morrendo passavam por nós, sendo
empurradas a toda velocidade. Ninguém sabia informar o
que estava acontecendo, nem quando Megan e Shane iam
ser atendidos. A máquina de café não estava funcionando.
A lanchonete estava fechada. O lugar estava congelando.
— Pensem só... — Fechei os olhos, em absoluto
êxtase. — Nós poderíamos estar no escritório agora.
— É mesmo — suspirou Megan, com pedaços de sangue
seco despencando do rosto enquanto falava. — Que sorte a
nossa, não é?
— Puxa. — Sorri. — Estava me sentindo tão infeliz hoje
cedo.Mal sabia que esta imensa curtição estava a caminho.
— Espero que me atendam logo — disse Shane,
parecendo ansioso e confuso. — Porque eles estão
esperando estes documentos lá no escritório central.
Falaram que era urgente. Alguém viu o meu rádio?
Shane era um mensageiro e estava cumprindo uma
missão de entrega, quando desviou de mau jeito e
atropelou Megan.
Ele continuou ali, cochilando, e de vez em quando se
sacudia, assustado, e voltava a falar da entrega urgente no
escritório central. Megan e eu trocamos olhares de
resignação quando ele tocou no assunto pela décima vez,
enquanto Meredia sorria para o rapaz, como se ele fosse
um garotinho. Aos poucos, começamos a achar que talvez
ele não fosse um palerma total e tivesse realmente sofrido
uma concussão cerebral.
A não ser por essas rajadas regulares de Shane, a
conversa era superficial.
— Bem, olhe pelo lado bom — sorri para Megan,
referindo-me a sua boca mutilada. — Você conseguiu o
corte que lhe prometeram. Só que aposto que não
imaginava que seria um corte nos lábios.
Diante disso, Meredia se levantou de um salto, como se
tivesse levado um tapa nas costas, e agarrou meu pulso,
enfiando-me as unhas.
— Meu Deus — sussurrou ela, fitando um ponto a sua
frente, com um brilho peculiar nos olhos. Um brilho de
loucura, essa é a palavra mais apropriada. Um brilho
louco nos olhos.
— Ela tem razão — disse, ainda com a voz sussurrada e
continuando a olhar para o ponto a meia distância. —
Meu Deus, ela tem razão!
— Eu tenho nome — reclamei, aborrecida com as suas
caretas. E o meu pulso doía.
— Ei, é verdade, você tem razão — disse Megan,
começando a rir. — Aii!... — gemeu ela quando viu que a
gargalhada fizera o corte começar a sangrar de novo.
— Que ruptura — continuou ela, rindo muito, com o
sangue jorrando pelos lados do rosto como se fosse as
cataratas do Niágara. Foi mesmo, consegui o meu grande
corte. Exatamente como ela previu. Só que não consigo ver
o que pode me acontecer de bom a partir deste fato.
— Talvez as coisas só comecem a ficar mais claras com o
tempo — disse Meredia, com a voz misteriosa, lançando
olhares mal disfarçados para Shane e piscando
sugestivamente para Megan, antes de apontar com a
cabeça de novo na direção de Shane.
— Se é que você me entende... — continuou Meredia,
aumentando a ênfase.
— Sim, acho que entendo — riu Megan, com
descontração.
Eu não tinha certeza se Meredia estava pensando em
Shane para si mesma ou para Megan, mas, pelas
experiências do passado, achei que Meredia o queria para
si mesma. Aquela situação tinha todo o jeito dela.
Embora, por direito, eu achasse que o rapaz deveria
ficar com Megan. Não fora ela que havia amenizado a sua
queda? Encarara todo aquele trauma de forma tão
corajosa que merecia um prêmio.
— Com isso, só falta a Hetty, além de você, Lucy — disse
Megan. — Logo, logo, vai ser a sua vez de ver a previsão se
tornar realidade.
— As palavras "saci" e "cruzar as pernas" significam
alguma coisa para você? — perguntei, rindo.
— Ah, você parece São Tomé — reprovou Meredia. —
Mas tem que admitir que isto tudo é muito significativo.
— Não, não acho. — respondi. — Não sejam tolas.
Podemos ajustar qualquer fato que aconteça para encaixá-
lo nas previsões que ouvimos, se quisermos.
— Tanto ceticismo em alguém tão jovem — comentou
Meredia, balançando a cabeça com tristeza.
— Alguém viu o meu rádio? — grasnou Shane, voltando
ao assunto. — Preciso falar com o meu supervisor.
— Não, não, não, querido, acalme-se, esta tudo bem —
disse Meredia, confortando-o enquanto forçava a cabeça
dele a repousar em seu ombro.
Ele resmungou uma espécie de protesto abafado, mas
não adiantou nada.
— Espere só — me avisou Meredia, de forma
ameaçadora, falando por cima da cabeça confusa de
Shane. — Você vai ver. Tudo vai se tornar realidade. E
então você vai se arrepender.
Sorri de forma resignada para Megan, na esperança de
que ela me retornasse o sorriso, porém, para meu grande
susto, ela não o fez. Estava muito ocupada, balançando a
cabeça em sinal de concordância com Meredia.
Caramba! Pensei, sentindo o estômago se apertar com o
choque. Será que o cérebro dela poderia ter sido afetado
pelo acidente? Isto é, Megan era possivelmente a pessoa
mais descrente que eu já conhecera na vida, incluindo a
mim mesma, e eu tinha orgulho de possuir os maiores
índices de descrença. Havia dias em que eu era capaz de
deixar no chinelo os principais descrentes do mercado.
Megan, assim como eu, era tão descrente em tudo que
nem mesmo se empolgava com Daniel. "Ele não me
engana, com os modos educados e aquela beleza toda",
disse, após vê-lo pela primeira vez.
O que acontecera com ela?
Evidentemente, ela não podia achar que as previsões
dela e as de Meredia haviam se concretizado, não é? E o
que é pior, ela não podia achar que, por causa daquilo, as
previsões de Hetty e as minhas iam se concretizar também,
não é?
Finalmente, quando acabou o estoque de vítimas de
infarto e outras pessoas à beira da morte no ambulatório,
as enfermeiras deram alguns pontos no rosto de Megan e
falaram que Shane não tinha concussão cerebral alguma,
estava só se fazendo de vítima.
E fomos, afinal, todos liberados.
— Onde você mora? — perguntou Meredia a Shane, ao
chegarmos ao estacionamento do hospital.
— Greenwich — disse ele, cansado.
Isso ficava ao sul de Londres. Muito ao sul de Londres.
— Que sorte — disse Meredia, com rapidez. — Podemos
tomar um táxi para casa, juntos.
— Mas... — pensei em protestar, lembrando a Meredia
que ela morava em Stoke Newington, que ficava a nordeste
de Londres, muito longe de Greenwich.
Ela me fitou com um olhar assassino, que matou meus
palpites na mesma hora.
— Mas eu preciso pegar a minha bicicleta — disse
Shane, afastando-se, assustado — e também tenho que
entregar estes documentos.
— Não seja tolo — disse Meredia, cheia de sorrisos. —
Você pode fazer tudo isso amanha. Vamos agora! Boa-
noite, meninas, vejo vocês amanha, no escritório. Se eu
estiver conseguindo andar murmurou, meio de lado, mas
alto o bastante para Shane ouvir e franzir as sobrancelhas.
— Vocês entendem o que quero dizer, não entendem? —
E olhou com malícia, gesticulando na direção da parte que
ficava abaixo do seu umbigo. E com uma piscada final,
muito significativa, lá se foi ela, arrastando o aterrorizado
Shane pelo braço.
Ele ainda olhou para trás, de forma suplicante, para
Megan e para mim, e o seu rosto formou um imenso
pedido de socorro, mas não havia nada que pudéssemos
fazer por ele.
Um cordeiro inocente ia ser sacrificado.
CAPÍTULO 10
No dia seguinte, o prédio ficou em polvorosa quando
Megan e Meredia notificaram a todas as pessoas do
mundo inteiro que eu ia me casar. Na verdade, elas não
contaram a todas as pessoas do mundo inteiro, avisaram
apenas Caroline, a recepcionista da empresa. Só que isso
era tão eficaz, provavelmente até mais eficaz, na verdade,
do que contar a todas as pessoas do mundo.
Meredia e Megan haviam decidido, não obstante a minha
falta de namorado, que as previsões da Sra. Nolan para
mim iam todas se tornar realidade, da mesma forma que
as previsões delas.
É claro que elas, mais tarde, se desculparam, e disseram
que não tinham feito aquilo com má intenção, que
estavam só brincando etc. etc., mas, a essa altura, o mal
já estava feito e a idéia já fora plantada na minha cabeça,
e comecei a achar que talvez um namorado fosse uma
coisa legal, uma alma gêmea, alguém com quem pudesse
me sentir segura, alguém com quem pudesse ter
intimidade.
Isso reabriu antigos anseios. Comecei a desejar que
alguma coisa acontecesse na minha vida, o que era
sempre um erro.
Só que tudo aquilo ainda estava muito longe de mim
quando o despertador tocou, e me senti péssima na
mesma hora.
A única coisa boa é que era sexta-feira.
Quando acordei, estava com tudo tão desorganizado
quanto na véspera. Ainda não tinha colocado minhas
roupas para lavar e, portanto, continuava sem calcinhas
limpas. Tive de usar uma cueca de Steven, que ele deixara
no meu quarto quando o forcei a cair fora de modo
inesperado, umas três semanas antes. Eu a tinha lavado,
com a vaga intenção de devolvê-la para ele e, por isso,
estava limpa. Pelo menos isso.
Na estação do metrô, a máquina de chocolate foi bem
cretina. Funcionou... de novo! As máquinas me odiavam.
Ela cuspiu um tablete com frutas e nozes, e não tive força
de vontade suficiente para não comê-lo. Estava ficando a
cada instante mais convencida de que estava sofrendo de
algum distúrbio alimentar.
As gotas de chocolate tinham só cento e setenta calorias,
enquanto um tablete de frutas com nozes tinha duzentas e
sessenta e sete. Ou será que eram duzentas e sessenta e
nove? Enfim, sei que tinha mais calorias. Eu estava
piorando, em vez de melhorar. No dia seguinte,
provavelmente, ia tentar pegar um daqueles tabletes
gigantescos, tamanho família, na máquina, meditei, e dali
a mais uma semana ia estar devorando uma caixa de dois
quilos de bombons antes do café da manhã.
Finalmente cheguei ao trabalho e estava muito, muito
atrasada, mesmo para os meus padrões.
Ao passar correndo pela recepção, quase fui derrubada
pelo Sr. Simmonds, que ia em alta velocidade na direção
do toalete. Sua bunda ia correndo uns três metros atrás
dele, tentando acompanhar sua pressa. Ele pareceu
nervoso, agitado, e seus olhos estavam um pouco
vermelhos. Na verdade, se achasse que aquele homem era
capaz de emoções humanas, teria jurado que ele estava
chorando. Alguma coisa obviamente o deixara chateado.
Meu astral melhorou.
Sorri alegremente para Caroline, a recepcionista, porque
a minha vida valia bem mais do que não fazê-lo. Ela ficava
ofendida à toa, e ia segurar todos os meus telefonemas
pessoais se achasse que eu a esnobara. Ela me retribuiu a
mesma alegria com um sorriso. Ao passar correndo, ouvi
quando me disse algo. Na verdade, a frase que ela me
lançou pareceu ser, estranhamente, "meus parabéns!",
mas eu estava ansiosa demais para descobrir qual o
desastre que se abatera sobre o Sr. Simmonds para parar.
Entrei voando no escritório, não mais preocupada com o
atraso. O Sr. Simmonds, pelo jeito, tinha peixes maiores
para fritar.
As marcas roxas haviam surgido de forma magnífica em
Megan, e um curativo branco cobria o lado direito do seu
rosto, perto do maxilar.
Parei na mesma hora quando reparei que Megan e
Meredia não estavam brigando. Na verdade, a imagem das
duas me deixou ainda mais confusa, pois conversavam
uma com a outra de forma civilizada.
Que estranho, pensei. Algum tipo de cessar-fogo devia
estar em andamento. Elas estavam juntas em volta dos
biscoitos. O cantinho dos biscoitos era uma área muito
popular para contatos. Sussurravam uma com a outra de
modo furtivo.
Era pouco provável que estivessem conversando sobre
os ferimentos de Megan ou a vida sexual de Meredia. Era
preciso um evento muito maior do que qualquer um
desses dois para unir Megan e Meredia.
O que significava que alguma coisa estava acontecendo.
Ótimo! Meu astral melhorou mais ainda. Eu adorava um
pouco de emoção. Talvez o Sr. Simmonds tivesse sido
demitido. Ou talvez a sua mulher o tivesse abandonado.
Alguma coisa boa assim, eu esperava.
Dei uma olhada em volta, por todo o escritório. Onde
estava a eficiente Hetty?
— Lucy! — exclamou Meredia, de forma dramática.
Como quase sempre fazia. — Graças a Deus você chegou!
Temos uma coisa que você precisa ouvir.
— Que foi? — quis saber, com um arrepio de expectativa
percorrendo-me a espinha. — É com você, Meredia? Você
se deu bem com Shane?
Uma sombra fugaz passou pelo rosto de Meredia, que
disse:
— Depois falamos a respeito disso. Não, a historia tem a
ver com a gente, aqui dentro.
— Sério? — arfei de excitação. — Logo vi que devia ter
acontecido alguma coisa... Acabei de passar pelo Ivor
Veneno no saguão e ele estava...
— Lucy, é melhor você se sentar — interrompeu Megan.
— O que houve? — quis saber, absolutamente morta de
curiosidade.
— Aconteceu uma coisa — disse Meredia, em um
sussurro dramático, feito para criar clima. — Uma coisa
que você deve saber.
— Bem, se eu devo saber, por que vocês não contam
logo de uma vez? — quase gritei.
— É a Hetty — disse Megan, com ar solene,
pronunciando as palavras pelo canto da boca que não
estava machucado.
— Hetty? — assobiei, incrédula. — Mas o que é que a
Hetty tem a ver com o Ivor Veneno? Ou comigo? Ai, meu
Deus, vocês não vão me dizer que ela está tendo um caso
com ele, vão?
— Não, não, não — respondeu Meredia,
estremecendo. — Não, é uma coisa boa. Ela não vem
trabalhar por uns dias, porque aconteceu uma coisa com
ela.
— Bem, então vocês se incomodariam de me contar o
que é essa coisa? — perguntei, rabugenta. — Ou vou ter
que ficar sentada aqui o dia todo, esperando vocês
desfiarem a história?
— Nossa! Tenha um pouco de paciência! — aconselhou
Meredia, não muito satisfeita.
— Conte logo a ela — disse Megan com a boca torta,
parecendo um gângster.
— Contar o quê? — perguntei, como já era de esperar.
— Hetty... — começou Meredia. E fez uma pausa. Só
para fazer suspense. Cristo, como ela era irritante!
— Hetty... — repetiu. Outra pausa.
Fiquei me controlando para não gritar.
— Hetty encontrou o grande amor de sua vida — entoou
Meredia, por fim.
Seguiu-se um silêncio. Daria para ouvir uma pluma cair
no chão.
— Sério? — consegui articular, com a voz rouca.
— Foi o que você ouviu — confirmou Meredia, com um
sorriso convencido. Olhei para Megan. Esperava um pouco
de sanidade e normalidade. Mas ela simplesmente
balançou a cabeça para a frente e deu o mesmo sorriso
convencido.
— Ela encontrou o grande amor da vida dela,
abandonou Dick e vai morar com Roger, de imediato —
completou Meredia.
— E Ivor Veneno ficou com o coração partido. — Megan
soltou uma gargalhada, dando um tapa na coxa magra e
dourada.
— Não seja ridícula — disse eu, com ar distante. — Ele
nem tem coração.
Explodiram mais gargalhadas de Megan e Meredia, mas
não consegui me juntar a elas.
— Acho que ele tinha o maior tesão pela Hetty — disse
Megan. — Argh, coitada dela, imagine só! Ele devia andar
por ai, para cima e para baixo, com o pau duro.
— Cale a boca, Megan — implorei —, senão vou acabar
vomitando!
— Eu também — disse Meredia.
— Então, deixe ver se entendi — disse eu, com a voz
fraca. — Roger é esse outro cara?
— Sim — sorriu Meredia.
— Mas a Hetty não faz esse tipo de coisa — disse eu.
Eu estava chateada e confusa. Isto é, Hetty realmente
não fazia esse tipo de coisa.
Bem, pelo menos ela não costumava fazer, disso eu
tinha certeza. Estava tudo errado. Hetty era estável,
responsável, confiável, inabalável e todas as outras
palavras terminadas com "ável". Não ficava por aí
conhecendo o grande amor da sua vida, abandonando o
marido e esse tipo de coisa. Ela não era assim.
Eu me senti tão angustiada e desorientada quanto me
sentiria se a Terra começasse a girar para o lado oposto e
o Sol nascesse no oeste, em vez de no leste, ou se eu
deixasse uma torrada tombar da mão e ela caísse no chão
com a manteiga virada para cima.
Hetty largar o marido contradizia tudo aquilo em que eu
acreditava como verdade absoluta. As fundações do meu
universo ficaram abaladas.
— Você não ficou feliz por ela? — perguntou Meredia.
— Quem é esse Roger? — perguntei, de repente. —
Quem é esse grande amor da vida dela?
— Espere só até ouvir — respondeu Meredia,
saboreando a informação.
— Sim, escute só — interrompeu Megan, também
sentindo um gostinho especial.
— O grande amor da vida dela é, nada mais, nada
menos, do que o irmão de Dick — explicou Meredia, com
um floreio.
— O irmão de Dick? — perguntei, em um murmúrio. As
coisas estavam ficando mais bizarras a cada instante. —
Mas... o que aconteceu? Ela já conhecia o sujeito por
todos esses anos e, subitamente, descobriu que o ama?
— Não, não, não... — explicou Meredia, sorrindo para
mim como se eu fosse uma criança levada. — É tão
romântico! Ela jamais o tinha visto, até uns três dias atrás,
e assim que os dois puseram os olhos um no outro, voila!,
um coup de foudre, l'amour, je t'adore,hã... humm... la
plume de ma tante... — e parou subitamente, pois o
estoque de frases em francês para descrever o amor de
Hetty havia acabado.
— Mas, como é que pode ela nunca ter se encontrado
com ele? — perguntei. — Ela está casada há anos!
E então, uma idéia me assaltou.
— Ah, não — disse eu, com temor. — Não acredito que
tenha sido desse jeito.
— De que jeito? — disseram Megan e Meredia, em
uníssono e ofegantes.
— Por favor, não me digam que ele é o irmão mais novo
de Dick, que andou viajando pelo exterior, talvez no
Quênia, ou em Burma, ou outro lugar assim, durante os
últimos vinte anos, como um personagem do livro Os
Últimos Dias do Rajá, e que voltou de repente, todo
bronzeado, com os cabelos louros soltos, ficou desfilando
por aí usando um terno de linho branco, sentando em
cadeiras de ratã, bebendo gim e olhando para Hetty com
os olhos lânguidos do tipo "vamos para a cama". Se for
isso, eu nao agüento. Seria o cúmulo do clichê.
— Francamente, Lucy — ralhou Meredia —, você tem
muita imaginação, sabia? Não, não foi nada disso.
— Ele não a presenteou com um bracelete de marfim? —
perguntei.
— Bem, se ele fez isso, ela não mencionou — afirmou
Meredia, meio em duvida.
— Ufa. — suspirei em sinal de alívio. — Ótimo!
— É o irmão mais velho de Dick — informou Meredia.
— Ótimo! — repeti. — Assim a coisa já foge um pouco do
lugar-comum.
— E Hetty jamais se encontrara com ele porque parece
que havia uma espécie de briga dentro da família —
continuou Meredia. — Dick e Roger ficaram sem se falar
por muitos anos. Em compensação, agora, se
transformaram em grandes amigos... embora, pensando
bem, talvez não, já que Hetty se apaixonou pelo outro...
Fiquei paralisada, olhando para as caras de felicidade e
empolgação das duas.
— O que há de errado com você, sua vaca desolada? —
quis saber Megan.
— Não sei — respondi. — Não acho certo.
— Claro que é — cantarolou Meredia. — A cartomante
falou que ela ia encontrar o grande amor da vida dela, e
agora ela encontrou mesmo!
— Mas está tudo errado — disse eu, desesperada. — Já
havia algo errado com Hetty e Dick. Estava na cara, pelo
jeito que ela ficou chateada no caminho de volta da Sra.
Nolan.
Meredia e Megan se sentaram, caladas e de cara feia.
— Em vez de resolver o problema com o marido —
continuei —, ela acreditou nas histórias da carochinha do
primeiro charlatão ou, no caso, da cartomante que
apareceu.
— Ela não é uma charlatã — interrompeu Meredia,
zangada. — Eu não a vi mudar de cor!
— Isso é camaleão, não charlatão — disse eu,
exasperada. — Enfim, ela ouviu a cartomante prever que
ia encontrar o grande amor da vida dela, então agarrou o
primeiro homem que encontrou, um homem que não teve
sequer a decência de usar um terno de linho e se sentar
em uma cadeira de ratã e, sem pensar nem sequer por um
segundo nas conseqüências, Hetty resolveu fugir com ele!
— Por falar nisso — acrescentei —, acho que estava
rolando urn flerte, ou algo assim entre ela e Ivor Veneno,
pelo jeito que ele está arrasado.
E fiz uma pausa, para o caso de uma das duas precisar
vomitar. Elas estavam pálidas, suadas, e esperei um
pouco, antes de continuar:
— Gente, não fizemos nada de errado em consultar a
cartomante, mas não era para levar as previsões a sério.
Era só para nos divertirmos um pouco, e não para
conseguirmos uma solução para os problemas verdadeiros.
As duas continuaram caladas.
— Vocês não enxergam isso? — implorei, diante delas,
mas me evitaram e desviaram os olhos para analisar os
sapatos. — Isso não é o certo para a Hetty.
— Como é que você pode saber? — perguntou
Meredia. — Por que você não tem um pouco de fé? Por que
não acredita na Sra. Nolan?
— Porque Hetty tem problemas reais com o seu
casamento respondi —, e eles não vão ser resolvidos só
porque ela quer acreditar que encontrou o grande amor de
sua vida. Isso é escapismo.
— Você está é apavorada — soltou Megan de forma
súbita e passional, com a boca torta. Ela parecia zangada
e seu rosto afogueado mostrava grande emoção. Com as
marcas roxas e o curativo, aquilo parecia uma cena de
Sons and Daughters ou Home and Away.*
— Apavorada com o quê? — perguntei, surpresa.
— Está apavorada para admitir que as previsões deram
certo para mim, para Meredia e Hetty, porque então vai
ser obrigada a admitir que a sua previsão também vai dar
certo.
— Megan — disse eu, já desesperada —, o que há com
você? Estou contando com você para ser a voz da sanidade
por aqui, a voz da razão!
Meredia se encrespou toda, zangada, e seu corpo
pareceu inchar de indignação, o que foi algo fantástico,
pois ela normalmente já parecia estar a ponto de explodir.
— OIhe, Megan — continuei —, você não pode estar
realmente acreditando em toda essa baboseira sobre
previsões! Diga que não acredita!
— Os fatos falam por si mesmos — disse ela, de forma
arrogante.
— É... — concordou Meredia, com desdém, agora mais
segura, depois que viu que Megan estava do seu lado.
Chegou a fazer beicinho. — Isso mesmo! Os fatos falam
por si mesmos. Portanto, é melhor encarar a verdade. Você
vai se casar!
— Nao agüento mais ouvir essa besteirada, — disse eu,
bem calma. — Não quero brigar com nenhuma de vocês
por causa disso, mas, no que me diz respeito, este assunto
está encerrado.
As duas trocaram um olhar engraçado (de
preocupação?... culpa, talvez?), que preferi ignorar.
Sentei-me à mesa, liguei o computador, resisti
bravamente a súbita e forte tentação de me enforcar e dei
início ao meu dia de trabalho.
Depois de algum tempo, reparei que as duas
continuavam sem fazer trabalho algum. Não que isso fosse
estranho, especialmente se considerando que o Sr.
Simmonds ainda não retornara. Mas, em vez de ficarem
dando telefonemas pessoais para a Austrália, folheando a
Marie Claire ou comendo o almoço antes da hora (coisa
que Meredia fazia, quase todos os dias, por volta de dez e
meia da manhã), elas simplesmente estavam sentadas, me
olhando de um jeito esquisito.
Parei de digitar e olhei para elas.
— O que foi? — perguntei, exaltada. — Por que vocês
duas estão tão estranhas hoje?
— Conte a ela — murmurou Meredia para Megan.
— Eu não — disse Megan, com um risinho sombrio. —
Eu não. Não mesmo! Foi idéia sua, então você é que vai ter
que contar a ela.
— Sua piranhazinha! — exclamou Meredia. — Aquilo
não foi idéia minha. Foi idéia nossa!
— Vá à merda! — berrou Megan. — Foi você que
começou com toda essa história!...
Meu telefone tocou, interrompendo a troca de
amabilidades. Consegui atender, sem tirar o olho das duas,
que já estavam avançando com tudo, uma contra a outra.
Eu detestava perder uma boa briga, e sempre podia contar
com Meredia e Megan para esse tipo de emoção. Era
engraçado ver o quanto o período de trégua e cordialidade
entre elas tinha sido curto.
— Alô? — atendi.
— Lucy — disse uma voz.
Ai, meu Deus! Era uma das amigas com quem eu dividia
o apartamento, a Karen. Ela parecia chateada. Eu devia
ter esquecido de deixar o cheque para pagar o gás, ou o
telefone, ou algo assim.
— Oi, Karen — disse bem depressa, tentando esconder o
nervosismo. — Olhe, desculpe eu ter esquecido de deixar o
cheque para a conta do telefone. Ou foi o gás? É que
cheguei muito tarde em casa ontem à noite e...
— Lucy, isso é verdade mesmo? — interrompeu ela.
— Claro que é verdade — repliquei, indignada. — Já
passava de meia-noite quando entrei e...
— Não, não, não — disse ela com impaciência. — Estou
perguntando a respeito do seu casamento.
A sala se inclinou ligeiramente para o lado.
— Como é que é? — disse baixinho. — Quem foi que
contou isso para você?
— A telefonista — explicou Karen. — E saiba que fiquei
muito decepcionada por saber da notícia através dela.
Quando é que você ia contar para mim e para Charlotte?
Eu achava que éramos as suas melhores amigas... Agora,
vamos ter de colocar um anúncio para arrumar uma nova
pessoa, e nós nos damos tão bem... E se a gente conseguir
uma pessoa horrível, que não beba e não conheça nenhum
gato? Não vai ser a mesma coisa sem você, e nós...
Ela continuava a falar, melancólica.
Megan e Meredia ficaram muito quietas de repente. As
duas estavam sentadinhas, completamente imóveis, com
cara de medo e culpa.
Cara de culpa? Karen falando sobre o meu casamento?
A insistência de Megan e Meredia sobre as previsões serem
verdadeiras? A Sra. Nolan prevendo que eu ia me casar?
E aquela culpa estampada no rosto delas!








CAPÍTULO 11
De repente, a ficha finalmente caiu.
Era tão ultrajante que eu mal podia acreditar.
Será que era mesmo possível que, pelo fato de elas
acharem que as previsões da Sra. Nolan para Meredia,
Megan e Hetty haviam se concretizado, as minhas
previsões também estavam destinadas a virar realidade?
Seria mesmo possível que aquelas duas idiotas haviam
saído por aí contando a todo mundo que eu ia me casar,
como se aquilo fosse um fato, e não a previsão de uma
taróloga?
A raiva tomou conta de mim. E a perplexidade. Como é
que elas podiam ser tão boçais?
Mas quem era eu para julgar? Minha vida era uma
sucessão de acontecimentos idiotas, um atrás do outro,
entremeados com algumas coisas totalmente ridículas e
uma ou duas que beiravam a insanidade. Só que eu tinha
a certeza de que jamais faria algo tão idiota quanto aquilo!
Apertei os olhos e depois olhei para elas. Meredia se
encolheu toda na cadeira, a covardia em pessoa. (É claro
que, quando digo "Meredia se encolheu toda", estou
falando de forma puramente metafórica.) Megan fechou a
boca, ou pelo menos um dos lados dela, de forma a provar,
com teimosia e descaramento, que ela não era assim tão
fácil de amedrontar.
Karen continuava a falar sem parar no meu ouvido,
soltando a matraca em alta velocidade:
— ...Acho que a gente poderia até arrumar um homem
para colocar no seu lugar, mas e se ele começasse a sentir
atração por uma de nós, e aí...
— Karen — disse eu, tentando encaixar alguma palavra
no meio da enxurrada.
— ...E ele ia acabar mijando fora do vaso e sujando o
banheiro todo, você sabe como os homens são...
— Karen — repeti, um pouco mais alto.
— ...É claro que ele podia ter alguns amigos bonitos, ou
quem sabe ele mesmo talvez fosse um gato, mas nós não
poderíamos mais ficar circulando pela casa sem roupa,
embora, se ele fosse um gato, talvez até quiséssemos fazer
isso, para...
— Karen! — berrei.
Ela calou a boca.
— Karen — disse, aliviada e feliz por ter conseguido
parar o trem descontrolado dos pensamentos dela. — Não
dá para conversar com você agora, mas ligo de volta assim
que puder.
— Imagino que seja o Steven — interrompeu ela. — Fico
feliz por isso, ele é um cara muito legal. Não sei por que
você terminou o namoro com ele, a não ser que quisesse
que ele a pedisse em casamento, e então planejou tudo. Se
foi assim, você foi muito esperta, Lucy. Não imaginava que
você fosse tão esperta, porque...
Desliguei o telefone. Tive de desligar. Não sabia mais o
que fazer.
Olhei para Meredia, depois para Megan, e em seguida de
volta para Meredia. Então desviei o olhar novamente para
Megan, só para mostrar que eu continuava atenta.
Depois de alguns segundos, eu disse:
— Era a Karen — disse, me fingindo de confusa. — Ela
me pareceu estar com a impressão de que vou me casar.
— Desculpe — murmurou Meredia.
— Sim, desculpe — acompanhou Megan.
— Desculpá-las pelo quê? — quis saber, com cara
amarrada. — Será que vocês poderiam ter a bondade de
me contar o que está acontecendo?
Isto é, eu tinha uma idéia já relativamente formada do
que estava acontecendo. Só que queria saber a história
toda, e também queria deixar as duas na posição pouco
confortável de terem de me explicar. De terem de me
contar da própria boca, em alto e bom som, na frente de
todo mundo, a exata natureza da estupidez das duas. A
porta se abriu e Catherine, da sala do diretor, entrou e
atirou um papel sobre a bandeja de entrada de
documentos.
— Lucy! — exclamou ela. — Que grande noticia, hein?
Mais tarde volto aqui para saber de todos os detalhes!
E saiu da sala novamente.
— Mas que po... — comecei a falar.
O telefone tocou.
Era Charlotte, a outra garota com quem eu dividia o
apartamento.
— Lucy — disse ela, ofegante. — A Karen acabou de me
contar! Quero que saiba que estou superfeliz por você. Sei
que a Karen disse que você é uma sacana, por não ter nos
contado nada antes, mas você deve ter tido suas razões.
— Charl... — tentei falar. Como acontecera com Karen,
porem, não houve jeito de encaixar nada no meio da
enxurrada de palavras.
— Lucy, estou tão feliz por você ter conseguido fazer com
que as coisas funcionassem na sua vida — continuou ela,
matraqueando. — Para ser franca, eu achava que você não
ia conseguir. Sei que eu sempre discordava quando você
ficava falando que ia acabar virando uma solteirona,
morando em uma quitinete com um aquecedor que não
funcionava direito e quarenta gatos, mas estava
começando a achar que era exatamente isso que ia
acontecer com você...
— Charlotte! — interrompi, zangada. Um aquecedor que
não funcionava direito, francamente. — Tenho que
desligar.
E bati o telefone na cara dela.
Na mesma hora, ele voltou a tocar.
Dessa vez era Daniel.
— Lucy — grasnou ele. — Diga-me que não é verdade!
Não se case com ele! Ninguém poderia amar você tanto
quanto eu.
Esperei que ele acabasse de falar e mantive a cara bem
séria.
— Lucy! — disse ele, depois de algum tempo. — Você
está me ouvindo?
— Sim — respondi de forma direta. — Quem lhe contou?
— Chris — disse ele, parecendo surpreso.
— Chris? — berrei. — Chris, o meu irmão?
— Hã... É... — disse o pobre Daniel. — Era segredo ou
algo assim?
— Daniel — tentei explicar. — Olhe, não posso explicar
tudo agora. Ligo para você assim que puder, o.k.?
— O.k. — concordou ele. — Eu estava só brincando
ainda há pouco. Na verdade estou muito conten...
Desliguei.
O telefone tornou a tocar.
— Uma de vocês duas, atenda, por favor — disse, de
cara feia.
Meredia pegou o fone.
— Alô — atendeu ela, nervosa.
— Não — disse, olhando com medo para mim. — Ela
não pode atender neste momento.
Uma pausa.
— Sim, pode deixar que eu digo — afirmou, desligando.
— Quem era? — perguntei, sentindo que aquilo tudo
parecia um sonho.
— Hã... eram os rapazes do almoxarifado. Querem tomar
um drinque com você, para comemorar.
— A situação está tão ruim assim? — perguntei, com a
cabeça transbordando de horror. — Vocês passaram e-
mails para todos os funcionários da empresa? Ou só para
algumas centenas dos meus amigos mais chegados?
Contem-me: como foi que o meu irmão soube?
— Seu irmão? — perguntou Megan, parecendo alarmada.
Meredia engoliu em seco e disse, nervosa:
— Lucy, nós não mandamos e-mails para ninguém. Juro!
— Não mandamos não — cantarolou Megan, rindo de
leve, de uma forma que, espero, para o bem dela,
mostrava alivio. — Não contamos a quase ninguém. Só
para a Caroline. Para a Blandina também, e...
— Blandina! — exclamei com rispidez. — Vocês
contaram para a Blandina. Bem, se contaram para a
Blandina, não precisamos de porcaria nenhuma de e-mail!
O mundo inteiro já deve estar sabendo. Provavelmente a
noticia já chegou a Marte. Na verdade, até a minha mãe já
deve estar sabendo.
Blandina era a relações-públicas da empresa. Fofoca era
o seu instrumento de trabalho, e também o ar que
respirava.
O telefone tornou a tocar.
— É melhor uma de vocês atender — disse em tom de
ameaça. — Se for mais alguém me dando os parabéns
pelas minhas núpcias iminentes, não vou ser responsável
pelos meus atos!
Megan atendeu.
— Alô? — disse ela, com um tremor nervoso na voz.
— É para você — avisou, entregando o fone para mim,
quase jogando-o na verdade, como se fosse uma batata
quente.
— Megan — sussurrei, mandando que ela tapasse o
bocal. — Não quero falar com ninguém. Não vou atender.
— É melhor você atender — disse ela, com ar de
derrota. — É a sua mãe.









CAPÍTULO 12
Olhei com ar de súplica para Megan, depois para o fone,
depois para Megan de novo.
Aquilo não era um bom sinal. É claro que ainda estava
muito cedo para alguém ter morrido naquele dia, não é? E
ela definitivamente não estava ligando para bater papo.
Minha mãe e eu nunca tivemos um relacionamento do tipo:
"vá em frente, mãe, pode deixar que não conto para o
papai não; ninguém acreditaria que você já tem uma filha
adulta; estou falando sério, esse vestido fica melhor em
você do que em mim; posso usar um pouquinho do seu
perfume? Você está mais bonita agora do que quando se
casou; venha, vamos tomar uns drinques, porque você é a
minha melhor amiga". Não, não tínhamos este tipo de
relacionamento. Portanto, aquilo só podia significar que a
minha mãe já soubera de toda a historia sobre eu estar
para me casar, e eu me sentia relutante em conversar com
ela. Para falar a verdade, estava é com medo dela.
— Diga a ela que não estou — sussurrei em desespero
para Megan.
Imediatamente ouviu-se uma erupção do outro lado da
linha, um ruído que parecia o de dois papagaios
discutindo, mas era a voz de minha mãe, berrando que
tinha ouvido tudo. Então, atendi.
— Quem morreu, mãe? — perguntei, para ganhar tempo.
— Você! — rugiu, com um senso de humor incomum
nela.
— Rá-rá... — disse eu, nervosa.
— Lucy Carmel Sullivan — ela parecia furiosa. —
Christopher Patrick acabou de me ligar e me contou que
você vai se casar. Se casar!
— Mãe...
— A que ponto maravilhoso nós chegamos, não é, em
que eu tenho saber de uma noticia dessas através de
fofocas!
— Mãe...
— É claro que fui obrigada a dizer para ele que já sabia
da novidade. Eu sabia que este dia ia chegar, Lucy.
Sempre soube. Desde menina, você sempre foi leviana e
irresponsável. Não podíamos contar com você para nada, a
não ser para fazer algo de errado. Só há um motivo para
uma mulher jovem se casar com essa correria toda. Isso
só acontece quando ela foi burra o bastante para se meter
em apuros. Apesar disso, você tem muita sorte de
conseguir que o sujeito assuma ficar ao seu lado, embora
que tipo de idiota inútil ele deve ser, só Deus sabe...
Eu não sabia o que responder a tudo aquilo, porque a
situação era até um pouco engraçada. Havia uma antiga
brincadeira em minha família, que dizia que tudo o que eu
fazia, não importa o que fosse, minha mãe achava sempre
errado. Eu já tinha tanta experiência com a sua
desaprovação e o seu desapontamento que aquilo nem me
incomodava mais.
Há muitos anos eu desistira de esperar que ela
aprovasse algum de meus namorados, apreciasse o
apartamento em que eu morava, demonstrasse satisfação
com o meu emprego ou gostasse de algum dos meus
amigos.
— Você é igualzinha ao seu pai — disse, com tom
amargo.
Pobre mamãe! Nada, coisa alguma do que eu fizesse era
bom o bastante para ela.
Quando me formei em secretariado, consegui emprego
na filial londrina de uma empresa multinacional e, logo no
meu primeiro dia de trabalho, a minha mãe me ligou, não
para me dar os parabéns nem para me desejar felicidades
na carreira, mas para me contar que as ações da
companhia haviam despencado dez pontos na bolsa!
— Mãe, me escute e deixe de fazer papel de tola —
interrompi, falando alto. — Eu não vou me casar!
— Já entendi. Então vai me envergonhar, me dando de
presente um neto ilegítimo! — exclamou ela, ainda
parecendo furiosa. — e onde foi que você aprendeu a se
dirigir à minha pessoa usando esses nomes? Então eu sou
uma tola agora, é?...
(Uns dez anos antes, ela visitara a irmã Francês, em
Boston, e voltara com o linguajar cheio de americanismos,
que pareciam muito estranhos em contraste com o seu
sotaque de Monaghan.)
— Mãe, não estou grávida e não vou me casar! — disse
eu bem depressa.
Ela fez uma pausa, confusa.
— Foi uma brincadeira. — Tentei parecer um pouco
mais amigável.
— Ah... foi só uma brincadeira... logo vi — e pigarreou,
voltando à carga: — No dia em que você chegar aqui em
casa e me contar que conheceu um rapaz decente e que
vai se casar com você, aí sim vou achar que é brincadeira.
Vou morrer de rir da piada. Vou chorar de tanto rir.
Para a minha surpresa, me senti subitamente muito
zangada. Sem mais nem menos, fiquei com vontade de
gritar com ela que jamais iria até a casa dela para contar
que eu ia me casar, que não pretendia nem convidá-la
para o casamento.
Evidentemente, o mais engraçado de tudo aquilo era que,
se acontecesse a improvável situação de eu acabar me
ligando a um homem respeitável, que possuísse emprego e
residência fixa, não tivesse ex-mulheres nem ficha na
polícia, eu não ia conseguir evitar de ficar exibindo-o para
a minha mãe, desafiando-a a tentar achar algum defeito
nele.
Porque embora eu às vezes sentisse uma espécie de ódio
dela, havia uma parte dentro de mim que queria receber
um tapinha carinhoso na cabeça e ouvir: "Boa menina,
Lucy!"
— Papai está em casa? — perguntei a ela.
— É claro que o seu adorado pai está aqui — respondeu
ela. — Onde mais ele poderia estar? Trabalhando?
— Posso falar com ele, por favor?
Se eu conseguisse conversar com papai, nem que fosse
por alguns instantes, ia me sentir um pouco melhor. Pelo
menos ia conseguir me consolar, convencendo-me de que
não era um fracasso total e que um dos meus pais me
amava. Papai era sempre bom nisso, em conseguir me
alegrar e fazer pouco caso da mamãe.
— Vai ser difícil falar com seu pai, Lucy — disse ela, com
jeito cansado. — Ele recebeu o auxílio — desemprego do
governo ontem, e, então, em que estado você acha que ele
está?
— Entendo — disse. — Ele está dormindo.
— Dormindo? — bramiu ela, de forma melancólica. — O
homem está quase em coma alcoólico. Acorda e volta a
dormir em seguida, está assim há vinte e quatro horas! A
cozinha está entulhada de garrafas vazias!
Eu não disse nada. Minha mãe era abstêmia radical, e
achava que qualquer um que bebia um drinque ocasional
era automaticamente alcoólatra. Quem a ouvia falar assim,
achava que papai bebia mais que do que Oliver Reed.*
— Então você não vai se casar, afinal? — perguntou
minha mãe.
— Não.
— E criou toda esta confusão por nada?
— Mas...
— Bem, vou desligar — avisou ela, antes que eu tivesse
a chance de pensar em algo bem mordaz para dizer. —
Não posso ficar aqui o dia inteiro jogando conversa fora.
Isso é bom para quem pode.
A fúria me inundou. Ela ligara para mim, afinal, mas,
antes que eu pudesse gritar isso, ela continuou a falar:
— Eu lhe contei, Lucy, que estou trabalhando em uma
lavanderia? — perguntou, mudando, de repente, para um
tom de voz mais conciliador. — Três vezes por semana.
— Ah, é?
— E ainda lavo toda a roupa aqui de casa lá, aos
domingos e quartas.
— Ah, é?
— Fecharam o minimercado onde eu trabalhava —
continuou ela.
— Ah, é?
Eu estava chateada demais para me dar ao trabalho de
conversar com ela.
— Então adorei quando consegui esse lugar na
lavanderia — continuou. — Esses trocados vêm bem a
calhar.
— Ah, é?
— Assim, dividindo o meu tempo entre a limpeza do
hospital, os arranjos de flores para São Domênico e a
organização dos retiros com o padre Colm, eu tenho me
mantido ocupada.
Eu odiava quando ela fazia isso. Era pior do que quando
estava azeda e horrível. Como é que eu podia mudar de
uma hora para outra e entrar em uma conversa civilizada
depois das coisas que ela acabara de me dizer?
— E com você, está tudo bem? — perguntou ela, meio
sem graça. "Melhor do que nunca, só por não ver a
senhora", me deu vontade de dizer, mas consegui evitar.
— Está tudo bem — respondi de modo vago.
— Não nos vemos há séculos! — disse ela, em um tom
que parecia alegre e um pouco provocante.
— É mesmo.
— Por que não aparece aqui em casa uma noite
qualquer, na semana que vem?
— Vamos ver... — respondi, começando a entrar em
pânico. Não conseguia imaginar nada mais horrível do que
passar uma noite na companhia de minha mãe.
— Quinta-feira — determinou ela, com firmeza. — Até lá
o dinheiro do seu pai vai ter acabado, e pode ser que ele
esteja sóbrio.
— Talvez.
— Quinta-feira — repetiu ela, de forma definitiva. —
Agora tenho que desligar. — Ela tentava parecer bem-
humorada e amigável, mas dava para sentir a sua
inexperiência no assunto. — Amanhã todos aqueles...
yuppies, ou sei lá como eles se chamam, vao vir de suas
casas ricas para fazer fila na loja, a fim de levar os
elegantes ternos Armada e as camisas de seda para lavar.
Você sabia que alguns deles levam até as gravatas paras
serem lavadas a seco? Vê se pode!... As gravatas. Não falta
mais nada! Bem, que bom para eles, que têm toda essa
grana para torrar...
— Bem, mãe, é melhor a senhora desligar então — disse
eu, com tristeza.
— Deus a abençoe. Nos vemos na quin...
Bati com o fone no gancho.
— E os ternos são Armani! — berrei para o aparelho.
Olhei para Megan e Meredia com os olhos cheios de
lágrimas. As duas haviam ficado sentadinhas, caladas e
com cara de bunda durante toda a conversa.
— Viu? Olhem só o que vocês fizeram, suas vacas
burras! — disse, surpresa pelas lagrimas quentes de raiva
que rolavam pelo meu rosto.
— Desculpe — sussurrou Meredia.
— Sim, Lucy, desculpe — murmurou Megan. — Foi idéia
de Elaine.
— Vá se foder, sua piranha! — disse Meredia, entre
dentes. — Meu nome é Meredia, e a idéia foi sua.
Ignorei as duas.
Elas saíram de perto, de fininho, chocadas e assustadas
de ver como eu ficara zangada. Na verdade, eu ficava
zangada com freqüência, só que nunca mostrava. Tinha
muito medo de as pessoas não gostarem de mim, por isso
quase nunca partia para confrontos. Isso tinha prós e
contras. Um dos contras é que, provavelmente, eu estava
criando uma úlcera que atravessaria o revestimento do
meu estômago antes dos trinta anos. Um dos prós de ser
assim é que, nas raras ocasiões em que eu dava vazão à
minha raiva, impunha um pouco de respeito.
Queria deitar a cabeça na mesa e dormir. Em vez disso,
porem, peguei uma nota de vinte libras na bolsa e a
coloquei dentro de um envelope, endereçando-o ao meu
pai. Se mamãe não estava mais trabalhando no
minimercado, o dinheiro por lá deveria andar mais curto
do que de costume.
A notícia de que eu não ia mais me casar se espalhou
pela companhia com a mesma rapidez que a versão
original, em que eu ia. Havia um fluxo constante de gente
chegando ao escritório, sob os mais variados pretextos.
Era um pesadelo! Grupos de pessoas ficavam em silencio
total, e então prendiam o riso quando eu passava por eles
no corredor. Parece que alguém do Departamento de
Pessoal começara a passar uma lista recolhendo dinheiro
para me dar de presente de casamento, e aconteceu uma
briga terrível quando começaram a devolver a quantia,
porque os valores que as pessoas exigiam de volta eram
muitos maiores do que a contribuição inicial, e, embora a
culpa não fosse minha, eu continuava a achar que, de
certa forma, era.
Aquele dia horrível parecia que ia durar para sempre,
mas, finalmente, chegou ao fim.
Era sexta à noite, e nas sextas à noite era tradicional
uma saída para "tomar umazinha" com o pessoal do
escritório.
Só que, naquela sexta, não.
Resolvi que ia direto para casa.
Não queria ver ninguém. Decidi levar para casa o
embaraço e a humilhação diante da pena que as pessoas
sentiam de mim por eu continuar solteira. Já estava cheia,
por ter sido a fofoca e a piada do dia.
Felizmente, às sextas à noite, Karen e Charlotte também
saíam para "tomar umazinha" com seus respectivos
colegas de trabalho.
Como "tomar umazinha" normalmente significava uma
média de sete horas de muita bebida, que acabavam nas
primeiras horas de sábado em alguma boate anônima para
turistas ou em um porão perto do Oxford Circus,* com
elas dançando em companhia de homens com ternos
baratos que usavam as gravatas enroladas na cabeça,
havia uma grande chance de eu ficar com o apartamento
todo só para mim.
Fiquei feliz por isso.
Sempre que havia um conflito em minha vida e eu saia
perdendo (e normalmente era isso o que acontecia),
entrava em hibernação.
Escondia-me das pessoas. Não queria conversar com
ninguém. Tentava limitar todo o contato com a raça
humana ao telefonema para a pizzaria e ao pagamento ao
entregador. E preferia que o entregador ficasse de capacete,
porque isso evitava o contato olho no olho.
Depois de um tempo, isso passava.
Após alguns dias, eu geralmente recuperava a energia
que precisava para tornar a botar a cara para fora, cair no
mundo e lidar com os outros seres humanos. Já
conseguira ajustar minha armadura de proteção, de forma
que já não era uma pé— no— saco chorosa e miserável. A
essa altura, conseguia rir dos meus infortúnios e
estimular os outros a fazer o mesmo, só para mostrar o
grande espírito esportivo que eu possuía.
























CAPÍTULO 13
Ao saltar do ônibus, vi que começara a chover e fazia um
frio terrível. Embora estivesse muda de tristeza e louca
para chegar ao abrigo representado pela minha casa,
passei em algumas lojas junto do ponto de ônibus, a fim
de comprar suprimentos para os meus dias de isolamento.
Primeiro, passei na banca de jornais, comprei quatro
tabletes de chocolate e uma revista bem colorida, produtos
que consegui adquirir sem precisar trocar uma única
palavra com o vendedor. (Essa era uma das vantagens de
morar no centro de Londres.)
Então, passei em uma loja de bebidas e comprei, com
um pouco de culpa, uma garrafa de vinho branco. Senti a
desconfortável certeza de que o homem sabia que eu
pretendia bebê-la toda sozinha, mas não sei por que
motivo fiquei assim tão preocupada com isso, pois ele
provavelmente não teria movido um músculo mesmo que
me visse ser esfaqueada na fila do caixa, desde que eu lhe
entregasse o dinheiro do vinho. Mentalidade de cidade
pequena era uma herança muito difícil de perder.
Depois, passei em uma loja de conveniência e, a não ser
por uma discussão básica a respeito de sal e vinagre,
consegui evitar qualquer contato humano e comprar um
saco de batatas fritas.
Em seguida passei na locadora, na esperança de pegar
um filme bem Lee e divertido com o mínimo de papo.
Mas o destino não quis que fosse assim.
— Lucy! — chamou Adrian, o dono da locadora,
parecendo todo animado e feliz por me ver.
Eu merecia que alguém chutasse o meu traseiro por
entrar ali! Esqueci que Adrian ia querer conversar comigo,
pois os clientes eram toda a sua vida social.
— Oi, Adrian — sorri, com discrição, na esperança de
acalmá-lo.
— Que bom ver você! — gritou ele.
Preferia que ele não tivesse gritado. Tinha certeza de que
as outras pessoas estavam todas olhando para mim.
Tentei me fazer menor dentro do discreto casaco marrom.
Bem depressa — muito mais depressa do que planejara
originalmente —, achei o filme que queria e o levei até o
balcão.
Adrian deu um largo sorriso.
Se eu não estivesse com o astral tão baixo, iria ter de
admitir que ele era realmente um doce de pessoa. Um
pouquinho entusiasmado demais apenas.
— Então, por onde tem andado? — perguntou, bem
alto. — Não vejo você há... sei lá, muitos dias!
Os outros clientes pararam de procurar filmes nas
prateleiras e olharam para mim, esperando a minha
resposta. Bem, pelo menos foi isso que me pareceu, mas
eu estava tão constrangida que chegava a estar paranóica.
Corei de vergonha.
— Então, Lucy, você colocou o pé na vida e foi à luta? —
perguntou Adrian.
— Fui — murmurei. (Cale a boca, Adrian, por favor!)
— E o que aconteceu? — quis saber ele.
— Levei um tombo. — E sorri de modo triste.
Ele soltou uma gargalhada.
— Você é muito divertida, Lucy, sabia disso?
Lancei-lhe um sorriso tenso.
Tinha certeza de que os outros clientes estavam todos
esticando o pescoço, olhando para mim e pensando:
"Ela?... Aquela coisinha insignificante? Tem certeza? Ela
não parece muito divertida."
— Bem, é muito bom tornar a vê-la — anunciou
Adrian. — O que está levando para assistir esta noite? Ah,
não! — Seu largo sorriso se transformou em cara de nojo e
ele quase jogou o filme de volta para mim. — Quatro
Casamentos e um Funeral? Não acredito.
— Sim, Quatro Casamentos e um Funeral — insisti,
empurrando o filme de volta para ele, por sobre o balcão.
— Mas, Lucy — argumentou, empurrando-o de volta
com firmeza para mim —, isso é uma bosta sentimental.
Eu sei das coisas. Que tal Cinema Paradiso?
— Já assisti — informei-lhe. — Por recomendação sua.
Foi naquela noite em que você não me deixou levar
Sintonia de Amor.
— Ahá! — disse ele, com ar de triunfo. — Mas que tal
levar Cinema Paradiso — Versão do Diretor?
— Também já vi.
— Jean de Florette? — perguntou ele, com esperança.
— Já vi.
— Cyrano de Bergerac?
— Que versão?
— Qualquer uma.
— Já vi todas.
— A Doce Vida?
— Já vi.
— Algum filme do Fassbinder?
— Não,Adrian — insisti, lutando para não entrar em
desespero, mas tentando parecer firme. — Você nunca me
deixa levar nada do que quero! Já vi todos os filmes cult e
os estrangeiros que você tem na loja. Por favor, por favor,
só desta vez, deixe-me assistir a alguma coisa bem leve!
— E que seja falada em inglês! — acrescentei, depressa,
antes que ele tentasse achar algum filme leve com som
original em sueco.
Ele suspirou.
— Bem, está certo. Vá lá... Quatro Casamentos e um
Funeral então. E o que comprou para lanchar mais tarde?
— Hã?... — disse eu, pega de surpresa pela mudança de
assunto abrupta.
— Deixe-me ver suas sacolas — pediu ele.
Aquele era o ritual pelo qual o Adrian e eu normalmente
passávamos. Certa vez, há muito tempo, ele me confessou
que o seu trabalho lhe trazia sensação de isolamento.
Contou que jamais fazia as refeições no mesmo horário
que todo mundo. E o que o fazia sentir que ainda
pertencia ao mundo real era o fato de manter contato com
o pessoal que trabalhava no horário comercial, saber como
eles passavam as noites e, mais especificamente, o que
comiam.
Normalmente eu tinha muita afinidade com ele, mas,
naquela noite, eu queria dar o fora dali, me desligar do
mundo e ficar sozinha com o meu chocolate e o meu vinho,
para poder curtir a ausência total de qualquer ser humano.
Além disso, estava com vergonha do nível elevado de
açúcar, da gordura saturada, das poucas proteínas e das
poucas fibras que havia nas minhas compras.
— Já sei — disse ele, pesquisando minhas sacolas. —
Chocolate, batatas fritas, vinho. O chocolate derrete se
você deixá-lo junto das batatas, sabia? Você está meio
deprimida?
— Acho que sim — respondi, ensaiando um sorriso na
tentativa de ser educada. Enquanto isso, cada átomo do
meu corpo estava louco para se ver em casa, com a porta
da rua trancada atrás de mim.
— Pobrezinha — disse ele com ar gentil.
Novamente tentei sorrir, mas não consegui. Por um
instante pensei em contar a ele toda a confusão do meu
suposto casamento, mas não tive forças.
Adrian era um doce. Realmente, um doce.
E bonito, reparei, olhando de lado.
Eu tinha a vaga impressão de que ele gostava de mim.
Talvez eu devesse analisá-lo sob esse ângulo, pensei,
com pouco entusiasmo.
Quem sabe era isso que a Sra. Nolan quis dizer quando
me falou que, à primeira vista, talvez não reconhecesse o
meu futuro marido, ou sei lá exatamente do que ela o
chamou.
Com um pequeno tremor de irritação, vi que até eu
estava começando a acreditar na Sra. Nolan, e que era tão
idiota quanto Megan e Meredia.
Zangada, resolvi me mancar, pois não ia me casar com
ninguém, muito menos com Adrian.
Jamais daria certo.
Para começar, havia a questão financeira. Não sabia ao
certo o quanto Adrian ganhava com a loja, mas não devia
ser muito. Certamente não era muito mais do que a
mixaria que eu ganhava. É claro que eu não era uma
mercenária, mas, fala sério, pensei, como é que a gente ia
poder manter uma família, mesmo com os salários
somados? E quanto aos nossos filhos? Adrian parecia
trabalhar vinte horas por dia, sete dias por semana, de
forma que as crianças não iam nem conseguir ver o pai.
Na verdade, era capaz de nem mesmo eu conseguir vê-lo
o bastante para que ele conseguisse me engravidar.
Mas enfim...
Adrian digitou o número de minha conta, que sabia de
cor, e me avisou que eu estava devendo uma multa por
um filme que alugara há dez dias e ainda não devolvera.
— Sério? — perguntei, empalidecendo ao pensar na
quantidade de dinheiro que devia, e no medo de talvez
jamais conseguir sair da loja.
— Sério — respondeu ele, com ar preocupado. — Você
não costuma fazer isso, Lucy.
Ele tinha razão. Eu jamais fazia nada arriscado. Morria
de medo de deixar alguém chateado ou levar um fora.
— Ai, meu Deus! — exclamei, alarmada. — Eu nem me
lembro de ter alugado alguma coisa aqui nos últimos
quinze dias! Que filme foi?
— A Noviça Rebelde.
— Ah... — disse, preocupada. — Então não fui eu. Deve
ter sido a Charlotte, usando o meu cartão.
Fiquei desanimada. Isso significava que eu ia ter de
chamar a atenção de Charlotte por se fazer passar por
mim. E ainda ia ter de arrancar dinheiro dela para pagar a
multa. Arrancar alguns dentes dela seria muito mais fácil.
— Mas por que A Noviça Rebelde? — quis saber Adrian.
— É o filme favorito dela.
— Sério mesmo? Ela tem algum problema?
— Não — respondi, na defensiva. — Ela é um doce de
pessoa.
— Ah, fala sério! — zombou Adrian. — Ela deve ser meio
tapada.
— Não é, não — insisti. — Simplesmente é muito
jovem. — E talvez fosse mesmo um pouco tapada, pensei,
mas não havia necessidade de dizer isso a Adrian.
— Se ele tem mais de oito anos, já não está mais na
categoria de "muito jovem" — bufou ele. — Que idade ela
tem?
— Vinte e três — murmurei.
— Então já está grandinha para saber das coisas —
afirmou ele. — Aposto que ela tem um edredom cor-de-
rosa e chinelos no formato de Mr. Blobby * — acrescentou,
torcendo a boca com nojo. — Deve adorar crianças e
animais, e acorda bem cedo todos os domingos para
assistir a seriados açucarados na tevê.
Se ele soubesse o quanto chegou perto...
— Dá para dizer muita coisa a respeito de uma pessoa
só pelo filme que ela escolhe — explicou Adrian. — De
qualquer modo, por que ela usou o seu cartão?
— Porque você fechou a conta dela. Lembra?
— Ela não é a loura que levou Antes Só do que Mal
Acompanhado para a Espanha, é? — perguntou Adrian,
assustado, elevando a voz. Parecia indignado ao perceber
que emprestara um dos seus filmes a uma garota horrível,
que levara o precioso bebê através da Europa, e ainda se
recusou a pagar a multa na volta. E que, de algum modo,
as sanções comerciais que ele havia imposto contra
Charlotte haviam sido violadas.
— Sim, é ela mesma.
— Como é que pode eu não tê-la reconhecido? —
perguntou, parecendo aborrecido.
— Não esquenta, não esquenta — disse eu, de forma
tranqüilizadora, torcendo para que ele se acalmasse e me
deixasse ir para casa. — Vou lhe trazer o filme. E vou
pagar a multa.
Eu teria concordado em pagar qualquer coisa só para ir
embora.
— Não. Simplesmente o traga de volta — repetiu. — É
tudo o que quero.
Fui embora. Estava exausta. Não adiantou nada não
querer conversa com nenhum ser humano.
Mas eu não ia falar com mais ninguém naquela noite,
decidi.
Não ia conseguir falar com mais ninguém naquela noite.
Resolvera me cercar, fazendo um voto de silêncio.
Embora, pelo jeito, o voto de silencio é que parecia estar
me cercando.










CAPÍTULO 14
O apartamento estava uma bagunça terrível. A cozinha
parecia um pandemônio, com pratos sujos e panelas
empilhadas na pia, formando uma torre instável. O lixo
precisava ser levado para fora, as grades dos aquecedores
estavam cobertas de roupas para secar, duas embalagens
de pizza jaziam atiradas no chão da sala, perfumando o ar
com cebola e pepperoni, e a geladeira estava com um
cheiro estranho quando abri a porta para guardar o vinho.
Embora o estado do lugar tivesse me deixado ainda mais
deprimida do que já estava, não consegui reunir forças
para fazer nada além de enfileirar as embalagens de pizza
ao lado da lata de lixo.
Pelo menos eu estava em casa.
Enquanto circulava cautelosamente pela cozinha, em
busca de um prato limpo para colocar as batatas fritas, o
telefone tocou. Antes de pensar no que estava fazendo,
atendi.
— Lucy? — disse a voz de um homem.
Ao menos, por um instante, achei que era um homem.
Mas compreendi então que era apenas Daniel.
— Oi — disse eu, tentando parecer educada, mas me
xingando por ter atendido. Ele, evidentemente, estava
ligando só para zoar da história maluca sobre o casamento
e a taróloga.
— Oi, Lucy — disse ele, com um tom de voz amigável e
preocupado. — Como você está?
Eu tinha razão. Ele definitivamente ligara para me zoar.
— O que quer? — perguntei, com frieza.
— Liguei só para saber como você estava — respondeu
ele, fingindo surpresa —, e muito obrigado pela acolhida
calorosa.
— Você está ligando só para me zoar — disse eu em um
impulso.
— Não estou, não — afirmou ele. — Sério!
— Daniel — suspirei —, é claro que está! Sempre que me
acontece alguma coisa desagradável, você liga para me
zoar. Da mesma forma, quando alguma coisa desagradável
acontece com você, eu fico rouca de tanto rir. Essas são as
regras do jogo.
— Não, não é bem assim — reclamou ele, de modo
gentil. — Não posso negar que você parece se divertir
muito quando me vê quebrar a cara, mas não é verdade
que eu fique rindo dos seus infortúnios.
Uma pausa.
— Reconheça! — disse ele, com simpatia. — Se fosse
assim, eu não iria fazer outra coisa na vida a não ser rir de
você.
— Adeus, Daniel — disse, com frieza, preparando-me
para desligar.
— Espere aí, espere, espere, Lucy! — gritou. — Foi
brincadeira! Puxa vida — murmurou, em seguida. — Você
é muito mais legal quando está com o senso de humor
ligado.
Eu não disse nada, porque não tinha certeza sobre se
devia ou não acreditar que ele estava brincando. Andava
muito sensível a respeito da aparentemente absurda
quantidade de desastres que aconteciam comigo. Morria
de medo de ser ridicularizada, ou, pior ainda, de alguém
ficar com pena de mim.
O silêncio continuou.
Que desperdício de tarifa telefônica, pensei, com tristeza.
Então tentei me recompor. A vida já era ruim o bastante,
pensei. Não havia necessidade adicional de eu me arrasar
por causa de palavras que nem foram ditas em um
simples telefonema.
Para passar o tempo, comecei a folhear minha revista.
Achei um artigo sobre a irrigação dos tecidos intestinais.
Argh, pensei, que coisa nojenta! Essa reportagem deve
estar ótima!
Então, comi dois tabletes de chocolate. Um só não foi o
bastante.
— Ouvi dizer que você não vai mais se casar — disse
Daniel, finalmente, depois que o silêncio já se esticara
demais.
— Não, Daniel, eu não vou me casar — concordei. —
Espero que tenha se divertido pelo fim de semana todo.
Agora tenho que desligar. Tchau!
— Lucy, por favor! — implorou ele.
— Daniel — interrompi, com ar cansado —, não estou a
fim desse papo, sério mesmo.
Não queria conversa com ninguém, muito menos
arrumar discussão.
— Sinto muito — disse ele, com tom de desculpas.
— Sente mesmo? — perguntei, desconfiada.
— Sinto — confirmou ele. — De verdade.
— Ótimo! — disse eu. — Agora eu realmente preciso
desligar.
— Você continua pau da vida comigo — disse ele. — Dá
pra perceber.
— Não, Daniel, não estou, não — disse, sem forças. —
Simplesmente quero que me deixem em paz aqui no meu
cantinho.
— Ah, não! — disse ele. — Isso quer dizer que você vai
sumir, agarrada a um pacote de biscoitos, até o fim da
semana que vem?
— Talvez — ri um pouco. — A gente se vê daqui a uma
semana.
— Vou ligar de vez em quando, para fazer você se virar
na cama — disse ele. — Não quero que fique cheia de
assaduras novamente, de tanto ficar deitada.
— Obrigada.
— Não... Escute, Lucy — pediu ele. — Por que não sai
comigo amanhã à noite?
— Amanhã à noite? — perguntei. — Sábado à noite?
— É...
— Mas, Daniel, mesmo que eu estivesse a fim de sair
amanhã à noite, o que não é o caso, certamente não sairia
com você — expliquei.
— Ah, sei...
— Sem querer ofender — continuei, com gentileza —
mas sábado à noite... Esse é o dia em que a gente sai para
ir a festas e conhecer homens interessantes, não para
encontrar velhos amigos. Para a gente fazer isso Deus
inventou as segundas à noite.
Um pensamento alarmante subitamente me ocorreu.
— Onde você está? — quis saber, desconfiada.
— Hã... estou em casa — respondeu ele, parecendo
envergonhado.
— Em uma sexta à noite? — perguntei, espantada. — E
você quer sair comigo em um sábado à noite? O que houve?
Nesse instante eu descobri. E o um astral melhorou na
mesma hora, de forma visível.
— Ela largou você, não foi? — disse eu, com voz
agradável. — Aquela tal de Graça finalmente recuperou o
juízo. Se bem que admito que nem pensava que ela tivesse
algum juízo para recuperar.
Eu sempre fazia comentários desagradáveis a respeito
das namoradas de Daniel. Achava que qualquer mulher
que fosse burra o bastante para se envolver com um cara
tão obviamente paquerador e cauteloso na hora de
assumir compromissos, como era o caso de Daniel,
merecia todas as tolices que alguém dissesse a seu
respeito.
— E agora você não gostou de eu ter ligado? —
perguntou ele, com tom gentil. — Não foi melhor do que
me deixar falando com a secretária eletrônica?
— Sim, obrigada, Daniel — disse eu, sentindo-me
subitamente melhor. — Você tem muita consideração.
Abrir o coração sempre ajuda a piorar as coisas —
continuei, irônica. — O que aconteceu?
— Ah — disse ele, de forma vaga —,uma dessas coisas
que acontecem. Eu lhe conto amanhã à noite, quando nos
virmos.
— Daniel — disse, com voz carinhosa —, a gente não vai
se ver amanhã à noite.
— Mas, Lucy — argumentou ele —, eu até já reservei a
mesa em um restaurante.
— Mas, Daniel... — contra-argumentei — ...você não
devia ter feito isso sem me consultar antes. Você sabe
como me astral é instável. Nesse momento não estou nem
um pouco divertida.
— Mas sabe o que é...? — explicou ele —, eu tinha feito
essa reserva há muito tempo, era para ir ao restaurante
com a Graça, mas como ela e eu não estamos mais
namorando...
— Ah, entendi — disse eu. — Você não quer
especificamente que eu vá com você. Precisa só de alguém
que vá. Bem, isso não deve ser difícil de conseguir, se
considerarmos o quanto as mulheres adoram você.
Embora, francamente, eu não consiga entender por que
elas...
— Não, Lucy — interrompeu ele. — Eu quero que você,
especificamente, vá comigo.
— Desculpe, Daniel — disse, com tristeza —, mas estou
muito deprimida.
— Mas a notícia de a minha namorada ter me largado
não deixou você mais animada? — perguntou ele.
— Sim, claro que sim! — respondi, começando a me
sentir culpada. — Só que não consigo encarar a idéia de
sair.
Foi nesse momento que ele lançou a cartada final:
— É que é meu aniversário — disse ele, com a voz sem
expressão.
— Não, o seu aniversário é só na terça-feira — disse eu,
bem depressa.
Esqueci que era o aniversário dele, mas, rapidinho, já
estava com a resposta pronta. Tinha muita prática em
escapar de coisas que não estava a fim de fazer, como
dava para perceber.
— Mas eu queria que você fosse comigo nesse
restaurante em particular — disse ele, tentando me
convencer. — É tão difícil de conseguir uma mesa lá...
Ah, Daniel — disse, começando a ficar desesperada. —
Por que está fazendo isso comigo?
— Você não é a única que pode se sentir péssima,
sabia? — disse ele, baixinho. — Você não tem o monopólio
da tristeza.
— Puxa, desculpe, Daniel — e me senti culpada e
magoada —, você está de baixo astral?
— Bem, você sabe como é... — disse ele, ainda
parecendo quieto demais e derrotado. E selou meu destino,
perguntando:
— Alguma vez eu a deixei sozinha quando você estava
nesse estado, Lucy?
— Isso é chantagem — disse eu, com raiva. — Tudo bem,
eu saio com você.
— Ótimo! — reagiu ele, mais alegre.
— Você está mal de verdade? — quis saber. Eu vivia
interessada no desespero alheio. Assim, podia comparar e
fazer um contraste com a minha própria situação, só para
não me sentir tão diferente dos outros.
— Estou sim — confirmou ele, com ar pesaroso. — Você
também não ficaria se estivesse sem saber onde conseguir
alguém para transar?
— Daniel — disse, ultrajada. — Seu canalha! Eu devia
saber que você estava só fingindo estar na fossa. Você não
tem uma única fibra de emoção sincera no corpo.
— Brincadeira, Lucy, foi só uma brincadeira — disse ele,
de modo suave. — Esse é só o meu jeito pessoal de lidar
com coisas desagradáveis.
— Nunca sei quando você está brincando e quando está
falando sério — suspirei.
— Nem eu — concordou ele. — Agora, quero lhe contar
sobre esse maravilhoso restaurante aonde vou levar você.
— Você não vai me levar a lugar nenhum. — Senti um
certo desconforto. — Falando desse jeito, fica parecendo
que vamos ter um encontro de namorados, o que não é o
caso. Você quer me falar do restaurante aonde você está
forçando a barra para eu ir.
— Tudo bem, desculpe — concordou ele. — Vou lhe
contar sobre o restaurante aonde eu estou forçando a
barra para você ir.
— Ótimo — disse. — Assim é melhor.
— O nome dele é Kremlin.
— O Kremlin? — perguntei, parecendo alarmada. —
Quer dizer que é um restaurante russo?
— Obviamente, sim — confirmou ele, com um pouco de
ansiedade na voz. — Isso tem algum problema?
— Sim — respondi. — O fato de ser um restaurante
russo não quer dizer que vamos ter que esperar em uma
fila durante horas e horas e horas a fio, até conseguir
comer? Em uma temperatura abaixo de zero? E que,
embora o cardápio mostre um monte de comidas
deliciosas, a única coisa que vão estar servindo é nabo cru?
— Não, nada disso, sério — protestou ele. — Não vai ser
nada desse tipo. O restaurante é pré-Revolução, e isso
prova que a comida é maravilhosa. Vamos ter caviar,
vodca com diversos sabores e muito luxo. Você vai adorar!
— É bom mesmo — disse eu, com a voz pesada. — Mas
continuo sem entender por que você está tão interessado
que eu vá. Que tal convidar a Karen ou a Charlotte? As
duas estão a fim de você. E ia ser muito mais divertido
com qualquer uma delas. Ou se você levasse as duas,
pensando melhor. Não gostaria de um flertezinho para
temperar o borscht? Ou aproveitar o seu blinis a três?
— Não, obrigado — disse ele, com firmeza. — Chega de
ferimentos! Vou dar um tempo com as mulheres.
— Você? — gritei. — Não acredito! Dar em cima das
mulheres é tão natural para você quanto respirar.
— Você faz um juízo tão baixo da minha pessoa, Lucy —
disse ele, achando graça. — Agora, sério mesmo... Eu
preferia ir com alguém que não estivesse a fim de mim.
— Bem, posso não ser muito boa para a maioria das
coisas, mas, com relação a isso, sirvo como uma luva para
você — comentei, em um tom quase alegre.
Parece que eu conseguira me animar um pouco.
— Ótimo! — disse ele.
Houve uma pequena pausa.
De repente, ele tornou a falar:
— Lucy... — disse, um pouco sem graça. — ...Posso lhe
perguntar uma coisa?
— Claro.
— Bem, não que seja importante nem nada — explicou
ele —, é que estou um pouco curioso para saber... hã...
Por que você não está a fim de mim?
— Daniel! — disse, com cara de nojo. — Você é patético!
— Eu só queria saber o que estou fazendo de errado... —
protestou ele.
Desliguei.
Mal conseguira colocar as batatas fritas em um prato e o
telefone tornou a tocar, só que desta vez fui esperta e
deixei a secretária eletrônica atender por mim.
Não me importava quem fosse, eu não ia atender.
— Hã... hum... aqui fala a Sra. Connie Sullivan. Estou
ligando para falar com a minha filha, Lucy Sullivan.
Era a minha mãe.
Quantas Lucys será que ela achava que moravam no
meu apartamento?, pensei, com irritação. Ao mesmo
tempo, uma sensação de alegria me inundou por eu ter
escapado daquela furada! Sentia um alívio total por não
ter atendido ao telefonema. Então, o que será que a minha
velha queria?
O que quer que fosse, ela não parecia muito à vontade
ao compartilhar o assunto com a secretária:
— Lucy, meu amor... é... hum... é... hã... sou eu, a
mamãe!
Ela me pareceu um pouco humilde. Sempre que
chamava a si mesma de "mamãe" era sinal de que estava
querendo ser gentil. Estava telefonando, provavelmente,
para se desculpar, a contragosto, por ter sido tão cruel
comigo naquele mesmo dia, mais cedo. Esse era o
comportamento usual dela.
— Lucy, meu amor, eu... hã... acho que talvez tenha sido
um pouco dura demais com você ao telefone hoje. Se fui,
isso só aconteceu porque quero o melhor para você.
Eu ouvia tudo com a boca torta e um expressão de
desdém.
— Eu tinha que telefonar. Fiquei com isso na cabeça —
continuou ela. — É que fiquei um pouco chocada, entende,
por pensar que você poderia estar... com problemas... —
Ela sussurrou "com problema", para o caso de alguém de
fora ouvir inadvertidamente a sua mensagem e
testemunhar uma idéia tão suja quanto aquela sendo
proferida.
— Bem, eu a vejo na quinta que vem, e não se esqueça
de que quarta é um dia sagrado, é o início da Quaresma...
Levantei os olhos para o teto, mesmo sabendo que não
havia ninguém ali para me ver fazendo aquilo, e voltei para
a cozinha, a fim de pegar um pouco de sal. Eu não queria
admitir nem um pouco melhor sabendo que a minha mãe
ligara e, de certa forma, pedira desculpas.
Comi as batatas, comi os chocolates, assisti ao filme e
fui para a cama cedo. Não bebi o vinho, mas talvez devesse
ter feito isso, porque dormi muito mal.
Pareceu, a noite toda, que havia gente entrando e saindo
do apartamento. A campainha tocou; portas abriram e se
fecharam; havia no ar um cheiro de torradas sendo
preparadas; "Como resolver o problema de Maria" * vinha
da sala da frente; risinhos abafados vinham da cozinha;
tropeções e ruídos de mobília caindo vinham do quarto de
alguém; houve mais risadinhas, dessa vez não tão
abafadas; barulhos na gaveta dos talheres mostravam que
alguém estava procurando alguma coisa, provavelmente
um saca-rolhas, e havia risos masculinos.
Essa era uma das desvantagens de ir para a cama mais
cedo em uma noite de sexta-feira em um apartamento
onde as duas outras ocupantes saíram e voltaram bêbadas.
Com freqüência, era eu que estava do outro lado, soltando
risadinhas, deixando as coisas caírem e esbarrando nos
móveis, portanto não podia me aborrecer com elas.
Só que era muito mais difícil de aturar tudo aquilo
quando estávamos sóbrios, de baixo astral e queríamos
isolamento eu poderia ter me levantado da cama, ter
marchado de pijama pelo corredor, com o cabelo todo
despenteado, a cara sem maquiagem e implorar a Karen,
Charlotte e a sei lá mais quem estivesse ali como
convidado para que fizessem menos barulho, mas isso não
ia me servir de nada. Talvez completamente bêbados eles
ridicularizassem o meu pijama e o meu cabelo, ou talvez
eu acabasse me vendo forçada a beber meia garrafa de
vodca, em uma postura de "já que não posso derrotá-los, é
melhor unir-me a eles".
Às vezes, gostaria de morar sozinha.
Andava pensando muito nessa possibilidade
ultimamente.
Finalmente, voltei a pegar no sono e então, no que me
pareceu ser logo depois, tornei a acordar.
Não sabia que horas eram, mas ainda estava escuro
como breu. A casa estava silenciosa e o meu quarto estava
gelado. O aquecimento automático ainda não devia ter
ligado. Dava para ouvir que estava chovendo lá fora, e o
vento batucava nas frágeis janelas vitorianas. As cortinas
moviam-se suavemente, levadas por alguma corrente de ar.
Um carro passou na rua, os pneus chiando sobre o asfalto
molhado.
Uma fisgada desagradável atravessou o meu peito...
Vazio? Solidão? Abandono? Se não era um desses
sentimentos, era pelo menos um membro dessa extensa
família.
"Nunca mais vou sair de casa", pensei. "Pelo menos
enquanto o mundo estiver do jeito que está. Tempo ruim e
gente rindo de mim, não quero nada disso."
Depois de mais alguns instantes, não pude deixar de
reparar que, embora fosse cinco e meia da manhã de um
sábado, eu estava acordada.
Isso sempre acontecia comigo. De segunda a sexta eu
mal conseguia abrir os olhos de manhã, mesmo com a
ajuda do despertador e da ameaça de perder o emprego se
chegasse mais um dia atrasada. Sair da cama era quase
impossível, como se os lençóis fossem feitos de velcro.
E quando chegava o sábado, quando não precisava
levantar cedo, acordava sozinha e não conseguia me
convencer, de jeito nenhum, a me virar para o outro lado,
fechar os olhos, me encolher debaixo das cobertas e tornar
a dormir.
A única exceção a esse padrão acontecia nos poucos
sábados em que eu tinha de trabalhar. Então, era tão
difícil acordar quanto nas cinco manhãs anteriores.
Se a minha mãe soubesse disso, provavelmente usaria o
fato como prova — pelo menos, de acordo com ela — de
que eu era sempre do contra.
"Já sei!", pensei. Vou comer alguma coisa.
Levantei-me da cama. O quarto estava congelando.
Atravessei correndo a sala até a cozinha e, para meu
desânimo, vi que já havia uma pessoa lá.
"Não me importa quem seja", pensei, com ar belicoso.
"Não vou nem falar com ele."
Era um rapaz que eu nunca tinha visto. Usava apenas
um short vermelho e bebia água energicamente, de uma
caneca. Tinha as costas cheias de pintas.
Aquele não era o primeiro sábado de manhã em que eu
dava de cara com um homem na cozinha e sabia que
jamais o vira antes. A única diferença daquele sábado em
particular é que não fui eu que o trouxera para casa.
Alguma coisa nele, não sei se o jeito como bebia a água,
como se estivesse morrendo de sede, ou talvez as suas
costas cheias de pintinhas, fez com que eu resolvesse ser
gentil com ele.
— Tem Coca na geladeira — avisei a ele, hospitaleira.
Ele deu um pulo e se virou para trás. Tinha uma cara
cheia de pintas também.
— Hã... é... ahn... olá — disse ele, suas mãos descendo
automaticamente para cobrir a parte da frente do short.
(Será que lá havia pintas também?, pensei de forma vaga.)
— Desculpe — gaguejou ele. — espero não tê-la
assustado. Vim para cá com a... ahn... sua amiga, ontem à
noite.
— Ah! — exclamei. — Qual delas?
Quem será que atraíra o interesse daquela criatura toda
pintada na noite anterior? Karen ou Charlotte?
— Bem... isso é muito embaraçoso — disse ele, com ar
tímido. — Na verdade, não consigo me lembrar do nome
dela. Bebi um bocado ontem à noite!
— Bem... descreva-a — sugeri, gentilmente.
— Loura.
— Isso não serve — disse eu. — As duas são louras.
— Bem, ela é bem grande, ahn... — disse ele, fazendo
gestos expansivos com as mãos na frente do tórax.
— Sei você quer dizer peitos grandes. — Compreendi de
repente. — Bem, também não serve, pode ser qualquer
uma das duas.
— Acho que ela tem um sotaque engraçado — afirmou
ele.
— Escocês?
— Não.
— De Yorkshire?
— Isso!
— Então é Charlotte.
Peguei um saquinho de biscoitos e voltei para cama.
Poucos minutos depois, o garoto cheio de pintas entrou
no meu quarto.
— Ah... — disse ele, confuso e com o rosto vermelho de
vergonha, enquanto cobria novamente a parte da frente do
short com a mão. — Onde é que fica o quarto...? Achei
que...
— É na porta ao lado — respondi, sonolenta.





















CAPÍTULO 15
Quando acordei mais tarde, já era quase meio-dia.
Alguém estava no banheiro e o vapor saía em nuvens por
baixo da porta, de modo que eu mal conseguia enxergar o
fim do corredor. Encontrei Karen deitada com um edredom,
no sofá da sala. Estava tossindo e fumando, havia um
cinzeiro transbordando de guimbas no chão ao lado dela, e
seu rosto parecia o de um panda, porque ela não removera
a maquiagem da noite anterior.
— Bom-dia. — Ela sorriu, parecendo um pouco pálida e
fraca. — O que fez ontem à noite, Lucy?
— Nada — respondi, distraída. — Por que o apartamento
está parecendo uma sauna? Quem é que está no banheiro?
Por que está demorando tanto?
— É Charlotte. Está se purificando com água escaldante
e bucha, esfregando a pele até sangrar, como penitencia
pelo pecado que cometeu.
Senti uma imensa onda de solidariedade por ela.
— Ah, não, pobre Charlotte! Então ela dormiu com o
"costas cheia de pintas"?
— Quando você o viu? — perguntou Karen, tentando se
sentar no sofá, empolgada, mas logo em seguida mudando
de idéia.
— Esbarrei com ele na cozinha, mais ou menos às cinco
e meia da manhã.
— Ele tem um rosto horrível, não achou? É muito feio.
Charlotte estava usando óculos de cerveja... Bem, na
verdade eram óculos de tequila, então achou que ele era
lindo.
— Senso estético prejudicado?
— Bastante.
— E ela estava se comportando de forma vulgar,
dançando de forma sedutora por todo o apartamento?
— Estava.
— Ah, não!
Charlotte era assim, cheia de vida, mas tivera uma
criação muito boa e tradicional. Era uma garota
respeitável, de uma cidadezinha do interior, perto de
Bradford. Morava em Londres há cerca de um ano, e ainda
estava passando pelo doloroso processo de tentar
descobrir quem realmente era. Continuava a menina
animada de Yorkshire, um pouco abusada, mas muito
decente, com as maçãs do rosto rosadas e que falava
coisas como: "Olha essa foto, uai! Olha eu aqui na roça
com o cachorro!" Ou era a loura fatal de peitos grandes na
qual se transformava sempre que bebia demais? É
estranho, mas, quando ela fazia o papel de loura fatal, o
seu cabelo realmente parecia bem mais louro, e o busto
bem mais cheio, pelo menos alguns números maior.
Para Charlotte era muito, muito difícil unir esses dois
aspectos de si mesma. Sempre que agia como a loura
peituda e fatal, ela passava os dias que seguiam em
autocensuras e repreensões. Culpa, auto-aversão,
autopunição, medo de castigos, repulsa por si mesma e
pelo seu comportamento eram seus comportamentos
constantes.
Tomava banhos demais e sempre muito quentes nesses
períodos.
Era pena o fato de Charlotte ser loura e peituda, porque
ela também era meio burrinha, e tudo isso somado
confirmava muitos preconceitos. Gente como Charlotte é
que dava má fama às louras. Só que eu gostava muito de
Charlotte. Ela era uma pessoal adorável e ótima
companheira de apartamento.
— Mas deixe-a pra lá e me conte de você — pediu Karen,
alegremente. — Conte essa história maluca de você estar
para se casar e tudo o mais.
— Não.
— Por que não?
— Não quero falar sobre esse assunto.
— Você sempre diz isso, Lucy.
— Desculpe.
— Por favor.
— Não.
— Por favor!
— Então está bem, mas você não pode rir de mim nem
ficar com pena.
Então contei a Karen toda a história da nossa visita à
Sra. Nolan, as previsões dela, como Meredia ganhou sete
libras e meia, como Megan sofreu uma ruptura na vida
com o corte no lábio, como Hetty fugiu com o irmão de
Dick, e depois a parte em que Meredia e Megan
espalharam para todo mundo que eu ia me casar.
Karen ouvia tudo, boquiaberta.
— Meu Deus — sussurrou ela. — Que coisa terrível.
Como deve ter sido embaraçoso!
— Foi mesmo.
— Você está chateada?
— Um pouco — admiti, com relutância.
— Você devia matar a Meredia! Não devia deixar as
coisas assim como estão. E não acredito que Megan tenha
se envolvido nesse lance. Ela sempre me pareceu tão
normal.
— Eu sei.
— Deve ter sido, assim, uma espécie de histeria em
massa — sugeriu Karen.
Karen riu tanto que chegou a ficar engasgada.
Charlotte chegou à sala usando um vestido largo e
pesado, roxo, com gola fechada e que descia até os
tornozelos. Era a sua versão do manto para sofrer
penitências.
— Ó Lucy — choramingou ela, explodindo em lágrimas e
correndo em minha direção. (Ela pronunciou "Luu-zzie".)
Passei os braços em torno dela, da melhor forma que
pude, tendo sempre em mente que ela era vinte
centímetros mais alta do que eu.
— Estou tão envergonhada — soluçou ela. — Eu me
odeio. Queria estar morta.
— Shhh... Shhh... — sussurrei, por força da prática. —
Logo, logo você vai se sentir melhor. Não se esqueça de
que bebeu muito ontem à noite, e o álcool nos deixa
deprimidos. Você tem todo o direito de se sentir meio pra
baixo hoje.
— Você acha isso mesmo? — perguntou ela, olhando
para mim com um olhar esperançoso.
— Honestamente.
— Ah, Lucy, você é tão boa. Sempre sabe as coisas
certas para me dizer quando estou de baixo astral.
É claro que eu sabia. Tinha tanta prática comigo mesma
que seria egoísmo não compartilhar com os outros o que
aprendera pela vida do jeito mais difícil.
— Nunca mais na vida vou beber — prometeu ela.
Eu não disse nada.
— Nunca mais!
Fiquei analisando as unhas.
— Pelo menos nunca mais vou beber tequila —
confirmou ela, com veemência.
Dei uma olhada lá fora pela janela.
— Vou ficar só no vinho.
Olhei para a televisão (embora ela não estivesse ligada).
— E vou alternar cada dose de bebida com um copo de
água mineral.
Ajeitei uma das almofadas.
— E não vou beber mais do que quatro copos de vinho
na mesma noite.
Olhei para as minhas unhas novamente.
— Bem, talvez seis.
Dei outra olhada pela janela.
— Dependendo do tamanho do copo.
A televisão novamente.
— E não vou tomar mais do que catorze doses ao todo
em uma semana.
E ela foi indo, foi indo, até que finalmente se convenceu
de que uma garrafa de tequila a cada noite era razoável.
Eu já ouvira tudo aquilo muitas vezes.
— Lucy, eu estava horrível — confidenciou-me. —
Arranquei a blusa e fiquei dançando só de sutiã.
— Só de sutiã? — perguntei, com ar solene.
— É.
— Sem calcinha?
— É claro que mantive as calcinhas. E fiquei de saia.
— Bem, então não foi assim tão mau, foi?
— Não, acho que não. Ah, Lucy, alegre-me um pouco.
Conte uma história para mim. Conte... deixe ver, conte...
conte sobre aquela vez em que seu namorado a dispensou
porque tinha se apaixonado por outro cara.
Desanimei na mesma hora.
Só que eu mesma era culpada. Cultivara
cuidadosamente a reputação de ser engraçada para contar
histórias — pelo menos entre os amigos mais chegados —,
sempre com as tragédias da minha própria vida como
protagonistas. Há muito tempo eu chegara à conclusão de
que uma das maneiras de evitar ser uma figura trágica e
patética era, em vez disso, ser divertida e engraçada.
Especialmente se eu fosse divertida e engraçada com as
coisas trágicas e patéticas que aconteciam na minha vida.
Desse jeito ninguém ia poder rir de mim, porque eu
mesma já rira na frente deles.
Só que, naquele momento, eu não consegui fazer aquilo.
— Não, Charlotte, eu não consigo...
— Ora, vamos, conte...
— Não.
— Por favor. Pelo menos conte a parte em que você
cortou o cabelo curtinho e ele, mesmo assim, dispensou
você.
— Ah, não... droga. Está bem.
Quem sabe, pensei, pode ser que eu me anime também.
Assim, da forma mais divertida que consegui, alegrei
Charlotte com a história de uma das muitas perdas
humilhantes e vexames amorosos de minha vida. Só para
fazê-la perceber que, não importa o tamanho dos
desastres em sua vida, nenhum deles poderia ser tão ruim
quanto os meus.
— Vamos a uma festa hoje à noite — informou Karen. —
Quer ir também?
— Não posso.
— Não pode ou não quer? — quis saber Karen, com
astúcia. Como era escocesa, era boa em perguntar as
coisas de forma astuta.
— Não posso.
— Por que não?
— Fui obrigada a aceitar um convite de Daniel para
jantar.
— Jantar com Daniel. Sortuda — suspirou Charlotte,
com o rosto iluminado.
— Mas porque ele convidou você? — guinchou Karen,
revoltada.
— Karen! — ralhou Charlotte.
— Ah, você sabe o que eu quis dizer, Lucy — disse Karen,
com impaciência.
— Sei sim.
Karen não media as palavras, mas, para ser justa, ela
estava absolutamente certa. Eu também não conseguia
entender por que Daniel preferira me levar para jantar.
— Ele terminou com "sei lá o nome dela" — expliquei, e
subitamente houve um alvoroço. De repente, Karen se
sentou no sofá, rígida como um defunto que se levantou
do caixão.
— Você está falando sério? — perguntou ela, com um
olhar estranho, meio tarado.
— Absolutamente sério.
— Uau! — soprou Charlotte, com um sorriso de
êxtase. — Isso não é maravilhoso?
— Então ele está solto? — perguntou Karen.
— Sim, totalmente — confirmei, de forma solene. —
Pagou todas as dívidas com a sociedade e tudo o mais.
— Não por muito tempo, se depender de mim — disse
Karen, com a voz firme e determinada, a cabeça cheia de
imagens de Daniel e ela entrando de mãos dadas em
restaurantes elegantes, Daniel e ela sorrindo um para o
outro de forma radiante no dia do casório, Daniel e ela
fazendo cócegas carinhosamente no primeiro filho.
— Aonde ele vai levar você? — perguntou Karen, depois
que voltara ao presente e o tumulto generalizado já
diminuíra um pouco.
— A um restaurante russo.
— Não é o Kremlin, é? — perguntou Karen, parecendo
chocada.
— Esse mesmo.
— Sua sortuda, sortuda, sortuda, sortuda. Vaca sortuda.
As duas ficaram olhando para mim, com inveja em
estado puro estampada em seus rostos.
— Não fiquem olhando para mim desse jeito — disse,
temerosa. — Eu nem queria ir.
— Como pode dizer uma coisa dessas? — reagiu
Charlotte. — Um cara lindo e tão...
— Rico! — exclamou Karen.
— Um cara lindo e rico como Daniel convida você para
um restaurante chiquérrimo e você nem queria ir?
— Mas ele não é um cara lindo e rico... — protestei, de
forma fraca.
— Ele é sim! — falaram as duas, em coro.
— Bem, talvez seja. Mas, mas... mas não adianta nada
para mim — disse, baixinho. — Eu não o acho bonito. Ele
é apenas um amigo. E acho que é um desperdício total de
tempo sair com um velho amigo em um sábado à noite.
Especialmente se considerarmos que eu não queria ir.
— Você é esquisita — murmurou Karen.
Eu não negava aquilo. Ela estava chovendo no molhado.
— Que roupa vai usar? — perguntou Charlotte.
— Não sei.
— Mas tem que saber. Você não está simplesmente indo
ao pub tomar uma cerveja.
Daniel chegou mais ou menos às oito horas, e eu ainda
não estava pronta. O pior é que era bem capaz de eu estar
ainda de pijama, se Charlotte e Karen não tivessem me
enchido e convencido a tomar banho e depois colocar um
glamouroso vestido dourado.
Não que eu que eu estivesse grata a elas por isso.
Simplesmente as culpava por estarem me aprontando toda
para sair com Daniel por tabela.
Elas me deram um monte de conselhos sobre o que usar
e de que jeito colocar a maquiagem e arrumar o cabelo, e
começavam todas as frases dizendo: "Se fosse eu que
estivesse me preparando para sair com o Daniel..." e "Se
Daniel tivesse me convidado..."
— Use estas, use estas — disse Charlotte, toda excitada,
pegando um par de meias rendadas e cheias de lacinhos
na minha gaveta de roupas de baixo
— Não — disse eu, pegando as meias da mão dela e
colocando-as de volta na gaveta
— Mas elas são tão lindas.
— Eu sei.
— Então, por que você não quer usá-las?
— Para que? É só o Daniel!
— Você é muito mal-agradecida.
-Não sou não. Para que vou usá-las? É um desperdício!
Quem é que vai vê-las?
— Nossa! — disse Karen, pegando um dos meus
sutiãs. — Eu nem sabia que eles fabricavam sutiãs tão
pequenos.
— Mostre — pediu Charlotte, pegando-o da mão dela e
depois caindo na risada — Meu Deus! Parece até sutiã de
boneca, o sutiã da Barbie. Meus mamilos mal cabem nele.
— Você deve ter mamilos minúsculos, Lucy — riu Karen,
cutucando Charlotte. — Eu não sabia que eles fabricavam
modelos PPP.
Fiquei andando em volta do quarto, dando passos fortes
com o rosto vermelho de vergonha, esperando elas
acabarem de me zoar.
Depois, no momento em que a campainha tocou, Karen
voltou a entrar correndo no meu quarto e me borrifou toda
com o perfume dela.
— Obrigada — disse eu, com os olhos cheios d'água
esperando a nuvem se dispersar.
— Sua boba — disse ela. — Só estou fazendo isso para
que você fique com o meu cheiro. Assim, você vai abrir
caminho para eu chegar até Daniel.
— Ah.
Charlotte e Karen começaram a brigar para ver quem é
que ia atender a porta, e Karen ganhou porque já morava
no apartamento há mais tempo.
— Entre — disse ela, de forma intensa e exuberante,
escancarando a porta para ele. Karen parecia sempre
intensa e exuberante quando Daniel estava por perto, e a
porta provavelmente não era a única coisa que ela gostaria
de escancarar para ele.
Daniel estava com a mesma cara de sempre. Sem dúvida,
porém, em alguma conversa futura, eu ia ter que agüentar
Karen e Charlotte me enchendo com a descrição de como
ele estava lindo.
Era engraçada a maneira de como as mulheres
gostavam tanto de Daniel, porque realmente não havia
nada de especial nele.
Até parece que ele tinha olhos azuis penetrantes, cabelo
totalmente negro, uma boca sexy com lábios carnudos e
um maxilar tão grande quanto uma mochila. Não havia
nada disso.
Ele tinha olhos acinzentados, que não eram nem um
pouco penetrantes. Olhos cinza eram sem graça na minha
opinião.
E seu cabelo tinha aquela "cor que não é cor": eram
castanhos. Como os meus, por falar nisso, com a única
diferença que ele tinha sido tocado pela varinha da fada do
cabelo bom, e devido a isso, os fios dele eram lisos, retos e
brilhantes, enquanto os meus eram encaracolados,
pareciam molas e me davam a cara de quem fez
permanente em casa sempre que eu pegava chuva.
Ele sorriu para Karen. Ele sorria muito. E todo mundo
que, alguma vez, achou Daniel atraente vivia comentando
sobre o sorriso simpático que ele tinha, e eu não
conseguia entender porque. Seus dentes eram apenas
uma fileira pequena de teclas esmaltadas.
Tudo bem, Daniel tinha todos os dentes, e eles pareciam
bem reais. Não havia nenhum faltando, nem preto, nem
verde ou coberto de musgo, nem torto ou acavalado, mas e
daí?
O segredo do seu sucesso, eu imaginava, era que ele
parecia um rapaz simpático, um homem decente, afetuoso,
com valores antigos e que tratava as mulheres como se
fossem damas
O que estava tão longe da verdade que eu achava até
engraçado. Só que no momento em que as mulheres
descobriam o engodo, já era tarde demais.
— Olá, Karen — cumprimentou Daniel, dando o golpe do
sorriso aberto mais uma vez. — Como vai?
— Maravilhosa! — declarou ela. — Estou ótima!
E, de imediato, passou à etapa do flerte descarado.
Ofereceu-lhe muitos olhares sedutores, sorrisos sugestivos
e, demonstrando uma suprema autoconfiança, passou a
mão sobre o ombro dele de forma possessiva, a fim de
retirar fiapos imaginários de seu casaco de inverno.
— Oi, Daniel! — Charlotte saiu lentamente do quarto,
meio de lado. Ela também começou a flertar
descaradamente com ele, mas usava a tática dos sorrisos
doces e tímidos, além de rápidos contatos olho no olho.
Parecia toda delicada, com bochechas rosadas, rubores
inesperados, olhos sem maquiagem, pele limpa e a
robustez de quem só bebe leite.
Daniel estava ali parado, sorrindo, no meio do nosso
pequeno vestíbulo, e parecia muito alto.
Resistiu às tentativas de Karen de levá-lo para a sala.
— Obrigado, mas não vou poder entrar — explicou
ele. — O táxi está nos esperando.
Olhou para mim com um olhar significativo ao dizer isso,
e então olhou para o relógio de pulso.
— Você chegou cedo — acusei. Eu estava correndo de
um lado para outro no corredor, tentando achar os meus
sapatos de salto alto.
— Na verdade, Lucy, cheguei exatamente na hora
marcada — disse ele, com suavidade.
— Bem, você devia saber que eu não ia estar pronta! —
berrei do banheiro.
— Você está bem legal! — Agarrou-me pelo braço
quando passei correndo novamente pela frente dele, e
tentou me dar um beijo no rosto. Charlotte ficou arrasada.
— Argh! — disse eu, limpando o beijo. — Pára com isso,
vai estragar minha maquiagem!
Achei meus sapatos de salto alto na cozinha, no espaço
entre a geladeira e a máquina de lavar. Coloquei-os e
fiquei ao lado de Daniel. Ele continuava muito mais alto
do que eu.
— Você está maravilhosa, Lucy — disse Charlotte, com
ar melancólico. — Adoro quando você coloca esse vestido
dourado. Fica parecendo uma princesa.
— É... — concordou Karen, com os olhos fixos no rosto
de Daniel e mantendo o olhar por muito mais tempo do
que o necessário. Não que ele se importasse, galinha como
era.
— Eles não formam um lindo casal? — perguntou
Charlotte, sorrindo de mim para Daniel, e depois para
mim, de volta.
— Não, não formamos não — resmunguei, trocando o
peso do corpo de um pé para outro, constrangida. — Nós
ficamos ridículos juntos. Ele é alto demais, e eu sou baixa
demais. As pessoas vão achar que o circo chegou na
cidade.
Charlotte negou isso com ar chocado e veemente, mas
Karen não me contradisse.
Karen era muito competitiva.
Não conseguia evitar.
Ela era uma dessas pessoas que nunca se diminuem,
jamais se depreciam e, sob hipótese alguma, fazem
piadinhas à custa de si mesmas ou de suas aparências.
Enquanto eu, por outro lado, raramente agia de outro
modo. Acho que Karen, na verdade, não conseguiria assim.
Ela era uma pessoa muito legal na maior parte do tempo,
mas, se alguma coisa lhe saísse errado, teríamos de cruzar
o caminho dela por nossa conta e risco. Especialmente
quando estava bêbada, momento em que podia se mostrar
muito assustadora. Karen dava muita importância a
"respeito". Na verdade, ela tinha quase uma obsessão com
a relação a isso, na minha opinião.
Há coisa de dois meses antes, seu namorado, Mark,
comentara timidamente, que achava que o namoro deles
estava começando a ficar sério demais. Ela mal deixou que
ele acabasse de falar e ordenou que ele saísse
imediatamente do apartamento dela e nunca mais voltasse.
O pobre rapaz mal teve tempo de se vestir. (Na verdade,
ela ainda ficou com a cueca dele, que varejou pela janela
com ar de triunfo assim que ele conseguiu colocar os pés
na rua.) Depois disso, ela comprou um garrafão de três
litros de vinho e insistiu para que eu ficasse com ela
enquanto bebia tudo, até esquecê-lo.
Foi uma noite terrível. Karen ficou sentada, com a cara
amarrada, sem dizer nada, soltando apenas um "canalha"
ocasional, sussurrado, enquanto eu ficava ao lado dela,
tomando pequenos goles do vinho e murmurando
comentários superficiais. Então, de uma hora para outra,
ela ficou mais desagradável.
Virou-se para mim, agarrou a parte da frente do meu
vestido e falou, engolindo metade das palavras:
— Se num me respeitá, quemque vai?
— Hã?...
Ela tornou a me fazer a pergunta, com as palavras
engroladas e aquele sotaque carregado, os olhos
semicerrados e o rosto muito próximo do meu:
— Anna logo, Lucy, pói me falá!
— Realmente... — concordei, nervosa. — Quemque vai?
No dia seguinte ela me pediu desculpas, e nunca mais
se comportou daquela forma. Tirando o fato de ser
competitiva, Karen é uma ótima companheira de
apartamento. É muito divertida, tem roupas lindas que
costuma emprestar sem implorarmos demais, consegue
ser extremamente vulgar, às vezes, mas sempre paga a
sua parte do aluguel em dia. É claro que eu sabia muito
bem que se os nossos interesses batessem de frente em
algum momento eu teria de estar preparada para tirar o
time de campo com esportividade ou encarar comida de
hospirtal. Só que os nossos interesses nunca bateram de
frente, e dificilmente isso ia acontecer agora, por causa de
Daniel.
Ela estava tirando o máximo partido o máximo partido
do fato de estar junto de Daniel.
— Vai haver uma festa hoje à noite — contou Karen,
dirigindo-se a ele, e apenas a ele. — Talvez você queira dar
uma passadinha por lá mais tarde.
— Parece uma boa idéia — concordou ele, sorrindo para
ela. — É melhor eu anotar o endereço.
— Não precisa — disse eu, quase emocionada pelo clima
de romance no vestíbulo. — Eu sei onde fica.
— Tem certeza? — perguntou Karen, ansiosa.
— Tenho. Agora vamos, Daniel. Vamos acabar logo com
isso.
— Por favor, apareça lá na festa — pediu Karen —,
mesmo que a Lucy não queira ir.
"Especialmente se a Lucy não quiser ir" era o que ela, na
verdade, estava querendo dizer, pensei, com um sorriso.
Saímos, Daniel concedendo a Karen e a Charlotte o seu
sorriso de apresentador de tevê, enquanto eu olhava para
ele, achando tudo divertido.
— Que foi? — perguntou ele enquanto descíamos as
escadas. — O que foi que eu fiz?
— Você é deplorável. — Ri. — Alguma vez já encontrou
uma mulher sem flertar com ela?
— Mas eu não estava flertando! — protestou ele. —
Estava apenas sendo normal. Estava só sendo educado.
Lancei-lhe um olhar do tipo "me engana que eu gosto".
— Você está linda, Lucy! — disse ele.
— Você é um tremendo enrolador de mulheres —
repliquei. — Acho até que deviam obrigá-lo a usar uma
plaquinha, para proteger as desavisadas que chegarem
perto.
— Não sei o que foi que eu fiz de errado — reclamou ele.
— Sabe o que devia vir escrito na plaquinha? — Eu o
ignorei, continuando a falar.
— Não, o que devia vir escrito, Lucy?
— Cuidado com as mentiras!
Ele abriu a porta da frente do prédio para mim, e o ar
frio do mundo lá fora me atingiu como uma bofetada.
"Ai, meu Deus!", pensei, com ar sombrio. "Como é que
vou conseguir agüentar esta noite?"
CAPÍTULO 16
Quando chegamos ao restaurante, o homem com o olhar
mais triste que eu já vira na vida confirmou nossa reserva.
— Dimitri vai pegar seus casacos — disse ele, com a voz
pesada e um sotaque russo bem acentuado.
Parou em seguida, como se mal conseguisse reunir
energia suficiente para continuar a falar.
— Depois disso — suspirou ele —, Dimitri vai
acompanhá-los até a mesa.
Com o coração partido, estalou os dedos e, então, uns
dez minutos depois, Dimitri apareceu, um homem
baixinho e atarracado vestindo um paletó que não servia
nele. Parecia à beira das lágrimas.
— Trrata-se do grrupo Vatson? — murmurou ele,
pronunciando Watson com som de "V" e fazendo cara de
quem estava em um funeral.
— Ahn... como disse? — perguntou Daniel.
— Ele está falando de nós. — Dei-lhe uma cotovelada. —
Você é o Sr. Vatson.
— Sou? Ah, sim, sou mesmo!
— Porr-aqui, porr-favor — sussurrou Dimitri, com a voz
rouca.
Antes, ele nos levou até um pequeno balcão, onde
entregamos os nossos casacos a uma jovem muito bonita,
mas com cara de tédio. Tinha uma estrutura óssea cheia
de ângulos, uma pele que parecia porcelana, um cabelo
negro muito brilhante e o ar de enfado infinito. Nem
mesmo o "sorriso de cem watts" de Daniel conseguiu
provocar a moça uma centelha de resposta.
— Sapatona! — resmungou ele, baixinho.
Então, seguimos Dimitri através do restaurante,
caminhando em uma velocidade espantosa para os
padrões dele, mas que, na verdade, era tão devagar quase
parando que eu ficava esbarrando nas costas dele o tempo
inteiro, atropelando-o por todo o caminho. Acabei pisando
com força no seu calcanhar, o que o fez parar, se virar
para trás e lançar-me um olhar que era mais de pesar do
que de zanga.
Embora eu tivesse feito de tudo para não querer estar ali,
tive de reconhecer que o lugar era lindo. Havia
candelabros cintilantes, montes de veludo vermelho,
gigantescos espelhos com molduras douradas e grandes
plantas que pareciam palmeiras. O ambiente cantarolava e
retinia com o som de gente jovem e bonita que conversava,
bebia vodca aromatizada com cor de Gatorade, e
derrubava caviar na roupa e no colo.
Agradeci muito, muito mesmo, por ter deixado que as
meninas me convencessem a usar o vestido dourado.
Talvez eu não sentisse que ali era o meu lugar, mas, pelo
menos, ia aparentar que sim.
Daniel colocou o braço de leve em volta da minha
cintura.
— Sai pra lá! — murmurei entre dentes, torcendo o
corpo para me afastar dele. — O que pensa que está
fazendo? Pare de me tratar como se eu fosse uma de suas
mulheres.
— Desculpe, desculpe — disse ele, muito sério. — Agi
por instinto. Por um instante me esqueci de que era você e
entrei sem querer no estilo restaurante.
Dei uma pequena gargalhada e na mesma hora a cabeça
de Dimitri girou para trás, a fim de olhar para mim.
— Hã... desculpe... — murmurei, sentindo-me um pouco
envergonhada, como se eu tivesse sido desrespeitosa, dito
uma blasfêmia ou algo assim.
— Sua mesa — anunciou Dimitri, fazendo um floreio
fraco com as mãos e indicando hectares de branco como
neve, linho engomado, centenas de taças de cristal
cintilantes e vários quilômetros de talheres enfileirados,
com brilho ofuscante.
Talvez acabássemos comendo apenas nabo cru, mas o
Kremlin arrumara uma produção fantástica para o tal do
nabo cru.
— Tudo aqui é muito legal — sorri para Daniel.
Então Dimitri e eu executamos uma pequena dança,
puxando a cadeira ao mesmo tempo, depois afastando as
mãos dali e a seguir esticando o braço para alcançá-la
novamente.
— Hã... podemos pedir um drinque, por favor? —
perguntou Daniel, quando finalmente conseguimos ser
instalados em lados opostos da ampla mesa redonda.
Dimitri suspirou, indicando com ar melancólico que
sabia o tempo todo que um pedido como aquele ia acabar
acontecendo e que tal pedido era totalmente fora de
propósito, porém, como era um homem bom e trabalhador,
faria o melhor para nos atender.
— Vou mandarr virr Gregorr, seu garrçom de bebidas —
anunciou e afastou-se penosamente.
— Mas... — disse Daniel, para as suas costas que se
retiravam.
— Puxa — disse ele. — Eu só queria pedir um pouco de
vodca, e agora vamos ter de aturar toda aquela lengalenga
de vinhos.
Gregor apareceu de imediato e, sorrindo com tristeza, fez
surgir uma lista imensa de bebidas que incluía todos os
sabores de vodca aromatizada que existiam no planeta.
Eu gostei muito de tudo aquilo. Quase me senti feliz por
ter ido.
— Humm... — disse eu, já empolgada. — Que tal o sabor
morango? Ou manga? Ou, não, não, espere... que tal
cassis?
— Qualquer coisa que você queira — gritou Daniel, do
lado distante da mesa. — Escolha por mim.
— Bem, nesse caso — disse eu —, por que a gente não
pede a vodca sabor limão, para começar, e depois
experimenta outra diferente?
Eu tinha fascinação por cartas de bebida quando era
pequena. Queria experimentar tudo, meu sonho era tomar
todo o menu em ordem alfabética, sem repetir nada, só
que sempre morria de medo de ficar bêbada e jamais fiz
isso. Agora, acho que o que estava sugerindo com as
vodcas de diversos sabores era apenas a versão adulta da
velha idéia. Continuava com medo de ficar bêbada, só que,
naquela noite, por algum motivo, achava que poderia
sobreviver a isso.
— Então vai ser limão — disse Daniel.
Assim que Gregor saiu, Daniel disse baixinho:
— Venha para cá. Você está muito longe.
— Não — disse eu, um pouco nervosa. — Dimitri falou
que era para eu ficar sentada aqui.
— E daí? Você não está na escola.
— Mas não quero deixá-lo chateado...
— Lucy! Não seja fraca e covarde. Venha até aqui.
— Não!
— Tudo bem, então eu vou até aí.
Ele se levantou e arrastou a cadeira por vários metros
em volta da mesa, e se sentou quase no meu colo.
Os dois jovens casais glamourosos na mesa ao lado
pareceram chocados, e lancei para eles um olhar do tipo
"pobre de mim, olhem só para esse maluco que está
comigo, sou muito fina e jamais faria uma coisa dessas",
mas Daniel parecia estar adorando.
— Pronto! — ele sorriu. — Assim está bem melhor. Agora
consigo enxergar você. — E começou a trazer as facas e
garfos e copos e guardanapos para perto dos meus.
— Daniel, por favor! — pedi, em desespero. — As
pessoas estão nos observando.
— Onde? — perguntou ele, olhando em volta. — Ah, sei,
já vi!
— Agora você vai se comportar? — trovejei, com
justificada indignação. Só que eu já o perdera, porque ele
fizera contato olho a olho com a mais bonita das duas
mulheres da mesa ao lado, e já estava usando os truques
habituais. Daniel olhou para a mulher, ela ficou vermelha
e olhou para o outro lado. Então, ele olhou para o outro
lado e ela o fitou, discretamente. Nesse instante, ele olhou
para ela de repente, pegou-a olhando para ele e lançou-lhe
um sorriso. Ela sorriu de volta e eu dei-lhe uma
cotovelada no braço.
— Olhe aqui, seu canalha estúpido, eu não queria sair
com você hoje à noite!
— Desculpe, Lucy, desculpe, desculpe, desculpe.
— Corta essa, o.k.? Não quero passar a noite toda com
você olhando por cima do meu ombro.
— Ta legal, desculpe.
— Foi você quem quis que eu viesse, Então é melhor agir
com educação e conversar comigo. E, se pretendia flertar
com alguém, por que me convidou?
— Sinto muito, Lucy, você tem razão, me desculpe, Lucy.
A voz dele era de quem estava arrependido, mas a cara,
não.
— E pode arrancar esse sorriso de garoto levado —
continuei —, porque você não me engana.
— Sinto muito.
Gregor chegou com dois copos pesados cheios de um
líquido amarelo-canário. Aquilo parecia ter vindo direto de
Chernobyl, mas achei que seria deselegante dizer isso.
— Nossa — disse Daniel, desconfiado e segurando o
copo contra a luz. — Parece que é radioativo.
— Cale a boca — disse eu. — Feliz aniversário!
Brindamos e entornamos a vodca.
Na mesma hora senti um formigamento na barriga, uma
espécie de brilho que começou a se irradiar a partir do
estômago.
— Ai, meu Deus! — E soltei uma risadinha.
— Que foi?
— Definitivamente, é radioativo.
— Mas é gostoso.
— Com certeza.
— Quer mais?
— Acho que sim.
— Onde está Gregor?
— Lá vem ele.
Gregor já estava vindo em nossa direção quando Daniel
acenou para ele.
— Vamos tomar mais dois desses, Gregor, obrigado —
disse Daniel.
Gregor pareceu gostar. Se é que era possível alguém
parecer satisfeito e com o coração despedaçado ao mesmo
tempo.
— Agora nós queremos o cor-de-rosa, por favor —
completei.
— Morango? — perguntou Gregor.
— É cor-de-rosa?
— É.
— Então morango.
— Acho melhor pensarmos em pedir alguma coisa para
comer.
— Certo — concordei, pegando o cardápio. Os drinques
cor-de-rosa chegaram e estavam tão gostosos que
resolvemos pedir mais dois.
Então acrescentei.
— Eles são muito pequenos. Não podem fazer tão mal
assim.
Os dois novos drinques chegaram — eram de cassis,
desta vez —, e nós os bebemos.
— Eles não duram muito tempo, não é? — comentei.
— Quer mais? — quis saber Daniel.
— Mais.
— E a comida?
— Acho que é melhor pedir. Ah, aqui está o Dimitri!
Quando quiser, pode trazer o nabo cru, Dimitri — disse,
com jovialidade. Chocada, descobri que estava me
divertindo.
— Tenho algo para lhe contar, Lucy — disse Daniel,
ficando sério de repente.
— Então vamos lá, desembucha — disse eu. — Por um
momento achei que estava começando a me animar, mas
decidi que é melhor pararmos com isso.
— Desculpe, eu não devia ter dito nada. Esqueça.
— Agora não posso mais esquecer, seu idiota. Você vai
ter que me contar.
— Tá legal, só que você não vai gostar.
— Conte.
— É a respeito da Graça.
— Conte logo!
— Eu terminei com ela. Não foi ela que terminou comigo.
Ah, foi?, pensei, meio confusa. Então lembrei que a
minha missão era manter Daniel em seu lugar.
— Seu canalha! Como pôde fazer isso?
— Mas eu estava de saco cheio, Lucy. O namoro estava
tão chato... Era um pesadelo.
— Mas ela tinha peitos grandes.
— E daí?
— Daí que podemos dizer que isso foi um caso de
"mamárias póstumas", não é? — soltei, quase me
desmanchando de tanto rir. Era uma daquelas raras
ocasiões em que eu achava que estava sendo engraçada.
— Exatamente — concordou Daniel, rindo também.
— E agora que ela caiu em des-Graça, você ficou sem
Graça — continuei, ainda me achando hilariante.
— Fiquei mesmo.
— Você é muito insensível.
— Ah, Lucy, não sou, não. Tentei ser legal com ela.
— Você a fez chorar?
— Não.
— Mesmo assim, é um canalha.
Daniel me pareceu um pouco chateado, com lágrimas
nos olhos. A vodca estava fazendo com que nós dois
ficássemos emotivos.
— Agora me arrependi de ter contado — disse ele, com a
cara amarrada. — Eu sabia que você não ia gostar.
— Talvez não, mas vou ter que aturar com bravura.
Lancei um pequeno sorriso para ele. De repente, eu já
não me importava tanto com Graça. Nada daquilo parecia
ter a menor importância naquele momento.
— Isso foi muito filosófico de sua parte, Lucy.
— Eu sei, estou me sentindo muito filosófica.
— Engraçado, eu também.
— Por que será que estamos assim? Será que é a vodca?
— Só pode ser.
— Eu me sinto meio engraçada, Daniel, tipo assim, triste
como sempre, mas feliz também. Feliz de um jeito meio
triste.
— Eu entendo — concordou ele, depressa. — É
exatamente assim que eu também me sinto. Com a
diferença de que estou feliz como sempre, mas triste de
um jeito meio feliz.
— Deve ser assim que os russos se sentem o tempo
todo. — E soltei uma risadinha. Estava me sentindo com a
cabeça bem leve, e sabia que estava falando bobagens,
mas não me importava. Nada daquilo parecia bobagem,
tudo parecia muito importante e real. — Você acha que
eles bebem tanta vodca porque são filosóficos e infelizes ou
são filosóficos e infelizes por beberem tanta vodca?
— Essa é difícil de responder, Lucy.
— Por que eu nunca encontro a mulher certa, Lucy? —
perguntou ele, sério.
— Não sei, Daniel. Por que eu nunca encontro o homem
certo?
— Não sei, Lucy. Será que vou ser sempre solitário?
— Sim, Daniel. Será que vou ser sempre soltária?
— Sim, Lucy.
Houve uma pequena pausa, enquanto sorríamos de
modo triste um para o outro, unidos pela nossa
melancolia acre-doce. Na verdade, adorando tudo aquilo.
Em algum momento, a comida chegou. Deve ter sido nessa
hora.
— Olhe, Dan, pense só... Nada disso importa, porque,
pelo menos, estamos sendo essencialmente humanos.
Estamos em contato com a dor de estarmos vivos. Vamos
pedir outro drinque?
— De que cor?
— Azul.
Daniel se recostou na cadeira, tentando agarrar um
garçom.
— Esta dama quer mais dois destes! — pediu ele, bem
alto, balançando o copo em volta da cabeça. — Bem, ela
não quer dois só para ela... ou talvez queira, quem sabe?
Você quer, Lucy?
— O mesmo drinque, senhor? — perguntou Gregor. Pelo
menos acho que era Gregor. Lancei um sorriso
melancólico para ele, e ele me lançou um idêntico de volta.
— Exatamente o mesmo — respondeu Daniel. — Só que
vão ser dois. Não, é melhor trazer quatro. E... ah, sim! —
berrou ele, nas costas do garçom. — Eles têm de ser azuis!
— Muito bem, onde é que nós estávamos mesmo? —
perguntou Daniel, sorrindo docemente.
Eu me senti feliz por ter vindo, porque gostava muito
dele.
— Estávamos falando sobre dor existencial, não era? —
perguntou Daniel.
— Estávamos — disse eu. — Estávamos mesmo. Será
que eu ficaria bem com o cabelo como o daquela garota ali?
— Onde? — perguntou ele, olhando em volta. — Ah,
ficaria, sim, ficaria linda! Aquele cabelo ia ficar melhor em
você do que nela.
— Ótimo! — Dei uma risadinha.
— Qual é a disso tudo, Lucy?
— Qual é a disso tudo o quê?
— Isso tudo, você sabe, isso que estamos falando. A vida,
as coisas, a morte, o cabelo?
— Sei lá, Daniel. Por que você acha que me sinto assim
tão infeliz o tempo todo?
— Você gosta, não gosta?
— De quê?
— De se sentir infeliz.
— Gosto. — Dei uma risadinha. Mais uma, aliás. Não
conseguia parar. Ele estava com a razão. Nós dois nos
sentíamos infelizes, mas estávamos flutuando, quase em
êxtase com a nossa infelicidade.
— Conte-me a história de você se casar.
— Não.
— Por favor.
— Não.
— Você não quer conversar a respeito?
— Não.
— É isso que você sempre diz a respeito de tudo.
— O quê?
— Que não quer conversar sobre o assunto.
— Bem, é porque eu não quero conversar sobre o
assunto.
— Connie ficou furiosa?
— Muito furiosa. Ela me acusou de estar grávida.
— Pobre Connie.
— Pobre Connie uma ova!
— Você é muito dura com ela.
— Não, não sou.
— Ela é uma boa pessoa, sabe, que só quer o melhor
para você.
— Rá! Para você é fácil dizer isso, porque ela sempre é
simpática com você.
— Eu gosto muito dela.
— Eu não.
— Isso é uma coisa horrível de se dizer sobre a própria
mãe.
— Não me importo.
— Você é muito cabeça-dura, Lucy.
— Ah, Daniel — Ri. — Pare com isso, pelo amor de Deus.
A minha mãe pagou a você para me dizer coisas
agradáveis a respeito dela?
— Não, eu gosto dela, de verdade.
— Bem, já que você gosta tanto assim dela, pode ir
comigo até lá na quinta-feira, para visitá-la.
— Ta legal.
— O que quer dizer com "ta legal"?
— Quis dizer "ta legal".
— Você não se importa?
— Não... É claro que não me importo.
— Ah, eu me importo.
Uma pequena pausa.
— Será que a gente pode parar de falar sobre ela, por
favor? — pedi. — Estou começando a me sentir deprimida.
— Mas nós já estávamos nos sentindo infelizes, de
qualquer modo.
— Eu sei, mas era um tipo diferente de infelicidade.
Uma infelicidade legal. Eu estava gostando.
— O.k. Então vamos conversar a respeito do fato de que
vamos todos morrer de qualquer jeito, e nada disso
importa?
— Ah, sim, por favor. Obrigada, Dan, você é um anjo.
— Mas, antes... — declarou Daniel. — Mais drinques!
Que cor ainda não experimentamos?
— Verde.
— Kiwi?
— Perfeito.
Mais drinques chegaram, e sei que nós dois comemos
muito, mas depois de tudo fiquei totalmente perdida sobre
o que realmente comera. Mas acho que gostei. Daniel
contou que eu falava o tempo todo que a comida estava
deliciosa. E tivemos um papo maravilhoso. Não consigo me
lembrar de quase nada do que conversamos, mas sei que
tinha alguma coisa a ver com o fato de que tudo é inútil e
sem importância, já que estamos todos condenados
mesmo, e naquele momento tudo fez sentido para mim.
Estava me sentindo totalmente em paz comigo mesma,
com o universo e com Daniel. Lembro-me vagamente de
Daniel dando socos na mesa, dizendo, com entusiasmo:
"Concordo plenamente!", e puxando um dos garçons
(Gregor? Dimitri?) enquanto gritava: "Ouçam esta mulher,
ela fala a verdade e não engana ninguém".
Foi uma noite maravilhosa e eu provavelmente ainda
estaria lá gritando: "Lilás! Tem alguma vodca lilás?", se
Daniel e eu não tivéssemos reparado, a certa altura, que
éramos os únicos clientes ainda estavam no restaurante, e
um monte de garçons baixinhos e atarracados, vestidos
com paletós, estavam enfileirados atrás do bar, olhando
para nós.
— Lucy — cochichou ele. — Acho que já está na hora de
irmos embora.
— Não! Eu gostei daqui.
— Sério, Lucy, Gregor e todos os outros têm que voltar
para casa.
Eu me senti culpada nesse instante.
— É claro que eles têm. Claro que têm. E vão levar
muitas horas para chegar a Moscou, pelo ônibus noturno,
pobrezinhos. E aposto que eles precisam acordar muito
cedo amanhã, para voltar ao trabalho.
Daniel pediu a conta, falando bem alto. O
comportamento reverente que exibimos na entrada já
desaparecera há muito tempo.
A conta chegou, na mesma hora, e Daniel olhou para ela.
— Que valor é esse, a dívida externa da Bolívia? —
perguntei.
— Parece mais a dívida externa do Brasil — disse ele. —
Mas o que importa?
— Exato — concordei. — Além do mais, você é rico.
— Na verdade, não. Tudo é relativo. Só porque você
ganha uma mixaria acha que todo mundo que ganha um
pouco mais é rico.
— Ah.
— Na verdade, quanto mais você ganha, mais você deve.
— Dan, isso é maravilhoso! Essa é uma verdade
econômica muito profunda: nas contas da vida, estamos
todos no vermelho. Não é à toa que você tem um emprego
tão bom.
— Não, Lucy — replicou Daniel, parecendo rouco de
tanta empolgação. — Isso que você acabou de dizer é que é
maravilhoso... e tão verdadeiro! Nas contas da vida,
estamos todos realmente no vermelho. Você precisa anotar
essa frase. Aliás, acho que devíamos anotar tudo o que
falamos a noite toda.
Minha cabeça parecia girar ao pensar no quanto eu e
Daniel éramos sábios. Disse a ele o quanto eu nos achava
sábios e maravilhosos.
— Obrigada, Daniel — disse eu. — Foi tudo fabuloso!
— Fico feliz por você ter gostado.
— Foi ótimo! Tudo faz sentido agora.
— Como o quê, por exemplo?
— Bem, não é de estranhar o fato de eu nunca ter me
sentido em casa em parte alguma, porque obviamente eu
sou russa.
— Por que acha isso?
— Porque eu me sinto infeliz, mas fico feliz por isso. E
sinto como se pertencesse a este lugar.
— Pode ser que você esteja apenas bêbada.
— Não seja tolo! Já fiquei bêbada antes, e nunca me
senti desse jeito. Acha que posso arrumar um emprego na
Rússia?
— Provavelmente, mas não quero que você vá embora.
— Você pode ir até lá para me visitar. Provavelmente vai
ter que ir mesmo, depois que acabarem todas as garotas
daqui.
— Bem pensado, Lucy. Afinal, nós vamos à festa sobre a
qual Karen falou?
— Sim! Já tinha até esquecido.















CAPÍTULO 17
— Você deixou uma boa gorjeta para eles? — cochichei
para Daniel no momento em que finalmente deixamos o
Kremlin, acenando para a equipe reunida na porta.
— Sim.
— Ótimo. Eles foram legais.
— Fiquei rindo o tempo todo enquanto subíamos as
escadas para sair do Kremlin, e ri ainda mais quando
saímos no ar frio da noite.
— Que legal. Foi muito divertido — disse, me apoiando
em Daniel.
— Ótimo — disse ele. — Agora, comporte-se, senão a
gente não consegue pegar um táxi.
— Desculpe, Daniel, acho que estou meio bêbada, mas
me sinto tão feliz...
— Que bom, mas, por favor, cale a boca um minutinho.
Um táxi parou. O motorista tinha cara de irritado.
— Sorria — disse eu, abafando o riso. Foi sorte minha
que ele não me ouviu.
Entrei, quase de gatinhas, e Daniel bateu a porta depois
que entrou.
— Para onde? — perguntou o homem.
— Para onde o senhor quiser... — respondi, com ar
sonhador.
— Hein?...
— Quando quiser e para onde quiser — disse eu. — O
que importa? Daqui a cem anos o senhor não vai mais
estar aqui, eu não vou mais estar aqui e o seu táxi com
certeza não vai mais estar aqui.
— Pare com isso, Lucy. — Daniel me cutucou, tentando
não rir. — Deixe o pobre homem em paz. Wimbledon, por
favor.
— É melhor parar em uma loja de bebidas e comprar
alguma coisa para levar para a festa.
— O que podemos levar?
— Que tal vodca? É o meu drinque preferido hoje.
— Certo.
— Não, acho melhor não.
— Por quê?
— Porque eu já estou bêbada o suficiente.
— E daí? Você não está se divertindo?
— Estou, mas é melhor parar.
— Não faça isso.
— Eu tenho que parar. Vamos comprar outra coisa,
alguma coisa menos forte.
— Cerveja?
— Tanto faz.
— Ou você prefere uma garrafa de vinho?
— O que você quiser.
— Que tal uma caixa de cerveja Guinness?
— Você é que sabe.
— Lucy, pelo amor de Deus! Pare de ser tão submissa e
diga o que prefere. Por que você fica sempre assim,
concordando com tudo e...
— Não estou sendo submissa nem concordando com
tudo — É que realmente tanto faz. Você sabe que não sou
muito de beber.
O motorista do táxi soltou uma risada de deboche. Acho
que ele não acreditou em mim.
Dava para ouvir a musica alta assim que o táxi virou a
esquina.
— Parece que a festa está boa — disse Daniel.
— É mesmo — concordei. — Será que vai dar polícia?
Essa é a verdadeira marca de uma grande festa.
— Ah, não... Pelo barulho, os vizinhos vão acabar
chamando a polícia. Então é melhor entrarmos logo para
começarmos a nos divertir, antes que os guardas acabem
com a festa.
— Não se preocupe — disse eu, tranqüilizando-o. — Está
escrito a respeito dos guardas: "Muitos são chamados,
mas poucos são efetivos".
Daniel riu.
Mais do que devia, achei.
A vodca, pelo visto, ainda estava fazendo efeito.
Nesse momento houve uma pequena discussão entre
nós dois, quando eu quis pagar o táxi.
— Eu pago — anunciei.
— Não, deixe que eu pago.
— Mas você já pagou o jantar.
— E você nem queria ir.
— Mesmo assim, o que é certo, é certo...
— Por que não relaxa e deixa alguém ser legal com você,
Lucy? Você é tão...
— Ei! — disse o motorista. — Resolvam logo. Não tenho
a noite toda. — Ele acabou interrompendo a pequena
sessão de psicanálise que Daniel estava apresentando,
antes mesmo de ela decolar.
— Paque ao homem logo — murmurei —, antes que ele
pegue a marreta embaixo do banco.
— Daniel entregou o dinheiro, e o homem, com ar
rabugento, aceitou a gorjeta, que deve ter sido alta.
— Você atura muito dessa garota, cara. — Foi o seu
comentário de despedida. — Detesto mulher insolente e
tagarela. — E o táxi foi embora.
Fiquei na calçada, olhando cheia de ódio para a traseira
do táxi que desaparecia pela rua.
— Que atrevimento o dele. Eu não sou insolente e
tagarela.
— Lucy, relaxe.
— Ah, tá legal.
— Para falar a verdade, ele tinha um pouco de razão.
Você é bem insolente e tagarela, às vezes.
— Ah, cale a boca!
Tentei parecer chateada com Daniel, mas não consegui
prender o riso.
Aquele era um comportamento muito incomum para
mim. Mas também aquela noite toda estava sendo muito
incomum.
Tocamos a campainha da casa onde a festa estava
rolando, mas ninguém atendeu.
— Talvez eles não estejam ouvindo a campainha — disse
eu enquanto esperávamos em pé na fria névoa noturna
com as latas de Guiness debaixo do braço, escutando o
som da música e dos risos por trás da pesada porta de
madeira. — Talvez a música esteja alta demais.
Continuamos ali fora, esperando, tremendo de frio, sem
que nada acontecesse.
— Deixe eu lhe dar pelo menos a metade — disse eu.
Daniel olhou para mim como se eu tivesse ficado maluca.
— Do que você está falando?
— Do táxi. Deixe que eu pelo menos pague metade da
corrida.
— Lucy! Às vezes me dá vontade de dar um soco em você,
sabia? Você me deixa...
— Shh!... Vem vindo alguém.
A porta se abriu e um rapaz com camisa amarela ficou
parado, olhando para nós.
— Posso ajudá-los? — perguntou, com educação.
Foi aí que eu me toquei de que não fazia a menor idéia
sobre quem estava oferecendo a festa.
— Hã... — disse Daniel.
— Hum... John nos convidou — murmurei.
— Ah, certo — disse o Camisa Amarela, sorrindo, e,
sorrindo, subitamente, mais amigável. — Quer dizer que
vocês são amigos do John? Ele é um porra-louca, não
acham?
— Hã, sim — concordei, jogando os olhos para cima. —
Porra-louca mesmo!
Aquilo era a coisa certa a dizer, porque a porta se
escancarou na mesma hora, fomos aceitos e convidados a
passar pelo portal, a fim de participar da animação que se
desenrolava no lado de dentro. Reparei, com tristeza, que
havia um terrível amontoado de garotas lá. Umas mil para
cada homem, a proporção que normalmente havia nas
festas de Londres, e todas começaram a olhar para Daniel
com interesse.
— Quem é esse tal de John? — cochichou Daniel
enquanto me empurrava para a sala encharcada de
estrogênio.
— Você não ouviu? Ele é um porra-louca.
— Sim, mas quem é ele?
— Sei lá — sussurrei , disfarçando e olhando em volta
para me certificar de que o Camisa Amarela não estava
ouvindo ali por perto. — Achei que havia uma grande
chance de haver alguém chamado John morando aqui, ou
de um John ser amigo dos moradores. Lei das
probabilidades e tal...
— Puxa, você é uma maravilha — disse Daniel em tom
de admiração.
— Não sou não — expliquei. — É que você vive saindo
com mulheres muito burras.
— Você tem razão, sabia? — comentou ele, pensativo. —
Por que será que eu sempre pego as tapadas?
— Porque elas são as únicas que têm alguma afinidade
com você — expliquei, com gentileza.
— Você está sendo muito cruel comigo. — E me lançou
um olhar amargo.
— Não estou, não — argumentei, de forma razoável. —
Estou falando para o seu próprio bem. Dizer isso magoa
mais a mim do que a você.
— Sério?
— Não.
— Ah.
— Agora, nada de ficar com a cara amarrada, Daniel.
Vai estragar o perfil másculo do seu rosto e as garotas vão
fugir assustadas.
Nossa briga mal começou e foi interrompida por uma voz
vibrante e alegre, com sotaque escocês:
— Que ótimo vocês terem chegado!
Karen, com seu olhar agudo e penetrante, vinha em
nossa direção, atravessando com dificuldade a multidão
que estava em pé na sala, com latas de cerveja nas mãos.
Ela devia estar vigiando a porta de entrada a noite toda,
pensei, de forma pouco generosa, e na mesma hora me
senti culpada. Não era crime achar Daniel atraente,
apenas uma terrível falta de bom gosto e discernimento.
Karen estava linda, bem ao jeito de Daniel, toda loura,
alegrinha e glamourosa. Se ela atacasse do jeito certo e
conseguisse fingir que era burra, eu tinha certeza de que
havia muita chance de ela ser a próxima namorada de
Daniel. Karen, toda exuberante, nos contou o quanto
estava feliz por nos ver ali, e começou a metralhar
perguntas em cima de nós com a velocidade de pingos de
chuva em um temporal de verão.
Como era o restaurante? A comida estava uma delicia?
Havia alguém famoso lá?
Por alguns momentos fui tola o bastante para achar que
aquilo era uma conversa real, e que eu era parte dela. Ate
que comecei a reparar que Karen recebia as minhas
historias pretensamente engraçadas a respeito de Gregor e
Dimitri com um silêncio sepulcral, mas toda vez que
Daniel abria a boca ela se escangalhava toda de tanto rir.
E sempre que eu e ela olhávamos nos olhos uma da outra,
ela franzia a cara de forma enérgica e significativa. Suas
sobrancelhas ricocheteavam da testa para as maças do
rosto e subiam de volta, e então notei que ela estava me
fazendo algum sinal com os lábios. Apertei os olhos para
ver melhor, acompanhando o formato da sua boca para
tentar descobrir o que era. Ela fez de novo. Como é que
é?... O que poderia ser?... Qual é a primeira letra?... Tem
som de quê?... Tem duas sílabas?...
— Cai fora!
Ela se inclinou na minha direção e cochichou na minha
orelha, enquanto Daniel estava ligeiramente distraído,
tirando o casaco.
— Pelo amor de Deus, cai fora!
— Ah, hã... tá legal.
As sementes da minha conversa estavam caindo em
terreno infértil, e ali eu era, com certeza, excesso de
bagagem. Era hora de sair de fininho. Do jeito que as
coisas estavam, eu já sabia o que me esperava no dia
seguinte. Karen ia me dar a maior esculhambação ("Pelo
amor de Deus, por que você não caiu fora logo de cara?
Fala sério! Não acredito que você seja tão panaca!").
Eu sabia quando não era bem-vinda. Na verdade, eu era
muito boa nisso, às vezes sacava até mesmo antes da
outra pessoa. Estranhamente, meu desconfiômetro estava
desligado naquela noite.
Fiquei vermelha de vergonha. Detestava a sensação de
ter feito algo errado e murmurei:
— Eu... hã... vou dar uma volta por aí. — Saí de campo
discretamente, me afastei dos dois e fiquei sozinha, em pé
no meio da sala.
Nenhum dos dois fez objeções à minha saída. Senti uma
leve fisgada de desapontamento por Daniel não tentar me
manter ali, ou pelo menos perguntar para onde eu ia, mas
eu sabia que se a situação fosse inversa e eu estivesse a
fim de alguém, também não ia querer tê-lo por perto.
Só que me senti um pouco humilhada. Estava ali,
sozinha, não havia ninguém que eu conhecesse em volta,
ainda continuava de casaco e tinha a certeza de que todo
mundo estava olhando para a minha cara, achando que
eu não tinha amigos. A euforia induzida pela vodca
acabara, e o agudo senso de constrangimento retornara.
Subitamente me senti muito sóbria, até demais.
Eu passara quase a vida toda achando que a existência
era uma festa para a qual eu não fora convidada. Naquele
momento eu estava realmente em uma festa para a qual
não fora convidada, e era quase reconfortante descobrir
que todos os sentimentos que me acompanharam pela
maior parte da vida — isolamento, inadequação,
paranóia — eram, o tempo todo, as emoções certas para
sentir.
Naquele espaço apertado, consegui tirar o casaco, bem
devagar. Colei um sorriso alegre na cara, na esperança de
transmitir às pessoas barulhentas e felizes à minha volta
que elas não eram as únicas ali que estavam se divertindo
a valer; que eu também estava feliz, tinha uma vida
gratificante e toneladas de amigos, e que estava ali
sozinha por decisão própria, mas poderia estar em uma
multidão de pessoas amigas a qualquer hora que
desejasse. Não que isso importasse alguma coisa para
alguém, porque ninguém estava me dando a menor bola.
Pelo jeito como uma garota esbarrou em mim e pisou no
meu dedão ao correr toda agitada para atender a porta, e
pelo jeito que outra garota entornou o cálice de vinho em
mim ao tentar ver as horas no relógio de pulso, eu me
senti como se as pessoas não estivessem nem mesmo me
vendo.
Não foi o vestido manchado que me aborreceu, foi o jeito
como ela estalou a língua para mim, como se fosse culpa
minha, porque então eu comecei a achar que realmente a
culpa tinha sido minha mesmo, pois eu não devia estar
parada ali em pé no meio do caminho, para começo de
conversa.
Parece que eu passava a vida toda oscilando entre me
sentir terrivelmente observada ou totalmente ignorada.
Então, por uma brecha na multidão, avistei Charlotte e
fiquei mais animada. Lancei-lhe um imenso sorriso e gritei
para ela, avisando que ia para lá. Ela, porém, balançou a
cabeça para os lados, de forma quase imperceptível, mas
mesmo assim inegável. Acho que estava conversando com
um rapaz.
Depois de séculos sorrindo feito uma boba alegre, mais
parecendo a idiota da aldeia, encontrei algo para fazer:
resolvi colocar a cerveja na geladeira. Adorei descobrir um
propósito para mim. Uma utilidade. Uma função. Ainda
que de modo humilde, eu tinha alguma importância.
Empolgada comigo mesma e com o recém-descoberto
senso de valor próprio, fui abrindo caminho pelo povo que
se aglomerava na sala, pelas multidões ainda maiores que
havia na cozinha e coloquei quatro latas de Guinness na
geladeira. Depois, enfiei duas debaixo do braço e tentei
nadar pelo mar de gente tentando voltar à sala da frente,
onde toda a diversão parecia estar rolando.
E foi nesse instante que eu o vi.













CAPITULO 18
Nos meses que se seguiram, passei a gravação daquela
cena na minha cabeça com tanta freqüência que me
lembro de absolutamente tudo a respeito dela, até dos
mínimos detalhes.
Estava saindo da cozinha quando ouvi a voz de um
homem que dizia, em admiração:
— Contemplem! Uma visão toda em ouro! Uma deusa!
Uma verdadeira deusa!
Naturalmente continuei a empurrar e a forçar a
passagem para conseguir sair da cozinha, porque, embora
estivesse usando um vestido dourado, estava usando
também o meu complexo de inferioridade feito sob medida
e, portanto, nem por um segundo achei que a pessoa que
estava sendo chamada de deusa era eu.
— E não se trata de uma deusa qualquer — continuou a
voz — mas a minha deusa favorita, a deusa Guinness
Esse detalhe da Guinness conseguiu atravessar a minha
barreira da humildade, me virei e vi que havia um rapaz
encostado no freezer. Não que isso fosse alguma coisa
especial, pois era uma festa, afinal o lugar estava
entulhado de gente e havia até mesmo uns dois homens
encostados em eletrodomésticos.
O rapaz parecia muito jovem, era difícil determinar sua
idade, mas era uma gracinha, tinha cabelos muito pretos,
compridos e encaracolados, olhos um pouco avermelhados,
mas com uma tonalidade bem verde, e estava sorrindo
diretamente para mim, como se me conhecesse, o que fez
com que eu me sentisse muito bem.
— Oi? — Acenou ele com a cabeça, de um jeito civilizado
e amigável.
Nosso olhos se encontraram e tive uma sensação
estranha. Foi como se já o conhecesse também. Comecei a
encara-lo e , embora soubesse que estava sendo indelicada,
não consegui desviar o olhar. Fui inundada por uma
sensação de calor e confusão, ao mesmo tempo que fiquei
totalmente intrigada, porque, embora tivesse certeza de
que nunca havia me encontrado com ele, de algum modo
eu já o conhecia, Não sei bem o que era, mas havia
alguma coisa nele, algo muito familiar.
— Porque demorou tanto ? — perguntou ele, com voz
alegre. — Estava esperando por você.
— Estava? — engoli em seco, de nervoso.
Meu coração disparou. O que estava havendo?, me
perguntei.
Quem era ele? O que significava aquele reconhecimento
instantâneo que surgiu entre nós como um relâmpago?
— Estava sim — confirmou ele — Desejei que aparecesse
uma mulher linda com uma Lara de Guinness na mão, e
aqui esta você.
— Ah.
Fazendo uma pausa, ele se esticou um pouco mais,
ainda encostado no freezer. Era a imagem viva do
relaxamento, parecia feliz e com boa aparência, apesar de
estar com os olhos um pouco turvos. Parecia não achar
nada de estranho na conversa.
— Você está esperando por mim faz muito tempo? —
perguntei.
De modo estranho, aquilo me pareceu algo perfeitamente
normal de perguntar, como se eu tivesse puxando assunto
com um estranho no ponto de ônibus.
— Pela maio parte dos últimos novecentos anos —
suspirou.
— Ahn?...novecentos anos? — perguntei, levantando
uma sobrancelha. — mais ainda não haviam inventado
latas de Guinness há novecentos anos.
— Exato — disse ele. — é isso que estou dizendo. Só
Deus sabe o quanto sofri. Tive que ficar esperando que
eles descobrissem a tecnologia para fazer as latas, e foi
muito chato. Se pelo menos eu tivesse desejado uma jarra
hidromel * ou uma caneca de cerveja caseira, teria evitado
muito trabalho e problemas para nós dois.
— E você está parado aí há muito tempo? — perguntei.
— Estive aqui quase o tempo toso — respondeu ele. —
às vezes, eu ia até ali — e indicou com o dedo um ponto
no chão, a menos de um metro de onde ele estava —, mas
na maior parte do tempo fiquei aqui mesmo.
Sorri. Estava embevecida por ele e suas histórias.
Ele era exatamente o tipo de homem que eu gostava, não
era apagado nem ´sério demais, ela criativo, tinha
imaginação e era muito gato!
— Estive esperando aqui por tanto tempo que é difícil
acreditar que você finalmente está aqui. Voe é real? —
perguntou ele — ou é apenas uma criação da minha
imaginação sedenta de Guinness?
— Não, sou perfeitamente real — assegurei a ele, embora
eu mesma não tivesse tanta certeza. E não tinha certeza
se ele era real também.
— Quero que você seja real, você esta me garantindo que
é real, mas pode ser que eu esteja apenas imaginando isso
tudo, até mesmo a parte em que você me diz que é real.
Está tudo meio confuso, consegue compreender o meu
problema?
— Consigo — disse, com ar solene. Eu estava encantada.
— Posso pegar a minha lata de Guinness? — quis saber
ele.
— Bem, isso eu não sei — disse, um pouco ansiosa, me
esquecendo por um istante, de que estava encantada.
— Foram novecentos anos — lembrou-me ele, de forma
gentil.
— Sim, eu sei — disse eu. — entendo o seu problema,
perfeitamente, só que estas cervejas são do Daniel. Isto é,
foi ele que pagou por elas, e eu estava indo, neste exato
momento, levar uma delas para ele e... Ah, deixa pra lá,
pode beber uma.
— Pode ser que o Donal tenha pago pelas cervejas, mas
o destino determinou que elas sejam minhas — explicou-
me ele, em tom de confidência e , por algum motivo,
acreditei nele.
— è mesmo? — perguntei, com a voz oscilante, dividida
entre o desejo de me entregar às forças sobrenaturais que
operavam naquele instante entre mim e aquele homem e o
medo de ser acusada de não sustentar minha posição com
firmeza e sair distribuindo latas de Guinness alheias por
aí.
— Donal ia gostar que fosse desse jeito — prosseguiu ele,
removendo com delicadeza alguma coisa sob o meu braço.
— Daniel, o nome dele é Daniel — disse, distraída,
dando uma olhada em volta da sala. Dava pra ver a
cabeça de Daniel e a cabeça de Karen bem próximas uma
da outra, e me pareceu que Daniel não ia ligar a mínima
para a lata de Guinness, de qualquer modo.
— Talvez você tenha razão — concordei
— Há apenas um problema — disse ele.
— Qual o problema?
— Bem, se você é fruto da minha imaginação, então, por
definição, a sua Guinness também é imaginária, e uma
Guinness imaginária não é nem de perto tão boa quanto
uma Guinness real.
Ele tinha um sotaque lindo, suave e lírico, que me
parecia familiar, embora eu não conseguisse descobrir de
onde era.
Ele abriu a lata e despejou o conteúdo garganta abaixo.
Bebeu a lata inteira de um gole só, sem tira-lá da boca,
enquanto eu ficava ali em pé, olhando para ele. Devo
confessar que fiquei impressionada com a cena. Em toda
minha vida, vira pouquíssimos homens que eram capazes
de fazer aquilo. Na verdade, o único que vira fazer isso era
meu pai.
Estava deleitada, completamente cativada por aquele
homem criança, quem quer que ele fosse.
— Hummm... — disse ele, pensativo, olhando para a lata
vazia e depois para mim — é difícil dizer. Pode ter sido real,
mas também talvez tenha sido apenas imaginação.
— Tome — disse eu, entregando a outra lata para ele. —
É real, garanto.
— Por alguma razão, acredito em você. — E, pegando a
segunda lata, repetiu a performance.
— Sabe de outra coisa?... — disse ele pensativo,
limpando a boca com as costas da mão. — Acho que talvez
você esteja com a razão. E se a Guinness é real, então isso
aqui significa que você é real também.
— Acho que sou — disse, com ar pesaroso. — Embora,
muitas vezes, eu não tenha certeza.
— Às vezes você se sente invisível? — perguntou ele.
Meu coração disparou. Ninguém, ninguém mesmo,
jamais me perguntara aquilo antes, e era exatamente
assim que eu me sentia por períodos imensos da minha
vida. Será que ele conseguia ler meus pensamentos? Eu
estava abismada. Ele reconhecia tanta coisa em mim!
Alguém no mundo me compreendia. Um completo
estranho conseguira olhar dentro de minha alma e
descobrir a minha essência. Senti-me com a cabeça leve
de alívio, alegria e esperança.
— Sim — concordei, baixinho. — Às vezes eu me sinto
invisível.
— Eu sei — afirmou ele
— como?
— Porque eu me sinto assim também
— Oh!
Houve uma pausa e nós dois ficamos ali em pé, olhando
um para o outro por algum tempo, sorrindo levemente.
— Qual é o seu nome? — perguntou ele, de repente. —
ou eu posso chamá-la simplesmente de deusa Guinness?
Se preferir, podemos abreviar o nome para DG. Só que,
neste caso, eu poderia confundi-la com aquele cavalo que
também se chama DG, ia acabar apostando seu nome e,
cá entre nós, você não se parece nem um pouco com um
cavalo, embora tenha pernas lindas (nesse instante parou
de falar e se inclinou para o lado até que a cabeça ficou na
altura dos meus joelhos) ... Sim, tem pernas muito
lindas. — E continuou, endireitando-se: — Mas não acho
que você consiga correr rápido o bastante para vencer o
Grande Prêmio. Embora talvez conseguisse chegar entre
os três primeiros colocados e, portanto, talvez eu devesse
apostar em você, afinal. Vamos ver, vamos ver. Enfim,
qual o seu nome?
— Lucy.
— Lucy, é? — confirmou, pensativo, olhando para mim
com os olhos muito verdes e ligeiramente avermelhados
nos cantos.— Um belo nome para uma bela mulher.
Embora não estivesse certa de ser o caso, tinha de
perguntar a ele:
— Você... por acaso, não é...irlandês, é?
— Sim, mas veja você!... O que mais eu poderia ser,
exceto irlandês? — respondeu ele, exagerando o sotaque
irlandês e exibindo um pequeno passo de dança.— Vim
direto do condado de Donegal.
— Eu sou irlandesa também— disse, empolgada.
— Mas você não tem sotaque de irlandesa— disse ele,
com ar de dúvida.
— Eu sou sim! — protestei.— Pelo menos os meus pais
são. Meu sobrenome é Sullivan
— Ah, isso é irlandês, com certeza — admitiu. — Você é
da espécie Araquus, variedade Irlanddus?
— Como é que é?
— Você é uma irlandesa de araque?
— Bem, eu nasci aqui na Inglaterra — admiti. — Mas me
sinto irlandesa
— Então para mim já está bom — disse, com jeito
alegre. — Meu nome é Gus, mas meus amigos me chama,
de Augustus, para facilitar
— Ah. — Eu me sentia fascinada. Aquilo estava cada vez
melhor.
— Muito prazer em conhecê-la, Lucy Sullivan — disse
ele, pegando a minha mão.
— E eu também tenho muito prazer em conhece-lo, Gus.
— Não, por favor -a agradá-lo, mas ao mesmo tem disse
ele, levantando a mão, em protesto — Chame-me apenas
de Augustus, eu insisto.
— Bem, se dá no mesmo para você, eu preferia chamá-lo
de Gus. Augustus vai deixar a minha bica muito cheia.
— Vou? — perguntou ele, parecendo surpreso. — Vou
deixar a sua boca muito cheia? E olhe que você acabou de
me conhecer, hein?
— Hã... Você entende o que quero dizer — expliquei,
imaginando se a gente estava falando de coisas
ligeiramente diferentes.
— Em toda a minha vida, nenhuma mulher jamais falou
isso a meu respeito — disse ele, olhando para mim
pensativo. — Você é uma mulher mesmo muito especial,
Lucy Sullivan. Uma mulher muito perceptiva, podemos
dizer. E, se insiste em formalidades, então que seja Gus.
— Obrigada.
— Isso mostra que você teve uma criação muito boa.
— Mostra?
— Ah, claro! Você tem modos encantadores, é muito
gentil e educada. Imagino que você sabia tocar piano, não
sabe?
— Hã... não, não sei — Fiquei me perguntando o que
provocara uma mudança de assunto tão repentina. Tive
vontade de dizer a ele que sabia tocar piano sim, pois
estava louca para agradá-lo, mas ao mesmo tempo fiquei
com medo de contar uma mentira tão descarada e ele
sugerir que tocássemos alguma coisa em dueto, ali mesmo,
naquela hora.
— Você deve tocar violino, então?
— Hã...não.
— apito?
— Não.
— nesse caso, só pode ser sanfona.
— Não — eu disse, querendo que ele parasse com aquilo.
Que papo era aquele sobre instrumentos musicais?
— Você não parece ter pulsos fortes o bastante para ser
uma tocadora de bodhrán. *
— sobre o que estamos conversando, afinal?
— Bem, Lucy Sullivan, você me derrotou por completo.
Desisto. Conte-me, qual é o seu instrumento?
— Que instrumento?
— O instrumento que você toca
— Mas eu não toco instrumento nenhum!
— O quê?! Mas se você não toca nada, então, certamente,
escreve poemas.
— Não — disse eu bem depressa, e comecei a pensar em
um jeito de escapar. Aquele papo era muito esquisito, até
mesmo para mim, e olhe que eu tinha um limite bem alto
para esquisitices.
Personagens de Flann O'Brien ** ficavam muito bem nos
livros de Flann O'Brien, mas ficar batendo papo com um
deles em uma festa era um assunto completamente
diferente.
Então, como se ele tivesse lido meus pensamentos,
colocou a mão sobre o meu braço e começou a parecer
bem mais normal.
— Desculpe-me, Lucy Sulliven — pediu ele, humilde. —
sinto muito. Assustei você, não foi?
— Um pouco — admiti.
— Sinto muito — repetiu ele
— Tudo bem— sorri, aliviada. Não fazia objeções a
pessoas esquisitas e ligeiramente excêntricas, mas quando
elas começavam a exibir tendências psicóticas sabia que
era hora de jogar a toalha.
— É que ingeri uma grande quantidade de drogas classe
A, no inicio da noite — continuou ele —, e não estou no
meu normal.
— Ah, — disse eu desanimada, sem saber o que pensar
sobre aquilo. Então ele usava drogas? Aquilo era algum
problema para mim? Bem, não exatamente, imaginava,
contanto que não fosse heroína injetável, porque ele iria
precisar de colherinhas de chá para dosar a quantidade, e
nós já tínhamos poucas colherinhas no apartamento.
— Que drogas você usa? — perguntei, com hesitação,
tentando parecer que não o censurava.
— Quais a que você tem ai? — começou a rir, mas parou
de repente — Estou fazendo aquilo de novo não estou?
Assustando você?
— Beemmm... você sabe...
— Não se preocupe Lucy Sullivan. Sou apreciador
apenas de alucinógenos leves ou relaxantes, nada mais. E
sempre em quantidades pequenas. E com pouca
freqüência. Quase nunca, na verdade. A não ser um
traguinho. Tenho que admitir que adoro tomar uns
traguinhos de vez em quando.
— Ah, então tudo bem — disse eu. Não tinha problemas
com homens que bebiam.
Fiquei pensando, porém, que se ele estava sob a
influencia de algum narcótico, será que isso significava
que normalmente ele não contava historias, casos de
sonhos e era um cara maçante como qualquer outro?
Esperava desesperadamente que não. Seria um
desapontamento insuportável se aquele homem incomum,
charmoso e lindo desaparecesse junto com o resto de
droga em seu sangue.
— Você normalmente é desse jeito? — perguntei, com
cautela — Você sabe, hã... fica imaginando coisas,
contando historias e tudo o mais? Ou esta assim só pelo
efeito das drogas?
Ele olhou para mim, com os cachos brilhantes caindo-
lhe por sobre os olhos.
Por que será que eu não consigo fazer com que os meus
cabelos brilhem tanto assim?, perguntei a mim mesma,
distraída, imaginado qual condicionador ele usava.
— Esta é uma pergunta muito importante, não é, Lucy
Sullivan? — analisou ele, ainda olhando para mim. —
Muita coisa esta em jogo nessa resposta.
— Imagino que sim. — resmunguei.
— Vou ser completamente honesto — disse ele, com ar
sério. — Não posso apenas lhe dizer o que você deseja
ouvir, posso?
Não estava certa sobre se concordava com aquilo ou não.
Em um mundo tão imprevisível e desagradável, era
incomum e muito gratificante ouvir apenas o que eu
queria ouvir.
— Imagino que não. — suspirei
— Você não vai gostar do que vou lhe dizer, mas sou
moralmente obrigado a fazê-lo, mesmo assim.
— Tudo bem — disse eu, com tristeza.
— Não tenho escolha. — e tocou meu rosto com
delicadeza.
— Eu sei.
— Ah! — gritou ele de repente, abrindo os braços em
forma teatral, atraindo olhares preocupados de todos os
que estavam na cozinha. Ate as pessoas na porta dos
fundos se viraram para olhar. — "oh, que teia confusa
tecemos ao mentir pela primeira vez!" * Você não concorda
com isso, Lucy Sullivan?
— Sim. — Eu ri. Não pude evitar, ele parecia tão louco e
engraçado.
— Você sabe tecer, Lucy? Não? Não há muita procura
por isso hoje em dia. É uma arte que está morrendo, uma
arte que está realmente morrendo... eu também não sou
muito bom nisso. Sou muito desajeitado, sou mesmo.
Agora vou lhe contar o que quer saber, com toda
honestidade, Lucy Sullivan...
— Sim, eu gostaria que assim fosse normalmente.
— Pois aqui vai: eu sou ainda pior do que isso quando
estou careta. Pronto! Contei! Acho que agora vai me virar
as costas e ir embora.
— Na verdade, não.
— Mas você não me acha um lunático, um cara exibido,
que deixa você constrangida?
— Acho.
— Isso significa que caras lunáticos, exibidos e que
deixam você constrangida são os seus preferidos, Lucy
Sullivan?
Eu nunca havia pensado sobre isso daquela maneira,
mas agora que ele tinha mencionado...
— Sim — disse eu.














CAPÍTULO 19
Ele me pegou pela mão, me levou pela sala e me deixei
ser levada. Para onde será que ele estava me puxando,
imaginei, empolgada. Empurrei Daniel para o lado e ele
levantou as sobrancelhas com ar questionador, e então
balançou o indicador para a frente, como se estivesse
dando uma bronca em mim, mas o ignorei. Gus era uma
pessoa muito legal para se conversar.
— Sente-se aqui, Lucy Sullivan. — Gus apontou para o
primeiro degrau de uma escada. — Podemos levar um
papo calmo e agradável.
Isso parecia muito improvável de acontecer, pelo fato de
que havia mais gente subindo e descendo a escada do que
passeando pela Oxford Street. Eu nem estava muito certa
sobre o que estava rolando no andar de cima. O de sempre,
eu imaginava. Gente tomando drogas, garotas transando
com o melhor amigo do namorado em cima do casaco dele,
coisas assim...
— Olhe, me desculpe por ter deixado você apavorada
ainda há pouco, Lucy, mas é que imaginei que você devia
ser um tipo de pessoa muito criativa — disse Gus, depois
de ter me instalado no pé da escada.
— Sou músico, e a música, para mim, é uma coisa
apaixonante — continuou ele. — Às vezes eu me esqueço
de que nem todos pensam assim.
— Tudo bem — disse, adorando aquilo. Ele não apenas
era louco, mas também músico, e os meus homens
preferidos sempre tinham sido músicos, escritores ou
qualquer outra coisa que envolvesse processo criativo e
comportamento típico de um artista torturado. Jamais me
apaixonara por um homem que tinha um emprego formal
e torcia para que isso jamais acontecesse. Não conseguia
imaginar nada mais chato do que um homem assalariado,
totalmente controlado com o dinheiro e que conseguia
viver dentro das suas posses. Achava a insegurança
financeira um grande afrodisíaco. Minha mãe e eu
discordávamos violentamente nesse ponto, mas a
diferença entre nós é que ela não tinha um único osso de
romantismo dentro do corpo, enquanto eu tinha de pensar
muito para achar uma porção do meu esqueleto que não
fosse romântica. O rádio, o cúbito, a rótula, o fêmur, os
ossos da bacia (especialmente esses!), o esterno, o úmero,
a escápula — na verdade as duas —, as diversas vértebras,
uma imensa seleção de costelas, uma pletora de
metatarsos, quase o mesmo número de metacarpos, os
três ossinhos do ouvido interno, todos os ossos do meu
corpo eram românticos.
— Então você é músico? — quis saber, com interesse.
Talvez fosse por isso que eu achava que já o conhecia.
Talvez já o tivesse visto em show, ouvido ou visto uma foto
dele em algum lugar.
— Sou.
— Você é famoso?
— Famoso?
— Sim, você é muito conhecido?
— Lucy Sullivan, não sou muito conhecido nem mesmo
em minha própria casa.
— Ah.
— Deixei você desapontada, não deixei? Mal nos
conhecemos e você já está em crise... Vamos precisar de
ajuda, Lucy. Fique aqui quietinha que vou procurar um
catálogo para telefonarmos para o Serviço de Auxílio a
Relacionamentos.
— Não, não precisa! — Ri. — Não fiquei desapontada
não. É que me pareceu que já conhecia você, mas não
sabia de onde. Pensei que talvez fosse famoso, e isso
explicaria tudo.
— Você quer dizer que já não nos conhecíamos? —
perguntou ele, parecendo chocado.
— Acho que não — respondi, me divertindo com aquilo.
— Mas é claro que já nos conhecemos — insistiu ele. —
Pelo menos em uma existência anterior, se não tiver sido
nesta.
— Pode ser — disse eu, pensativa. ­ Mas, mesmo que a
gente tenha se conhecido em uma vida anterior, quem é
que pode afirmar que gostávamos um do outro? Isso
sempre me incomodou. Só porque as pessoas se
reconhecem de outra vida não significa que elas tenham
de gostar uma da outra, não é?
— Você tem toda a razão — disse Gus, apertando a
minha mão com força. — Também sempre achei isso, mas
você é a primeira pessoa que encontrei que concorda
comigo.
— Imagine só se eu tiver sido o seu chefe em outra vida.
Aposto que você não ia ficar muito satisfeita por me
encontrar de novo, ia?
— Não! Puxa vida, isso não seria horrível? Morrer, viajar
pelo espaço e pelo tempo, tornar a nascer e encontrar as
mesmas pessoas desagradáveis com quem convivemos da
outra vez. "Lembra-se de mim, do antigo Egito? Ótimo,
porque você fez uma porcaria de trabalho naquela
pirâmide, volte lá e refaça o serviço."
— Exato, Gus. Ou que tal: "Lembra­se de mim? Eu sou
aquele leão que o devorou quando você era cristão em
Roma. Lembrou? Ótimo, agora vamos nos casar."
Gus riu, deliciado.
— Você é maravilhosa! De qualquer modo, nós dois
devemmos ter nos dado muito bem em qualquer vida
dessas em que tenhamos nos conhecido. Estou com um
sentimento bom a respeito disso. Você provavelmente me
explicou o Teorema de Pitágoras no dia em que ele perdeu
a paciência para me ensinar. Era um sujeito muito
estourado, o tal de Pitágoras... Ou me emprestou dinheiro
na virada do século retrasado, ou algo legal assim. Tem
alguma outra Guinness por aí?
Mandei Gus pegar mais na geladeira e fiquei ali sentada
na escada, esperando. Estava eletrizada, maravilhada,
explodindo de felicidade. Que homem adorável! Fiquei tão
feliz por ter ido à festa! Senti o sangue gelar nas veias ao
pensar que podia, com a maior facilidade, não ter ido, e
então jamais o teria conhecido. Talvez a Sra. Nolan
estivesse certa, afinal, Gus podia ser o homem sobre o
qual ela falou, o homem pelo qual eu estava esperando.
Por falar em esperar, onde, diabos, ele havia se enfiado?
Quanto tempo levava para ir até a geladeira e roubar o
resto das latas de Guinness de Daniel?
Ele já não saíra dali há séculos? Será que, enquanto eu
estava sentadinha no degrau com um sorriso de idiota
sonhadora na cara, ele começara a bater papo com
alguma outra garota e se esquecera completamente de
mim?
Comecei a ficar nervosa.
Quanto tempo mais eu devia esperar, antes de começar
a procurá-lo?, imaginei. O que poderia ser considerado um
intervalo de tempo decente antes de eu ir atrás dele?
E não era um pouco cedo em nosso relacionamento,
mesmo para mim, para ele começar a me enrolar?
Meu estado de sonho e introspecção feliz abruptamente
se dissolveu. Eu devia saber que aquilo era bom demais
para ser verdade.
Comecei a reparar no barulho e nos empurrões que as
pessoas trocavam em volta de mim. Eu as esquecera
totalmente, enquanto conversava com Gus, e comecei a
me perguntar se elas estavam todas rindo da minha cara.
Será que todos já haviam visto Gus fazer isso com
milhares de mulheres? Será que dava para eles sentirem o
meu medo?
Mas não, ali estava ele de volta, meio descabelado.
— Lucy Sullivan — declarou ele, parecendo ansioso e
distraído —, desculpe­me por ter demorado tanto, mas
acabei me envolvendo em uma terrível rixa.
— Ai, meu Deus. — Ri. ­ O que aconteceu?
— Ao chegar à geladeira, vi um homem que tentava se
servir das latas de Guinness do seu amigo Donal. "Tire as
mãos destas latas!", gritei. "Não tiro!", disse ele. "Vai tirar
sim!", disse eu. "Mas elas são minhas!", disse ele. "Não são
suas, não!", insisti. Seguiu-se uma luta corporal, Lucy, na
qual sofri pequenos ferimentos, mas a Guinness esté a
salvo agora.
— Está? — perguntei, surpresa, porque Gus estava com
uma garrafa de vinho tinto na mão e não havia sinal da
Guinness em parte alguma.
— Sim, Lucy, executei o sacrifício final, e ela está a salvo
agora. Ninguém mais vai tentar roubá-la.
— O que você fez?
— O que fiz? Bebi tudo, é claro, Lucy! O que mais
poderia fazer?
— H?...
Olhei para trás, um pouco nervosa, e, como já era de
esperar, avistei Daniel por entre as barras do gradil da
escada. Ele estava vindo pela sala em minha direção, com
uma cara muito aborrecida.
— Lucy! — gritou ele. ­ Um palhaço acabou de roubar...
E parou de falar quando viu Gus.
— Foi você! — berrou Daniel.
Ai, meu Deus! Daniel e Gus obviamente haviam se
encontrado.
— Daniel, Gus. Gus, Daniel ­ apresentei­os, em voz
baixa.
— Foi ele — disse Gus, com grande irritação. — Essa
figura que está à nossa frente foi o "dedos-­leves" que
estava roubando as latas de Guinness do seu amigo!
— Eu devia saber — disse Daniel, balançando a cabeça,
resignado e ignorando o dedo acusador de Gus. ­ Eu devia
ter desconfiado logo de cara! Como é que você consegue
escolhê-­los a dedo, Lucy? Diga-me como você faz.
— Ah, saia daqui, seu porco hipócrita, santo de pau
oco! — reagi, chateada e constrangida.
— Você conhece esta pessoa? ­ Gus quis saber de
mim. — Não creio que ele seja o tipo de pessoa com que
deva manter amizade, Lucy. Você devia ter visto o jeito
como ele...
— Vou embora — disse Daniel. ­ E vou levar comigo o
vinho que Karen trouxe. — E arrancou a garrafa de vinho
da mão de Gus, desaparecendo a seguir, na multidão.
— Você viu só? — gritou Gus. — Ele fez a mesma coisa
outra vez!
Tentei não rir, mas não resisti. Obviamente, eu não
estava tão sóbria quanto imaginava.
— Pare com isso — disse eu, puxando Gus pelo
braço. — Sente-se aqui e comporte-­se.
— Ah, é assim? Sente-­se aqui e comporte-­se?
— É!
— Entendo!
Houve uma pequena pausa enquanto ele olhava para
baixo, na minha direção, com o rostinho lindo todo
franzido.
— Bem, se você está mandando, Lucy Sullivan...
— Sim, estou mandando.
De forma obediente, ele se sentou ao meu lado na
escada, com uma expressão muito doce. Ficou em silêncio
por alguns momentos, e então disse:
— Bem... pelo menos valeu a pena tentar.







CAPÍTULO 20
Subitamente, senti que ficara sem ter o que dizer.
Sentei­me apertada ao lado dele no degrau, vasculhando o
cérebro em busca de algo para falar.
— Bem! — disse por fim, de modo alegre, para tentar
disfarçar minha timidez repentina. E agora, o que ia
acontecer?, perguntei a mim mesma. Será que íamos dizer
que tinha sido legal conhecer um ao outro e escapar dali
bem de fininho, como barcos soltando as amarras? Eu não
queria isso.
Resolvi fazer uma pergunta a ele. A maioria das pessoas
gostava de conversar sobre si mesma.
— Quantos anos você tem?
— Sou tão velho quanto as montanhas e tão jovem
quanto as manhãs, Lucy Sullivan.
— Você se importaria de ser um pouco mais especifico?
— Vinte e quatro.
— Legal.
— Bem, novecentos e vinte e quatro, na verdade.
— É mesmo?
— E que idade você tem, Lucy Sullivan?
— Vinte e seis.
— Hummm. Entendo. Você percebe então que sou velho
o bastante para ser seu pai?
— Se você tem novecentos e vinte e quatro, é velho o
bastante para ser meu avô.
— Até mais do que isso, eu diria.
— Mas você está muito bem, para a sua idade.
— Uma vida limpa, Lucy Sullivan, é a isso que atribuo a
minha aparência. A isso e ao trato que fiz com o Demônio.
— E qual foi o trato? — Eu estava adorando aquilo,
realmente me divertia muito.
— Não envelhecer por nem um dia durante os
novecentos anos em que estive à espera de você. Porém, se
algum dia eu colocar os pés em um escritório, para
arrumar um emprego propriamente dito, vou envelhecer
tudo no mesmo instante e morrer.
— Isso é engraçado — disse eu —, porque é exatamente
o que me acontece todas as vezes que eu piso no trabalho,
e não precisei esperar novecentos anos para isso. ...
— Você não trabalha em um escritório, trabalha? ­
perguntou ele, horrorizado. — Oh, pobrezinha da minha
Lucy! Isto n?o está certo! Você não deveria nem mesmo
trabalhar, devia passar os dias repousando em uma cama
com lençóis de seda, em seu vestido dourado, comendo
frutas cristalizadas e rodeada de admiradores e súditos.
— Concordo plenamente — disse eu, de forma
calorosa. — A não ser pela parte das frutas cristalizadas.
Você se importaria se eu as trocasse por chocolate?
— Nem um pouco — replicou ele, compreensivo. — Que
seja chocolate então! E, por falar em cama com lençóis de
seda, você acha que eu seria terrivelmente atirado ao
perguntar se é possível acompanhá-la até a sua casa esta
noite?
Abri a boca, sentindo-me com a cabeça leve, mas
alarmada.
— Perdoe­-me, Lucy Sullivan — disse ele, apertando­me
o braço, o rosto abatido pelo choque. ­ Não posso acreditar
que eu disse isso... Por favor, por favor, pode me banir dos
seus pensamentos, tente esquecer que eu disse tal coisa e
que uma sugestão assim tão grosseira passou pelos meus
lábios. Que um raio me atinja! Embora um golpe dos céus
seja muito pouco para mim.
— Está tudo bem — disse, com gentileza, tranqüilizada
pela sua mortificação. Se ele estava assim tão embaraçado,
é porque não costumava se convidar para a casa de
mulheres que acabara de conhecer, não é?
— Não, não está nada bem! — disse ele, alarmado. —
Como pude falar algo assim para uma mulher como você?
Vou simplesmente me afastar da sua presença agora e
quero que você se esqueça para sempre de que me
conheceu, é o mínimo que posso fazer. Adeus, Lucy
Sullivan!
— Não, não vá — pedi, tomada de medo. Não tinha
certeza se queria dormir com ele, mas certamente não
queria que ele fosse embora.
— Você quer que eu fique, Lucy Sullivan? — perguntou
ele, com um olhar ansioso.
— Sim!
— Bem, já que você tem certeza... Espere só um instante,
enquanto eu pego o meu casaco.
— Mas...
Ai, meu Deus! Eu queria que ele ficasse, mas ficasse ali
comigo, na festa, só que ele parecia estar achando que eu
o queria na cama com lençóis de seda e frutas
cristalizadas, e eu estava com medo de deixá-lo chateado
se explicasse o mal-­entendido. Assim, parece que eu
tinha um convidado para passar a noite.
Ele voltou muito mais depressa do que da outra vez,
trazendo um cachecol, um casaco e um suéter debaixo do
braço.
— Estou pronto, Lucy Sullivan.
Aposto que está, pensei, engolindo em seco de nervoso.
— Há apenas um problema, Lucy.
O que será, agora?
— Acho que não tenho dinheiro suficiente para pagar a
minha parte do táxi. Ladbroke Grove é muito longe daqui,
não é?
— Bem, quanto dinheiro você tem aí?
Ele pegou um monte de moedas no bolso.
— Deixe-­me ver, quatro libras... cinco libras... não,
desculpe, estas moedas são pesetas. Cinco pesetas, dez
centavos de dólar, uma medalha milagrosa e sete, oito,
nove, onze pence!
— Vamos embora! — Ri. Afinal, o que eu esperava? Não
podia ficar desejando que aparecesse na minha vida um
músico duro e depois reclamar quando ele não tinha
dinheiro algum.
— Eu devolvo, Lucy, assim que conseguir alguma grana.





CAPÍTULO 21
Muito tempo depois, chegamos a Ladbroke Grove. Gus e
eu ficamos de mãos dadas no táxi, mas ainda não
havíamos nos beijado. Era apenas uma questão de tempo,
e eu me sentia um pouco nervosa com aquilo. Um tipo
excitado de nervoso.
Gus insistiu em ficar de papo com o motorista do táxi,
fazendo-lhe todo tipo de perguntas chatas. Qual foi a
pessoa mais famosa que ele já transportara no táxi, qual a
pessoa menos famosa que ele já transportara no táxi, esse
tipo de coisa, e só parou quando o motorista freou
bruscamente em algum lugar perto de Fulham e, atirando
para trás algumas palavras curtas e bruscas em puro
idioma anglo-saxão, avisou que se Gus não calasse a boca
ele ia nos fazer saltar e nos deixar na calçada, esperando
outro meio de transporte para completar o percurso.
Eu já estava com a paciência saturada por causa do
motorista de táxi naquela noite.
— Meus lábios estão selados! — berrou Gus, e passamos
o resto da viagem cochichando, cutucando um ao outro e
dando risadinhas como se fôssemos crianças de escola,
especulando qual o motivo de o motorista ser tão mal-
humorado.
Paguei o motorista, e Gus absolutamente insistiu que eu
aceitasse o monte de moedinhas estrangeiras.
— Mas eu não quero isso!
— Pegue, Lucy! — insistiu ele.
— Tenho meu orgulho, sabia? — acrescentou ele, com
uma pontada de ironia.
— Bem, tá legal. — Sorri, feliz por deixá-lo satisfeito.
Mas não quero a sua medalha milagrosa, já tenho
milhares delas, obrigada.
— Aposto que foi a sua mãe que deu essas medalhas
todas para você.
— Claro que foi.
— Eu sei. Mães irlandesas são uma fonte inesgotável de
medalhas milagrosas. Elas sempre escondem uma em
algum lugar. E você não sente que ela está sempre
forçando você a aceitar as coisas que oferece?
— Como assim?
Gus começou a me cutucar com a ponta do dedo
enquanto eu tentava abrir a porta da rua, e disse:
— Quer um pouco de chá? Quer sim! É melhor tomar
logo o bule inteiro. Vai ajudá-la a se manter aquecida.
Começou a subir as escadas, fazendo muito barulho
com os pés, e continuava a falar, atrás de mim:
— Quer uma fatia de pão de forma? Vamos, pode comer
o pacote todo. Quer mais umas quatro batatas? Vamos lá,
pode comer sozinha este banquete inteiro para oito
pessoas, você está precisando engordar um pouco. Está
que é só pele e osso! Sei que você acabou de jantar, mas
jantar de novo não vai lhe fazer mal...
Eu não podia evitar o riso, embora estivesse preocupada
com os outros moradores do prédio, que iam começar a
reclamar por terem sido acordados às duas da manhã por
um bêbado irlandês que ficava insistindo que eles deviam
comer um bife inteiro.
— Venham! ­ berrava ele. — Nós vamos até fritar os bifes
para vocês!
— Silêncio — disse eu, dando risadinhas.
— Desculpe — cochichou ele, com a voz ainda alta. —
Você aguenta ou não? — perguntou ele, puxando a manga
do meu casaco.
— Aguento o quê?
­— Comer um porco inteiro?
­— Não!
— Mas ele vai acabar indo para o lixo se você não comer
tudo. E nós o matamos especialmente para esta refeição.
— Pare com isso!
— Bem, mas pelo menos você vai aceitar umas gotinhas
de água benta e uma medalha milagrosa, não vai?
— Então tá! Só para agradar você.
Entramos no apartamento e ofereci chá, mas Gus não
estava interessado nisso.
Ai, meu Deus! Eu sabia o que aquilo queria dizer.
Havia tantas coisas com as quais me preocupar, e não
apenas a questão do preservativo, pois Gus não parecia
estar em condições de cuidar desse assunto. Nem de, ao
menos, pensar nisso. Talvez ele fosse um cidadão mais
responsável quando não estivesse bêbado, embora eu não
pudesse contar com isso. Assim, sobrou pra mim, pelo
visto, o papel de sensível e cuidadosa. Não que eu me
importasse com aquilo. Preferia os homens que pecavam
por serem selvagens demais em vez de cuidadosos.
— O que acha da idéia, Lucy? — ele sorriu para mim.
— Claro! — repliquei eu, tentando parecer animada,
tranqüila, despreocupada, uma mulher no controle da
situação. Então achei que talvez eu tivesse me mostrado
interessada demais e, apesar de não querer que ele
pensasse que eu parecia um feixe de nervos, também não
queria que achasse que eu estava desesperada para ir
para a cama com ele.
— Hã... vamos — murmurei, esperando que meu tom de
voz estivesse bem neutro.
Compreendi então que não estava sendo muito sensata.
Convidara um estranho, um estranho do sexo masculino,
um estranho completamente estranho para vir ao meu
apartamento vazio. Se eu terminasse estuprada, roubada e
assassinada, eu mesma ia ser a culpada. Apesar disso,
Gus não estava agindo com se pensasse em estupro e
pilhagem. Estava muito ocupado dançando em volta do
quarto,abrindo gavetas, lendo o extrato do meu cartão de
credito, admirando minhas bugigangas e utensílio.
— Uma lareira de verdade! — gritou ele — Lucy Sullivan,
você compreende o que isso significa?
— Não, o que significa?
— Significa que vamos ter que pegar duas poltronas,
sentar junto do fogo crepitante e contar histórias.
— É? ... Mas veja só, a gente na verdade não usa a
lareira, porque a chaminé precisa ser...
Mas eu já perdera a atenção dele, que nesse momento
abriu o guarda-roupa e começou a mexer nos cabides.
— Ah-ah! Um manto todo decotado — disse ele, puxando
para fora do armário um velho casaco comprido, de veludo,
com um capuz.— Que tal?
Ele o vestiu (justiça seja feita, aquilo foi tudo que ele
demonstrou interesse em experimentar), colocou o capuz e
ficou na frente do espelho girando o corpo e se admirando.
— Lindo! — Ri. — É a sua cara!
Ele parecia uma espécie de duende, só que um duende
muito sexy.
— Você está me zoando, Lucy Sullivan.
— Não estou não.
E não estava mesmo, porque o achava lindo. Estava
adorando o seu entusiasmo, o jeito que tinha da achar
tudo interessante, seu jeito incomum de olhar para as
coisas. Não havia outra palavra para aquilo — eu estava
encantada.
Estava me sentindo também muito aliviada por ele estar
brincando de experimentar roupas, em vez de tentar me
carregar para a cama com ele.
Em teoria, eu sabia que tinha todo o direito de não ir
para a cama com alguém de quem eu não estivesse afim, e
podia trocar de idéia a esse respeito em qualquer ponto do
caminho, mas a realidade é que eu ia me sentir
constrangida de dizer não.
Imagino que depois de ter chegado ate ali seria pouco
hospitaleiro mandá-lo embora de mãos vazias. Isso
remontava aos tempos da minha infância, quando a
generosidade com as visitas importava mais do que
qualquer outra coisa, a tal ponto que não importava se
nos íamos ter de ficar sem jantar, desde que os convidados
estivessem alimentados.
Além do mais, sentia que Gus e eu, de alguma forma,
tínhamos sido feitos um para o outro, e isso era muito
sedutor. Não apenas seria grosseiro e imperdoável eu me
recusar a dormir com ele, mas seria também uma
provocação ao destino, que acabaria por atrair a ira dos
deuses e fazê-la despencar sobre minha cabeça. Era um
grande alivio pensar assim, por isso tirava toda a novela
do "devo ou não devo...?" do caminho. Eu tinha de dormir
com ele. Sem traumas, era tudo muito simples.
Mesmo assim, eu ainda estava nervosa.
Acho que os deuses não podem pensar em tudo.
Sentei-me na cama e fiquei brincando com os meus
brincos enquanto Gus circulava pelo quarto todo, pegando
coisas, pondo-as de volta e fazendo todo o tipo de
comentários.
— Legais esses livros, Lucy. Tirando toda esta baboseira
californiana — murmurou ele, lendo a contracapa de
Quem Fica com o Carro da Família Anômala dos Anos
Noventa. Fiquei feliz por ver que, apesar de Gus ser
ligeiramente excêntrico, não era totalmente neurótico.
Recoloquei os brincos, para poder tirá-los de novo depois.
Sempre achei que usar jóias ou bijuterias era uma boa
idéia em uma situação do tipo sedução, porque, embora
desse a impressão de que eu estava me despindo,
parecendo que eu estava afim de qualquer outra coisa e
tinha espírito esportivo, na realidade a outra pessoa já
estava apenas com as roupas de baixo muito antes de
mim, dando-me a chance de mudar de idéia e esconder as
cartas sem mostrar a mão entre outra coisas.
Aprendi este recurso durante o verão dos meus quinze
anos,período em que Ann Garrett e Fiona Hart
costumavam jogar strip-poker com alguns garotos da
nossa rua. Tanto Ann quanto Fionajatinham seios, e
durante aquele verão cheio de insinuações sexuais,
veladas ou não, nenhuma delas provocadas por mim, devo
acrescentar, elas viviam loucas para se ver em uma
situação qualquer em que fossem obrigadas a exibir o
corpo, eu não tinha seios embora adorasse saber que
tinha amigos, preferia morrer a ter que me sentar no
terreno atrás da fileira de lojas da cidade em uma
agradável noite de verão, só de calcinha e sutiã, em
companhia de Derek Wheatley, Gordon Wheatley, Joe
Newey Paul Stapleton.
Assim resolvi o problema usando tantas jóias, bijuterias
e acessórios quanto conseguia reunir. Minhas orelhas não
eram furadas — só consegui fazer isso aos vinte e três
anos —, de forma que eu tinha de usar brincos de pressão,
que paralisavam a circulação e transformavam os lóbulos
das orelhas em bolotas vermelhas de agonia latejante, mas
isso era um preço pequeno a pagar (embora sempre
representasse um alivio, para mim, perder as primeiras
rodadas de pôquer). Discretamente , contrabandeava e
levava para o jogo um anel de camafeu que a minha mãe
mantinha guardado, enrolado em papel de seda no fundo
de uma caixa dentro do seu guarda-roupa, exibindo
apenas no aniversário de casamento ou no dia em que ela
fazia aniversário. O anel era grande demais para mim , e
eu vivia aterrorizada em perdê-lo. Com mais três
braceletes cor-de-rosa, de plástico, que eu ganhara como
prenda em uma quermesse, o crucifixo da Crisma e ainda
a corrente, eu garantia que jamais precisaria despir mais
do que minhas sandálias e meias, para me sentir ainda
mais segura, usava três pares de meias.
O mais curioso é que Ann e Fiona jamais usavam
nenhuma bijuteria.
E pareciam não ter muita preocupação com o jogo
também, descartando ases e reis como se fossem roupas
fora de moda e, em pouco tempo, já estavam de calcinha e
sutiã, dando risadinhas e anunciando o quanto estavam
envergonhadas, sentadas bem retas, com a barriga
encolhida, os ombros para trás e os peitos para cima.
Enquanto isso, eu ficava ali do lado, toda vestida, com
uma porção de braceletes cor-de-rosa e brincos
empilhados na grama, ao lado.
Aquilo era estranho. Eu quase nunca vencia em jogo
algum, porem, de algum modo, sempre conseguia ganhar
as partidas de strip-poker. O mais estranho ainda é que
nenhum dos outros jogadores parecia muito
impressionado com minhas vitórias. Levei vários anos
para compreender que eles não ligavam a mínima para a
própria derrota, ao contrario do que eu, toda convencida,
imaginava;
Fui uma adolescente muito ingênua.
Continuei ali, tirando e tornando a colocar os brincos
enquanto Gus se familiarizava com todos os objetos do
meu quarto.
— Vou dar uma deitadinha aqui, Lucy, tudo bem?
— Claro
— Você se incomoda se eu tirar as botas?
— Hã... não, claro que não. — Na verdade, eu estava
esperando que você fosse tirar mais do que as botas. Se
ele tirasse apenas as botas, porém, eu ia aceitar numa boa.
Com aquela roupa toda, aquilo não ia dar em nada mesmo.
Ele se deitou na cama, ao meu lado.
— Isso é gostoso — disse ele, segurando a minha mão.
— Hum-hum...— murmurei. Era gostoso mesmo.
— Sabe de uma coisa, Lucy Sull...?
— O que?
Ele não disse mais nada.
— Sei o quê? — tornei a perguntar, virando-me a fim de
olhar pra ele.
Só que Gus já estava profundamente adormecido,
estirado na minha cama, ainda de jeans e camiseta.
Parecia tão doce, com as pestanas muito pretas e
compridas lançando sombras sobre o rosto, as pontinhas
da barba por fazer já parecendo em seu maxilar e queixo,
a boca sorrindo levemente.
Fiquei ali, olhando pra ele.
É isso o que eu quero pra mim, pensei. Ele é o homem
certo.



















CAPÍTULO 22
Puxei o edredom de baixo do seu corpo e o cobri com ele,
o que fez com que eu me sentisse muito carinhosa e terna.
Puxei para o lado a mecha de cabelo que caia em sua testa,
só para reforçar a emoção. Será que eu devia deixá-lo
dormindo ali, todo vestido?, perguntei a mim mesma. Bem,
tinha de ser daquele jeito, porque eu não ia tirar a roupa
dele. Certamente não pretendia ficar remexendo nas
roupas de baixo dele para dar olhadas furtivas e espiar o
trailer antes da estréia.
Então, sentindo-me um pouco assim, tipo sem ter o que
fazer, me aprontei para dormir. Coloquei o pijama — eu
tinha quase certeza de que Gus não era aquele tipo que
gostava de négligé sexy, o que pra mim era ótimo, porque
eu não tinha uma négligé sexy. Gus ia provavelmente ficar
mais intimidado com uma négligé sexy do que excitado.
Por outro lado, sei lá, não dava para saber ao certo.
Eu fui escovar os dentes. É claro que fui escovar os
dentes. Escovei tanto que minhas gengivas ficaram quase
em carne viva. Sabia muito bem que escovar os dentes era
a coisa mais importante a fazer quando dividíamos a cama
com m homem estranho. As revistas e as minhas
experiências passadas não conseguiam transmitir a real
importância daquilo. Era muito triste pensar que um
homem que se interessou o bastante por você para fazer
sexo à noite e sair disparado porta afora se o seu hálito
não tivesse, pelo menos, o aroma de hortelã na manha
seguinte. Era assim que as coisas eram. Ficar triste com
isso não mudava nada.
Em vez de remover a maquiagem, eu coloquei vários
quilos a mais. Queria parecer linda para quando Gus
acordasse de manhã. A camada extra de maquiagem ia
compensar o fato de ele estar sóbrio e contrabalançar a
imagem que ele tinha de mim, se quisesse ver desse modo.
Então, pulei na cama, ao lado dele. Ele parecia tão gatinho
ali, dormindo...
Fiquei deitada, olhando para a escuridão, pensando em
todo o que me acontecera naquela noite, e, talvez devido a
empolgação, pela expectativa que sentia, pelo
desapontamento ou talvez até pelo alívio, não consegui
pegar no sono.
Depois de algum tempo, ouvi a porta da frente do
apartamento se abrir, e escutei a voz de Karen, em
seguida pela de Charlotte e a de mais alguém com voz de
homem conversando, enquanto chá era servido entre
cochichos e risadas abafadas. Tudo estava muito mais
calmo do que na véspera. Não havia A Noviça Rebelde,
sem móveis derrubados, nem explosões de gargalhadas.
Depois de ficar séculos ali, deitada no escuro, resolvi me
levantar de novo para ver o que estava rolando lá fora.
Estava me sentindo meio largada de lado, mas isso não
era novidade. Levantei da cama com toda a cautela, sem
querer perturbar Gus, e saí do quarto nas pontas dos pés.
Puxei a porta ainda de costas para o corredor, fechei-a
com todo o cuidado e esbarrei em uma coisa grande e
escura que normalmente não ficava na porta do meu
quarto.
Pulei um quilômetro com o susto.
— Nossa! — exclamei.
— Lucy! — disse um homem. A coisa na qual eu
esbarrara colocou as mãos nos meus ombros.
— Daniel! — disse, com a voz enrolada pelo
sobressalto. — Que diabos você está fazendo aqui? Quase
me matou de susto, seu idiota!
Em vez de se desculpar, Daniel achou aquilo hilário, e
quase despencou de tanto rir.
— Oi, Lucy — disse, ofegante, sem conseguir falar direito,
de tanto que ria. — Você sempre me recebe de modo
maravilhoso. Pensei que estivesse a meio caminho de
Moscou a essa hora.
— O que estava fazendo, espreitando no escuro, aqui na
porta do meu quarto? — quis saber eu.
— Olha só a sua cara. — Daniel se encostou na parede,
ainda rindo e enxugando as lágrimas que brotaram em
seus olhos. — Você precisa ver a sua cara.
Eu estava abalada, chateada, e não achava nada
engraçado, então dei um soco na barriga de Daniel.
— Ai! — gritou ele, ainda rindo e colocando o braço no
local que eu atingira. — Você é perigosa, hein?
Antes de conseguir atingi-lo novamente, Karen apareceu
no corredor e, subitamente, tudo ficou claro. Piscando o
olho para mim de forma sugestiva, ela disse:
— Fui eu que convidei Daniel para volta aqui em casa.
Não tem nada a ver com você, não se preocupe.
Fui obrigada a tirar o chapéu para Karen. Eu estava
impressionada, muito impressionada. Pelo jeito, ela fizera
muito progresso em seus planos de para fisgar Daniel.
— Eu estava de saída, para falar a verdade — disse
ele —, mas já que você se levantou, vou ficar mais um
pouquinho.
Fomos todos em bando para a sala da frente, e me senti
um pouco sem graça por Daniel me pegar usando pijama
de flanela. Charlotte estava toda esticada no sofá,
parecendo imensamente feliz. A sala mostrava sinais de
que alguém estivera bebendo chá ali, há poucos minutos.
— Lucy — disse Charlotte, adorando a minha
chegada. — Maravilhoso, você se levantou. Venha até aqui
e sente-se a meu lado.
— Ela se sentou e deu uma batidinha no lugar junto
dela. Discretamente, eu me apertei as seu lado e encolhi
as pernas. As unhas dos meus pés estavam com o esmalte
descascando, e havia uma bolha que eu não queria que
Daniel visse.
— Sobrou chá? — perguntei.
— Litros — disse Charlotte
— Vou pegar uma xícara pra você — anunciou Daniel,
indo pra cozinha. Voltou logo depois, serviu o chá em uma
caneca, acrescentou um pouco de leite, duas colheres de
açúcar, mexeu com a colherzinha e me entregou.
— Obrigada, até que você serve para alguma coisa, de
vez em quando.
Ele ficou de pé ao lado do sofá, olhando para baixo, na
minha direção.
— Ai, Daniel, tire esse casaco — reclame, irritada —,
você está parecendo um coveiro.
— Eu gosto desse casaco.
— E sente-se logo. Você está bloqueando a luz.
— Desculpe.
Daniel sentou na poltrona que ficava junto do sofá e
Karen sentou no chão, apoiando a cabeça no braço da
poltrona. Os olhos dela estavam brilhando e ela parecia
toda sonhadora e romântica. Eu estava, para ser franca,
chocada.
Karen estava se comportando totalmente fora do seu
normal. Ela sempre brincava de difícil. Deixava os homens
enredados em incertezas, e já transformara muitos
sujeitos equilibrados em inseguros bonecos de terno. Era
sempre assim, tipo dura de conquistar, e naquele
momento parecia meiga, linda e doce.
Ora, ora, quem diria...
— Conheci um cara — disse Charlotte.
— Eu também — disse, com cara de alegre.
Karen também, mas talvez não fosse o momento certo
para ela conversar sobre aquilo.
— A gente já sabe, Lucy — disse Charlotte— Karen
andou encostando o ouvido na porta do seu quarto, para
ouvir se você estava transando com ele.
— Sua vaca linguaruda... — reagiu Karen, furiosa.
— Ah, parem com isso — disse eu. — Não briguem.
Quero saber a respeito do cara que Charlotte conheceu.
— Não, quero saber sobre o seu primeiro — disse
Charlotte.
— Não, não, primeiro você
— Não, você!
Karen fez uma cara de adulta aborrecida com aquilo,
mas só para impressionar Daniel, fazendo-o pensar que
ela não agia de modo tolo como uma garotinha que vive
trocando fofocas. Mas esse era o jeito certo de agir. Toda
nós já havíamos feito a mesma coisa, quando o cara de
quem estávamos loucamente a fim encontrava-se presente.
Ela no era mais culpada disso do que eu. Aquela era
apenas a tática, e logo que Karen tivesse a certeza de que
ele estava interessado, poderia voltar ao seu estado
normal.
— Por favor, Lucy, conte você primeiro — interveio
Daniel.
Karen pareceu surpresa com aquilo, mas disse?
— Isso, conte logo, Lucy. Deixe de ser recatada!
— Está bem — concordei toda satisfeita.
— Ótimo! — Charlotte levantou as pernas e abraçou-as
na altura dos joelhos.
— Por onde vocês querem que eu comece a história? —
perguntei, rindo de orelha a orelha.
— Olhem só para ela — disse Karen com um tom
seco. — Parece que o gato engoliu o canário.
— Qual é o nome dele? — quis saber Charlotte.
— Gus.
— Gus?! — Karen estava horrorizada. — Que nome
horrível... Gus, o Gorila!... Gus, o Ganso!...
— Como ele é? — interessou-se Charlotte, ignorando os
ruídos de nojo que Karen estava fazendo.
— Ele é adorável — comecei, com a descrição ganhando
cada vez mais entusiasmo. E então reparei que Daniel
estava olhando para mim com um jeito estranho. Chegou-
se para beirada da poltrona, com as mãos nos joelhos, e
continuou olhando, parecendo meio intrigado ou meio
triste, — Por que é que você está olhando para mim
assim ? — perguntei, com indignação.
— Olhando assim como?
Foi Karen que disse isso, não Daniel.
— Obrigado, Karen — disse Daniel, dirigindo-se a ela
com toda a educação —, mas acho que consigo articular
algumas palavras sozinho.
Karen deu de ombros e jogou os cabelos louros para trás,
com desde. A não ser pelo leve rubor em suas bochechas,
não dava para ninguém perceber que ela ficara sem graça.
Eu invejava toda aquela pose e autocontrole.
Daniel tornou a se virar para mim, continuando:
— Onde é que estávamos? — perguntou ele. — Ah, é
mesmo... Olhando assim como?
Comecei a rir, dizendo:
— Não sei. — E soltei mais uma risadinha. — De um
jeito engraçado, como se você soubesse alguma coisa ao
meu respeito que eu mesma não soubesse.
— Lucy — disse ele, com a cara séria —, eu jamais seria
tolo o bastante para presumir que poderia saber alguma
coisa que você não soubesse. Eu preso a minha vida.
— Ótimo! — Sorri.— Agora posso continuar a falar a
respeito do cara que conheci?
— Sim — sussurrou Charlotte. — Por favor, continue a
descrevê-lo.
Beeem... — disse eu, fazendo suspense. — Ele tem vinte
e quatro anos, é irlandês e é brilhante. Realmente é muito
engraçado e um pouco, vocês sabem... anticonvencional.
Não se parece em nada com outro cara que já encontrei na
vida e ...
— É mesmo? — perguntou Daniel, com cara de
espanto. — E quanto aquele sujeito, o tal de Anthony, por
quem você tinha uma quedinha?
— Gus é totalmente diferente de Anthony
— Mas...
— Anthony era louco.
— Mas...
— Gus não é — disse eu, com firmeza.
— Ta bom... mas e quanto aquele outro irlandês bêbado
com quem você ando saindo? — perguntou Daniel.
— Quem? — perguntei, começando a me sentir ligeira
mente chateada.
— Como era mesmo o mesmo dele..? Matthew? Malcolm?
— Malachy — murmurou Karen, para ajudar. Traidora!
— Isso mesmo, Malachy?
— Gus não é nem um pouco parecido com Malachy
também! — exclamei — Malachy vivia bêbado.
Daniel não disse nada. Simplesmente levantou a
sobrancelha e lançou-me um olhar expressivo.
— Ta legal! — explodi. — Sinto muito pelas latas de
Guinness. Vou comprar outras pra você, não se preocupe.
Por falar nisso, desde quando você começou a ficar tão
chato e pão-duro, hein?
— Mas não estou...
— Por que esta sendo tão desagradável?
— Mas...
— Não esta feliz por mim?
— Sim, mas...
— Olha, se não tem nada de agradável pra dizer, é
melhor ficar calado!
— Desculpe.
Ele pareceu tão arrependido que me senti culpada.
Inclinei-me na direção dele e apertei o seu joelho, tentando
me desculpar, meio sem graça. Eu era irlandesa. Não
sabia lidar com clima quente ou sinais espontâneos de
afeto.
— Sinto muito também — murmurei
— Talvez você acabe se cansando, afinal — sugeriu
Charlotte. — Esse tal de Gus pode ser o homem sobre o
qual a taróloga falou.
— Pode ser — concorde, baixinho. Estava sem coragem
de admitir que era isso que eu também estava achando.
— Sabe — disse Charlotte, parecendo um pouco
envergonhada —, por algum tempo achei que Daniel podia
ser o seu Homem misterioso, seu futuro marido.
Cai na gargalhada.
— Ele! — exclamei. — Não encostaria nele nem com uma
vara de pescar. Nunca se sebe por onde ele pode ter
andado.
Daniel fez cara de ofendido, e Karen ficou meia furiosa.
Na mesma hora retirei o que eu disse e pisquei
afetuosamente para ele.
— Estou só brincando, Daniel. Você sabe o que eu quis
dizer. S e servir de consolo, saiba que minha mãe ia
adorar essa idéia. Você é o genro que ela pediu a Deus.
— Eu sei — suspirou ele — mas você tem razão, jamais
daria certo. Sou comum de mais pra você, não é , Lucy?
— Como assim?
— Bem, eu tenho um emprego, não apareço para
encontrá-la zureta de tão bêbado, pago as despesas
quando saímos e não sou um artista em crise.
— Cale a boca, seu bobalhão. — Ri. — Do jeito que você
fala, parece que todos os meus namorados são bêbados e
vagabundos interesseiros.
— Parece?
— Sim. E é melhor parar com isso, porque eles não são.
— Desculpe.
— Tudo bem.
— Mesmo assim — completou ele —, acho que Connie
não vai ficar muito satisfeita quando conhecer Gus.
— Ela não vi conhecê-lo — afirmei
— Vai ter que conhecê-lo, se você se casar com ele —
lembrou ele.
— Daniel, por favor, cale a boca! — implorei. — Este era
para ser um momento feliz.
— Sinto muito, Lucy — murmurou ele
Reparei no olhar dele. Daniel não parecia nem um pouco
arrependido. Antes que eu pudesse reclamar, ele disse:
— Vamos lá, Charlotte, conte-nos sobre o cara que você
conheceu.
Charlotte ficou mais do que feliz por atender a esse
pedido. Pelo que cotou, ele se chamava Simon, era alto,
bonito, tinha vinte e nove anos, trabalhava com
publicidade, tinha um carro sensacional, perseguira
Charlotte a noite inteira na festa e combinara de ligar para
ela no dia seguinte para levá-la para almoçar.
— E eu sei que ele vai ligar — disse ela, com os olhos
brilhando. — Estou com um bom pressentimento sobre ele.
— Ótimo! — disse eu, satisfeita — Pelo jeito, todas nós
tivemos sorte esta noite.
Saí da sala e me enfiei na cama, de mansinho, ao lado
de Gus.

CAPÍTULO 23
Gus ainda estava dormindo e continuava lindo. Só que
as coisas que Daniel dissera haviam me deixado
ligeiramente preocupada. Era verdade: a minha mãe não
ia gostar nem um pouco de Gus. Na verdade, minha mãe
ia odiá-lo. O lado bom de toda aquela noite começou a se
desfazer lentamente. Eu ficava admirada da infalível
capacidade que a minha mãe tinha de estragar todas as
coisas boas que me aconteciam.
Sempre fora assim a vida toda, até onde eu conseguia
lembrar.
Quando eu era pequena e papai chegava em casa de
bom humor porque conseguira um emprego, ou porque
ganhara algum dinheiro nas corridas de cavalos, ou algo
desse tipo, ela sempre conseguia neutralizar qualquer
celebração. Papai chegava à cozinha, cheio de sorrisos,
com o bolso do casaco cheio de balas para nós e um saco
de papel pardo na mão, com uma garrafa dentro. E ela, em
vez de sorrir e perguntar: "O que aconteceu, Jamsie? O
que estamos celebrando?", arruinava tudo fazendo uma
careta e dizendo algo horrível, como: "Ah, Jamsie, outra
vez?" ou "Ah, Jamsie, você prometeu!".
Mesmo com seis ou oito anos, ou sei lá que idade eu
tinha, eu me sentia terrível. Arrasada pela ingratidão dela.
Ansiosa para mostrara ele que eu estava do lado dele. E
não era só pelo fato de os doces serem um acontecimento
raro. Eu concordava com papai, de todo o coração, quando
ele falava:
— Lucy, sua mãe é muito rabugenta.
Por não haver mais ninguém que fizesse isso, eu achava
que era meu papel levantar o astral da casa.
Por isso, quando papai sentava e se servia de uma
bebida, eu me sentava à mesa com ele, para fazer-lhe
companhia, demonstrar solidariedade e para ele não
celebrar sozinho fosse lá o que fosse.
Era legal ficar olhando para ele. Havia um certo ritmo na
maneira como ele bebia, e eu achava isso reconfortante.
Minha mãe demonstrava toda a sua desaprovação
batendo com as panelas, deixando coisas caírem no chão e
fazendo ruídos enquanto lavava e limpava tudo. De vez em
quando, papai tentava animá-la, dizendo:
— Coma o chocolate que eu trouxe, Connie.
Se a frase "levante o seu astral!" já tivesse sido
inventada, ele provavelmente faria bom uso dela.
Depois de algum tempo, ele colocava uns discos para
tocar e cantava junto "Quatro campinas verdes"."Quem
dera eu estivesse em Carrickfergus" e outras canções
irlandesas. Ele as tocava várias vezes, sem parar, e de vez
em quando, entre as canções, dizia:
— Come a porra do chocolate, mulher!
Dali a mais um pouco, ele normalmente começava a
chorar. Mas continuava contando, a voz rouca por causa
das lágrimas. Ou talvez por causa da bebida.
Eu sabia que ele estava arrasado por não estar em
Carrickfergus. Às vezeseu ficava tão triste por ele que
chorava junto. Mas minha mãe falava apenas:
— Meu Deus! Esse idiota nem sabe onde fica
Carrickfergus, não se aflija por ele querer estar lá.
Eu não conseguia entender a razão de ela se sentir tão
infeliz. Ou de ser tão cruel.
E ele falava, com a voz meio arrastada:
— Não é um lugar, é um estado de espírito, minha cara.
É um estado de espírito.
Eu não entendia bem o que ele queria dizer com isso.
E quando ele completava, com a mesma voz arrastada,
dizendo:
"Você não pode mesmo saber, porque não tem nem
mesmo espírito!", eu sabia muito bem o que ele queria
dizer. Olhava para ele e trocávamos risadinhas, como se
conspirássemos.
Todas aquelas noites seguiam o mesmo padrão. O
chocolate intocado, a ingestão rítmica da bebida, a
bateção de panelas e coisas caindo no chão, a cantoria e a
choradeira. Então, quando a garrafa já estava quase vazia,
minha mãe normalmente dizia algo assim como "lá vai
ele;prepara-se para o espetáculo".
Papai se colocava em pé. Ás vezes, não conseguia
caminharem linha reta. Na maioria das vezes, pra falar a
verdade.
— Vou voltar para a Irlanda — dizia minha mãe, com a
voz entediada.
— Vou voltar para a Irlanda! — gritava meu pai, com a
voz engrolada.
— Se eu partir agora, ainda consigo pegar o trem do
correio — dizia minha mãe com a mesma voz entediada,
enquanto se encostava na pia.
— Se eu partir agora, ainda consigo pegar o correio do
trem! — gritava meu pai. Ás vezes seus olhos ficavam
vesgos, como quando tentamos olhar a ponta do nariz.
— Fui uma tola ter saído de lá — dizia mamãe, sem
expressão, analisando as unhas. Eu não conseguia
compreender a completa falta de emoção que ela exibia.
— Fui um tremendo idiota por ter saído de lá! — gritava
papai.
— Ah, dessa vez é um "tremendo idiota", é? Por mim,
preferia o "tolo", mas até que é bom, para variar.
O pobre do meu pai ficava de pé ali, balançando o corpo
levemente para frente e para trás. Depois se encurvava,
ficando um pouco parecido com um touro, e olhava para a
minha mãe, sem conseguir enxergá-la. Provavelmente, só
conseguia ver mesmo a ponta do nariz.
— Vou embalar minhas tralhas — dizia mamãe, como se
fosse o ponto, cochichando os diálogos para um ator.
— Vou entralhar minhas balas! — dizia papai, andando
com determinação para a porta da cozinha.
Mesmo sabendo que isso não acontecia muitas vezes, e
ele jamais ia alem da porta da frente, toda vez eu achava
que ele estava indo embora de verdade.
— Papai, por favor, não vá embora — suplicava eu.
— Num posso ficar em uma casa que tem ezza mulher
inzuportável que nem come o chogolate que eu trouxe —
costumava ele dizer.
— Coma o chocolate! — eu implorava a mamãe,
enquanto tentava impedir papai de sair de sala.
— Num fique no meio do caminho, Lucy, senum eu num
vô ser rasponza...qué dizê... Num vô ser rospensibi... qué
dizê... ah, que se foda! — E saía pelo corredor, em direção
à sala.
Então, ouvíamos um som da mesa de sala despencando,
e mamãe murmurava:
— Se aquele nojento quebrou minha...
— Mãe, impeça-o! — implorava eu, histérica.
— Ele não vai alem do portão — afirmava ela, com
amargura. — O que é uma pena.
Embora eu não acreditasse, ela tinha razão. Ele
raramente ia além do portão.
Certa vez ele seguiu pela rua e foi até a casa dos
O'Hanlaoin, segurando um saco plástico com quatro fatias
de pão de forma e a garrafa com um restinho de bebida
debaixo do braço. Aquilo era o seu sustento para ir até
Monaghan, Ele ficou parado ali, na frente da casa dos
O'Hanlaoin por algum tempo, gritando coisas. Algo a
respeito de os O'Hanlaoin serem desonestos e como
Seamus tivera de fugir da Irlanda para não ser preso. "Ocê
teve de fugi de lá!", berrava meu pai.
Mamãe e Chris tiveram de sair e ir até lá para buscá-lo e
trazê-lo de volta. Ele veio, mansinho. Mamãe o puxou pela
mão diante dos olhares de censura de todos os vizinhos
que ficaram em pé, com os braços cruzados, olhando por
cima de seus portões baixos, observando o espetáculo em
silencio. Quando chegou à porta de nossa casa, mamãe se
virou e gritou para eles:
— Podem entrar agora. O circo acabou!
Fiquei surpresa ao perceber que ela estava chorando.
Achei que era de vergonha. Vergonha pela forma como
ela o tratava, vergonha por arruinar o humor dele,
vergonha por não comer o chocolate que ele trouxera para
ela e por encorajá-lo a ir embora.
Uma vergonha que ela merecia muito estar sentindo.

CAPÍTULO 24
Acordei com Gus inclinado, com a cabeça pro cima de
mim. Olhando ansioso para meu rosto.
— Lucy Sullivan? — perguntou.
— Sou eu — disse, sonolenta.
— Ah, graças a Deus!
— Pelo quê?
— Achei que você fosse apenas um sonho.
— Que graçinha...
— Estou feliz por pensar assim, Lucy — disse ele, com
ar triste. — Mas temo que a coisa não seja tão bonita
assim. Com o meu histórico, muitas vezes já acordei
desejando que tudo o que aconteceu na noite anterior
tivesse sido um sonho. É novidade para mim esperar que
não tivesse sido um sonho.
— Ah.
Estava confusa, mas achava que aquilo parecia um
elogio.
— Obrigado por me permitir usufruir de suas
instalações para dormir, Lucy — disse ele. — Você é um
anjinho.
Sentei na cama, alarmada. Aquilo parecia discurso de
despedida. Será que ele estava de saída?
Mas, não, ele não estava de camisa; portanto, ainda não
ia embora. Eu me deitei na cama outra vez, encolhida, e
ele se deitou ao meu lado. Embora o edredom estivesse
entre nós, o contato me pareceu muito gostoso.
— O prazer foi todo meu. — E sorri.
— Olha, Lucy, eu poderia saber quantos dias passei aqui?
— Menos de um, na verdade.
— Só? — disse ele, parecendo desapontado. — Isso é
muito pouco pra mim. Devo estar ficando velho. Apesar de
que ainda é bem cedo. Temos bastante tempo.
Para mim tudo bem, pensei. Fique o tempo que quiser.
— E agora, eu poderia usufruir de suas instalações
sanitárias, Lucy?
— Vá em frente pelo corredor. Você vai descobrir onde é.
— Mas é melhor cobrir minhas vergonhas, Lucy.
Na mesma hora eu me levantei um pouco e me apoiei no
cotovelo, só para dar uma olhadinha nas vergonhas dele,
antes de ele cobri-las, e reparei que, em algum momento,
durante a noite, Gus tirara as roupas e ficara só com a
cueca samba-canção. E que lindo corpo ele tinha! Pele
muito lisa, braços fortes, cintura fina e sem barriga. Não
deu para ver direito as pernas dele, porque ele estava
quase deitado em cima de mim, mas se eram como o resto
dele, deviam ser deliciosas.
— Use o meu roupão, está pendurado atrás da porta.
— Mas e se eu encontrar uma das suas colegas de
apartamento? — perguntou ele, fingindo estar receoso.
— Que é que tem? — Dei uma risadinha.
— Vou ficar com vergonha. Elas vão, você sabe... pensar
coisas a meu respeito.
Ele colocou a cabeça de lado, parecendo todo tímido e
envergonhado.
— Que tipo de coisas? — Eu ri.
— Vão ficar perguntando onde foi que eu dormi, e isso
vai arruinar minha reputação.
— Vá em frente que eu defendo a sua honra se alguém
falar alguma coisa.
A voz dele e seu sotaque eram tão lindos que era capaz
de eu ficar ali para sempre, ouvindo-o falar.
— Que lindo roupão! — disse Gus. Era do tipo atoalhado,
com um capuz. Ele o vestiu, colocou o capuz sobre a
cabeça e ficou pulando como um pugilista em volta da
minha cama, lutando contra o ar.
— Você pertence à Ku Klux Klan, Lucy Sullivan? —
perguntou ele, admirando-se no espelho. — Tem alguma
cruz em chamas escondida debaixo da cama?
— Não.
— Bem, se resolver se associar a eles, não vai precisar
comprar o uniforme, é só jogar o roupão por cima do
vestido, levantar o capuz e pronto. Fácil de mais.
Recostei no travesseiro e sorri para ele. Sentia-me feliz
— Certo — disse ele. — Vou até lá, então.
Gus abriu a porta e imediatamente tornou a fechá-la.
Dei um pulo.
— Que foi? Há algo de errado?
— Aquele homem! — disse Gus, parecendo horrorizado.
— Que homem?
— Aquele alto, que roubou a cerveja do seu amigo na
festa, e também a minha garrafa de vinho. Ele está aí fora,
bem junto da porta.
Então Daniel passara a noite em nosso apartamento...
Que engraçado.
— Não, não, escute só... — disse eu, meio ofegante.
— Ele está mesmo, Lucy, juro que está! — insistiu
Gus. — A não ser que eu esteja tendo visões de novo.
— Não, você não esta tendo visões — disse eu.
— Bem, então temos que expulsá-lo daqui, senão ele vai
roubar coisas, e não vai deixar nem uma perna de móvel
para contar história. É sério, Lucy! Já encontrei tipos
como esse antes. São profissionais treinados...
— Não, Gus, por favor, me escute — disse, tentando
ficar seria. — Ele não vai roubar a nossa mobília, é meu
amigo.
— Verdade? Você esta falando serio mesmo? Olha, sei
que nada disso me diz respeito, nós acabamos de nos
conhecer e eu não tenho o direito de dar palpite, mas ter
amizade com um criminoso comum, Lucy?... Eu não
esperava por isso, não esperava mesmo...E também não
consigo entender por que está achando tudo isso tão
engraçado. Não vai achar nem um pouco de graça quando
encontrar o seu sofá à venda em uma barraca de Camden
Market * e se vir obrigada a dormir no chão. Não acho que
isso seja motivo de riso...
— Por favor, cale a boca e me escute — consegui
balbuciar. — Daniel é o tal homem alto do lado de fora da
porta. Ele não roubou a cerveja de ninguém.
— Mas eu o vi...
— Aquela cerveja era dele mesmo, entende?
— Não, a cerveja era de Donal.
— Mas ele é Donal, e seu nome é Daniel.
Uma pausa, enquanto Gus digeria o fato.
— Ai, meu Deus — gemeu ele.
Ele balançou o corpo, colocando-o para frente, e se
jogou na cama, com as mãos no rosto.
— Ai, Deus, ai, Deus, ai, meu Deus — tornou a gemer.
— Está tudo bem... — disse eu, com gentileza.
— Ai, meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Gus levantou a cabeça e olhou para mim, por entre os
dedos.
— Ai, meu Deus! — disse ele, com o rosto arrasado.
— Não foi nada, está tudo bem.
— Não, não está.
— Está sim.
— Não, não está. Eu o acusei de roubar a própria
cerveja e depois a bebi toda! E ainda por cima peguei a
garrafa de vinho da namorada dele.
— Ela não é namorada dele... — expliquei, sem
necessidade. — Embora, pensando bem, talvez ela seja,
agora...
— A loura com cara de assustada?
— Hã... sim. — Karen poderia ser descrita daquela
forma.
— Pode acreditar em mim — insistiu Gus. — Ela é
namorada dele sim, pelo menos se tiver alguma coisa a ver
com tudo isso.
— Acho que tem razão — admiti.
Que interessante, pensei. Então Gus era perceptivo e
muito observador? Quanto daquele jeito dele amalucado e
desaparafusado era apenas aparência? Ou será que ele era
perceptivo e também amalucado? Era possível que tudo
aquilo fosse parte do mesmo homem? E será que eu tinha
energia para agüentar aquilo?
— Geralmente não sou tão detestável assim, Lucy, sério
mesmo...— insistiu ele. — Deve ter sido por causa das
drogas. Só pode ser.
— O.K. — disse eu, quase desapontada.
— Vou ter que pedir desculpas a ele — disse Gus,
pulando da cama.
— Não! — disse eu. — Volte aqui. O dia mal começou,
ainda está muito cedo para pedir desculpas. Mais tarde.
Gus ficou em pé atrás da porta por algum tempo,
parecendo estressado e ansioso, e depois abriu uma
frestinha.
— Ele sumiu — anunciou, com alívio. — Agora já é
seguro eu sair para tomar uma chuveirada. — E lá se foi
ele.
Enquanto ele ficava fora do quarto, fiquei deitada na
cama, sentindo-me satisfeita comigo mesma. Tinha de
admitir que estava aliviada por ele ficar envergonhado ao
saber que acabara com as cervejas de Daniel. Aquilo
provava que ele era uma pessoa decente.
E era muito esperto também. Sacou tudo sobre Karen,
bem depressa.
E ainda era mais bonito do que eu lembrava. Sorridente,
atraente, e seus olhos não estavam mais vermelhos.
O que aconteceria, me perguntei, quando ele voltasse do
banheiro? Será que ele ia se vestir para ir embora,
esquecendo de mencionar qualquer coisa a respeito de me
telefonar? De alguma forma, eu achava que não.
Certamente esperava que não.
Não havia no ar aquela sensação sórdida que geralmente
acompanha as manhãs de domingo, quando a gente
acorda com um completo estranho na cama ou nos vemos
na cama de um completo estranho.
Pelo menos Gus me acordara. Não havia escapado da
cama sem fazer ruído, nem se vestido no escuro, sem fazer
barulho, para em seguida sair desabalado do apartamento,
enfiando a cueca no bolso e esquecendo o relógio sobre a
mesinha-de-cabeceira.
Eu não acordara com o barulho da porta da frente
batendo, após sua saída. E isso, com o meu histórico de
relacionamentos, já era um bom começo.
Estar com Gus me parecia a coisa natural e certa. Eu
nem estava nervosa. Bem, quase não estava.
Ele voltou do banheiro com uma toalha cor-de-rosa em
volta da cintura, o cabelo molhado e brilhando, todo limpo
e perfumado.
Perfumado até demais, na verdade.
Eu estava certa sobre suas pernas.
Ele não era muito alto, mas era todo másculo.
Um calafrio me percorreu a espinha. Estava ficando com
vontade de... hã... conhecê-lo melhor...
— Você está olhando para um homem que acaba de ser
descascado ao extremo, Lucy — sorriu ele, parecendo
muito satisfeito.
— Descascado, desfolhado, lavado, condicionado,
amaciado, hidratado, massageado, untado, tudo! Pode
falar qualquer coisa que eu garanto que passei por isso
nos últimos dez minutos. Lembra quando tudo o que
esperavam de nós era que nos lavássemos, Lucy? Agora
não. Temos que acompanhar os novos tempos, não é
verdade, Lucy Sullivan?
— Sim. — Soltei uma risada. Ele era tão engraçado...
— Não podemos ficar parados, senão nasce grama
embaixo da gente, não é, Lucy Sullivan?
— É.
— Vai ser difícil você encontrar um homem mais limpo
em toda Londres.
— Aposto que vai.
— Suas instalações sanitárias são maravilhosas, Lucy.
Você deve ter muito orgulho delas.
— Hã, sim, acho que sim...
O estado do meu banheiro não era algo que ocupasse
muito os meus pensamentos.
— Lucy, espero que não haja problemas, mais usei
alguns dos produtos de Elizabeth.
— Quem é Elizabeth?
— Bem, não adianta nada você me perguntar, porque é
você que mora aqui. Ela não é uma das amigas que
dividem o apartamento com você?
— Não, aqui somos só eu, Karen e Charlotte...
— Nesse caso, essa Elizabeth tem a maior cara-de-pau,
porque o banheiro está cheio de coisas dela.
— Mas, do que você está falando, afinal?
— Sobre Elizabeth... como era mesmo o sobre nome dela?
Começava com "G". Ah, já sei, Ardente, é isso, eu acho,
Elizabeth Ardente. Lembrei agora, porque esse me pareceu
um bom pseudônimo para uma escritora de historias de
amor. Enfim, tem um monte de frascos, potes e tubos no
banheiro, todos com o nome dela.
— Ai, meu Deus. — Comecei a rir.
Gus acabara de usar as embalagens caríssimas dos
produtos Elizabeth Arden que pertencem a Karen,
inclusive o gel para banho e a loção para o corpo. Produtos
da marca "Elizabtesão Arden" para deixar a pessoa mais
sedutora, como Charlotte e eu costumávamos chamar de
brincadeira. Isso é porque éramos invejosas e cobiçávamos
os produtos, mas morríamos de medo de tocar neles.
Para falar a verdade, nem a própria Karen os usava. Eles
ficavam lá apenas para exibição, a fim de impressionar
figuras como Daniel, não que ele percebesse esse tipo de
coisa, ainda mais sendo homem. Até aquele momento eu
chegara até mesmo a suspeitar de que havia apenas água
com corante dentro dos frascos.
Cabeças iam rolar por causa daquilo.
— Oh, não — disse Gus, nervoso. — Dei outro fora, não
dei? Cometi outro faux pás. Acho que até esgotei a minha
cota hoje, hein? Não devia ter usado aqueles troços, devia?
— Não se preocupe — disse eu. Não havia motivo para
esquentar a cabeça agora. Já estava feito mesmo. Se
Karen resolvesse criar caso ou, melhor, quando Karen
resolvesse criar caso, eu me ofereceria para pagar pelos
produtos.
— Só que eu acho, Gus, que seria melhor se você não
tornasse a usar as coisas de Karen.
— Quem é Karem? Ah, sei, já entendi. Karen é a dona
das coisas de Elizabeth? Pobre Karen, deve ter herdado
frascos e potes com o nome de outra pessoa gravados
neles. Isso é um pouco parecido com o que aconteci
comigo. Todos os meus livros de escola, até mesmo os
cadernos, tinham sempre o nome de outra pessoa neles,
poruqe eu tinha um monte de irmãos mais velhos... Enfim,
da próxima vez eu uso as suas coisas, Lucy.
— Que bom! — Sorri, adorando a idéia de que haveria
uma próxima vez.
— Mas como é que vou saber quais são os produtos que
pertencem a você? — perguntou ele. — As únicas outras
coisas que havia ali tinham o nome de "Mark Hill"
impresso na embalagem, e não adianta você tentar me
dizer que são seus, porque ninguém, em sã consciência,
poderia chamá-la pelo nome de "Mark".
— Obrigada, Gus — disse eu, enfeitiçada, hipnotizada
pela montanha-russa que era a conversa dele. — Na
verdade, as coisas com o nome de "Mark Hill" são minhas
mesmo.
— Bem, só espero que você saiba que eles podem
processá-la por colocar informações erradas no rótulo de
um produto. — E sorriu. — Ainda mais uma mulher linda
como você — acrescentou, em tom casual.
Senti o sangue subir todo para o rosto, os elogios
pareciam ainda mais sensuais com o sotaque irlandês de
Gus.
— Obrigada — gaguejei.
— Lucy — disse ele. Veio ate onde eu estavae se sentou
ao meu lado, na cama, segurando a minha mão. A mão
dele era macia e quente. A minha parecia minúscula, em
comparação.
Eu gostava de me sentir minúscula ao lado de homens.
Alguns dos homens com quem eu já sairá eram muito
magricelos, e nada cortava mais o meu tesão do que ir
para a cama com um homem que tinha uma bunda menor
do que a minha e coxas também mais magras do que as
minhas.
— Eu realmente sinto muito — disse Gus, com o rosto
serio, fazendo círculos nas costas da minha mão com o
polegar, enviando pequenos arrepios por todo o meu corpo.
Eu quase não conseguia me concentrar no que ele estava
dizendo.
— Você é muito legal, e realmente gosto de você —
continuou ele, meio sem jeito. — Já fiz um monte de
coisas erradas, e nos acabamos de nos conhecer. Às vezes
brinco na hora errada, e quando alguma coisa é
importante para mim pioro as coisas ainda mais. Desculpe.
Meu coração se dissolveu. Eu não ficara chateada,
mesmo, e depois desse pequeno discurso, me senti ainda
mais meiga e muito... protetora em relação a ele.
— E, quanto aos troços que usei no banheiro, talvez se
eu conversasse com Elizabeth e explicasse que...
— Karen! — insisti. — O nome dela é Karen e não
Elizabeth.
— Estou só brincando, Lucy — disse ele. — Entendi que
o nome dela é Karen e que não há nenhuma Elizabeth
morando aqui.
— Ah — disse eu, meio sem graça.
— Você deve estar achando que sou meio burro — disse
ele. — De qualquer modo, é muito gentil de sua parte
tentar ser tolerante comigo.
— É que achei... você sabe.. — tentei explicar, meio sem
jeito.
— Está tudo bem — disse ele.
Trocamos um sorriso de cumplicidade, insinuando que
aquela ia ser uma brincadeira só entre nós.
Já estávamos compartilhando segredos, tínhamos
piadas intimas e senhas verbais.
— Está legal — disse eu. — Tudo ótimo.
— Se você está dizendo... E agora, Lucy, vamos sair para
dar uma caminhada.
Ele já me fizera rir com um monte de coisas que dissera,
mas aquela sugestão me fez rir mais do que todo o resto.
— O que há de tão engraçado, Lucy?
— Eu? Uma caminhada? Em um domingo?
— É, ué!...
— Não...
— Por que não?
— Porque lá fora está congelando.
— Nós vamos usar roupas quentes e caminhar bem
depressa.
— Mas, Gus, eu jamais saio de casa em um domingo
entre outubro e abril, incluindo o inverno todo, a não ser
para ir ao Curryfour de noite.
— Então esta na hora de começar a sair. Que lugar é
esse, Curryfour, um supermercado?
— Não, é o restaurante indiano que fica logo depois da
esquina.
— Que nome legal!
— Bem, na verdade ele não se chama Curryfour, o nome
é algo parecido com A Estrela de Lahore ou A Jóia de
Bombaim.
— E você vai lá todos os domingos à noite?
— Todo domingo, sem falta, comemos sempre a mesma
coisa.
— Certo. Bem, a gente pode ir até lá mais tarde, Lucy,
mas agora nós vamos ao Parque Holland, que fica logo
adiante, aqui nesta rua.
— Ahn?... Fica, é?
— Fica. Há quanto tempo você mora aqui Lucy Sullivan?
— Uns dois anos só — murmurei, tentando fazer a
palavra "anos" soar como "semanas".
— E em todo esse tempo você nunca foi ao parque? Isso
é uma vergonha, Lucy.
— Não sou muito de andar ao ar livre, Gus.
— Pois eu sou.
— Vai ter um aparelho de tevê nesse parque?
— Vai.
— Sério?
— Não. Mas eu vou distraí-la, não se preocupe.
— O.K.
Eu estava realmente muito satisfeita. Adorando tudo, na
verdade, ele queria passar o dia inteiro comigo,
— Posso usar esse suéter?
— Pode, se quiser, pode até ficar com ele pra você, eu
detesto esse suéter.
Gus estava remexendo o meu armário e desencavou um
revoltante suéter azul-escuro que minha mãe fizera para
mim, todo um tricô Aran.
Eu jamais o usava exatamente pelo fato de que foi
minha mãe que o tricotara. Ainda por cima, ela deixara os
pontos tão abertos e frouxos sem tensão, que a gola mais
parecia um pneu furado. Isso era surpreendente, porque
deixar as coisas tensas era algo no qual normalmente ela
era muito boa. Eu ficava parecendo uma tartaruga
enlouquecida quando o colocava para sair.
— Puxa, obrigado, Lucy Sullivan.

CAPÍTULO 24
Fui tomar banho e, quando voltei, o quarto estava vazio.
Gus se fora, e quase entrei em pânico. Tinha medo de que
ele tivesse ido embora do apartamento, mas tinha ainda
mais medo de que ele não tivesse saído. Gus possuía a
admirável capacidade de criar confusão e, apesar do
comovente pedido de desculpas, ainda há pouco, eu ainda
não estava convencida de que era seguro deixá-lo passear
solto pelo apartamento, sem ter alguém vigiando.
Visões de Gus deitado na cama com Daniel e Karen,
batendo papo com eles de forma descontraída, obrigando o
casal a fazer uma pausa inesperada em suas atividades
sexuais diante dos meus olhos.
Mas estava tudo bem.
Gus estava na cozinha, sentado à mesa com Daniel e
Karen. Estavam todos bebendo chá, e o jornal estava todo
espalhado. Para grande alívio meu, todos pareciam estar
se dando muito bem, batendo um papo alegre e civilizado
em plena manha de domingo, não obstante as cervejas
roubadas e os artigos de toalete de Elizabeth Arden
indevidamente utilizados. Gus e Daniel pareciam ter
resolvido suas diferenças com relação ao consumo
desautorizado das latas de Guinness de Daniel. Gus e
Karen também pareciam ser grandes amigos.
— Lucy! — Sorriu Gus quando apareci na porta da
cozinha. — Entre e sente-se aqui, para compartilhar nosso
encontro nutricional.
— Ah — disse eu, baixinho, um pouco surpresa com
toda aquela camaradagem. Fiquei um pouco... Bem... não
exatamente chateada, mas um pouco, sei lá, desbundada,
acho, pelo fato de todas aquelas pessoas, que só haviam
se conhecido por minha causa, estarem se dando tão bem
sem mim.
— Expliquei tudo a Karen a respeito da utilização dos
produtos da Elizabeth Ardente — cantarolou Gus, com a
inocência estampada no rosto. — Ela me disse que está
tudo bem.
— Está tudo certo — disse Karen, sorrindo para Gus,
sorrindo para Daniel e sorrindo para mim.
Eu, hein?... Tenho certeza de que Karen não ia se
mostrar assim tão compreensiva se Charlotte ou eu
tivéssemos usado os mencionados produtos Elizabeth
Arden.
Pelo visto, ela gostara de Gus.
Ou talvez Daniel tivesse se superado entre os lençóis na
noite anterior. Sem dúvida eu ia descobrir tudo mais tarde.
Karen ia me contar tudinho, nos mínimos detalhes, assim
que os homens fossem embora.
Levei horas para me aprontar. Era a coisa mais difícil do
mundo conseguir parecer bem-vestida, bonita, muito
feminina e magra, tudo ao mesmo tempo. Aquilo foi muito
mais difícil do que fora a minha preparação para jantar
com Daniel na noite anterior. O macete de estar bem-
vestida para um passeio ao ar livre era fingir que eu nem
me importava com a aparência, e enfiara a primeira coisa
que me caíra nas mãos.
Experimentei a calça jeans. Sabia que eu ia acabar
desistindo dela mesmo, ainda mais pelo fato de odiar o
jeito como ela fazia as minhas coxas parecerem grossas.
Eu detestava minhas coxas mais do que qualquer coisa
no mundo, e faria qualquer sacrifício na vida para ter
coxas fininhas. Costumava até rezar para conseguir isso.
Bem, pelo menos rezara uma vez. Foi na missa, em um dia
de natal (minha mãe continuava insistindo para que
fôssemos à missa em famille e eu tinha de acompanhar o
rebanho. Qualquer reclamação significava que eu não ia
ganhar Viennetta na hora da ceia). Quando o padre falou
que era hora de fazer nossos pedidos especiais, pedi coxas
mais finas. Depois, quando minha mãe me perguntou qual
tinha sido o meu "pedido especial" e contei, ela ficou
furiosa, disse que aquilo era uma coisa completamente
indigna e inapropriada para pedir. Diante disso tive de
voltar, cheia de vergonha, até a igreja. Abaixei a cabeça,
com toda a humildade, e pedi coxas mais finas para
minha mãe também, para papai, Chris, vovó Sullivan, os
pobres da África e qualquer um que gostasse de coxas
finas.
Ó que Deus não premiou meu altruísmo presenteando-
me com coxas mais finas, e descobri que a única forma de
fazê-las parecer menos volumosas era cercá-las de coisas
maiores. Assim, calcei minhas botas grandes e pesadas.
Em seguida, tive de anular o "efeito caminhoneiro" que
elas provocavam usando um suéter bem infantil, em fio
angorá cor-de-rosa. E uma jaqueta xadrez em azule preto
por cima de tudo, para me dar a impressão frágil e
pequena.
Gastei mais uma hora tentando dar a impressão de que
eu simplesmente amontoara o cabelo em cima da cabeça.
Levou uma eternidade para conseguir arrumar meus
cachos para que eles parecessem ter acabado de cair por
sobre os ombros, de forma casual.
Depois, fiz uma pesada aplicação de maquiagem, a fim
de conseguir o visual "sem maquiagem", ou "cara limpa
chique", se preferirem. Bochechas rosadas, pele branca,
olhos brilhantes e lábios úmidos.
Encontrei Gus na porta da frente, obviamente ainda
muito ligado a Karen, Charlotte e Daniel. Eles agiam como
se já se conhecessem desde crianças, e fiquei mais
animada. Queria que as amigas com quem eu dividia o
apartamento e o resto dos meus amigos gostassem dele. E
queria que ele também gostasse das minhas colegas e
amigos.
Embora, obviamente, sem gostar demais.
Se há uma coisa pior do que o seu namorado e suas
amigas não se darem muito bem, é quando eles se dão
bem demais. Isso pode resultar em complicações terríveis
e muita confusão na hora de fazer os arranjos para se
passar a noite.
Simon, o rapaz que Charlotte conhecera na noite
anterior, telefonara, e Charlotte, muito maquiada e
perfumada, estava se preparando para sair, toda excitada.
— Camisinhas...— disse ela, com o maior fogo,
sentando-se e remexendo em toda a bolsa.— Camisinhas,
camisinhas, será que não tenho camisinhas aqui?
— Mas você só vai se encontrar com ele para almoçar! —
lembrei a ela.
— Lucy, não seja ridícula — disse ela, com ar de
deboche. -... Ah, que bom, achei uma! Qual o sabor? Pina
Colada?! ... Ah, vai ter que servir!
— Você está muito bonita, Lucy — disse Daniel, com
admiração.
— É, está mesmo... Linda! — Gus circulou à minha volta
para dar uma olhada melhor.
— É verdade, está mesmo — ecoou Charlotte.
— Obrigada.
— Estamos prontos então? — perguntou Gus.
— Estamos — afirmei.
— Foi um prazer conhecer vocês todos — disse Gus para
o grupo reunido, todas as mágoas da noite anterior já
esquecidas. — Boa sorte com o... hã... com o... — E
balançou a cabeça para Charlotte.
— Obrigada. — Sorriu ela, toda nervosa.
— Divirta-se.— Daniel piscou para mim.
— Você também. — Pisquei de volta.


















CAPÍTULO 26
Pelo menos não estava chovendo. Estava frio, mas o céu
estava azul, bem claro, e o ar estava parado, sem vento.
— Trouxe luvas, Lucy?
— Trouxe.
— Ah, então você me empresta?
— Ah. — Seu grande egoísta.
— Não, não são para mim! — Riu ele. — Olhe só, uma é
para a sua mão direita, a outra é para a minha mão
esquerda, e então nós ficamos de mãos dadas para juntar
o meio. Viu?
— Vi.
Aquilo foi ótimo, porque cuidou do problema estranho de
ficar andando de mãos dadas. Uma questão que não
representara problema algum na noite anterior, regada a
álcool, mas que poderia se transformar em algo
constrangedor à luz fria e sóbria do dia.
Seguimos em frente, balançando as mãos, com o ar
gelado fazendo nossos rostos ficarem vermelhos.
Nós reclinamos em um barco e continuamos de mãos
dadas, observando os esquilos, que corriam e pulavam à
nossa volta.
Embora eu estivesse sentindo um pouco de timidez, não
conseguia tirar os olhos de Gus. Ele era lindo, com cabelo
tão preto e brilhante, a barba por fazer já cobrindo o
maxilar (pelo visto ele não encontrara o depilador de Karen)
e os olhos muito verdes sob a luz fria do inverno.
Era maravilhoso estar ali com ele.
— Isso é uma delícia — suspirei. — Estou tão contente
por você ter me obrigado a vir.
— E estou contente por você estar contente, pequena
Lucy Sullivan.
— Esses esquilos são umas gracinhas — disse eu. —
Adoro vê-los correndo em volta, de um lado para outro,
pulando e apostando quem corre mais.
Gus na mesma hora se sentou reto e olhou para mim.
— Está falando sério? — quis saber, parecendo muito
alarmado.
O que será agora?, perguntei a mim mesma, já ansiosa.
Será que ele ia começar outro daqueles papos malucos e
fantasiosos?
Pelo jeito, sim.
— Bem... — e começo a falar, muito depressa. — Devo
dizer que os bárbaros devem estar nos portões da cidade,
já que até as criaturas irracionais do campo são obrigadas
a se distrair fazendo apostas ilegais... Enfim, Londres é
assim mesmo, imagino. Qualquer dia os esquilos vão estar
fumando crack!
Ai, meu Deus, pensei, ele é totalmente pirado! Mas não
podia levar aquilo a sério, estava rindo tanto que mal
conseguia falar.
— Não é apostando dinheiro, é apostando quem corre
mais, de brincadeirinha — expliquei.
— Entendi o que você disse, logo da primeira vez, Lucy
Sullivan — disse ele. — E em que tipo de corridas são
estas apostas? — quis saber. — Corrida de cães? Corrida
de cavalos? Bingo? Atenção! Oitenta e oito é a aposta para
os pequenos esquilos! Cartas? Vinte e um? Roleta? Rien
ne va plus! Rien ne va plus, é isso ai! Não existe mais
inocência, Lucy. Toda ela se foi. Não há mais nada
intocado. Só de pensar que os pequenos esquilos estão
fazendo apostas me aperta o coração. Isso não se vê em
Donegal. O que havia de errado com recolher nozes? Não
havia mais emoções nessa atividade, imagino... Isso tudo é
influencia da televisão.
E olhou para mim compreendendo tudo.
— Ah... — disse ele, fazendo uma cara envergonhada. —
Ah, entendi, você quis dizer esse tipo de apostas, e não
aquele tipo de apostas, não foi?
— Sim.
— Ah. Ah, sim. Bem, me desculpe. Um mal-entendido.
Você deve estar achando que já estou pronto para ir para
o pinel. Preparem a cela acolchoada para Gus.
— Não. Simplesmente acho você hilário.
— Isso é muita gentileza sua, Lucy — disse ele. — A
maioria das pessoas simplesmente fala que sou louco.
— E por que será? — perguntei, com ar divertido.
— Sei lá! Veja se descobre — disse ele, com o rosto de
duende assumindo a imagem da inocência.
Adoraria tentar descobrir, pensei.
— Enfim — continuou ele —, se eles acham que eu sou
louco, deviam conhecer o resto da família.
Oh-oh! Senti uma revelação desagradável vinha
surgindo no horizonte. Levantei os ombros, porém, e
resolvi encarar tudo de frente.
— Hã... como é que eles são, Gus?
Ele me lançou um sorriso meio de lado e disse:
— Bem, olha, Lucy, insanidade não é uma palavra que
fico usando toda hora para descrever qualquer coisa,
mas...
Tentei esconder meus temores, mas devo ter
demonstrado, por que ele caiu na gargalhada.
— Pobrezinha da Lucy! Você tinha que ver essa sua
carinha de preocupação.
Tentei sorrir, levando na brincadeira.
— Pode se tranqüilizar, Lucy, estou só de zoação com
você. Eles não são insanos de verdade...
Respirei aliviada.
— ...de certo modo... — continuou ele. — Mas são muito,
muito passionais, talvez essa seja a melhor forma de
descrevê-los.
— Como assim?
Era melhor enfrentar logo o problema, fosse qual fosse,
decidi.
— Tenho um certo receio de lhe contar, Lucy, senão você
vai se convencer de que sou louco varrido do hospício.
Quando souber o tipo de passado que carrego e o lugar de
onde vim, provavelmente vai sair correndo pelas ruas,
gritando apavorada.
— Não seja tolo — disse eu, tranqüilizando-o.
Mas senti um pequeno nó no estomago. Por favor,
senhor, não permita que isto seja tão horrível. Eu gosto
demais dele.
— Tem certeza de que quer ouvir isto, Lucy?
— Tenho. Não pode ser assim tão ruim. Você tem pais?
— Ah, sim. Um par deles, combinando um com o outro.
Um conjunto completo, com todos os complementos.
— E você já mencionou que tinha um monte de irmãos...
— Cinco.
— É um monte mesmo.
— Nem tanto. Pelo menos não na região de onde vim.
Sempre tive vergonha pelo número dos meus irmãos, que
não chegava a dez.
— Eles são mais velhos ou mais novos?
— Mais velhos! São todos mais velhos do que eu.
— Sou, embora seja o único dos rapazes que não mora
mais na casa dos pais.
— Cinco homens adultos, todos morando na mesma
casa. Isso deve criar um bocado de problemas.
— Nossa! Você nem imagina. Mas eles têm que morar lá,
porque todos trabalham na fazendo e no pub.
— Vocês tem um pub?
— Temos.
— Então devem ser ricos.
— Não somos, não.
— Mas sempre achei que quem possuía um pub tinha
sempre dinheiro de sobra.
— Não o nosso pub. É por causa dos meus irmãos,
entende? Gostam de um traguinho.
— Ah, entendi, bebem o lucro todo.
— Não, não bebem — riu ele —, porque não sobram nem
os lucros para beber, já que eles bebem o estoque inteiro.
— Ai, Gus.
— Não temos bebida alguma no estoque porque eles
bebem tudo, devemos dinheiro a todas as fábricas de
cerveja da Irlanda, e quase mais nenhuma delas faz
entregas para nós. Nosso nome também está sujo entre
todas as destilarias do país.
— Mas vocês não tem clientes, não conseguem lucrar
alguma coisa com eles?
— Na verdade, não, porque funcionamos em uma região
isolada. Nossos únicos clientes são os meus irmãos e o
meu pai. E os guardas do lugar, é claro. Mesmo assim eles
só chegam pouco antes do horário de fechar, todas as
noites, para ficar bebendo direto lá dentro.
Para falar a verdade, não podemos cobrar preço algum
deles, porque, se tentarmos cobrar, eles fecham nossas
portas, por não seguirmos a lei e os horários de
funcionamento.
— Você está brincando.
— Não estou, não.
Minha cabeça girava, tentando bolar um esquema para
melhorar o movimento da loja e tornar o pub da família de
Gus lucrativo. Noites com karaokê? Competições com
perguntas? Promoções especiais? Servir comida na hora
do almoço? E contei cada uma dessas idéias para ele.
— Não, Lucy — ele balançou a cabeça, parecendo
divertido com as idéias e triste ao mesmo tempo. — Eles
não são muito bons nessa historia de organização. Ia
acabar saindo alguma coisa errada, porque eles ficam
bêbados o tempo todo e começam a brigar uns com os
outros.
— Está falando sério?
— Estou. Durante as noites, lá em casa, sempre
acontecia alguma coisa extremamente dramática. Cheguei
em casa uma noite e encontrei todos os meus irmãos na
cozinha. Dois deles estavam cobertos de sangue, e outro
estava com a mão enrolada pela camisa, depois de ter
quebrado a vidraça com um soco. Estavam todos se
xingando, mas, de repente, começaram a chorar e a dizer
um ao outro que se amavam muito, como irmãos. Eu
odiava aquilo.
— E qual o motivo de todas essas brigas? — perguntei,
intrigada, fascinada.
— Ah, qualquer motivo serve. Eles não são muito
exigentes para isso não. Um olhar atravessado, uma
inflexão diferente na voz, qualquer coisa serve.
— É mesmo?
— É. Estive lá no Natal e, logo na primeira noite, no
mesmo dia em que cheguei, todos encheram a cara. Foi
tudo muito legal por algum tempo, até que alguma coisa
saiu errado, como geralmente acontecia. Por volta de
meia-noite, PJ achou que Paudi estava olhando de um
jeito engraçado para ele, e então deu-lhe um soco, Mikey
gritou com PJ, mandando-o deixar Paudi em paz, e John
Joe deu um soco em Mikey por gritar com PJ. Então, PJ
deu um soco em John Joe por ele ter batido em Mikey, e
Stevie começou a chorar, por ver seus irmãos agredindo
uns aos outros. E PJ começou a chorar também,
arrependido por ter deixado Stevie tão aborrecido. Foi
quando Stevie deu um soco em PJ por ter começado toda
a historia, e então Paudi deu um soco em Stevie, por ele
ter batido em PJ, pois quem queria bater em PJ era ele...
Nesse ponto, meu pai chegou e resolveu que ia bater em
todos eles.
Gus fez uma pausa para pegar fôlego e continuou:
— Era terrível. Deve ser o tédio, tenho certeza. Só que
tudo lá em casa é movido a álcool. Eles se acalmaram em
pouco, uns anos atrás, quando resolveram assinar o canal
de esportes da tevê a cabo, mas papai não pagou a conta,
o sinal foi cortado e os atritos recomeçaram.
Eu estava encantada. Poderia ficar ali ouvindo para
sempre o sotaque lírico e maravilhoso de Gus, que
continuava contando as historias de sua família tão
fascinantemente desajustada.
— E onde é que você se encaixa em tudo isso? Em quem
você bate?
— Em ninguém. Simplesmente não me encaixo em nada,
pelo menos faço tudo para não me encaixar.
— Isso tudo me parece hilário — disse eu. — É como se
fossem cenas tiradas de uma peça.
— Você acha? — perguntou Gus, parecendo chocado e
até um pouco chateado. — Talvez eu não tenha contado as
coisas direito, porque aquilo não era nada engraçado.
Na mesma hora eu me senti envergonhada.
— Desculpe, Gus — murmurei. — Por um momento
esqueci que é sobre a sua família que estamos falando. É
que você conta as coisas de um jeito tão... Mas imagino
que devia ser terrível.
— Pois era mesmo, entende, Lucy? — disse ele, com
indignação. — Aquilo me deixou cicatrizes terríveis e me
levou a fazer coisas horrorosas.
— Como o que?
— Eu costumava caminhar pelos montes durantes horas
a fio, conversar com os coelhos e escrever poesias. Claro
que tudo acontecia porque desejava escapar da família,
mas não sabia como.
— Mas o que há de errado em caminhar pelos montes,
conversar com os coelhos e escrever poesia? — Eu achava
que tudo aquilo parecia selvagem, romântico e bem
irlandês.
Há muita coisa de errado, Lucy, e tenho certeza de que
você concordaria comigo se lesse algum dos meus poemas.
Eu ri, mas só um pouco, porque não queria que ele
pensasse que estava caçoando dele.
— Além do mais, os coelhos não são muito bons para se
conversar, não — afirmou. — Cenouras e sexo, é só sobre
isso que eles falam.
— É mesmo?
— Por tudo isso, assim que consegui escapar de lá, tirei
da cabeça toda a poesia e a imagem de alma torturada.
— Bem, não há nada de errado em ser uma alma
torturada... — protestei, desesperada para me agarrar à
idéia de Gus como uma figura poética.
— Ah, mas há muita coisa de errado sim, Lucy. É
constrangedor é chato.
— Ah, é? Pois gosto muito de almas torturadas.
— Não, Lucy, você não deve gostar — disse ele, com
firmeza. — Eu insisto nesse ponto.
— E então, como é que os seus pais são? — perguntei,
mudando de assunto.
— Meu pai é o pior de todos. Transforma-se em um
homem terrível quando bebe. O que acontece quase o
tempo todo.
— E quanto à sua mãe?
— Ela não faz nada. Isto é, ela faz muita coisa... cozinha,
lava e faz todo o resto, mas não tenta mantê-los na linha.
Acho que ela tem medo. Reza muito. E chora... Somos
uma família ótima quando se trata de cair no choro, um
bando muito lacrimoso. Ela reza o tempo todo, pedindo
para que meus irmãos e meu pai se afastem da bebida e
virem santos.
— E você tem irmãs?
— Duas, mas elas fugiram quando eram novinhas.
Eleanor se casou aos dezenove anos com um homem velho
o bastante para ser seu avô, Francis Cassidy, de
Letterkenny.
Gus pareceu se animar com aquela recordação.
— Ele foi a nossa fazenda uma vez — continuou —, para
pedir a mão de Eleanor ao meu pai. Acho que não devia
estar lhe contando isso, porque você vai achar que somos
todos um bando de selvagens, mas a verdade é que nós o
colocamos para correr dali. Tentamos soltar os cães em
cima do velho Francis, mas os cães recusaram-se a
mordê-lo. Provavelmente ficaram com medo de pegar
alguma doença.
Gus olhou para mim com atenção, bem de perto.
— Devo abaixar a cabeça de vergonha, Lucy?
— Não — disse eu. — É divertido.
— Sei que aquilo não foi muito hospitaleiro, Lucy, mas
tínhamos pouca coisa com que nos divertir, e Francis
Cassidy era um sujeito horrível, muito poir do qu qualquer
um de nós. Ele era um cara magro e com o aspecto mais
miserável que alguém já viu, e trouxe um tremendo mau-
olhado, porque as galinhas não puseram ovos por quatro
dias e as vacas pararam de dar leite depois de sua visita.
— Eileen? Simplesmente sumiu. Nenhum dos homens
da região veio pedir a mão dela, acho que Francis Cassidy
os alertou. Nós só reparamos que ela havia sumido
quando vimos que o café não estava na mesa, certa
manha. Era verão, estávamos amontoando feno e
tínhamos que levantar assim que amanhecia, Eileen tinha
a incumbência de deixar a comida pronta, antes de todos
nós irmos para o campo.
— E para onde ela foi?
— Não sei. Dublin, acho.
— E ninguém ficou preocupado com o sumiço dela? —
perguntei, indignada. — Ninguém tentou ir atrás dela,
nem procurá-la?
— Ora, eles ficaram preocupados, sim. Principalmente
por saberem que iam ter que preparar o próprio café da
manhã, a partir daquele dia.
— Mas isso é terrível! — disse, ficando aborrecida. A
historia de Eileen tinha me deixado muito mais aborrecida
do que a historia de Francis Cassidy e os cães. — Isso é
muito, muito terrível!
— Lucy — afirmou Gus, apertando a minha mão. — Eu
não fiquei preocupado por ter de preparar o meu próprio
café da manhã. Queria ir atrás dela, mas meu pai disse
que ia me matar se eu fizesse aquilo.
— Ainda bem que foi assim — disse eu, sentindo-me um
pouco melhor.
— Eu sentia saudade de Eileen. Ela era linda e
costumava conversar comigo, mas fiquei feliz quando ela
foi embora.
— Por quê?
— Ela era muito inteligente para ficar ali, servindo de
escrava, e o nosso velho já estava com idéias de fazer uma
aproximação e arranjar o casamento dela com um dos dois
velhos que moravam na fazenda ao lado, só para colocar
as mãos na terra deles, entende?
— Isso se chama barbárie — disse, horrorizada.
— Tem gente que acha que se chama "visão
econômica" — disse Gus -... Mas eu não sou um deles,
não — acrescentou, bem depressa, quando sentiu meu
olhar.
— E o que aconteceu com a pobre Eileen? — perguntei,
sentindo meu coração bater com a tristeza de tudo
aquilo. — Você nunca mais ouviu falar dela?
— Acho que Eileen foi para Dublin, mas ela nunca me
escreveu, de modo que não tenho certeza.
— E tudo tão triste — suspirei.
Nesse momento foi atingida por uma idéia e lancei-lhe
um olhar penetrante, perguntando?
— Você não esta inventando tudo isso, por acaso, está?
Essa não é uma daquelas suas fantasias, como os esquilos
que fazem apostas e a minha colega de apartamento,
Elizabeth Ardente, ou é?
— Não — protestou ele. — Claro que não! Francamente,
Lucy, eu não ai fazer piadas ou inventar coisas sobre algo
tão importante. Embora eu desejasse muito que a historia
de minha família fosse um conto de fadas. Imagino que
tudo isso deve parecer muito esquisito para uma garota
sofisticada da cidade, como você.
Por mais estranho que seja, não parecia.
— É que, entenda bem, nós vivemos muito isolados —
continuou Gus. — A fazenda ficava longe de tudo, e nós
não costumávamos encontrar muita gente de fora, de
modo que eu não conhecia nada melhor do que aquilo.
Não tinha nada com o que comparar a minha família. Por
muitos anos achei que as brigas, a choradeira, os gritos e
tudo o mais eram perfeitamente normais, e que todo
mundo vivia que nem nós. Foi um grande alivio, poder
acreditar, no dia em que descobri que as minhas suspeitas
estavam corretas, e que eles eram tão malucos como eu às
vezes achava que eram.
— E esta é a história das minhas origens, Lucy.
— Bem, obrigada por me contar.
— Deixei você muito apavorada?
— Não.
— Por que não?
— Não sei.
— Sua família deve ser maluca também.
— Não é não, desculpe desapontá-lo.
— Então, como é que você consegue ser tão
compreensiva com o bando lá de casa?
— Porque você é você, e não a sua família.
— Se as coisas fossem tão simples assim, Lucy
Sullivan...
— Mas podem ser, Gus... Gus de quê?
— Gus Lavan.
— Prazer em conhecê-lo, Gus Lavan — disse, apertando
a mão dele.
Lucy Lavan, fiquei pensando. Lucy Lavan? E... gostei!
Ou será que era melhor deixar os dois sobrenomes... Lucy
Sullivan Lavan? Tinha um ritmo legal também.
— E também tenho muito prazer em conhecê-la, Lucy
Sullivan — disse ele, solenemente, apertando a minha
mãe. — Mas acho que já havia falado isso, não?
— Sim, você falou isso a noite passada.
— Mas nem por isso deixa de ser verdade. Vamos tomar
uma cervejinha, lucy?
— Hã... vamos, se você quiser. Já caminhou o bastante?
— Se já caminhei o bastante para ficar com tanta sede,
então já caminhei o bastante.
— Ótimo.
— Que horas são, Lucy?
— Não sei.
— Você não tem relógio?
— Não.
— Nem eu. Só pode ser um sinal.
— Sinal de quê? — perguntei, de forma calorosa. Sinal
de que Gus e eu éramos almas gêmeas? Que nossa união
fora escrita nas estrelas?
— Sinal de que nós vamos chegar sempre atrasados nos
lugares.
— Ah. Hã... O que está fazendo?
Gus estava recostado quase na horizontal, em cima do
banco, olhando para o céu, estalando a língua e
murmurando coisas como "cento e oitenta graus" e "sete
horas à frente do horário de Nova York" e "ou talvez seja
Chicago".
— Estou olhando para o céu, Lucy.
— Para quê?
— Para descobrir que horas são, é claro.
— É claro.
Uma pausa.
— Chegou a alguma conclusão?
— Sim, acho que sim. — E balançou a cabeça,
pensativo. — Acho que sim.
Houve outra pausa.
— Lucy, cheguei à conclusão, quase definitiva, é claro
que sempre há espaço para falhas humanas, nesse tipo de
coisa, você compreende, mas estou quase que totalmente
certo de que , definitivamente, estamos de dia. Com
oitenta e sete por cento de certeza. Ou talvez oitenta e
quatro.
— Diria que você tem razão.
— Gostaria de saber qual é o seu palpite a respeito de
horário, Lucy.
— Eu diria que são quase duas horas.
— Ai, meu Deus!— E deu um pulo do banco. — Então já
esta assim tão tarde? Bem, vamos logo então, temos que
fazer o melhor que conseguimos.
— Sobre o que você está falando? — Dei uma risada,
enquanto ele me arrastava pelo parque.
— Esta quase na hora de fechar, Lucy Sullivan, hora de
fechar! Palavra pobre! Três palavras pobres, na verdade.
Palavras sujas e odiosas — disse ele, quase cuspindo. —
Imundas! Os pubs fecham às três horas da tarde hoje e só
vão abrir de novo ás sete, não é verdade?
— Sim — tentei acompanhar o ritmo dele —, a não ser
que eles tenham mudado o horário de funcionamento hoje
de manha,
— E você acha que eles podem ter feito isso? —
perguntou Gus, parando de repente.
— Não.
— Então vamos embora — disse ele quase correndo —
Temos apenas uma hora.















CAPÍTULO 27
Paramos no primeiro pub que encontramos assim que
saímos do parque. Não era tão horrível, o que dava no
mesmo, porque senti que Gus teria me obrigado a entrar
ali de qualquer modo, mesmo que o telhado estivesse
desabando e as paredes despencando.
Ele colocou a mão sobre o meu braço, na porta.
— Lucy, desculpe por isso, mas receio que você vá ter
que financiar esta missão. Só recebo meu pagamento na
terça-feira, e não vou poder lhe devolver o dinheiro.
— Oh... Oh... tudo bem!
Meu coração despencou, mas consegui agarrá-lo antes
que batesse no chão. Afinal, não era culpa de Gus se o
conheci justamente no fim de semana em que ele estava
duro.
— O que gostaria de beber? — perguntei a ele.
— Vou tomar uma cerveja.
— De que marca?
— Guinness, é claro!
— É claro.
— ... e uma dose pequena — acrescentou.
— Dose pequena?
— De uísque Jameson, sem gelo.
— Hã... tudo bem.
— É melhor pedir uma maior — sugeriu.
— Como disse?
— Uma dose pequena das maiores.
— Como assim?
— Uma dose maior de Jameson. Dose dupla.
— Ah, o.k.
— Espero que você não se incomode, Lucy, mas é que
não vejo razão para se fazer as coisas pela metade — disse
ele, com ar de desculpas.
— Tudo bem — disse com a voz fraca.
— E vou querer também o que você for beber —
acrescentou ele.
— Hã...obrigada.
Se eu fosse Karen, teria dito "Hã... obrigada", com tom
sarcástico, mas já que era apenas eu, falei "Hã... obrigada",
como se estivesse dizendo "Hã... obrigada".
— Há uma mesa vaga bem ali adiante, Lucy. Vou tomar
conta dela enquanto você pega as bebidas.
Fiquei em pé no bar e me senti triste por um momento.
Então me obriguei a parar com aquilo. Estava sendo tola.
Ele ia receber o dinheiro dele na terça-feira.
— Traga também um saco de batatas fritas — disse Gus
junto do meu ouvido.
— De que sabor?
— Sal e vinagre.
— O.k.
— ...E se tiver traga também de churrasco e mostarda...
— Combinado.
— Grande garota!
Peguei para mim uma Coca light, bem modesta.
Gus já acabara a cerveja e o pequeno uísque duplo antes
de eu terminar de beber a Coca. Na verdade, ele já tinha
entornado quase tudo antes de eu acabar de sentar.
— Vamos tomar outro — anunciou Gus.
— Acho que vamos.
— Fique quietinha onde está — disse ele, com
gentileza. — É só me entregar o dinheiro que eu pego as
bebidas.
— Hã... o.k. — disse, pescando a bolsa que eu acabara
de fechar e tirando uma nota de cinco libras.
— Cinco das suas suadas libras? — perguntou ele, em
dúvida. — Tem certeza que isso vai dar, Lucy?
— Tenho — respondi com firmeza.
— Você também não quer alguma coisa?
— Quero!
Quando ele saiu, bebi o resto da minha Coca, bem
depressa.
Resolvi que se ele não me devolvesse o troco sem eu ter
de pedir eu ia... Eu ia... Nem sei!
— Aqui esta o seu troco, Lucy.
Levantei os olhos do copo vazio, que estivera fitando com
ar sombrio. Gus estava olhando para mim, ansioso, com
alguns pence na palma da mão aberta.
— Obrigada. — Sorri e peguei as treze pence, ou sei lá
quanto era. Subitamente, comecie a me sentir melhor.
Afinal, não era pelo princípio da coisa.
— Lucy — disse Gus, com cara séria. — Obrigado pelos
drinques e tudo mais... é muita bondade sua. Vou receber
meu pagamento na terça, vou levá-la para sair e vou lhe
devolver o dinheiro. Prometo... Hã... obrigado.
— De nada! — Sorri, sentindo-me muito, muito melhor.
Ele se redimira, talvez tivesse percebido o quanto eu
começara a ficar desapontada.
Ele era bom naquilo. Bom em se redimir, é o que quero
dizer. Bom em tirar o corpo fora do limite da minha
desaprovação, sempre no ultimo minuto.
Não que eu me incomodasse em gastar dinheiro com ele,
ou com qualquer pessoa, por falar nisso, especialmente
quando se tratava de algo tão importante quanto lhes
oferecer drinques na hora do almoço, mas me incomodava
muito sentir que as pessoas pudessem achar que eu era
otária, uma bundona.
Ele tomou vários outros drinques, pelos quais paguei
alegremente. ("Devolvo tudo na terça, Lucy.") Em pouco
menos de uma hora já havíamos consumido muitos
drinques.
— Grande atuação a nossa. Fizemos maravilhas no
curto espaço de tempo que tivemos à nossa disposição,
Lucy. — Gus inspecionava a mesa cheia de copos vazios à
medida que se aproximavam três horas e o barman fazia
um convite para que nos retirássemos.
— Não é realmente espantoso o quanto podemos
conseguir quando focamos nossa mente em um
objetivo? — E balançou por sobre a mesa o copo de cerveja
pela metade, para enfatizar a idéia. — Precisamos apenas
de um pouco de um pouco de esforço.
— Embora eu esteja desapontado com você, Lucy. — E
tocou meu rosto, com carinho. — Sinto ter que lhe contar
isso, mas... duas Cocas light e um gim-tônica? Tem
certeza que você é irlandesa?
— Sim — respondi.
— Bem, você vai ter que suar um pouco mais a camisa
da próxima vez, não pode deixar todo o esforço por minha
conta, sabia?
— Gus. — Dei uma risada. — Tenho uma má notícia
para lhe dar.
— Qual é?
— Eu na verdade não bebo tanto assim. E jamais bebo
durante o dia... Normalmente — acrescentei, depressa, ao
vê-li lançar um olhar acusador para o copo de gim.
— Serio? Mas eu pensei... Você não falou que... Você
não se importa de que as outras pessoas bebam muito, se
importa? — perguntou, esperançoso.
— Nem um pouco — eu o tranqüilizei. — Nem um pouco.
— Que ótimo então — suspirou com alivio. — Puxa, você
me deixou preocupado por um instante. Será que o bar já
fechou mesmo?
— Já.
— Talvez seja melhor eu ir até lá, para ter certeza —
sugeriu ele, com ar travesso.
— Gus! Está fechado.
— Mas tem um barman lá. Pode ser que ainda estejam
servindo.
— Ele está lavando os copos.
— Vou lá conferir.
— Gus!
Mas ele pulara da cadeira e já estava no balcão levando
um papo com o barman e fazendo um monte de gestos
enérgicos. Então, para meu horror, ouvi vozes ligeiramente
alteradas, que pararam de falar abruptamente no
momento em que Gus deu uma pancada no balcão de
madeira, com toda a força. A seguir, ele voltou até a mesa.
— Está fechado — murmurou ele, vencido. Pegou o resto
da cerveja e nem olhou para mim.
Reparei que os poucos clientes que ainda estavam ali
começaram a nos olhar com diversão e interesse. Fiquei
um pouco sem jeito, mas era engraçado.
— Não sei qual pe o problema dele, mas aquele cara que
trabalha como barman é um sujeito pouco razoável —
murmurou Gus.— Pouco razoável e desagradável. Não
havia necessidade de ele me dizer o que disse. O que
aconteceu com o velho "o cliente tem sempre a razão"?
Eu ri e Gus olhou para mim.
— Et tu, lucy? — perguntou ele.
Ri de novo. Não conseguia evitar. Deve ter sido o gim.
— Nunca mais vamos voltar aqui, Lucy. Ah, não! Eu não
venho a um pub para ser insultado, portanto nunca mais
volto aqui, Lucy. Serio mesmo, nunca mais!
Seu rosto bonito e maleável estava sombrio pelo
aborrecimento.
— Há um monte de outros lugares aonde posso ir para
ser insultado — acrescentou, com tristeza.
— O que o barman lhe disse? — perguntei, tentando
fazer minha boca parar de sorrir.
— Lucy, eu jamais repetiria aquilo, muito menos na sua
presença — disse ele, sério. — Jamais mancharia meus
lábios nem poluiria o ar aromático que circunda suas
delicadas orelhas repetindo o que aquele filho-da-pu...
aquele... canalha abominável, espírito do mal, veado
enrustido me falou.
— Parece-me justo — disse, de algum modo conseguindo
manter o rosto serio.
— Tenho respeito por você, Lucy.
— Eu agradeço.
— Você é uma dama, Lucy. E existem certas regras,
certas restrições de ordem pessoal que aplico sempre que
estou na presença de uma dama.
— Obrigada, Gus.
— Agora — disse ele, levantando-se e esvaziando o
copo —, o nosso trabalho por aqui está encerrado.
— O que quer fazer agora?— perguntei.
— Bem, é domingo à tarde, acabamos de tomar alguns
drinques, está frio, acabamos de nos conhecer na noite
passada, portanto está determinado que devemos agora
voltar ao seu apartamento para nos aconchegarmos no
sofá, a fim de assistir um filme em preto e branco. — Gus
sorriu de forma sugestiva para mim e colocou o braço em
volta da minha cintura coberta de fio angorá cor-de-rosa.
Puxou-me ligeiramente na direção dele e eu senti a
cabeça leve, sentindo um pouco de... bem, deve ter sido
desejo, imagino. Era uma delicia ser abraçada por ele.
Embora não fosse muito alto, ele era forte e másculo.
— A idéia me parece ótima.— Um arrepio percorreu-me
a espinha, embora eu estivesse preocupada com o fato de
que talvez não estivesse passando nenhum filme em preto
e branco na tevê e que Daniel e Karen pudessem estar
fazendo sexo no chão da sala de estar. Nós podíamos ir ate
a locadora, pegar filme com Adrian, se não tivesse nada de
interessante na tevê, mas eu não estava certa sobre como
lidar com o problema de Daniel e Karen.
E se Adrian ficasse chateado ao me ver acompanhada
por um homem? Como eu ia enfrentar isso? Aquele era
um estado de coisas muito tristes, mas a vida era assim
mesmo, em todo raio de esperança aparecia uma nuvem, e
cada fragmento de felicidade era pago com a dor de
alguém.
CAPÍTULO 28
Naquela noite, depois que Gus foi para casa, eu mal
conseguia conter a felicidade. Estava louca para falar de
Gus com alguém, doida para descrever com os mínimos
detalhes a roupa que eu estava usando quando o conheci,
o que ele me dissera, como era a sua aparência e tudo
mais.
Só que as minhas confidentes de sempre não estavam
disponíveis. Karen e Charlotte haviam saído, Daniel estava
com Karen e eu estava muito chateada com Megan ou
Meredia, então liguei para Dennis. Para minha surpresa,
ele estava em casa.
— Achei que você havia saído — disse eu.
— Foi por isso que me ligou?
— Não seja tão sensível.
— O que você quer?
— Dennis — fiquei ofegante, de forma dramática —,
conheci um homem!
— Então conte, uai! — E prendeu a respiração. Às vezes
ele falava daquele jeito, embora fosse de Cork.
— Venha até aqui, vai ser mais empolgante se eu lhe
contar pessoalmente.
— Já estou indo!
Tive que sair correndo para colocar um pouco de
maquiagem e pentear o cabelo, porque Dennis sempre me
revista com o olhar, analisando a minha aparência,
dizendo se eu ganhara ou perdera alguns quilos, qual o
peso ideal que eu devia ter, se amava ou odiava meu
cabelo e assim por diante. Ele era pior do que minha mãe,
só que pelo menos tinha uma desculpa: ele era gay, e não
conseguia evitar aquilo.
Ele chegou em mais ou menos dez minutos. A cada vez
que o via, ele estava com o cabelo recém-cortado. O
comprimento foi ficando cada vez mais curto, e tudo o que
ele exibia agora era uma penugem loura, a qual, devido ao
seu pescoço comprido e fino, fazia com que ele ficasse
parecido com um patinho.
— Você chegou rápido — disse eu enquanto abria a
porta. — Veio de táxi?
— Pegue um táxi e destaque-se! Puxa, mas a viagem que
eu fiz... Nossa! Mais tarde eu lhe conto, agora quero saber
das novidades quentes.
Dennis às vezes exagerava na frescura, mas eu estava
grata por ter alguém com quem conversar e não consegui
mandá-lo parar. Preparei-me para ouvir alguma coisa bem
vulgar em seguida. Ele sempre fazia isso. E não me
desapontou.
— Puxa! — declarou, esfregando o traseiro. — Minha
olhota está pegando fogo.
Eu o ignorei, porque não queria falar dele. Queria falar
de Gus.
Em seguida, ele inspecionou minha aparência, e passei,
com algumas recomendações. Dennis pediu chá e
reclamou da figura que havia na caneca.
— Um gato... Um GATO! Fala serio, Lucy, não sei como
você consegui ser assim.
Havia apenas quatro coisas, mais ou menos, em todo o
apartamento de Dennis, mas elas eram muito lindas e
caras.
— Você faz parte do meu esquadrão de amigas de
emergência — avisei a ele, assim que sentou.
— E o que é isso?
— Em uma emergência, quando preciso conversar com
uma amiga e não há nenhuma garota disponível, você
sempre vem me socorrer — expliquei. — Fico imaginando
você vestido de bombeiro, escorregando para o caminhão,
agarrado em um mastro.
Ele ficou tão vermelho que o rosto ficou muito mais
escuro do que o cabelo descolorido.
— Quer fazer o favor de parar? — Disse, com
arrogância. — Minha vida pessoal só interessa a mim.
— Assumindo posição de fofoca — comandei, e na
mesma hora sentamos no sofá, ao mesmo tempo, um de
frente para o outro.
Contei a ele sobre a taróloga.
— Você devia ter dito que ia lá... — resmungou ele. —
Eu gostaria de ir também.
— Desculpe. — Rapidamente, passei para a parte do
boato horrível no trabalho, sobre o meu casamento.
— Sério mesmo, Dennis, eu me senti horrível. Além da
humilhação e tudo o mais, aquilo fez com que eu me
sentisse tão sozinha... Como se eu jamais fosse me casar.
— Eu jamais vou conseguir me casar — disse Dennis. —
Não vão permitir! — E quase cuspiu ao dizer "permitir".
— Sinto muito, foi falta de sensibilidade de minha parte
falar isso — desculpei-me correndo. Não queria que
Dennis começasse a falar sobre os gays serem
discriminados, e como o governo devia conceder-lhes a
permissão para casar, da mesma forma que os
"reprodutores", como ele insistia em chamar os
heterossexuais.
— Aquilo fez com que eu me sentisse velha, encalhada,
vazia e patética — continuei. — Você entende?
— Ohhh, claro que sim, queridinha! — E apertou os
lábios.
— Dennis, por favor, não venha com essa frescura toda
pra cima de mim.
— Como assim?
— Não me chame de "queridinha" — implorei — É tão
afetado! Você é irlandês, nunca se esqueça disso.
— Então vá se foder!
— Ah, assim é melhor. Agora, onde é mesmo que eu
estava? Ah, sim. Não posso acreditar que tanta coisa
mudou em vinte e quatro horas.
— A noite sempre parece mais escura pouco antes do
amanhecer — disse Dennis, com sabedoria. — Então você
encontrou esse homem no sábado à noite?
— Foi.
— Ele só pode ser aquele que a taróloga viu no seu
futuro — disse Dennis, falando exatamente o que eu
queria ouvir.
— Também acho que pode ser ele — disse, um pouco
envergonhada. — Sei que não devia acreditar nisso e, por
favor, não conte a ninguém que acredite, mas não seria
bom pensar desse modo?
— Posse ser sua dama-de-honra?
— Claro.
— Eu SÓ NÃO POSSO usar roupa cor-de-rosa. Essa cor
me deixa com uma aparência MEDONHA!
— Tudo bem, tudo bem, pode ser a cor que você
quiser. — Eu não estava interessada em mais nada, a não
ser em manter a conversa centrada diretamente em Gus —
Ah, Dennis, ele é exatamente o que eu quero. Como
pessoa, ele é a minha cara. Se eu tivesse procurado Deus
e descrevesse o homem perfeito para mim, e Deus
estivesse de bom humor, ele teria me enviado o Gus.
— Sério? Ele é tão bom assim?
— É. Dennis, fico ate meio envergonhada de pensar
assim, mas ele é bom demais para ter aparecido na minha
vida por acaso, A taróloga devia estar falando sério. Sinto
que isso estava escrito nas estrelas.
— Mas então é fabuloso — disse Dennis, todo excitado.
— E estou me sentindo diferente a respeito de toda a
minha vida, o meu passado — disse, ficando um pouco
filosófica. — Todas aquelas pessoas horríveis com as quais
saí no passado aconteceram em minha vida por uma razão.
Você lembra como eu sempre parecia me desviar, e era
levada de um relacionamento horrível para outro?
— Sei... bem demais, até!
— Sim... desculpe-me, mas nada daquilo vai tornar a
acontecer. Pense só, Dennis, o tempo todo eu vinha
chegando cada vez mais perto de Gus. Durante todos
aqueles anos perdidos em que eu achava que estava
vagando pelo deserto, na verdade, seguia o caminho certo.
— Você acha que vai acontecer a mesma coisa
comigo? — perguntou ele, esperançoso.
— Tenho certeza de que sim.
— Fui levada em segurança através do Campo Minado
dos Homens Errados — continuei, me entusiasmando
alem da conta —, e escapei com ferimentos leves, até
alcançar a clareira do outro lado e, ao chegar lá, Gus
estava esperando por mim.
Continuei em seguida:
— Ah, Dennis, se ao menos eu soubesse que haveria um
fim para a minha solidão...
— Se nós dois soubéssemos — desse Dennis, sem
dúvida se lembrando de todas as noites que perdera
ouvindo minhas historias infindáveis.
— Eu devia ter tido mais fé.
— Você devia ter me escutado.
— Nós não temos idéia do que nós espera lá fora, nem
pra onde a vida está nos levando — disse eu, com os olhos
enevoados. — Costumava pensar que eu era dona do meu
próprio destino e conduzia o meu próprio navio. Na
verdade, Dennis, eu até suspeitava de que era exatamente
por isso que minha vida estava tão bagunçada: é que tinha
a minha mãozinha nela...
— Certo, agora chega disso — disse Dennis, com
impaciência. — Jogue a filosofia para o lado, entendo o
que você quer dizer, mas me conte a respeito dele. Quero
saber as medidas exatas.
— Ah, Dennis, ele é o máximo, realmente ótimo, tudo
nele parece estar certo. Acho que vai ser muito legal...
— Detalhes!— pediu ele, ainda mais impaciente. — Ele
tem músculos?
— Bem, mais ou menos...
— Isso significa que não.
— Dennis, ele é bem musculoso sim.
— É alto?
— Não.
— O quer dizer com "não"?
— Quero dizer que ele não é alto.
— Então ele é baixo.
— O.k., Dennis, ele é baixo. Mas eu também sou —
completei.
— Lucy, você sempre teve um gosto horrível para
homens.
— Olha só quem fala — disse eu. — Estas palavras estão
vindo do homem que gosta de Michael Flatley.*
Dennis abaixou a cabeça com vergonha.
— O homem que assistiu ao vídeo do show Riverdance
mais de cem vezes — provoquei.
Uma noite, quando estava bêbado, Dennis me
confessara isso.
Arrependeu-se amargamente de ter contado.
— O mundo é bem grande — disse ele, com
humildade. — Tem espaço para todo tipo de gosto.
— Exatamente — disse eu. — Então pode ser que Gus
seja baixo...
— Ele é baixo.
— ...Mas é muito bonito, tem um corpo lindo e...
— Ele malha? — perguntou Dennis, com esperança.
— Eu diria que não. — Fiquei triste por desapontar
Dennis, mas não podia mentir para ele. De qualquer forma,
ele ia acabar descobrindo quando conhecer Gus.
— Então isso quer dizer que ele bebe pra caramba?
— Quer dizer que ele é uma criatura festiva.
— Entendi. Ele bebe pra caramba.
— Ai, Dennis, deixe de ser tão negativo! — Olhei rápido
para o alto, desesperada. — Espere só até conhecê-lo, você
vai adorá-lo. Sério. Ele é maravilhoso, muito engraçado,
charmoso, inteligente, legal e, juro por Deus, muito sexy.
Pode ser que ele não seja o seu tipo, mas acho que ele é
perfeito!
— Então vamos lá... o que há de errado?
— Como assim?
— Bem, sempre tem alguma coisa de errado, não tem?
— Pare com isso! — reagi. — Sei que não tenho tido
muita sorte com homens, mas...
— Eu não disse que há sempre algo de errado com os
seus homens — suspirou ele. — O problema é com todos
os homens. Ninguém sabe disso melhor do que eu.
— Dennis — disse eu. — Não creio que haja algo de
errado com ele.
— Pois confie em mim — afirmou ele —, sempre tem algo
de errado. Ele é rico?
— Não.
— Ele é, basicamente, pobre?
— Bem, ele está no auxílio-desemprego...
— Ah, Lucy, outra vez? Por que você sempre arruma
esses mendigos que usam aquelas roupas horríveis?
— Porque não sou superficial como você. Você se
preocupa demais com as roupas dos rapazes, o jeito que
eles cortam o cabelo e o relógio que usam.
— Talvez eu me preocupe demais mesmo... —
reconheceu, parecendo ofendido. — Mas você se preocupa
de menos!
— Enfim... — disse eu. — Eu não arrumo ninguém,
simplesmente aconteceu.
— Aposto que se você morasse na Califórnia não ia dizer
isso com essa calma toda... mas deixa pra lá... Então,
como é essa história de desemprego?
— Não é o que você está pensando — expliquei bem
depressa. — Não é que ele seja preguiçoso ou vadio, ou
qualquer uma das coisas pelas quais a minha mãe ia
chamá-lo. É que ele é musico, e o trabalho anda difícil.
— Um músico... outra vez?
— Sim, só que ele é diferente, e tenho o maior respeito
por alguém disposto a enfrentar dificuldades financeiras
por amor à arte.
— Sei...
— E abriria mão com a maior alegria da estiva que
encaro de nove às cinco todo dia, só que não possuo
talento pra nada.
— E você não se importa de ficar com alguém que está
sempre sem dinheiro? Não me venha com aquela historia
de que o amor vence tudo, e que há outras coisas mais
importantes do que dinheiro. Vamos ser práticos aqui!
— Mas eu não me importo mesmo. Só não sei se vou ter
dinheiro para manter nós dois no padrão ao qual Gus
parece estar acostumado. — E me senti estranha ao
admitir isso.
— E que padrão é esse? Ele cheira cocaína?
— Não. — Então pensei a respeito. — Bem, talvez ele
cheire, pra falar a verdade.
— Então você vai ter que arranjar um emprego noturno;
na verdade vai ter que correr muito atrás de grana, se é a
esse padrão que ele está acostumado.
— Ai, cale a boca, deixe eu contar; hoje, um pouco mais
cedo, Gus e eu fomos comer pizza na Torre de Pizza, e ...
— Mas hoje é domingo! Por que vocês não foram ao
Curryfour?
— Porque Daniel e Karen tinham ido lá, pareciam estar
muito apaixonados e eu não queria atrapalhá-los.
— Daniel e KAREN ?! — guinchou Dennis,
empalidecendo. — Karen e DANIEL?
— Hã... sim. — Esqueci que Dennis tinha uma queda
por Daniel.
— A Karen que mora aqui? Karen McHaggis, ou sei lá
qual é o nome escocês ou caledônio que ela tem? —
Dennis não gostava de Karen, agora ia gostar menos ainda.
— Sim, essa Karen .
— Com Daniel, o meu Daniel?
— Se é sobre o Daniel Watson que você está falando,
então é o seu Daniel.
— Ai, meu Deus, isso agora me arrasou! — Ele parecia
muito abalado. — Preciso de um drinque!
— Tem uma garrafa de alguma coisa bem ali.
— Onde?
— Ali, na estante.
— Ai, vocês são tão pobres! Guardando a bebida na
estante de livros.
— Ué, o que podemos fazer? Nós não temos livros,
precisamos guardar alguma coisa ali...
Ele procurou pelas prateleiras e disse:
— Não consigo achar...
— Tinha certeza de que estava aí mais cedo.
— Pois não está aqui agora.
— Talvez Karen e Daniel tenham bebido. Desculpe,
desculpe — disse, depressa, quando o vi franzir a testa de
novo.
— Pode acreditar, esse namoro não vai durar muito. —
Sua voz estremeceu ligeiramente. — Ele é gay, sabia?
— Mas você fala isso de todo homem, no universo inteiro.
— Daniel é, mesmo. Mais cedo ou mais tarde vai
enxergar a luz.e quando isso acontecer, eu estarei lá.
— Certo, certo, qualquer coisa que você diga está
certo. — Eu não queria deixar Dennis chateado, mas...
fala sério! Todo gay que eu conhecia insistia em dizer que
todo homem heterossexual que eles conheciam era, na
realidade, um gay enrustido.























CAPÍTULO 29
Dennis tornou a se sentar, colocou a mãos no peito e
ficou inspirando profundamente, durante horas, enquanto
eu me retorcia toda de impaciência. Finalmente, ele disse:
— Tudo bem agora. Já me acalmei!
— O.k. — E voltei à história: — Então, quando
chegamos à Torre de Pizza, Gus estava sem dinheiro. Bem,
certamente que estava, porque ele não tinha um tostão
ontem, nem durante o dia, mais cedo, e não creio que a
alquimia seja um dos seus dons pessoais...
— Então você pagou a conta de vocês.
— Paguei, e para mim estava tudo bem, porque sou
muito sensata...
— Alem do mais, o garçom de lá tem uma bunda
linda... — Dennis era gay vinte e quatro horas por dia, e
nunca deixava a peteca cair.
— Tem mesmo. Mas, enfim, Gus bebeu dez garrafas de
Peroni e...
— Dez garrafas de Peroni?
— Relaxe — disse eu. — Não tenho problemas com isso,
em principio, especialmente porque Peroni é uma cerveja
fraca, embora a gente tenha que pagar por ela.
— Você não está achando que ele está tentando se
aproveitar de você, está? — perguntou Dennis, fixando o
olhar em mim.
Aquela idéia passara pela minha cabeça naquele mesmo
dia, mais cedo, quando estávamos no pub, e acabei
ficando chateada, porque vivia com medo de que alguém
me achasse otária ou me tomasse pro idiota.
Só que eu simplesmente odiava discussões por causa de
dinheiro. Aquilo era uma coisa que me fazia lembrar dos
tempos de criança. Lembranças de minha mãe gritando
com meu pai, com o rosto vermelho e distorcido. Eu
jamais me comportaria daquela maneira.
— Não, Dennis, não achei isso, porque ele me disse
coisas realmente adoráveis no restaurante.
— Mas essas coisas valeram as dez garrafas de Peroni?
— Com certeza!
— Vamos ouvi-las.
— Ele pegou a minha mão — disse eu, lentamente, para
criar mais efeito — e falou, muito sério: "Estou gostando
muito disso, Lucy."
— E entao, ele disse: "Odeio estar sem dinheiro, Lucy...",
e escute só, ele completou: "...especialmente quando
encontro alguém como você!". E então, o que acha disso,
hein, Dennis?
— O que ele quis dizer com isso?
— Quis dizer que eu era linda, que merecia ser levada a
lugares maravilhosos e ganhar coisas maravilhosas.
— Só que não ia conseguir nada disso vindo dele! —
Dennis sabia ser bem direto.
— Cale a boca! — disse eu. — Ele falou que adoraria me
levar para tomar vinho, jantar fora, me comprar flores,
chocolates, casacos de pele, cozinhas planejadas, facas
elétricas e um daqueles aspiradores de pó portáteis para
limpar sofá, alem de tudo o que o meu coração desejasse.
— E o que seu coração deseja? — perguntou Dennis.
— Ele deseja Gus.
— Então acho que não é do seu coração que estamos
falando.
— Você é tão vulgar. Não consegue pensar em outra
coisa que não seja sexo?
— Não. E então, o que foi que ele disse?
— Disse que aqueles aspiradores de pó portáteis são
ótimos para limpar os bolsos dos casacos.
— Para mim, ele mais parece o açucareiro de um serviço
de jantar Fornasetti — debochou Dennis. — Facas
elétricas e casacos de pele, francamente!
Mas ele não sabia em a metade da historia, fiquei em
duvida de contar a ele. Não queria comentários negativos,
queria freses alegres, para combinar com o meu estado de
espírito.
Porque a partir daquele ponto a conversa com Gus ficara
um pouco confusa.
— Você gosta de flores? — ele me perguntara.
E eu respondera:
— Sim, Gus, as flores são lindas, mas minha vida não
fica incompleta sem elas.
Então ele perguntou:
— E chocolate?
— Sim, gosto de chocolate, gosto muito, mas nunca fico
sem chocolate por muito tempo.
— Ah, não fica? — Preocupação surgiu em seu rosto, e
de repente ele pareceu profundamente deprimido.
— Bem, o que eu poderia esperar? — acrescentou ele,
pesaroso. — Uma mulher linda como você! Como é que fui
idiota de achar que poderia ser o único homem em sua
vida?
— Ah, o orgulho sempre vem antes da ruína! * —
exclamou Gus, de forma dramática, enquanto eu olhava
para ele, me perguntando o que estava acontecendo agora.
— Fui alertado, Lucy, não posso negar. Muitas vezes por
pessoas bem-intencionadas. Cuidado com este orgulho,
Gus, elas diziam. Mas eu as ouvi? Não, não ouvi! Entrei
marchando, de peito aberto, e achei que uma deusa como
você teria tempo para tipos como eu. Enquanto isso, você
devia estar transformando em escravos uma fila de
pretendentes que se consumiam à espera de um simples
olhar gentil de sua parte.
— Gus, por favor, pare! Do que você está falando? Não,
está tudo bem com ele — disse eu ao garçom que viera
correndo ao ouvir a explosão emocionada de Gus. — Sério
mesmo, está tudo bem, obrigada.
— Já que você está ai, podia me trazer mais uma
destas — pediu Gus, balançando uma garrafa de Peroni
na direção do garçom (devia ser a nona). — Estou falando
de você, é claro, senhorita Lucy Deusa Sullivan... É
senhorita mesmo, imagino...?
— Sim.
— ...E também dos pretendentes que lhe oferecem
chocolates.
— Gus, não tenho pretendentes que me trazem
chocolates.
— Mas você não falou...?
— Eu disse que nunca fico sem chocolate, e não fico
mesmo. Mas sou eu mesma que compro.
— Oh... — disse ele, devagar — ... você mesma compra.
Entendo...
— Ótimo! — Ri. — Que bom que você entende.
— Uma mulher independente, Lucy, isso é o que você é.
Não quer ficar devendo favores a eles, e está certa por agir
assim. "Sê verdadeiro contigo mesmo",* como o meu amigo
Billy Shakespeare vivia me dizendo.
— Hã... para quem eu não posso ficar devendo favores?
— Para o pretendentes.
— Gus, eu não tenho nenhum pretendente.
— Não tem pretendentes?
— Não. Pelo menos não no momento. — Não queria que
ele achasse que eu era um fracasso total.
— Mas, por que não!!?
— Não sei.
— Mas você é linda!
— Obrigada.
— Nunca me disseram que os ingleses tinham visão
curta, mas só pode ser isso. É a única explicação que
encontro.
— Obrigada.
— Pare de dizer "obrigada". Estou sendo sincero.
Houve uma agradável pausa enquanto nós dois ficamos
sentados ali, sorrindo um para o outro, os olhos de Gus
ligeiramente vidrados, provavelmente pelo excesso de
Peronis.
Não havia necessidade de contar nada daquilo a Dennis.
Decidi pular essa parte e contar a coisa boa que veio a
seguir, quando Gus disse:
— Hã... Lucy, posso lhe perguntar uma coisa?
— Claro. — respondi.
— Não pude deixar de ouvir, ainda há pouco, que você
está atualmente sem pretendentes...
— Sim.
— Eu estaria correto achar que há um lugar vago, então?
— Sim, acho que essa é uma forma de descrever a
situação.
— Sei que vai parecer extremamente abusado de minha
parte, mas será que existe alguma chance, por pequena
que seja, de que você possa considerar a minha pessoa
para ocupar essa vaga?
Olhei para a toalha da mesa, em xadrez de vermelho e
branco, envergonhada demais para fitar os olhos dele, e
murmurei:
— Sim.
Dennis ficou desapontada comigo.
— Ah, Lucy... — suspirou ele. — Você não prestou
atenção a nada do que lhe ensinei. Você não deve se
submeter com tanta facilidade. Faça-os suar para
conseguir o que querem.
— Não, Dennis — expliquei, com firmeza. — Você
precisa entender que eu estava com medo de fazer esses
joguinhos com Gus.ele já era capaz de entender errado até
mesmo quando eu estava sendo totalmente direta. Piorar
as coisas com manipulações e truques femininos, dizendo
"não" quando queria dizer "talvez" e dizendo "talvez"
quando queria dizer "sim", ia acabar estragando tudo.
— Está certo, já que você insiste. E então, o que
aconteceu depois?
— Ele disse: "Eu também não estou ligado a ninguém no
momento, romanticamente. Você vai querer esta resto de
pizza?"
— Que lábia a desse cara — murmurou Dennis,
mostrando-se pouco impressionado.
— Fiquei emocionada — disse eu.
— Não é um pouco de exagero ficar emocionada? —
perguntou Dennis. — Afinal, a pizza já estava paga mesmo,
então era melhor que alguém comesse o resto. Fala serio,
Lucy, ficar emocionada por causa disso?
Deixei passar.
— E como ele foi na hora do roço-roça? — perguntou
Dennis.
— Na verdade, não sei.
— Não o deixou chegar em você?
— Ele não tentou.
— Mas vocês ficaram juntos por quase vinte e quatro
horas! Não está preocupada?
— Não. — Realmente, não estava. É claro que o fato de
ele se segurar tato era incomum. Mas não era absurdo.
— Provavelmente ele é gay — afirmou Dennis.
— Ele não é gay.
— Mas você não fica nem um pouco preocupada por ele
não ter agarrado você? — perguntou Dennis, parecendo
confuso.
— É exatamente por isso que não estou preocupada —
argumentei. — Gosto de homens que chegam devagar,
homens que queiram ma conhecer melhor, antes de
dormir comigo.
Aquilo era verdade, não era só da boca pra fora, para
convencer Dennis. Eu ficava horrorizada com homens que
eram muito diretos (por assim dizer) a respeito de suas
necessidades de sexo, homens adultos com imensos
apetites sexuais. Homens com olhos do tipo "venha para a
cama", homens com coxas grossas, peito cabeludo e
imensas mandíbulas barbadas, homens que tinham seis
ereções por hora, homens que cheiravam a suor, sal e sexo.
Homens que entravam no quarto parecendo dizer: "aqui
está a minha ereção, o resto do meu corpo vai chegar
daqui a cinco minutos."
Homens pelvicêntricos provocavam um medo tremendo
em mim.
Provavelmente porque eu achava que eles poderiam ser
muito exigentes e críticos a respeito do meu desempenho.
Homens desse tipo podiam pegar e escolher qualquer
mulher que desejassem, de forma que deviam estar
acostumados com o melhor. Se eu escalasse a cama deles
sem busto, sem pernas e sem bronzeado, eles ficariam
extremamente desapontados.
"O que significa isso?", perguntariam eles ao me ver
tirando a roupa. "Você não é como aquela garota com
quem transei hoje à tarde. Você não é uma mulher. Onde
estão os peitos?"
Eu tinha esperança de que se um homem conseguisse
me conhecer melhor antes de irmos para a cama haveria
mais chance de ele ser legal e não rir de mim. De estar
mais disposto a fazer vista grossa diante das minhas
obvias desvantagens físicas, devido ao fato de eu ter uma
personalidade marcante.
Isso não quer dizer que eu não tenha, uma ou duas
vezes, dormido com homens que acabara de conhecer. No
passado, houve momentos em que eu parecia não ter
outra escolha. Momentos em que gostava de um homem e
tinha medo de que, se rejeitasse suas investidas sexuais,
ele saísse correndo, sem querer saber de mais nada
comigo.
— Você e a sua culpa católica — disse Dennis,
balançando a cabeça com tristeza. Eu tinha que impedi-lo,
antes que ele começasse a atacar a Igreja Católica, as
freiras, os Irmãos Cristãos e o modo como eles haviam
danificado o psique de todos os menininhos e menininhas
com quem tiveram contato, tirando-lhes a capacidade de
sentir prazer sem culpa. Aquilo era capaz de render a noite
toda.
— Não, Dennis, não é culpa católica que me impede de
ser promiscua.
Eu desconfiava de que se possuísse um busto
avantajado, com peitões e coxas compridas, douradas,
esbeltas e sem celulite, conseguiria superar a minha culpa
católica. Provavelmente ia estar muito mais propensa a
pular na cama de estranhos com toda a confiança. Talvez
sexo se transforme em uma atividade da qual eu poderia
simplesmente usufruir, em vez de ser basicamente um
exercício constante para tentar diminuir os danos,
comportando-se como se eu estivesse me divertindo ao
mesmo tempo em que escondia uma bunda que era muito
grande, os peitos que eram muito pequenos, coxas que
eram muito... etc. etc.
— Bem, se você tem certeza disso... — Dennis ainda
parecia meio em dúvida.
— Sim, Dennsi, tenho certeza.
— O.k.
— Então, afinal, para terminar o pão, para resumir tudo,
o que acha da historia toda? — perguntei, com ar de
alegria. — Ele não parece adorável?
— Bem, não sei se era isso que eu ia querer para mim...
Fiz mímica, com os lábios, da palavra "Michael Flatley",
sem pronunciá-la
— ... mas... — disse ele, apressado. — Ele me parece
bonitinho. E, já que você insiste em escolher homens que
não tem dinheiro algum, espero que saiba o que está
fazendo. Eu não recomendaria isso, mas parece que fico
falando com as paredes o tempo todo.
— E não é incrível o que a taróloga disse? — insisti,
trazendo-o de volta para o caminha dos comentários
positivos.
— Tenho que admitir que o momento não poderia se
mais adequado — concordou. — Isso pode realmente ser
um sinal. Normalmente eu aconselharia cautela, mas
realmente me parece que foi escrito nas estralas.
Isso era exatamente o que eu queria ouvir.
— Tirando o problema do dinheiro, ele é legal com
você? — perguntou Dennis.
— Muito legal.
— O.k. Vou ter que vê-lo antes de dar o endosso final.
Por ora porém, vocês têm a minha bênção provisória.
— Obrigada.
— Muito bem, já passa de meia-noite e meia, vou dar o
fora.
— Você vai sair pra tomar poppers,* usar camisa xadrez
e dançar músicas dos Pet Shop Boys?
— Por Deus, Lucy. — Ele fez cara de nojo. — Isso é um
estereotipo ultrajante!
— Mas você vai?
— Vou.
— Bom, divirta-se então. Eu vou para a cama.
E fui dormir feliz.


























CAPÍTULO 30
É claro que na manhã seguinte a história foi totalmente
diferente, quando acordei e me lembrei de que deveria sair
da cama para ir trabalhar.
Senti vontade se sumir, por ser segunda-feira. Afinal,
era difícil mudar os hábitos de uma vida inteira. Conhecer
um novo rapaz, mesmo alguém tão adorável quanto Gus,
não ia me transformar da noite para o dia em alguém que
salta da cama feliz assim que o despertador tocava,
cantando "Que bom que eu não morri dormindo!".
Tateei com as pontas dos dedos a mesinha-de-cabeceira,
até encontrar o botão de "soneca" do despertador, e
consegui mais cinco minutos para um cochilo cheio de
culpa. Teria feito qualquer coisa para não levantar da
cama. Qualquer coisa.
Alguém estava no banheiro, o que era ótimo. Não havia
motivo para eu sair da cama até o banheiro ficar livre. Um
curto adiamento.
Dava tempo para eu continuar na cama, meio dormindo,
contemplando preguiçosamente as varias opções de
suicídio que havia à minha mente, porque qualquer uma
delas, naturalmente, me parecia muito mais convidativa
do que pegar o metrô para ir trabalhar.
Eu já namorara idéias suicidas diversas vezes — a
maioria delas em manhãs de dias úteis, para falar a
verdade —, e muito tempo atrás descobrira como os
apartamentos modernos são mal-equipados para uma
pessoa se matar. Nem um frasco de formicida à mão, nem
um laço corrediço sequer, nem um implemento agrícola
por perto.
Mas eu não devia me mostrar tão negativa. Todos dizem
que quando a pessoa quer, sempre da um jeito. Por outro
lado, se eu não fosse tão negativa, não ia estar querendo e
matar e a historia toda seria irrelevante de qualquer modo.
Pesquisei a lista de possibilidades disponíveis.
Eu podia tomar uma overdose de paracetamol. Só que
eu tinha quase certeza de que aquilo não ia adiantar nada,
pelo menos para mim, porque umas duas vezes, com uma
ressaca muito forte, eu tomara uns doze comprimidos e
não me senti nem com sono, muito menos morrendo.
Q idéia de ser sufocada com um travesseiro não me
parecia ser tão horrível. Era até mesmo um jeito legal, bem
pacífico de ir embora, com a vantagem adicional de nem
precisar sair da cama para isso. Só que era um pouco
como fazer nada sincronizado... totalmente inútil de se
tentar sozinho.
Neste momento ouvi a pessoa sair do banheiro e fiquei
rígida de horror. Só que, rápida como um raio, outra
pessoa entrou. Respirei aliviada — não ia precisar levantar
da cama por mais algum tempo. Apesar de que meus
minutos estavam se esgotando, e eu sabia disso.
Durante um pouco mais eu podia continuar na
horizontal para ficar analisando o meu suicídio, embora
soubesse que, no fundo, eu não queria me matar, nem um
pouco. Tirar a própria vida é antinatural.
Além de dar muito trabalho.
Era irônico, na verdade, a pessoa desejar morrer por não
querer mais se dar ao trabalho de viver. Então, nesse
momento, ela era obrigada a se encher de energia para
arrastar móveis, subir em cadeiras, içar cordas, dar nós
complicados, amarrar algumas coisas em outras e chutar
banquinhos debaixo dela. Ou então a pessoa tinha de se
ver às voltas com banhos quentes, lâminas de barbear, ou
puxar extensões, ligar aparelhos elétricos e conseguir
pesticidas. Suicídio era uma atividade complicada.
Realmente dava muito trabalho e exigia até, às vezes,
visitas a lojas de equipamentos.
E se você conseguia se arrastar da cama para ir até a
rua, para procurar uma loja de jardinagem ou de produtos
químicos, o pior já havia passado e era melhor ir logo para
o trabalho.
Não, eu não queria me matar. Só havia uma diferença
muito grande entre não desejar me matar e querer me
levantar, de verdade. Eu podia ter vencido a batalha, mas
não havia sinais no horizonte de que ia vencer a guerra.
Karen entrou no quarto, de repente. Parecia chique,
elegante, e sua maquiagem estava perfeita. O efeito era um
pouco assustador àquela hora da manhã. Karen parecia
sempre toda arrumada, e seu cabelo jamais ficava frisado,
nem mesmo quando chovia. Algumas pessoas eram assim.
Eu não era uma delas.
— Lucy, Lucy, Lucy, acorda! — ordenou. — Quero
conversar sobre Daniel. Ele alguma vez já esteve
apaixonado, quer dizer, apaixonado de verdade?
— Hã...
— Vamos lá, conte-me logo, você o conhece há anos!
— Bem...
— Ele nunca amou de verdade, já?
— Mas...
— Você não acha que já deu tempo de ele se
apaixonar? — quis saber ela
— Acho — respondi. Era mais fácil concordar.
— Eu também acho.
Karen desmoronou em cima da minha cama, dizendo:
— Ai, estou supercansada.
Ficamos ali em silencio por algum tempo. Dava para
ouvir Charlotte no banheiro, cantando Somewhere over
the Rainbow.
— Aquele cara, o tal de Simon, deve ser bem-dotado —
comentou Karen.
Concordei.
— Ai, Lucy... — e suspirou, de forma dramática, — Eu
não quero ir para o trabalho.
— Nem eu.
Então começamos a brincar de Explosão de Gás.
— Não seria ótimo se houvesse uma explosão de gás?
Perguntou Karen.
— É mesmo! Não uma muito grande, só...
— Mas tinha que ser grande o bastante para nos obrigar
a ficar em casa...
— Mas não grande o bastante para deixar alguém
ferido...
— Certo, mas o prédio podia desabar, e íamos ter de
ficar presas aqui dentro durante dias, só com a televisão e
as revistas, e íamos ter que comer tudo o que temos de
estoque no freezer e...
Embora o estoque do freezer fosse uma linda fantasia.
Jamais guardávamos nada lá dentro, a não ser um pacote
de ervilhas que já estava congelado quando Karen fora
morar no apartamento, quatro anos antes, às vezes
comprávamos um pode gigantesco de sorvete, com a
intenção de comer moderadamente, só de vez em quando,
para fazê-lo durar alguns meses, só que normalmente ele
não passava da primeira noite.
Às vezes, para variar um pouco, brincávamos de
Terremoto, em vez de Explosão de Gás. Imaginávamos um
terremoto cujo epicentro fosse nosso apartamento.
Tínhamos sempre cuidado para não desejar morte ou
destruição para qualquer outra pessoa que não fosse a
gente. Na verdade, toda a destruição que desejávamos
deveria ocorrer do lado de fora do apartamento. Revistas,
televisões, comas, sofás e comida continuariam
miraculosamente intactos.
Às vezes costumávamos desejar uma ou duas pernas
quebradas, seduzidas pela idéia de varias semanas direto
deitadas na cama, sem interrupção. Só que no inverno
anterior Charlotte quebrara o dedinho do pé em uma aula
de dança flamenca (pelo menos essa era a historia oficial.
A verdade é que a fratura ocorrera no instante em que ela
tentara pular por cima da mesinha de centro, sob a
influência considerável do álcool) e contou que a agonia
que sentiu não dava nem para descrever. A partir daí,
deixamos de desejar braços ou pernas quebrados, mas às
vezes sonhávamos com um apêndice supurado.
— Tudo bem — disse Karen, com determinação. — Vou
para o trabalho.
— Aqueles cretinos! — acrescentou.
Ela saiu e Charlotte entrou.
— Lucy, eu lhe trouxe uma xícara de café.
— Ah, hã... obrigada — disse, meio irritada, forçando-me
a ficar sentada na cama.
Com roupa de trabalhar e sem maquiagem, Charlotte
parecia ter doze anos. Só o busto enorme entregava a
idade verdadeira.
— Ande logo — disse ela. — Vamos andando até o metrô
juntas. Preciso conversar com você.
— Sobre o quê? — perguntei, desconfiada, imaginando
se ela ia começar a falar sobre os prós e contras da pílula
do dia seguinte.
— Sabe o que é ... — disse ela, parecendo infeliz. — É
que dormi com o Simon ontem. Você acha que é muito
terrível dormir com duas pessoas diferentes no mesmo fim
de semana?
— Nãããão... — disse eu, tranqüilizando-a.
— Eu sou horrível, sei que sou, mas não quis fazer isso,
Lucy — disse ela ansiosa. — Bem, é claro que eu quis
fazer, na hora, mas não havia planejado dormir com duas
pessoas diferentes em dois dias seguidos. Como é que eu
podia saber na sexta à noite que ia conhecer o Simon no
sábado à noite?
— Exato — concordei, com vontade.
— Isso é terrível, Lucy, vivo quebrando minhas próprias
regras — disse Charlotte, com a intenção de se castigar. —
Sempre disse que nunca, jamais eu ia dormir com alguém
na primeira noite. Não que eu tenha dormido com o Simon
na primeira noite, porque esperei até a tarde do dia
seguinte, e já havia anoitecido, na verdade. Foi depois das
seis.
— Então, tudo bem — disse eu.
— E foi ótimo — acrescentou ela.
— Que bom — disse eu, para encorajá-la.
— Mas, e quanto àquele outro cara, o de sexta à noite.
Nossa, nem me lembro mais do nome dele! Isso não é
horrível, Lucy? Imagine só! Deixei alguém ver minha
bunda e não consigo nem me lembrar do seu nome.
Derek... acho que era Derek — disse, pensativa, com a
testa franzida, tentando lembrar. — Você o viu... Ele tinha
cara de Derek?
— Charlotte, por favor, pare de ser tão dura consigo
mesma. Se não se lembra do nome do cara, tudo bem. Isso
é assim tão importante?
— Não, claro que não é importante — disse ela
agitada. — Claro que não! Acho que o nome dele é Geoff.
Ou Alex. Ai, meu Deus! Vamos logo, você já vai se levantar?
— Vou.
— Quer que eu passe alguma roupa para você?
— Quero, por favor.
— Qual?
— Qualquer uma.
Charlotte saiu para pegar o ferro e me arrastei até
conseguir sentar na beira da cama. Charlotte me chamou
na cozinha, contando que lera, em algum lugar, uma
reportagem sobre uma operação que podíamos fazer no
Japão para tem o hímen costurado no lugar, conseguindo,
assim, a virgindade de volta, e me perguntou se eu achava
que ela deveria fazer isso.
Pobre Charlotte. Pobre de todas nós.
Foi muito legal, e nós, mulheres, agradecemos muito por
ter recebido o presente da liberação sexual tão
maravilhosamente embrulhado (embora nos tenha sido
ofertado contra a vontade).
Mas quem será que era a idosa e insensível tia-avó que
nos deu o conjunto de paninhos para combinar com o
presente, todos feitos a mão em crochê e carregados de
culpa?
Aposto que essa tia não ia receber cartõezinhos de
agradecimento.
Era como receber de presente um vestido vermelho lindo,
curtinho, agarrado, sexy, em tecido brilhante, com a
condição de só podermos usá-lo com tamancos irlandeses
marrons de salto baixo e sem maquiagem.
Era o mesmo que dar com uma das mãos e tirar com a
outra.
O trabalho até que não foi tão terrível. Estava me
sentindo muito melhor do que quando saíra dali na sexta-
feira, com certeza.
Megan e Meredia estavam com remorso, e um ar muito
doce. Não estavam conversando uma com a outra, mas
isso não era novidade. Só de vez em quando se falavam,
quando Megan perguntava a Meredia: "Quer um biscoito,
Eleanor?" ou "Poderia me emprestar o grampeador,
Fiona?", e Meredia falava entre dentes: "Meu nome é
Meredia!", vulnerável e constrangida. Conseguia ver as
coisas por um ângulo diferente. Cheguei à conclusão de
que todo mundo devia estar achando que Megan e Meredia
é que eram as bobalhonas, e não eu. Afinal, foram elas
que espalharam aquela historia idiota.
E, é claro, acontecera uma grande mudança na minha
parte, desde sexta-feira. Eu conhecera o Gus. Todas as
vezes em que eu pensava nele, sentia como se estivesse
embrulhada por uma armadura protetora, e que ninguém
mais poderia ma achar uma perdedora triste e patética,
bem... Eu não era, certo?
Era até um pouco irônico que na sexta-feira todos
estivessem achando que eu ia me casar, quando, na
verdade, nem tinha namorado e, agora, na segunda,
depois que eu conhecera alguém muito especial, ninguém
sequer ousasse puxar assunto de casamento na minha
presença.
Estava louca para contar a Meredia e a Megan a respeito
de Gus, mas ainda era muito cedo para perdoá-las, de
modo que eu tenha de manter a boca fechada até passar o
período adequado de chateação com elas.
Outro motivo de não estar mais me sentindo o centro
das atenções no trabalho é que eu realmente já não tinha
mais importância. Virara notícia de ontem.
A historia quente do dia era sobre Hetty e a paixão que
Ivor Veneno tinha por ela. Aparentemente ele saíra na
sexta à noite, enchera a cara e contara para toda a
empresa, do diretor-gerente aos porteiros, passando por
todos os funcionários, que estava apaixonado por Hetty e
ficara arrasado por ela ter deixado o marido, embora,
objetivamente falando, ele não estivesse arrasado por ela
largar o marido, e sim por ela tê-lo largado para ficar com
ele.
Elas estavam me tratando muito bem. É claro que, de
vez em quando, eu ainda recebia um olhar interessado de
algum dos outros funcionários, mas já não me sentia tão
mal,
Quanto a Hetty, ninguém sabia dela.
— Hetty vem trabalhar hoje ou continua doente? —
perguntei a Ivor, com toda a inocência. Hetty não andava
muito bem de saúde. Pelo menos essa era a desculpa que
nós inventamos.
— Não sei — respondeu ele, com os olhos cheios
d'água. — Vocês, porém, já que parecem tão preocupadas
com Hetty, podem assumir o serviço dela, até o seu
retorno — sussurrou ele, para mim.
Que cretino!
— Claro, Sr. Simmonds!
Vá sonhando, meu chapa.
— O que está acontecendo com Hetty? — perguntei a
Meredia e a Megan assim que Ivor deu as costas, foi para a
sua sala e fechou a porta, na certa para enfiar a cabeça
embaixo da mesa e soluçar como uma criança. — Alguma
de vocês teve notícias dela?
Sim, sim, eu tive — disse Meredia, doida pro uma
oportunidade para se reaproximar de mim. — Liguei para
ela ontem...
— Nossa, parece até um abutre! — exclamei.
— Olhe aqui, vai querer saber ou não? — perguntou ela,
com cara azeda.
Eu queria saber.
— ...E ela não me pareceu nem um pouco feliz.
— Nem um pouco feliz — repetiu Meredia, de forma
pesada e sombria, eletrizada com o drama de tudo aquilo.
O telefone tocou, interrompendo-a. ela atendeu, ouviu
com impaciência durante alguns instantes e então falou,
bem alto.
— Sim, compreendo o seu problema, mas infelizmente
estamos com o sistema fora do ar, e não posso conferir os
dados da sua conta. Deixe-me anotar o seu telefone para
ligar de volta mais tarde. Hum-hum... — Balançou a
cabeça, sem escrever coisa alguma no papel. — Sim,
anotei tudo, direitinho, e vou lhe dar um retorno assim
que puder. — E bateu com o fone no gancho. — Nossa!
Malditos clientes!
— O sistema caiu? — perguntei.
— Como é que vou saber? — reagiu Meredia, parecendo
surpresa. — Ainda nem liguei o computador! Mas acho
que não caiu, não. Agora, onde é mesmo que eu estava?
Ah, sim, Hetty...
Nós fazíamos muito esse tipo de coisa no escritório. Às
vezes dizíamos que o sistema havia caído, às vezes
atendíamos o telefone e dizíamos que éramos da turma de
limpeza, às vezes fingíamos que a ligação estava muito
ruim e não dava para ouvir o cliente, às vezes
desligávamos no meio de uma frase para fingir que a
ligação tinha caído, às vezes fingíamos que não sabíamos
falar inglês muito bem ("Eoo não saber falar zua lingua").
Alguns clientes ficavam muito aborrecidos com isto e
exigiam que chamássemos a nossa supervisora. Quando
isso acontecia, deixávamos o cliente pendurado no telefone
por alguns minutos e voltávamos novamente para atendê-
lo, cheias de vaselina e com a voz agradável, garantindo ao
cliente furioso que a funcionária que procedera assim de
forma tão ofensiva já estava limpando a mesa, pois
acabara de ser despedida.
Meredia me contou os detalhes o quanto Hetty estava se
sentindo infeliz, e como andava magra e abatida.
— Mas ela sempre pareceu magra e abatida — protestei.
— Não — argumentou ela. Aborrecida. — Dá pra notar
que ela está sofrendo muito, percebe-se que está envolvida
em um tipo muito traumático de um tipo muito
traumático de... Hã, trauma.
— Não sei por que ela está se sentindo tão infeliz —
comentou Megan. — Está com dois homens, em vez de um
só, os dois dispostos a agarrá-la. Duas cabeças... e não só
cabeças... são melhores do que uma, isso é o que sempre
digo.
— Ai, meu Deus, francamente! — reagiu Meredia, quase
cuspindo de nojo. — É a sua cara reduzir tudo a ... a
instintos animais inferiores.
— Você deve saber bem dessas coisas, Gretel — disse
Megan, de modo vago, com um sorrisinho secreto
brincando em seus lábios cheios e sedutores.
E murmurou mais alguma coisa antes de sair da sala.
Acho que foi a expressão "a três".
— Meu nome é Meredia! — reagiu ela, assim que Megan
saiu.
— Sua vaca idiota — resmungou. — E agora, onde é que
eu estava mesmo? Ah, sim.
Limpou a garganta.
— Ela está dividida entre os dois amantes. — Meredia
assumiu um tom apaixonado. — De um lado, está Dick, o
confiável e seguro Dick, pai dos filhos dela. Do outro,
Roger, excitante, imprevisível passional...
E assim foi ela, sempre em frente, até que, finalmente,
chegou a hora do almoço. Período durante o qual, é claro,
parávamos de trabalhar e saíamos do escritório para
circular pelas lojas do centro durante uma hora.
O fato de que eu, na verdade, ainda não havia sequer
começado a trabalhar não tinha importância alguma.
Saí para comprar um cartão e um presente de
aniversário para Daniel, o que era sempre difícil de fazer.
Eu nunca sabia o que comprar para ele.
O que a gente compra para um homem que já tem tudo?,
eu me perguntei. Poderia dar um livro para ele, pensei por
um momento, só que ele já tem um.
Preciso me lembrar de contar essa piadinha para Daniel,
ele vai gostar.
Eu acabava sempre comprando para ele alguma coisa
horrível e pouco criativa, como meias, gravatas ou lenços.
E o que tornava as coisas ainda piores é que ele sempre
me dava algo lindo ou especial, que demonstrava
consideração. No meu último aniversário ele me dera um
vale para um dia inteiro no Sanctuary, o melhor centro de
estética da cidade, o que representou momentos de
felicidade absoluta. Um dia sem culpas, que gastei todinho
deitada junto de uma piscina, sendo massageada e
paparicada.
De qualquer modo, comprei-lhe uma gravata. Eu não
dava gravatas para Daniel há uns dois anos, de forma que
achei que podia escapar com aquilo.
Mas comprei também um lindo cartão, muito legal,
engraçado e carinhoso, e assinei "Com amor, Lucy",
esperando que Karen não o visse e começasse a me acusar
de estar querendo roubar o seu namorado.
O papel de presente custou quase tanto quanto a
gravata. Devia ser feito com fibras de ouro.
Fiz o embrulho da gravata quando cheguei de volta no
escritório, mas ia ter de ir à agência dos Correios para
enviar o pacote. Eu poderia ter enviado através do serviço
postal da própria empresa, mas queria que o presente de
Daniel chegasse em suas mãos ainda neste século, e os
dois rapazes vindos da era de Neanderthal que
trabalhavam no setor postal não iam me garantir isso. Não
que eles não fossem pessoas legais. Eles eram muito legais
até. Os votos de parabéns que me enviaram pelo
casamento falso foram sinceros e entusiasmados. De
algum modo, porém, eles não me pareciam muito
brilhantes, não. Prestativos, esforçados, mas não muito
capazes talvez fosse a melhor forma de descrê-los.
Finalmente, o relógio marcou cinco horas e eu, com a
velocidade de uma bala ao sair do cilindro de uma arma,
fui para casa.

























CAPÍTULO 31
Eu adorava as noites de segunda-feira. Ainda estava no
estágio da vida em que achava que os dias de semana
serviam para nos recuperar do sábado e do domingo. Não
conseguia entender o resto do mundo, que parecia ter a
impressão de que era o contrário.
Segunda à noite era, normalmente, a única noite da
semana em que Karen, Charlotte e eu estávamos todas em
casa, arrasadas pelos excessos do fim de semana.
Na terça à noite, Charlotte tinha as aulas de dança
flamenca (ou dança de flamingo, como ela achava que era
o nome certo. Ninguém tinha coragem de corrigi-la).
Duas de nós estavam sempre desaparecidas nas noites
de quarta. E, freqüentemente, nas de quinta, todas nós
saíamos, numa espécie de aquecimento para a convivência
social intensa que sempre acompanhava os fins de
semana, quando as três estavam na rua, o tempo todo (se
a minha depressão permitisse, é claro).
Segunda, depois do trabalho, era o dia em que nós
íamos ao supermercado e comprávamos maçãs, uvas e
iogurte desnatado, sempre em quantidade suficiente para
uma semana. Era a noite em que preparávamos legumes
no vapor, dizíamos que era preciso abolir as pizzas e que
jamais voltaríamos a beber, pelo menos até o sábado
seguinte.
(Na terça, já estávamos de volta aos miojos com vinho;
na quarta, era sorvete com biscoitos de chocolate; na
quinta, um pequeno drinque rápido depois do trabalho e
comida chinesa para viagem; e, entre sexta e domingo, não
havia restrições de nenhum tipo. Até que a segunda
voltava, e comprávamos maçãs, uvas e iogurte desnatado
para começar tudo novamente.)
Charlotte já estava em casa quando cheguei, tirando
compras de uma sacola do supermercado e jogando fora
grandes quantidades, bandejas e mais bandejas de
iogurtes desnatados ainda não comidos e já vencidos,
muito, mas muito mesmo, além da data de validade.
Potinhos que já estavam há muitos meses gingando e
rebolando animadamente, dançando uns com os outros
dentro da geladeira.
Coloquei a minha sacola bem junto da dela, para que as
duas pudessem bater papo uma com a outra.
— Mostre, mostre, o que foi que você trouxe? Alguma
coisa interessante? — perguntou Charlotte.
— Maçãs...
— Ah. Eu também. — ... e uvas...
— Eu também.
— ... e iogurtes desnatados.
— Eu também.
— Então, não, desculpe, não trouxe nada interessante.
— Bem, é melhor assim, porque resolvi me alimentar de
forma sensata de agora em diante.
— Eu também.
— Quanto menos tentações, melhor.
— Exato!
— Karen foi dar um pulinho até a loja da esquina.
Tomara que ela não traga nenhuma comida interessante
de lá.
— Ela foi à loja do Sr. Papadopoulos?
— É.
— Então não há perigo.
— Por quê?
— Porque não há nenhuma comida interessante para se
comprar lá.
— Acho que você tem razão — concordou Charlotte. —
Tudo na loja dele parece meio... sei lá, sujo e velho, não é?
Mesmo as coisas boas, como os chocolates, parecem meio
caídas, como se já estivessem na prateleira desde antes da
guerra.
— É mesmo — concordei. — Nós temos muita, muita
sorte, sabia? Pode imaginar como é que estaríamos se
morássemos perto de uma loja legal, que vendesse coisas
apetitosas?
— Imensas — completou Charlotte. — Ficaríamos
enormes.
— Para ser franca, se analisarmos por esse lado —
comentei —, esta é uma das coisas boas deste
apartamento. Devia até estar no anúncio: "Apartamento de
três quartos para alugar, totalmente mobiliado, região dois,
junto de pontos de ônibus e estações do metrô, e a
quilômetros de lojas que vendem chocolates com boa
aparência".
— Isso mesmo — disse Charlotte.
— Olhe, Karen chegou.
Karen entrou com a cara atravessada e jogou as sacolas
de compras em cima da mesa. Estava claramente
aborrecida.
— O que houve, Karen? — perguntei.
— Escutem aqui, quem é que foi o palhaço que colocou
aquelas pesetas na caixinha do dinheiro? Estou tão
envergonhada! O Sr. Papadopoulos está achando que
tentei passá-lo para trás, e vocês sabem muito bem o que
as pessoas geralmente pensam dos escoceses quando se
trata de dinheiro!
— O que elas pensam? — perguntou Charlotte. — Ah, já
sei. Que vocês são muito pães-duros. Bem, por um lado,
as pessoas têm ra...
Parou de falar na mesma hora, quando viu a cara de
ódio que Karen fez.
— Quem colocou essas pesetas velhas lá? — quis saber.
Ela sabia ser bem assustadora quando queria.
Pensei em negar e jogar a culpa, digamos, no rapaz com
as costas cheias de pintas, o pobre e descartado Costas
Pintadas, que telefonara no domingo à noite para falar
com Charlotte e acabara ouvindo que ali não morava
ninguém com esse nome.
Pensei em negar qualquer coisa a respeito daquilo.
— Hã...
Então pensei melhor a respeito.
Karen ia acabar descobrindo uma hora qualquer. E viria
com tudo para cima de mim. Minha consciência culpada
também ia me corroer por dentro, até eu confessar.
— Desculpe-me, Karen, acho que a culpa é minha...
embora não tenha sido eu que coloquei as pesetas na
caixinha, é minha culpa que elas tenham aparecido aqui
em casa.
— Mas você nunca foi à Espanha.
— Eu sei, mas foi o Gus que me deu aquelas pesetas. Eu
não queria recebê-las, e devo tê-las deixado em cima da
mesa ou em algum outro lugar. Alguém deve ter
encontrado as moedinhas espalhadas, pensou que era
dinheiro de verdade e...
— Ah, se foi o Gus, então está tudo bem.
— Sério? — reagimos Charlotte e eu, em coro e
surpresas. Karen raramente era tão compreensiva e
compassiva.
— Sim, ele é um doce. Uma gracinha. Completamente
pirado, é claro, mas de um jeito muito bonitinho.
— ...Elizabeth Ardente... — Riu ela baixinho, para si
mesma. — Ele me faz rir.
Charlotte e eu trocamos olhares alarmados.
— Mas você não está com vontade de dar um soco
nele? — perguntei, preocupada. — Não quer que ele vá até
a loja do Sr. Papadopoulos para explicar que você não é
uma escocesa unha-de-fome e...
— Não, não, não — disse ela, abanando a mão para
rejeitar a idéia.
Eu estava comovida pela mudança que ocorrera em
Karen. Ela parecia muito menos agressiva e muito mais
simpática.
— Não — continuou ela. — Você é que tem que ir, Lucy.
Pode ir até lá. Vá pedir desculpas ao Sr. Papadopoulos!
— Hã...
— Mas também não precisa ir agora, correndo. Espere
até acabarmos de jantar, mas não se esqueça de que ele
fecha às oito.
Fiquei olhando para ela, sem saber se estava falando
sério ou não. Eu precisava ter certeza, porque não queria
me dar a todo aquele trabalho de ficar nervosa só para
descobrir, depois, que não precisava.
— Você está brincando, não está, Karen? — perguntei,
esperançosa.
Houve um pequeno intervalo, ligeiramente tenso, e então
ela disse:
— Certo, estou só brincando. É melhor eu tratar de ser
legal com você, já que você é amiga de Daniel e tudo o
mais.
E me lançou um sorriso charmoso, de desarmar,
daqueles do tipo "eu sou descarada, mas é impossível não
gostar de mim". Sorri de volta, de leve.
Eu era a favor de falar tudo às claras. Bem, na verdade,
isso é uma mentira, acho que isso de falar às claras é uma
das coisas mais supervalorizadas que existem. Só que
Karen se comportava como se a franqueza fosse uma
grande virtude, a melhor coisa que ela poderia fazer por
alguém. Eu, no fundo, achava que há certas coisas que
não têm necessidade de serem ditas, nem devem ser ditas.
Achava também que às vezes as pessoas usam o velho
"estou apenas sendo franco" como oportunidade para falar
mal dos outros. Essas pessoas abriam as comportas da
maldade, eram extremamente cruéis, arrasavam
totalmente com a vida de alguém e depois absolviam a si
próprias dizendo, com um ar inocente e comovido: "Estou
apenas sendo franco."
Mas eu também não tinha o direito de reclamar dessas
pessoas. Karen podia adorar um confronto, mas eu morria
de medo disso, chegava a ser uma fobia.
— Queria apenas, Lucy, que você ficasse lembrando a
Daniel que sou uma pessoa fabulosa — disse ela —, e
comente também que há milhões de homens apaixonados
por mim.
— Hã... certo — concordei.
— Vou cozinhar um pouco de brócolis no vapor —
anunciou Charlotte, trazendo a conversa de volta aos
assuntos domésticos. — Alguém vai querer?
— Bem, vou cozinhar umas cenouras no vapor
também — disse eu. — Vocês querem um pouco?
Resolvemos pegar a nossa ração de vegetais cozidos no
vapor e dividir igualmente pelas três.
— Ah, Lucy — comentou Karen, com ar casual. Casual
demais. Eu me preparei. — Daniel ligou.
— Ah, hã... que bom... ligou?
Será que aquela reação era pouco interessada o bastante
para ela?
— Ligou para mim — disse, triunfante. — Ligou só para
falar comigo.
— Ótimo,
— Não ligou para você. Ligou para mim.
— Ótimo, Karen. — Ri. — Então parece que vocês dois
estão acertando os ponteiros, hein?
— Pelo jeito, parece que sim — disse ela, toda orgulhosa.
— Que bom para vocês.
— Pode crer.
Comemos nossos vegetais no vapor, assistimos às
novelas e depois a um documentário assustador sobre
parto natural, que nos fez remexer o tempo todo no sofá.
Mulheres com rostos contorcidos, todas cobertas de suor,
respirando de forma ofegante e dando gemidos de dor.
As mulheres eram eu, Charlotte e Karen.
— Nossa — disse Charlotte, olhando apavorada para a
tela, o rosto rígido devido ao choque. — Jamais vou ter um
bebê.
— Nem eu — concordei com energia, subitamente
consciente das vantagens de não ter um namorado.
— Mas podemos tomar uma anestesia peridural — disse
Karen. — Com isso, não vamos sentir nada.
— Só que nem sempre funciona — lembrei a ela.
— É mesmo? Como é que você sabe? — quis saber ela.
— Ela tem razão — disse Charlotte. — Minha cunhada
disse que não adiantou nada. Passou pela maior agonia, e
dava para ouvir os gritos dela a três quarteirões.
Uma boa história, muito bem contada, mas eu não
estava muito certa se devia acreditar naquilo, porque
Charlotte era de Yorkshire, onde as pessoas adoravam
histórias de dores insuportáveis.
Karen também não pareceu muito convencida pelo
sanguinolento relato de Charlotte. A simples força de
vontade de Karen já ia garantir que a anestesia peridural
dela funcionasse, a injeção não era besta de não funcionar.
— E a anestesia com gás de bombinha, com a
máscara? — perguntei. — Aquilo não ajuda a diminuir a
dor?
— Anestesia de bombinha, com máscara — caçoou
Charlotte. — Máscara com gás! Isso é tão bom quanto
engessar um braço amputado.
— Oh, puxa — disse, baixinho. — Puxa vida. Vamos
assistir a outro canal?
Mais ou menos às nove e meia, o período pelo qual
conseguimos enganar os estômagos com os vegetais no
vapor acabou, e uma fome brava surgiu.
Quem ia capitular primeiro?
A tensão foi aumentando e aumentando, até que
finalmente Charlotte perguntou, casualmente:
— Alguém está a fim de dar uma voltinha na rua? Karen
e eu soltamos disfarçados suspiros de gratidão.
— Que tipo de voltinha? — perguntei, com cuidado.
Eu não estava insinuando nada que envolvesse comida,
mas Charlotte não me deixou desapontada.
— Uma voltinha até a lanchonete — disse ela, meio sem
graça.
— Charlotte! — falamos em coro, Karen e eu, parecendo
ofendidas. — Que vergonha! E as nossas boas intenções?
— Mas eu estou com fome — argumentou ela, com a voz
fininha.
— Pois coma uma cenoura — disse Karen.
— Para comer uma cenoura prefiro não comer nada e
ficar com fome — admitiu Charlotte.
Eu entendia bem como ela se sentia. Eu também
preferia mastigar um pedaço de mobília a comer uma
cenoura.
— Bem — suspirei, com ar solidário. — Já que você está
assim, morrendo de fome, vou até lá com voeê. — Adorei a
oportunidade, Estava louca por um saco de batatas fritas.
— Olhem... — suspirou Karen, como se aquilo fosse
realmente um sacrifício extremo. — Só para vocês se
sentirem melhor, já que vão mesmo lá, tragam um saco de
batatas fritas para mim também.
— Se é só para me fazer sentir menos culpada, você não
devia fazer isso — disse Charlotte, com suavidade. — Só
porque eu não tenho força de vontade, isso não significa
que você tenha que abrir mão da sua dieta.
— Não é incômodo algum — protestou Karen.
— Não, estou sendo sincera — insistiu Charlotte. —
Realmente não há necessidade de você comer algo que não
queira. Eu consigo agüentar sozinha o sentimento de
culpa.
— Cale a boca e me traga as batatas! — berrou Karen.
— Saco grande ou pequeno?
— Grande! Com molho curry e umas lingüicinhas!





















CAPÍTULO 32
Gus ia me levar para sair na terça-feira, depois do
trabalho. Ele dissera isso no domingo à noite.
Mas Gus estava muito animado no domingo à noite,
especialmente por causa do elevado teor alcoólico do seu
sangue. A caminhada de dez minutos da pizzaria até o
meu apartamento levou mais de meia hora, porque ele
estava todo agitado, brincalhão, e eu estava começando a
ficar preocupada com a possibilidade de ele fazer a maior
confusão com o que combinamos para terça à noite.
Tinha medo de que ele fosse ao endereço errado,
chegasse na hora errada ou até mesmo aparecesse no dia
errado.
Tentar conferir os detalhes com Gus se transformou em
um pesadelo confuso.
Porque, quando ele me deixou na porta de casa,
educadamente apertou a minha mão e disse:
— Lucy, vejo você amanhã.
— Não, Gus — corrigi, com gentileza. — Você não vai me
ver amanhã. Amanhã é segunda. Nós vamos nos ver na
terça.
— Não, Lucy — ele me corrigiu de volta. — É que
quando eu chegar em casa agora à noite vou fazer alguns
preparativos, hã... farmacêuticos, e quando acordar já vai
ser terça-feira. Então, para todos os efeitos e finalidades,
Lucy Sullivan, nós vamos nos ver amanhã. Pelo menos vai
ser o meu amanhã.
— Ah, entendo — disse, meio em dúvida. — E onde é
que vamos nos encontrar?
— Eu pego você no trabalho, Lucy. Vou resgatá-la das
minas profundas do setor de administração, e do escuro
poço do controle de crédito.
— Ótimo.
— Só para eu lembrar — disse ele, levantando meus
braços e puxando-me na direção dele —, é rua Cavendish
Crescent, número 54, e você sai às cinco e meia, não é?
E lançou-me um sorriso doce, ligeiramente desfocado.
— Não, Gus, não é na rua Cavendish Crescent, é na
praça Newcastle, e o número é 6 — disse a ele.
Na verdade, eu já havia recitado o endereço várias vezes,
e até mesmo o escrevera para ele em um pedaço de papel,
mas aquele fora um longo dia, e ele tinha bebido muito e
em grande quantidade.
— Ah, é mesmo? — perguntou Gus. — Por que será que
achei que era Cavendish Crescent? Quem é que trabalha
neste endereço, você sabe me dizer?
— Não faço idéia, Gus — respondi, cortando o papo. Eu
não ia começar a me perder em conjecturas sobre o que
funcionava na rua Cavendish Crescent, número 54, se é
que tal lugar existia mesmo. Estava muito ocupada
naquele instante, tentando manter a conversa sob controle
e me assegurando de que Gus sabia onde, quando e como
me encontrar.
— Onde está o pedacinho de papel que eu lhe dei, com o
endereço? — perguntei, sentindo que estava parecendo
uma mãe chata, ou uma professora, mas, se tinha de ser
daquele jeito, então que fosse.
— Não sei — disse ele, soltando meus braços e
apalpando os bolsos e a jaqueta. — Ah, não, Lucy, acho
que perdi.
Escrevi novamente para ele.
— Tente lembrar — sorri, de nervoso, entregando-lhe o
novo pedaço de papel. — O endereço é praça Newcastle,
número 6, às cinco horas.
— Cinco horas? Pensei que você havia dito cinco e meia.
— Não, Gus, cinco horas.
— Desculpe, Lucy, mas eu nunca me lembro de nada. É
capaz até de eu esquecer o meu próprio nome... Para falar
a verdade, isso rola mesmo, de vez em quando. Já
aconteceram muitas conversas em que eu tive que dizer
para a outra pessoa "desculpe, mas como é mesmo o meu
nome?". Minha cabeça até parece uma daquelas... você
sabe, uma daquelas coisas redondas, cheia de furos?...
— Peneira! — A ansiedade me fez falar muito alto.
— Puxa, Lucy, também não precisava ficar chateada. —
E riu, de leve. — Foi só uma brincadeirinha.
— Tá bem.
— Acho que guardei o endereço na cabeça, finalmente —
garantiu ele, lançando-me um sorriso lento que fez o meu
estômago dar uma cambalhota. — É às cinco horas, na
rua Newcastle Crescent, número 56...
— ... Não, Gus...
— Não, não, não, desculpe. Praça Cavendish...
Aquilo não era culpa dele, pensei, tentando me acalmar.
De certo modo, aquilo era uma gracinha. Qualquer pessoa
ia ficar confusa e misturar as coisas se tivesse bebido
tanto quanto Gus.
— Não, não, não. Não fique aborrecida comigo não, Lucy.
É praça Newcastle, número 56, às cinco horas.
— Seis.
A confusão surgiu em seu rosto perturbado.
— Mas você acabou de dizer cinco horas! — reclamou. —
Mas tudo bem, Lucy, é privilégio de toda mulher ficar
mudando de idéia, então mude, se quiser.
— Não, Gus, eu não mudei de idéia! Eu quis dizer que é
às cinco horas, no número 6.
— Tá, agora acho que entendi. — E sorriu. — Cinco
horas no número 6. Cinco horas no número 6. Cinco
horas no número 6.
— Nos encontramos lá então, Gus.
— Não é às seis horas no número 5? — perguntou ele.
— Não! — disse eu, já alarmada. — Ah, já sei, você está
só brincando...
Ele levantou a mão, dando um aceno de despedida, e
disse, repetindo como um papagaio:
— Cinco horas no número 6, cinco horas no número 6,
desculpe, Lucy, mas não posso parar de falar para me
despedir, porque senão esqueço... cinco horas no número
6, cinco horas no número 6, mas a gente se vê lá... cinco
horas...
E lá se foi ele pela rua, repetindo sem parar:
— No número 6, cinco horas no número 6.
Fiquei no portão, olhando para a rua escura, na direção
dele. Estava desapontada por ele não ter tentado me beijar.
Deixa pra lá, disse a mim mesma. Era muito mais
importante que ele se lembrasse do lugar onde ia me
encontrar na terça-feira. Contanto que ele conseguisse
chegar ao prédio correto, no dia certo e na hora
combinada, haveria muito tempo para beijos.
— ...Cinco horas no número 6, cinco horas no número
6... — Ouvi flutuar de volta para mim pelo ar frio da noite,
enquanto Gus continuava marchando no compasso do seu
mantra.
Tremi, em parte devido ao frio e em parte de alegria, e
entrei.
Assim, a ansiedade que eu sentia na terça de manhã era
metade medo de que ele não aparecesse e metade
expectativa agradável.
Estava certa de que ele gostara de mim, e que não ia me
dar o bolo de propósito, mas não estava nem um pouco
convencida de que ele não ia acabar esquecendo por
completo o combinado, por ter saído tão bêbado no
domingo.
Apesar disso, coloquei uma calcinha muito legal, porque
era sempre melhor estar preparada. Vesti uma roupinha
verde que parecia um paletó apertado na cintura, mas que,
na verdade, era um vestido muito curto e provocante, e
depois enfiei as botas. Fui me admirar no espelho. Nada
mau, pensei. Parecia bem infantil.
Então, um tremor de pânico me percorreu a espinha. E
se ele acabasse não aparecendo? Ai, meu Deus, eu devia
ter perguntado o telefone dele, pensei, angustiada. Devia
ter pedido o número, mas fiquei com medo de parecer
muito interessada.
E eu sabia que todo mundo no trabalho ia desconfiar de
que eu tinha um encontro à noite ao me ver usando uma
roupa que mostrava a minha bunda sempre que eu
levantava os braços. Eles eram assim no escritório. Se
penteássemos o cabelo, já começaria um boato de que
estaríamos a fim de alguém. Não dava nem para aparar a
franja sem que todo mundo chegasse à conclusão de que
estaríamos de namorado novo.
Havia trezentos funcionários espalhados por cinco
andares, e todos eles viviam interessados nos assuntos
dos colegas. Só por isso já dava para perceber o quanto
eles estavam interessados no próprio serviço.
Era como trabalhar em um aquário. Nada acontecia sem
provocar algum comentário. Até mesmo especulações a
respeito do recheio que alguém colocava no sanduíche
podiam tomar a maior parte da tarde ("Ela não costuma
comer sanduíche de salada de ovo, sempre pede presunto.
E já comeu salada de ovo duas vezes, só nesta semana.
Acho que está grávida").
Caroline, a recepcionista, era a fonte da maior parte das
fofocas. Sacava tudo, seu olho não deixava passar nada, e
se não havia nada para reparar, ela inventava. Estava
sempre interrompendo a passagem das pessoas para dizer
coisas como "olha, sabe a Jackie, do setor de contabilidade?
Ela está meio abatida hoje. Devem ser problemas
sentimentais, não é?". E antes que Jackie percebesse, o
prédio já estava todo agitado, comentando que ela estava
se divorciando. E tudo só porque ela se levantara atrasada
de manhã e não tivera tempo de passar um pouco de base
antes de ir para o trabalho.
Por tudo isso, eu nem queria pensar no mico federal que
seria passar o dia todo fazendo minhas tarefas seminua
para, no fim, nenhum homem aparecer para me encontrar
na saída.
Eu podia ter levado a roupa de sair para o escritório em
uma sacola, e trocar de roupa no fim do expediente, mas
isso provavelmente teria causado um escândalo ainda
maior ("Você viu só a Lucy Sullivan? Chegou com uma
sacola cheia de roupas, para passar a noite fora. E numa
terça, imagina! Ela está planejando uma farra, com
certeza!").
Do jeito que foi, já houve bastante tumulto no escritório
quando desabotoei o meu casacão marrom medonho e
revelei meu vestidinho curto em toda a sua glória.
— Nooossa! — declarou Megan. — Você está toda
ventilada hoje!
— Quem é ele? — quis saber Meredia.
— Hã... — Fiquei toda vermelha. Tentei fingir que não
sabia do que elas estavam falando, mas não adiantou
nada. Eu não sabia mentir.
— É que eu... hã... conheci um cara no fim de semana.
Meredia e Megan trocaram olhares triunfantes. Olhares
convencidos, do tipo "viu?... eu sabia que isso ia
acontecer".
— Bem, já deu para perceber que você conheceu
alguém — disse Meredia, com ar de escárnio. — Vai se
encontrar com ele hoje à noite?
— Vou. — Bem, eu pelo menos esperava que sim.








CAPÍTULO 33
Mais ou menos às vinte para as cinco, saí do escritório
para ir até o banheiro feminino, a fim de aplicar
maquiagem, torcendo para que o relógio chegasse logo às
cinco horas, horário estimado para a chegada de Gus.
Estava quase passando mal de tanta ansiedade. Assim
que acabara de contar tudo a Meredia e a Megan a
respeito de Gus, me arrependi de ter aberto a boca. Estava
tão chateada por ter dado com a língua nos dentes... Se ao
menos tivesse mantido a minha boca imensa fechada, mas
não conseguira me controlar.
Estava louca para me exibir e falar dele, mas, agora,
como é que eu podia saber se não tinha estragado a
história toda? Ao falar de Gus, eu tinha lançado uma
tentação para o destino, e agora era capaz de ele não
chegar.
Nunca mais vou vê-lo, pensei.
Mas vou me maquiar, só por segurança.
A caminho do banheiro, vi dois dos guardas da recepção
do lado de fora do balcão atracados com alguém. Bêbados
e mendigos estavam sempre tentando entrar no prédio
para escapar do frio, e os guardas tinham a desagradável
tarefa de ejetá-los. O mais triste de tudo é que eu às vezes
ficava com inveja dos mendigos. Se eu pudesse escolher
entre ficar sentada na minha sala e ficar sentada em cima
de um papelão na porta de um prédio, morrendo de frio,
acho que escolheria a segunda opção.
O trabalho dos guardas era policiar o prédio, deixando
entrar apenas as pessoas que eram aguardadas,
assinavam a lista de visitantes e prendiam um crachá. Só
que os guardas não eram exatamente policiais, e não
sabiam muito bem como se defender. Ocasionalmente,
quando tentavam colocar alguém para fora, a coisa ficava
feia, especialmente quando o transgressor estava bêbado.
Aquilo era sempre muito divertido, e quando Caroline
estava de bom humor conosco, chegava a ligar para a
nossa sala, avisando do tititi, para descermos correndo e
assistir de camarote.
Aquilo era sempre muito divertido, e quando Caroline
estava de bom humor conosco, chegava a ligar para a
nossa sala, avisando do tititi, para descermos correndo e
assistir de camarote.
Estiquei o pescoço para dar uma boa olhada. Um
estranho estava sendo levantado por trás, por baixo dos
braços, e sendo empurrado para fora, mas resistia de
forma valente, brigando com vontade, e cheguei a sorrir ao
ver que ele dera um chute em Harry. Eu sempre
simpatizava com os pobres coitados.
Virei-me para seguir em frente, achando que havia
alguma coisa vagamente familiar no estranho que estava
sendo ejetado, e então, de repente, ouvi alguém chamar
pelo meu nome:
— Lá está ela, Lucy Sullivan! Lucy! Lucy! Lucy!
— Lucy! Lucy! — continuava a chamar a voz, de forma
frenética. — Diga a eles que você me conhece!
Lentamente, tornei a me virar, com uma sensação
horrível de tragédia iminente.
Era o Gus. A pessoa que esperneava, se debatia e
chutava o ar nos braços de Winston e Harry era o Gus.
Ele girou o corpo para trás e arregalou os olhos para
mim, suplicando:
— Lucy! Salve-me!
Harry e Winston, prontos para arremessar Gus na
calçada, pararam de balançar o seu corpo no ar.
— Você conhece este homem? — perguntou Winston,
sem querer acreditar.
— Sim, conheço — respondi, com toda a calma. —
Talvez vocês possam me informar o que está acontecendo
aqui.
Eu tentava falar com firmeza e serenidade na voz,
tentando não demonstrar que estava morrendo de
vergonha, e a tática pareceu funcionar.
— Nós o encontramos no quarto andar. Ele não estava
com crachá e...
No quarto andar!, pensei, chocada.
— Eu estava procurando por você, Lucy! — declarou
Gus, exaltado. — Tinha todo o direito de ir até lá.
— Não, não tinha não, gracinha — contrariou Harry,
com ar ameaçador. Dava para notar que ele estava doido
para arrastar o Gus pela orelha, e tratá-lo como se fosse o
filhinho de um limpador de chaminés de um romance de
Dickens — Ele estava bem no quarto andar, imagine!
Parecia até que era o dono do lugar, sentado na cadeira do
Sr. Balfour. Trabalho aqui há trinta e oito anos, desde que
era rapazinho, e é a primeira vez que vejo...
O quarto andar era onde as altas esferas gerenciais da
empresa tinham suas salas, e o local era tratado com
tanta reverência que até parecia o Paraíso. O quarto andar
era a versão do Salão Oval, no prédio da Wholesale Metais
e Plásticos.
Eu mesma jamais havia estado no quarto andar, porque
era insignificante demais dentro da empresa, mas Meredia
já havia sido rebocada até lá uma vez, por um delito
qualquer e, pelo que contou na volta, o andar parecia o
País das Maravilhas, cheio de carpetes maravilhosos e
macios, secretárias lindas, paredes revestidas de mogno,
obras de arte, poltronas confortáveis em couro, globos
terrestres que se abriam e exibiam garrafas de bebidas
finas e um monte de gordos carecas que tomavam remédio
contra úlcera.
Embora estivesse horrorizada, eu tinha de admirar a
coragem de Gus, mas Harry e Winston pareciam muito
abalados pelo seu comportamento irreverente e profano.
Resolvi que era melhor tomar conta da situação.
— Obrigada, rapazes — disse para os dois guardas,
tentando amenizar o incidente. — Está tudo bem agora.
Deixem que eu tomo conta disso.
— Mas ele continua sem crachá — disse Harry, com
teimosia. — Você conhece as regras, meu amor. Sem
crachá, não pode entrar.
Harry era um sujeito legal, mas gostava das coisas todas
certinhas.
— Tudo bem — suspirei. — Gus, será que você se
importa de ficar me esperando aqui na entrada? Eu saio
daqui a pouquinho, às cinco horas, e me encontro com
você.
— Onde?
— Bem ali — disse eu, entre dentes e empurrando-o na
direção de uma fileira de cadeiras que ficava no saguão.
— E eu vou ficar em segurança ali, Lucy? — perguntou
ele, ansioso. — Eles não vão chegar e me expulsar de novo,
vão?
— Não, fique ali sentado, Gus.
Fui para o banheiro, soltando fumaça de raiva. Estava
furiosa. Furiosa com Gus, por ter me transformado em
espetáculo no trabalho, e ainda mais furiosa por ele ter
feito isso antes de eu me maquiar.
— Merda — xinguei baixinho, quase chorando de tanta
raiva. Chutei a lata de lixo, com o rosto ainda sem
maquiagem, mas muito vermelho. — Merda, merda, merda!
Fiquei com vontade de me matar.
Caroline presenciara tudo, de forma que o prédio inteiro
ia ficar sabendo em cinco minutos. Há poucos dias eu
fizera papel de palhaça no trabalho, e acho que não estava
preparada para passar de novo por aquilo. O pior de tudo
é que Gus me vira sem maquiagem.
Eu sabia que Gus era meio excêntrico, e isso até me
agradava, mas não estava nem um pouco satisfeita com a
cena que acabara de presenciar. Minha confiança em Gus
estava abalada, e eu me sentia péssima. Será que eu
estava errada a respeito dele? Será que aquele
relacionamento ia ser outro desastre na minha vida? Será
que Gus ia me trazer mais problemas do que alegrias?
Será que não era melhor eu cair fora?
Mas eu não queria me sentir desse modo com Gus.
Por favor, Deus, não me deixe ficar desiludida com ele.
Eu não vou agüentar. Gostei tanto dele, e estava com
tanta esperança em nós dois...
Uma vozinha sussurrou no meu ouvido que eu bem que
podia deixá-lo sentado ali no saguão e escapar correndo
pela porta dos fundos. A idéia, por um instante, me
encheu de alívio, até eu descobrir que ele provavelmente ia
ficar ali me esperando a noite inteira, e depois ia voltar na
manhã seguinte, esperando por toda a eternidade até que
eu finalmente aparecesse.
O que fazer?, perguntei a mim mesma.
Resolvi encarar o problema.
Eu ia até a entrada e seria gentil com ele, agindo como
se ele não tivesse feito nada de errado.
No momento em que acabei de aplicar a quarta e última
camada de maquiagem, já me acalmara bastante.
Certamente havia alguma coisa muito tranquilizadora
em passar batom, base e delineador.
Problemas de início de namoro, achei que era isso que
Gus e eu estávamos tendo. Nervoso da primeira noite.
Lembrei a mim mesma de sábado à noite, da alegria que
sentira ao conhecê-lo. Recordei o dia adorável que fora o
domingo, o quanto tínhamos em comum, como ele era
tudo o que eu sempre desejara, o modo como ele me fazia
rir, o jeito com que ele parecia me compreender.
Como fui capaz de pensar, por um momento sequer, em
abandoná-lo?, perguntei a mim mesma.
Especialmente depois que, indo de encontro a todas as
probabilidades, ele conseguira chegar na hora certa (mais
ou menos), no dia certo e no lugar certo. Comecei a me
sentir compreensiva, querendo perdoá-lo. Pobre Gus!,
pensei. Não era culpa dele. Ele era como uma criança em
sua inocência. Como é que ele poderia compreender as
regras e normas da Wholesale Metais e Plásticos?
A experiência toda provavelmente fora terrível para ele.
Gus devia ter levado um tremendo choque. Harry e
Winston eram homens grandes, corpulentos. Gus, na
certa, ficara aterrorizado.
Quando, finalmente, me encontrei com Gus, eu já estava
mais calma, e uma mudança parecia ter ocorrido nele
também. Gus parecia mais normal, mais sensato, mais
adulto, mais controlado.
Ele se levantou ao ver que eu me aproximava.
Reparei o quanto meu vestido estava curto pelos olhares
interessados que recebi dos outros funcionários que
circulavam pelo corredor, se apertando e se empurrando,
tentando ir embora para casa.
Os olhos de Gus se detiveram em mim por um momento,
me analisando com satisfação, para em seguida assumir
uma expressão de enterro, pálida, sombria e ansiosa.
— Lucy — disse ele, baixinho. — Então você voltou.
Estava com medo de que você fugisse de mim pelos fundos.
— Essa idéia realmente passou pela minha cabeça —
admiti.
— Não posso culpá-la — disse ele, parecendo tenso e
arrasado. Então limpou a garganta e começou a despejar
um discurso de desculpas, que ele obviamente ensaiara
durante o tempo em que eu estava no banheiro, passando
quilos e quilos de maquiagem.
— Lucy, tudo o que posso fazer é pedir desculpas do
fundo do meu coração — disse ele, falando rápido. — Não
tive a intenção de fazer nada de errado, e espero que você
consiga fazer com que o seu coração me perdoe e...
Continuou a falar sem parar, explicando-me que mesmo
que eu o perdoasse ele não teria certeza se poderia algum
dia perdoar a si mesmo etc. etc.
Fiquei esperando Gus terminar, na expectativa de ver
acabar a pilha de sua torrente de desculpas. O ato de
arrasar consigo mesmo foi se tornando mais e mais cruel,
seu comportamento cada vez mais desprezível, sua
expressão cada vez mais envergonhada e humilde demais.
Subitamente, toda a história me pareceu engraçada.
Que diabo importava tudo aquilo?, perguntei a mim
mesma, incapaz de impedir o sorriso que começou a se
espalhar em meu rosto enquanto meditava no quanto tudo
aquilo era uma bobagem.
— O que foi? — perguntou Gus, parando de repente a
ladainha de auto-recriminação. — Do que está achando
tanta graça?
— De nada! — Ri. — Estou rindo da expressão do seu
rosto, como se você estivesse para ser executado, e de
Harry e Winston, que agiram como se você fosse alguma
espécie de criminoso perigoso..
— Bem, pois saiba que, para mim, não foi nem um
pouco engraçado — disse Gus, meio ofendido. — Parecia
aquela cena de O Expresso da Meia-noite. Achei que ia ser
jogado em uma cela e temi pela minha integridade.
— Mas Harry e Winston são incapazes de machucar
uma mosca que seja — garanti a Gus.
— O que Harry e Winston fazem com insetos não é da
minha conta — afirmou Gus, cheio de indignação. — A
vida pessoal deles não interessa a ninguém. Só sei, Lucy, é
que achei que eles fossem me matar.
— Mas eles não mataram você, não é verdade? —
perguntei, com jeitinho.
— Não, acho que não.
Subitamente, ele relaxou.
— Você tem razão! — E sorriu, — Puxa, achei que você
nunca mais ia querer falar comigo de novo. Estou tão
envergonhado...
— Você é que está envergonhado?... — perguntei, quase
me engasgando.
Então comecei a rir, ele também riu e compreendi que o
caso ia se transformar em uma daquelas histórias que
contamos para os netos ("Vovô, vovô, conte novamente
sobre aquele dia em que o senhor foi expulso da porta do
trabalho da vovó..."). Aquilo era a história, acontecendo ao
vivo.
— Espero que isso não vá lhe trazer problemas — disse
Gus, preocupado. — Não há perigo de você perder o
emprego?
— Não — afirmei. — Não há perigo.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Como é que você pode ter tanta certeza?
— Porque nunca me acontece nada tão bom assim. Nós
dois começamos a rir com isso.
— Então vamos. — Ele sorriu, colocando o braço em
volta da minha cintura e me guiando enquanto descíamos
as escadas. — Deixe-me levá-la a um lugar bem legal para
gastar um monte de dinheiro com você.











CAPÍTULO 34
Foi uma noite maravilhosa.
Primeiro, ele me levou a um pub e pediu um drinque
para mim. Chegou até mesmo a pagar.
Então, depois que voltara do balcão e se sentou ao meu
lado, começou a remexer na sacola que trazia e me
presenteou com um pequeno buquê de flores, todas
amassadas. Apesar disso, mesmo estando amassadas,
pareciam ter sido compradas em uma loja, e não roubadas
do jardim de alguém, e adorei esse fato.
— Obrigada, Gus — agradeci. — Elas são lindas. Porque
eram mesmo, de um modo meio desgrenhado...
— Você não devia se incomodar com isso — protestei. —
Não havia necessidade.
— Claro que havia, Lucy — insistiu ele. — O que mais
eu poderia fazer? Ainda mais por uma mulher linda como
você?
Ele sorriu e seu rosto me pareceu tão bonito que meu
coração deu uma cambalhota. Um arrepio de felicidade
percorreu-me o corpo e, de repente, tudo me pareceu certo.
Estava tão contente de não ter dado o bolo nele, fugindo
pelos fundos.
— E isso não é tudo! — continuou Gus, enfiando a mão
novamente na sacola, como se fosse o Papai Noel, e
tirando um pacote embrulhado em um papel cheio de
figuras de bebês, fraldas e cegonhas.
— Puxa, desculpe o papel, Lucy — disse ele, olhando
para o embrulho, desapontado. — Não reparei na hora que
este era um papel para presente de casamento.
— Hã... bem, não se preocupe — garanti a ele, rasgando
o papel ofensivo.
Era uma caixa de chocolates.
— Obrigada — agradeci, deliciada e empolgada por ele
ter se dado a todo aquele trabalho por mim.
— E ainda tem mais — anunciou ele, recomeçando a
pescaria, com o braço enfiado até o ombro dentro da
sacola. De repente, aquilo me pareceu uma cena do filme
Vida de Veterinário, na seqüência da vaca.
Se for o aspirador de pó portátil vou morrer de rir, decidi,
absolutamente encantada pelo carinhoso desfile de
presentes que Gus trouxera, todos eles baseados na nossa
conversa na pizzaria, no domingo à noite.
Ele devia gostar de mim, pensei. Devia gostar muito de
mim para ter todo aquele trabalho. Estava flutuando de
tanta felicidade.
Depois de algum tempo, ele tirou outro pacotinho,
também embrulhado no mesmo papel com as cegonhas.
Era do tamanho de uma caixa de fósforos, portanto não
podia ser o aspirador de pó portátil para limpar o sofá.
Que pena! Meredia ia ficar impressionada, mas tudo
bem... Então o que seria, já que não podia ser o aspirador
de pó?
— Não pude comprar o casaco de peles de uma vez só —
disse ele, como se fosse uma espécie de explicação. —
Sendo assim, vou trazê-lo para você em pequenas parcelas.
Abra o presente! — E riu quando fiquei olhando para ele,
parecendo confusa.
Eu o abri. Era um chaveirinho com um chumaço de pêlo
de animal na ponta.
Que gracinha! Gus se lembrara do casaco de peles.
— Que a farsa esteja com você! A farsa do casaco, quero
dizer — desculpou-se ele. — Acho que é pele de armarinho.
— Talvez você esteja querendo dizer pele de arminho.
— Sim, talvez seja isso — disse ele. — Ou talvez não seja
marinho, afinal. Pode ser terrestre, Mas, Lucy, não se
preocupe. Sei que muita gente fica chateada com a
matança de animais por causa da pele deles e tudo o mais.
Já estou acostumado com a morte de bichos, porque fui
criado no campo, mas sei que tem gente que não. Você
pode ter certeza, porém, de que nenhum animal foi
sacrificado para a confecção deste chaveiro.
— Entendo.
Isso provava que aquele pedacinho de pele não era de
um arminho de verdade. Nem de um animal marinho.
Nem mesmo terrestre. Mas não importava. Pelo menos eu
estaria a salvo dos ativistas que defendem os animais e de
seus baldes de tinta vermelha.
— Muito obrigada, Gus — disse eu, muito
impressionada. — Obrigada por todas essas coisas
adoráveis que você me trouxe.
— De nada, Lucy — disse ele.
Então ele me deu uma piscada de cumplicidade.
— E pode ser que você ainda vá ganhar mais alguma
coisa. Não podemos esquecer que a noite é uma criança.
— Hã... é mesmo — murmurei, ficando vermelha.
Talvez aquela fosse a nossa noite, pensei, sentindo um
pouco de empolgação na boca do estômago.
— Agora, me conte — e dei uma risadinha —, o que é
que você estava fazendo, sentado na cadeira do Sr. Balfour?
— Estava só sentado lá, como aquele cara disse —
defendeu-se ele. — Não estava profanando um lugar
sagrado.
— Mas o Sr. Balfour é o nosso diretor — tentei explicar.
— E daí? — replicou Gus. — Aquela era apenas uma
cadeira, e o Sr. Balfour, quem quer que ele seja, é apenas
um homem. Não entendi por que tanta confusão. É muito
fácil para aqueles guardas não terem que se preocupar
com mais nada na vida, a não ser isso.
Gus estava absolutamente certo, pensei. Que grande
atitude ele tomara!
— Mande aqueles dois caras para a Bósnia e quero ver
se eles vão se preocupar com a cadeira do Sr. Balfour,
quando voltarem — acrescentou ele —, e mande o Sr.
Balfour com eles também, aproveitando a viagem. Agora,
acabe de tomar o seu drinque, Lucy, e vou levá-la a outro
lugar para alimentá-la.
— Ah, Gus, não quero que você gaste todo o seu
pagamento comigo — choraminguei. — Não posso permitir
isso. O sentimento de culpa ia acabar comigo.
— Lucy, fique quietinha, você vai comer o seu jantar, eu
vou pagar a conta e ponto final.
— Não, Gus, não posso aceitar, não posso mesmo. Você
já me trouxe todos estes presentes e me pagou um drinque,
deixe-me pelo menos pagar o jantar.
— Não, Lucy, não quero nem ouvir falar disso.
— Mas eu insisto, Gus, insisto mesmo!
— Pode insistir à vontade, Lucy — disse Gus —, porque
isso não vai adiantar nada.
— Chega, Gus! — afirmei. — Vou pagar o jantar e está
decidido.
— Mas, Lucy...
— Não! — disse eu. — Não quero mais ouvir falar nesse
assunto.
— Bem, se você tem certeza — aceitou ele, relutante.
— Sim, tenho certeza — afirmei, com segurança. —
Onde gostaria de ir?
— Qualquer lugar, Lucy. Sou uma pessoa fácil de
contentar. Contanto que tenha comida, vou ficar feliz de
comer...
— Ótimo — disse, satisfeita, já com a cabeça girando
diante de tantas possibilidades. Havia um lindo
restaurante com comida típica da Malásia, pertinho do...
— ... Especialmente se for pizza, Lucy — continuou
Gus. — Eu adoro pizza!
— Ah — disse eu, obrigando minha imaginação a voltar
correndo do Sudeste Asiático ("Volte, volte, houve uma
mudança de planos!").
— Tudo bem, Gus. Então vai ser pizza!
Foi uma daquelas noites perfeitas. Interrompíamos um
ao outro, querendo falar coisas ao mesmo tempo.
Tínhamos tanto a contar um ao outro a respeito de nós!
Nenhum dos dois conseguia falar na velocidade necessária
para acompanhar o entusiasmo mútuo e a empolgação
crescente.
Para cada coisa que um dizia, o outro respondia:
— Exato! É exatamente isso que eu penso. Ou
então:
— Não acredito! Você também se sente desse jeito? E
também:
— Concordo plenamente com você. Plenamente!
Gus me falou de sua música, sobre os instrumentos que
sabia tocar e o tipo de coisas sobre as quais gostava de
escrever.
Tudo foi maravilhoso. Eu sabia que já conversáramos
muito no sábado à noite, e depois havíamos passado todo
o domingo juntos, mas aquilo era diferente. Afinal, aquele
era o nosso primeiro encontro.
Ficamos no restaurante durante horas e horas,
conversando muito e de mãos dadas diante de pãezinhos
de alho.
Falamos sobre nossa infância, conversamos sobre como
ficamos depois de adultos, e senti que, não importava o
que dissesse a Gus, não importava o que contasse a
respeito de mim mesma, ele me compreenderia. Como
ninguém jamais compreendera no passado, nem poderia
compreender.
Permiti a mim mesma sonhar acordada por alguns
momentos sobre como seria estar casada com Gus. Não ia
ser um casamento dos mais convencionais, mas e daí? O
tempo da mulher frágil que ficava em casa e fazia as
tarefas domésticas em uma cabana com rosas na entrada
enquanto o marido saía e trabalhava arduamente de
manhã até à noite já se acabara há muito tempo.
Gus e eu seríamos os melhores amigos um do outro. Eu
ia incentivá-lo em sua carreira musical e trabalharia para
sustentar a nós dois, e então, quando ele fosse rico e
famoso, contaria em uma entrevista para a Oprah, ou para
o programa de Richard e Judy, que ele não teria
conseguido nada sem a minha ajuda, e que devia todo o
seu sucesso a mim.
Nossa casa seria cheia de música e risos, grandes papos,
todos morreriam de inveja de nós e comentariam o quanto
o nosso casamento era maravilhoso. Mesmo que fôssemos
muito ricos, continuaríamos a sentir prazer nas coisas
simples da vida, continuando a ser a pessoa favorita um
do outro. Montes de pessoas interessantes e talentosas
apareceriam em nossa casa sem serem convidadas, e eu
conseguiria preparar magníficos jantares para elas, com
os restos da véspera, enquanto discutíamos os primeiros
filmes de Jim Jarmusch de forma provocante e perspicaz.
Gus me apoiaria sempre, totalmente, e já não se sentiria
tão... tão carente quando eu me casasse com ele. Eu ia me
sentir completa, normal e, finalmente, encontraria o meu
lugar,como todo mundo
Gus jamais cederia à tentação das tietes glamourosas
que conheceria nas turnês, porque nenhuma delas lhe
daria a mesma sensação de amor completo, segurança e
entrosamento que ele tinha comigo. Depois que acabamos
de jantar, Gus perguntou:
— Está com pressa de voltar para casa, Lucy, ou
gostaria de ir a algum outro lugar?
— Não, não estou com pressa — disse eu, E não estava
mesmo. Àquela altura eu já estava certa de que a nossa
relação ia se consumar naquela mesma noite, mais tarde,
e, apesar de estar adorando, também estava petrificada de
medo. Queria aquilo, mas ao mesmo tempo estava com
medo.
Qualquer atraso no momento da verdade era algo que eu
rejeitava, embora também desejasse.
— Certo! — disse Gus. — Então vou levá-la a outro lugar.
— Onde?
— É surpresa.
— Ótimo!
— Vamos ter que pegar um ônibus, Lucy, você se
importa?
— Não, claro que não.
Pegamos a linha 24 e Gus pagou a minha passagem.
Adorei aquele gesto de posse. Era uma coisa doce, meio
adolescente.
Quando o ônibus chegou às imediações de Camden, Gus
e eu saltamos.
Gus segurou a minha mão e me levou através de um
imenso tapete de latas de cerveja vazias, ao longo de
pessoas deitadas em pedaços de papelão, adormecidas em
portais, homens e mulheres jovens sentados na calçada
imunda, pedindo qualquer trocado. Fiquei estarrecida.
Como eu trabalhava no centro de Londres, sabia que havia
problemas de mendigos e pessoas sem-teto, mas havia
tantas pessoas sem-teto ali que parecia até que eu
despencara em outro mundo, um mundo medieval, onde
as pessoas eram obrigadas a viver na sujeira e morrer de
fome.
Algumas daquelas pessoas estavam bêbadas, mas
muitas delas pareciam sóbrias. Não que isso servisse de
parâmetro.
— Pare, Gus — disse, pegando a minha bolsa dentro da
sacola.
Estava diante do terrível dilema: devia dar todos os
meus trocados a uma só pessoa, para que ela pudesse
fazer alguma coisa decente com aquilo, como arrumar
alguma coisa para comer ou beber, ou devia tentar dividir
o dinheiro entre tantas pessoas que eu conseguisse, de
modo que um monte de gente conseguisse vinte pence
cada uma? Mas o que uma pessoa pode fazer com vinte
pence? Fiquei angustiada, porque aquela quantia não
dava nem para comprar uma barra de chocolate.
Fiquei em pé, parada na rua, tentando resolver o
problema enquanto as pessoas passavam e esbarravam
em mim.
— O que acha que devo fazer, Gus? — supliquei.
— Na verdade, acho que você devia endurecer o coração,
Lucy — afirmou ele. — Aprenda a fechar os olhos para
essas coisas. Mesmo que você distribuísse todos os pence
que possui, não faria qualquer diferença.
Ele tinha razão. Todos os pence que eu tinha não
resultavam em uma quantia assim tão grande, mas isso
não importava.
— Não posso fechar os olhos diante disso — expliquei. —
Pelo menos deixe-me distribuir as moedas soltas.
— Bem, nesse caso entregue tudo para uma só
pessoa — aconselhou Gus.
— Você acha que essa é a coisa certa a fazer?
— Se você resolver visitar todos os mendigos e sem-teto
que estão espalhados por Camden, dividindo o seu
dinheiro com eles, o pub para o qual estamos indo já vai
ter fechado na hora em que você acabar. Portanto, sim,
acho que dar tudo a uma pessoa só é a coisa certa a
fazer — disse ele, de bom humor.
— Gus! Como pode ser tão desalmado? — perguntei.
— Porque tenho que ser, Lucy, todos nós temos que
ser — explicou.
— Certo, mas, então, a quem devo dar o dinheiro?
— A quem você quiser.
— Qualquer um?
— Bem, não exatamente a qualquer um. Talvez seja
melhor dar a alguém que esteja realmente duro e more na
rua. Não vá perturbar as pessoas nos bares e restaurantes,
tentando fazê-las aceitar o seu dinheiro.
— Mas eu queria dar o dinheiro à pessoa que mereça
mais — expliquei. — Como posso saber quem é ela?
— Não dá para saber, Lucy.
— Oh.
— Você está cometendo um ato de desprendimento e
caridade, Lucy. Não se trata de um julgamento moral.
— Mas eu não...
— Sim, está sim! Está com vontade de sentir que está
conseguindo o máximo valor pelo seu dinheiro ao entregá-
lo a uma pessoa que acha que merece mais — disse ele. —
Você se sentiria mal se soubesse que o dinheiro foi para
um bêbado, ladrão ou um cara que bata na mulher?
— Bem, sim...
— Então você entendeu tudo errado, Lucy — disse
Gus. — A doação é o mais importante, e não a recepção ou,
no caso, a pessoa que recebe.
— Oh... — disse, baixinho. Talvez ele tivesse razão.
Fiquei envergonhada.
— Certo, então — disse, me decidindo. — Vou entregar
tudo para aquele cara sentado bem ali.
— Não, não faça isso! — disse Gus, me puxando pelo
braço. — Ele não. É um tremendo patife.
Fiquei olhando para Gus, aborrecida por um momento, e
então nós dois caímos na gargalhada.
— Você está brincando? — perguntei, por fim.
— Não, Lucy — e riu, como se pedisse desculpas —, não
estou, não. Entregue o seu dinheiro a qualquer pessoa em
Camden, menos a ele. A família toda, ele e os irmãos, são
um bando de impostores. E ainda por cima nem sequer
são sem-teto. Ele mora em um conjunto residencial em
Kentish Town.
— Como é que você sabe de tudo isso? — perguntei,
intrigada com aquilo e ainda sem saber se devia acreditar
nele ou não.
— Eu simplesmente sei — disse Gus, com ar sombrio.
— Bem, então que tal aquele outro homem logo ali? — E
indiquei outro pobre infeliz que estava sentado junto de
uma porta.
— Vá em frente.
— Ele não é um patife? — perguntei.
— Não que eu saiba.
— E os irmãos dele?
— Só ouvi coisas boas a respeito deles.
Depois de despejar meu patético punhado de moedas,
me virei e acabei esbarrando em um homem mais velho
que perambulava pela rua.
— Oh, olá!... Uma boa-noite para você — disse ele, de
um jeito muito amigável, como se já nos conhecêssemos.
Tinha sotaque de irlandês.
— Olá — sorri de volta.
— Você o conhece? — perguntou Gus.
— Não — disse, meio em dúvida. — Pelo menos acho
que não, mas ele me disse "olá". Então achei que devia
responder, por educação.
Gus me ajudou a atravessar a rua, entramos em uma
rua transversal e depois em um pub aquecido, barulhento
e muito iluminado.
Estava completamente lotado de gente rindo,
conversando e bebendo. Gus parecia conhecer
praticamente todo mundo ali. Em um canto havia três
instrumentistas, um homem tocando bodhrán, uma
mulher com um instrumento de sopro e alguém de sexo
indeterminado tocando violino.
Reconheci a música, era uma das favoritas do meu pai.
Em toda a minha volta se ouvia o sotaque irlandês.
Senti como se estivesse voltando para casa.
— Sente-se aqui — disse Gus, levando-me por entre
multidões de pessoas felizes e com o rosto vermelho,
indicando o tampo de um barril, cuja borda na mesma
hora marcou um sulco na minha bunda.
Que horas deviam ser?, eu me perguntei. Tinha certeza
de que já passava das onze. No entanto, as bebidas
continuavam a ser servidas no balcão.
Um pensamento passou pela minha cabeça. Será que
aquele ali era um bar ilegal, desses que vendem bebidas
depois do horário permitido por lei? Um bar daqueles que
o meu pai mencionara tantas vezes?
Talvez fosse, pensei, toda empolgada.
Estava sem relógio, e a mulher perto de mim também,
bem como suas companheiras de mesa. Uma delas, porém,
sabia de alguém do outro lado do pub que tinha relógio e
insistiu em ir até lá, espremendo-se no meio do povo, para
tentar achar a tal pessoa e perguntar as horas.
Voltou logo depois.
— São vinte para a meia-noite — informou ela, voltando
à cerveja.
— Obrigada — agradeci, com um calafrio de empolgação
me percorrendo por dentro. Então eu estava certa: aquele
ali era mesmo um lugar ilegal.
Que maravilha!
Como aquilo era ousado, decadente e perigoso!
Talvez não fosse correto Gus me levar até ali, colocando-
me em perigo de ser presa, mas eu nem ligava.
Senti-me andando pelo lado selvagem da vida, como se
ali eu estivesse vivendo de verdade.
Gus finalmente voltou com as bebidas.
— Desculpe a demora, Lucy — pediu ele. — Encontrei
um monte de amigos que vieram de cidade de Cavan e...
— Tudo bem, tudo bem — interrompi, descendo do
barril. Estava louca para conversar com ele sobre o nosso
desafio à lei para me importar com suas histórias.
— Gus, você não está preocupado com os policiais? —
sussurrei, olhando em torno com maravilhado horror.
— Não — disse ele. — Acho que os policiais é que devem
se preocupar com eles mesmos.
— Não. — Dei uma risada. — Estou perguntando se você
não está preocupado com o fato de eles poderem vir até
aqui para nos prender?
Ele apalpou os bolsos da jaqueta e respirou aliviado,
dizendo:
— Não, Lucy, neste momento não estou preocupado não.
O fato de ele não levar aquilo a sério me deixou chateada.
— Não, Gus — protestei. — Você não está com medo de
que eles façam uma blitz aqui, entrem batendo na gente e
prendam todo mundo?
— Mas por que motivo eles fariam isso? — perguntou
Gus, intrigado. — Será que do lado de fora já não tem um
monte de gente disponível para eles prenderem e
transformarem em sacos de pancada sempre que tiverem
vontade? Não inventaram a lei da vadiagem especialmente
para essas ocasiões?
— Mas, Gus — argumentei, desesperada. — E se eles
ouvirem a música aqui dentro? E se descobrirem que
continuamos bebendo muito depois do horário permitido?
— Mas não estamos fazendo nada de errado — explicou
Gus. — ... Embora isso não os impeça de sair dando
porrada em alguém — acrescentou.
— Mas estamos errados sim — insisti. — Este é um pub
ilegal. A hora de fechar é onze da noite. Estamos violando
a lei.
— Não estamos não! — Riu ele.
— Estamos sim.
— Lucy, Lucy, me escute um segundo. Este pub tem
licença especial para funcionar até meia-noite. Ninguém
está fazendo nada de errado, a não ser aquele barman
bundão que leva um século para servir uma cerveja.
— Ah.
Fiquei terrivelmente desapontada.
— Quer dizer que tudo isto é legal, tudo é feito às
claras? — perguntei, derrotada.
— É, Lucy, claro que é. — Riu Gus. — Você não achou
que eu ia trazer você para um lugar que pudesse lhe trazer
problemas, achou?
— Bem, hã, sabe... só estava pensando...
No fim da noite, Gus foi para casa comigo. Nenhum dos
dois questionou nada, nem achou estranho. Parecia a
coisa mais natural do mundo. Ninguém combinou,
simplesmente aconteceu.
Na hora em que conseguimos sair do pub e de todas as
pessoas que Gus conhecia, nós dois sabíamos que
tínhamos de pegar um táxi até Ladbroke Grove. E foi o que
fizemos.
Gus não sugeriu que fôssemos para a casa dele, e
também não me ocorreu lançar essa idéia.
Não achei nada de estranho a respeito. Talvez devesse
ter achado.






















CAPÍTULO 35
Na quinta-feira, havia duas nuvens escuras no meu
maravilhoso céu azul de felicidade.
Chegou a notícia de que Hetty pedira demissão,
oficialmente. Aquilo me deixou triste. Não por ela ser a
única de nós que realmente fazia algum serviço no
escritório, mas porque ia sentir saudades dela.
Detestava mudanças, e fiquei imaginando, preocupada,
quem iríamos ter em seu lugar.
A outra nuvem é que eu concordara em visitar a minha
mãe na quinta à noite, depois do trabalho.
Estava naquela fase do relacionamento com Gus em que
todos os pensamentos que eu tinha na hora de acordar
eram para ele. Sentia-me superfeliz quase o tempo todo
(com exceção do período entre sete e meia e dez da noite, e
mesmo esse horário melhorara, especialmente se Gus
estava comigo, de preferência até mais tarde). Quando eu
não estava em companhia de Gus, queria conversar sobre
ele, com qualquer um, com todo mundo. Só para descrever
como ele era lindo, contar como a sua pele era macia,
como o cheiro dele era sexy, como seus olhos eram verdes,
como seu cabelo era sedoso, como seu sotaque era
maravilhoso, como o seu papo era uma delícia, como os
seus dentes eram lindos para alguém que fora criado em
uma fazenda distante, e como a sua bunda era
redondinha e pequena.
Ou recontar, com todos os detalhes, histórias das coisas
lindas que ele me dissera e as coisas que ele me trouxera
de presente.
Estava lotada de tanta felicidade e adrenalina. Jamais
me ocorreu que poderia estar parecendo a pessoa mais
chata do mundo.
Delirava de alegria, amava o mundo inteiro e achava que
todos estavam se sentindo tão felizes por me ver assim
quanto eu mesma
É claro que eles não estavam, e consolavam uns aos
outros dizendo coisas como "não vai durar muito" e "se eu
ouvir mais uma vez a história de como ele abriu o sutiã
dela e o arrancou fora com os dentes, vou começar a
gritar!".
Não, é claro que Gus não arrancara meu sutiã com os
dentes. Embora, na verdade, tenhamos consumado a
nossa relação na terça à noite, não foi exatamente como
no filme Nove e Meia Semanas de Amor, o que para mim
estava ótimo. Ficar com uma venda nos olhos e mordiscar
cebolas e picles não era exatamente a minha idéia de
prazer sexual. Por ter complexo de inferioridade e não me
sentir sexualmente confiante, eu gostava de ações bem
diretas e tradicionais na cama. Homens que gostavam de
experimentar um monte de posições diferentes me
deixavam apavorada.
Mesmo sem as posições diferentes, eu já estava um feixe
de nervos quando Gus e eu chegamos ao meu
apartamento. Por sorte, eu estava um feixe de nervos
muito bêbado, e isso acabou por tirar um pouco da
estranheza que eu poderia sentir. Para falar a verdade,
nós dois estávamos nos escangalhando de rir, e caímos na
cama na mesma hora.
Gus tirou a roupa com toda a velocidade, e então pulou
na cama e ficou ao meu lado.
Eu não tinha a intenção de ficar olhando para o pênis
ereto dele, pois estava com muita vergonha. Porém, contra
a minha vontade, meus olhos foram atraídos para ele. E
atraídos para ele. E continuavam sendo atraídos. Eu não
conseguia parar de olhar, estava hipnotizada por aquilo.
Era muito atraente, por sinal, para uma massa com
quinze centímetros de comprimento que pulsava, toda
enrugada e cheia de veias roxas. Sempre achei espantoso
o fato de que um troço tão basica-mente assim, bem...
esquisito, pudesse ser tão erótico.
Então foi a minha vez de tirar a roupa.
— O que está havendo? — Gus pegou na minha roupa
com um olhar de preocupação fingida. — Você ainda está
vestida? Vamos logo, tire isso tudo, rápido, rápido!
Aquilo foi muito engraçado, me fez lembrar de quando
eu era bem pequena e minha mãe tirava a minha roupa.
— Agora estique as pernas! — ordenou ele, em pé na
beira da cama, enquanto segurava as pontas da minha
meia-calça e as puxava. Quando ouvi o som de algo que se
rasgava, não consegui mais parar de rir.
— Levante os braços! — bradou ele, enquanto puxava o
meu suéter por cima da cabeça. — Caramba. Para onde foi
o seu rosto?
— Está aqui embaixo — disse, com a voz abafada, por
trás do suéter. — Você tem que puxar a roupa pelo buraco
do pescoço também, e não só dos braços.
— Ah, graças a Deus! Achei que havia degolado você
com a força da minha paixão.
Eu me despi em tempo recorde, mas, pelo menos
naquela vez, não estava constrangida nem com vergonha
do meu corpo. Não havia como ser recatada ou moderada
com relação a isso, porque Gus parecia muito natural com
relação a tudo o que estava vendo.
— Você não é um estudante de medicina, é? —
perguntei, desconfiada.
— Não.
É claro que não era. Eu esquecera que os estudantes de
medicina eram aqueles que soltavam risadinhas abafadas
sempre que ouviam a palavra "traseiro".
Gus não se preocupou muito com as preliminares. A não
ser que ele me perguntar: "Você está tomando pílula?",
conte. Estava era doido para meter as caras o mais rápido
possível, uma frase bem sugestiva, por sinal. É claro que
eu estava adorando o seu entusiasmo, pois provava que
ele realmente gostava de mim.
— Você não vai gozar em três segundos, vai? — brinquei
com ele. E quando ele gozou em três segundos, nós dois
quase caímos da cama de tanto rir.
Então Gus praticamente caiu no sono em cima de mim.
Mas eu não me senti desapontada nem chateada. Não
berrei com ele nem exigi que ele armasse a tenda de novo
na mesma hora e me fizesse atingir dez orgasmos, como
era o meu direito de mulher moderna. Fiquei até aliviada
pelo fato de ele não ser muito sofisticado sexualmente,
porque eu não ia precisar de meta alguma para atingir.
Para mim, sexo tinha mais a ver com aconchego e carinho
do que com orgasmos. E ele era muito bom na área de
aconchego e carinho.
Com Gus, eu ultrapassara aquele período de gentilezas,
as tolices de quem ainda está se conhecendo e fora direto
à jugular, à fase de "se apaixonar".
Por isso, eu não estava gostando nem um pouco de ter
de ir visitar minha mãe e perder um tempo que eu poderia
usar melhor em companhia de Gus, ou então falando a
respeito dele com as pessoas.
A única coisa que tornava aquilo remotamente
suportável era o fato de Daniel ir até lá comigo. Não podia
conversar sobre Gus enquanto estivesse com minha mãe,
mas, durante a viagem de metrô, na ida e na volta, eu
podia alugar o ouvido de Daniel.
Ao sair do trabalho, na quinta-feira, eu me encontrei
com Daniel, e pegamos o metrô até a última estação da
linha que saía de Picadilly.
— Conseguiria imaginar coisas muito melhores para
fazer esta noite, no lugar de percorrer quilômetros e
quilômetros só para ver a minha mãe — resmunguei,
enquanto viajávamos em pé, balançando para a frente e
para trás no trem superlotado, sentindo o ar pesado com o
cheiro dos casacos úmidos e o chão coalhado de pastas e
sacolas de supermercado. — Trabalhar nas minas de sal
da Sibéria, por exemplo. Ou limpar o prédio do Serviço
Secreto Britânico com uma escova de dentes.
— Não se esqueça do seu pai — lembrou Daniel. — Você
vai vê-lo também. Isso não a deixa mais feliz?
— Bem, claro que deixa, mas não consigo conversar
direito com ele quando ela está por perto. E odeio ter que
deixá-lo lá depois. Sinto-me tão culpada.
— Ah, Lucy, você complica demais as coisas — suspirou
Daniel. — Não precisava ser assim tão ruim, sabia?
— Eu sei. — Sorri. — Mas talvez eu goste das coisas
assim. Não queria que Daniel começasse a me dar
conselhos, porque eu
sabia que não ia adiantar nada, só que ele era o tipo de
pessoa que, quando se empolgava, não desistia com
facilidade. Muitas amizades já haviam encalhado nos
recifes das boas intenções.
— Acho que você realmente gosta disso — admitiu ele,
parecendo um pouco surpreso diante da descoberta.
— Ótimo! — Sorri. — Ainda bem que concordamos nisso.
Agora não vou precisar aturar você se preocupando
comigo.
Quando saímos do metrô já estava escuro e o tempo
esfriara, e ainda tínhamos de andar por quase quinze
minutos até a minha casa. Daniel insistiu em carregar a
minha sacola,
— Nossa, Lucy, isto aqui está pesando uma tonelada. O
que colocou aqui dentro?
— Uma garrafa de uísque.
— Para quem?
— Para você é que não é. — E dei uma risada.
— Já devia saber. Você nunca me dá nada, a não ser
esculachos.
— Isso não é verdade. Não lhe dei uma linda gravata
como presente de aniversário?
— Sim, é verdade, obrigado. Pelo menos foi um pouco
melhor do que o presente do ano passado.
— Que presente eu lhe dei no ano passado?
— Meias.
— Ah, foi.
— Você sempre me dá presentes de "pai".
— Como assim?
— Essas coisas... gravatas, meias, lenços. São o tipo de
presente que todo mundo dá para os pais.
— Eu não.
— Não? E o que dá de presente para o seu pai?
— Dinheiro, geralmente. E às vezes uma garrafa de
bebida bem legal.
— Ah.
— De qualquer modo, eu ia lhe dar um presente
diferente desta vez, Este ano pensei em lhe comprar um
livro...
— Só que eu já tenho um, sim, eu sei, eu sei, Lucy —
interrompeu Daniel, de repente.
— Ah... — Sorri. — Eu já havia falado isso para você?
— Creio que sim, Lucy. Uma ou duas vezes, pelo menos.
— Puxa, isso é embaraçoso. Sinto muito.
— Sente muito pelo quê? Sente muito por repetir sua
piadinha sem graça mais de cem vezes? Ou por insinuar
que eu sou um filistino sem cultura?
— O nome é palestino — comentei, de modo vago.
— Filipino — reagiu ele.
— Enfim, desculpe por repetir minha piadinha sem
graça, que não é assim tão sem graça, pela centésima vez.
Quanto a insinuar que você não é muito inteligente, não
peço desculpas. Olhe só para as mulheres com quem você
sai.
— Lucy Sullivan, dou muita folga para você, sabia? Não
sei como é que nunca tentei esganá-la,
— Para falar a verdade, nem eu — comentei,
pensativa. — Sou muito desagradável com você. E o pior,
sem intenção. Não acho você burro. Acho, sim, que seu
gosto para mulheres é horroroso, e também acho que você
as trata muito mal, mas, tirando tudo isso, até que você é
um cara legal.
— Meu Deus, um elogio, afinal. — Sorriu Daniel. —
Posso ter essa declaração por escrito?
— Não.
Continuamos a caminhar em silêncio, passando em
frente a fileiras e mais fileiras de casinhas típicas de
subúrbio. O tempo estava congelando.
Daniel voltou a falar, depois de algum tempo:
— Então, para quem é?
— Para quem é o quê?
— O uísque. Para quem é?
— Para o meu pai, é claro. Para quem mais poderia ser?
— Ele continua nessa?
— Daniel! Não fale desse jeito.
— Desse jeito como?
— Do jeito que fala, até parece que ele é um vagabundo
bêbado ou algo horrível assim.
— É que o Chris me contou que ele tinha parado de
beber.
— Quem? Papai? — perguntei, com deboche. — Parar de
beber? Não seja ridículo! Por que ele faria isso?
— Sei lá — disse Daniel, com todo o cuidado. — Isso foi
só o que o Chris me contou. Devo ter entendido errado.
Continuamos a caminhar, com dificuldade.
— E para a sua mãe, o que comprou?
— Para mamãe? — perguntei, surpresa. — Nada, ué...
— Isso não se faz!
— Ora, se faz sim. Eu nunca trago nada para ela.
— Por que não?
— Porque ela trabalha. Tem dinheiro. Papai não
trabalha, papai não tem dinheiro algum.
— Então você nem mesmo chegou a pensar em trazer
um presentinho para ela?
Parei de andar na mesma hora e fiquei ali, na frente de
Daniel, forçando-o a parar também.
— Escute aqui, seu réptil — disse, com raiva. — Eu já
compro presentes para ela no aniversário, no Natal e no
Dia das Mães, e isso já é o bastante. Você pode comprar
presentes para sua mãe toda vez que vai vê-la, mas eu não
sou assim. Pare de tentar fazer com que eu me sinta uma
filha má!
— Eu só quis dizer... ah, deixa pra lá. — Daniel pareceu
tão mal-humorado que não consegui ficar com raiva por
muito tempo.
— Tudo bem — disse, tocando em seu braço. — Se isso
faz com que você se sinta melhor, posso comprar um bolo
para ela quando passarmos na padaria lá perto.
— Não precisa!
— Ai, Daniel! Por que ficou tão irritado?
— Não fiquei não.
— Claro que ficou. Você disse "não precisa!"...
— Disse. — E riu, parecendo desesperado. — Disse "não
precisa" porque já comprei um bolo para ela.
Fiz cara de nojo.
— Daniel Watson, você é realmente um réptil!
— Não, não sou. O que tenho se chama "boas maneiras".
Sua mãe vai me oferecer o jantar, estou apenas sendo
educado.
— Você pode chamar de "educado", mas eu chamo de
"réptil".
— Tudo bem, Lucy — riu ele. — Chame do que quiser.
Viramos a esquina, e quando eu vi a minha casa, o meu
coração
se apertou. Eu odiava a minha casa. Detestava voltar lá.
Foi quando me lembrei de uma coisa.
— Daniel — disse, um pouco assustada.
— Que foi?
— Se você mencionar o nome de Gus com a minha mãe,
eu mato você!
— Como se eu fosse fazer isso! — Ele pareceu magoado.
— Ótimo, ainda bem que a gente se entende.
— Então você acha que ela não vai aprová-lo? —
perguntou Daniel, arqueando as sobrancelhas.
— Ora, cale a boca!











CAPÍTULO 36
Vi a cortina se mover na janela da sala. Mamãe já abrira
a porta antes que tivéssemos a chance de tocar a
campainha.
Por um momento, me senti um pouco triste.
Será que ela não tinha nada melhor a fazer do que ficar
espiando pela janela?, perguntei a mim mesma.
— Bem-vindos, sejam bem-vindos! — disse ela, toda
sorridente, hospitaleira e cordial. — Saiam dessa noite
gelada. Como está, Daniel? É muita bondade sua vir de
tão longe só para nos visitar. Está muito cansado? —
perguntou ela, agarrando as mãos de Daniel. — Não, você
está com uma cara boa... Tirem os casacos e entrem,
acabei de preparar um bule.
— Preparou um bule? Não sabia que a senhora estava
trabalhando com artesanato em cerâmica. — Daniel sorriu
para mamãe, com os olhinhos brilhando e cara de travesso.
— Ora, mas você, hein? — Riu ela, com um jeitinho
infantil, girando os olhos ao olhar para ele. — Continua
terrível!
Enfiei os dedos na garganta e fiz ruídos de vômito.
— Pare com isso — cochichou Daniel.
— Por que está sendo mau comigo? — perguntei,
surpresa. — Normalmente você não é.
— É que às vezes você age de forma infantil e horrível.
Aquilo me deixou irritada e perturbada, e enquanto
tirávamos os casacos no minúsculo vestíbulo e os
pendurávamos no corrimão da escada, fiquei fazendo
caretas e repetindo as palavras "infantil e horrível" umas
cinqüenta vezes, com voz de débil mental.
Daniel ficou olhando para mim, sério, com as
sobrancelhas levantadas, mas eu sabia que ele estava
prendendo o riso.
— Se você me disser "esse é um comportamento muito
maduro, Lucy!", dou um soco em você — avisei.
— Ah. Esse é um comportamento muito maduro!
Então demos início a uma briga física. Tentei atingi-lo,
mas ele agarrou meus pulsos e ficou segurando-os com
firmeza. Depois começou a rir quando tentei empurrá-lo e
girar o corpo para me livrar dele. Só que não consegui me
mover nem um centímetro enquanto ele ficou ali,
parecendo indiferente, rindo para mim, olhando para
baixo.
Fiquei meio perturbada pelo seu jeito dominador e
machista. Na verdade, se fosse com outro cara, sem ser o
Daniel, aquilo teria sido bem erótico.
— Seu grosso! — Eu sabia que isso o deixaria chateado.
E tinha razão, pois ele me largou na mesma hora. Então,
de modo estranho, fiquei desapontada.
Fomos para a cozinha, onde estava mais quente. Mamãe
estava pegando biscoitos, açúcar e caixas de leite.
Papai estava em uma cadeira de braços, roncando
baixinho, com os cabelos brancos já bem ralos
despenteados e arrepiados. Dei-lhe um tapinha no ombro,
com carinho. Seus óculos estavam tortos no rosto, e
reparei, com uma fisgada de dor, que ele estava
começando a parecer velho. Não com meia-idade, ou
apenas um pouco idoso, e sim velho, velho mesmo.
— Você vai se sentir melhor quando colocar um pouco
de chá quentinho dentro dessa barriga — disse mamãe. —
Comprou uma saia nova, Lucy?
— Não.
— Comprou onde?
— Não é nova.
— Eu ouvi o que disse. Em que loja comprou?
— A senhora não conhece.
— Experimente me dizer. Não sou a velha antiquada e
totalmente por fora das coisas, conforme ela imagina —
disse ela, rindo como uma jovem para Daniel enquanto
colocava pratinhos cheios de biscoitos em cima da mesa,
empurrando-os na direção dele.
— Kookai — respondi, entre dentes.
— Que tipo de nome é esse para uma loja, afinal? —
perguntou ela, fingindo que ria.
— Eu disse que a senhora não ia conhecer.
— Não conheço mesmo. Nem quero. De que é feita? — E
passou os dedos pelo tecido.
— Como é que vou saber? — respondi, chateada,
tentando puxar a saia de volta, libertando-a daquelas
garras. — Compro as roupas porque gosto delas, não pelo
tecido do qual elas são feitas.
— Acho que é material sintético — afirmou ela,
esfregando o pano. — Olhe! Olhe só o jeito de enrugar que
ele tem.
— Pare com isso!
— E o acabamento. Uma criança era capaz de conseguir
fazer uma bainha melhor do que essa. Quanto mesmo
você disse que pagou por ela?
— Eu não disse.
— Bem, e quanto você pagou por ela?
Fiquei com vontade de dizer que não ia falar o preço,
mas sabia que essa resposta ia parecer bem infantil.
— Não lembro.
— Acho que lembra sim. Só que está com vergonha de
me dizer o preço. Deve ter custado uma fortuna, aposto!
Muito mais do que vale.
Não respondi nada.
— Você sempre foi um desastre com o dinheiro, Lucy.
Continuei sem dizer nada.
— Você conhece o velho ditado: um tolo e seu dinheiro
logo se separam.
Nós três continuamos sentados, em silêncio, eu fazendo
pirraça e me recusando a beber o chá, só porque ela o
preparara.
Ela sempre ressaltava o que havia de pior em mim.
Daniel quebrou a tensão indo até o vestíbulo e voltando
com o bolo que levara para ela. Evidentemente, a minha
mãe ficou maravilhada e toda cheia de coisa com Daniel,
colada nele como uma doença de pele.
— Ah, você não é um rapaz maravilhoso? Não precisava
fazer isso. O triste é ver a que ponto chegamos, quando
gente do meu próprio sangue não me traz nada.
— Ah, mas o bolo é um presente de nós dois, não é só
meu — explicou Daniel, depressa.
— Puxa-saco. — Com os lábios fiz mímica das palavras
para ele, do outro lado da mesa.
— Ah! — disse mamãe. — Obrigada, Lucy, apesar de
você saber muito bem que estou fazendo jejum de
chocolate, em respeito à Quaresma.
— Mas bolo não é chocolate — disse, baixinho.
— Bolo de chocolate é chocolate, sim — replicou ela.
— Então a senhora pode congelá-lo, para comer depois
que a Quaresma acabar — sugeri.
— Não vai agüentar até lá.
— Vai sim.
— De qualquer modo, isso seria contra o espírito do
jejum da Quaresma.
— Então tá bom! Não coma o bolo, Daniel e eu comemos.
O bolo da discórdia ficou ali, no meio da mesa, como se
de repente tivesse se transformado em algo assustador,
como uma bomba. Sabia que não era possível, mas juro
que ele me pareceu estar quase pulsando. Tinha certeza
de que ele jamais seria comido.
— E você, está fazendo jejum de quê, em respeito à
Quaresma, Lucy?
— De nada! Já tenho muita coisa ruim na minha vida —
acrescentei, misteriosa, na esperança de que ela ia sacar
que estava falando a respeito de ir visitá-la. — Não preciso
fazer jejum nem desistir de nada,
Para a minha surpresa, ela não revidou. Olhou para
mim de um jeito quase... carinhoso... por um momento.
— Preparei o seu favorito — anunciou ela.
— Meu favorito o quê?
— Seu prato favorito!
— Ah, preparou?
Eu nem sabia que tinha um prato favorito. Seria
interessante descobrir qual a gororoba que ela preparara.
Mas fui bem cruel e disse;
— Que bom, mamãe! Eu nem sabia que a senhora sabia
preparar comida típica do Butão.
Mamãe fez uma cara de "vamos animá-la" para Daniel e
disse:
— Sobre o que ela está falando? Cozinhar botão? Você
sempre foi meio estranha, Lucy, mas, só para agradá-la,
podemos pegar uma daquelas camisas sociais cheias de
botões do seu pai, lá em cima, e cozinhá-los. Aposto que
ele não vai precisar delas — acrescentou, com um tom
amargo na voz. — Ele não usa uma camisa social desde o
dia do nosso casamento.
— Sai fora, mulher! — disse uma voz arrastada vinda do
canto da cozinha. — Então não coloquei uma camisa
social no enterro de Mattie Burke?
Papai abrira os olhos e estava olhando em volta, meio
perdido.
— Papai! — disse, toda alegre. — O senhor acordou.
— Olhe, parece até um daqueles seus amigos mortos
que se levantaram do caixão e assustaram todo mundo no
velório — disse mamãe com sarcasmo enquanto papai se
ajeitava todo para sentar reto na cadeira.
— Não foi nada disso — replicou papai. — Essa história
não aconteceu com Mattie Burke, foi com Laurence Molloy.
Eu nunca lhe contei esse caso, Lucy? Foi um dia
memorável aquele, quando Laurence Molloy fingiu que
tinha morrido só para a gente fazer uma grande gozação
com toda a vizinhança. O problema é que Laurence não
ficou nem um pouco satisfeito quando descobriu que ia ter
que ficar ali deitado, esticado, sem respirar, dentro de um
caixão duro, sem nada para beber a não ser o bafo dos
que estavam em volta.
Então, resolveu pular fora do caixão e pegou a garrafa
do primeiro que viu, dizendo "me dê um pouco disso aí...".
— Cale a boca, Jamsie! — berrou a minha mãe. —
Temos visita, e garanto que ele não está interessado nas
histórias da sua juventude desperdiçada.
— Eu não estava contando histórias de minha juventude
desperdiçada — resmungou papai. — A ressurreição de
Laurence Molloy aconteceu uns dois anos atrás, e... Ora,
como vai, meu filho? — disse ele, fixando o olhar em
Daniel. — Eu me lembro de você. Você costumava
aparecer aqui para brincar com Christopher Patrick, não é?
Era um varapau comprido naquela época, parecia um
bambu. Levante-se um instantinho, para eu ver se você
encolheu.
Daniel se levantou, meio sem graça, fazendo muito
barulho com a cadeira.
— Está mais comprido ainda, como é que pode? —
declarou papai. — E eu que achava impossível você
crescer mais.
Daniel tornou a se sentar, parecendo agradecido por isso.
— Lucy — disse papai, dirigindo-se a mim. — Minha
garotinha querida, meu amorzinho, eu não sabia que você
vinha aqui hoje.
— Por que não contou a papai que eu vinha aqui? —
questionei minha mãe.
— Eu lhe contei, Jamsie.
— Não, não contou.
— Contei sim.
— Tenho certeza de que não contou!
— Mas eu con... ah, de que adianta? Falar com você é o
mesmo que falar com as paredes.
— Lucy — disse papai —, vou lá em cima me arrumar
um pouco, e volto já, já, em um piscar de olhos.
Saiu em direção ao quarto, e abri um sorriso afetuoso.
— Ele parece ótimo — disse.
— Parece? — disse mamãe, com frieza. Seguiu-se um
silêncio desconfortável.
— Mais chá? — perguntou ela a Daniel, seguindo a
velha tradição irlandesa de aproveitar qualquer silêncio no
meio da conversa para empurrar comida para as pessoas.
— Sim, obrigado.
— Mais um biscoitinho?
— Não, obrigado.
— Um pedacinho de bolo?
— Não, acho melhor não. Estou deixando espaço na
barriga para o jantar.
— Ora, não seja bobo, você ainda está em idade de
crescimento.
— Não, obrigado, estou sendo sincero.
— Tem certeza?
— Mãe, deixe-o em paz! — Ri, me lembrando das coisas
que Gus dissera sobre as mães irlandesas. — Afinal, o que
a senhora preparou para o jantar?
— Iscas de peixe empanadas, feijão e batata frita.
— Hã... legal, mamãe.
Era verdade, aquele era o meu prato favorito muito
tempo atrás, em outra vida, até eu me mudar para
Londres e conhecer comidas exóticas, como espaguete ao
molho marinado Tandoori e pato de Pequim com batatas
temperadas.
— Que delícia! — Sorriu Daniel. — Adoro iscas de peixe
com feijão e batata frita.
Ele falou aquilo como se estivesse sendo sincero.
— O prato que mamãe preparou não faz muita diferença
para você, não é verdade? — disse eu. — Mesmo que ela
dissesse: "Olhe, Daniel, pensei em servir os seus testículos
com molho de vinho branco", você ia dizer: "Hummm, que
delícia, Sra. Sullivan, parece delicioso!". Não era
exatamente isso que você ia falar?
Dei uma risada ao ver a cara de horror que ele fez.
— Lucy — ele franziu o rosto —, você precisa ser mais
cuidadosa com esses assuntos.
— Desculpe. — Ri. — Esqueci que estava falando dos
seus bens mais preciosos. O que seria de Daniel Watson
sem a sua genitália? Sua vida perderia o sentido, não é?
— Não, Lucy, não se trata disso. Qualquer homem acha
uma sugestão como essa perturbadora, não sou só eu.
Minha mãe finalmente conseguiu fôlego para falar:
— Lucy... Carmel... Sullivan! — gemeu ela, ofegante e
quase apo-plética de tanto horror. — Em nome dos céus,
sobre o que vocês estão falando?
— Nada, Sra. Sullivan — disse Daniel, bem depressa. —
Nada mesmo, nada de importante.
— Nada, Daniel? Bem, não é bem isso o que a Karen
diz! — Pisquei para ele enquanto Daniel emendava uma
conversa frenética com mamãe... Como ela estava, se ela
estava gostando do novo emprego, como era trabalhar na
tinturaria.
O olhar de mamãe passava de mim para Daniel e voltava
a se fixar em mim.
Ela estava dividida entre a deliciosa sensação de ser o
centro das atenções de Daniel e a possibilidade de me
deixar escapar impune de algo totalmente monstruoso e
imperdoável.
A vaidade venceu. Logo em seguida ela já estava
brindando Daniel com as histórias dos palhaços ricos e
mimados que ela era obrigada a atender na tinturaria, e
como eles queriam tudo para ontem, como jamais
agradeciam, como estacionavam o carro todo atravessado,
"aqueles carros BMX, BLT ou sei lá a marca", de modo que
os veículos bloqueavam o tráfego, e como eles viviam
criticando os serviços.
— Hoje mesmo — disse ela — um deles chegou à loja,
parecendo um poodle estressado e jogou... sim!, jogou
uma camisa no balcão. Depois a balançou bem na minha
cara, perguntando: "Que bosta é esta que você fez com a
minha camisa?" Bem, Daniel, para princípio de conversa,
não precisava falar uma palavra como essa para mim, mas
agüentei firme, olhei para a camisa e falei que não via uma
mancha sequer nela, e afinal...
E mamãe continuou a história como se não fosse
terminar nunca. Daniel tinha a paciência de um santo.
Estava tão contente por ele ter ido comigo. Sozinha eu não
ia agüentar aquilo não.
— ... E quando eu disse "sua camisa está branca como a
neve!", ele me respondeu: "Esse é o problema! Quando eu
a comprei, ela era azul!..."
E a história continuou, sem acabar. Daniel também
continuou a sorrir e balançar a cabeça, solidário. Era
maravilhoso, eu nem precisava ficar ali. Apenas um "hã-
hã" de vez em quando e um balançar de cabeça era tudo
que minha mãe queria de mim. Toda a sua atenção estava
focada em Daniel.
Finalmente a saga da tinturaria chegou ao fim.
— ...E o poodle me disse "nos vemos diante do juiz!", e
eu respondi "só se for um juiz de futebol!", e ele completou
"vou lhe enviar o meu procurador!", e eu falei "pois ele
pode me procurar à vontade, e é bom que ele fale bem alto,
que eu sou surda de um ouvido!...".
— E você, Daniel, como anda a sua vida? — perguntou
mamãe, finalmente.
— Vai indo muito bem, Sra. Sullivan, obrigado.
— Vai melhor do que bem, não é, Daniel? Conte para a
mamãe quem é a sua nova namorada.
Eu estava adorando aquilo. Eu sabia que aquela notícia
ia deixar a minha mãe chateada. Ela alimentava
esperanças de que eu conseguisse, de algum modo, fazer
Daniel se apaixonar por mim.
— Pare com isso, Lucy — cochichou Daniel, parecendo
embaraçado.
— Ora, não seja tímido, Daniel. — Eu sabia que estava
sendo chata, mas aquilo era bom demais!
— É alguém que conheço? — perguntou mamãe, toda
esperançosa.
— É!... — respondi, toda feliz.
— Sério? — Ela tentava, muito mal, disfarçar a
empolgação.
— Sim. É a minha colega de apartamento, Karen.
— Karen?
— É.
— A escocesa?
— Ela mesma. E eles estão loucos um pelo outro. Não é
fantástico?
— E então, não é legal? — perguntei novamente, quando
ela continuou calada.
— Sempre a achei um pouco... vulgar — disse mamãe, e
então colocou a mão por sobre a boca, fingindo pavor. —
Ah, Daniel, não posso acreditar que eu disse uma coisa
dessas! Desculpe! Meu Sagrado Coração de Jesus, mas
que falta de tato! Você me perdoa por eu ter dito isso,
Daniel? Já faz muito tempo que não a vejo. Tenho certeza
de que ela não está parecendo tão vulgar agora.
— Considere-se perdoada — disse Daniel, sorrindo
suavemente. Ele era tão bondosol Podia ter dado um soco
na velha megera que nenhum júri no mundo teria coragem
de condená-lo.
— Apesar de todos os defeitos que Lucy tem — disse ela,
fingindo estar falando à toa, como se conversasse consigo
mesma —, pelo menos ela nunca teve uma aparência
vulgar. Você jamais a veria saindo por aí exibindo o busto.
— Isso é porque eu não tenho um busto para exibir. Se
tivesse, pode apostar que eu ia botar a peitaria toda pra
fora!
— Olhe o palavreado, Lucy! — ralhou ela, batendo no
meu braço.
— Palavreado? — reagi. — A senhora pensa que isso é
palavrão? Eu bem que podia lhe mostrar alguns palavrões
que sei...
Parei de falar e xinguei Daniel mentalmente, só pelo fato
de que ele estava ali. Não podia brigar direito com a minha
mãe, porque ele era visita. Não que Daniel contasse como
visita, propriamente dita, mas mesmo assim...
— Agora, se vocês me dão licença... — disse eu, saindo
da cozinha. Peguei a garrafa de uísque na minha bolsa no
vestíbulo e subi. Queria me encontrar a sós com papai.
CAPÍTULO 37
Ele estava no quarto, sentado na beira da cama,
calçando os sapatos.
— Lucy — disse ele. — Eu já ia descer de volta.
— Vamos ficar aqui um instantinho — disse, abraçando-
o.
— Ótimo — concordou ele. — Assim podemos bater um
papo, só nós dois.
Entreguei a garrafa de uísque para ele, e ele tornou a me
abraçar.
— Você é muito boa para mim, muito boa mesmo, Lucy.
— Como o senhor está, papai? — perguntei-lhe, com
lágrimas nos olhos.
— Estou muito bem, Lucy, muito bem. Por que as
lágrimas?
— É que odeio pensar no senhor enfiado aqui dentro, só
com... com ela — disse, apontando com o queixo para o
andar de baixo.
— Mas estou bem, minha filha, estou mesmo —
protestou ele, rindo. — Ela até que não é das piores. Nós
nos damos muito bem.
— Sei que o senhor só está falando isso para eu não
ficar preocupada. — Funguei, limpando o nariz. — Mesmo
assim, obrigada.
— Ó Lucy, Lucy, Lucy — disse ele, apertando a minha
mão. — Você não pode levar tudo tão a sério. Tente se
divertir, porque logo, logo vamos estar mortos.
— Não, não — choraminguei, e então comecei a chorar
de verdade. — Não fale sobre morte. Não quero que o
senhor morra. Prometa que não vai morrer!
— Hã... bem, se isso a faz feliz, eu não morro então,
Lucy.
— E se o senhor tiver que morrer, prometa que nós
vamos morrer na mesma hora.
— Prometo!
— Ah, papai, isso não é horrível?
— O quê, meu amor?
— Tudo. Estar viva, amar as pessoas, ficar com medo de
que elas morram.
— É horrível?
— Sim, claro que é.
— Com quem você aprendeu a ter essas idéias terríveis,
Lucy?
— Foi... foi... com o senhor, papai.
Papai me abraçou meio sem graça e disse que eu devia
ter entendido mal, claro que ele jamais dissera nada
daquele tipo, falou que eu era jovem, tinha a vida toda
pela frente e devia tentar aproveitá-la.
— Mas para quê, papai? — perguntei. — O senhor
jamais tentou aproveitar a sua vida, e isso não lhe fez mal
algum.
— Lucy — suspirou ele. — Era diferente para mim. É
diferente para mim, sou um velho agora. Você é uma
mulher jovem. Jovem, linda, preparada, nunca se esqueça
das vantagens de ter um bom nível de instrução, Lucy —
insistiu ele, com firmeza.
— Eu não esqueço.
— Prometa.
— Eu prometo.
— Você tem todas as coisas boas à sua frente, devia
estar feliz.
— Mas como posso ficar feliz? — argumentei. — E como
o senhor pode esperar que eu fique? Nós somos iguais,
papai, o senhor e eu. Não conseguimos deixar de ver a
futilidade de tudo, o desperdício e a escuridão das coisas
enquanto todos os outros caminham parecendo
iluminados.
— O que foi, Lucy? — Papai investigou o meu rosto, em
busca de alguma pista. — É algum rapaz, não é? Algum
rapazinho está querendo levar você para algum cantinho?
É isso?
— Não, papai. — Comecei a rir, embora ainda estivesse
chorando.
— Não é aquele bambu comprido que está lá na cozinha,
é?
— O quê?... Ah, Daniel? Não.
— Ele não andou, hã, você sabe... querendo tomar
liberdades com você, Lucy, andou? Porque, se ele fez isso,
que Deus me ajude, mas enquanto houver um pouco de
fôlego no meu peito, eu o enfrento. Chamo seus dois
irmãos para me ajudar a chutá-lo tão longe que ele vai até
perder o rumo de casa. Um chute no rabo e um mapa do
mundo, é disso que ele precisa, e é isso que vai ganhar.
Ele é mais tolo do que parece se pensa que pode se fazer
de engraçadinho com a filha de Jamsie Sullivan e escapar
com vida...
— Papai — reclamei. — Daniel não me fez nada.
— Já percebi o jeito como ele olha para você — disse
papai, com ar sombrio.
— Ele não olha para mim de nenhum jeito em especial.
O senhor está imaginando coisas.
— Estou? Bem, talvez esteja. Imagino que não deve ser a
primeira vez que alguém olha assim para você.
— Papai, o meu problema não tem a ver com namorado
não, nem de longe.
— Mas, então, por que está se sentindo tão solitária?
— Porque sim, papai. E o meu jeito, igual ao senhor.
— Mas eu estou bem, Lucy, juro por Deus, estou mesmo.
Nunca estive melhor.
— Obrigada, papai — suspirei, apoiando-me nele. — Sei
que o senhor está me dizendo isso só para que eu me sinta
melhor, mas obrigada mesmo assim.
— Mas... — disse ele, parecendo ligeiramente confuso.
Parecia estar à procura de algo para dizer, mas não
encontrou nada.
— Vamos descer — disse ele, por fim. — Vamos lá comer
nosso peixe com batatas fritas.
E descemos.
A noite foi um pouco pesada, com minha mãe e eu de
tromba uma para a outra e papai olhando com suspeitas
para Daniel, convencido de que ele estava com más
intenções em relação a mim.
Nosso humor melhorou um pouco quando o jantar foi
colocado diante de nós, no centro da mesa.
— Uma rapsódia em tons alaranjados — declarou papai,
olhando para o seu prato. — É isso mesmo. Iscas de peixe
em tons de laranja, feijões em tons de laranja, batatas em
tons de laranja e, para ajudar tudo isso a descer bem, um
copo do mais fino malte irlandês, que, por acaso, também
é laranja.
— As batatas não têm cor de laranja — disse mamãe. —
E você já ofereceu a Daniel alguma coisa para beber?
— Elas são bem laranja — protestou papai, com fúria. —
E não, não ofereci nada para ele beber, não.
— Daniel, gostaria de beber alguma coisa? — perguntou
mamãe, se levantando.
— Diga aí: se isso não é laranja, de que cor vocês acham
que é?
— perguntou papai para a mesa toda. — Cor-de-rosa?
Verde?
— Não, Sra. Sullivan — respondeu Daniel, parecendo
nervoso.
— Não quero beber nada, obrigado.
— Pois não vai beber mesmo — disse papai, como
provocação.
— A não ser que diga que as batatas são laranja.
Mamãe e papai fixaram o olhar em Daniel, ambos
ansiosos para que ele tomasse o seu partido.
— Elas me parecem ter um tom meio dourado — sugeriu
ele, afinal, diplomata como sempre.
— Elas são laranja!
— Douradas! — disse mamãe.
Daniel não disse mais nada. Parecia muito sem graça.
— Então está bem! — rugiu papai, batendo com a mão
por sobre a mesa e fazendo os pratos e os talheres
pularem, com barulho.
— Vou lhe fazer uma oferta irrecusável. Dourado-
alaranjado, e essa é a minha última palavra. É pegar ou
largar! Só não quero que vocês digam que não sou justo.
Agora dê-lhe algo para beber.
Papai ficou mais animado na mesma hora. O jantar
transcorreu às mil maravilhas para melhorar o seu estado
de espírito sempre lúgubre.
— Só existe uma coisa melhor do que uma isca de
peixe — disse ele, feliz, sorrindo para todos à mesa. — São
seis iscas de peixe.
— Olhem só para isso — disse ele, com olhar de
admiração, levantando uma isca inteira de peixe com o
garfo e girando-a para conseguir observá-la de todos os
ângulos. — Uma maravilha! Isto é uma obra de arte, sabia?
É preciso um curso universitário completo para se
aprender a preparar uma destas da maneira adequada.
— Jamsie, pare de brincar com a comida — disse
mamãe, estragando a brincadeira.
— Gostaria de conhecer este tal de Capitão Birds, que
aparece na caixa dessas iscas de peixe, só para
cumprimentá-lo pelo trabalho bem-feito — declarou papai,
ignorando-a. — Queria mesmo. Eles deviam convidá-lo
para ir ao programa Esta É a Sua Vida. O que acha disso,
Lucy?
— Acho que o Capitão Birds não existe de verdade,
papai. — E dei uma risadinha.
— Não existe de verdade? — perguntou papai. — Mas já
o vi na televisão. Tem bigodes compridos, brancos, e mora
em um barco.
— Mas...
Eu não tinha certeza se papai estava brincando ou não.
Achava que sim. Pelo menos esperava que sim.
— Ele devia ganhar o Prêmio Nobel, devia mesmo —
declarou papai.
— Prêmio Nobel pelo quê? — quis saber mamãe, com
tom sarcástico.
— Prêmio Nobel pela melhor isca de peixe, é claro —
disse papai, parecendo surpreso. — De que tipo de Prêmio
Nobel você achou que eu estava falando, Connie? Do
prêmio de literatura? Um absurdo, isso não faria sentido
algum.
Nesse momento, mamãe soltou uma risada curta e os
dois olharam um para o outro de um jeito engraçado.
Depois que os pratos foram levados da mesa, papai foi
para a sua poltrona no canto da sala enquanto Daniel,
mamãe e eu continuamos sentados à mesa da cozinha,
bebendo oceanos de chá.
— Acho melhor a gente ir embora — comentei em tom
casual, quando deu dez e meia. Eu passara a última meia
hora tentando reunir coragem para fazer a sugestão. Sabia
que a idéia não ia agradar muito a minha mãe.
— Mas já? — reclamou ela, com a voz aguda. — Vocês
mal chegaram!
— Já é tarde, mamãe, e vai ser ainda mais tarde quando
eu chegar em casa. Preciso descansar bem para encarar o
trabalho amanhã.
— Não sei o que há de errado com você, Lucy. Quando
eu tinha a sua idade, conseguia dançar a noite toda, até o
sol raiar.
— Tome comprimidos de ferro! — berrou meu pai, da
sala. — E disso que você está precisando. Ou então aquele
outro remédio que os jovens tomam para ganhar mais
energia, como é o nome mesmo?
— Não sei, papai. Sanatogen?
— Não — murmurou ele. — Acho que tinha outro nome.
— Nós realmente temos que ir. Não temos, Daniel? —
disse eu, com firmeza.
— Hã... temos.
— Cocaína! É esse o nome — gritou papai, todo feliz por
ter conseguido lembrar. — Vá até o médico e peça a ele
uma receita para comprar cocaína. Uma dose e você já vai
estar pulando por toda parte, cheia de energia.
— Acho que não, papai. — E soltei uma risada.
— Por que não? — insistiu ele. — Cocaína é um
daqueles troços ilegais?
— É, papai.
— Isso é um absurdo — declarou ele. — Esses caras que
fazem as leis estragam tudo com sua mania de taxar as
coisas e rotular tudo de ilegal-isso e ilegal-aquilo. Que mal
faria uma gotinha de cocaína de vez em quando? Eles não
têm a mínima idéia do que é se divertir, não têm mesmo.
— Sim, papai.
— Por que não passa a noite aqui? — sugeriu mamãe. —
A sua cama está feita, lá no seu antigo quarto.
Fiquei horrorizada só de ouvir aquela idéia. Dormir
debaixo do mesmo teto que ela? Sentir-me novamente
aprisionada ali? Como se jamais tivesse conseguido
escapar?
— Hã... não, mamãe. Daniel também precisa ir para
casa, então é melhor eu voltar para a cidade com ele...
— Mas Daniel pode dormir aqui também — disse mamãe,
toda empolgada. — Pode ficar no quarto que era dos
meninos.
— Muito obrigado, Sra. Sullivan...
— Connie — disse ela, inclinando-se por sobre a mesa e
colocando a mão sobre a manga da camisa dele. — Pode
me chamar de Connie. É uma bobagem você continuar me
chamando de "Sra. Sullivan", agora que já está adulto.
Minha nossa! Ela está agindo como... como se estivesse
flertando com ele. Senti vontade de vomitar.
— Muito obrigado... Connie — repetiu Daniel —, mas eu
realmente preciso ir embora. Tenho uma reunião no
trabalho amanhã, bem cedo...
— Bem, já que insistem. Longe de mim querer impedir
as engrenagens da indústria. Mas você promete voltar
para nos visitar novamente?
— Claro que sim. Eu adoraria.
— E talvez, da próxima vez, vocês possam dormir aqui,
que tal?
— Ué, eu também fui convidada? — perguntei.
— Lucy. — Mamãe balançou a cabeça. — Você não
precisa de convite. Como é que você agüenta essa
menina? — perguntou a Daniel. — Ela fica melindrada à
toa.
— Ela não é das piores — resmungou Daniel. Sua
cortesia natural pedia que ele concordasse com mamãe,
mas seu instinto de sobrevivência o fez se lembrar de que
seria imprudente me deixar aborrecida.
Devia ser difícil agir como Daniel, pensei, e achar que
era necessário agradar a todos o tempo todo. Ser
charmoso, receptivo e simpático vinte e quatro horas por
dia era de deixar qualquer um arrasado.
— Sei... me engana que eu gosto — disse mamãe, com
ironia.
— Podemos dar um telefonema para pedir um táxi? —
perguntou Daniel, doido para mudar de assunto.
— Por que não vamos de metrô? — perguntei.
— Já está muito tarde.
— E daí?
— Está chovendo.
— E daí?
— Eu pago a corrida.
— Então tá!
— Há uma empresa de táxis aqui pertinho, nessa rua
mesmo — disse mamãe. — Já que vocês querem ir embora
de qualquer jeito, posso dar uma ligada, pedindo um carro.
Fiquei desanimada na mesma hora. A empresa de táxis
que ficava ali pertinho era constituída de um monte de
refugiados afegãos, indonésios em busca de asilo político e
exilados argelinos. Nenhum deles sabia falar uma palavra
sequer de inglês e, a julgar pelo seu senso de direção,
haviam acabado de desembarcar na Europa. Eu tinha
simpatia pelas suas causas e problemas de todo tipo, mas
queria chegar em casa sem ser "via Oslo".
Mamãe ligou para eles.
— Quinze minutos — anunciou ela.
Sentamos novamente à mesa e ficamos esperando. A
atmosfera parecia forçada, mas ficamos ali, fingindo que
aquele finalzinho estava sendo tão bom quanto o resto da
noite, que estávamos muito felizes por estar ali, e que
nossos ouvidos não estavam loucos para ouvir o som do
táxi parando bem na porta. Ninguém disse nada. Eu,
certamente, não consegui falar nada leve, que pudesse
disfarçar a tensão.
Mamãe suspirava de vez em quando, dizendo coisas
tolas como "bem...". Ela era a única pessoa que eu
conhecia capaz de dizer "bem" e "quer mais uma xícara de
chá?" de forma desagradável.
Depois do que me pareceram horas, pensei ter ouvido
um carro estacionando na frente de casa e corri para dar
uma olhada.
Os carros da empresa eram sempre umas latas velhas,
geralmente Ladas e Skodas caindo aos pedaços.
Como era de esperar, um Ford Escort jurássico e
imundo parara na porta e, mesmo no escuro, dava para
ver que estava todo enferrujado.
— O táxi chegou — avisei. Peguei meu casaco, agarrei
Daniel e me lancei em direção ao carro.
— Oi, eu sou Lucy — apresentei-me ao motorista. Como
íamos passar muito tempo juntos durante a longa viagem
de volta, achei que era melhor ficarmos bem à vontade uns
com os outros.
— Hassan — sorriu ele.
— Podemos ir primeiro a Ladbroke Grove? — perguntei.
— Falar pouco inglês — explicou Hassan, com cara de
quem pede desculpas.
— Ah.
— Parlez-vous français? — perguntou ele,
— Un peu — repliquei. — E você, sabe parlez algum
français? — perguntei a Daniel quando ele entrou no carro.
— Un peu — replicou ele.
— Daniel, este é Hassan. Hassan, Daniel.
Eles trocaram um aperto de mãos e Daniel tentou
ensinar o percurso.
— Savez-vous a avenida Oeste?
— Hã...
— Bem, savez-vous o centro de Londres?
Um olhar sem expressão.
— Já ouviu falar de Londres? — perguntou Daniel, com
delicadeza.
— Ah, sim! Londres. — Um raio de compreensão
despontou no rosto de Hassan.
— Bien! — disse Daniel, satisfeito.
— É a capital da Grã-Bretanha.
— Exato! É essa mesmo!
— Possui uma população de... — continuou Hassan.
— Pode nos levar até lá, por favor? — pediu Daniel, já
começando a parecer ansioso. — Vou lhe ensinar o
caminho. E vou lhe pagar um monte de dinheiro também.
E lá fomos nós! Daniel ocasionalmente gritava "à droit"
ou "à gaúche".
— Graças a Deus acabou! — suspirei enquanto saíamos
dali, a figura de mamãe que acenava se encolhendo aos
poucos atrás de nós.
— Para mim foi uma noite legal — disse Daniel.
— Não seja ridículo — reagi, com ar de deboche.
— Foi sim.
— Como é que você pode achar isso? Com aquela...
aquela... velha megera lá?
— Imagino que você esteja se referindo à sua mãe. Não
acho que ela seja uma megera.
— Daniel! Ela não perde uma chance de me desmerecer.
— E você não perde uma chance de provocá-la.
— O quê? Como ousa falar isso? Sou uma filha muito
boa, dedicada e deixo que ela escape impune, apesar de
todos os insultos.
— Lucy. — Riu Daniel. — Claro que não. Você põe a
maior pilha e fala coisas só para deixá-la aborrecida, de
propósito.
— Não sei do que você está falando. De qualquer modo,
isso não é da sua conta.
— Tudo bem.
— E você não acha que ela é chata? — continuei, quase
de imediato. — Ficou falando o tempo todo, sem parar, da
porcaria da tinturaria. Quem está interessado nesse
assunto?
— Mas...
— O quê?
— Não sei... acho que ela é muito sozinha. Não deve ter
ninguém com quem conversar...
— Se ela é sozinha, a culpa é dela mesma.
— ...Enfiada o tempo todo naquela casa, tendo apenas o
seu pai para conversar com ela. Ela sai? Quer dizer, sem
ser para ir ao trabalho?
— Não sei. Acho que não. E o que é mais importante,
não dou a mínima.
— Pois ela é uma pessoa muito divertida, sabia?
— Não sei disso não!
— Sério, Lucy, ela é sim. Sua mãe ainda é uma mulher
muito jovial.
— Mas ela é uma bruxa velha.
— Não acredito que você esteja falando sério — disse
Daniel. — Você não está sendo nem um pouco sensata.
Ela não é uma bruxa velha. É até muito bonita. Você se
parece muito com ela.
— Daniel — disse, soprando com raiva. — Isso foi a
coisa mais terrível que você já me disse. É a pior coisa que
qualquer pessoa me disse em toda a minha vida.
Ele simplesmente riu.
— Você parece demente, Lucy.
— Apesar de tudo, foi muito legal rever papai.
— É... ele foi muito legal comigo — disse Daniel.
— Ele sempre é legal.
— Da última vez em que nos encontramos, ele não foi
nada legal.
— Não foi?
— Não. Ele me chamou de Sassenach * sem-vergonha, e
me acusou de roubar as terras dele e oprimi-lo por
setecentos anos.
— Mas ele não falou isso em nível pessoal — argumentei,
colocando panos quentes. — Você era apenas um símbolo
para ele.
— Mesmo assim, não foi legal — teimou Daniel. — Eu
jamais roubei nada de ninguém em toda a minha vida.
— Nunca?
— Nunca.
— Nem quando era garoto?
— Não.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Tem certeza mesmo?
— Bem, tenho quase certeza.
— Nem mesmo balas de uma loja?
— Não.
— Como é?... Não ouvi bem. Repita.
— Não!
— Também não precisa gritar.
— Tá legal, então... sim! Acho que você está se referindo
àquela vez no Woolworth's, quando Chris e eu roubamos
aquelas facas e garfos na seção de cozinha.
— Hã?...
Aquilo era novidade para mim, mas Daniel foi em frente.
— Você não perdoa nada, não é, Lucy? — reclamou ele,
com cara de zanga. — Fica fuçando tudo sobre a minha
vida, não consigo esconder nem um segredo de você...
— Mas por que roubar talheres? — interrompi, intrigada.
— E por que não roubar?
— Mas... para que vocês queriam aquilo? Por que
roubaram garfos e facas?
— Porque tivemos chance.
— Não saquei...
— Porque conseguimos. Roubamos pelo simples fato de
fazer isso sem sermos pegos. Roubamos por ter tido a
oportunidade, não porque queríamos os objetos —
explicou ele. — O prêmio não era o objeto surrupiado, era
a ação propriamente dita. O ato da aquisição ilícita e a
emoção daquilo, esse era o lance.
— Ah.
— Você entendeu?
— Sim, acho que sim. E o que fizeram com os talheres?
— Dei tudo para a minha mãe como presente de
aniversário.
— Seu pão-duro!
— Mas arrumei outro presente para ela também, além
desses — explicou ele, correndo. — Um marcador de
tempo para fazer ovos cozidos. Esse foi comprado, paguei
pelo marcador de tempo para preparar ovos. Não fique
olhando para mim desse jeito, Lucy.
— Não estou olhando assim por achar que você tenha
roubado o marcador de tempo para ovos cozidos. O
espanto é pelo presente. Um marcador de tempo para
preparar ovos! Que tipo de presente idiota é esse para uma
mulher?
— Eu era muito novo, Lucy, não sabia das coisas.
— Que idade tinha? Vinte e sete?
— Não. — E riu. — Tinha seis, mais ou menos.
— Você não mudou muito, sabia, Daniel?
— Como assim? Você acha que continuo a roubar
talheres na Woolworth's para dar de presente à minha
mãe no aniversário dela?
— Não.
— O que é, então?
— E sobre pegar coisas pelo simples fato de ser capaz
disso.
— Não peguei o que você está querendo dizer — disse,
com cara de ofendido.
— Ah, pegou. Pegou sim! — cantarolei, feliz.
— Não peguei.
— Claro que pegou. Estou deixando você chateado?
— Está.
— É isso mesmo. Estou falando de mulheres, Daniel. As
mulheres e você, Daniel. Você e as mulheres, Daniel.
— Achei que devia ser isso — reagiu ele, tentando
esconder um pequeno sorriso.
— O jeito como você as pega simplesmente porque
consegue fazer isso.
— Não faço isso.
— Faz, faz sim!
— Lucy, é claro que não!
— Bem, e quanto a Karen?
— O que tem ela?
— O quanto você gosta dela? Ou está com ela só para se
divertir?
— Eu realmente gosto dela — disse, com a cara séria. —
Gosto mesmo, Lucy. Ela é muito inteligente, uma ótima
companhia e ainda por cima é linda.
— Você está sendo honesto? — perguntei com
severidade.
— Estou.
— A coisa é séria com ela?
— É.
— Puxa!
Uma pequena pausa.
— Hã... você está, tipo assim... apaixonado por ela? —
perguntei, com cautela.
— Bem, Lucy, não a conheço há tanto tempo assim para
estar apaixonado por ela.
— Ótimo.
— Mas estou tentando.
— Entendo.
Outra pausa estranha.
Eu realmente não conseguia arranjar nada para dizer a
Daniel. Aquilo era algo que jamais acontecera entre nós
antes.
— Papai estava muito quieto esta noite — disse eu, por
fim. — Estava muito bem comportado.
— É mesmo, ele nem chegou a cantar.
— Cantar?
— Ele normalmente me homenageia com várias canções,
como "Carrickfergus" ou "Quatro campinas verdes", e
também me obriga a cantá-las junto com ele.
Senti a desagradável impressão de que Daniel estava
debochando de papai, mas não queria saber com certeza,
então fiquei calada. Muito tempo depois, chegamos ao
meu apartamento.
— Obrigada por ter ido comigo até lá — disse a Daniel.
— Não seja boba. Eu gostei disso.
— Bem, hã... boa-noite.
— Boa-noite, Lucy.
— A gente se vê. Provavelmente você vai aparecer por
aqui para se encontrar com a Karen.
— Provavelmente. — E sorriu.
Senti uma inesperada fisgada de aborrecimento, aquele
sentimento infantil de "ele é meu amigo, e não seu, Karen".
— Tchau — disse depressa, virando-me para sair do
carro.
— Lucy — disse Daniel.
Havia alguma coisa estranha, alguma coisa nova em seu
tom de voz, uma sensação de urgência talvez, que me fez
virar depressa e olhar para ele.
— Que foi? — perguntei.
— Nada não, é só... boa-noite.
— Sim. Boa-noite — respondi, tentando parecer
chateada. Mas não saí do carro. Sentia uma tensão
esquisita, algo me dizia que eu estava à espera de algo,
mas não sabia do quê.
Acho que estávamos tendo uma briga, decidi, uma
daquelas silenciosas, mas terríveis.
— Lucy — disse Daniel, novamente com aquele tom de
voz estranho e urgente.
Só que eu não disse nada, não bufei nem perguntei "o
que foi?!", como em geral faria.
Simplesmente olhei para ele e, pela primeira vez em toda
a minha vida, me senti sem graça na presença de Daniel.
Não queria olhar para ele, mas não consegui evitar.
Ele levantou a mão, tocou o meu rosto e fiquei olhando
para ele, parada, como um coelho pego de surpresa pelos
faróis de um carro. Que diabos ele estava fazendo?
Com todo o cuidado, Daniel tirou o meu cabelo da frente
do olho enquanto fiquei rígida ali, olhando para ele.
Então voltei à realidade.
— Boa-noite — cantarolei, meio alto, pegando a bolsa e
me arrastando para a ponta do banco, para sair do
carro. — Obrigada pela carona. A gente se vê.
— Ah, e bonsoir — disse, na direção de Hassan. — Bon
chance com a empresa de táxis.
— Salut! — respondeu ele de volta.
Corri para casa e enfiei a chave na porta. Minha mão
tremia. Não consegui entrar tão rápido quanto planejei. Só
pensava em ir para o meu quarto, onde estaria em
segurança. Estava apavorada. O que significava aquela
tensão repentina entre mim e Daniel? Havia tão pouca
gente com quem eu me sentia à vontade, tão pouca gente
que eu considerava amiga de verdade. Não ia agüentar se
as coisas dessem errado com Daniel.
Mas a verdade é que havia algo de errado, as coisas
ficaram muito esquisitas por um instante. Talvez ele
estivesse chateado comigo por eu falar aquelas coisas das
namoradas dele. Talvez ele tivesse se apaixonado por
Karen e agora viesse com todo aquele comportamento
protetor a respeito do assunto.
Talvez ele não fosse mais precisar da minha companhia
se estivesse apaixonado e encontrado a alma gêmea,
porque é isso que acontece de vez em quando. Quantas
amizades dão com os burros n'água quando um dos lados
se apaixona? Centenas, provavelmente. Não seria surpresa
se aquilo acontecesse entre mim e Daniel.
Por mim não havia problemas, eu tinha o Gus. Tinha
outros amigos. Ia ficar bem.
























CAPÍTULO 38
Seis semanas se passaram, e era um domingo à noite,
bem tarde.
Voltáramos do Curryfour havia algum tempo, e Gus já
saíra havia cerca de uma hora. Karen, Charlotte e eu
estávamos jogadas na sala, sem vida, sobre várias peças
da mobília, comendo o resto das batatas fritas, assistindo
à tevê e tentando nos recuperar do fim de semana. Karen
de repente deu um pulo e se sentou reta na poltrona,
parecendo ter acabado de tomar uma decisão muito
importante.
— Vou dar um jantar na sexta-feira — declarou ela. —
Vocês duas, Simon e Gus estão convidados,
— Puxa, obrigada, Karen — disse eu, meio nervosa.
Eu sabia que ela estava tramando alguma coisa. Notei
que estivera olhando para a lareira durante toda a última
meia hora, com um olhar engraçado, de determinação.
— O Daniel vem?— perguntou Charlotte, ingênua até
dizer chega. É claro que Daniel vinha. Daniel era o motivo
principal da reunião.
— É claro que Daniel vem — disse Karen. — Daniel é o
motivo principal da reunião.
— Ah, entendi... — concordou Charlotte. Eu entendi
também.
Karen devia estar tramando o preparo de um jantar
muito elaborado e sofisticado, com mais de dez pratos. Ia
servi-lo com todo o estilo, mostrando graça e elegância,
sem derramar nada sobre a roupa nem ficar com a cara
vermelha e brilhante, Ia parecer linda, ia se mostrar
inteligente, boa anfitriã, uma ótima companhia, tudo parte
de sua tentativa de provar a Daniel o quanto ela era
indispensável em sua vida.
— Vamos ter um jantar maravilhoso — anunciou ela. —
E vocês vão ter que estar muito bem produzidas.
— Parece divertido — disse Charlotte. — Posso usar
minha fantasia de cowgirl.
— Não esse tipo de produção — disse Karen,
ligeiramente alarmada. — Estou falando de roupa chique,
glamourosa, vestido longo, jóias e salto alto.
— Não estou bem certa se Gus tem um vestido longo —
disse.
— Rá-rá — disse Karen, sem achar graça. — Muito
engraçada.
Pelo menos certifique-se de que ele vai aparecer com
uma roupa decente, em vez daqueles trapos de refugiado
que normalmente usa.
— E agora — continuou Karen — vou precisar de... deixe
ver... trinta libras de cada uma de vocês duas, e depois a
gente acerta o que ficar faltando.
— O qu... quê? — perguntei, coberta de preocupação.
Eu não esperava aquilo. Nem Charlotte, pelo jeito como
ficou espantada e deixou o queixo cair.
Ah, não! Eu tinha me divertido o fim de semana inteiro
com Gus, e estava sem disposição para arrumar discussão
com Karen.
— Claro — disse ela, parecendo aborrecida. — Vocês não
esperam que eu vá pagar pela comida toda sozinha,
esperam? Estou planejando e vou ser a coordenadora de
todo o evento, além de preparar os pratos.
— Então está bem, parece justo — disse Charlotte,
tentando fazer cara de animada e me lançando um olhar
do tipo "vamos tentar enxergar o lado divertido de tudo
isso", além de um sorriso do tipo "não podemos esperar
que ela prepare alimentos finos para nós e para os nossos
namorados apenas por bondade".
Como ela estava certa...
— Ótimo, então está combinado — disse Karen, com
firmeza. — E vou querer o dinheiro agora, se vocês não se
importam.
Houve uma pausa de choque.
— Agora — repetiu Karen.
Houve uma apressada busca no fundo das bolsas,
seguida de desculpas esfarrapadas.
— Acho que não estou com esse dinheiro todo comigo
não.
— Posso lhe dar um cheque?
— Será que não dá para lhe dar o dinheiro amanhã à
noite?
Francamente, Karen — argumentei. — Como é que você
pode achar que alguma de nós está com dinheiro
sobrando em um domingo à noite? Especialmente depois
de um fim de semana cheio como esse que tivemos.
Karen disse alguma coisa realmente desagradável a
respeito da história das virgens prudentes e das virgens
tolas, mas eu a alertei de que ali não havia nenhuma
virgem, nem prudente, nem tola, nem de qualquer tipo, e
que não sabia do que ela estava falando.
Todas caíram na risada e a tensão se dissolveu por
alguns instantes, até Karen atacar de novo:
— Eu realmente preciso do dinheiro agora — avisou.
— Por quê? — eu quis saber, com cara de boba. — Acho
que o supermercado já deve estar fechado em um domingo
às dez e meia da noite.
— Não se faça de engraçadinha, Lucy — disse ela, com
ar de crítica. — Não combina com você.
— Mas eu não estava me fazendo de engraçada, não —
gaguejei. — Realmente queria saber para que você precisa
do dinheiro agora, hoje, num domingo à noite.
— Não é para hoje, sua burralda! É para amanhã. Vou
fazer as compras quando voltar do trabalho amanhã, por
isso é que preciso do dinheiro hoje.
— Ah.
— Vamos até o caixa eletrônico agora mesmo — disse
Karen, com voz de quem não admitia argumentos.
Charlotte bem que tentou fazer um protesto corajoso,
mas estava fadado ao fracasso.
— Está chovendo... — explicou ela. — É domingo à noite
e já estou de camisola...
— Você não precisa trocar de roupa, então — disse
Karen, com gentileza.
— Obrigada — suspirou Charlotte.
— É só colocar um casacão por cima da camisola —
continuou Karen. — Enfie um par de meias, calce as botas
e vai ficar legal. Está escuro, ninguém vai ver.
— Tá bem... — resmungou Charlotte, meio murcha.
— E não é necessário vocês duas irem até lá —
continuou Karen. — Lucy, entregue o seu cartão à
Charlotte e diga a ela qual é a sua senha.
— Quer dizer que você não vai? — perguntei, com a voz
fraca.
— Lucy, francamente... Às vezes você parece meio
tapada. Para que eu preciso ir até lá?
— Mas eu pensei...
— Você não pensa, esse é o seu problema. Enfim, se
Charlotte vai, você não precisa ir.
Eu não me incomodava de ficar chateada com ela. Um
dos fatores para o sucesso, quando a gente divide o
apartamento com alguém, é a capacidade de deixar que as
pessoas sejam insuportáveis com você de vez em quando.
Assim, quando você achar que está se comportando como
Anticristo, o jogo fica empatado.
— Não posso deixar que Charlotte vá até lá sozinha —
disse eu.
— A Charlotte não vai até lá sozinha não, de jeito
nenhum! — berrou Charlotte, do quarto.
— Se você quer ser generosa com ela... — Karen
encolheu os ombros.
Coloquei um casacão por cima do pijama e enfiei as
pontas das calças dentro das botas.
— Meu guarda-chuva está no vestíbulo — cantarolou
Karen.
— Enfia o guarda-chuva — reagi, mas bem baixinho, em
segurança, bem longe dela e já perto da porta.
Claro que outro fator para o sucesso de se dar bem com
as pessoas que dividem o apartamento com você é não
perder uma oportunidade de soltar os cachorros pelas
costas da agressora,
Charlotte e eu caminhávamos com dificuldade,
açoitadas pela chuva, até chegarmos ao caixa eletrônico.
— Piranha — desabafou Charlotte.
— Não, ela não é piranha — reagi, com ar sombrio.
— Não? — perguntou Charlotte, parecendo surpresa.
— Não! Ela é uma vaca que também é piranha — corrigi.
Charlotte começou a patinhar nas poças de chuva,
gritando:
— Piranha, piranha, piranha, piranha, piranha, piranha,
piranha, piranha, piranha!
Um homem que estava levando o cachorro para dar uma
volta atravessou a rua, parou e ficou olhando para nós
com toda a atenção. Parecíamos duas lunáticas
desbocadas, marchando pela rua apressadas, as pontas
da camisola cor-de-rosa de Charlotte soltas e tremulando
agitadas por baixo do casaco a cada passo que ela dava,
ao mesmo tempo em que as pernas do meu pijama de
flanelinha azul-bebê balançavam ao vento, por fora da
bota.
— Tomara que ela pegue gonorréia do Daniel — disse
eu. — Ou herpes, verrugas genitais, qualquer coisa assim,
bem horrível.
— Ou chato. Tomara que ela pegue chato — concordou
Charlotte, com crueldade. — Espero que pegue uma
gravidez. E da próxima vez que Daniel aparecer, vou
desfilar pelo apartamento sem roupa, só para mostrar
para ele que meus peitos são maiores do que os dela.
Karen ia odiar isso, aquela megera piranhuda e mandona!
— Isso mesmo — concordei, com a maior animação. —
Na verdade, você devia tentar dar em cima e se esfregar
nele.
— Sim — concordou ela, com todo o entusiasmo. — Eu
adoraria!
— Olhe, acho que o melhor de tudo seria tentar transar
com ele. E na cama dela, se você conseguisse — sugeri,
com um prazer malicioso.
— Grande idéia! — guinchou Charlotte.
— E depois jogar na cara de Karen que ele disse que ela
era horrível de cama, e que você era muito melhor.
— Não sei, não... — disse Charlotte, meio em dúvida. —
Talvez não seja assim tão fácil chegar nele, sabe, ele
parece gostar dela de verdade. Por que não tenta você?
— Eu?
— Sim, você teria mais chance — explicou ela. — Acho
que Daniel fica com o coração mole só de ver você.
— Talvez fique — concordei, meio triste. — Mas nós
estamos falando de sexo, Charlotte. Não vai adiantar nada
ele ficar com o coração mole por mim, o coração tem que
ficar é duro.
Começamos a rir e nos sentimos melhor. Só que aquilo
me fez pensar em Daniel. Ele quase não estava falando
comigo. Ou talvez eu é que quase não estivesse falando
com ele. Algo estranho estava acontecendo, de qualquer
modo.
Pegamos o dinheiro e voltamos para casa, encharcadas e
com raiva. Entregamos o dinheiro para Karen, com a cara
amarrada.
— Quer dizer que posso enfiar o meu guarda-chuva,
é? — perguntou ela, com a sobrancelha arqueada, sentada
bem reta no sofá.
Fiquei vermelha de vergonha na mesma hora. Mas
quando tornei a olhar para ela, ela estava sorrindo.
— Sim! — Ri também, dissolvendo a tensão. — Agora eu
vou para a cama. Boa-noite.
— Boa-noite — repetiu Karen enquanto eu saía. — Ah, e
tem mais uma coisa, Lucy... Vou precisar de você e de
Charlotte aqui em casa na quinta à noite, para fazer uma
faxina no apartamento e ajudar nos preparativos.
Parei na mesma hora e compreendi que outro fator para
o sucesso no relacionamento com a pessoa que divide o
apartamento com você é a capacidade de imaginá-la sendo
surrada na cabeça por um bastão comprido e cheio de
pregos.
— Tudo bem — resmunguei sem me virar.
Passei a noite fantasiando como seria se eu pusesse
todas as roupas de Karen em um imenso saco preto e o
colocasse na porta, para os lixeiros levarem.
Na quinta à noite, a Noite dos Longos Preparativos, me
pareceu que eu havia morrido e ido para o Inferno.
Karen resolveu preparar a maior parte da comida na
véspera, de modo que na noite do jantar ela teria pouca
coisa a fazer, além de parecer linda, simpática, calma e
com tudo sob controle.
O único problema é que Karen estava tão nervosa com
tudo aquilo e tão determinada a impressionar Daniel que
parecia estar ainda mais, como direi?..., difícil, do que de
hábito. Ela sempre fora uma pessoa dinâmica e com força
de vontade, mas havia uma tênue linha divisória entre ser
dinâmica, ter força de vontade e virar uma megera
mandona. Karen conseguira atravessar essa linha com
sucesso.
Resolvera que Charlotte e eu faríamos a parte "mãos à
obra" dos preparativos enquanto ela ficaria com o cargo de
Diretora de Criação, supervisionando tudo, aconselhando,
guiando e gerencian-do tudo.
Em outras palavras, se havia batatas para descascar,
ela não tinha intenção alguma de fazê-lo.
Charlotte e eu mal colocamos o pé em casa, na volta do
trabalho, e ela começou a nos dar ordens, organizando
tudo:
— Você! — berrou para Charlotte, apontando com a
caneta e lendo os itens de uma lista. — Está encarregada
das cenouras, da pimenta, da berinjela, das abobrinhas,
do coentro, da sopa de alecrim e do suflê de aspargos.
— E você! — berrou para mim. — Está encarregada dos
bolinhos de batata, do purê de kiwi, da geléia de amora,
do creme chan-tilly, dos cogumelos recheados e dos
biscoitinhos vienenses.
Charlotte e eu ficamos aterrorizadas. Nem sabíamos da
existência da maioria daquelas comidas, muito menos
como prepará-las. A especialidade culinária de Charlotte
era torrada, e a minha era miojo. Sempre que tentávamos
cozinhar alguma coisa mais complicada do que isso, a
coisa acabava em lágrimas e recriminações.
Era sempre comida carbonizada por fora e crua por
dentro, vozes alteradas, sentimentos feridos,
derramamentos diversos e escorregões variados. Não dá
para fazer uma omelete sem quebrar alguma coisa além
dos ovos. Pelo menos eu nunca conseguira essa façanha.
Naquela noite, a cozinha parecia uma cena do Inferno de
Dante. O círculo onde os pecadores eram torturados com
frutas e vegetais. As quatro bocas do fogão estavam em
uso constante, com vapores subindo, tampas
chacoalhando, para a seguir pularem, esparramando
líquidos que transbordavam. Havia pilhas de uvas,
aspargos, muita couve-flor, um monte de batatas,
cenouras e kiwis em toda parte. O calor era tão intenso
que Charlotte e eu estávamos da mesma cor que os
tomates. Karen, não.
Não havia lugar para colocar coisa alguma, porque
Karen nos obrigara a levar a mesa da cozinha para a sala
de estar.
— Coloque as coisas ali no canto. Não, não, o creme
para preparar o merengue não, pelo amor de Deus! —
reagiu ela, tendo um chilique quando tentei esvaziar a
geladeira, a fim de conseguir espaço para os vinte ou
trinta tipos de sobremesa que ela estava esperando que
preparássemos.
Em todo lugar havia comida. Em cima da geladeira,
sobre a pia, dentro da pia... A maior parte do chão estava
coberta de tigelas com carne de porco descansando no
molho, gelatina que estava endurecendo e pão de alho
embrulhado em papel laminado. Eu estava com medo de
mexer o pé alguns centímetros e afundar até as canelas
em azeite, vinho tinto, zimbro, baunilha, cominho ou no
"molho com ingredientes secretos da Karen". Pelo que
consegui ver, o tal ingrediente secreto era simplesmente
açúcar mascavo. Estava doida para jogar isso na cara dela,
para ela parar de fazer mistério, como se o molho fosse o
Terceiro Segredo de Fátima.
Descasquei catorze milhões de batatas. Fatiei dezessete
mil kiwis. Depois piquei tudo. Depois, tive de esmagar
tudo aquilo para passar por uma peneira, sei lá para que
exatamente. Ralei os dedos na parede enquanto
empurrava a mesa pelo corredor até a sala.
Cortei o polegar quando estava descascando vagens e
um pouco de pimenta entrou no corte. Karen acudiu,
aconselhando-me a ter mais cuidado, porque ela não
queria sangue na comida.
De vez em quando ela aparecia para "dar uma
olhadinha" no que estávamos fazendo, e, mesmo sabendo
que era ridículo, fiquei nervosa. Ela parecia um sargento
passando os soldados em revista.
— Não, não, não — disse ela e, deixando-me pasma,
bateu nos meus dedos com uma colher de pau! — Não é
assim que se descasca batata! Você está arrancando
metade das batatas junto com a casca! Isso é um
desperdício, Lucy!
— Enfia essa colher de pau no rabo! — disse eu, muito
zangada, desejando que a minha faca de cortar legumes
fosse um canivete. A piranha mandona tinha ido longe
demais, e a colher de pau tinha machucado.
— Ora, ora... estamos mesmo de muito mau humor hoje,
não é? — E riu. — Você precisa aprender a aceitar críticas
construtivas, Lucy. Jamais vai vencer na vida com esta
sua atitude.
Dava para eu sentir a fúria na boca. Estava tentando...
precisava compreender que ela estava louca daquele jeito
por causa de um homem. Mesmo sendo Daniel. Eu não
tinha o direito de julgar.
— E isto aqui, alguém sabe me explicar o que é? — quis
saber ela. Estava junto de Charlotte, que descascava
cenouras, e apanhou uma delas, já descascada.
— Isto é uma cenoura — explicou Charlotte. De cara feia.
Na defensiva.
— Que tipo de cenoura? — perguntou Karen, com a voz
lenta e expressiva.
— Uma cenoura descascada.
— Uma cenoura... descascada — disse Karen, com ar de
triunfo.
— Uma cenoura descascada, ela está me dizendo. Posso
lhe perguntar, Lucy Sullivan, se, na sua opinião, esta
cenoura parece descascada?
— Parece — respondi, com firmeza e lealdade.
— Ah, não, não parece mesmo! Se está descascada, está
muito mal descascada. Comece tudo de novo, Charlotte, e
faça direito dessa vez.
— Sai daqui, Karen! — explodi, muito brava para me
importar.
— Estamos fazendo um favor para você.
— Como disse?... — perguntou Karen, levantando as
sobrancelhas. — Podia repetir? Vocês estão fazendo um
favor para mim? Acho que não é bem assim, Lucy. De
qualquer forma, pode parar agora mesmo, se quiser, mas
não espere um lugar reservado na mesa para você e Gus
amanhã à noite.
Isso me fez calar a boca.
Gus ficara todo empolgado quando eu lhe contara a
respeito do jantar, especialmente quando falei que íamos
nos produzir todas. Ele ficaria muito desapontado se não
pudesse ir. Sendo assim, engoli a raiva. Mais um passo a
caminho da úlcera.
— Vou tomar um pouco de vinho — disse, zangada,
pegando uma das garrafas que estavam na geladeira. —
Vai querer também, Charlotte?
— Não, nada de vinho — declarou Karen. — Ele é para
amanhã à noi... ah, deixa pra lá. Vou tomar um pouco
com vocês, para fazer companhia.
E assim passamos a noite, trabalhando, descascando,
raspando, fatiando, ralando, recheando, batendo, assando
e cozinhando.
Trabalhamos tanto que Karen se sentiu quase grata,
mas só por dois segundos.
— Obrigada a vocês duas — disse ela enquanto se
abaixava para tirar alguma coisa do forno.
— Como é?... não escutei direito — disse eu, tão
cansada que me pareceu estar ouvindo coisas.
— Eu falei "obrigada!" — disse ela. — Vocês duas foram
muito bo... Ai, meu Deus! Sai da frente, sai, sai! — urrou
ela, me empurrando para o lado, deixando tombar uma
bandeja do que deveriam ser os biscoitinhos vienenses,
fazendo-os escorregar e cair dentro da tigela de
ratatouille. — Queimei a mão — gemeu ela. — Essas
porcarias de luvas térmicas não servem para nada.
Finalmente consegui ir para a cama, mais ou menos às
duas da manhã, com as mãos raladas e cortadas,
cheirando a alho misturado com Drambuie. Minha unha
de estimação, que eu tratara com carinho desde o sabugo,
ficou lascada e quebrou














CAPÍTULO 39
Foi bom eu conseguir um lugar sentada no metrô, na
manhã seguinte, porque estava tão cansada que era capaz
de deitar no chão do vagão se tivesse de viajar em pé.
Charlotte e eu passamos todo o percurso comentando,
com ar cansado, o quanto Karen era uma megera grossa e
estúpida.
— Puxa, quem ela pensa que é? — perguntou Charlotte,
bocejando.
— Exato — bocejei de volta, despencada no meu lugar.
Reparei que os meus sapatos estavam sujos e gastos, e
isso fez com que eu me sentisse deprimida. Sentei reta,
para não ter de ficar olhando para eles, mas então fiquei
de cara com um homem horrível, de terno, que estava
sentado de frente para mim e mantinha os olhos grudados
nos seios de Charlotte, com um brilho de luxúria toda vez
que ela bocejava e o peito se expandia. Senti vontade de
bater nele, espancá-lo na cabeça e no pescoço com o
próprio jornal.
Resolvi que era melhor fechar os olhos pelo resto da
viagem. Era mais seguro.
— Esse namoro entre Karen e Daniel não vai durar
muito — declarou Charlotte, sem demonstrar muita
certeza. — Ele vai ficar de saco cheio dela.
— Hummmm — concordei, abrindo os olhos por um
momento. Fechei-os de novo, bem apertados, não sem
antes ver um anúncio na parede de uma das estações. Ele
pedia donativos para animais maltratados, e mostrava
uma foto de um cachorro esquelético com olhar triste, de
partir o coração.
Foi quase um alívio chegar ao trabalho, onde tive de
aturar as provocações de Meredia e Megan, que insistiam
que eu havia mergulhado na cerveja na noite anterior.
— Eu não bebi ontem, não — protestei, sem forças.
— Claro que bebeu — bufou Megan. — Olhe só a sua
cara.
No momento em que enfiei a chave na fechadura, sexta
à noite, Karen já estava no vestíbulo. Tirara a tarde de
folga para arrumar o cabelo e enfeitar o apartamento. Na
mesma hora começou a me dar ordens:
— Vá tomar um banho e se apronte o mais rápido que
puder, ande logo, Lucy! Preciso acabar os preparativos
com você.
Verdade seja dita, o apartamento estava lindo.
Havia flores em toda parte. Ela cobrira o tampo
medonho da mesa de fórmica da cozinha com uma toalha
de mesa branca e encorpada, e colocara um requintado
candelabro com oito velas vermelhas bem no centro.
— Não sabia que nós tínhamos um candelabro —
comentei, imaginando como ele ia ficar bonito no meu
quarto.
— Não temos — disse ela, sem esticar muito o
assunto. — Peguei emprestado.
Quando eu estava no banheiro, ela esmurrou a porta e
berrou:
— Coloquei toalhas limpinhas nos porta-toalhas, mas
nem pense em usá-las!
Deu oito horas. Nós três estávamos prontas.
A mesa estava preparada, as velas acesas, a iluminação
da sala bem fraca, o vinho branco estava na geladeira, o
vinho tinto já estava aberto e pronto na cozinha, e as
panelas, frigideiras e diversos vasilhames para a comida
estavam enfileirados sobre o fogão, prontos para dar a
partida.
Karen ligou o som e estranhos ruídos começaram a sair
dele.
— Que barulho é esse? — perguntou Charlotte, em
choque.
— Jazz. — Karen parecia ligeiramente envergonhada.
— Jazz? — urrou Charlotte, com ar de deboche. — Mas
nós detestamos jazz. Não é verdade, Lucy?
— É, nós detestamos — fiquei feliz em confirmar.
Como é que chamamos as pessoas que gostam de jazz,
Lucy? — perguntou Charlotte.
— Panacas esquisitos? — sugeri.
— Não, não é isso.
— Caras que usam cavanhaque, e estudantes de arte
ripongas?
— Isso — concordou ela, alegre. — Caras que usam
camisas pólo pretas com calças de esquiar.
— Pode ser que sim, mas agora nós gostamos de jazz —
garantiu Karen, com firmeza.
— Você quer dizer que Daniel gosta — resmungou
Charlotte.
Karen estava soberba... Ou ridícula, dependendo do
ponto de
vista. Usava uma túnica verde-água em estilo grego, com
um dos ombros de fora. Seu cabelo estava armado, mas
diversas pontas desciam em caracóis e pequenas mechas
aneladas. Ela brilhava, parecia muito mais glamourosa do
que eu ou Charlotte.
Eu estava usando o meu velho vestido dourado, o
mesmo que usara na noite em que conhecera Gus, porque
era a única roupa produzida que eu tinha, mas estava
parecendo brega e desgrenhada comparada ao esplendor
de Karen.
Charlotte, para ser franca, estava um desastre,
conseguiu ficar pior do que eu. Colocara o único vestido
formal que possuía, o mesmo que usara no casamento da
irmã, quando tinha sido dama de honra. Era em tafetá
vermelho e tinha o formato de um suspiro gigante. Acho
que ela engordara um pouco desde o casamento, porque
os peitos estavam quase pulando do corpete tomara-que-
caia.
Karen olhou sem muito entusiasmo quando Charlotte se
apertou para sair do quarto, gritando "Ta-rãããã!!..B, e fez
uma pequena pirueta. Acho que ela ficou imaginando se
não teria sido melhor ter permitido que Charlotte usasse a
fantasia de cowgirl.
Então, Karen começou a distribuir instruções frenéticas:
— Quando eles chegarem, enquanto eu fico puxando
assunto no vestíbulo, você, Lucy, corre para a cozinha e
acende o fogo bem baixo, para esquentar as batatas, e
você, Charlotte, mistura o...
Parou de falar de repente, com um olhar de horror no
rosto.
— O pão. O pão, o pão — guinchou ela. — Esqueci de
comprar o pão! Estragou tudo, está tudo arruinado!
Totalmente arruinado! Eles vão ter que voltar para casa.
— Karen, fica calma! O pão está em cima da mesa —
disse Charlotte.
— Hã?... Oh. Oh. Graças a Deus! Está mesmo? — Ela
parecia à beira das lágrimas. Charlotte e eu trocamos
olhares longos e sofridos.
Karen ficou parada por um momento, e então olhou
para o relógio, dizendo:
— Mas que bosta. Onde é que eles se enfiaram? — quis
saber, acendendo um cigarro. Sua mão tremia.
— Dê um tempo a eles — disse eu para acalmá-la. —
Acabou de dar oito horas.
— Eu disse que era às oito em ponto — argumentou
Karen, agressiva.
— Mas ninguém leva isso a sério — murmurei. — Não é
elegante chegar exatamente no horário marcado.
Fiquei com vontade de lembrar a Karen que aquilo era
simplesmente um jantar entre amigos, e que o convidado
de honra era apenas o Daniel. As palavras chegaram à
ponta da língua, mas consegui ficar de bico calado no
último instante. Ondas de agressão pareciam emanar dela.
Sentamos todas, sob um silêncio tenso.
— Não vai vir ninguém — disse Karen, quase chorando,
entornando um cálice de vinho de uma vez só. — Era
melhor nós jogarmos logo tudo fora. Isso mesmo, vamos
até a cozinha agora mesmo para colocar tudo aquilo no
lixo.
Pousou o cálice por sobre a mesa com força e se
levantou.
— Como é? Vamos lá! — ordenou.
— Não — disse Charlotte. — Por que temos de jogar a
comida fora? Depois de todo o trabalho que tivemos?
Podemos comer de tudo e, depois, congelar o que sobrar.
— Ah, sei — disse Karen, de cara feia. — Podemos comer,
não é? E o que faz você ter tanta certeza de que não vai
chegar ninguém? O que vocês estão sabendo e não me
contaram?
— Nada — declarou Charlote, exasperada. — Você é que
falou que...
A campainha tocou. Era Daniel. Uma onda de alívio se
espalhou por todo o rosto de Karen, muito bem maquiado.
Meu Deus, me ocorreu com um sobressalto, ela realmente
está doidinha por ele.
Daniel vestia um terno escuro e uma camisa ofuscante
de tão branca, que servia para dar mais destaque ao
restinho de bronzeado que ele ainda exibia, e que fora
adquirido nas férias de fevereiro, na Jamaica. Parecia mais
alto, moreno e bonito, sorria muito, com as pontas do
cabelo meio caídas por sobre a testa, e trouxera duas
garrafas de champanhe, pois era o típico convidado
perfeito. Não pude deixar de sorrir. Perfeitamente
arrumado, com um comportamento maravilhoso, e apenas
exagerando um pouco no clichê.
Dizia todas as coisas que as pessoas educadas dizem
quando chegam para jantar na casa de alguém. Coisas do
tipo "hummm... tem alguma coisa no ar com um cheiro
delicioso" e "você está linda, Karen, e você também,
Charlotte".
Só quando ele virou para mim é que suas maneiras
impecáveis deram uma derrapada.
— De que está rindo, Sullivan? — quis saber. — É o meu
terno? Meu cabelo? O que foi?
— Nada — protestei. — Não estou rindo de nada. Por
que você acha que eu devia estar rindo?
— Para que mudar o hábito de toda uma vida? —
murmurou. Depois, passou direto por mim e continuou
falando coisas educadas, como bom convidado que era: —
Vocês estão precisando de ajuda em alguma coisa? —
Sabendo que a resposta seria uma avalanche de reações
do tipo "não" e "não se preocupe" e "está tudo sobre
controle!".
— Aceita um drinque, Daniel? — perguntou Karen, de
forma graciosa, enquanto o levava para a sala de estar.
Charlotte e eu tentamos segui-los, mas Karen virou a
cabeça para trás e cochichou: — Vão circular por aí, vocês
duas. Bloqueou a nossa passagem e acabei dando um
encontrão nas costas de Charlotte.
A campainha tornou a tocar. Era Simon dessa vez.
Como sempre, sua roupa estava de arrasar. Ele usava um
smoking com uma cinta vermelha na cintura, que me
pareceu bem idiota. Trouxera uma garrafa de champanhe
também.
Ai, meu Deus!, pensei. Gus ia ser o diferente. Isto é,
mais do que normalmente já era. Ele não ia trazer
champanhe. Provavelmente não ia trazer nada.
Não que isso fosse me deixar sem graça, mas eu estava
preocupada de que talvez ele se sentisse sem graça.
Fiquei pensando depressa se seria bom dar uma
fugidinha até a loja de bebidas para comprar um
champanhe e enfiar discretamente nas mãos de Gus na
hora em que ele chegasse, só que eu estava de serviço,
esquentando as batatas, então tinha de ficar confinada ao
quartel.
Simon exclamou, exatamente como Daniel, minutos
antes:
— Hummmm. Tem alguma coisa no ar com um cheiro
delicioso. Gus jamais falaria aquilo. Ele diria:
"Cadê o rango? Tô morrendo de fome!"
— Como vão as coisas? — perguntou Karen, colocando a
cabeça na porta da cozinha. Ela, pelo jeito, deixara Daniel
e Simon sozinhos na sala, travando aquele contato inicial
meio constrangido, típico dos homens.
— Está tudo bem — disse eu.
— Cuidado com aquele molho, Lucy — disse, ansiosa. —
Se ficar empelotado, eu mato você.
Não respondi nada. Fiquei com vontade de atirar a
caçarola na cara dela, com molho e tudo.
— Onde está seu irlandês maluco?
— Está chegando.
— É melhor ele se apressar.
— Não se preocupe.
— Que hora você marcou para ele chegar?
— Oito.
— Já são oito e quinze.
— Karen... ele vem!
— É melhor que venha.
Karen voltou deslizando para a sala de estar, levando
uma garrafa embaixo do braço.
Fiquei ali, mexendo o molho, com pequenas fisgadas de
ansiedade na boca do estômago.
Ele ia chegar.
Só que eu não falara mais com ele desde terça-feira, e
não o via desde domingo. De repente, aquilo me pareceu
um período de tempo terrivelmente longo. Será que ele já
havia me esquecido?
Um pouco depois, Karen voltou.
— Lucy! — berrou ela. — Já são oito e meia!
— Edaí?
— Onde é que o Gus se enfiou?
— Não sei, Karen!
— Bem... — esbravejou ela. — Não acha que é melhor
você tentar descobrir?
— Por que não liga para ele? — sugeriu Charlotte. — Só
para se certificar de que ele não esqueceu. Pode ser que
ele tenha entendido que o jantar era em outro dia.
— Pode ser que ele tenha entendido que o jantar era em
outro ano — completou Karen, com crueldade.
— Tenho certeza de que ele está chegando — disse eu —,
mas vou dar uma ligada, só para confirmar.
Eu dava a impressão de estar muito mais segura do que
na realidade estava. Qualquer coisa podia ter acontecido
com Gus. Ele podia ter esquecido, podia ter se atrasado,
podia estar debaixo de um ônibus. Mas eu não estava
disposta a deixar ninguém perceber o quanto eu estava
preocupada.
Sentia-me embaraçada. Estava com vergonha. Os
namorados delas duas haviam chegado na hora marcada.
Trazendo garrafas de champanhe. Meu namorado já
estava meia hora atrasado e não ia trazer nem uma
garrafa de sidra, nem mesmo uma garrafa com água da
torneira, quando finalmente resolvesse aparecer.
Se aparecesse, disse uma vozinha dentro da minha
cabeça.
Comecei a entrar em pânico. E se ele não desse as caras?
E se ele não aparecesse, não me telefonasse e eu nunca
mais ouvisse falar dele? O que eu faria?
Tentei me acalmar. Claro que ele ia aparecer.
Provavelmente estava chegando, vindo pela rua naquele
exato momento. Ele gostava de mim, obviamente tinha um
carinho especial por mim e jamais me abandonaria.
Não queria ligar para ele, eu jamais fizera isso. Ele me
dera o seu número de telefone, quando pedi, mas eu tinha
a impressão de que ele não estava muito a fim de que eu
ficasse ligando para ele. Dissera que detestava telefones,
que considerava o telefone apenas um mal necessário. E
também jamais fora preciso ligar para ele, porque era
sempre ele que ligava para mim. Naquele momento,
pensando no assunto, lembrei que os telefonemas
pareciam sempre vir de uma cabine telefônica em algum
lugar bem barulhento, Quase sempre ele aparecia direto
no meu apartamento, ou me pegava no trabalho.
Certamente nós dois não passávamos horas a fio
pendurados no telefone, sussurrando e dando risadinhas
um com o outro, como Charlotte e Simon faziam.
Achei o número na bolsa e fiz a ligação. O telefone tocou
e tocou sem parar, sem ninguém atender.
— Ninguém responde — anunciei, aliviada. — Ele já
deve estar a caminho.
Nesse instante, alguém atendeu o telefone, do outro lado.
Uma voz de homem disse "alô!".
— Hã... alô... Eu poderia falar com Gus?
— Quem?
— Gus. Gus Lavan.
— Ah, ele. Não, ele não está.
Coloquei a mão sobre o bocal do aparelho e sorri para
Karen, dizendo:
— Ele já está vindo.
— Quando é que ele saiu de lá? — perguntou ela.
— Quando é que ele saiu daí? — repeti, feito um
papagaio.
— Deixe ver... hummm... deve ter... umas duas semanas,
mais ou menos.
— O qu... quê?
Minha cara de horror deve ter sido bem transparente,
porque Karen explodiu:
— Não acredito nisso! Aposto que o patife acabou de sair
de casa faz cinco minutos. Bem, azar o dele, porque vamos
começar a comer antes de ele chegar...
Sua voz foi se afastando, enquanto ela seguia pelo
corredor para agitar Charlotte, a fim de começarem a
servir.
— Duas semanas? — perguntei, baixinho. Apesar de me
sentir horrorizada com a informação, achei que era melhor
guardá-la para mim mesma. Ia ser muito mais humilhante
se eu anunciasse aquilo para minhas amigas e seus
namorados.
— Deve fazer umas duas semanas — confirmou a voz,
pensando. — Dez dias pelo menos, ou algo assim,
— Ah, bem... hã... obrigada.
— Quem é que está falando? É a Mandy?
— Não — disse eu, sentindo que ia explodir em
lágrimas. — Aqui não é a Mandy, não.
Quem era essa tal de Mandy?
— Quer deixar algum recado para ele, se acontecer de eu
tornar a vê-lo?
— Não. Obrigada. Adeus.
Desliguei. Alguma coisa estava errada. Eu sabia. Aquele
compor tamento não era normal. Por que Gus não
comentara que saíra do apartamento? Por que não me
dera o número do novo telefone? E onde, afinal, estava ele?
Daniel apareceu no corredor.
— Nossa! O que há de errado com você?
— Nada — respondi, tentando sorrir. Karen também
apareceu no corredor.
— Desculpe, Lucy. Podemos esperar um pouco mais por
ele.
Ah, não. Não, não, não. Não queria que ninguém ficasse
esperando por Gus. Tinha a terrível impressão de que ele
não ia aparecer. Não queria que todo mundo ficasse
sentado na sala, olhando para a porta o tempo todo,
porque então ia ficar óbvio demais quando ele não
aparecesse. Eu queria que a noite seguisse adiante,
normalmente, sem Gus. Assim, se ele aparecesse, seria
uma espécie de bônus.
— Hã... é melhor não esperarmos mais por ele não,
Karen. Vamos servir logo o jantar.
— Não, estou falando sério, mais meia hora não vai fazer
assim tanta diferença.
Aquilo era bem típico. Karen estava sendo gentil e
simpática, o que não acontecia com muita freqüência, e
exatamente naquela noite, para variar, eu não queria que
ela agisse assim.
— Venha se sentar conosco e tome um pouco de
vinho — sugeriu Daniel. — Você está pálida como um
fantasma e parece exausta.
Rumamos todos para a sala da frente, peguei um cálice
de vinho que alguém me ofereceu e tentei agir com
naturalidade.
Todos estavam parecendo relaxados e felizes, batendo
papo, recostados no sofá, nas poltronas, bebendo vinho, e
só eu estava rígida, tensa, pálida e calada, louca para
ouvir um toque da campainha e rezando para o telefone
tocar.
— Por favor, Gus, não faça uma coisa dessas comigo —
implorei, baixinho.
— Por favor, meu Deus, por favor, faça com que ele
apareça. No que me pareceu trinta segundos mais tarde,
deu nove horas. O tempo era um canalha do contra.
Quando eu queria que ele passasse correndo, como
quando estava no trabalho, ele andava tão devagar que às
vezes parecia ter parado. Às vezes levava vinte e quatro
horas para o ponteiro dos minutos dar uma volta completa
no mostrador. Agora que eu queria que o tempo parasse,
ele disparara. Eu queria que ele ficasse em torno da marca
das oito e meia da noite por pelo menos umas duas horas,
porque assim Gus não pareceria estar tão atrasado.
Enquanto o atraso fosse de apenas meia hora, ainda havia
esperança, ainda havia chance de ele chegar. Eu desejava
ardentemente que o tempo passasse tão devagarzinho que
nos mantivesse em um padrão aceitável de tempo no qual
ainda fosse possível ele aparecer. Cada segundo que
passava, cada segundo que fazia o tempo correr um pouco
mais era meu inimigo. Cada tique-taque do relógio levava
Gus cada vez para mais longe de mim.
Sempre que havia um momento de silêncio na conversa,
e isso estava acontecendo a toda hora, porque ainda não
tínhamos bebido muito e nos sentíamos pouco à vontade
com tanta formalidade em nossa própria casa, alguém
perguntava "o que será que atrasou Gus?", ou "de onde é
que ele está vindo? De Camden? Então deve ter acontecido
alguma coisa no metrô", ou ainda "na certa ele não
imaginou que você marcou o jantar para as oito horas tão
ao pé da letra".
Ninguém parecia muito preocupado. Mas eu estava.
Eu estava apavorada.
Não era apenas o fato de ele estar atrasado, embora isso
já representasse um mico enorme depois de toda a
produção que Karen arrumara para aquele jantar, mas era
o seu atraso somado ao fato de que ele havia trocado de
endereço sem me contar. Isso, sim, era um mau sinal. Não
havia ângulo sob o qual eu analisasse e que me fizesse
achar que aquilo fosse uma coisa boa.
Senti pequenas fisgadas de desespero
E se ele não aparecer?
E se eu nunca mais puser os olhos nele?
E quem era Mandy?
Fiz algumas tentativas de me enturmar no clima de
camaradagem e alegria que rolava na sala, procurei ouvir
o que eles estavam dizendo e pregar um sorriso no meu
rosto rígido e pálido.
Só que eu estava tão agitada que mal conseguia sentar
quieta por um momento.
E então o ponteiro completou uma volta completa no
mostrador e me acalmei. Afinal, o atraso era de apenas
uma hora, quer dizer, uma hora e quinze minutos. Droga,
olhei com atenção, já passara uma hora e quinze minutos?
Ele provavelmente ia aparecer a qualquer momento, meio
alto, com alguma desculpa diferente e hilária. Eu vivia
reagindo com muita intensidade a coisas bobas, ralhei
comigo mesma, com firmeza. Tinha a certeza de que ele ia
aparecer e fiquei até espantada ao ver como é que eu fazia
as coisas parecerem piores com tanta facilidade.
Gus era meu amigo, havíamos adquirido uma
intimidade tão grande nos últimos dois meses, eu sabia
que ele gostava de mim e que não ia me deixar na mão.
CAPÍTULO 40
Quando deu dez horas, as tigelas de batatas fritas já
estavam vazias e todo mundo parecia meio alto.
— Não vou ouvir nem mais um minuto desta merda —
anunciou Charlotte, desligando o som. — Jazz uma ova!
— Você é tão pobre — disse Karen.
— Sou sim, e daí? — enfrentou ela, com o rosto
vermelho e brilhante. — Essa música é uma merda mesmo,
não tem nem melodia. Sempre que tento cantarolar junto,
ela muda de ritmo e fica toda estranha. Cadê meu Simply
Red?
Karen deixou Charlotte trocar o disco, o que significava
que ela também já estava cheia das divagações sonoras de
John Coltrane.
— Muito bem — anunciou Karen, mudando de
assunto. — Com Gus ou sem Gus, já está na hora de
comermos. Quero que experimentemos a deliciosa comida
antes de ficarmos bêbados demais para apreciá-la. O
jantar está servido! Charlotte! Lucy! — E fez um sinal com
a cabeça, indicando a porta da cozinha.
Era a nossa deixa para nos transformarmos em
empregadinhas.
Eu não consegui comer nada. Ainda tinha esperanças de
que Gus aparecesse. Que simplesmente surgisse com uma
daquelas desculpas fantásticas e absurdas. Não vou ficar
chateada com você, Gus, juro que não! Sério mesmo,
simplesmente apareça aqui que não vou reclamar de nada.
Depois de algum tempo, todo mundo parou de dizer
coisas como "só queria saber o que está atrasando Gus" e
"o que será que houve com Gus?", e também deixaram de
olhar pela janela para ver se avistavam um táxi chegar
com Gus dentro.
Na verdade, todos começaram a tomar todo o cuidado
para sequer mencionar o nome de Gus. Já estava bem
claro para todos que ele não estava meramente atrasado,
ele simplesmente não viria.
Todos sabiam que eu havia levado um bolo gigantesco, e,
em seu modo estranho e meio sem graça, tentavam fingir
que aquilo não fora bolo nenhum e, se eu tinha levado um
bolo, eles nem haviam percebido.
Eu sabia que estavam apenas querendo ser gentis, mas
essa gentileza era humilhante.
A noite passava, interminável. Havia tanta comida e
tantos pratos diferentes que eu achava que aquilo não ia
terminar nunca. Daria tudo para ir direto para a cama,
mas o orgulho me impedia.
Só mais tarde, bem mais tarde, quando todo mundo já
estava bêbado de verdade, e não apenas bêbado, é que o
nome de Gus veio novamente à baila.
— Dispense esse babaca — sugeriu Karen, com a voz
arrastada. Seu penteado estava despencando para um dos
lados. — Que cara-de-pau a dele, tratar você desse jeito.
Como ele ousa? Eu o matava!
— Vamos dar-lhe uma chance — disse e sorri, tensa. —
Pode ter acontecido alguma coisa com ele.
— Ah, pára com isso, Lucy — debochou Karen. — Como
é que você pode ser tão idiota? Está na cara que ele deu o
maior bolo em você.
É claro que estava na cara que ele me dera o bolo, mas
eu continuava agarrada a um restinho de dignidade para
fingir que não fora bem assim.
Daniel e Simon pareciam pouco à vontade. Simon
perguntou a Daniel, com um tom animado:
— E com você, como anda o trabalho?
— Ele podia ter telefonado — disse Charlotte.
— Talvez ele tenha esquecido — disse eu, sentindo-me
infeliz.
— Bem, então ele não devia ter esquecido — completou
Karen, com a voz engrolada.
— Você já verificou o telefone? — gritou Charlotte, de
repente. — Aposto que ele está quebrado, sem linha ou
algo assim. Por isso é que ele não conseguiu ligar.
— Duvido muito — comentou Karen.
— Talvez você não tenha recolocado o fone direito —
sugeriu Daniel. — Talvez ele esteja fora do gancho e ele
não conseguiu entrar em contato.
Como foi Daniel que sugerira aquilo, todos lhe deram
um pouco de credibilidade. Houve uma correria em
direção ao corredor, comigo bem na frente, com todas as
esperanças de que Daniel estivesse certo. Claro que ele
não estava. Não havia nada de errado com o telefone, e o
fone estava no gancho, direitinho.
Muito embaraçoso.
— Talvez tenha acontecido alguma coisa com ele —
sugeri, esperançosa. — Quem sabe ele sofreu um acidente?
Ele pode ter sido atropelado e estar morto — acrescentei,
com novas ondas de esperança agitando-me por dentro.
Era muito melhor que Gus estivesse debaixo de uma
jamanta, todo quebrado e sangrando, do que ter resolvido
que não gostava mais de mim.
Karen estava envolvida com Simon em uma conversa
acalorada, mas difícil de acompanhar, a respeito de
nacionalismo escocês, quando se ouviu uma batida na
porta da frente.
— Silêncio — gritou Daniel. — Acho que tem alguém
batendo na porta.
Ficamos todos calados, totalmente sem fala, mais pela
surpresa do acontecido do que pelo desejo de ouvir.
Prendemos a respiração e escutamos com atenção.
Daniel tinha razão.
Alguém estava mesmo batendo na porta.
Graças a Deus!, pensei, sentindo uma sensação intensa
e ficando até um pouco tonta de tanto alívio.
Graças a Deus graças a Deus, graças a Deus! Pode
contar comigo para trabalhos de caridade, ajuda aos
pobres, contribuições para fundos de igrejas, donativos
para campanhas sobre doenças de pele, qualquer coisa
que o Senhor queira, e muito obrigada, Senhor, por ter me
enviado Gus de volta.
— Deixe que eu atendo, Lucy. — Charlotte se colocou
em pé. — Você não vai querer que ele ache que estava
preocupada, vai? Fique aqui, com um jeito assim, bem
casual.
— Obrigada — disse eu, correndo para o espelho, em
pânico. — Será que estou com uma cara legal? Meu cabelo
está direito? Ah, não, olhe só essa minha cara, como está
vermelha! Rápido, rápido, alguém aí me empreste um
batom!
Passei os dedos pelos cabelos e me atirei no sofá, bem à
vontade, tentando parecer despreocupada, e fiquei
esperando que Gus viesse até a sala, Estava tão feliz que
nem conseguia me sentar direito. Estava curiosa para
saber qual era a desculpa criativa e elaborada que ele ia
dar. Com certeza ia ser engraçada.
Mas passou algum tempo e ele não apareceu. Dava para
ouvir vozes no vestíbulo.
— Por que é que ele não entra logo? — disse, entre
dentes, chegando o corpo para a frente e sentando bem na
pontinha do sofá.
— Relaxe. — Daniel deu-me um tapinha amigável no
joelho. Parou na mesma hora, quando Karen olhou
fixamente para a mão dele, depois para ele e então para a
mão dele de novo. Tinha uma expressão peculiar que
parecia saltar do seu rosto. Reparei que ela estava
tentando levantar as sobrancelhas de modo questionador,
mas não conseguia fazê-lo devido à ação do álcool.
Mais algum tempo se passou e Gus continuava sem
aparecer na sala. Saquei que alguma coisa estava errada.
Talvez ele não tivesse chegado antes por estar ferido.
Depois de mais alguns minutos, não agüentei mais e,
jogando o verniz de despreocupação para o alto, fui até a
porta para dar uma olhada.
Gus não estava ali.
Quem estava era Neil, do andar de baixo.
Neil, parecendo muito mal-humorado, reclamando da
música e usando um pijama muito curto.
Eu estava tão certa de que Gus havia chegado ao prédio
que levou um bom tempo até eu me dar conta de que, na
verdade, ele não estava ali. Apertei os olhos um pouco
vermelhos, já meio bêbada, e olhei por cima de Neil,
perguntando-me por que eu não conseguia ver a figura de
Gus atrás dele.
E quando acordei para o fato de que Gus não havia
chegado, afinal, mal pude acreditar.
O desapontamento foi tão grande que senti o chão
literalmente fugir debaixo dos meus pés. Por outro lado, a
causa disso também podia ser a quantidade de vinho que
eu bebera.
— ...E não precisa baixar o som, não — estava
explicando Neil. — Mas, pelo amor de Deus, troque o CD.
Se você tiver um pouco de compaixão, um sentimento de
pena por um ser humano igual a você, por favor, troque o
CD.
— Mas eu gosto do Simply Red — explicou Charlotte.
— Eu sei! Já percebi — reagiu Neil. — Por que outro
motivo você tocaria o mesmo disco por oito semanas, sem
parar? Por favor, Charlotte.
— Tá legal — concordou ela, meio contrariada.
— E você se importaria de tocar um pouco este CD
aqui? — pediu ele, entregando-lhe um disco.
— Ei, cai fora — explodiu Charlotte. — Que cara-de-pau
a sua, hein? Esse aqui é o nosso apartamento, e nós
colocamos a música que a gente quiser ouvir...
— Mas é que sou obrigado a ouvir também, entende? —
choramingou Neil.
Voltei cambaleando para a sala.
— Onde está o Gus? — perguntou Daniel.
— Não sei — murmurei.
Fiquei muito bêbada e, bem mais tarde, acho que já
depois das duas da manhã, resolvi que ia descobrir onde
Gus estava. Talvez conseguisse o seu novo telefone com o
sujeito com quem eu falara, no apartamento antigo.
Saí de fininho da sala e fui até o corredor, para falar ao
telefone. Se Karen e Charlotte descobrissem o que eu ia
fazer, tentariam me impedir. Felizmente, todos estavam
bêbados. Haviam desistido de jogar strip poker, porque
Charlotte resolveu colocar uma música espanhola para
tocar no som. Em seguida, demonstrou os passos que
aprendera nas aulas de "flamingo", e fez questão de que
todos a acompanhassem.
Sabia que o que eu estava fazendo era prova de
desespero puro, mas estava bêbada, e não tinha mais
força de vontade. Não tinha idéia do que ia dizer a Gus, se
conseguisse achá-lo. Como explicar que insistira para
saber o seu novo número e o rastreara sem parecer uma
mulher obcecada? A verdade é que nem me importava.
Certamente eu tinha todo o direito de achá-lo e
conversar com ele, ponderei comigo mesma, bêbada. Eu
merecia uma explicação.
Mas eu não ia ficar zangada com ele, decidi. Seria
amigável e simplesmente perguntaria com toda a calma
por que ele não aparecera.
Havia uma vozinha bem distante dentro de mim que
ainda estava ligeiramente sóbria e me dizia que eu não
devia ligar para ele, que estava me comportando como
uma pessoa louca, que correr atrás dele só ia servir para
piorar a minha humilhação, mas eu não a escutei. Estava
envolvida em uma determinação compulsiva, e não podia
evitar agir daquela forma.
Ninguém atendeu o telefone. Sentei-me no chão do
corredor e deixei o telefone tocar até aparecer a mensagem
da companhia telefônica, informando que ninguém estava
atendendo. Puxa, obrigada pelo aviso, se não fosse esse
aviso eu jamais teria percebido. Frustrada, bati com o fone
no gancho, com toda a força. Mal estava prestando
atenção ao barulho de coisas caindo e à agitação na sala.
— Ninguém responde? — perguntou alguém. Dei um
pulo. Droga! Era Daniel, de passagem para ir à cozinha,
provavelmente em busca de mais vinho.
— Não — respondi, aborrecida por ter sido pega no
flagra.
— Para quem você estava ligando? — perguntou ele.
— Para quem você acha que poderia ser?
— Pobre Lucy...
Eu me senti horrível. Não era como antigamente,
quando Daniel ria de mim e ficava de gozação com as
minhas desgraças. As coisas haviam mudado, e achava
que Daniel não era mais meu amigo, não como antes. Eu
tinha de esconder os meus sentimentos dele.
— Pobrezinha, puxa vida — repetiu ele.
— Ah, cale essa boca — disse eu, com a cara amarrada,
olhando para ele de onde eu ainda estava, sentada no
chão.
De algum modo, nós ultrapassáramos um limite. Todas
aquelas brigas de mentirinha se tornaram, de repente,
reais e desagradáveis.
— O que está acontecendo, Lucy? — Daniel se agachou
diante de mim, que continuava largada no chão,
encostada na parede.
— Ah, não começa — bufei. — Você sabe muito bem o
que está acontecendo.
— Não... — explicou ele. — Estou querendo saber o que
está acontecendocom nós dois.
— Como assim, não existe nenhum "nós dois". — Reagi,
em parte para magoá-lo e em parte para evitar o confronto
e o papo sério que senti que ia acabar rolando.
— É claro que existe. — Ele colocou a mão com
delicadeza perto do meu pescoço e começou a acariciar a
área embaixo da minha orelha, fazendo pequenos círculos
com o polegar.
— Claro que existe — repetiu ele. Seu dedo provocou
estranhos arrepios que desciam do meu pescoço e iam até
o peito. De repente, já não conseguia respirar direito, e
então, sem poder acreditar, senti que meus mamilos
começaram a endurecer.
— Que porra é essa que você está fazendo? — cochichei,
olhando para o seu rosto lindo e familiar.
Mas não me afastei. Estava bêbada, me sentindo
rejeitada, e alguém estava sendo legal comigo.
— Eu não sei — disse ele, parecendo chocado. Dava
para sentir o seu hálito sobre o meu rosto. Ai, meu Deus!,
pensei, horrorizada, vendo que o rosto de Daniel se
aproximava cada vez mais do meu. Ele vai me beijar.
Daniel! Daniel vai me beijar, mesmo sabendo que a sua
namorada está a poucos metros de distância... e eu estou
tão bêbada ou chateada, sei lá, que vou deixá-lo fazer isso.
— Por que essa demora, Dan? — Ouvi a voz de Karen,
que já estava entrando no corredor, toda agitada.
Salva pelo gongo!
— O que vocês dois estão fazendo aí, sentados no
chão? — guinchou ela.
— Nada — reagiu Daniel, levantando-se na mesma hora.
— Nada — repeti, ofegante, ficando em pé também.
— Daniel, você devia estar na cozinha, pegando uma
bacia de água para o tornozelo de Charlotte — disse Karen,
furiosa.
— Por quê? O que aconteceu? — perguntei, feliz por ter
algo para desviar a atenção de Karen, qualquer coisa,
enquanto Daniel seguia para a cozinha.
— Ela levou um tombo enquanto dançava o
"flamingo"... — respondeu Karen, com frieza — ... e torceu
o tornozelo. Pelo jeito Daniel prefere ficar sentado no chão,
batendo papo com você, a ajudar a pobre Charlotte.
Voltei para a sala, Charlotte estava esticada sobre o sofá,
rindo amarelo e soltando "ais" enquanto Simon
massageava seu pé e olhava por baixo do seu vestido.
Quase não sobrara vinho, só havia restinhos no fundo
das garrafas, mas rodeei a mesa, colocando para dentro
toda bebida que aparecia no caminho, até que ela acabou
de vez. Eu continuava desesperada para beber alguma
coisa, mas parecia não haver sobrado mais nada.
Então teve início uma discussão, porque Charlotte
insistia que seu tornozelo estava quebrado e ela devia ser
levada direto para o hospital, enquanto Simon
argumentava que não estava quebrado não, com toda a
certeza. Estava apenas torcido. Nesse momento Karen
mandou Charlotte parar de choramingar, e então Simon a
defendeu, dizendo a Karen que ela devia parar de tratar
sua namorada daquela maneira, e que se Charlotte queria
ir para o hospital, era isso que ia ser feito. Karen
perguntou a Simon quem é que tinha preparado todo
aquele jantar para ele comer, e Simon retrucou que já
sabia de tudo a respeito de Karen e de todo o trabalho que
ela obrigara Charlotte a fazer, e que se havia alguém a
quem ele devia agradecer pela comida daquela noite, esse
alguém era a própria Charlotte... e assim por diante.
Eu estava bebendo pelo gargalo quase meia garrafa de
vinho tinto que encontrara abandonada atrás do sofá e
continuei sentada, balançando as pernas e apreciando a
briga.
Karen começou a gritar com Charlotte, por ela ter
contado a Simon que foi ela que preparara todo o jantar
quando, na verdade, não fizera nada. Nada! Apenas
descascara algumas cenouras, nada mais...
Sorri para Daniel, esquecendo por um momento o que
acontecera, ou quase acontecera, no corredor. Ele sorriu
de volta e então me lembrei do que acontecera, ou quase
acontecera no corredor, fiquei completamente vermelha e
desviei o olhar.
Encontrei um pouco de gim por ali e matei tudo. Mesmo
assim ainda não me sentia bêbada o suficiente. Tinha
certeza de que havia uma garrafa de rum no armário da
sala, mas procurei em toda parte e não achei.
— Gus provavelmente roubou o rum — sugeriu Karen.
— É... é bem capaz — concordei, sombria.
Finalmente, reconhecendo a derrota, fui para o quarto,
sozinha, e apaguei.










CAPÍTULO 41
Acordei assustada às sete horas da manhã. Era sábado,
afinal, e imediatamente senti que alguma coisa estava
errada. O que seria?
Ah, sim! Lembrei.
Ah, não! Preferia não ter lembrado.
Por sorte, a ressaca estava tão brava que consegui voltar
a dormir na mesma hora.
Acordei às dez. Cair na real e me lembrar de que perdera
Gus me fez sentir como se tivesse levado uma traulitada
na cabeça, dada por uma frigideira. Levantei, me arrastei
pelo corredor e encontrei Charlotte e Karen na cozinha,
fazendo faxina. Havia tantos restos de comida por toda
parte que fiquei com vontade de chorar, mas não podia
fazer isso, senão elas iam pensar que eu estava chorando
por causa de Gus.
— Bom-dia — disse eu.
— Bom-dia — repetiram elas.
Fiquei esperando. Prendi a respiração, na expectativa de
que uma delas dissesse "ah, o Gus ligou". Mas isso não
aconteceu.
Eu sabia que não ia servir de nada perguntar se ele
ligara. As duas sabiam muito bem o quanto aquilo era
importante para mim. Se Gus tivesse telefonado, elas
teriam me contado de imediato, com a maior empolgação.
Na verdade, teriam ido até o meu quarto para me dar a
notícia, e teriam até me acordado para eu atender o
telefone.
Mesmo sabendo de tudo isso, eu me vi perguntando,
assim, como quem não quer nada:
— Alguém telefonou para mim enquanto eu estava
dormindo? Não consegui evitar. Perdido por um, perdido
por mil... Estava magoada, para que negar?
— Hã... não, ninguém — murmurou Karen, sem me
olhar de frente.
— Não — concordou Charlotte. — Ninguém ligou.
Eu sabia que a resposta ia ser aquela, então por que me
senti tão desapontada?
— Como está o seu tornozelo? — perguntei a Charlotte.
— Está legal — respondeu, parecendo envergonhada.
— Vou dar uma saída para comprar o jornal —
anunciei. — Quando voltar, vou ajudar vocês na limpeza.
Alguém quer alguma coisa da rua?
— Não, obrigada.
Eu nem queria comprar jornal. O problema é que água
em panela vigiada nunca ferve, e se eu fosse ficar em volta
do telefone, Gus jamais ligaria.
Por conta de experiências passadas, eu sabia que assim
que pusesse os pés fora de casa havia grandes chances de
ele me telefonar.
Ao voltar para casa, tornei a prender a respiração,
esperando que Karen ou Charlotte viessem correndo lá de
dentro e dissessem, quase sem fôlego, "adivinhe só! Gus
telefonou" ou "adivinhe só! Gus está aqui. Ele foi
seqüestrado ontem à noite e acabaram de libertá-lo há
poucos minutos".
Só que ninguém veio correndo lá de dentro quase sem
fôlego e nem me disse nada. Só me restou ir até a cozinha,
de cabeça baixa e o rabo entre as pernas. Elas me
entregaram um pano de prato.
— Alguém telefonou para mim? — eu me vi perguntando,
mais uma vez, desanimada.
Novamente, Karen e Charlotte balançaram a cabeça.
Fechei a boca, com ar lúgubre. Não vou perguntar de novo,
decidi. Eu estava me rasgando toda por dentro, de tanto
desapontamento, e as duas pareciam meio sem graça.
Segui o conselho de milhares de revistas femininas e
resolvi me manter ocupada. "Manter-se ocupada" parecia
ser a melhor solução para afastar homens fujões da
cabeça, e, para sorte minha, havia uma absurda
quantidade de coisas que precisavam ser lavadas, depois
dos excessos da noite anterior. No fundo, eu não
imaginava que era eu que ia ter de fazer tudo sozinha.
Tinha a esperança de receber uma dispensa, por caridade,
pois, já que Gus me abandonara, todo mundo ia ser mais
simpático e gentil comigo, Karen ia me oferecer um bônus
especial e acabaria me liberando das tarefas. Nem pensar.
Karen não perdeu tempo em me colocar no devido lugar:
— Mantenha-se ocupada — disse ela, com ar alegre,
enquanto me empurrava uma pilha de pratos sujos. —
Isso vai ajudar a manter a cabeça longe dele.
Ouvir aquilo me fez sentir ainda mais aborrecida. Eu
queria compaixão, queria as pessoas pisando em ovos ao
lidar comigo, queria ser tratada como uma convalescente
inválida. O que eu não queria era lavar pratos.
E tem mais: qualquer um que diga que "manter-se
ocupada" é a melhor solução para um coração partido está
enganado, porque eu me mantive extremamente ocupada
o dia todo e continuei pensando em Gus o tempo inteiro.
Como é que limpar restos de vômito do banheiro ia
conseguir fazer com que eu me sentisse melhor? Isso era
uma coisa que me intrigava. Eu apenas estava trocando
um tipo de desgraça por outra.
Passei o aspirador de pó no apartamento inteiro, lavei
todos os pratos e copos que não haviam quebrado.
Coloquei todos os cacos dos pratos e copos em um saco de
lixo e preguei um bilhetinho simpático, avisando aos
lixeiros para que carregassem o lixo com cuidado, a fim de
que não cortassem as mãos. Esvaziei montanhas de
cinzeiros. Cobri tigelas de comida intacta com filme
plástico transparente, coloquei tudo na geladeira, onde
elas ficariam tomando o precioso lugar dos iogurtes sem
gordura durante três semanas, até começarem a se cobrir
com uma penugem de mofo e alguém finalmente jogá-las
fora. Tentei raspar a cera de vela que caíra no tapete e não
consegui, e então empurrei um pouco o sofá para o lado,
para cobrir a mancha. E durante todo esse tempo eu
pensava em Gus, sem parar.
Meus nervos estavam em frangalhos. O telefone tocou o
dia inteiro, e todas as vezes eu dava um pulo, me retorcia
toda de nervoso e rezava freneticamente: "Por favor, meu
Deus, faça com que seja Gus!" Não tinha coragem de
atender nenhuma das vezes, porque podia ser Gus. Correr
para atender o telefone era o mesmo que reconhecer que
eu me importava com o telefonema dele, e isso seria
imperdoável. Karen ou Charlotte é que tinha de parar de
raspar o resto de comida grudado nas panelas (no caso de
Charlotte) ou deixar de dançar pela casa, espalhando
aromatizador de ambientes (no caso de Karen) só para
atender o telefone.
E, como era de esperar de uma mulher rejeitada, eu
insistia que elas esperassem o telefone tocar pelo menos
cinco vezes, antes de atender.
— Ainda não, ainda não! — implorava eu, todas as
vezes. — Deixe que ele toque um pouco mais. Não
podemos deixar que Gus fique achando que estamos
esperando, ansiosas, por sua ligação.
— Mas nós estamos! — exclamou Charlotte, sem
entender. — Pelo menos você está.
Não adiantou nada. Apenas um de todos aqueles
telefonemas foi para mim, e era (quem mais poderia ser?)
a minha mãe.
— Por que vocês demoraram tanto tempo para
atender? — reclamou ela quando Charlotte me passou o
fone, com a cara triste.
E, de repente, já era sábado à noite.
Sábado à noite sempre representara um papel de
destaque na minha vida. Era uma coisa que tinha a ver
com beleza, um ponto luminoso em um mundo escuro, só
que um sábado à noite vazio, um sábado à noite sem
Gus... Puxa, eu me senti chocada ao ver que estava quase
atemorizada com a chegada daquele momento.
Todos os sábados à noite no decorrer das últimas...
tinham sido só seis semanas?... eu havia tirado de letra,
porque estava com Gus. Às vezes saíamos, outras vezes
ficávamos em casa, mas qualquer coisa que fizéssemos
fazíamos juntos. E agora eu tinha a impressão de que
jamais tivera uma noite de sábado livre, em toda a minha
vida, de tão estranha que aquela sensação me parecia.
Era muita maldade. Parecia até que alguém havia me
atirado uma cobra para segurar, dizendo: "Divirta-se com
isso por algumas horas."
O que fazer com aquele tempo livre? E com quem eu ia
passá-lo? Todos os meus amigos já tinham companhia.
Charlotte estava com Simon, Karen estava com Daniel,
Daniel estava com Karen e, de qualquer modo, ele não era
mais meu amigo mesmo.
Eu bem que poderia ter chamado Dennis, mas aquela
era uma idéia ridícula. Afinal, era sábado à noite, ele é gay,
devia estar em casa, raspando a cabeça e esquentando os
motores para uma noite em busca de prazeres
desenfreados.
Charlotte e Simon me convidaram para ir ao cinema com
eles. Ela me explicou que um cineminha era tudo o que o
seu estômago conseguia suportar depois da bebedeira da
noite anterior, mas eu não quis ir com eles.
Não que estivesse com receio de ficar segurando vela,
porque eu não tinha problema algum em fazer isso. Afinal,
fora exatamente isso que eu fizera inúmeras vezes no
passado, e só as primeiras dez mil vezes é que são as mais
difíceis. A verdade é que eu estava com vergonha de contar
a eles que estava preocupada em sair de casa, para o caso
de Gus aparecer.
Como uma palerma, eu ainda tinha esperanças de saber
notícias dele. No fundo, o que eu estava esperando de
verdade era que, por volta de oito horas, ele chegasse com
um blazer emprestado grande demais, a gravata com um
nó todo torto, confessando achar que o jantar havia sido
marcado para sábado à noite, e não na sexta.
Era bem possível que isso acontecesse, disse a mim
mesma, desanimada.
Coisas como aquela aconteciam às vezes. Talvez
acontecesse comigo e eu fosse salva. Podia voltar da beira
do abismo às gargalhadas, porque não havia necessidade
de estar lá, para começo de conversa.
Karen e Daniel não me convidaram para ir com eles,
aonde quer que tivessem ido. De certo modo, eu não
esperava que fizessem isso mesmo. Para ser franca, nem
queria. Estava me sentindo tão pouco à vontade com
Daniel que mal nos falávamos. E ficava roxa de vergonha
quando me lembrava de ter pensado que ele ia me beijar
na noite anterior, quando na verdade ele estava apenas
querendo ser gentil, por Gus ter me dado o bolo. Como é
que eu pude pensar uma coisa daquelas?, perguntava a
mim mesma o tempo todo, sentindo-me humilhada. Pior
ainda, como é que pude achar que aquela era uma boa
idéia? O cara era o Daniel, afinal de contas. Era como
achar que beijar o meu pai na boca fosse uma boa idéia.
Eu, hein!
Todo mundo saiu e fiquei sozinha no apartamento em
uma linda noite de sábado em pleno mês de abril.
Em algum ponto entre a entrada e a saída de Gus da
minha vida, o inverno se transformara em primavera, mas
eu estava ocupada demais me divertindo e me
apaixonando para perceber esse fato.
Achava o sentimento de rejeição muito mais difícil de
agüentar quando as noites estavam bonitas.
Pelo menos quando o tempo estava ruim, eu podia
fechar as cortinas, acender a lareira, me encolher toda e
ficar bem aconchegada na minha solidão. O brilho da
primavera, porém, tornava tudo mais embaraçoso. Servia
apenas para realçar o fracasso que eu era, pois a minha
rejeição se tornava mais visível. Sentia-me como se eu
fosse a única pessoa no mundo que estivesse sozinha em
um sábado à noite.
O inverno era uma estação muito melhor para nos
sentirmos abandonadas. Era muito mais discreto.
Depois que deu oito horas e Gus não apareceu, desci
mais um dos degraus da infelicidade. Por que será que eu
não conseguia despencar logo pela escada abaixo de uma
vez, para acabar com a agonia? Eu compreendia muito
bem a sabedoria de arrancar o curativo de uma ferida com
um puxão rápido e elaborado, que enchia os olhos de
lágrimas, mas doía tudo de uma vez só. Quando se tratava
de assuntos sentimentais, porém, gostava de remover
camada por camada, em dolorosa lentidão.
Resolvi sair para alugar um filme. E comprar uma
garrafa de vinho, porque eu não ia passar a noite ali
sozinha sem nada para beber, de jeito nenhum!
— Gus não vai telefonar mesmo... Gus vai estar ocupado
com Mandy — repetia, brincando de "eu não ligo mesmo"
com os deuses. Quando fazemos esse jogo com vontade e
conseguimos convencer os deuses de que não estamos
querendo aquilo que estamos doidos para ter, então,
geralmente, conseguimos.
Na locadora, Adrian fez a maior festa ao me ver, como se
eu fosse uma espécie de irmã sumida.
— Lucy! Por onde tem andado? — rugiu ele, do fundo da
loja. — Não vejo você há séculos. Séculos!
— Oi, Adrian — fiz mímica das palavras com os lábios,
esperando que ele baixasse o tom de voz para seguir o
meu bom exemplo.
— Então, a que devemos o prazer desta visita? — berrou
ainda mais alto. — Você... sozinha em um sábado à noite?
Seu namorado deve ter dispensado você!
Dei um sorriso meio forçado e agarrei a capa do filme
Cães de Aluguel.
Quando Adrian se virou de costas para pegar o filme,
observei-o com toda a atenção. Eu devia isso a mim
mesma, me convenci. Agora que estava novamente solteira,
tinha de manter os olhos bem atentos para o marido em
potencial que a Sra. Nolan previra em meu futuro. Até que
ele não era mau, pensei, meio desanimada. Adrian tinha
uma bundinha interessante, não havia nada de errado
nela, a não ser o fato de que não era a bunda de Gus.
Tinha um sorriso legal também, só que não era o sorriso
de Gus.
Tudo aquilo era uma total perda de tempo. Minha
cabeça estava cheia de imagens de Gus, e não conseguia
olhar para nenhum outro homem.
Enfim, não acreditava, para ser franca, que tudo o que
tinha com Gus estava acabado... era cedo demais. Eu
precisava levar uma surra de provas na cabeça, tinha de
ser nocauteada com evidências, antes de conseguir
acreditar. Desistir das coisas acontece facilmente comigo.
"Deixar pra lá" não era um dos meus pontos fortes.
Por um lado, eu tinha a certeza de que nunca mais
tornaria a ver Gus, mas, por outro lado, não conseguia
deixar de ter esperança de que houvesse uma explicação
para tudo aquilo, e não importava que ela fosse absurda,
pois nós iríamos continuar juntos.
Saí da locadora e entrei na loja de bebidas. Havia um
monte de gente jovem e feliz por lá, comprando garrafas de
vinho, latas de cerveja e montes de maços de cigarros.
Subitamente me senti atingida novamente pela velha
impressão de que a vida era uma festa para a qual eu não
havia sido convidada. O sentimento de fazer parte de algo
fizera uma rápida participação especial no filme da minha
vida, durante o tempo em que eu estava com Gus. Agora,
porém, me voltava a velha sensação de que eu era um
fantasma rondando o banquete da vida.
Ao voltar, andando bem devagar, para o apartamento,
fui invadida de repente por uma sensação de pânico,
convencida de que Gus estava me telefonando naquele
exato momento.
Corri feito uma desesperada pela rua e entrei voando em
casa, me atirando, ofegante, para ver se a luzinha
vermelha da secretária estava piscando, mas não estava. A
luzinha ficou ali me olhando, me olhando e me olhando,
mas não acendeu nem uma só vez.
Levou uma eternidade para o dia claro entardecer
lentamente em direção ao breu total, demorou muito para
as outras pessoas voltarem para casa depois de seus
programas e todos irem dormir, de forma que a distância
entre nós, eu e o resto do planeta, se estreitasse e eu
conseguisse parar de me sentir como a única no mundo...
Enchi a cara e mais uma vez liguei para o número que
Gus me dera. Ninguém atendeu... que sorte! Embora,
naquele momento, eu não me sentisse nem um pouco com
sorte. Estava apenas furiosa, afogada em frustração e
solidão. Desejava apenas falar com ele. Se ao menos
conseguisse falar com Gus, saberia que ele faria com que
tudo ficasse bem.
Cheguei até mesmo a pensar, em meu estado de
embriaguez, em pegar um táxi até Camden e dar umas
voltas por lá a pé, para ver se conseguia encontrá-lo, ou
então ficar circulando pelos pubs aos quais ele me levara.
Felizmente, algo me impediu de fazer isso, talvez o terror
da idéia de dar de cara com ele e vê-lo acompanhado pela
misteriosa Mandy. Um pouquinho de sanidade penetrou
na armadura da minha obsessão.
Acordei na quietude de domingo de manhã. Já sabia,
antes mesmo de sair da cama, que eu era a única pessoa
no apartamento, e que Karen e Charlotte não haviam
voltado para casa na noite anterior. Eram apenas sete da
manhã, eu estava completamente acordada e totalmente
sozinha.
Como é que eu ia conseguir encher a minha cabeça para
manter o sentimento de solidão longe de mim? Como ia
conseguir me impedir de ficar louca pensando em Gus?
Podia ler alguma coisa, mas não estava com vontade,
não havia nada que eu quisesse ler.
Podia assistir à tevê, mas sabia que não conseguiria me
concentrar. Podia sair e dar uma corrida, talvez até aju-
dsse a acabar com um pouco daquela terrível ansiedade,
mas eu mal conseguia sair da cama. Estava com a cabeça
zumbindo de tanta adrenalina, mas não conseguia me
levantar da cama. Podia ligar para os Samaritanos, serviço
de aconselhamento por via telefônica, mas ia parecer uma
coisa tão tola! Imagine só dizer: "Meu namorado me
abandonou, e eu achava que íamos acabar nos casando!"
quando havia tanta gente de verdade ligando para eles
com problemas reais!
Não foi só Gus que me largou. Os sonhos de me casar
com ele também tinham ido todos para a cucuia. Livrar-
me da fantasia estava sendo quase tão difícil quanto me
livrar do namorado.
Claro que a culpa era toda minha. Jamais deveria ter
levado as previsões da Sra. Nolan tão a sério. Logo eu, a
primeira a censurar Meredia e Megan por elas acreditarem
na taróloga. Assim que as duas viraram as costas, entrei
na mesma onda.
Em vez de tratar aquilo como um caso sem
conseqüências, eu começara a achar que Gus era o
homem certo para mim, e que estávamos destinados a
ficar juntos para sempre.
Não, na verdade não foi culpa minha, de certa forma,
tentei me convencer. A Sra. Nolan pressentira a minha
insegurança e solidão, e simplesmente me disse o que eu
queria ouvir. E, embora eu não me ligasse muito no
casório em si, isto é, na história do vestido branco, nas
brigas com a minha mãe, na salada de presunto e tudo o
mais, estava muito interessada na promessa de uma alma
gêmea.
É, acho que eu tinha só a mim mesma para culpar, por
acreditar em tamanha baboseira.
Fiquei deitada na cama, de barriga para cima, com a
cabeça girando, me culpando, depois me absolvendo,
tornando a me culpar, prestando atenção para ver se o
telefone tocava, sentindo-me tomada por um ciúme
assassino da desconhecida Mandy, esperando que ela
fosse apenas uma amiga, achando que Gus ainda me
ligaria a qualquer momento, dizendo a mim mesma para
deixar de ser idiota, depois achando que não, talvez ele
ligasse mesmo, afinal, para depois tornar a me xingar por
ser masoquista e em seguida protestar, argumentando que
eu era simplesmente romântica, e assim por diante.
Tinha a certeza de que o rebote da sensação de vazio que
acontecia aos domingos de manhã jamais fora tão bravo.
Imensas bolas de capim seco passeavam para cima e para
baixo nas ruas desertas e empoeiradas da cidade
fantasma em que se transformara a minha psique.
Como é que eu lidava com aquilo antes de conhecer o
Gus?, fiquei me perguntando. Como conseguira preencher
aquele espaço vazio? Eu nem me lembrava de jamais ter
sentido aquele vácuo antes, mas deve ter acontecido, e eu
conseguira atravessar inúmeros domingos, um após o
outro, sem o Gus.
Então compreendi o que acontecera. Ele chegara,
preenchera aquele espaço e, ao sair, levara mais do que
trouxera. Gus conseguira entrar no meu coração, com
todo aquele charme, fez com que eu confiasse nele e,
quando eu estava distraída, roubou todos os meus móveis
e utensílios emocionais, deixando minha sala de estar
interior completamente pelada. O pior é que
provavelmente ele levara tudo para um pub em Camden e
vendera o lote todo por uma ninharia, bem abaixo do valor
de mercado.
Tinha sido ludibriada, e não era a primeira vez.
O domingo levou uma eternidade para passar. Charlotte
e Karen não voltaram para casa. O telefone não tocou nem
uma só vez. Quando deu nove horas da noite, devolvi o
filme, aluguei outro e comprei uma garrafa de vinho.
Entornei o vinho todo, fiquei bêbada e fui dormir.
E então já era segunda de manhã. O fim de semana
acabara e Gus não havia me telefonado.










CAPÍTULO 42
A pessoa que ia ficar no lugar de Hetty começou a
trabalhar conosco naquela manhã.
Já fazia seis semanas desde que Hetty fora embora, um
período longo demais para três pessoas que passavam o
tempo tentando desempenhar o trabalho de uma.
Ivor pedira ao Departamento de Pessoal que segurasse o
contrato dela por umas duas semanas, antes de colocarem
um anúncio à procura de uma nova funcionária. O pobre
tolo ainda mantinha a esperança de que Hetty pudesse
voltar para os seus braços curtos, gorduchos, rosados e
sardentos.
Só que ela agora estava morando em Edimburgo, com o
cunhado, e muito feliz, pelo que contavam. Sendo assim,
ele finalmente aceitara o fato.
Nosso novo colega aconteceu de ser um rapaz. Não foi
assim um puro golpe de sorte, como, à primeira vista,
pode parecer. Ah, claro que não!
Meredia tinha mexido os pauzinhos para que a coisa
acontecesse daquela maneira.
E eu só soube disso porque a peguei bem no flagra, no
dia em que estava maquinando tudo.
Umas duas segundas-feiras antes daquela, devido a
uma série de acontecimentos infelizes — o metrô estava
chegando à estação no momento em que pisei na
plataforma, o trem da conexão já estava literalmente
esperando por mim etc. etc. —, eu chegara cedo no
trabalho.
E Meredia já estava no escritório antes de mim. Aquilo
era muito irregular, um espanto total, mas o mais
surpreendente é que ela já estava trabalhando,
organizando, toda agitada, uma pilha de formulários,
separando alguns e colocando outros numa retalhadora de
papéis.
— Bom-dia! — disse eu.
— Cale a boca que estou ocupada — resmungou ela.
— Meredia, o que está fazendo?
— Nada — respondeu ela, sem parar de enfiar
documentos na retalhadora.
Fiquei intrigada com aquilo, porque era óbvio que ela
estava armando alguma. É claro que Meredia não ia estar
ali trabalhando, às quinze para as nove da manhã de uma
segunda-feira, fazendo alguma coisa relacionada com
trabalho de verdade.
Dei uma olhada mais de perto na pilha de papéis que
estavam sobre a sua mesa.
Eram formulários de emprego.
— Meredia, de quem são estes formulários, e onde você
os conseguiu?
— São os requerimentos de emprego para preencher a
vaga de Hetty. O Departamento de Pessoal os mandou
aqui para baixo para o Simmonds Fedorento dar uma
olhada.
— Mas por que razão você os está destruindo? Não quer
uma pessoa nova para trabalhar aqui conosco?
— Não estou me livrando de todos, só de alguns.
— Ah, entendi — disse eu, sem entender.
— Só estou me livrando das mulheres casadas —
continuou ela.
— E eu poderia saber o porquê disso?
— Por que razão elas deveriam ter um marido e um
emprego? — perguntou Meredia, com um jeito amargo.
— Você está brincando? — perguntei, com a voz fraca. —
Está tentando me dizer que você está destruindo todos os
formulários de emprego das mulheres que são casadas só
porque elas são casadas?
— Sim — disse ela, com ar sombrio. — Estou
simplesmente equilibrando a sorte do mundo. Não dá para
confiar só no carma para fazer isso. Quando queremos que
algo seja bem feito, temos que fazer pessoalmente.
— Mas, Meredia — protestei —, só pelo fato de elas
serem casadas não significa que sejam felizes. Elas podem
ser casadas com homens que as espancam, têm casos na
rua ou são um porre de aturar. E também podem ser
viúvas, separadas ou divorciadas.
— Isso não me interessa — fungou Meredia. — Elas,
pelo menos, tiveram o seu grande dia, ouviram a marcha
nupcial enquanto caminhavam pela igreja cheia, usando
vestidos lindos.
— Mas se você não quer que elas sejam felizes, a melhor
coisa a fazer é torcer para uma delas conseguir este
emprego. Olhe só como somos infelizes.
— Não tente me enrolar, Lucy — disse ela, analisando
outra proposta. — O que acha desta aqui, uma tal de L.
Rogers? Ela não colocou sra. nem srta. no formulário.
Casada ou solteira?
— Sei lá. Acho que é para a gente não saber mesmo. Foi
por isso que ela não colocou sra. nem srta.
— Solteira, aposto — continuou Meredia, me ignorando
por completo. — Se ela não colocou sra. nem srta. foi para
esconder o fato de que está sem homem. Tudo bem, ela
pode ficar para a entrevista.
— Olhe só, analise por outro ângulo — sugeri. — Se
arrumarmos mais uma mulher solteira para trabalhar
conosco, o que acontece? Você não acha que isso ainda vai
aumentar a competição pelos poucos homens disponíveis
por aqui?
Eu dissera aquilo só por brincadeira, mas um espasmo
de horror fez o rosto de Meredia vibrar.
— Meu Deus, você tem razão! — reagiu ela. — Eu não
tinha pensado nisso.
— Na verdade — sugeri, sentindo uma vontade
repentina de fazer uma grande travessura —, era melhor
se livrar logo de todos os formulários preenchidos por
mulheres e deixar só as propostas enviadas por homens.
Meredia gostou muito da idéia.
— Brilhante! — exclamou ela, me abraçando. —
Brilhante, brilhante, brilhante!
Fiquei satisfeita. Qualquer tipo de comportamento
subversivo no local de trabalho servia para amenizar o
tédio.
Diante disso, corremos para olhar uma por uma as
propostas, em um ritmo frenético, para dar tempo de
arrancar todas as mulheres da pilha antes de Ivor chegar.
Mas a depuração não parou por aí, porque o poder de
decidir sobre a vida e a morte de todas aquelas pessoas
subiu à cabeça de Meredia.
— Já que estamos fazendo isso, por que vamos ter que
aturar algum coroa rabugento por aqui? — perguntou ela.
E passou a destruir todos os homens acima de trinta e
cinco.
A pilha, originalmente imensa, foi diminuindo pouco a
pouco, e Meredia fez com que ela encolhesse ainda mais
ao começar a analisar a lista de hobbies e interesses
pessoais dos que restaram.
— Humm... este aqui gosta de jardinagem. Bye-bye!... —
cantarolou ela, atirando-o para o monte dos rejeitados.
— E este aqui faz parte do corpo de voluntários do
Exército! — explicou, atirando outro longe. Quando
acabou o massacre, haviam sobrado apenas quatro.
Quatro homens, todos com idades entre vinte e um e
vinte e sete, que afirmaram que seus hobbies eram "ir a
festas", "malhar na academia", "participar de reuniões
sociais", "viajar nas férias" e "beber".
Eu tinha de reconhecer que todos pareciam muito
promissores.
Se naquele dia eu ainda não estivesse vivendo no
paraíso dos otários, ao lado de Gus e achando que tudo no
mundo era maravilhosamente lindo, teria ficado ainda
mais empolgada.
Todos quatro vieram para fazer entrevista no decorrer
daquela semana. A cada um que chegava, Meredia e eu
íamos fazer hora na recepção para dar uma boa olhada no
candidato, antes que ele fosse conduzido dali para o
Departamento de Pessoal, a fim de que Blandina pudesse
perguntar-lhes onde imaginavam que estariam dali a cinco
anos ("Pendurado numa forca, se ainda estiver
trabalhando aqui", seria a resposta certa, embora nenhum
deles soubesse desse fato. Não perdiam por esperar: assim
que conseguissem o emprego, iam descobrir isso
rapidinho).
Dávamos notas de um a dez para beleza de rosto,
formato da bunda, tamanho da mala dianteira etc. Não, é
claro, que Meredia, Megan e eu tivéssemos algum tipo de
voz ativa a respeito do resultado final.
Mas isso não nos impedia de ficar discutindo as
particularidades dos candidatos com grande interesse.
— Eu gostei do número dois — disse Megan. — O que
achou dele, Louise?
— Meu nome é Meredia! — reagiu ela, com ferocidade. —
E, para mim, o número três foi o mais gatinho até agora.
— Também gostei do dois — disse. — Ele me pareceu
muito legal.
Megan gostou da descrição do número quatro, aquele
que colocara "malhação" como um dos hobbies, mas,
quando chegou para a entrevista, ficamos arrasadas ao
ver que era um homossexual terminal. Evidentemente não
foi o escolhido, porque Ivor era homofóbico ao extremo.
Quando veio até a nossa sala, depois de entrevistar o
rapaz, contou um monte de piadinhas na linha de "se
houvesse uma moeda de cinqüenta centavos no chão perto
dele, eu é que não ia me abaixar para pegá-la" e "traseiros
colados na parede, hein?", e caía na gargalhada.
— Agora, sério, garotas — continuou ele. — Não daria
certo termos um gay trabalhando aqui.
— Ué, por que não? — perguntei.
Ivor fez cara de envergonhado e explicou:
— Imaginem se ele... hã... começasse a gostar... de mim.
— De você? — explodi.
— Sim, isso mesmo. De mim — confirmou Ivor,
ajeitando o pouco cabelo que sobrara em sua cabeça.
— Mas ele não me pareceu mentalmente retardado —
expliquei, provocando risos em Megan e Meredia.
Ivor apertou os olhos enquanto olhava para mim, mas
eu nem liguei. Estava furioso.
— O que quer dizer com isso, senhorita Sullivan? —
perguntou ele, com frieza.
— Quero dizer que só pelo fato de ele ser gay e você ser
homem, não significa, necessariamente, que ele vai se
interessar por você.
Que cara-de-pau a dele achar que alguém, homem,
mulher, criança ou animal doméstico pudesse achá-lo
atraente.
— Mas é claro que ele poderia se interessar por mim —
murmurou Ivor. — Você sabe como essa gente é. São uns
promíscuos!
Houve um coro de protestos, vindos de Meredia, Megan e
de mim: "Como ousa falar assim?" e "Seu fascista!" e
"Como é que você sabe que eles são todos assim, hein?".
— E se ele já tiver um namorado? — insistiu Megan. —
E se ele já estiver apaixonado por alguém?
Deixem de ser ridículas — gaguejou Ivor. — E chega
desse assunto, podem calar a boca todas vocês, porque
nós não vamos contratá-lo e pronto. Ele que procure outro
emprego por aí, como cabeleireiro ou garçom em um
daqueles restaurantes de comida afrescalhada. Ele vai se
dar muito melhor trabalhando em um lugar desses.
Entrou em sua sala, bateu a porta e deixou nós três
fumegando de raiva.
O número dois, o simpático e sorridente rapaz de vinte e
sete anos, tirou o palito mais curto. Ofereceram-lhe o
cargo, e ele próprio completou a desgraça aceitando o
emprego.
Seu nome era Jed e, embora não fosse o mais bonito do
lote, eu tinha um bom pressentimento a seu respeito. Ele
nunca parava de sorrir, seus dentes eram lindos, brancos
e imensos. Os cantos de sua boca desapareciam por trás
das orelhas, e seus olhos se afilavam tanto que nem se via
mais. Seria interessante descobrir em quanto tempo o
emprego ia arrancar aquele sorriso da cara dele.
O Sr. Simmonds estava muito empolgado:
— Vai ser ótimo ter outro homem trabalhando por
aqui — vivia repetindo enquanto esfregava as mãos de
contentamento e imaginava almoços regados a cerveja e
papos masculinos a respeito de carros, além de ser capaz
de olhar para cima e falar, com ar de deboche, "mulheres!",
sabendo que receberia um sorriso cúmplice de volta.
Jed começou a trabalhar na segunda-feira que se seguiu
ao fim de semana do sumiço de Gus.
Eu me surpreendi com a minha resistência naquela
manhã. Consegui me levantar, tomei banho, me vesti, fui
para o trabalho, continuava a pensar sobre o que poderia
ter dado errado com Gus, mas não me sentia assim tão
mal, embora parecesse uma morta-viva.
Megan já estava no escritório antes de mim. Acabara de
chegar de um fim de semana na Escócia. Parecia uma
australiana falando da viagem — "Por que ir de avião se
podemos passar doze horas em um ônibus caindo aos
pedaços e economizar cinco libras?". Conhecera dez
cidades em menos de quarenta e oito horas, fizera
algumas escaladas, conhecera uns conterrâneos, tomara o
maior porre em um pub em Glasgow com eles, dormira no
chão no albergue em que eles estavam e ainda encontrara
tempo para mandar cartões-postais para todo mundo que
já conhecera na vida. Não pregava o olho desde a véspera
e, mesmo assim, continuava linda e com todo o fogo.
Chegou até a nos trazer um presente, uma barra de
caramelo escocês, daquele tipo famoso, que é mais duro
do que diamante e gruda os dentes de cima nos de baixo,
deixando a pessoa sem poder falar.
Meredia chegou logo depois. Entrou em cena usando
sua melhor cortina, em honra do novo colega, e pulou
sobre o caramelo, rasgando com avidez o celofane. Caímos
todas de boca nele.
Foi quando Jed chegou. Parecia um pouco tímido e
nervoso, mas continuava com o sorriso todo de fora, como
um idiota. Estava de terno e gravata, mas logo, logo a
gente ia dar um jeito para ele sair dessa.
Ivor Veneno chegou todo agitado, pisando firme e
fazendo a cena do "homem de negócios cheio de coisas
importantes para resolver". Falou muito alto, trocou
tapinhas e fez contatos físicos tipicamente masculinos
com Jed, jogou a cabeça para trás diversas vezes, soltando
poderosas gargalhadas. Copiara aquilo dos chefões lá de
cima. Adorava fazer tudo igual sempre que tinha chance.
— Jed! — ladrou ele, esticando a mão com força e
apertando a de Jed. — Que bom revê-lo! Fico feliz que
tenha conseguido o lugar. Desculpe não estar aqui para
recebê-lo, acabei preso lá em cima resolvendo alguns
problemas, sabe como é... Espero que estas meninas, um
bando de maus elementos... rá-rá-rá!..., estejam tomando
conta direitinho de você... rá-rá-rá! Envolveu o ombro de
Jed com o braço, de forma paternal, e foi levando-o
através da sala, até chegar diante da minha mesa. —
Caras damas...rá-rá-rá!...eu gostaria que vocês
conhecessem a mais nova aquisição da nossa equipe... rá-
rá-rá! Este é o Sr. Davis.
— Apenas Jed, por favor — murmurou ele.
Um silêncio sepulcral se seguiu. Nenhuma de nós podia
falar. Nossos queixos estavam totalmente grudados por
causa do caramelo. Mesmo assim, sorrimos muito e
balançamos a cabeça de modo entusiasmado. Acho que o
fizemos sentir bem-vindo.
Ivor resolveu que ia desempenhar o papel de Svengali *
na vida de Jed.
Estava adorando ter alguém a quem pudesse
impressionar, e exibia isso sem pudor. No fundo, sabia
que as mulheres não tinham um pingo de respeito por ele.
Ficou falando sem parar da importância do nosso setor
na estrutura da empresa e citou as oportunidades que Jed
teria para subir na carreira, "se trabalhasse duro". Lançou
um olhar de reprovação para todas nós ao dizer isso. "Um
dia, quem sabe, você pode até chegar ao nível em que
estou."
Encerrou a ladainha, anunciando:
— Bem, não posso ficar aqui de papo o dia todo, sou um
homem muito ocupado. — Exibiu um ar tristonho do tipo
"eu trabalho tanto...", deu um sorriso do tipo "nós homens
nos entendemos" e entrou em sua sala, com ar de
importância.
Houve um momento de silêncio. Todos ficaram sorrindo
sem graça uns para os outros.
Então Jed falou, olhando para a porta que se
fechara:
— Que sujeito babaca.
Ai, que alívio! Jed era um de nós! Megan, Meredia e eu
trocamos olhares orgulhosos e alegres. Ele prometia. E
olhem que só estava no escritório há dez minutos, hein?
Nós íamos conseguir moldá-lo de forma esmerada e
orientá-lo com cuidado até ele se tornar tão cínico e
sarcástico como, quem sabe, até mesmo Meredia.


















CAPÍTULO 43
Tentei com toda a determinação não pensar em Gus, e
funcionou. A não ser por uma sensação interna e
constante de mal-estar, quase não dava para sentir o
quanto eu estava infeliz. A impressão de ter engolido um
bloco de chumbo e estar sem energia para arrastar o peso
extra por toda parte era outra dica. Mas era só isso.
Não chorei nem nada desse tipo. Nem mesmo contei às
meninas no escritório. Eu não conseguia nem me dar ao
trabalho de fazer isso, porque estava desapontada demais.
Só quando o telefone tocava é que eu perdia ligeiramente
o controle. A Esperança Vingadora conseguia me dar uma
volta, fugia da caixa e ficava brincando de pular
amarelinha dentro da minha cabeça, pisando nas minhas
terminações nervosas.
Mas não conseguia fazer isso por muito tempo não. No
terceiro toque do telefone eu geralmente me atracava com
ela, colocava-a de volta na caixa e sentava em cima da
tampa.
O único telefonema digno de nota que recebi durante
toda aquela semana não era importante. Foi do meu irmão,
Peter.
Eu não fazia a menor idéia do motivo pelo qual ele
estava me ligando. Ele era meu irmão, e eu o amava, acho,
mas não era como se gostássemos tanto assim um do
outro.
— Esteve lá em casa recentemente, Lucy? — perguntou
ele.
— Estive, há algumas semanas — admiti, esperando que
a pergunta não fosse seguida por "bem, e você não acha
que já estava mais do que na hora de voltar lá não?...".
— Estou preocupado com a mãezinha — disse ele.
— Por quê? — perguntei. — E você tem que ficar
chamando a mamãe de "mãezinha"? Até parece o Al Jolson.
Quem?
— Você sabe... aquele cara que cantava "Percorreria um
milhão de quilômetros por um sorriso seu".
Silêncio do outro lado da linha.
— Eu às vezes me preocupo com você, Lucy, sério
mesmo. Mas olhe, escute só... a mãezinha anda meio
estranha, sabe?... Meio engraçada.
— Engraçada como? — suspirei, tentando parecer
interessada.
— Anda esquecendo as coisas.
— Talvez esteja com Alzheimer.
— Rá-rá! Você sempre faz piadinha com tudo, não é,
Lucy?
— Não estou brincando, Peter. Talvez ela esteja com
Alzheimer mesmo. Que tipo de coisas ela anda esquecendo?
— Bem, você sabe o quanto detesto champignons, não
sabe?
— Hã... você detesta?
— Sim! Você sabe que detesto. Todo mundo sabe que
detesto!
— Certo, está certo. Fique frio!
— Bem, o caso é que outro dia fui até lá, à noite, e ela
passou molho de champignons na minha torrada!
— E daí?
— Como "e daí..."? Isso não é o cúmulo? Foi o que eu
disse para ela. Falei "mãezinha, eu detesto champignons!",
e ela respondeu: "É?... Então devo estar confundindo você
com Christopher."
— Isso é muito grave, Pete! Fiquei chocada! — disse,
com um tom seco. — Vamos ter sorte se ela chegar ao fim
do mês com vida.
— Ah, vocês são todos iguais!
— Ah, vocês são todos iguais! — reagiu ele, parecendo
magoado. — Mas tem mais!
— Então conte.
— Ela fez um negócio estranho no cabelo.
— Seja o que for, deve ter melhorado.
— Não, Lucy, é sério! Ele está todo ondulado e louro, ela
nem se parece mais com a mãezinha!
— Ah! Agora, tudo está começando a fazer sentido —
disse eu, com ar solene. — Não há motivo para
preocupações, Peter, eu já sei exatamente o que está
acontecendo.
— É?... O quê?
— Ela arrumou um namorado novo, seu bobo!
O pobre do Peter ficou muito aborrecido ao ouvir aquilo.
Ele achava que a nossa mãe era assim uma espécie de
Virgem Maria, só que mais casta e santa. Pelo menos
consegui me livrar dele na mesma hora, e esperava que ele
não me ligasse mais para me torrar a paciência com
telefonemas ridículos como aquele. Só Deus sabe o quanto
eu tinha coisas mais importantes na cabeça para resolver.
CAPÍTULO 44
Megan e as amigas que moravam com ela iam dar uma
festa no sábado à noite.
Ela dividia uma casa de três quartos com outras vinte e
oito pessoas australianas, todas trabalhando em horários
diferentes, de modo que havia camas suficientes para cada
uma delas dormir, cada uma em um horário diferente.
Acho que as camas eram utilizadas em um sistema tipo
time-sharing, vinte e quatro horas por dia.
Parece que Megan dividia uma cama de solteiro com
Donnie, um sujeito que consertava telhados, e um
segurança de boate chamado Shane, e jamais se
encontrava com nenhum dos dois. Na verdade, pelo jeito
que ela falava, acho que eles jamais haviam se conhecido.
Ela jurou que haveria milhares de homens solteiros na
festa (na quinta-feira acabei abrindo o jogo, meio sem
graça, e contei tudo a Megan e a Meredia sobre o
desaparecimento de Gus).
No sábado, eu estava me sentindo o cocô do cavalo do
bandido. Sem Gus, nem promessa de casamento iminente,
minha vida ficara completamente vazia.
Não havia equipamentos extras, nem acessórios
humanos, nem planos de um futuro suave, nem magia
arrebatadora, nada que me levantasse o astral. Eu, ali
sozinha, me sentia desbotada, desenxabida, com os pés
totalmente no chão e sem adereços. Estava tão sem sal
que até eu perdera o interesse por mim mesma.
Não estava a fim de ir à festa porque ficaria me
divertindo muito mais ali sozinha, sentindo pena de mim
mesma, mas era obrigada a ir, porque combinara de me
encontrar com Jed para levá-lo até lá. Não podia deixá-lo
na mão, porque ele não conhecia mais ninguém na festa.
Meredia não ia estar lá (apareceu outro compromisso),
mas isso até que veio bem a calhar, porque a casa era
pequena.
Megan ia à festa, é claro, porque morava lá, mas
acontece que ela era a anfitriã, e ia estar muito ocupada
separando brigas e participando de competições de
levantamento de copo para ficar paparicando Jed.
Jed e eu nos encontramos na estação do metrô em Earls
Court, ou Pequena Sidney, como eu costumava chamar.
Tomar uns drinques depois do trabalho com o pessoal
do escritório é uma coisa, mas sempre tive muito cuidado
para não deixar que os drinques se estendessem pelo meu
fim de semana adentro.
Só que com Jed era diferente. Ele era maravilhoso,
excepcional*. No final da primeira semana ele já inventara
um apelido para o Senhor Simmonds: "Senhor Sémens".
Além disso, já chegara atrasado uma vez, ligara para uma
amiga em Madri duas vezes e conseguira enfiar uma barra
inteira de chocolate na boca de uma vez só! Era muito
mais divertido do que Hetty jamais fora. Acho que Ivor já
estava começando a se sentir tão decepcionado e traído
por Jed quanto fora por Hetty.
Como Megan prometera, a festa estava entulhada de
homens, todos imensos, bêbados, ruidosos e provando a
todos que eram do outro lado do planeta. Eu me senti em
uma floresta. Jed e eu nos separamos logo no início da
festa, e não nos vimos mais pelo resto da noite. É que ele
era muito baixo para ser localizado no meio dos outros.
Os gigantes tinham nomes como Kevin 0'Leary e Kevin
McAllister e recordavam aos berros sobre a vez em que
ficaram de porre e desceram um rio violento de caiaque,
no Zâmbia. Ou a vez em que ficaram de porre e saltaram
de pára-quedas em Johanesbur-go. Ou quando ficaram de
porre e fizeram bungee jumping pulando do alto de umas
ruínas astecas na Cidade do México.
Eles pareciam muito estranhos para mim, eram de um
tipo de homem completamente diferente daqueles aos
quais eu estava acostumada. Eram grandes demais,
bronzeados demais, entusiasmados demais.
O pior de tudo é que vestiam os mais esquisitos jeans
que eu já vi. Eram calças feitas de brim azul, certamente,
mas a semelhança acabava aqui. Eram jeans, mas não da
forma que conhecemos. Não identifiquei nenhuma marca
famosa, e acho que Jed era o único homem na festa que
usava calça com braguilha de botões, pois todos os outros
usavam zíper. Uma das calças dos caras tinha um
papagaio bordado no bolso de trás, outra exibia um corte
no tecido, costurado com barbante, e que descia até o
meio das pernas, formando uma espécie de dobra
embutida. Outro sujeito tinha bolsos enfileirados, um
embaixo do outro, em toda a lateral das pernas. E outro
ainda vestia uma calça totalmente feita de pequenos
retalhos de brim. Eram todas horríveis. No meio, havia até
umas duas calças jeans muito desbotadas, mas bem
comuns, só que ninguém parecia se importar.
Sempre achei que não ligava para a forma como um
homem se vestia, que não fazia diferença se ele
simplesmente jogasse alguma coisa velha em cima do
corpo, só que naquela noite descobri que ligava sim, e
muito! Claro que eu gostava de homens que se vestissem
assim, tipo "dane-se o visual", de forma bem casual, só
que tinha de ser um tipo muito específico de "dane-se o
visual".
Todos eles tentaram chegar em mim. Alguns deles
tentaram duas ou três vezes, usando as mesmas frases.
— Tá a fim de uma trepada, gata?
— Não, obrigada.
— Bem, e você se importa de ficar ali, só deitada, bem
quietinha, enquanto eu faço o resto?
Ou então as cantadas eram:
— Você dorme de bruços?
— Não.
— Então se importa se eu deitar de bruços por cima de
você? Depois de ter sido abordada umas cinco vezes pelo
mesmo cara,
pedi:
— Kevin, me pergunte como é que eu gosto de acordar.
— Lucy, gata, como é que você gosta de acordar?
— Sem ter sido tocada por ninguém a noite toda! —
berrei. — Agora, cai fora!
Eles eram impossíveis de ofender.
— Tudo bem! — E se afastavam — Sem trauma! —
Simplesmente chegavam na primeira mulher que surgisse
em seu campo de visão e lançavam as mesmas propostas
charmosas. Mais ou menos à uma e meia da manhã eu já
tinha bebido quatro milhões de latas de cerveja
australiana e continuava completamente sóbria. Não
consegui enxergar nem um homem atraente sequer, e
sabia que as coisas só podiam piorar. Se eu ficasse por ali
ia ser uma perda total de tempo. Resolvi sair fora antes de
ficar alta.
Ninguém notou que eu tinha ido embora.
Fiquei parada sozinha na rua, à procura de um táxi, e
me perguntando em desespero: será que é só isso? Será
que isso é tudo o que posso esperar da vida? Aquilo era
tudo que eu podia esperar da vida de solteira em Londres?
Mais um sábado à noite e nada que prestasse.
Meu apartamento estava quieto quando entrei. Comecei
a me sentir tão deprimida que vagamente contemplei a
idéia de suicídio, mas não consegui entusiasmo bastante
para isso. Talvez amanhã de manhã, prometi a mim
mesma. Talvez eu consiga me matar quando estiver mais
animadinha.
— Você é um tremendo canalha, Gus! — Foi meu último
pensamento antes de apagar. — Isso tudo é culpa sua!














CAPÍTULO 45
Duas semanas haviam passado e Gus ainda não ligara.
Todas as manhãs eu achava que estava começando a
aceitar aquilo, e todas as noites, ao me deitar, descobria
que passara o dia todo prendendo a respiração, ansiosa
com a expectativa de saber notícias dele.
Descobri também que eu me tornara um embaraço.
Ao me permitir ser descartada por Gus, eu
desequilibrara o delicado balanceamento triplo que existia
entre mim e as amigas com quem dividia o apartamento.
Quando nós três estávamos namorando, as coisas corriam
bem. Se um dos casais queria a sala de visitas só para eles,
por qualquer motivo, tudo o que os outros casais tinham a
fazer era ir para seus respectivos quartos e ficar lá,
criando a própria diversão.
Agora que eu estava sozinha, no entanto, o casal que
desejasse ficar a sós na sala ia se sentir culpado por me
banir para um lugar com a escassez de recursos
sensoriais do meu quarto, e no final iam acabar se
sentindo aborrecidos com a minha presença, porque se
sentir aborrecido é muito mais gratificante do que se
sentir culpado. Ter sido largada por Gus era visto como
culpa minha, resultado de descuido e comportamento
relaxado com o relacionamento.
Charlotte resolveu que já era hora de arrumar um novo
namorado para mim. Tinha um desejo meio infantil de
ajudar e um outro desejo, não tão infantil, de me fazer sair
de casa de vez em quando, para que ela e Simon
pudessem brincar de médico e enfermeira, ou seja lá o que
for que eles brincavam.
— Você devia esquecer o Gus e tentar procurar outra
pessoa — disse ela para me encorajar, em uma noite em
que estávamos apenas nós duas em casa.
— Vou dar um tempo — respondi.
Claro que era ela que deveria estar dizendo aquilo para
mim, e não o contrário, pensei, confusa.
— Mas você não vai conhecer ninguém se ficar
enfurnada aqui dentro de casa! — exclamou ela.
E, é claro, ela jamais ia conseguir transar com o Simon
no chão da sala, também, se eu estivesse sempre em casa.
Só que foi gentil o bastante para não dizer isso.
— Mas, Charlotte, eu sempre saio — argumentei. — Fui
a uma festa no sábado passado, por exemplo.
— Podíamos colocar um anúncio nos classificados para
você — sugeriu Charlotte.
— Que tipo de anúncio?
— Um anúncio na sessão de mensagens pessoais.
— Não! — Fiquei horrorizada pela idéia. — Posso estar
assim meio mal, tudo bem, estou mal mesmo, mas espero
jamais me rebaixar tão fundo.
— Não, Lucy — protestou Charlotte. — Você faz uma
idéia totalmente errada disso. Um monte de gente age
assim. Um monte de gente normal conhece seu par
através das páginas dos corações solitários dos jornais.
— Você deve ter pirado — disse eu, com firmeza. — Não
vou penetrar naquele mundo estranho de bares só para
solteiros, lavanderias automáticas só para pessoas que
moram sozinhas, homens que se descrevem ao telefone
como tendo a cara de Keanu Reeves e, quando aparecem,
estão mais para Van Morrison, só que sem o bom gosto
para as roupas; homens que se dizem em busca de um
parceiro no amor quando o que querem, na verdade, é
marretar a sua cabeça com uma clava até você morrer e
depois entalhar lindas estrelas na sua barriga com a faca
da cozinha. De jeito nenhum. Nem pensar.
Charlotte achou aquela descrição muito engraçada.
— Você entendeu tudo errado — disse ela, ofegante de
tanto rir e enxugando os olhos. — As coisas não são mais
assim. Não são mesmo. Eu sei que isso era considerado
baixo, vulgar e...
— Você faria isso se fosse com você? — perguntei de
repente, indo direto ao centro da questão.
— Bem, é difícil dizer — gaguejou ela. — Isto é, eu tenho
um namorado...
— De qualquer modo, não é a vulgaridade disso que me
incomoda — exclamei, zangada —, e sim ser tachada de
"Pobre Idiota Solitária". É isso que me deixa revoltada. Não
entende, Charlotte, se eu tivesse que ir para a seção dos
solitários no jornal para arrumar namorado, preferia estar
morta. Se eu fizer isso, os poucos gramas de auto-estima
que me sobraram vão desaparecer juntamente com as
esperanças.
— Não seja tola — disse Charlotte, sentando-se reta no
sofá e pegando uma caneta e um papel, que me pareceu
ser o cardápio de entrega em domicílio do restaurante
chinês.
— Vamos lá — começou ela, toda feliz. — Vamos montar
uma descrição bem interessante de você, e montes de
rapazes adoráveis vão responder ao anúncio. Você vai se
divertir à beça.
— Não!
— Sim! — contrapôs ela, de forma gentil, mas firme. —
Vamos ver,,. Como poderíamos descrever você?... Humm,
que tal "baixa"?... não, "baixa" acho que não.
— Com certeza, "baixa" não. — Eu me vi
concordando. — Isso vai me fazer parecer uma "anã".
— Não, não se deve mais falar "anã", Lucy.
— Verticalmente prejudicada, então.
— Hã?... o que é isso?
— Anã.
— Mas, então, por que não disse logo?
— Mas eu...
— Tudo bem. Que tal "tipo mignon"?
— Não, detesto isso de... "tipo mignon". Parece tão...
tão... infantil e patético. É como se eu nem sequer
conseguisse alcançar o interruptor.
— Mas você mal alcança o interruptor.
— E daí? Isso não quer dizer que eu precise ficar
espalhando isso para todo o mundo.
— Tem razão. Posso pedir a Simon que escreva um
anúncio para você. Afinal, ele trabalha com propaganda.
— Mas, Charlotte, ele é um designer gráfico.
Ela ficou olhando para mim sem expressão alguma no
rosto.
— O que quer dizer com isso, Lucy?
— Quero dizer que ele trabalha com... hã... as imagens
dos anúncios. Não escreve o texto.
— Aahh!... Então é isso que um designer gráfico faz —
exclamou ela, como se tivesse acabado de descobrir que a
Terra era redonda.
Às vezes Charlotte me deixava apreensiva. Eu não
gostaria de morar dentro da cabeça dela, não. Lá devia ser
um lugar escuro, sombrio, solitário e assustador. Acho
que daria para a pessoa caminhar por quilômetros e
quilômetros lá dentro sem encontrar um único
pensamento inteligente.
— Já sei, já sei! Descobri. Que tal "uma Vénus de
bolso"? — Charlotte se virou para mim com os olhos
brilhando de prazer, pela sua criatividade.
— Não!
— Por que não? Esse título foi bom.
Porque não sou tão bonita assim. Não sou uma porcaria
de "Vénus de bolso", só por isso.
— E daí? Eles não vão saber até vê-la, e depois que a
conhecerem, vão descobrir como você é legal.
— Não, Charlotte, não é correto fazer isso. O tiro pode
sair pela culatra. Propaganda enganosa, eles vão querer o
dinheiro de volta.
— Ihhh... puxa — concordou Charlotte, desanimada. —
Acho que você tem razão.
— Por favor, esqueça essa idéia — supliquei.
— Não, vamos olhar alguns anúncios pessoais aqui na
revista Time Out, só para ver se tem alguém que poderia
servir para você.
— Não — disse eu, já em desespero.
— Olha, olha! Aqui tem um bom... — gritou Charlotte,
histérica. — Tenho alta estatura, muitos músculos e pêlos
por todo o corpo... ai... puxa vida!...
— Argh!... — Eu me encolhi toda. — Esse não faz o meu
gênero, nem de longe.
— Ainda bem — continuou Charlotte, meio
decepcionada. — É uma lésbica. Que pena! Até eu já
estava começando a gostar da descrição. Enfim, vamos em
frente.
Charlotte continuou a ler. De vez em quando me
perguntava algo:
— O que significa tenho muito "sdh"?
— Quer dizer que a pessoa tem muito senso de humor.
— Então, o que é "gsdh"?
— Grande senso de humor, acho.
— Ah, isso é legal!
— Não, não é, Charlotte — expliquei, aborrecida. —
Significa apenas que ele se acha muito engraçado e fica
rindo das próprias piadas.
— Eoqueé"bd"?
— Bem-dotado.
— Não...
— Sim.
— Nossa! Isso me parece um pouco de exibicionismo,
não é? Corta logo o tesão, não corta?
— Depende. Certamente corta o meu tesão, mas talvez
não seja o caso de muita gente.
— Lucy, você não estaria interessada em passar a tarde
de uma quarta-feira fazendo uma grande farra em
companhia de um homem e uma mulher casados?
— Charlotte! — exclamei, escandalizada. — Como é que
você pode sugerir uma coisa dessas?
E acrescentei:
— Ainda mais sabendo que não posso tirar uma tarde de
folga no trabalho... — Fiz uma cara rabugenta e nós duas
caímos na gargalhada com aquilo.
— Que tal "homem atencioso, extremamente carinhoso e
com muito amor no coração para dar à garota certa"?
— De jeito nenhum! Ele parece um perdedor total, um
mané... Uma versão masculina de mim.
— É mesmo, ele parece meio inocente — concordou
Charlotte. — Que tal "gatão exigente procura mulher de
classe, bem atlética e flexível, para aventuras"?
— Flexível? — guinchei. — Atlética? Aventuras? Que
coisa repulsiva e baixa. Será que ele não podia ser um
pouco mais abrangente sobre o que deseja de um
relacionamento? Nossa!
Eu estava ficando chateada com aquilo. Era
terrivelmente depressivo. Sórdido e triste. Enquanto eu
vivesse, jamais iria me encontrar com um homem que
tivesse conhecido através de um anúncio.
— Você está linda — elogiou Charlotte, ajeitando a
minha gola.
— Você está falando isso para que eu me sinta um
pouco melhor? — perguntei, com um tom amargo.
— Aposto que você vai se divertir muito — disse ela,
meio hesitante.
— Pois eu tenho certeza de que vai ser horrível.
— Pense positivo.
— Pense positivo, tá bom... Por que não vai você no meu
lugar?
— Porque não preciso ir. Já tenho namorado.
— E fica me esfregando isso na cara o tempo todo. Devia
ir até lá.
— Mas pode ser que ele seja um cara legal — sugeriu
Charlotte.
— Ele não vai ser legal.
— Não, sério mesmo. Pode ser que seja.
— Não acredito que você esteja fazendo isso comigo,
Charlotte — reagi, ainda espantada.
Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. Charlotte
me traíra. A vaca marcou um encontro com um cara que
achou na coluna de corações solitários. Sem nem ao
menos ter a decência de me consultar, marcara um
encontro, em meu nome, com um sujeito que era
americano. É claro que, quando descobri, fiquei possessa.
Apesar disso, minha reação não foi tão extrema quanto a
de Karen. Ao descobrir sobre a história do meu "encontro
às escuras", como Charlotte insistia em chamá-lo, Karen
chegou a chorar de tanto rir.
Conseguiu parar de rir apenas o tempo suficiente para
ligar para Daniel e contar a ele todo o evento, e depois
continuou a rir convulsivamente por mais vinte minutos.
— Deus do céu! Você está desesperada mesmo, Lucy —
comentou ela ao desligar o telefone e enxugar as lágrimas
que escorriam pelo rosto.
— Essas coisas não têm nada a ver comigo — protestei,
zangada.
— E eu não vou.
— Mas, agora, você tem que ir — disse Charlotte. — Não
seria justo com o rapaz.
— Sua cabeça tapada está completamente
desaparafusada — reagi.
Ela olhou para mim com tristeza e seus imensos olhos
azuis se encheram de lágrimas.
— Desculpe o que falei, Charlotte — disse eu, meio sem
graça. — Você não é tapada.
Simon a chamara de "tapada" alguns dias antes, e o
chefe dela a chamava de "tapada" o tempo todo, então ela
estava meio sensível a alegações relacionadas com
"tapadice".
— Olhe, Charlotte, falando sério — disse eu, bem alto,
tentando me manter firme. — Não vou sair com esse cara.
Não ligo a mínima para o fato de ele parecer legal ou
normal.
— Eu só estava tentando ajudar — fungou ela, com as
lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. —
Simplesmente achei que seria legal para você conhecer um
homem bem doce e atencioso.
— Eu sei! — Estiquei o braço e o coloquei em volta do
ombro dela, já me sentindo culpada. — Eu sei disso,
Charlotte.
— Não fique tão brava assim comigo, por favor, Lucy —
ela soluçou.
— Não estou brava — reagi, abraçando-a. — Ah,
Charlotte, por favor, não chore.
Eu detestava ver alguém chorando, com a única exceção
da minha mãe, só que eu prometera a mim mesma que,
não importava o que acontecesse, não importava o quanto
ela chorasse, eu não ia ceder aos apelos de Charlotte, e
não ia me encontrar com aquele tal de Chuck.
Cedi aos apelos de Charlotte e concordei em me
encontrar com aquele tal de Chuck. Não tenho muita
certeza do motivo que me fez concordar, mas o fato é que
concordei.
Apesar disso, mantive um restinho de auto-estima e
fiquei reclamando daquilo o tempo todo.
— Tenho certeza de que ele vai ser um sujeito totalmente
repulsivo — assegurei a Charlotte enquanto me preparava
para sair. — Meu visual está legal?
— Estou lhe dizendo, Lucy, você está linda. Não está,
Simon?
— Quê? Ah, sim, sim... linda — concordou Simon, com a
maior empolgação. Ele estava doido para me ver pelas
costas, para poder transar com Charlotte.
— Lucy, ele pode ser um cara legal — repetiu ela.
— Vai ser horroroso — garanti.
— Nunca se sabe... — voltou Charlotte com ar sério
enquanto balançava o dedo na minha direção. — Ele pode
ser aquele que apareceu nas cartas.
Para o meu horror, eu me vi concordando com ela ou, ao
menos, esperando que ela estivesse certa. Charlotte podia
estar com a razão: era bem capaz de ele ser um cara legal,
podia ser a exceção que confirma a regra. Quem sabe ele
não era um bunda-mole, nem um assassino com machado
escondido em casa, nem estonteantemente horroroso, nem
um aleijado emocional.
A Esperança, uma criatura instável, uma velha filha
pródiga, resolveu de repente fazer uma breve aparição,
como convidada especial na novela que era a minha vida.
Apesar de todas as vezes que ela me deixara na mão no
passado, decidi dar-lhe mais uma chance.
Será que algum dia eu ia aprender?
Será que tenho algum tipo de dependência por
desapontamentos?, perguntei a mim mesma.
Mas então uma onda de empolgação já circulava por
dentro de mim. E se ele fosse um tipo solitário? E se ele
fosse alguém parecido com Gus, só que um pouco mais
normal, menos aloprado e sem a abordagem minimalista
no que se referia a ligações telefônicas? Não seria
maravilhoso? Além do mais, supondo que eu gostasse dele
e tudo acabasse dando certo, eu ainda estaria dentro do
prazo que a Sra. Nolan determinara. Dava tempo
suficiente para eu viajar até os Estados Unidos, a fim de
conhecer a família dele, e organizar o casamento, tudo em
menos de seis meses.
























CAPÍTULO 46
Eu devia encontrá-lo às oito horas em ponto, na porta de
uma daquelas churrascarias sem graça que existem aos
montes no centro de Londres, e que servem para alimentar
as multidões e multidões de americanos que visitam a
cidade todos os anos.
Chuck avisara — por um instante minha cabeça pareceu
girar, porque eu mal acreditava que estava me preparando
para jantar com um sujeito chamado Chuck —, bem,
Chuck avisara que seria fácil reconhecê-lo, pois ele estaria
usando uma capa azul-marinho e teria revista Time Out
nas mãos.
(E todos os que o virem o reconhecerão através de sua
capa azul-marinho e de seu exemplar de Time Out.) Não
tinha a mínima intenção de ficar circulando por ali do lado
fora do restaurante, esperando por ele e colocando-me à
sua mercê, caso ele fosse extremamente medonho. Em vez
disso, me misturei a um monte de gente do outro lado da
rua e fingi que estava esperando o ônibus. Com a gola do
meu casaco levantada, mantinha os olhos grudados na
porta do restaurante, em frente. Estava um pouco nervosa,
porque, apesar de esperar que ele fosse horroroso, havia
uma pequena possibilidade de ele ser bonito. Às cinco
para as oito o sujeito chegou, com a capa azul-marinho
exemplar de Time Out em punho, tudo certinho. Do meu
posto de vigia, até que ele me pareceu legal. Bem, pelo
menos me pareceu bem normal. Tinha apenas uma cabeça,
nenhuma deformidade aparente, nenhum membro a mais,
nenhum membro a menos, pelo menos não que eu
conseguisse ver. Não dava para ter certeza com relação
aos dedos dos pés ou ao pênis dele, a partir de um contato
tão recente. Atravessei a rua para dar uma olhada nele
mais de perto.
Não era mau. Não, nem um pouco.
Na verdade, daria até para descrevê-lo como bonito.
Altura média, bronzeado, olhos castanho-escuros,
ossatura firme, um rosto forte. O todo dele me fazia
lembrar alguém... quem seria? Mais tarde eu ia descobrir.
A Esperança começou a zumbir dentro do meu peito. Ele
não era o meu tipo de homem favorito, mas as coisas
jamais deram certo com os meus tipos favoritos de homem,
então, que diabos, eu podia dar uma chance a ele.
Talvez, no fim, eu acabe lhe agradecendo muito,
Charlotte, pensei.
Ele já me vira. E reparara no meu exemplar de Time Out.
Falou comigo. Nenhum respingo de cuspe me atingiu o
rosto. Isso era bom sinal.
— Você deve ser a Lucy — disse ele. Nenhum ponto
extra por originalidade, e sete milhões de pontos a menos
pelas calças baratas, muito vagabundas. Enfim, os
americanos são assim mesmo. E nota dez por não ter lábio
leporino, não falar gaguejando nem ficar com baba
escorrendo pelo canto da boca.
Ainda.
— E você deve ser o Chuck — afirmei, sem contribuir
muito para a abertura de novos horizontes na área de
primeiros contatos.
— Chuck Thaddeus Mullerbraun, o Segundo, vindo
diretamente de Redridge, Tucson, Arizona. — E sorriu,
estendendo-me a mão e me dando um aperto muito
entusiasmado em estilo "torno mecânico".
Oh-oh, pensei.
Na mesma hora me segurei para não achá-lo estranho.
Aquilo não era culpa dele, os americanos sempre agiam
daquele jeito. Pode perguntar qualquer coisa a eles,
qualquer coisa, desde "Deus existe?" a "poderia me passar
o saleiro, por favor?", e a primeira coisa que eles fazem é
informar seu nome completo e endereço. E como se eles
tivessem medo de que, se não ficassem repetindo o tempo
todo quem são e de onde vêm, pudessem desaparecer no
ar.
Eu achava aquilo meio esquisito. Imagine se alguém me
parasse na rua para perguntar as horas e eu respondesse:
"Lucy Carmel Sullivan, a Primeira, vinda diretamente do
apartamento no último andar, o 43D, da rua Bassett
Crescent, em Ladbroke Grove, Zona Oeste, Londres,
Inglaterra, Grã-Bretanha, Europa, desculpe, não tenho
relógio, mas deve ser mais ou menos uma e quinze."
Aquele era apenas um costume diferente, lembrei a mim
mesma, como os espanhóis jantando às duas da manhã, e
eu devia estar recebendo bem a oportunidade de travar
contato com uma cultura diferente. Vive la différence!
Lucy Mullerbraun?
Eu preferia Lucy Lavan, pensei, divagando um pouco,
mas não havia sentido em seguir aquela linha de
pensamento naquele momento em particular.
Ou em qualquer outro momento, pensando melhor.
— Podemos entrar? — sugeriu ele, de forma educada,
indicando a porta do restaurante.
— Por que não?
Entramos no imenso restaurante e um pequeno sujeito
porto-riquenho instalou-nos a uma mesa ao lado da janela.
Eu me sentei.
Chuck sentou-se em frente a mim. Trocamos olhares
inseguros e nervosos.
Resolvemos dizer alguma coisa e, ao abrirmos a boca,
começamos a falar ao mesmo tempo. Então nós dois nos
calamos e nenhum dos dois disse mais nada por alguns
instantes. Então, ao mesmo tempo, nós dois dissemos:
"Fale você, primeiro", então nós dois rimos e repetimos,
novamente em uníssono: "Por favor, você primeiro, sério."
Até que foi bonitinho. Quebrou o gelo.
— Por favor — disse eu, tomando a iniciativa e com
medo de que aquilo continuasse por toda a noite —, fale
você primeiro, Chuck, eu insisto.
— Então está bem — sorriu ele. — Eu queria apenas
dizer que você tem olhos lindos.
— Obrigada. — Sorri de volta, vermelha de vergonha e
satisfação.
— Adoro olhos castanhos — explicou ele.
— Eu também — concordei. Até ali, tudo bem. Pelo jeito,
tínhamos algumas coisas em comum.
— Minha mulher tem olhos castanhos — completou ele.
O quê?
— Sua mulher? — foi o que perguntei, com a voz fraca.
— Bem, ex-mulher, na verdade — corrigiu ele. — Nos
divorciamos recentemente, mas vivo esquecendo.
O que será que eu devia responder a uma frase dessas?
Eu não sabia que ele fora casado. Mas, e daí?, decidi,
tentando manter o controle. Todo mundo tem um passado,
e ele não afirmara no anúncio que não era casado.
— Já superei a crise — disse ele.
— Hã... bom... que bom — disse, tentando parecer
encorajadora.
— Desejo que ela seja feliz.
— Isso é maravilhoso — disse eu, com honestidade.
Houve uma pausa.
— Não sou um sujeito amargo por causa disso — disse
ele, com um tom de amargura na voz, enquanto olhava
com ar amargo para a toalha da mesa.
Mais uma pausa.
— Meg — suspirou.
— Co... como disse? — perguntei.
— Meg — repetiu ele. — Era esse o nome dela. Bem, na
verdade era Margaret, mas eu sempre a chamava de Meg.
Um apelido carinhoso, entende?
— Que simpático — comentei, baixinho.
— Sim — disse ele, dando um sorriso irônico e
distante. — Era mesmo.
Um estranho silêncio se seguiu.
Ouvi um barulho de alguma coisa em volta que parecia
afundar, submergindo rapidamente. Levei um momento
para compreender que aquilo era o barulho do meu
coração. Era o som dele indo a toda a velocidade, tipo
"viagem expressa só de ida" para a sola das minhas botas.
Mas talvez eu estivesse sendo negativa.
Talvez conseguíssemos curar os corações quebrados um
do outro. Talvez tudo o que ele precisasse fosse o amor de
uma boa mulher. E talvez tudo que eu precisasse fosse o
amor de Chuck Thaddeus Mullerbraun, que veio de —
onde era mesmo a cidade dele? — ... sei lá, um lugar do
Arizona.
A garçonete chegou para anotar o pedido das bebidas.
— Para mim, um copo da sua mais fina água da
torneira — disse Chuck, recostando-se na cadeira e dando
um tapinha no estômago. Olhei para aquilo e tive a terríveí
impressão de que a camisa dele era de poliéster.
A garçonete lançou um olhar de desprezo para ele. Sabia
reconhecer um pão-duro assim que colocava os olhos em
um.
Ele certamente não queria que eu o acompanhasse e
pedisse água da bica também, não é?
Bem, sinto muito, mas, por mim, ele que fosse para o
inferno, porque eu queria um drinque, Um drinque de
verdade.
É melhor começarmos as coisas logo de cara do mesmo
jeito que vamos mantê-las.
— Um Bacardi e uma Coca light — disse eu, tentando
fazer aquilo parecer um pedido bem razoável.
A mulher foi embora e Chuck se inclinou para a mesa
na minha direção e falou:
— Eu não sabia que você bebia álcool.
Talvez nós não fôssemos curar o coração um do outro,
afinal.
Do jeito que ele usou as palavras, cheio de aversão e
nojo, era como se estivesse dizendo que não sabia que eu
fazia sexo com crianças pequenas.
— Sim — disse, com um leve tom de desafio —, por que
não? Aprecio um drinque de vez em quando.
— Tudo bem — disse ele, lentamente. — Tudo bem, tudo
bem. Para mim está ótimo. Legal.
— Você não bebe? — perguntei.
— Sim, bebo sim — respondeu ele. Graças a Deus.
— Bebo água — continuou ele. — Bebo refrigerantes.
Isso é tudo o que preciso beber na vida. O melhor drinque
do mundo é um bom copo de água geladinha. Não preciso
de álcool.
Eu me segurei. Se ele me dissesse que a vida já é o
maior barato que se pode curtir, eu ia embota, jurei para
mim mesma. Infelizmente, porém, isso não aconteceu. E a
conversa continuou, na mesma linha.
— A sua... hã... Meg não bebe? — perguntei. — Álcool —
acrescentei correndo, antes que ele começasse a brincar
com as palavras novamente.
— Não, ela jamais tocou em álcool, nunca precisou —
respondeu, elevando o tom da voz.
— Bem, mas não é o caso de eu precisar da bebida —
disse eu, perguntando a mim mesma por que estava me
dando ao trabalho de tentar me defender.
— Olha... — Ele olhou fixamente para mim. — Você deve
perguntar isso é a você mesma. Quem está tentando
convencer, afinal, a mim ou você?
Pensando melhor, agora que eu estava olhando de perto
para seu rosto, ele não parecia tão bronzeado assim, a cor
estava mais para alaranjada.
O tom de sua pele não era dourado, não, parecia mais
cor de tangerina.
Nossos drinques chegaram. O copo de água da bica para
Chuck e o meu Instrumento de Satanás acompanhado
pela Coca light.
— E aí, estão preparados para fazer o pedido? —
perguntou a garçonete.
— Ei, a gente mal se sentou — reagiu Chuck, de forma
rude.
A mulher deu as costas e foi embora. Senti vontade de
correr atrás dela e pedir desculpas, mas Chuck me alugou
com um papo que só de brincadeira poderia ser chamado
de conversa.
— Você já foi casada, Lindy? — perguntou ele.
— Lucy — corrigi.
— Como disse? — quis saber ele.
— Lucy — repeti. — Meu nome é Lucy. Um olhar sem
expressão veio de Chuck.
— Não é Lindy — acrescentei, à guisa de explicação.
— Ah, entendo — disse ele, com uma gargalhada
explosiva e jovial. — Desculpe, desculpe. Já saquei. Sim,
sim... Lucy.
E caiu na risada de novo, dando um barulhento tapa na
coxa. Levou bastante tempo, na verdade, para ele parar de
rir. Ficava balançando a cabeça, como se não estivesse
acreditando naquilo, e repetia, olhando para mim:
— Lindy! Essa foi boa, hein? Rá-rá-rá! Lindy! Dá pra
acreditar?
Então engrenou um sotaque de caipira e disse algo que
me pareceu: "Uai! Vamo laça o porco e dispois se
empanturra de melado!"
Pelo menos eu acho que foi isso que ele disse.
E o rosto que me pareceu tão forte à primeira vista era,
na verdade, sem expressão, imóvel, rígido.
Fiquei ali, sentada, com um sorriso colado na cara,
esperando que ele se acalmasse, para então falar:
— Em resposta à sua pergunta, Brad, não, eu nunca fui
casada.
— Ei, ei, ei — disse ele, com o rosto se fechando de
repente, de aborrecimento. — O nome é Chuck. Quem é
esse tal de Brad?
— Foi uma piadinha — expliquei bem depressa. — Sabe
como é... você me chamou de Lindy, eu chamei você de
Brad.
— Ah. Certo. — E ficou olhando para mim como se eu
fosse completamente maluca. Seu rosto parecia uma
sessão de slides: uma imagem estática atrás da outra, com
pequenos períodos de branco, enquanto ele retirava uma
emoção e ficava esperando outra aparecer.
— Escute, dona — quis saber ele —, você é algum tipo
de doido-na? Porque não estou com espaço para doidonas
na minha vida neste momento não.
Tranquei a boca e me segurei para não perguntar
quando é que ele achava que ia arrumar algum espaço
para doidonas na vida dele, mas fazer isso foi bem difícil.
— Foi só uma brincadeira — expliquei, com delicadeza.
Achei que era melhor tentar apaziguá-lo, porque estava me
sentindo um pouco preocupada com as suas abruptas
mudanças de humor.
Ele provavelmente pertencia a algum clube de tiro. Havia
um jeito meio maníaco e esquisito na forma de ele olhar
que eu não reparara assim que o vira. E também havia
algo de muito estranho com o seu cabelo... o que seria?
Ele fixou o olhar em mim, balançou a cabeça lentamente
(não pude deixar de reparar que, apesar de a cabeça dele
se mexer para a frente e para trás, o cabelo ficava no
mesmo lugar) e disse:
— O.k., entendi agora. Isso foi um lance de humor,
então, certo? E sorriu de orelha a orelha para mim,
exibindo a boca cheia de dentes. Tudo isso para provar
que ele apreciava o meu tipo de humor.
...Ele secara aquele cabelo com um secador bem quente,
era óbvio, e os fios estavam meio de lado...
— Isso então foi um exemplo do seu humor, não é? Sim,
foi muito legal.
...E alguns dos tufos estavam duros de tanto laque...
— Gostei da piada sim, sim, gostei mesmo. Você é uma
garota engraçada, então, não é?
...Será que aquilo era uma peruca?...
— Hummm... — murmurei. Estava com medo de abrir a
boca para falar alguma coisa e acabar vomitando em cima
dele, bem no colo de sua surrada calça de brim.
...Aquilo na cabeça dele parecia mais um capacete. Na
verdade, era todo duro e com cara de pegajoso.
Ele pegou um pão, enfiou tudo na boca de uma só vez e
ficou mastigando, mastigando e mastigando sem parar,
como uma vaca ruminando capim. Foi nojento.
Mas não acreditei no que ele fez em seguida.
Não é que ele tenha exatamente soltado um pum.
Parecia mais uma explosão rouca e longa que fez
estremecer o ambiente.
Sim, para falar a verdade foi um tremendo peido, bem
alto. demorado e sem pedido de desculpas.
Ainda estava tentando me refazer do choque daquilo
quando a pobre da garçonete tornou a aparecer para
anotar o pedido, embora eu estivesse certa de que ia
vomitar ali mesmo se alguém me oferecesse alguma coisa
para comer. Com o apetite de Chuck, porém não parecia
haver nada de errado.
Ele pediu o maior bife do cardápio e ainda exigiu que
viesse muito malpassado.
— Por que não pede que a moça traga logo a vaca inteira
ainda viva até aqui? Você pode tentar fazer com que ela
suba na mesa e se sente no seu prato para ser
degustada — sugeri.
Eu não tinha nada contra pessoas que comem carne
vermelha, mas era tão agradável ser cruel com ele que não
consegui resistir à chance de falar aquilo.
Infelizmente, ele apenas soltou uma gargalhada.
Uma pena, um desperdício total de uma frase cheia de
veneno.
Foi então que ele resolveu que já estava na hora de nos
conhecermos melhor. Chegara o momento de trocarmos
experiências de vida.
— Ei, você já foi ao Caribe? — ladrou ele, na minha
direção. E, sem esperar pela minha resposta, passou
direto à descrição das areias brancas, dos habitantes
hospitaleiros, da fantástica loja do free shop, da
maravilhosa cozinha, do pacote cheio de descontos e com
tudo incluído que ele conseguiu porque o cunhado
trabalhava em uma agência de viagens...
— Bem, tecnicamente, ele não é mais seu cunhado,
agora que Meg se divorciou de você, não é mesmo? —
interrompi, mas ele preferiu não me ouvir. Toda a sua
atenção estava focada nele mesmo.
E a descrição lírica continuava, sem pinta de terminar.
O espetacular chalé em que ele se hospedara, a
fosforescência dos peixes tropicais... Agüentei tudo aquilo
com a maior paciência, até que lotou! De forma bem rude,
interrompi a descrição da água limpa, clara e muito azul
sobre a qual ele velejou dentro de um barco com fundo de
vidro.
— Deixe-me adivinhar — disse eu, com sarcasmo. —
Você foi até lá em companhia de Meg.
Ele olhou para mim na mesma hora, enquanto o slide da
suspeita apareceu na tela imóvel do seu rosto.
Então exibi um sorriso fulgurante para ele, só para
deixá-lo confuso.
— Ei, como foi que você adivinhou? — E sorriu para
mim. Enfiei a mão debaixo da coxa para resistir à tentação
de dar um
soco na cara dele.
— Ah... acho que é intuição feminina — disse, soltando
uma risadinha delicada e quase sentindo o vômito subir
até a garganta e ficar bem atrás dos meus dentes.
...E por falar em dentes, o que havia de errado com os
dele? Será que ele usava dentadura?...
— E então, você gostaria de tentar um relacionamento
comigo, Lisa?
— Hã... — Como poderia dizer a ele que eu preferia ter
um relacionamento com um leproso sem ofendê-lo?
Sem ofender o leproso, é claro.
— É melhor você ficar logo sabendo — sorriu ele. — Eu
sou um cara muito exigente.
Onde estava o meu jantar? Eu já nem ligava mais.
— Mas você até que é bonitinha, sabia?
— Obrigada — murmurei. Não se dê a esse trabalho, por
favor.
— É sim, muito bonitinha. Em uma escala de um a dez,
eu lhe daria nota... deixe ver... é... eu lhe daria um sete.
Não, vamos dizer seis e meio. Tenho que deduzir meio por
cento porque você bebeu álcool logo no primeiro encontro.
— Acho que você quer dizer meio ponto, e não meio por
cento, porque a escala que você usou foi de dez, não de
cem. E o que há de errado em beber no primeiro encontro?
Se não fosse o primeiro encontro, estaria tudo bem? —
quis saber, com frieza na voz.
Ele franziu os olhos e disse:
— Você fala demais. Faz um monte de perguntas, sabia?
— Não, sério mesmo, Chuck. Estou muito interessada
em saber por que motivo perdi meio ponto com você.
— Certo, certo. Eu lhe conto, eu lhe conto. Claro que
conto. Consegue perceber quais são os sinais que você
envia ao seu acompanhante quando bebe logo no primeiro
encontro, Lisa? Imagina que tipo de afirmação está
fazendo a respeito de si mesma?
Olhei para ele sem expressão.
— Não — disse, com doçura. — Por favor, ilumine a
minha mente.
— O quê?
— Ilumi... hã, por favor, me conte.
— D-E-S-P-O-N-í-V-E-L — soletrou ele, lentamente.
— Como disse? — falei, meio confusa.
— Disponível — explicou, impaciente. — A imagem que
eu faço é a de que você está disponível.
— Ah, disponível — disse eu, compreendendo então. —
Bem, talvez se você tivesse soletrado a palavra direito eu
tivesse entendido logo de cara o que você queria dizer.
Seus olhos se estreitaram.
— Ei, está insinuando o quê? Que você é mais esperta
do que eu ou algo assim?
— Nada disso — expliquei, com educação. — Estava
apenas informando a você que a letra E só aparece uma
vez na palavra "disponível".
Nossa! Ele era insuportável!
— Nenhum homem tem respeito algum por uma mulher
bêbada — afirmou ele, olhando com os olhos apertados
para o meu Bacardi, e depois para mim.
Aquilo só podia ser piada. Tinha de ser alguma armação,
era a única explicação. Olhei em torno do restaurante,
quase esperando ver Daniel sentado a uma das outras
mesas, ou algum apresentador famoso da televisão
anunciando que aquilo tudo era uma pegadinha.
Mas isso não aconteceu.
Ai, meu Deus! Suspirei para mim mesma. Gostaria que
tudo isso já tivesse acabado. Que desperdício de noite!
Especialmente uma noite de sexta-feira, quando passavam
programas tão interessantes na tevê.
"Sabe de uma coisa, você não é obrigada a aturar isso
não", sussurrou uma vozinha rebelde dentro da minha
cabeça.
"Claro que é obrigada!", cochichou outra vozinha interna,
essa mais ponderada e zelosa.
"Não, francamente não é não", replicou a primeira voz.
"Mas, mas... concordei em vir até aqui para conhecê-lo,
tenho de ficar por todo o período combinado. Não posso ir
embora. Seria uma falta de educação", protestou a minha
porção "certinha".
"Falta de educação", rosnou a voz rebelde, "Falta de
educação! E por acaso ele é educado? Os americanos que
pulverizaram Hiroshima provavelmente eram mais
educados."
"Sim, mas acontece que não tive muitas oportunidades
de conhecer homens diferentes, e de cavalo dado não se
olha os dentes", explicou minha porção "comportada".
"Não acredito no que você está falando!", disse a porção
"rebelada", parecendo genuinamente chocada. "Você tem
de si mesma uma imagem assim tão baixa a ponto de
preferir estar com um homem desses a ficar sozinha?"
"Mas eu estou tão sozinha...", disse a vozinha boa.
"Você quer dizer desesperada", debochou a voz rebelde.
"Já que você está colocando as coisas desse jeito,..",
ponderou a porção bondosa de forma relutante,
recusando-se a dispensar um homem, qualquer homem,
até mesmo um sujeito horrível como aquele.
"Eu insisto nisso", disse a porção "rebelada", com
firmeza.
"Bem, então tudo bem. Acho que posso fingir que estou
enjoada", disse a voz educada. "Posso simular um tombo e
dizer que quebrei a perna, que estou com apendicite
supurada ou algo desse tipo."
"Não, claro que não!", disse a porção "rebelde". "Para que
poupá-lo? Se está disposta a cair fora, faça isso em grande
estilo. Deixe que ele perceba o quanto é desagradável e o
quanto você o achou repulsivo e antipático. Defenda suas
razões! Use o ato para fazer uma declaração!"
"Não, não posso...", protestou a parte zelosa.
A voz rebelde continuou em silêncio.
"Ou será que posso?..."
"Claro que pode!", exclamou minha voz rebelde, toda
empolgada.
"Mas... mas... o que devo fazer?", quis saber a porção
boa, já com uma coceirinha na boca do estômago.
"Tenho certeza de que você vai conseguir pensar em algo.
Aliás, devo lembrá-la de que, se você cair fora agora
mesmo, dá para chegar em casa antes de o seriado do Rab
C. Nesbitt começar", aconselhou a voz rebelada.
Chuck continuava a falar sem parar:
— Hoje eu estava no metrô e vou te contar, Lizzie... Eu
era o único cara branco do vagão!...
Certo! Chega! Não agüento mais!
"Mas estou com medo dele", explicou minha voz boa. "E
se ele me seguir, torturar e depois me matar? Vamos ser
francos, ele bem que parece ser desse tipo."
"Não se preocupe", disse a voz rebelde. "Ele não faz idéia
de onde você mora, nem mesmo tem o número do seu
telefone. Tudo o que tem é o número da sua caixa postal.
Vá em frente! Não há com o que se preocupar,"
Sentindo-me leve com aquela sensação de poder à qual
não estava acostumada, eu me levantei, pegando o casaco
e a bolsa.
— Desculpe-me. — Sorri docemente, interrompendo o
discurso de Chuck sobre como deveria haver um controle
mais eficiente da imigração e como apenas as pessoas
brancas deveriam ter direito a voto. — Vou até o toalete
das meninas.
— E você precisa levar o casaco para o banheiro? —
estranhou fChuck.
— Preciso, Chuck — respondi, com doçura.
— Tudo bem. Panaca!
Fui saindo de fininho, com as pernas tremendo. Estava
com medo, mas também estava feliz.
Passei ao lado da garçonete que estava nos servindo. Ela
estava limpando uma das mesas e eu estava com tanta
adrenalina no sangue que nem conseguia falar direito.
— Desculpe — disse para ela, com as palavras
parecendo meio embaralhadas e sentindo a língua maior
do que a boca. — Estou naquela mesa ao lado da janela, e
o cavalheiro que está comigo pediu que lhe seja servida
uma garrafa do seu champanhe mais caro, por favor.
— Claro — disse a mulher.
— Obrigada. — Sorri e fui em frente.
Decidi que assim que chegasse em casa ia telefonar para
o restaurante, a fim de me certificar de que nenhum dos
funcionários ia ter de pagar pelo champanhe do próprio
bolso.
Cheguei à porta do banheiro feminino, hesitei apenas
por um momento e continuei andando. Parecia que eu
estava sonhando. Só quando atravessei o portal da
entrada do restaurante e saí na rua chuvosa foi que
acreditei que havia conseguido, e que já estava livre.
Meu plano inicial era simplesmente sair e ir para casa,
deixando a longa passagem de tempo servir de indicação
para Chuck de que eu nunca mais ia aparecer. Isso,
porém, não seria correto. O jantar dele ia ficar frio durante
o tempo em que ele ia ficar esperando pela minha volta.
Esperando, esperando...
Supondo que aquele homem revoltante tivesse a
educação de esperar que eu voltasse para a mesa antes de
mergulhar no prato e devorar o seu animal recém-abatido.
Apesar de tudo, resolvi dar a ele o benefício da dúvida.
Vesti o casaco e, apesar de ser uma noite chuvosa de
sexta-feira, consegui pegar um táxi na mesma hora.
Os deuses estavam sorrindo para mim. Aquele era o tipo
de sinal do qual eu precisava para sentir que fizera a coisa
certa.
— Ladbroke Grove — indiquei ao motorista, toda
empolgada, assim que entrei no carro. — Antes, porém,
será que o senhor poderia me fazer um favor?
— Depende... — afirmou ele, desconfiado. Os taxistas de
Londres são assim mesmo.
— É que acabei de terminar com o meu namorado. Ele
está indo embora para sempre. Está sentado junto à
janela daquele restaurante ali. Será que o senhor poderia
passar bem devagarzinho com o carro até que ele me veja,
para que eu possa acenar para ele uma última vez?
O taxista pareceu sinceramente comovido pelo meu
pedido.
— Puxa, parece aquele filme com Frank Sinatra e Ava
Gardner. E eu que achei que o romantismo estava
morto... — disse ele, com a voz rouca e falha. — Não tem
problema, querida. Simplesmente me diga quem é ele.
— É aquele... hã... rapaz bronzeado e bonito bem ali —
disse eu, apontando para o lugar em que Chuck estava
sentado, admirando o próprio reflexo em uma faca
enquanto me esperava voltar do banheiro.
O táxi foi passando bem devagar na frente da janela
onde Chuck estava e comecei a abaixar o vidro.
— Vou ligar a luz interna do carro, moça, para ele poder
vê-la melhor — disse o taxista.
— Obrigada.
Chuck estava girando a faca diante do rosto, afastando-
a e depois aproximando-a, para poder ver o rosto de
diferentes distâncias.
— Ele gosta de se apreciar — comentou o motorista.
— Como gosta!
— Tem certeza de que é ele, moça? — perguntou o
motorista, meio em dúvida.
— Absoluta.
Chuck já estava começando a mostrar cara de chateado.
Pelo jeito eu estava levando mais tempo no banheiro do
que Meg, e ele parecia não aprovar aquilo.
— Quer que eu dê um toque na buzina, moça? —
perguntou meu leal motorista.
— Por que não?
O taxista apertou a buzina com toda a força e Chuck
olhou para fora, para ver que barulheira era aquela. Eu
me debrucei para fora e acenei de forma espalhafatosa.
Ele sorriu, com alegria, reconhecendo o meu rosto assim
que me viu e levantou a mão para me acenar de volta.
Nesse instante a confusão começou a se instalar lenta e
dolorosamente em sua cara idiota, no momento em que ele
reparou que a pessoa que lhe parecia familiar e que estava
acenando para ele de um táxi era, na verdade, a sua
acompanhante daquela noite, a mulher com quem ele
estava jantando, a criatura cuja lagosta à moda da casa
estava, naquele exato momento, sendo reverentemente
colocada diante de uma cadeira vazia, e que a citada
criatura estava dentro de um táxi que se preparava para
deixar o local. O aceno que preparava não chegou a se
completar, e ele parou com a mão no ar.
Franziu sua testa alaranjada. Não compreendia aquilo.
Os dados não combinavam.
E então a ficha caiu.
A expressão que se formou em seu rosto valeu toda a
cena. O instante em que ele compreendeu que eu não
estava no toalete das meninas, e sim efetuando uma fuga
em um táxi, foi maravilhoso, nem mais nem menos. Valeu
a pena ficar ali por todo aquele tempo terrível só para
poder apreciar o ar de descrença, ódio e fúria que surgiu
em seu rosto convencido, esquisito e bronzeado. Ele deu
um pulo da cadeira e deixou cair a faca com a qual estava
se admirando até há poucos segundos.
Não consegui segurar o riso.
— Mas que mer...? — fez ele com os lábios, em mímica,
o rosto retorcido de tanta fúria, Quase parecia ter vida.
— Vá... se... fo-der! — fiz com os lábios, devolvendo a
mímica. Então, enfiei os dois braços para fora do carro na
noite molhada e coloquei a mão direita espalmada sobre o
braço esquerdo, puxando-o para trás, dando-lhe uma
banana para o caso de a sua leitura labial não ser muito
boa. Fiquei sacudindo os braços para cima por uns dez
segundos, reforçando o gesto, enquanto ele continuava
olhando para mim com fúria impotente através da vidraça.
— Pode seguir! — ordenei.
O motorista começou a acelerar no momento em que
dois garçons apareciam por trás de Chuck, um carregando
um balde de gelo com um guardanapo sobre o braço e o
outro com uma garrafa de champanhe.
No táxi descobri quem Chuck me fizera lembrar: Donny
Osmond!
Donny Osmond cantando "Amor de cachorrinho".
O alaranjado, sincero e comovente Donny Osmond com
olhos de bichinho de estimação para combinar com o seu
amor de cachorrinho. Só que o Donny Osmond do
restaurante estava meio embaçado, passara por maus
pedaços na vida, era um Donny Osmond para quem todas
as coisas tinham dado errado, um Donny amargo, sem
senso de humor e de extrema direita.
Muito antes de chegar em casa eu jà estava me sentindo
culpada por causa de Chuck e a garrafa de champanhe.
Não era justo que ele tivesse de pagar por ela. Só pelo fato
de ele ser uma pessoa detestável e horrível isso não me
dava o direito de agir da mesma forma. Assim, no
momento em que coloquei os pés dentro de casa, liguei
para o restaurante.
— Hã... alô — disse eu, meio nervosa. — Será que o
senhor poderia me dar uma ajuda? Eu estava em seu
restaurante até ainda há pouco e precisei ir embora
correndo, de forma não planejada, só que antes de sair
pedi uma garrafa de champanhe para o cavalheiro que
estava comigo. Era para ser uma... hã... surpresa, e acho
que ele não deve ter concordado em pagar por ela.
Gostaria de ter certeza de que a garçonete não vai ter a
garrafa descontada do salário, nem nada desse tipo...
— O cavalheiro americano? — perguntou uma voz
masculina.
— Sim — confirmei, relutante. Cavalheiro uma ova!
— E a senhorita deve ser a mulher com problemas
mentais? — quis saber a voz.
Que cara-de-pau do atendente. Como é que ele ousava
insinuar que eu era maluca?
— O americano explicou que a senhorita faz coisas desse
tipo com freqüência, que não consegue se controlar.
Engoli minha raiva.
— Quero pagar pelo champanhe — murmurei.
— Não há necessidade — disse a voz. — Nós jà
combinamos com o americano que não vamos cobrar os
danos que ele causou à nossa mobília, desde que pague
pelo champanhe.
— Mas não é justo ser obrigado a pagar por algo que não
consumiu — expliquei.
— Consumiu sim, ele bebeu — informou a voz.
— Mas ele não bebe — protestei.
— Olha, ele bebe sim — confirmou a voz. — Pode vir e
ver com os próprios olhos, se não acredita.
— Quer dizer que ele ainda está aí?
— Ah, sim! E aquilo que ele está bebendo neste instante
não é tequila sem álcool não.
Ai, meu Deus! Agora eu tinha mais isso na consciência.
Transformara Chuck em um bebum. Ah, que se dane!
Talvez isso seja a melhor coisa que já aconteceu a ele.
Certo, agora vamos direto para a televisão!
Para minha total decepção, Karen e Daniel estavam na
sala de visitas. Dividiam uma garrafa de vinho e estavam
de mãozinhas dadas, assistindo aos meus programas, na
minha televisão. Era de embrulhar o estômago.
— Você voltou cedo — comentou Karen, aborrecida.
— Hummmmm — respondi, de forma esquiva.
Eu também estava chateada. Aquilo significava que eu
não ia ver Rab C. Nesbitt. Não podia ficar ali na mesma
sala, junto de Karen e Daniel, enquanto eles ficavam de
beijinhos e abraços.
Eu ia ter de ir para o meu quarto e ficar sentada lá,
enquanto eles continuavam ocupando o sofá todo, Karen
deitada com a cabeça no colo de Daniel. Ele ficava
acariciando a cabeça dela enquanto ela ficava acariciando
o... bem, o que quer que eles estivessem a fim de fazer,
aquilo era uma coisa na qual eu não estava a fim de
pensar.
Eles andavam tão apaixonados, feito dois pombinhos,
que chegava a me causar nojo.
Charlotte e Simon nunca me faziam sentir estranha, não
sei por que acontecia aquilo quando a coisa era entre
Daniel e Karen.
— Como é que você está? — perguntou Daniel,
parecendo todo metido a superior.
— Estou bem — respondi, meio distraída.
— E como foi o encontro às escuras com o
americano? — perguntou Daniel.
— Ele era louco.
— É mesmo?
— É mesmo.
— Ah, Lucy, de novo não — suspirou Karen. — Você já
está transformando esse tipo de situação em hábito.
— Vou para a cama — anunciei.
— Finalmente! — exclamou Karen, piscando
sensualmente para Daniel.
— Rá-rá! — reagi, tentando aparentar um espírito
esportivo. — Boa-noite.
— Lucy, não fique achando que você tem de sair da sala
só porque estamos aqui — disse Daniel, educado como
sempre.
— Fique sim — corrigiu Karen.
— Não vá embora — pediu Daniel.
— Vá sim. — Riu Karen.
— Karen, não seja mal-educada — disse Daniel,
parecendo sem graça.
— Mas eu não estou sendo mal-educada — sorriu
Karen. — Estou só sendo honesta. Estou mostrando a
Lucy a posição em que ela se encontra.
Saí da sala com os olhos cheios de lágrimas,
inexplicavelmente.
— Ah, por falar nisso, Lucy — gritou Karen, na minha
direção.
— Que foi? — perguntei, encostada no portal.
— Ligaram para você.
— E quem era?
— Gus.













CAPÍTULO 47
Senti como se estivesse me livrando de um peso imenso
e soltei o ar em um longo e delicioso suspiro. Estava
esperando para fazer aquilo há três semanas.
— Bem, e o que foi que ele disse? — perguntei,
empolgada.
— Que ia tornar a ligar dali a uma hora, e se você ainda
não tivesse voltado ia continuar ligando de hora em hora,
até você chegar.
Uma onda de felicidade me lavou por dentro. Ele não me
abandonara, eu não fizera nada de errado, minha posição
não tinha sido ocupada por Mandy.
Um pensamento me passou pela cabeça.
— Onde foi que você disse que eu estava? — perguntei,
ofegante.
— Falei que tinha saído.
— Saído com um homem?
— Foi.
— Ótimo. Isso vai deixá-lo preocupado. A que horas
completa uma hora que ele ligou?
Karen se sentou reta no sofá e olhou para mim.
— Por que quer saber? — perguntou. — E claro que você
não vai atender a ligação dele, vai?
— Hã... vou, vou sim — disse, meio envergonhada,
trocando o peso do corpo de um pé para outro.
Daniel balançou a cabeça em uma expressão do tipo
"quando será que ela vai aprender?", e me lançou um
sorriso meio irritado. Que coragem a dele! O que sabia ele
sobre as agonias do amor não correspondido, ou
semicorrespondido?
— Você não tem amor-próprio?— perguntou Karen, sem
acreditar.
— Não — respondi, distraída, meditando sobre que tipo
de tom eu deveria adotar com Gus... Divertido? Chateado?
Severo?
Eu já sabia que ia perdoá-lo. A questão agora era quanto
eu ia me fazer de difícil para obrigá-lo a lutar por aquilo.
— Bem, o funeral é seu — disse Karen, virando as
costas para mim. — Ele deve tornar a ligar daqui a uns
vinte minutos.
Entrei no meu quarto e fiquei dando pulinhos sem sair
do lugar. Vinte minutos, como é que eu ia me segurar?
Mas eu tinha de permanecer calma, não podia deixar
que ele soubesse que eu estava empolgada daquele jeito,
então me forcei a respirar fundo e pausadamente.
Mas não conseguia parar de sorrir. Às cinco para as dez
eu estaria falando com Gus.
Gus, que achei que perdera para sempre, e que agora
mal conseguia esperar.
Quando meu despertador digital mostrou nove e
cinqüenta e cinco, coloquei os pés juntos no chão,
preparados, esperando a largada.
E esperei.
E esperei...
Ele não ligou.
É claro que ele não ligou.
Como é que pude achar que ele ia ligar?
Então, já que eu não ia chorar, comecei a preparar para
mim mesma as desculpas de sempre.
Meu relógio estava adiantado. Gus não conseguia muito
bem calcular a diferença entre cinco minutos e uma hora;
provavelmente ele estava em um pub onde, se é que havia
telefone, provavelmente estava quebrado; se o telefone não
estava quebrado, devia ter alguma mulher de Galway
pendurada nele, ligando para casa e disputando uma
maratona de lágrimas.
Depois de onze horas admiti a derrota e fui para a cama.
"Aquele canalha", pensei, muito zangada. "Teve a chance
de voltar e a estragou. Quando ele ligar, eu não vou
atender. E se atender, vai ser só para informar a ele que
não vou atender."
Algum tempo mais tarde, escutei o interfone tocar, e me
sentei na cama, horrorizada. Ah, não! Ele está aqui,
entrando no prédio, chegando da rua, e tirei toda a
maquiagem! Que desastre! Pulei da cama e ouvi Karen ou
Daniel atendendo a chamada e apertando o controle para
abrir o portão, lá embaixo.
— Puxe assunto com ele para eu ganhar algum tempo —
sussurrei para Karen, enfiando a cabeça para fora do
quarto. — Vou me aprontar em cinco minutos.
— Puxar assunto com quem? — perguntou ela.
— Com Gus, é claro!
— Por que, ele está aqui?
— Está subindo. Você acabou de abrir o portão lá
embaixo para ele.
— Eu não — disse ela.
— Sim, claro que sim — insisti. — Você acabou de fazer
isso. Karen estava se comportando de modo estranho, só
que não
parecia bêbada.
— Não, não abri não! — insistiu ela, olhando para mim
mais de perto. — Você está bem, Lucy?
— Estou ótima — respondi. — Você é que está me
deixando preocupada. Se não era o Gus, então para quem
você acabou de abrir o portão?
— Para o cara da pizza.
— Que cara da pizza?
— O cara da pizza que veio entregar a pizza que eu e
Daniel pedimos.
— Mas onde?
— Aqui — disse ela, escancarando a porta da frente e
revelando a figura de um homem que usava macacão
impermeável vermelho, capacete e segurava uma caixa
baixa, de papelão, nas mãos.
— Daniel — gritou ela —, pode preparar os pratos e os
copos.
— Já entendi — sussurrei e mergulhei de novo na cama.
Por que será que Gus se dera ao trabalho de telefonar,
para início de conversa?, perguntei a mim mesma com os
olhos cheios de lágrimas. O que aquilo me trouxera de
bom? Nada! Só serviu para provocar preocupação e
tumulto dentro de mim.
Horas mais tarde, quando todo mundo já estava na
cama e o apartamento envolto em completa escuridão, o
telefone tocou. Acordei na mesma hora — mesmo quando
eu dormia, meus nervos continuavam em alerta total,
esperando pelo telefonema de Gus. Fui cambaleando de
sono até o corredor para atender, porque eu sabia que só
podia ser o Gus — ninguém mais ia ligar a uma hora
daquelas, só que eu estava sonolenta demais para me
sentir feliz com aquilo. Gus parecia bêbado.
— Posso ir até aí, Lucy? — Foi a primeira coisa que disse.
— Não! — respondi, perguntando-me o que será que
havia acontecido com o velho "oi, Lucy".
— Porém, eu preciso muito vê-la, Lucy! — gritou ele, de
forma veemente.
— E eu preciso dormir.
— Lucy, Lucy, onde está o seu fogo, a sua paixão pelas
coisas? Dormir? Fala sério!... Você pode dormir em
qualquer outra hora. Só que não é todo dia que temos a
chance de estarmos juntos.
Eu sabia daquilo bem demais até.
— Lucy, por favor — insistiu ele. — Você está chateada
comigo, não é?
— Sim, estou muito chateada com você — respondi, no
mesmo tom de voz, tentando não parecer chateada demais
para não espantá-lo.
— Mas, por favor, Lucy, eu tenho uma desculpa —
garantiu ele.
— Então vamos ouvi-la.
— O cachorro comeu todo o meu dever de casa, o
despertador não tocou e a minha bicicleta furou o pneu.
Não achei graça nenhuma.
— Ô-ô... — cantarolou ele. — Ela ficou totalmente muda,
então significa que continua chateada — disse. — Sério
mesmo, Lucy, eu tenho uma desculpa...
— Então, por favor, me diga qual.é.
— Não pelo telefone. Preferia ir até aí para ver você.
— Pois você não vai me ver até eu ouvir sua desculpa —
disse eu.
— Você é muito durona, Lucy Sullivan! — gritou, com a
voz triste. — Implacável! Cruel!
— E a desculpa?... — perguntei, educadamente.
— Olhe, vai ser muito melhor se eu explicar
pessoalmente, ao vivo e em cores. Vozes sem corpo
atravessando o espaço não são tão boas para essas
coisas — explicou ele, de forma sedutora. — Por favor,
Lucy, eu odeio conversar pelo telefone.
Eu sabia disso muito bem.
— Então apareça aqui amanhã, Gus. Agora já está
muito tarde.
— Tarde? Lucy Sullivan, desde quando o tempo
representou alguma coisa para nós dois? Você é como eu,
um espírito livre que não é limitado pelo horário informado
por aquele grupo de pesquisadores sem coração do
Observatório de Greenwich. O que aconteceu com você?
Será que a sua alma foi seqüestrada pelos duendes que
acorrentam as pessoas ao relógio?
Ele fez uma pausa por um segundo, e então disse em
tons de horror contido:
— Por Deus, Lucy, não me diga que você saiu à rua e
comprou um... Comprou um relógio!?
Eu ri. O pequeno canalha. Como é que eu ia assustá-lo
se ele estava me fazendo rir?
— Apareça aqui amanhã de manhã, Gus. — Tentei fazer
a voz soar ríspida e autoritária. — Então, vamos conversar.
— Não existe momento melhor do que o agora —
anunciou ele, com a voz alegre.
— Não, Gus. Amanhã.
— Quem sabe o que nos reserva o amanhã, Lucy?
Amanhã é outro dia, e quem poderá saber onde estaremos?
Não sei se ele teve a intenção, mas eu reconhecia uma
ameaça quando ouvia uma. Era possível que ele não me
ligasse no dia seguinte. Era bem capaz de eu nunca mais
ouvir falar dele. Ali, porém, naquele momento, ele queria
me ver.
Era meu, e eu tornei a me lembrar de que não se deve
olhar os dentes de um cavalo dado, nem chutar a bola
quando ela ainda está quicando, e eu já devia ter
aprendido a diferença entre um pássaro na mão e dois
voando.
Você vai mesmo aceitá-lo nestes termos?, perguntou a
vozinha dentro da minha cabeça.
Vou!, repliquei, com ar cansado.
Mas você não tem amor-pró...?
Não, não tenho! Quantas vezes vou ter que lhe dizer isto?
— Tá legal, Gus — suspirei, fingindo que acabara de
ceder, embora, é claro, já soubesse, no fundo, o tempo
todo, que era aquilo que ia acabar acontecendo. — Pode
vir.
— Já estou indo — disse ele.
Isso podia significar qualquer período de tempo, de
quinze minutos a quatro meses, e o meu grande dilema
era: será que eu devia me maquiar para recebê-lo ou ficar
assim mesmo, como estava?
Sabia muito bem dos perigos de se testar o destino. Se
eu colocasse maquiagem, ele não ia aparecer. Se eu não
colocasse maquiagem, ele viria, com certeza, mas ficaria
tão chocado ao ver a minha cara lavada que ia fugir
correndo.
— O que está acontecendo? — sussurrou uma voz. Era
Karen. — Quem estava ao telefone? Era o Gus?
— Desculpe por acordar você. — Concordei com a
cabeça.
— Você mandou ele ir embora e se foder?
— Hã... não. Sabe, é que não ouvi a história toda ainda.
Ele... hã... está vindo aí para me contar o que aconteceu.
— Agora!? Às duas e meia da manhã?
— Não existe melhor momento do que o agora — disse,
baixinho.
— Em outras palavras, ele estava em uma festa, não
conseguiu arrumar ninguém e está a fim de uma transa.
Essa foi legal, Lucy, você está mesmo se valorizando ao se
fazer de tão difícil desse jeito.
— Não é bem isso... — disse, com o estômago já ficando
embrulhado.
— Boa-noite, Lucy — suspirou ela, me ignorando por
completo. — Vou voltar para a cama. Com Daniel —
acrescentou, com cara de convencida.
Eu sabia que ela ia contar a Daniel tudo o que acabara
de acontecer, porque ela contava a Daniel tudo o que
acontecia comigo.
Bem, pelo menos contava os vexames, micos diversos e
lances embaraçosos. Eu não tinha privacidade, detestava
o fato de ele saber tanta coisa a meu respeito e se mostrar
complacente e crítico.
Ele vivia no nosso apartamento, era como se morasse lá,
conosco. Por que Daniel e Karen não podiam ir para o
apartamento dele, de vez em quando, só para me deixar
um pouco em paz?
Eu adoraria se eles terminassem o namoro, pensei, de
forma cruel.
Decidi ludibriar o destino, já estava farta de vê-lo exercer
sozinho todo aquele poder, e assim, apesar de colocar um
pouco de maquiagem, não troquei de roupa.
Logo depois, a campainha do interfone ecoou por todo o
apartamento de um jeito capaz de acordar até os mortos.
O barulho parou por um breve tempo, oferecendo uma
bendita oportunidade de apreciarmos as maravilhas do
silêncio, e depois voltou a atacar, agredindo nossos
ouvidos por mais alguns segundos intermináveis que nos
pareceram horas. Gus chegara.
Abri o portão da rua e fiquei esperando que aparecesse,
subindo as escadas, mas isso não aconteceu. De repente,
ouvi vozes alteradas no corredor, alguns andares abaixo
do nosso. Finalmente, ele surgiu, cambaleando, subindo o
lance de escadas, parecendo lindo, sexy, descabelado e
bêbado.
Eu estava perdida, de forma irremediável e completa. Só
no momento em que o vi compreendi o quanto sentira a
sua falta.
— Nossa, Lucy — resmungou ele, enquanto passava por
mim, meio tonto, e entrava no apartamento. — Aquele seu
vizinho tem um gênio muito bravo. Qualquer um pode se
enganar de porta.
— O que aconteceu, Gus? — perguntei.
— Toquei a campainha errada — disse com ar ressentido,
arrastando-se direto para o meu quarto.
Ei, ei, espere um minutinho!, pensei. Ele está parecendo
muito atirado e seguro de si. Não pode entrar valsando
assim aqui dentro, depois de ficar sem dar as caras por
três semanas e ainda achar que pode pular direto na cama
comigo.
Aparentemente, ele podia. Já estava sentado na beira da
cama, tirando as botas.
— Gus... — tentei falar, prestes a dar início à palestra
que preparara. Vocês sabem, o texto de sempre... como
ousa me tratar desse jeito, quem você pensa que é, quem
você pensa que sou, tenho muito respeito por mim mesma
(uma mentira), não vou aturar uma coisa dessas (outra
mentira) etc. etc.
— E então, Lucy, eu disse para o seu vizinho: "Eu
apenas acordei você. Até parece que estou invadindo a
Polônia!" Rá-rá, eu sabia que isso ia deixá-lo desarmado.
Ele é alemão, não é?
— Não, Gus, não é. É austríaco.
— Claro, dá no mesmo. Não são aqueles caras grandes,
louros, que só comem salsichas?
E então conseguiu focar os olhos errantes e injetados de
vermelho em mim, notando meu rosto pela primeira vez
desde que invadira o apartamento.
— Lucy! Minha querida Lucy, você está linda! Levantou-
se da cama de um pulo e correu até onde eu estava. O
cheiro dele ativou em mim uma carência e um apetite
que me pegaram de surpresa, pela intensidade.
Hummmmm, Lucy, senti muitas saudades — disse ele,
esfregando o nariz no meu pescoço e enfiando a mão por
baixo do meu paletó de pijama. O toque da mão dele na
minha pele nua me fez começar a estremecer, despertando
um desejo que dormia dentro de mim a sono solto havia
três semanas, mas, em um gesto supremo de autocontrole,
eu o empurrei para longe.
Chega pra lá!, pensei. Você ainda não ouviu o meu
sermão.
— Ah, Lucy, Lucy — murmurou ele, tornando a me
atacar. — Nunca mais vamos nos separar, nunca mais.
Enlaçou minha cintura fortemente com um braço,
apertando-a com a mão, enquanto começava a desabotoar
o meu pijama com a outra. Eu me desvencilhei, tentando
fechá-lo de novo, mas era só para fazer gênero.
Não conseguia me controlar. Ele era sexy demais. Lindo,
perigoso e muito malandro. E tinha um cheiro tão gostoso,
tão tipicamente Gus.
— Gus! — Lutei com ele enquanto ele tentava tirar a
parte de cima do meu pijama. — Você não me ligou por
três sema...
— Eu sei, Lucy, sinto muito — replicou ele, enfiando os
dedos com mais força. — Eu não queria que isso tivesse
acontecido. Nossa, você é linda!
— Eu mereço uma explicação, sabia? — Resisti com
mais força, enquanto ele me empurrava em direção à
cama.
— Claro que merece, Lucy, claro que merece —
concordou vagamente, enquanto fazia pressão sobre os
meus ombros para me obrigar a dobrar as pernas. — Mas
isso não pode ser feito amanhã de manhã?
— Gus, você jura solenemente que tem uma boa
desculpa e que amanhã de manhã vai me contar tudo o
que houve?
— Juro — afirmou, olhando fixamente para os meus
olhos e ao mesmo tempo enfiando os dedos com mais
força, tentando arriar minha calça de pijama. — E você
pode me esculachar, me dar um esporro. Pode até me
fazer chorar — garantiu ele.
Então fomos para a cama.
Eu me lembrava do que Karen dissera, mas discordava
dela. Não me sentia usada. Queria que Gus tivesse
vontade de transar comigo. Isso provava que ele ainda
gostava de mim, que não desistira de ficar comigo, e que,
embora tivesse sumido por três semanas, a culpa não fora
minha.
Decidi que o sermão podia ficar para de manhã. Assim,
cedi ao desejo: Gus e eu começamos a transar. Só que eu
havia esquecido que Gus era assim meio "bateu-valeu,
muito obrigado". A transa mal começara e já tinha
acabado. Como no passado, Gus gozou em questão de
segundos. O que deixou bastante tempo de sobra para que
eu ouvisse as suas desculpas. Mas ele caiu no sono na
mesma hora. Finalmente, eu peguei no sono também.





















CAPÍTULO 48
Quando amanheceu, Gus não se mostrou mais fácil de
se deixar segurar, a fim de ouvir o sermão.
Considerando-se o quanto estava bêbado na noite
anterior, ele acordou surpreendentemente cheio de energia.
Pela ordem natural das coisas, ele devia estar chapado de
costas, com ressaca, morrendo de sede e jurando nunca
mais tornar a beber, como qualquer pessoa normal. Em
vez disso, já estava acordado aos primeiros raios da
manhã, comendo biscoitos. Quando o carteiro chegou, ele
foi correndo até a porta para pegar a correspondência e,
fazendo uma barulhada danada enquanto manuseava os
envelopes, rasgou com estardalhaço os envelopes das
cartas endereçadas a mim e me informou o que havia
nelas.
— Ora, muito bem, Lucy, grande garota! — Ele parecia
orgulhoso. — Fico satisfeito em saber que você está
devendo ao pessoal do cartão de crédito muito mais do que
antes. Agora, tudo o que tem a fazer é se mudar daqui sem
avisar a eles.
Fiquei deitada na cama, desejando vagamente que ele
acalmasse o facho. Ou pelo menos parasse de me lembrar
do quanto eu devia na praça.
— Que loja é essa... Russell & Bromley? — quis saber
ele. — É aquele seu velho problema de novo?
— É. — Um par de botas de camurça preta que iam até
os joelhos e umas sandálias sexy, de pele de cobra, para
ser mais exata. — Agora, Gus — tentei falar com firmeza
para atrair a sua atenção —, nós temos que conver...
— E o que é isto aqui, Lucy? — acenou com um envelope
para mim. — Parece que é o extrato bancário da Karen.
Você não quer dar uma olhadinha?
Nossa, aquilo era tentador! Charlotte e eu
desconfiávamos de que Karen tinha milhares de libras
aplicadas, sem contar para ninguém, e eu adoraria ter a
confirmação disso.
Mas tinha outro trabalho a fazer.
— Deixe o extrato de Karen pra lá, Gus. — Tentei
novamente. — Você disse que tinha uma boa desculpa, na
noite passada, e que...
— Posso tomar um banho, Lucy? — interrompeu ele. —
Acho que estou fedendo um pouco.
Levantou o braço e enfiou o nariz na axila.
— Puuff... — reagiu, fazendo cara de nojo. — Estou
fedendo, logo existo... — filosofou.
Para mim, ele estava com cheiro bom.
— Você pode tomar um banho daqui a pouco, Gus.
Passe esse envelope para cá.
— Mas nós podemos abri-lo no vapor, e Karen jamais vai
descobrir...
Era óbvio que, a despeito das suas promessas
entusiasmadas da noite anterior, ele não tinha a menor
intenção de me explicar coisa alguma.
E eu estava tão maravilhada por ele ter voltado que não
queria espantá-lo exigindo explicações e pedidos de
desculpas.
Ao mesmo tempo, ele precisava entender que não podia
escapar impune depois de me tratar tão mal.
É claro que ele podia escapar impune depois de me
tratar mal, na verdade acabara de conseguir isso. Mas eu
precisava, pelo menos, lançar o meu protesto, e agir como
se tivesse respeito por mim mesma. Na esperança de que,
apesar de não conseguir me enganar, eu conseguisse
enganá-lo.
Eu ia ter de enganá-lo para chegar à velha Conversa
Séria. O que aconteceu ia ter de ser arrancado dele aos
poucos, eom muita paciência e persuasão, para que ele
nem sentisse que estava entregando o ouro.
Gus jamais cooperaria se fosse abordado assim de frente,
cara a cara.
Eu ia ter de me mostrar muito, muito gentil, mas com
um fundo de firmeza e determinação.
Virei-me para Gus, que estava esticado em cima da
cama, lendo a oferta de um plano de previdencia privada
que o banco me enviara.
— Gus, preciso muito conversar com você — declarei,
tentando fazer com que aquilo soasse agradavelmente
firme ou, na falta disso, firmemente agradável.
Devo ter exagerado na firmeza, porque ele disse "ô-ô..." e
fez uma cara de "ô-ô...". Pulou da cama na mesma hora e
se enfiou todo encolhido, com cara de assustado, no
espaço entre o guarda-roupa e a parede, choramingando:
— Tô com medinho...
— Ora, vamos lá, Gus, não há razão para ficar
assustado.
— Não estou assustado. Estou só com medinho...
— Com medinho, então. Não precisa ficar.
Mas ele não estava levando nada daquilo a sério.
Continuava a colocar a cabeça cheia de cabelos cacheados
para fora do buraco, mostrando os olhinhos brilhantes por
um segundo, e então se escondia outra vez, começando a
murmurar, baixinho:
— Ai, eu tô lascado, tô ferrado, já era... ela vai fazer
picadinho de mim!
Então ele começou a cantar uma canção, alguma coisa
sobre manter o bastão sempre ereto e assobiar uma
melodia alegre quando se sentisse amedrontado, para que
ninguém suspeitasse de que ele estava com medo.*
— Gus, pare com isso e saia daí, não precisa ter medo!
Tentei rir, para provar como eu era bem-humorada, mas
era
muito difícil manter a paciência. Seria maravilhoso
poder gritar com ele.
— Vamos lá, Gus, eu não assusto ninguém, você sabe
disso.
— A única coisa que devemos temer é o próprio medo,
não é? — perguntou a voz atrás do armário.
— Exato — concordei, olhando para o guarda-roupa.
— O problema, Lucy — a voz continuou —, é que eu
morro de medo do medo.
— Bem, então pode parar de ter medo. Não há nada a
temer comigo.
Ele colocou a cabeça para fora, parecendo um gatinho.
— Você não vai gritar comigo?
— Não — fui obrigada a prometer a ele. — Não vou gritar
com você. Só que preciso saber onde foi que esteve nas
últimas três semanas.
— Tem tanto tempo assim?
— Ah, qual é, Gus? A última vez em que tive notícias
suas foi na terça-feira, antes da reunião que a Karen
ofereceu aqui em casa. O que tem feito por aí?
— Ah, uma coisa e outra... — explicou, de forma bem
vaga.
— Você não pode simplesmente desaparecer por três
semanas, sabia? — Mas disse isso com todo o jeitinho,
para que ele não ficasse aborrecido e mandasse eu me
catar, dizendo que ia sumir por quanto tempo quisesse e
não havia nada que eu pudesse fazer para evitar isso.
— Tudo bem, então... eu conto — disse ele. Eu me
inclinei em sua direção, ávida, na esperança de ouvir
histórias de desastres naturais e atos de Deus. Assim,
nem eu nem Gus seríamos responsáveis pela separação de
três semanas.
— Meu irmão chegou para me visitar, vindo da Irlanda, e
nós festejamos com uma rodada de bebidas.
— Uma rodada que durou três semanas? — perguntei,
sem acreditar. Não estava gostando daquela história de
ficar falando "três semanas" sem parar, senti que devia ser
mais vaga a respeito do período de tempo. Não queria que
ele ficasse achando que fiquei em casa, contando os dias
desde que ele sumira, o que, é claro, fora exatamente o
que eu havia feito.
— Foi, uma rodada que durou três semanas —
confirmou ele, parecendo surpreso. — O que há de errado
nisso?
— O que há de errado nisso? — ecoei, com voz de
deboche.
— Já andei desaparecido, perdido em ação, por muito
mais do que três semanas — afirmou ele, parecendo
confuso.
— Você está tentando me dizer, então, que esteve
bebendo sem parar durantetrês semanas?
E subitamente me senti estarrecida comigo mesma.
Estava parecendo a minha mãe, com o mesmo tom de voz,
o ar de acusação e até as palavras que estava usando.
— Opa, desculpe, Lucy, gatinha... — disse Gus. — A
coisa não é assim tão má quanto parece. Eu me esqueci
da festa de Karen, e quando lembrei, fiquei com medo de
telefonar para você, porque sabia que você devia estar por
conta comigo.
— Mas, então, por que não me telefonou no dia
seguinte? — perguntei, encolhendo-me de dor ao lembrar
da agonia pela qual eu passara, esperando por ele.
— Porque eu me senti arrasado por ter me esquecido da
festa e ter deixado você aborrecida, e então Stevie disse
para mim: "Só tem uma coisa que pode resolver isso,
garoto..."
— ...Mais uma dose, sem dúvida — completei a frase
para ele.
— Exato! E quando chegou o dia seguinte...
— ...Você se sentiu tão mal por não ter me telefonado na
véspera que teve que tomar mais um porre para se sentir
bem a respeito do problema...
— Não — reagiu ele, parecendo surpreso. — No dia
seguinte ia haver um grande festival em Kentish Town,
que começava às onze da manhã. Eu e o meu irmão fomos
até lá e enchemos a cara. Foi um porre federal, Lucy.
Federal! Aposto que você nunca viu uma pessoa tão
bêbada. Eu nem sabia qual era o meu nome.
— Isso não é desculpa! — exclamei, e então parei de
falar na hora ao ouvir saindo da minha boca, novamente,
a voz da minha mãe.
— Você sabe que não me incomodo de você ficar
bêbado. — Tentei fazer a voz parecer bem calma. — Mas
não está certo simplesmente desaparecer e depois voltar
agindo como se não houvesse nada de errado.
— Desculpe! — exclamou ele. — Desculpe, desculpe,
desculpe! Então eu me preparei para a pergunta mais
difícil de todas:
— Gus, quem é Mandy?
Fiquei olhando bem firme para o seu rosto, para ver se
conseguia tirar alguma conclusão pela reação dele.
Foi minha imaginação ou ele pareceu um pouco
assustado?
Pode ter sido minha imaginação. Afinal, ele não deixou
cair o queixo nem enterrou o rosto nas mãos, soluçando e
dizendo: "Eu sabia que este dia ia chegar."
Na verdade, tudo o que fez foi parecer irritado, e
respondeu:
— Ninguém.
— Ela não pode ser "ninguém". É uma pessoa. — Sorri
com vontade para convencê-lo de que não o estava
acusando de nada, e que a minha raiva era totalmente
amigável.
— Ela não é ninguém em especial. Apenas uma amiga.
— Gus — disse eu, sentindo o coração bater mais
depressa —, não há necessidade de mentir para mim.
— Mas eu não estou mentindo. — Ele parecia ofendido,
magoado.
— Não estou dizendo que você está. Mas, se você está
saindo com mais alguém, eu gostaria de saber.
Eu não disse "se você está saindo com mais alguém,
quero que vá se foder", que é o que eu devia ter dito. Não
queria cometer o pecado capital de parecer me importar.
Reza a sabedoria popular que as mulheres ficam
desesperadas para prender os homens, e que os homens
morrem de medo de se sentirem presos. Portanto, a
melhor maneira de prendê-los é fingir que não quer
prendê-los.
Entretanto, esse tiro havia saído pela culatra mais vezes
do que eu gostava de lembrar, comigo dizendo "você não é
propriedade minha, mas, se está se encontrando com mais
alguém, eu gostaria de saber". E então encontrando o tal
namorado em uma festa, todo enroscado em volta de outra
mulher enquanto oferecia um drinque a outras duas, para
no fim me dizer: "Mas você disse que não se importava."
— Lucy, não estou saindo com nenhuma outra garota —
disse Gus. Não estava mais na defensiva e tinha um ar de
sinceridade nos olhos verdes.
Parecia se importar comigo. E mesmo com o receio de
ser ingrata, forcei um pouco mais:
— Gus, você estava saindo com outra pessoa quando,
hã... nós começamos a sair juntos?
Ele pareceu intrigado por um momento, enquanto
traduzia a minha pergunta para a língua dele. Finalmente
sacou.
— Você quer saber se eu estava chifrando você? —
pareceu horrorizado. — Pois eu NÃO estava.
Sempre havia a chance de ele estar falando a verdade.
Pensando bem, provavelmente estava, pois não possuía a
capacidade organizacional para levar uma vida dupla. Do
jeito que ele era, já era um triunfo ele se lembrar de
continuar respirando quando acordava, todas as manhãs.
— Como ousa? — reagiu ele. — Que tipo de pessoa você
acha que sou?
A combinação de suas negativas enérgicas e o meu
desejo desesperado de acreditar nele resolveu o problema.
O alívio me fez ficar alegre e com a cabeça bem mais leve.
Então ele me beijou e eu me senti com a cabeça ainda
mais leve.
Então ele me beijou e eu me senti com a cabeça ainda
mais leve.
— Lucy — afirmou ele —, eu jamais faria nada que
pudesse magoar você.
Acreditei nele. Seria grosseiro trazer à baila o fato de que
ele já me magoara. O importante é o fato de que ele não
fizera aquilo de propósito.
— Agora, posso tomar uma chuveirada? — perguntou
ele, humilde.
E foi para o banheiro, enquanto fiquei pensando em
minha mãe. Ficara muito apavorada por me ouvir falando
as coisas que ela dizia. Ia tentar ser cada vez mais liberal,
prometi a mim mesma.
Ouvi quando Daniel e Karen cumprimentaram Gus, no
momento em que ele saía do banheiro.
— Bom-dia, Gus — disse Daniel. Será que havia um
certo tom de divertimento em seu tom de voz? Analisei, na
defensiva.
— Bom-dia, Daniel, meu garoto. Bom-dia, senhorita
Morag McVitie — disse Gus, bem jovial, dirigindo-se a
Karen, como se nunca tivesse desaparecido dali.
— Bom-dia, senhor Bronco McBronca — respondeu
Karen para Gus.
— Bom-dia, senhorita Invocada McCroquete — disse
Gus para Karen.
— Bom-dia, senhor Pirado McZureta — disse Karen para
Gus.
— Bom-dia, senhorita Mão-Fechada McSean Connery —
disse Gus para Karen.
— Bom-dia, senhor Maria do Rosário McSemtex* — disse
Karen para Gus.
— Bom-dia, senhorita Ronald McDonald — disse Gus
para Karen.
Ouvi-os se dobrando de tanto rir. A porta do banheiro
era, certamente, o lugar mais divertido da casa.
Uma amiga que dividia o apartamento comigo e seu
namorado já haviam conseguido reatar a amizade com
Gus de forma bem-sucedida, e ninguém se sentia
constrangido, exceto eu mesma.














CAPÍTULO 49
Assim, Gus e eu voltamos a ficar juntos.
Tentei relaxar e afrouxar um pouco a corda em volta do
pescoço dele.
Gus era um espírito livre, eu vivia me lembrando. Regras
normais não se aplicavam a ele. Só porque ele se atrasava
ou ficava conversando durante horas com alguém em uma
festa na qual ele me levara e na qual eu não conhecia
ninguém não significava que ele não ligava para mim.
Não que eu estivesse baixando o nível das minhas
expectativas, decidi. Simplesmente estava mudando o
ângulo de ver as coisas.
Sabia que ele gostava de mim porque voltara depois de
um hiato de três semanas. Ele não tinha de fazer isso,
ninguém o obrigara.
Assim, com minha nova atitude, Gus e eu nos dávamos
maravilhosamente bem. Ele se comportava de modo
impecável. Bem, tão impecável quanto ele conseguia sem
deixar de ser Gus.
Era verão e, para variar, parecia um verão de verdade.
O tempo em Londres estava quente e ensolarado, tão
diferente de suas características que muitas pessoas viam
naquilo um sinal de que o mundo estava próximo do fim.
Era um dia dourado atrás do outro, com céu azul e calor,
mas a população da cidade já havia sido traída tantas
vezes pelo tempo que todos esperavam que a onda de calor
fosse se dissipar a qualquer momento.
Todos balançavam a cabeça e previam, com ar sombrio:
"Esse tempo não vai durar muito não." Só que durou, e
parecia que o sol ia brilhar para sempre.
Lembro-me daquela época como idílica.
Semanas e semanas durante as quais a vida parecia
paradisíaca, e eu sentia como se estivesse vivendo dentro
de um pequeno casulo dourado.
Meu quarto era inundado por uma quente luz amarela
todas as manhãs, de modo que era quase um prazer me
levantar e tocar a vida.
Minha depressão sempre diminuía no verão, e até
mesmo ir para o trabalho não me parecia tão penoso.
Especialmente depois que armamos um minimotim e o
Departamento de Manutenção foi obrigado a nos comprar
um ventilador.
Na maioria dos dias, na hora do almoço, Jed e eu íamos
à praça Soho, onde nos misturávamos com milhares de
outros empregados de escritório em busca de um metro
quadrado de grama no qual pudéssemos lagartear ao sol e
ler nossos livros.
Jed era a melhor pessoa para fazer isso, porque se ele
tentasse falar comigo eu podia simplesmente mandá-lo
calar a boca, e ele calava. Ficávamos então ali, estendidos,
em um silêncio cheio de companheirismo.
Pelo menos eu considerava companheirismo. Meredia
nunca ia conosco, porque odiava o sol. Passava sua hora
de almoço enfiada no escritório, com as persianas
abaixadas, tentando lançar uma praga no clima, para que
chovesse. Todo dia ela lia a previsão do tempo, na maior
ansiedade, esperando por notícias a respeito de uma
queda na temperatura, revoltando-se quando as imensas
nuvens negras que vinham da Irlanda passavam direto
pela Grã-Bretanha e seguiam em frente, em direção à
França.
Durante o dia todo ela nos brindava regularmente com a
imagem de sua saia levantada, enquanto espalhava
toneladas de talco entre as coxas colossais.
— Tempo quente não é bom para gente gorda, não —
explicava ela, com tom amargo, e a seguir perguntava se
queríamos ver as suas assaduras.
A única coisa que a deixava mais animada era descobrir
no jornal as temperaturas dos lugares onde estava mais
quente do que em Londres.
— Pelo menos eu não estou em Meca — suspirava, de
vez em quando. Ou então:
— Imagine só como deve estar quente no Cairo! Megan
também não ia conosco para o parque.
Como uma verdadeira australiana, ela estava feliz como
pinto no lixo, com aquele calor todo, e levava o seu banho
de sol muito a sério. Bem mais a sério do que Jed e eu.
Debochava abertamente de mim e de todas aquelas
mulheres que ficavam sentadas na grama com a saia
levantada acima dos joelhos, se achando ousadas e
liberadas. Ela era de outra tribo. Ia para a piscina e fazia
topless.
A implicância dela com Meredia andava ainda mais forte
do que o normal.
— Escute aqui, Pauline — dizia ela, entre dentes —, se
você não parar de reclamar do suor nas suas coxas, vou
mostrar pra todo mundo os meus mamilos queimadinhos
de sol.
— Continue reclamando, não pare de reclamar — pediu
Jed, todo assanhado, para Meredia. Ela jogou-lhe um
olhar azedo e murmurou para Megan:
— Meu nome é Meredia!
Megan floresceu com o calor. Estava totalmente à
vontade com ele. Ia trabalhar de shortinhos jeans curtos,
desfiados na bainha. Não era culpa dela se parecia uma
daquelas personagens do seriado S.O.S. Malibu. Não
estava tentando ser provocante, simplesmente não podia
deixar de ser linda.
Eu, por mim, estava contente por não ser australiana.
Ficaria inibida demais se tivesse de circular pela rua
seminua. Agradecia a Deu» por ter nascido em um país
frio.
Quase todas as tardes havia uma rodada de sorvete, e
até Ivor se juntava a nós. Como soldados inimigos que
jogavam uma partida de futebol em campo neutro no Natal,
aquele tempo incomum fazia com que suspendêssemos as
hostilidades do dia-a-dia.
Apesar disso, não era nada agradável ter de aturar Ivor
mastigando toda a cobertura de chocolate do seu Magnum
para depois ver sua língua gorda e vermelha lambendo
lentamente o interior cremoso.
Megan acabou sendo convocada para ir até o
Departamento de Pessoal, porque houve uma queixa a
respeito dos seus shorts. A reclamação devia ter sido feita
por alguma funcionária. Certamente o reclamante não foi
nenhum dos homens que vinham em bandos e entravam
em nossa sala ao menor dos pretextos só para inspecionar
as pernas de Megan, longas e douradas.
Meredia ficou toda empolgada quando soube que Megan
subira. Tinha esperanças de que ela fosse despedida. Só
que Megan voltou com um sorriso misterioso e satisfeito.
— Quer que nós a ajudemos a esvaziar a sua mesa? —
ofereceu Meredia, esperançosa.
— Talvez, Rosemary, talvez. — Sorriu Megan, de forma
afetada.
— Por que você está assim tão satisfeita? — Meredia
estava confusa e desconfiada. — E o meu nome é
Meredia — acrescentou, com olhar vago.
— É que talvez eu seja promovida... — Megan enfatizou
bem a frase, apontando para o teto. — Acho que vou lá pra
cima.
Meredia pareceu fulminada.
— O que quer dizer? — perguntou ela, com um gemido.
E então, se recuperando, debochou:
— Lá para cima, no andar da fila do auxílio-desemprego?
— Ah, não — disse Megan, com aquele misterioso,
enigmático e satisfeito sorriso de esfinge. — Mais acima.
Meredia estava com um olhar de quem ia morrer a
qualquer momento.
— Quantos andares? — conseguiu perguntar, com a voz
rouca. — Um?
Megan sorriu e balançou a cabeça.
— Dois?
Outro sorriso e outro balançar de cabeça. Meredia mal
conseguiu piar, bem baixinho:
— Três?
E Megan, cruel como nunca, esperou alguns segundos,
deixando-nos sem respirar por uma eternidade, antes de
balançar a cabeça mais uma vez.
— Não pode... não pode ser o quarto andar — sussurrou
Meredia.
— Mas é esse mesmo, gordinha. O quarto andar!
Pelo jeito, Megan e seus shorts exíguos haviam agradado
a Frank Erskine, um dos velhos carecas barrigudos e
flácidos da Administração E, à maneira típica com que os
deuses costumavam agir, ek prometera a Megan arranjar
uma posição para ela no quarto andat
— Mas que posição será essa? — perguntou Meredia,
com amargura. — A posição "de costas em cima da mesa"?
A novidade se espalhou mais depressa do que piolho em
escota fundamental, pois a história do curto atalho de
Megan para a glórta cativou a imaginação de todos os
funcionários. Aquela era a fantasia de todo mundo: ser
arrancado do anonimato do Controle de Crédito, no andar
térreo, e ser subitamente elevado às alturas do quarto
andar. Com um aumento proporcional no salário, é claro.
As pessoas suspiravam e falavam:
— E eu que não acreditava em contos de fadas...
Meredia recebeu muito mal a notícia, ficou arrasada. Já
estava ali havia oito anos, gemia, oito anos, e a piranha
australiana mal desembarcara do avião! Além de,
provavelmente, ser descendente de um ladrão de ovelhas.
Ou até mesmo de um cara que transava com as
ovelhas... Aquela vadia!...
Sempre que alguém comentava com Meredia "ouvi dizer
que Megan vai subir na vida...", ela explicava: "Vai subir
na vida porque já desceu muito, se é que você me
entende..." E então apertava os labios e balançava a
cabeça para a frente como quem sabe das coisa.
Não levou muito tempo para as declarações insultuosas
de Meredia chegarem aos ouvidos de Megan.
Megan, com os olhos afilados de tanta raiva, levou
Meredia para um canto. Não estou bem certa do que disse
a ela, mas, seja o que for, foi o bastante para deixar
Meredia pálida e aterrorizada por uns dois dias. A partir
daí, ela passou a acentuar com muita ênfase que Megan
conseguira a promessa de promoção por conta unicamente
dos seus méritos profissionais.
Pelo menos era o que ela falava em público.




















CAPÍTULO 50
Relembrando aquele verão, eu me recordo de que Gus
sempre ia me pegar depois do trabalho, bem na hora em
que o calor mais escaldante do dia começava a diminuir. E
nós íamos então sentar do lado de fora de pubs, em noites
agradáveis, para beber cerveja bem gelada, conversar e rir.
Às vezes havia um monte de gente conosco, outra vezes
era apenas Gus e eu. Mas havia sempre aquele ar parado,
morno, o bater dos copos e o zumbido das conversas.
O sol não se punha até bem tarde, e o céu nunca se
transformava totalmente em um breu. O azul se fechava
um pouco, se aprofundava, até assumir um tom mais
escuro, e então, poucas horas mais tarde, o sol se
levantava novamente, trazendo mais um dia fulgurante.
E o calor também mexia com as pessoas, deixando-as
muito mais simpáticas.
Londres estava cheia de gente conversadeira e amigável,
as mesmas pessoas que se arrastavam devagar de forma
infeliz por todo o resto do ano. Seu estado de espírito
parecia mais aberto, mais mediterrâneo, pelo fato de elas
serem capazes de se sentar na calçada às onze da noite
vestindo apenas uma camiseta sem morrerem congeladas.
E quando olhávamos em volta de uma taberna com
mesas ao ar livre cheias de gente, estava na cara quem
trabalhava e quem estava desempregado. Não apenas pelo
fato de os desempregados jamais pagarem a rodada, mas
pelo seu brilhante bronzeado.
Estava sempre quente demais para alguém sequer
pensar em comer antes das dez ou onze da noite, hora em
que íamos perambulando até algum restaurante com
portas e janelas dando para a rua e bebíamos vinho barato,
fingindo que estávamos em solo estrangeiro.
Todas as noites íamos para a cama com as janelas
abertas, cobertos só por um lençol, e mesmo assim
continuava muito quente para dormir.
Era impossível imaginar que a gente um dia ia voltar a
sentir fria Uma noite estava tão quente que eu,
desesperada, entornei um copo d'água em cima de mim
mesma, na cama. O que foi muito agradável. E o nível de
paixão que aquilo provocou em Gus foi ainda mais
agradável.
Havia sempre coisas demais a fazer. A vida se resumia a
um desfilar infinito de churrascos, festas e noites ao ar
livre, pelo menos é como me lembro daqueles dias. Deve
ter havido algumas noites em que fiquei em casa
assistindo à tevê e fui para a cama cedo, mas, se houve,
não me lembro delas.
Não apenas havia sempre um monte de coisas para fazer,
mas um monte de pessoas com quem compartilhar tudo.
Sempre havia alguém com quem sair. Isto é, além de Gus,
que estava disponível em todas as noites.
Jamais havia perigo de querermos tomar um drinque e
não termos com quem sair.
O pessoal do escritório saía muito em nossa companhia.
Até a pobre Meredia se arrastava conosco, arquejando e se
abanando toda, descrevendo o quanto se sentia fraca.
Jed e Gus se deram muito bem um com o outro, pelo
menos depois de algum tempo. Quando se encontraram
pela primeira vez, pareciam dois meninos tímidos que
queriam brincar um com o outro, mas não sabiam como.
Finalmente, aos poucos, os dois foram saindo da barra da
minha saia e se conectaram. Gus deve ter se oferecido
para mostrar seu estoque de baseados a Jed, ou algo
assim. A partir disso, não pararam mais. Eu mal
conseguia conversar com Gus nas noites em que Jed saía
conosco. Os dois ficavam de papo, muito compenetrados e
falando baixinho sobre algum assunto que eu achava que
tinha a ver com música. Os rapazes sempre conversam
sobre esse tipo de coisa. Ficam disputando uns com os
outros quem lembra do nome de algum grupo obscuro
com quem alguém tocava guitarra, antes de sair para
tocar com outro grupo. Aquilo era capaz de distraí-los
durante dias.
Quando alguém perguntava a Jed e a Gus sobre o que
estavam conversando, eles respondiam misteriosamente;
"É conversa de homem, você não vai entender,"
O que lhes garantia sorrisos indulgentes, até a noite em
que disseram isso para Simon, o namorado de Charlotte.
Jed e Gus ficavam zoando Simon o tempo inteiro, por
causa de seu interminável estoque de roupas fashion de
boa qualidade, sua agenda eletrônica e o exemplar de
Arena ou GQ que ele sempre carregava debaixo do braço.
Só que eles não precisavam ser tão cruéis a respeito disso.
Jamais perdiam a oportunidade de implicar com o velho
Simon.
— Essa camisa é nova? — perguntou Gus a Simon uma
noite. Estava com uma expressão adocicada no olhar, que
prometia alguma...
— Sim, comprei na loja do Paul Smith — disse Simon,
todo orgulhoso, abrindo os braços para todos darem uma
boa olhada nela.
— Nós até parecemos irmãos gêmeos! — exclamou Gus,
de forma encantadora. — Essa camisa é igualzinha a
umas que eu comprei no camelô da Chapei Street, a uma
libra cada. Só que eu acho que os caras de quem comprei
não trabalhavam na loja do Paul Smith, não, porque eles
foram em cana no mês passado por receptação de
mercadorias roubadas. Tem certeza de que essa aí é uma
Smith legítima?
— Sim — disse Simon, com a voz rígida. — Tenho
certeza.
— Talvez eles já tenham saído da cadeia — comentou
Gus, vagamente. E então passou para outro assunto, feliz
por ter estragado a alegria de Simon e sua camisa nova.
Pintou então a tão esperada noite em que Dennis
finalmente conheceu Gus. Dennis apertou a mão de Gus e
sorriu, com toda a educação. Então, virou-se para mim
com uma cara angustiada, enfiando os nós dos dedos na
boca e dizendo:
— Quero uma palavrinha em particular com você. — E
me empurrou até o fundo do pub.
— Ai, Lucy — gemeu ele. — Que foi?
Dennis colocou as duas mãos no rosto de forma
histérica e sussurrou, muito dramático: — Ele parece um
anjo, um anjo completo!
— Você gostou dele? — Fiquei com o peito inflado de
orgulho.
— Lucy, ele é DIVINO! Eu tinha de concordar.
— É tão raro a gente encontrar um irlandês boa-pinta —
comentou Dennis —, mas também, quando eles resolvem
ser bonitos, arrasam!
Não que Dennis tivesse como saber disso. Pelo menos se
tomase como base o que via no espelho.
Dennis alugou Gus a noite inteira, o que me deixou meio
cabreira. Dennis vivia apregoando que no amor e na
guerra valia tudo. Pelo menos quando ele se interessava
pelo namorado de alguém, era assim que agia. E mais
tarde, naquela noite, quando Gus e eu estávamos indo
para casa de ônibus, Gus disse:
— Aquele seu amigo, Dennis, é um cara muito legal.
Será que Gus era tão inocente assim?
— Ele tem namorada, Lucy?
— Não.
— Que pena, um cara tão legal como ele.
Eu me preparei para ouvir Gus contar que marcara um
encontro com Dennis no meio da semana para uma
rodada de cerveja, só para rapazes, mas felizmente ele não
disse nada.
— Precisamos arrumar uma namorada para ele —
sugeriu Gus. — Você tem alguma amiga que esteja solteira?
— Só Meredia e Megan.
— Bem, então podemos descartar aquela pobre criatura,
a Meredia — disse Gus, querendo parecer simpático.
— Por quê? — perguntei, na defensiva.
— Bem, não é óbvio para você? — perguntou Gus.
— O quê, exatamente, é tão óbvio? — Olhei-o com
desdém, preparando-me para empurrá-lo do banco para
ele cair de bunda no chão do ônibus.
— Ah, qual é, Lucy, não me diga que você não
reparou? — disse ele, de modo racional.
— Que ela é obesa? — Quis saber, já fula da vida. —
Que grande atitude essa sua...
— Não, sua manezona — disse ele. — Não estou falando
disso. Puxa, Lucy, isso que você pensou agora de mim me
deixou chocado, não esperava isso de você.
— Mas sobre o que você está falando, então?
— Meredia e Jed, é claro!
— Gus — disse, bem séria —, você pirou de vez!
— Pode ser — concordou ele.
— O que quer dizer com "Meredia e Jed"?
— Quero dizer que Meredia gosta muito de Jed.
— Todas nós gostamos muito de Jed. — repliquei.
— Não, Lucy — insistiu Gus. — Estou dizendo que
Meredia gostaria de colocar Jed pelado para os dois
fazerem um roça-roça.
— Claro que não — debochei.
— Gostaria sim.
— Como é que você sabe? — perguntei.
— Não está na cara?
— Não para mim.
— Bem, pois para mim está — disse Gus. — E olha que
você é mulher, devia ter intuição para essas coisas.
— Mas, mas... ela é velha demais para ele.
— E daí? Você é mais velha do que eu.
— Só dois anos.
— De qualquer modo, o amor não conhece idade — disse
Gus, com sabedoria. — Li essa frase numa embalagem de
biscoitos de Natal.
Ora, ora, ora. Que empolgante! O romance! As intrigas!
O amor brotando entre as cartas de ameaça aos clientes
inadimplentes.
— E ele está a fim dela? — perguntei, ansiosa, e, de
repente, muito interessada.
— Sei lá. Como é que vou saber?
— Bem, tente descobrir. Você conversa com ele, e ele
conversa com você.
— Ah, mas nós somos homens, não conversamos sobre
esse tipo de coisa.
— Mas prometa que você pelo menos vai tentar, Gus —
implorei.
— Prometo — disse ele. — Mas isso ainda não resolve o
problema de Dennis não ter uma namorada.
— Que tal a Megan?
Gus fez uma careta e balançou a cabeça, dizendo:
— Ela tem mania de grandeza, aquela lá, e se acha o
máximo! Provavelmente ia se achar bonita demais para
namorar o Dennis, mesmo ele sendo um cara tão legal.
— Gus! Megan não é nem um pouco desse jeito.
— E sim — murmurou.
— Não é não — insisti.
— E sim — confirmou ele.
— Então está bem. Seja como você quiser — encerrei.
— Que bom, para variar — disse ele, com ar sério.
Quando interroguei o Dennis, depois daquela noite, ele
me disse, em primeiro lugar, que Gus era lindo, e depois
me contou que Gus era gay — até aí, nenhuma surpresa.
Então ele estragou o clima de celebração me perguntando
qual era a situação financeira de Gus.
— Ah, isso — respondi, sem dar importância. — Isso não
é problema.
— Mas ele tem algum dinheiro?
— Não muito.
— Mas vocês dois vivem saindo o tempo todo.
— E daí?
— Você já esteve em algum dos shows em que ele toca?
— Não.
— Por quê?
— Porque é só no inverno que ele consegue trabalho.
— Tenha cuidado, Lucy — alertou Dennis. — Ele tem
cara de quem arrasa corações.
— Obrigada pelo aviso, Dennis, mas já sou bem
grandinha e capaz de tomar conta de mim mesma.
— Não é não.
Vimos muito Charlotte e Simon durante aquele verão.
Quando a panelinha de sempre se reunia para um drinque
depois do trabalho, eles quase sempre iam junto.
Então, foram para Portugal, por uma semana.
Convidaram a mim e a Gus para ir com eles. Ou, melhor,
Charlotte me convidou e disse que eu podia levar o Gus na
viagem também, se eu quisesse.
E falou para eu não me preocupar com as implicâncias
entre Gus e Simon.
O problema é que Gus e eu não tínhamos dinheiro
suficiente para viajar. Não que eu me incomodasse com
isso, porque a minha vida estava parecendo um período de
férias, de qualquer modo.
Gus, Jed, Megan, Meredia, Dennis e eu fomos até o
aeroporto para nos despedirmos deles, porque o grupo
havia ficado tão grudado que não agüentávamos a idéia de
nos separarmos.
Durante toda a semana em que eles estiveram fora,
aconteceram muitos comentários do tipo "o que será que
Charlotte e Simon estão fazendo agora?" e "será que eles
estão pensando em nós aqui?".
Até mesmo Gus sentiu falta de Simon.
— Estou sem ninguém pra zoar — reclamou.
Na noite em que eles voltaram, todos nós ficamos tão
empolgados que preparamos uma festa para celebrar.
Bebemos todo o vinho verde que eles trouxeram do free
shop. A noite era para ser um sucesso total, mas Charlotte
passou mal, vomitou e teve de ser levada para a cama.
Durante todo aquele verão, as únicas pessoas que não
saíram de casa para se divertir na rua foram Karen e
Daniel. Eu mal os via.
Karen passava a maior parte do tempo no apartamento
de Daniel. Passava lá em casa de vez em quando, para
pegar uma muda de roupas, entrando e saindo na mesma
hora, enquanto Daniel ficava esperando no carro.
Daniel e eu nunca mais nos encontramos a sós. Para
falar a verdade, nem nos telefonávamos mais.
Eu lamentava muito isso, porque sou esse tipo de
pessoa sentimental e idiota. Mas não sabia o que fazer a
respeito, não havia volta para aquela situação.
Assim, tentei me focar nas coisas boas da minha vida,
principalmente em Gus.
Só compreendi o quanto o namoro de Daniel e Karen
ficara sério quando soube da notícia de que eles estavam
planejando viajar até a Escócia, em setembro. Pelo brilho
nos olhos de Karen, ela já se sentia totalmente segura com
relação a Daniel. Era apenas uma questão de tempo antes
de começar a brigar com a mãe sobre convidar ou não os
primos de quinto grau, ou outros ainda mais afastados, e
comparar os respectivos méritos da torta recheada com
limão em comparação com o recheio de creme do Alasca.
Ficava me perguntando se ela me convidaria para ser
dama de honra. Por algum motivo, achava que não.
Um sábado à noite, todos nós — eu, Charlotte, Simon,
Gus, Dennis, Jed, Megan e até mesmo Karen e Daniel —
fomos a um concerto ao ar livre nos jardins de uma
mansão, ao norte de Londres.
Apesar de ser música clássica, nos divertimos muito.
Esticados sobre a grama acolhedora, ouvindo o farfalhar
das folhas no ar calmo da noite, tomando champanhe,
comendo salsichinhas empanadas, daquelas compradas
prontas, e bombinhas de chocolate.
Depois que o concerto acabou, decidimos que já nos
comportáramos como adultos por muito tempo, a noite
inteira, e ainda não conseguíramos arrancar uma boa
dose de diversão da noite. Ainda era meia-noite, e irmos
para a cama antes de o sol raiar era visto como uma prova
de noite perdida.
Assim, compramos um monte de garrafas de vinho em
uma loja de conveniência aberta vinte e quatro horas, que
adorou vender tudo aquilo, mesmo fora do horário
permitido por lei, e nos enfiamos em vários táxis, a fim de
irmos para o nosso apartamento.
Não havia nenhum copo limpo, então Karen me ofereceu
como voluntária para lavar alguns.
Enquanto eu estava na cozinha, enxaguando com
rapidez os copos debaixo da torneira, reclamando de cada
minuto da muvuca que acontecia na sala e eu estava
perdendo, Daniel entrou, em busca do saca-rolhas.
— Como é que você está? — perguntei a ele. Antes de
perceber, já estava sorrindo, porque velhos hábitos são
difíceis de largar.
— Estou legal — respondeu ele, sem expressão. — E
você?
— Legal.
Uma pausa estranha.
— Não via você há séculos — disse eu.
— Não — concordou ele.
Outra pausa. Conversar com ele estava mais difícil do
que tirar leite de pedra.
— Então, você vai até a Escócia? — perguntei.
— Vou.
— Está louco para chegar o dia da viagem?
— Estou. É que eu nunca fui à Escócia — explicou, bem
sucinto.
— E não é só por causa disso, é? — brinquei, com
delicadeza.
— O que quer dizer? — Ele olhou para mim com frieza.
— Ah, você sabe! Conhecer a família de Karen e tudo o
mais. — E balancei a cabeça com força. — E aí, o que vem
depois?
— Sobre o que você está falando? — perguntou ele, com
os lábios tensos.
— Você sabe — disse eu, sorrindo meio incerta.
— Não, não sei não! — reagiu ele. — É apenas uma
porcaria de viagem de férias, tá legal?
— Nossa — murmurei. — Antigamente você tinha mais
senso de humor.
— Desculpe, Lucy. — Ele tentou segurar o meu braço,
mas me desvencilhei e saí da cozinha.
Meus olhos se encheram de lágrimas, o que era
assustador, porque eu nunca chorava. Exceto quando
estava na TPM, e isso não contava.
Ou então quando passava na tevê um programa sobre
gêmeos siameses que tiveram de ser separados e um deles
morreu. Ou quando eu via uma pessoa muito idosa
capengando pela rua, sozinha. Ou quando eu chegava na
sala e todo mundo berrava comigo por voltar da cozinha
sem trazer os copos lavados. Aqueles filhos-da-mãe!
Apesar da honrosa presença de Meredia, Jed, Megan,
Dennis, Charlotte e Simon na minha vida, não há como
negar que aquele foi o verão de Gus.
Desde o momento em que ele reapareceu, depois
daquelas três semanas de sumiço, quase nunca nos
separávamos.
Fiz algumas tentativas superficiais de passar algumas
noites sozinha, não porque quisesse, mas porque achava
que era o que devia fazer.
Eu precisava fingir que era independente, que tinha vida
própria mas a verdade é que mesmo as coisas que eu
gostava de fazer sen Gus, gostava ainda mais quando fazia
com ele.
E, nisso, ele era igual a mim.
— Hoje à noite não vamos nos ver — avisei algumas
vezes. — Vou lavar minhas roupas, e tenho umas coisas
para fazer.
— Mas, Lucy — choramingou ele. — Vou sentir
saudades.
— Vamos tornar a nos ver amanhã — disse, fingindo
estar irrita da, mas, é claro, adorando aquilo. — Você
certamente consegue pas sar uma noite sem mim.
Só que todas as vezes Gus acabava aparecendo lá em
casa, à nove da noite, tentando parecer envergonhado,
mas sem convencer.
— Desculpe, Lucy — sorria ele. — Sei que você queria
ficar un dia sozinha, mas eu precisava vir até aqui, nem
que fosse por cinco minutos. Já vou embora, agora que
tomei a minha dose diária de ver você.
— Não, não vá — pedia eu, todas as vezes, como ele já
sabia que ia acontecer.
Era alarmante refletir que eu considerava desperdiçados
todos Os minutos que não passava ao lado de Gus.
Embora tentasse não dar muita bandeira, estava na
cara que eu era louca por ele. E ele parecia ser louco por
mim também, a julgar pela quantidade de tempo que
passávamos juntos.
O único problema, se é que se pode chamar de problema,
era que ele jamais confessou que me amava. Não dissera
textualmente as palavras "eu te amo, Lucy". Não que eu
me preocupasse com isso bem, pelo menos não muito,
porque eu sabia que as regras normais não se aplicavam a
Gus. Ele provavelmente me amava, mas deve ter se
esquecido de mencionar o fato. Afinal, ele era assim
mesmo. Por via das dúvidas, eu achava melhor não dizer a
ele que eu o amava, embora fosse verdade, até ele me dizer
primeiro.
Não havia motivos para colocar o carro na frente dos
bois.
Além do mais, sempre havia uma pequena chance de
que ele não me amasse, e não há nada mais embaraçoso
do que isso.
Bem que eu gostaria de ter conversado com ele a
respeito do nosso relacionamento, a fim de saber para
onde estávamos indo e qual era o nosso futuro, Ele, porém,
jamais mencionou o assunto, e eu ficava sem graça de
falar.
Tinha de ser paciente, mas era muito difícil fazer o jogo
da paciência. Nas poucas vezes em que pintava alguma
dúvida ou medo, eu me consolava com a previsão da Sra.
Nolan, e me lembrava de que eu já vislumbrara o futuro, e
Gus estava nele (ou eu já vislumbrara o futuro, mas Gus
bebera tudo, como o estraga-prazeres do Daniel
costumava dizer).
Eu me convencia de que a paciência era uma virtude,
que as coisas acabavam acontecendo para aquele — ou
aquela — que espera, pois quem espera sempre alcança.
Lembrava esse ditado e ignorava os que me avisavam de
que devemos malhar enquanto o ferro está quente, cobra
que não anda não engole sapo e quem dorme no ponto
perde o bonde.
Não me lembro de ter tido grandes preocupações a
respeito do meu futuro com Gus por todo aquele verão
mágico e dourado. Naquela época eu achava que estava
feliz, e isso já era o suficiente para mim.
CAPÍTULO 51
A manhã do dia 12 de agosto não me pareceu diferente
de nenhuma outra das manhãs douradas que a
precederam.
Exceto por um detalhe importante: Gus se levantou
antes de mim.
Não dá para descrever o quanto isso era incomum.
Todas as manhãs, quando eu saía para o trabalho, Gus
ainda estava profundamente adormecido. Em algum
momento, muito, muito mais tarde, ele ia embora, batendo
a porta atrás de si (não antes de comer qualquer coisa que
não estivesse se movendo dentro da geladeira, e depois de
dar alguns telefonemas para Donegal).
O resultado disso é que o apartamento ficava com a
porta da frente destrancada o resto do dia, à mercê dos
gatunos e ladrões de domicílio, o que era motivo de várias
brigas entre mim e Karen nas raras ocasiões em que ela
passava em casa.
O problema é que eu não queria dar uma cópia das
chaves a Gus, para não espantá-lo com a mensagem
"vamos morar juntos".
E consolava Karen, argumentando que o nosso
apartamento era tão bagunçado que se algum ladrão
realmente entrasse ali, ia achar que uma gangue rival
acabara de assaltar o lugar há poucos minutos. Era capaz
até de encontrarmos uma tevê nova e um som mais
moderno, deixados por caridade, sugeri, entusiasmada,
diante do cético levantar de sobrancelhas de Karen.
Naquela manhã, Gus se levantou antes de mim, e isso
acionou sirenes distantes dentro do meu cérebro.
Ele se sentou na cama enquanto calçava os sapatos e
comentou, de forma casual:
— Sabe, Lucy, isso aqui está ficando meio pesado para
mim.
— Hummmmm, é mesmo? — perguntei, ainda sonolenta
demais para reparar que devia estar alarmada.
Mas levou apenas um segundo para eu compreender
que ele não estava apenas jogando conversa fora no
instante em que completou:
— Acho que a gente devia dar um tempo.
A expressão "isso está ficando meio pesado",
particularmente o uso da palavra "pesado", já fizera com
que meus pastores alemães -internos começassem a
ladrar em sinal de alerta, junto da cerca. Quando ele disse
"acho que a gente devia dar um tempo", as sirenes
principais foram todas ligadas, girando loucamente, com
os fachos de luz iluminando todo o terreno em volta da
área de desastre iminente.
Enquanto tentava me arrastar, ainda tonta, sobre os
lençóis, tentando me sentar, uma voz dentro da minha
cabeça anunciou: Isto é uma emergência! Namorado
tentando fugir, repito, namorado tentando fugir!
Fiquei com a sensação de estar dentro de um elevador
que descia rápido demais, de forma perigosa, porque toda
mulher sabe que esse papo de "dar um tempo" e "vamos
ficar uns dias sem nos vermos para não enjoar" é, na
verdade, a versão masculina para a frase "dê uma boa
olhada em mim, porque você nunca mais vai tornar a me
ver".
Tinha a esperança de conseguir entender o que estava
acontecendo pela expressão no rosto dele, mas Gus não
olhou para mim. Estava com a sua cabeça cheia de
cabelos pretos encaracolados inclinada na direção dos pés,
colocando o laço nos sapatos com um perfeccionismo
jamais visto.
— Gus, você está tentando me dizer alguma coisa?
— Acho que a gente deve ficar uns dias sem se ver —
murmurou ele.
Parecia que ele treinara aquela frase, era como se
estivesse lendo as palavras, meio trôpegas, em um
teleprompter. Pensando melhor, parecia que ele estava
lendo frases escritas no sapato. Naquela hora, no entanto,
eu estava tão chocada com as implicações do que ele
estava dizendo que nem reparei que aquilo não era o tipo
de coisa que ele normalmente falava.
Eu devia ter notado que o próprio fato de Gus se dar ao
trabalho de me comunicar que estava terminando o
namoro não tinha nada a ver com o jeito dele.
— Mas por quê? — perguntei, horrorizada. — O que
aconteceu? O que foi que deu errado? O que mudou entre
nós?
— Nada.
Finalmente, nervoso, ele levantou a cabeça. Deve ter
feito e desfeito o laço do sapato umas quarenta vezes.
Quando seu olhar meio de lado se encontrou com o meu,
ele pareceu se sentir culpado, mas apenas por um breve
segundo, pois logo depois explodiu:
— A culpa é sua, Lucy! Você não devia ter se envolvido
tanto comigo, não devia deixar que as coisas ficassem
assim tão sérias.
Eu nunca percebera que Gus era partidário da tática "a
melhor defesa é o ataque" para terminar relacionamentos.
Sempre achei que "fugir correndo" fazia mais o seu estilo.
Estava atordoada demais para lembrar-lhe que ele é que
jamais me deixara sozinha nem por uma noite, que eu não
conseguia nem mesmo depilar as pernas sem tê-lo
acampado do lado de fora do banheiro, reclamando que
estava com saudades, pedindo que eu cantasse para ele e
perguntando quanto tempo eu ainda ia demorai
Mas eu não podia me dar ao luxo de ficar zangada com
ele. Isso ia ter de esperar até mais tarde.
Enquanto eu gaguejava e tropeçava, tentando sair da
cama, Gus foi em direção à porta e acenou para mim em
sinal de adeus.
— Vou nessa, Lucy. Boa sorte. Que a estrada siga
comigo * — Ele parecia animado e alegre. E ia ficando
ainda mais, a cada metro que se afastava de mim.
— Não, Gus, espere, por favor. Vamos conversar a
respeito disso. Por favor, Gus.
— Não, tenho que ir agora.
— Mas por que tanta pressa?
— Preciso ir, só isso.
— Bem, podemos nos encontrar mais tarde? Não estou
compreendendo isso, por favor, fale comigo direito, Gus!
Ele parecia mal-humorado e irritado.
— Você vai me pegar depois do trabalho? — perguntei,
tentando parecer calma, lutando para manter os indícios
de histeria longe da voz.
Ele continuava calado.
— Por favor, Gus — pedi novamente.
— Tá legal — murmurou, saindo devagarzinho do quarto.
Então a porta da frente bateu. Ele se fora e eu ainda me
sentia
meio sonolenta, imaginando se estava apenas perdida
dentro de um pesadelo.
Não eram nem oito da manhã.
Eu estava muito zonza para pensar em me atirar na
frente dele, para impedi-lo de passar pela porta. E quando
essa idéia me ocorreu, em vez de gostar dela, fiquei furiosa.
De algum modo consegui chegar ao trabalho, não que eu
pudesse realizar algo de útil ao chegar lá. Sentia-me como
se estivesse caminhando embaixo d'água. Tudo em volta
estava meio abafado, desfocado e acontecendo em câmera
lenta. As vozes pareciam vir de muito longe, roucas e
distorcidas.
Não conseguia ouvi-las nem me concentrar no que elas
queriam de mim.
O dia se arrastava em uma lenta agonia em direção às
cinco da tarde.
De vez em quando, como o sol que sai por breves
instantes de trás das nuvens, eu conseguia pensar com
clareza. Quando isso acontecia, ondas de pânico me
cobriam. E se ele não viesse me pegar na saída?, perguntei
a mim mesma, estarrecida e horrorizada. O que eu faria?
Mas ele tinha de vir, considerei, usando a razão e meio
desesperada. Eu precisava falar com ele, descobrir o que
estava errado.
A pior parte é que eu não podia contar a ninguém no
trabalho o que acontecera. Porque Gus não estava apenas
me abandonando, estava abandonando Jed, Meredia e
Megan também, e eu tinha medo de magoá-los. Também
tinha medo de levar a culpa.
Passei o dia todo meio atordoada.
Em vez de ligar para os clientes, ameaçando processá-
los se não pagassem logo o que nos deviam, eu estava em
outro mundo, onde só o que importava para mim era Gus.
Por que será que ele achava que o nosso namoro estava
ficando sério demais?, eu matutava. Além do fato óbvio de
que estava mesmo. Mas o que havia de errado nisso?
Tentei fazer um pouco do meu serviço, mas tudo no meu
trabalho parecia ter tão pouca importância...
Quem se importava se a Companhia de Pneus Vulcano
estava com a fatura com vencimento em noventa dias
atrasada há mais de dois anos? Eu não ligava a mínima.
Tinha coisas maiores e mais importantes com que me
preocupar. Qual o problema se a Roda-Viva, uma fábrica
de rodas, fechara as portas, apesar de estar devendo
milhares de libras à minha empresa? Qual a importância
dessas pequenas questões se o meu coração estava
machucado?
A falta de propósito do meu emprego sempre adquiria
mais ênfase quando eu estava com o coração partido. Ser
abandonada sempre fazia aparecer a niilista que havia
dentro de mim.
Desanimada, eu fazia ligações, ameaçando processar
pessoas e arrancar-lhes até o último tostão, mas fazia isso
de forma insípida e pouco convincente, enquanto pensava:
"Daqui a cem anos, nada disso vai ter importância
mesmo."
Vários milênios mais tarde, o dia finalmente acabou de
se arrastar e chegou ao seu letárgico fim.
As cinco horas chegaram, mas o Gus não.
Esperei, desesperada, até as seis e meia, porque estava
completamente perdida sobre o que devia fazer comigo,
com o meu tempo e com a minha vida.
Esperar por Gus, era só nisso que eu era boa.
E ele não apareceu.
E claro que ele não apareceu.
E enquanto eu ficava ali, imaginando o que fazer em
seguida, algo que estava me incomodando de leve, bem no
fundo da mente, se cristalizou em um medo consciente.
Eu não sabia onde Gus morava.
Se ele não me procurasse, eu não poderia procurá-lo.
Não tinha nenhum número de telefone nem o endereço
dele.
Ele jamais me levara até a sua casa. Tudo o que
havíamos feito juntos — de dormir a fazer sexo e ver
tevê — acontecera no meu partamento. Eu sabia que
aquilo não estava certo, mas sempre que sugeria ir até a
casa dele em sua companhia, Gus me enrolava com um
monte de desculpas surrealistas. Histórias tão bizarras
que agora eu estremecia só de lembrar da facilidade com a
qual eu havia engolido tudo aquilo.
Eu não devia ter sido tão maleável com ele, pensei, em
desespero. Devia ter insistido. Se tivesse sido mais
exigente, não estaria naquele sufoco. Pelo menos saberia
onde encontrá-lo.
Não podia acreditar no quanto fora submissa. Como é
que eu nem sequer ficara com a pulga atrás da orelha?
Na verdade, agora que eu pensava naquilo, eu ficara
com a pulga atrás da orelha sim. Mas me forçara a não
ficar, porque isso ia agitar a plácida superfície da minha
felicidade.
Deixei Gus fazer o que bem queria, sempre com a vaga e
abrangente explicação de que ele era assim mesmo,
diferente e excêntrico. Agora que ele desaparecera, mal
podia acreditar na minha ingenuidade.
Se eu tivesse lido uma história como aquela no jornal ou
em alguma revista, a respeito de uma garota que já estava
com um cara há cinco meses (mais ou menos, incluindo
as três semanas de maio em que ele sumiu), e visse que a
garota nem mesmo sabia onde ele morava, eu iria
descartá-la, chamando-a de palerma e dizendo que
merecia tudo o que estava acontecendo.
Ou, no caso, não estava acontecendo.
A realidade, porém, fora bem diferente. Fiquei com medo
de forçá-lo a fazer qualquer coisa, porque não queria que
ele me escapasse.
De qualquer modo, achara que não havia necessidade de
forçá-lo a fazer nada, porque ele se comportava como se
gostasse de mim.
Agora, a frustração de não ser capaz de entrar em
contato com ele era insuportável. Especialmente por saber
que a culpa era toda minha.
Passaram-se alguns dias intermináveis e infernais sem
que Gus aparecesse e, no fundo, eu não tinha muita
esperança disso.
Porque descobri algo terrível. Eu estava esperando que
ele me abandonasse. Durante todo o tempo em que
estivera com ele, vivia aguardando por isso.
Meu verão idílico fora apenas uma jóia falsificada. E só
naquele instante, analisando em retrospecto, eu conseguia
ver tensões sob a superfície calma e ensolarada.
Jamais me sentira segura, desde que Gus sumira
naquelas três semanas. Eu fingia que estava segura,
porque me sentia melhor desse jeito. Mas as coisas nunca
mais foram as mesmas. Aquilo fizera a balança do poder
pender visivelmente para o lado de Gus — ele me tratara
com total falta de respeito, e sinalizei que para mim estava
tudo bem que ele agisse daquela forma. Eu lhe concedera
carta branca para me tratar mal.
Ele foi muito nobre a respeito disso, jamais me
lembrando do quanto eu era uma refém dele. Mas essa
afirmação estava sempre em toda parte, nas entrelinhas:
ele me abandonara uma vez e poderia tornar a fazer isso
quando bem quisesse. Ele empunhava a sua habilidade de
desaparecer como se fosse uma arma.
Entre nós dois havia uma disputa de poder que ficava
sempre encoberta. Ele bancava o temerário e eu bancava a
impassível. Por quanto tempo ele podia me deixar sozinha
no canto em uma festa, antes de eu ficar chateada?
Quanto dinheiro ele podia "pegar emprestado" comigo,
antes que eu me recusasse de vez a "emprestar"? Quantas
vezes ele podia ficar de flerte com Megan e quantas vezes
ele precisava tocar no cabelo dela, antes de eu arrancar o
sorriso pregado em minha cara?
Todo esse medo drenara muito da minha energia — eu
vivia nervosa junto dele. Tensa. Toda vez que ele falava
que ia me pegar em algum lugar ou se encontrar comigo,
eu ficava com os nervos à flor da pele até ele aparecer.
Mas eu conseguira reprimir todos os meus
questionamentos para mantê-los abaixo da superfície. Não
podia deixar que eles colocassem a cabeça de fora nem
para respirar, para não estragar as coisas.
Eu remendava rachaduras, colocava paninhos quentes,
suprima medos e engolia insultos, uma vez que achava
que tudo isso valia a pena.
E isso assim me parecia porque — pelo menos
externamente — Gus e eu estávamos felizes.
Agora, porém, que ele se fora, eu compreendia que em
cada momento que passara em sua companhia, tinha
medo de que pudesse ser o último. Havia uma espécie de
desespero em mim, uma necessidade de receber o melhor
produto em troca do que pagara. Uma urgência de estocar
o máximo que conseguisse de Gus na minha vida, para
enfrentar o tempo em que ele tornaria a fugir.



















CAPÍTULO 52
Finalmente, tive de contar aos outros, no trabalho, que
Gus e eu não estávamos mais juntos. Foi horrível. Jed e
Meredia ficaram arrasados, pareciam crianças que
acabaram de descobrir que Papai Noel não existe.
— Gus não gosta mais da gente? — perguntou Meredia,
com uma vozinha fraca, a cabeça baixa, ajeitando a tenda
que usava como saia.
— Claro que gosta — garanti a ela, com firmeza.
— Foi culpa nossa? — perguntou Jed, parecendo tão
pesaroso quanto um menino de quatro anos. — Nós
fizemos alguma coisa errada?
— Claro que a culpa não é de vocês — disse, de
coração. — Gus e eu não podemos mais ficar juntos, mas...
Eu me segurei, antes que acabasse sentada no chão com
os braços em torno deles dois, explicando que "às vezes as
pessoas grandes deixam de amar uma à outra, e isso é
muito triste, mas não significa que Gus não continue a
amar muito vocês dois...".
Em vez disso, exclamei, com os olhos cheios
d'água:
— Ai, pelo amor de Deus! Vocês não são os filhos de um
casal que está se divorciando; portanto, parem de agir
como se fossem. Essa é a minha tragédia — lembrei a eles,
em um tom mais conciliador.
— Talvez ainda possamos continuar nos encontrando
com ele. — Jed virou-se para Meredia. — Lucy não precisa
estar presente.
— Obrigada, seus porcos cruéis — reagi. — Agora só
falta que vocês me peçam para negociar com ele os dias de
visita.
Megan foi mais direta e pouco simpática:
— Você está muito melhor sem aquele perdedor —
anunciou ela, carregando ainda mais no sotaque
australiano e balançando a mão com ar de pouco caso.
Ela tinha razão, é claro. Mas era difícil eu me sentir
grata. Eu estava paralisada, ainda me sacudindo por
dentro pela perda súbita.
A forma inesperada da partida de Gus me deixara em
estado de choque. Porque eu não notara nenhum indício
de que o interesse dele por mim estava diminuindo. Até os
últimos instantes ele agira como se estivesse feliz.
E só podia estar feliz mesmo, pensei, me enaltecendo por
dentro.
Afinal, eu não medira esforços para fazer com que tudo
corresse às mil maravilhas para ele.
Naturalmente, pelo fato de eu ter a dupla desvantagem
de ser mulher e ter baixa auto-estima, comecei a me
culpar. Por que motivo ele me abandonara? O que eu
fizera? O que eu não fizera?
Se eu soubesse, pensei, indefesa, poderia ter tentado
com mais energia. Embora, para ser franca, achasse meio
difícil que isso fosse possível.
A pior coisa no fato de Gus ter saído da minha vida era
também a mais difícil de enfrentar, quando eu me sentia
rejeitada: a quantidade imensa de tempo que sobrava.
Como na última vez em que ele sumira, havia horas
demais nos meus dias. Uma quarta dimensão inteira havia
entrado em minha vida, um buraco sem fundo de noites
intermináveis, e eu não conseguia dar conta de todo
aquele tempo extra.
Eu não me lembrava de outra ocasião em que essa
sensação tivesse sido tão forte. Por outro lado, era isso que
eu achava todas as vezes que me sentia abandonada.
Para tentar me livrar das horas excedentes e dos
minutos infindáveis, eu ia para a rua o tempo todo,
tentando dispersar a minha tristeza e cremar minhas
mágoas em festas. Tinha de fazer isso, eu estava agitada
demais para ficar em casa. Ficar inerte era impossível.
Só que não adiantou nada, pois aquele sentimento
horrível não me largava. Mesmo quando eu me sentava em
pubs lotados de gente feliz e sorridente eu continuava a
sentir um medo, um pânico frenético que me percorria as
veias.
Não havia como escapar daquilo. Só conseguia dormir
algumas horas todas as noites. Pegar no sono até que não
era difícil, mas eu acordava bem cedo, ainda de
madrugada, às quatro ou cinco da manhã, e perdia o sono.
Não agüentava ficar sozinha. Mas também não havia
ninguém com quem eu quisesse estar. O pior é que, onde
quer que eu estivesse, queria sempre estar em outro lugar
que não fosse ali.
Não importa com quem eu estivesse, não importa o que
estivesse fazendo, não importa onde, tudo me parecia
errado, e eu rejeitava.
A cada noite eu me sentava em companhia de um monte
de gente e me sentia totalmente só.
Passaram-se umas duas semanas, e me pareceu que eu
estava ligeiramente melhor, mas as mudanças ainda eram
muito pequenas para serem notadas.
— Você vai superar isso e esquecê-lo — todos diziam
para me dar força.
Mas eu não queria esquecê-lo. Continuava achando que
ele era o homem mais engraçado, mais inteligente e sexy
que jamais encontrara, ou jamais encontraria.
Ele era o meu ideal masculino. E se eu o esquecesse, se
não o desejasse mais, era como se estivesse perdendo uma
parte de mim mesma.
Eu não queria deixar a ferida cicatrizar.
Além do mais, apesar do que todos me diziam, eu sabia
que jamais conseguiria esquecê-lo. Sentia tanta dor por
dentro que não conseguia mais me imaginar sem senti-la.
Para piorar, a Sra. Nolan e sua maldita previsão
continuavam na minha cabeça. Eu achava difícil aceitar
todos aqueles sinais que gritavam nos meus ouvidos que
Gus não era o homem certo para mim, porque era mais
cômodo acreditar que a nossa união estava escrita nas
estrelas.
— Aquele Gus é mesmo um canalha, hein? — comentou
Megan certo dia, no trabalho, com descontração.
— Acho que é... — concordei, para ser educada.
— Você não vai me dizer que não tem ódio dele, vai? —
Megan parecia indignada.
— Mas eu não tenho ódio dele mesmo — disse. — Talvez
devesse ter, mas não tenho.
— Mas, por que não tem?
— Porque eu sei que Gus é assim mesmo, é o jeito
dele. — Tentei explicar. — Se você o amasse, também iria
aceitar a parte dele que é pouco confiável.
Fiquei esperando que Megan debochasse de mim,
zombasse de tudo aquilo e me chamasse de covarde, fraca
e infantil. E foi exatamente o que ela fez.
— Ah, deixe de ser boçal, Lucy! — E riu. — Foi culpa
sua, você não devia ter aturado nenhuma das gracinhas
dele. Quando se trata de animais como Gus, temos que
mostrar logo de cara quem é que manda, é preciso
dominá-los.
— Eu sempre faço isso — acrescentou ela.
Para Megan, aquilo podia funcionar, pois ela fora criada
em uma fazenda, e uma fazenda australiana ainda por
cima. Sabia tudo a respeito de prender animais com
correntes, subjugá-los e domá-los.
— Eu não queria dominá-lo, Megan — argumentei. — Se
ele ficasse bem comportado, deixaria de ser Gus.
— Você não pode ter as duas coisas, Lucy — disse ela.
— Mas não fiquei com nenhuma das duas — lembrei a
ela.
— Vamos lá, anime-se! Você não se importa tanto assim
com isso, se importa? — perguntou ela, animada.
— Eu me importo sim — respondi, abaixando a cabeça,
porque uma falta de amor-próprio tão grande assim não é
algo de que devamos nos orgulhar.
— Não, não acredito que se importe — zombou ela.
— Mas eu me importo.
— De verdade? — E olhou para mim com ansiedade.
— De verdade.
— Mas... por quê? — quis saber.
— Porque... porque. — Eu não conseguia me
expressar. — Porque ele é tão especial! Jamais encontrei
alguém como ele antes. E nunca mais vou tornar a
encontrar... — funguei — ... em toda a minha vida.
Minha voz estremeceu de modo perigoso quando falei
"em toda a minha vida", mas consegui a façanha de não
lançar a cabeça em cima da mesa sobre os braços e
soluçar amargamente.
— Quer dizer então que se ele entrasse aqui nesse
instante, por aquela porta, pedindo para que você o
aceitasse de volta, você o perdoaria? — perguntou Megan,
continuando a me pressionar.
Não gostei das implicações daquela frase. Formei uma
vaga imagem de uma mulher terrivelmente infeliz,
espancada o tempo todo pelo marido, que roubava todo o
seu dinheiro e ainda tinha casos com suas amigas.
— Megan — respondi, ansiosa —, não sou uma daquelas
mulheres que são maltratadas pelos homens a vida inteira
e mesmo assim continuam aceitando-os de volta todas as
vezes.
— Essa é boa — disse Megan —, porque você está
agindo exatamente dessa maneira,
— Só por Gus — expliquei, — Só no caso dele. Não faria
isso por nenhum outro homem que já tenha encontrado.
Essa é uma exceção.
— Gus é alguém por quem vale a pena quebrarmos as
regras — acrescentei.
— Pelo jeito, parece que sim — comentou ela.
Senti uma estranha vontade de dar um soco na cara
dela.
— Mas tudo bem — disse ela, em voz alta, de forma
decididamente empolgada. — Você vai superar isso e
esquecê-lo. Em mais duas semanas você não vai nem se
lembrar do nome dele, e não vai mais nem lembrar o
motivo de todo esse drama.


























CAPÍTULO 53
Dava para ouvir os gritos três andares abaixo do nosso,
como se fossem os pavorosos sons de um animal em
agonia, uma mulher dando à luz ou uma criança sendo
escaldada.
Algo de terrível acontecera no prédio e, ao subir as
escadas, percebi que os urros vinham do nosso
apartamento.
— Ai, Lucy — disse Charlotte, ofegante, assim que
apareci na porta. — Que bom que você chegou.
Ela estava com sorte. Eu só tinha ido direto para casa
depois do trabalho porque não havia ninguém com quem
tomar um drinque, a não ser Barney e Slayer, as duas pré-
históricas figuras do setor de postagem,
— O que houve? — perguntei, horrorizada.
— Foi a Karen — disse ela.
— Onde ela está? Está ferida? O que foi?
Karen irrompeu na sala, vindo do quarto, com as roupas
em desalinho, a cara muito vermelha, inchada de chorar, e
atirou um copo na parede, o qual se estilhaçou em mil
pedaços por toda a sala.
— Aquele canalha, aquele canalha! Canalha! —
guinchava. Alguma coisa de muito desagradável
acontecera com Karen, mas pelo menos não me pareceu
haver nada de errado com ela fisicamente, apesar do
cabelo, que estava precisando com urgência de um pente.
Havia um cheiro muito forte de álcool, que vinha dela.
Então ela notou a minha presença.
— Você é que foi a culpada disso, Lucy, sua vaca! —
berrou.
— Fui culpada de quê? Eu não fiz nada — protestei,
sentindo-me culpada e assustada.
— Fez sim!... Foi você que me apresentou a ele. Se eu
não o tivesse conhecido, não teria me apaixonado por ele.
Não que eu esteja apaixonada por ele, eu o odeio com
todas as minhas forças! — rugiu ela, entrando de volta no
quarto e atirando-se de bruços na cama. Charlotte e eu
fomos atrás dela.
— Isso tem alguma coisa a ver com o Daniel? —
cochichei para Charlotte.
— Não pronuncie o nome dele! — guinchou Karen. —
Nunca mais quero ouvir o nome dele sequer mencionado
dentro deste apartamento, nunca mais!
— Lembra o dia em que você virou a única solteirona do
pedaço? — sussurrou Charlotte para mim.
Concordei com a cabeça.
— Bem, agora você não é mais a única.
Então acontecera um rompimento no namoro de Daniel
e Karen.
— O que houve? — perguntei a Karen, com toda a
delicadeza.
— Eu terminei com ele! — Engoliu em seco, esticando a
mão para pegar a garrafa de conhaque que estava ao lado
da cama, e bebeu direto do gargalo. Mais da metade da
garrafa já tinha ido embora.
— Mas por que você terminou com ele? — perguntei,
intrigada. Eu achava que ela realmente gostava dele.
— Nunca se esqueça disso, Lucy. Eu terminei com ele, e
não o contrário.
— Tudo bem — disse, meio nervosa. — Mas... por quê?
— Porque... porque... — As lágrimas começaram a
escorrer novamente pelo seu rosto. — Porque eu perguntei
se ele me amava e ele respondeu, ele respondeu que...
que... que...
Charlotte e eu esperamos educadamente ela completar a
frase.
— ...que NÃO ME AMAVA — finalmente conseguiu soltar,
e começou a emitir aqueles horrendos gritos de desespero
novamente.
— Ele não me ama — continuou ela, fixando em mim os
olhos infelizes e um pouco fora de foco. — Dá pra acreditar?
Ele me disse que não me ama!
— Se serve de alguma ajuda, Karen, eu sei como você
está se sentindo. Gus terminou comigo tem só duas
semanas, lembra?
— Deixe de ser tola — disse ela, com a voz meio
engrolada por entre as lágrimas. — O caso entre você e
Gus não era sério, o meu namoro com Daniel era!
— Pois eu levava Gus muito a sério — repliquei, com
firmeza.
— Então era idiota — disse Karen. — Qualquer um
podia ver que ele era maluco, pouco confiável e
irresponsável. Daniel, não... ele tem um... um BOM
EMPREGO!
E tornou a falar coisas incoerentes misturadas com os
soluços, e não dava para entender nada do que ela estava
dizendo. Era alguma coisa sobre Daniel ter o próprio
apartamento, e usar algo de uma marca muito cara... o
que era mesmo?... cigarro?!... não, não, desculpem. Era
um carro!
— Coisas como essa não acontecem comigo — soluçou
ela. — Isso não estava nos planos.
— Mas elas acontecem com todo mundo — disse eu,
tentando ser gentil.
— Não, não mesmo. Não acontecem comigo.
— Karen, escute só... isso acontece com todo mundo —
insisti. — Veja só o que aconteceu comigo e Gus...
— Não me compare com você — gritou ela. — Eu sou
totalmente diferente. — Os homens terminam com você...
e com você também. — Balançou a cabeça, incluindo
Charlotte no insulto. — Só que eles jamais terminam
comigo. Eu não permito que isso aconteça.
Isso nos deixou sem fala, a mim e Charlotte.
— Ai, meu Deus — recomeçou Karen, com uma nova
rodada de lamúrias. — Como é que eu posso ir à Escócia
agora? Já contei pra todo mundo a respeito do Daniel e do
quanto ele é rico. íamos até lá no carro dele. Agora vou ser
obrigada a pagar a minha própria passagem, e aquele
blazer que eu ia comprar no caminho, quando
passássemos em Morgans, não vou mais poder comprar.
Aquele canalha!
Pegou novamente a garrafa de conhaque.
Era um conhaque muito antigo, de uma marca
caríssima, daquele tipo que os homens de negócios
oferecem uns aos outros no Natal; o tipo de bebida que
não é para bebermos de verdade. Deve ficar só como peça
decorativa, como forma de ostentação de riqueza, e não
como algo que misturamos com alguma outra coisa e
bebemos.
— Onde arranjou essa bebida? — perguntei a Karen.
— Peguei no apartamento do filho-da-mãe, ao sair —
disse ela, com ferocidade. — Só me arrependi de não ter
trazido mais.
Então vieram mais lágrimas.
— E aquele é um apartamento tão lindo... — uivou
ela. — Eu ia redecorá-lo todo, ia fazer com que ele
comprasse uma cama de ferro toda trabalhada que vi na
edição de decoração da Elle. Ele é mesmo um canalha!
Sim, sim, sim, muito.
— Temos que colocá-la sóbria — disse eu,
— Talvez possamos fazer com que ela coma alguma
coisa — sugeriu Charlotte. — Eu estou com vontade de
comer.
O problema é que, como sempre, não havia nada em
casa, a não ser iogurte light vencido.
Assim, fomos ao Curryfour e provocamos o maior
rebuliço e preocupação entre os garçons, porque a vida
inteira só tínhamos ido lá aos domingos.
— Puxa, eu podia jurar que hoje era segunda — disse
Pavel para Karim, em idioma bengali, assim que nos viu
entrando e sentando à nossa mesa de sempre.
— Nossa, eu também — concordou Karim. — Mas só
pode ser domingo. Que bom, o restaurante fecha uma
hora mais cedo hoje. Então, vamos correr! Você pega o
vinho para elas e eu digo ao chef que elas chegaram e que
ele já pode preparar o frango ao molho picante com
masalas. Elas nos pegaram desprevenidos, com certeza.
— Vamos querer uma garrafa de vinho branco, por
favor — pedi a Mahmood, mas Pavel já estava atrás do
balcão, abrindo-a para nós. Sempre comíamos exatamente
a mesma coisa no restaurante indiano, eles nem nos
traziam mais o cardápio. Era sempre um biria-ni de
legumes, dois frangos ao molho picante com masalas,
arroz de forno com especiarias e vinho branco. Só o
número de garrafas de vinho é que variava, mas
tomávamos sempre, pelo menos, duas.
Enquanto esperávamos pela comida, conseguimos
descobrir exatamente o que acontecera com Karen e
Daniel.
Pelo jeito, Karen estava certa de que Daniel se
apaixonara por ela e resolveu que já estava na hora de
receber uma declaração formal disso. Assim eles teriam
tempo suficiente para comprar um anel de noivado, antes
de irem para a Escócia, quando então comunicariam as
boas novas aos pais de Karen. O problema é que Daniel se
mostrou desagradavelmente reticente com a tal declaração,
e então Karen resolveu que era melhor tomar as rédeas
dos acontecimentos, já que a viagem para a Escócia estava
bem próxima. Assim, com toda a certeza de que a resposta
de Daniel seria afirmativa, Karen perguntou-lhe se ele a
amava. E Daniel embolou o meio de campo ao lhe dizer
que gostava muito dela.
E Karen disse "que bom que você gosta", e quis saber se
ele a amava.
E Daniel falou que era sempre uma satisfação e uma
alegria para ele estar ao lado de uma mulher tão linda.
"Eu sei de tudo isso", anunciou Karen, com cara de
desdém. "Mas eu quero saber se você me ama!"
"Quem pode explicar o que é o amor?", perguntou Daniel,
sem dúvida cada vez mais desesperado.
"Responda apenas im ou não", exigiu Karen. "VOCÊ ME
AMA?"
"Receio que a minha resposta teria que ser não", disse
Daniel.
Entraram em cena os sonhos despedaçados, uma briga
violenta, o roubo de uma caríssima garrafa de conhaque, a
busca por um táxi e os votos de que Daniel queimasse no
inferno; seguiu-se a saída de Karen do apartamento de
Daniel e a sua chegada ao nosso.
— Ele é um canalha — soluçou Karen.
Mahmood, Karim, Pavel e mais outro que disse se
chamar Michael balançaram a cabeça juntos, em
solidariedade. Estavam escutando atentamente cada
palavra da história de Karen. Pavel parecia à beira das
lágrimas.
Karen entornou um cálice de vinho de uma vez só,
deixando escorrer um pouco pelo queixo, e imediatamente
tornou a encher o cálice.
— Otra-arrafa! — pediu, lançando a que acabara de
esvaziar em direção aos garçons, que continuavam
aglomerados.
Charlotte e eu trocamos olhares que diziam "Acho que
ela já bebeu demais!", mas nenhuma das duas ousou falar
aquilo em voz alta.
Karim nos trouxe mais vinho e, ao colocar a garrafa
sobre a mesa, murmurou:
— Essa é por conta da casa, com as nossas condolências.
Charlotte e eu acabamos ficando bêbadas também, porque
na tentativa de evitar que Karen ficasse ainda mais alta,
bebemos o máximo de vinho que havia na mesa. Isso não
adiantou nada, pois Karen rugia pedindo outra garrafa
assim que a anterior era esvaziada, e o processo começava
todo de novo.
Embora, a essa altura, eu já estivesse começando a me
divertir.
Karen foi ficando cada vez mais bêbada. Acendeu o
cigarro pelo lado do filtro duas vezes, enfiou os punhos do
blazer no prato, derrubou um copo de água dentro do meu
biriani de legumes, e falou, com a voz arrastada:
— Isso já estava com aspecto nojento mesmo.
E então, para meu horror total, ficou com os olhos
vidrados e foi inclinando o corpo lentamente para a frente,
até cair de cara em cima do frango ao molho com masalas
e arroz.
— Depressa, depressa, Charlotte — comandei, em
pânico. — Vamos levantá-la, tire a cara dela do prato,
senão ela vai se afogar no molho.
Charlotte puxou a cabeça de Karen pelos cabelos, e
Karen olhou-a com um aspecto confuso e bêbado,
perguntando:
— Que porra é essa que você está fazendo? — quis saber.
Tinha molho vermelho na testa e grãos de arroz nos
cabelos.
— Karen, você desmaiou — arfei. — Acabou de desabar
em cima do prato. E melhor nós irmos para casa.
— Sai pra lá — disse, com a língua enrolada. — Num foi
nada dizzo. É queu dejei o cigarro caí no chaum e tive que
mabaixá papegá.
— Ah — disse eu, aliviada e meio sem graça.
— Zua abaca — murmurou Karen, agressiva. — Tá
dizeno quea num consigo segura meu drinque?
— Vem cá, ocê! — convocou Mahmood. — Cê acha queu
sô atraente? Heinnn?
— Muito atraente — concordou ele, caloroso, achando
por um segundo que ia se dar bem.
— Claro queu sou — disse Karen. — Claro queu sou!
— Ocê num é não — acrescentou, olhando para ele.
O garçom pareceu magoado, então acabei dando uma
gorjeta maior do que a habitual na hora em que saímos.
Acabei tendo de pagar a conta, porque Charlotte esquecera
de pegar a bolsa na correria, e Karen, embora tentasse
preencher um cheque, estava bêbada demais para
conseguir segurar a caneta.
Levamos Karen para casa, trocamos a roupa dela e a
colocamos na cama.
— Vamos, beba um pouquinho de água, Karen... isso,
boa menina... Assim você não vai se sentir tão mal quando
acordar de manhã — disse Charlotte, empurrando um
copo d'água embaixo do nariz de Karen. Charlotte estava
longe de parecer sóbria.
— Nunnn-ca, nunn-ca mais quero me levantar — disse
Karen, falando arrastado.
Começou então a soltar alguns gemidos curtos e
engraçados, e depois de algum tempo percebi que ela
estava cantando. Mais ou menos.
— Você é tão vaidoso... aposto que está achando que
esta canção foi feita pra você... não está?... não está?... —,
gemia ela, murmurando a letra de uma antiga canção de
Carly Simon.
— Vamos lá, Karen, por favorl — implorou Charlotte,
voltando a atacar com o copo d'água.
— Num minterrompe qdo eu tô cantano... Tô cantano
u'a música que fala do Daniel. Vamo canta todo muno
junto. "Você é tão vaidoso... aposto... achando... que esta
eanção..." Vamos lá! — berrou ela, agressiva. — Cantem
comigo!
— Karen, por favor — murmurei, para acalmá-la.
— Num vem me trata feito criança não — reagiu ela. —
Cantem a porra da música! "Você é tão vaidoso..." Vamos
lá, todo muno!
— Hã... Você é tão vaidoso — cantamos juntas,
Charlotte e eu, nos sentindo tolas. — Hã... Aposto que
você está achando que esta canção foi feita pra você...
Karen apagou antes do verso seguinte.
— Ai, Lucy — gemeu Charlotte. — Estou tão
preocupada...
— Não fique assim não — disse eu, animando-a com
uma confiança que eu mesma não sentia. — Tenho certeza
de que ela vai ficar legal. Vai se sentir em forma logo,
logo...
— Não é com ela — explicou Charlotte. — Estou
preocupada comigo.
— Por quê?
— Primeiro foi o Gus, agora o Daniel, e se o Simon for o
próximo a cair fora?
— Mas por que cargas d'água ele seria o próximo? Isso
não é uma doença contagiosa.
— Mas as coisas ruins sempre acontecem em grupos de
três — explicou Charlotte, com o rosto rosado todo
franzido de preocupação.
— Talvez as coisas sejam assim em Yorkshire — disse eu,
com carinho —, mas você agora está em Londres, portanto
não se preocupe.
— Você tem razão — reagiu ela, mais animada —, e tem
mais uma coisa... Gus dispensou você duas vezes, então
contando o rompimento de Daniel e Karen, já temos as
três vezes.
— É... foi uma pena Gus não ter me dispensado uma
terceira vez, porque então eu pouparia Karen de toda essa
tristeza — comentei, com sarcasmo.
— Não se torture com isso — disse Charlotte. — Você
não tinha como adivinhar.























CAPÍTULO 54
E então aconteceu a terceira vez.
Apesar de ser meio tapada, o instinto de Charlotte se
mostrou totalmente correto. Simon não ligou para o
trabalho dela na terça-feira, e ele normalmente telefonava
todos os dias, às vezes duas vezes no mesmo dia.
Quando ela ligou para ele na terça à noite, ele não
estava em casa, e o amigo com quem dividia o
apartamento, normalmente gentil, parecia meio sem graça
e pouco informativo a respeito do paradeiro de Simon.
— Lucy, estou com um mau pressentimento a respeito
disso — disse Charlotte.
Ela tornou a ligar para o trabalho dele na quarta-feira,
mas Simon não atendeu a ligação. Quem atendeu foi uma
mulher, e quando Charlotte pediu para chamá-lo, ela
perguntou: "Quem deseja?..." Quando Charlotte disse seu
nome, a mulher na mesma hora disse: "Simon não pode
atender porque está em reunião..."
Charlotte tornou a ligar mais ou menos uma hora depois,
e aconteceu exatamente a mesma coisa.
Então, na mesma hora, Charlotte pediu para Jennifer,
sua colega, telefonar, e de repente Simon já estava
atendendo os telefonemas, pois pegou o fone para falar
com "Jennifer Morris".
Jennifer passou o fone para Charlotte assim que Simon
disse "alô". Ela perguntou:
— Simon, o que está havendo? Você está tentando me
evitar? Simon riu, meio nervoso, e, com um jeito bem
jovial, respondeu:
— Não, deveras não, deveras. Não, deveras.
Charlotte disse que foi nesse instante que ela realmente
sacou que havia algo errado, porque Simon normalmente
jamais falaria "Não, deveras".
— Vamos nos encontrar para almoçarmos juntos,
Simon — disse Charlotte.
— Eu adoraria, adoraria... — disse Simon — ... mas não
vai ser possível.
— Por que você está falando desse jeito? — perguntou
Charlotte.
— De que jeito? — quis saber Simon.
— Como um babaca parado na rua com um celular na
mão para parecer importante — disse Charlotte.
(O que achei extremamente irônico, porque eu sempre
achei que Simon falava que nem um babaca parado na
rua com um celular na mão para parecer importante, mas
não falei isso para Charlotte quando ela me contou a
história, porque não queria deixá-la ainda mais chateada.)
— Não tenho idéia do que você está falando — disse
Simon.
— Tudo bem, então nos vemos à noite — suspirou
Charlotte.
— Receio que isto seja impossível — replicou ele.
— Por quê?
— Trabalho, Charlotte, trabalho — disse Simon, bem
devagar.
— Mas você nunca teve que trabalhar à noite —
argumentou Charlotte.
— Sempre existe uma primeira vez para tudo — explicou
Simon, em voz baixa.
— Bem, então quando é que vou poder ver você? — quis
saber Charlotte.
— Más notícias, Charlie — disse Simon. — Não vamos
poder nos encontrar.
— Até quando? — perguntou ela.
— Você não está facilitando nem um pouco as coisas
para nós dois, não é verdade? — perguntou ele, falando
ainda mais baixo.
— Sobre o que você está falando?
— Estou falando, Charlotte, que nunca mais vamos
poder nos encontrar.
— Por que não?
— Porque acabou... A-C-A-B-O-U!
— Acabou? A gente? Você está me dizendo que
terminamos o namoro? — perguntou ela.
Bravo! — E riu. — A luz finalmente acendeu.
— E quando é que você estava planejando me comunicar
isso? — perguntou ela.
— Acabei de comunicar, não acabei? — disse ele, de
forma sensata.
— Mas só porque liguei para você. Quando é que você ia
ligar para mim? Ou você ia deixar que eu acabasse
descobrindo por mim mesma?
— Você ia descobrir logo, logo... — disse ele.
— Mas por quê? — perguntou Charlotte, com a voz
tremendo. — Você não, você não... gosta mais de mim?
— Ora, Charlotte, não faça papel de boba — disse ele. —
Foi um lance legal, nos divertimos juntos, só que agora
encontrei outra pessoa com quem me divertir.
— Mas, e quanto a mim? — quis saber Charlotte. —
Com quem eu vou me divertir agora?
— Isso não é problema meu — disse Simon. — Enfim, de
qualquer modo, vai aparecer outra pessoa, rapidinho. E
não vai demorar muito, com esses peitos que você tem.
— Mas eu não quero me divertir com mais ninguém —
implorou Charlotte. — Quero me divertir com você.
— É pena — disse ele, todo animado. — Seu tempo
acabou. Não seja egoísta, Charlotte, deixe que as outras
garotas tenham uma chance também.
— Mas eu achava que era importante para você — disse
ela.
— Bem, não devia ter levado as coisas tão a sério —
replicou ele.
— Então isso é tudo? — perguntou ela, com os olhos
cheios de lágrimas.
— Isso é tudo — concordou ele.
— Lucy, ele parecia uma pessoa totalmente estranha. —
comentou ela, mais tarde. — E eu achava que o conhecia...
achava que ele se importava comigo, não consigo acreditar
que ele tenha me descartado assim, tão de repente.
— Não consigo descobrir o porquê disso — repetiu ela,
diversas vezes. — O que foi que eu fiz de errado? Por que
ele me largou? Talvez eu tenha engordado um pouco. Eu
engordei, Lucy? Ou será ue enchi muito o saco dele,
reclamando dos problemas no meu trabalho?... Se pelo
menos eu soubesse...
E balançou a cabeça, em total perplexidade.
— Não há nada mais esquisito do que os homens —
suspirou. Pelo menos ela não ficou se torturando com
imagens daquela mulher lendária que perturba a
imaginação das mulheres de pouco busto quando são
rejeitadas: a Garota com Peitos Maiores. Charlotte não
tinha esse problema, porque ela já era a própria Garota
com Peitos Maiores.
Mas era insegura em todas as outras áreas.
Charlotte forçou a maior barra para se encontrar com
Simon. Ficou de tocaia e o perseguiu com uma tenacidade
e uma determinação que ninguém julgava possível ao ver o
seu rostinho redondo e inocente pela primeira vez.
Acampou do lado de fora do prédio em que ele trabalhava
por uns dois dias, e ficava atenta na hora em que ele saía
para ir embora, até que Simon finalmente concordou em
tomar um drinque com ela, na esperança de que ela o
deixasse em paz.
Um drinque leva a outro e levou a muitos outros. Os
dois ficaram completamente bêbados, acabaram indo para
o apartamento de Simon e transaram.
Então, de manhã, Simon disse:
— Foi muito agradável, Charlotte. Agora, pare de rodear
o prédio onde trabalho. É uma situação embaraçosa para
você.
Isso pegou Charlotte totalmente de surpresa. Ela ainda
era inexperiente o bastante no ringue do amor para
imaginar que, pelo fato de Simon ter dormido com ela, isso
significava que o romance entre eles ia entrar de novo nos
eixos.
— Mas... mas... — disse ela. — E o que aconteceu ontem
à noite entre nós? Não serviu para...?
— NÃO, Charlotte — interrompeu Simon, com
impaciência. — Não significou coisa alguma para mim.
Uma transa é só uma transa. Agora, por favor, vista-se e
pegue o seu cartão vermelho na saída.
— E o pior, Lucy — ela se queixou, depois que tudo
aconteceu —, é que eu continuo sem saber por que ele
terminou comigo.
— Como assim?
— Esqueci de perguntar.
— E o que vocês ficaram fazendo a noite toda? —
perguntei, surpresa. — Não, não, não precisa me contar,
eu imagino.
— Eu sou muito jovem para ser a mais nova Solteirona
do Pedaço — afirmou Charlotte, de forma sombria.
— Nunca somos jovens demais para isso — afirmei, com
sabedoria.















CAPÍTULO 55
Megan ia assumir seu novo cargo naquela semana, mas
houve complicações. Bem, na verdade, apenas uma.
Para o conhecimento de todos: a saúde mental de Frank
Erskine.
Os médicos da empresa não estavam muito satisfeitos
com o comportamento de um dos diretores.
A oferta da criação de um novo cargo para uma jovem
bronzeada e atraente que usava shorts no trabalho foi
encarada como um ato constrangedor para a empresa,
feito por um homem de meia-idade que devia dar o
exemplo. A empresa fervilhava com os rumores de que ele
estava tendo uma combinação de crise da meia-idade com
colapso nervoso e não era capaz de pensar de forma
racional.
Foi persuadido (na verdade, forçado, de acordo com as
minhas fontes do Departamento de Pessoal) a tirar uma
licença por motivo de saúde. Por sorte, sua mulher
concordou em lhe dar todo o apoio, e o rastilho de fofocas
não foi em frente.
Quando ele voltasse — embora ninguém estivesse
achando que ele fosse mesmo voltar —, a Gerência Geral
teria todo o prazer de conversar com Megan a respeito da
promoção prometida.
Enquanto isso não acontecia, Megan estava condenada
a apodrecer na Seção de Controle de Crédito. Meredia
quase vomitou de tanto júbilo.
CAPÍTULO 56
Três corações estavam arrasados.
Parecia que todas nós havíamos sido atingidas por
alguma praga. Nosso apartamento devia urgentemente ser
isolado por uma cortina preta, e depois deviam pregar na
porta uma cruz também preta. Em toda a volta havia um
ar de trevas terríveis, de doença e morte.
Todas as vezes que eu voltava para casa, esperava ouvir
cantos fúnebres e réquiens tocados em um órgão, vindos
do sótão.
— Um soturno flagelo desceu sobre esta casa —
comentei, e as outras duas concordaram plenamente, com
ar de tristeza.
Então Charlotte perguntou o que era um "soturno
flagelo".
Embora ainda estivéssemos no meio do verão, todo
mundo que cruzava o portal do nosso apartamento notava
que ali dentro era inverno, triste e desolador.
Um domingo, na hora do almoço, Karen e Charlotte
foram para o pub, a fim de se embebedarem e zombarem
dos ex-namorados uma com a outra, de forma venenosa,
comentando o quanto os pênis de Simon e Daniel eram,
na verdade, minúsculos, e como o sexo com eles tinha sido
uma bosta, além do fato de que nenhuma das duas jamais
teve um orgasmo sequer durante o namoro, simplesmente
fingiram o tempo todo.
Eu adoraria ir com elas, mas resolvera me colocar em
estado de prisão domiciliar voluntária.
Estava um pouco preocupada com a exagerada
quantidade de bebida que andava tomando, tanto durante
quanto, especialmente, depois de Gus. Portanto, resolvi
que ia sair daquela fossa por outro caminho.
Estava lendo um ótimo livro que pegara em um estande
da Oxfam. * O livro era sobre mulheres que amavam
demais. Fiquei surpresa, tentando imaginar a razão de
aquele livro jamais ter passado pelas minhas mãos. Talvez
fosse pelo fato de que ele havia sido publicado uns dez
anos antes, quando eu ainda era novata no ofício de me
tornar neurótica, e mal começava a compreender as coisas.
O telefone tocou.
— Daniel — disse eu, pois era ele. — O que você quer,
seu galinha sem-vergonha?
— Lucy... — disse ele, falando baixinho e com pressa —
... ela está aí?
— Quem está aqui? — perguntei, com frieza.
— A Karen?
— Não, não está. Pode deixar que eu aviso a Karen que
você ligou. Mas não fique sentado ao lado do telefone,
esperando que ela ligue de volta, não.
— Não, Lucy. — Ele parecia assustado. — Não conte a
ela que eu telefonei, não. Eu queria falar é com você
mesmo.
— Ah, é?... Pois eu não quero falar com você — reagi.
— Por favor, Lucy.
— Não, vá ver se estou na esquina! — atirei. — Tenho
minhas lealdades, sabia? Você não pode sacanear a minha
amiga, partir o coração dela e ainda ficar esperando que
eu continue a ser a sua velha amiga do peito.
Fiquei esperando que ele soltasse alguma piadinha
sobre o meu peito, mas ele não disse nada.
— Mas, Lucy... — argumentou ele — ... você já era
minha amiga antes dela.
— Pois é uma pena — repliquei. — Você conhece as
regras: rapaz namora garota, rapaz termina com garota,
rapaz fica jurado de morte pelas amigas da garota.
— Lucy — disse Daniel, parecendo muito sério. — Tenho
uma coisa para falar com você.
— Então fale, mas fale depressa.
— Bem... eu jamais achei que ia me ouvir dizendo isso,
mas... bem... estou sentindo a sua falta, Lucy.
Senti uma fisgada de dor por ele. Mas isso era a coisa
mais comum para mim.
— Você não me telefonou durante todo o verão —
lembrei a ele.
— E você também não telefonou para mim.
— Ah, é? E como é que eu podia ligar? Você estava
saindo com outra pessoa, e essa pessoa ia me matar se eu
ligasse para você.
— E você também estava saindo com outra pessoa —
observou Daniel.
— Rá! Essa é boa. Gus não era exatamente uma ameaça
física para você, era?
— Eu não diria isso.
— Entendo o que quer dizer — disse toda melosa ao me
lembrar de Gus. — Embora ele não fosse muito alto,
Daniel, aposto que era capaz de se defender no braço
muito bem, se fosse preciso.
— Não quis dizer isso — continuou Daniel. — Ele não
precisa bater em ninguém. Era capaz de me deixar
completamente imobilizado só com cinco minutos daquela
conversa chata dele.
Fiquei indignada. Que desaforo, Daniel dizer que Gus
era chato Era tão ridículo que nem valia a pena contestar.
— Desculpe — voltou Daniel. — Eu não devia ter falado
uma coisa dessas. Ele era um cara divertido, de verdade.
— Você está falando de coração?
— Não. Mas, se eu não disser isso, você vai bater com o
fone na minha cara e se recusar a me ver.
— Pois você está muito certo em achar isso — disse
eu —, porque não tenho a mínima intenção de ver você.
— Por favor, Lucy — pediu ele.
— De que serve isso? Você é um sujeito patético, sabia,
Daniel? Está momentaneamente sem mulher e o seu ego
não consegue lidar com isso, então você telefona para a
velha Lucy e...
— Qual é? — reclamou ele. — Se eu estivesse precisando
de alguém para inflar o meu ego, você seria a última
pessoa no mundo para procurar.
— Então, por que quer me ver?
— Porque estou com saudade.
Por um momento, acabou meu estoque de insultos
contra ele, e Daniel aproveitou a brecha.
— Não estou entediado — continuou ele. — Não estou
me sentindo sozinho, não estou em busca de companhia
feminina nem de alguém para inflar o meu ego. Queria
simplesmente ver você. Mais ninguém, só você.
Houve uma pausa. O ar reverberou por um momento
com a sua sinceridade, e quase acreditei nele.
Com toda a minha arrogância, porém, senti a sensação
de alguma coisa a mais. Alívio, talvez? Apesar disso,
continuava disposta a não ceder. Isso ia deixá-lo
desapontado.
— Daniel, você sabe que toda a sua lábia e suas
palavras doces não funcionam comigo — lembrei a ele.
— Sim, eu sei — concordou. — E sei também que, se
você concordar em se encontrar comigo, vai me tratar
muito mal.
— Ah, sabe?
— Vai me chamar de galinha e... e...
— Um cara desprezível? — ajudei, esperançosa.
— Isso mesmo. Um cara desprezível. E um conquistador
barato?
— Claro, isso também. Você nem imagina os outros
títulos que tenho para você.
— Tudo bem.
— Você é doente, Daniel Watson.
— Mas você vem me ver?
— Mas estou bem, aqui em casa, sozinha...
— O que está fazendo?
— Estou deitada, descansando...
— Você pode descansar aqui.
— Estou comendo chocolate...
— Posso comprar todo o chocolate que quiser.
— Mas estou lendo um livro ótimo, e você vai ficar
puxando conversa comigo.
— Não vou, prometo.
— E estou sem maquiagem, com a cara horrível.
— E daí?
— Como vou fazer para chegar aí? — ao perguntar isso,
minha rendição foi completa.
— Vou até aí de carro e pego você — ofereceu Daniel.
Ao ouvir isso, joguei a cabeça para trás e soltei uma
gargalhada de ironia.
— Qual é a graça? — perguntou ele.
— Daniel, caia na real. Como é que você acha que a
Karen vai se sentir se avistar o seu carro parado bem na
porta aqui de casa?
— Ah, é! É verdade... — murmurou Daniel, parecendo
envergonhado. — Como é que pude ser tão insensível?
— Não seja bobo — debochei. — Todo mundo já sabe
que você é insensível. Afinal, você é homem... não, o que
quero dizer é que se ela descobrir que você veio até aqui
para me ver, e não a ela, Karen vai tentar matar você. E
vai tentar me matar também — acrescentei, sentindo-me
subitamente tocada pela mão fria do medo.
— É mesmo... Vamos ter que pensar em algum outro
modo, então — concordou Daniel.
Esperei um pouco para ver se ele reconhecia que não
dava para nos encontrarmos.
— Já sei! — anunciou, todo empolgado. — Vou pegar
você na esquina, bem no sinal de trânsito. Ela jamais vai
conseguir me ver lá...
— Daniel! — gritei, indignada. — Como é que você
consegue ser tão...? Tudo bem, nos encontramos na
esquina.
Enquanto me arrumava, tive uma sensação de suspense
com aquele subterfúgio, que era assustador e ao mesmo
tempo empolgante.
Karen não me proibira de ver Daniel. Não proibira, em
termos... Mas eu sabia que ela esperava que eu o odiasse
pelo que fizera com ela. A velha solidariedade entre amigas
que dividem apartamento ditava que, "se uma sai de
campo, todas saem junto". Isso era para acontecer sempre
que um namorado dispensava uma de nós. Se eles
terminavam com uma das três, eram obrigados a abrir
mão do prazer da companhia das outras duas também.
Só que, depois de conversar com Daniel pelo telefone,
reparei no quanto sentia falta dele também. Agora que
voltáramos a ser amigos, era seguro reconhecer isso. Eu
estava com aquela sensação acre-doce que
experimentamos sempre que fazemos as pazes com
alguém.
Daniel era divertido, e alegria era uma mercadoria que
andava muito em baixa na praça naquelas semanas.
Já estava cheia de andar pela casa com o rosto franzido,
junto com Karen e Charlotte, sem comer quase nada. Nós
pegávamos um biscoito, mordiscávamos uma pontinha e
depois o deixávamos de lado, nos esquecendo por
completo do coitado.
E também já estava saturada dos filmes violentos que
Karen andava alugando. Carrie, a Estranha, Beleza Fatal e
qualquer outra história que mostrasse mulheres
conseguindo vingança de forma brutal e sanguinolenta.
E Charlotte teve uma regressão brava. Achávamos que
havíamos dado adeus para sempre a Christopher Plummer
e suas calças justas. Charlotte, porém, teve uma recaída
terrível, e assistia à Noviça Rebelde sempre que Karen não
estava enchendo a telinha com imagens de sangue e dor.
Sangue e dor masculinos, de preferência.
Eu estava cansada de morar em uma casa que vivia de
luto. Queria colocar um vestido vermelho e ir a uma festa.
Mas eu não estava sendo justa. Foi um puro golpe de
sorte que o meu namorado tivesse enjoado de mim antes
do namorado de Charlotte ou o de Karen sentirem o
mesmo, pois graças a isso eu já estava umas duas
semanas à frente delas no processo de recuperação
emocional.
Como a gente esquece rápido.
Na verdade, havia só dez dias desde que eu estivera
sentada naquele mesmo sofá, fungando, com o controle
remoto na mão, assistindo à cena de O Exterminador do
Futuro em que ele fala: "Vim do futuro e viajei pelo tempo
apenas por você." Então, voltava a cena e assistia a ela de
novo. Então, voltava a cena e assistia a ela de novo, Então,
voltava a cena...
São assustadoras as coisas que fazemos depois de uma
desilusão amorosa.
Bem, pelo menos a crise significava que os negócios
estavam indo de vento em popa para Adrian.
Daniel parecia atento e nervoso enquanto esperava por
mim no carro, bem na esquina, em frente ao sinal de
trânsito.
— Não fique esperando que eu fale com você — avisei
assim que entrei no carro.
Tinha de admitir que Daniel parecia muito atraente,
para quem gosta daquele gênero de beleza.
Graças a Deus não era o meu caso.
Em vez do terno que normalmente eu o via usar, estava
de calça jeans desbotada e um suéter cinza muito bonito.
Bonito de verdade, pensei. Talvez ele me emprestasse.
E eu jamais reparara antes como os cílios dele eram
compridos e espessos. Assim como o suéter, aqueles cílios
iam cair muito melhor em mim do que nele.
Comecei a me sentir meio tímida e sem graça. Já fazia
tanto tempo que eu o vira pela última vez assim, só nós
dois, que eu me esqueci de como devia me comportar.
Pela sensação de carinho e amizade que senti por ele,
porém, vi que aquilo só podia ser alegria por revê-lo.
— Quer dirigir? — perguntou ele. A sensação de afeição
se intensificou dentro de mim.
— Você deixa? — perguntei, rouca de empolgação.
Eu fizera algumas aulas de direção e tirara carteira de
motorista mais ou menos um ano antes, embora não
tivesse carro nem dinheiro para comprar um, e nem
mesmo precisasse de um carro.
Fiz isso só para me sentir poderosa, uma das muitas
coisas que tentara para me sentir mais satisfeita com a
vida. Claro que não adiantou nada. Um dos efeitos
colaterais daquilo, no entanto, foi que descobri que
adorava dirigir. E Daniel tinha um automóvel lindo,
esportivo, muito sexy. Não sei dizer qual era a marca nem
o modelo, afinal sou mulher. Mas sabia de duas coisas
importantes: o carro era lindo e muito veloz.
As mulheres o adoravam.
Só para implicar com Daniel, eu batizara o carro de
"fodomó-vel" ou "o carrão do garanhão", e vivia dizendo
que as garotas só saíam com ele por causa do carro.
Então saltamos, trocamos de lugar e ele me atirou as
chaves por cima do veículo.
Dirigi por toda Londres até o apartamento de Daniel, e
passei os melhores momentos da minha vida, desde
aquela última noite em que transara com Gus.
Embora não planejasse isso, saí dirigindo que nem uma
louca. Já fazia muito tempo desde a última vez em que eu
me vira diante de um volante. Tempo demais, talvez.
Fiz todas as coisas imprudentes que parecem
maravilhosas quando estamos dirigindo um carro veloz.
Saía na frente dos outros carros no sinal, cantando pneus,
provocando cara feia nos motoristas. Isso se chamava
"deixar os outros na poeira", informou Daniel.
Ultrapassava os carros e ia para a outra pista. Daniel me
informou que isso se chamava "costurar no trânsito". No
momento em que ficamos parados em um pequeno
congestionamento, comecei a piscar e a sorrir para os
homens bonitos dos outros carros. Daniel disse que isso
se chamava "ficar de galinhagem".
Eu me senti ligeiramente chocada quando os outros
motoristas começaram a me xingar e a fazer gestos
obscenos sempre que eu os deixava para trás ou os
cortava, mas isso foi só no início.
Logo, logo me adaptei à etiqueta que existe entre os
motoristas. Assim, sempre que alguém me cortava, eu
berrava, furiosa: "Babaca!", e tentava baixar o vidro para
fazer gestos obscenos para ele, só que não conseguia
achar a manivela.
Ele ia embora com um ar de medo nos olhos e,
subitamente, como uma névoa que se desfaz, descobri
como é que eu devia estar parecendo aos outros, isto é, tão
babaca quanto eles. Fiquei abalada. Jamais pensei que
pudesse ser tão agressiva. Pior, jamais achei que pudesse
gostar tanto daquilo.
Olhei para o lado, com medo de que Daniel ficasse
chateado comigo. Afinal, o sujeito podia ter saído do carro
para nos agredir. Violência nas ruas estava tão na moda
que as pessoas se sentiam quase obrigadas a agredir
alguém. Achavam que não estavam aproveitando todas as
vantagens que a carteira de motorista lhes dava se, pelo
menos uma vez por semana, não chegassem em casa com
a camisa rasgada depois de se atracarem com outro
motorista em um engarrafamento.
— Desculpe por ter dito aquilo, Daniel — murmurei,
lançando um olhar de lado, meio nervoso, para ele, mas
ele estava rindo.
— Viu só a cara daquele sujeito? — ele estava ofegante
de tanto rir. — Ele parecia não acreditar que fora xingado.
Continuou a rir tanto que algumas lágrimas escorreram
pelo seu rosto, e finalmente conseguiu dizer:
— A propósito, o botão para mover os vidros elétricos
são esses aqui.
Ao chegarmos à rua onde Daniel morava, falei, depois de
estacionar a um metro do meio-fio:
— Obrigada, Daniel. Foi a coisa mais divertida que fiz
em várias semanas.
Eu não era má motorista, mas meu forte não era
estacionar.
— De nada — disse ele. — Você é boa na direção. Você e
o carro combinam um com o outro.
Fiquei vermelha e sorri, sentindo-me feliz e um pouco
sem graça.
— Foi divertido, mas acabou muito depressa — reclamei.
— Bem, se você quiser — disse ele —, na semana que
vem eu levo você para um passeio pelo campo, e vai poder
deixar todo mundo na poeira, pela estrada.
— Hummmmm — disse eu, sem me comprometer a
aceitar. Havia alguma coisa no jeito como ele disse "eu
levo você" em vez de "podemos ir" que me fez sentir
estranha. Não exatamente nervosa... bem, talvez não só
nervosa.
— Hã, Lucy... — Que foi?
— Você ficaria muito ofendida se eu estacionasse o carro
um pouquinho só mais perto da calçada?
— Não. — De repente, senti a necessidade de sorrir para
ele. — Nem um pouco.















CAPÍTULO 57
Eu não ia ao apartamento de Daniel há séculos. Da
última vez em que estivera lá, o lugar parecia estar em
obras, porque Daniel tentara instalar umas prateleiras na
sala e tudo havia despencado no chão, inclusive partes da
tinta e do reboco. Mal dava para ver o carpete, de tanta
poeira e pedaços de gesso.
Naquele dia, porém, estava tudo arrumado. Nem dava
para perceber que era o apartamento de um rapaz. Não
parecia um terreno cheio de sucata, nem o interior da
mochila de um atleta depois do treino. Não havia peças de
moto espalhadas em cima da mesa da cozinha, nem
pedaços de caixas de papelão espalhados pelo chão, nem
raquetes de badminton em cima do sofá, nem uma fileira
daquelas petecas de jogar badminton em cima da tevê.
Ao dizer tudo isso, não estou querendo dar a impressão
de que o apartamento de Daniel era legal. A mobília era
um pouco estranha, porque ele herdara muita coisa do
irmão mais velho, Paul, que se divorciou e foi trabalhar na
Arábia Saudita, e muita coisa veio também da avó dele,
quando ela vestiu o paletó de madeira. Acho que a melhor
coisa que eu poderia dizer a respeito da mobília de Daniel
é que ela não tinha uma personalidade suficiente o
bastante para ser ofensiva.
Aqui e ali, como oásis no deserto, havia alguns objetos
que eram realmente interessantes: um suporte para CDs
com o formato de uma girafa vermelha, um candelabro
avulso, o tipo de coisa que entulhava o apartamento de
Simon, por exemplo. Só que se você dissesse "prateleira
legal, esta" para Simon, ele não diria simplesmente
"obrigado".
Em vez disso, recitava a árvore genealógica da peça. "Foi
do Antiquário Conran, é uma peça Ron Arad, de edição
limitada, vai estar valendo uma fortuna qualquer dia
desses." O que podia ser verdade, mas, por algum motivo,
me parecia... como dizer... pouco masculino. Todos os
artigos inanimados de Simon possuíam pedigrees e
linhagens, e ele era capaz de traçar a origem deles até o
antepassado, sempre um Le Corbusier ou um Bauhaus.
Simon jamais dizia "coloque a água na chaleira para
ferver". Em vez disso, falava "por favor, acenda com todo o
cuidado o bico de gás do fogão laqueado em turquesa, que
é uma reprodução genuína de um original dos anos 50, e
coloque sobre ele a minha chaleira Alessi de aço inoxidável
com design premiado, em forma de pirâmide, e se você
fizer um arranhãozinho sequer em sua tampa de prata
polida eu vou matá-la com a faca mais comprida do meu
faqueiro Sabatier completo".
Se eu não tivesse sido informada do contrário, poderia
jurar que Simon era gay.
Ele tinha uma paixão por "coisas do lar" que eu
costumava associar, de forma justa ou injusta, com
membros da comunidade homossexual.
Os objetos legais da casa de Daniel eram uma mistura
estranha. Algumas peças pareciam antigüidades,
enquanto outras eram coloridas, brilhantes e modernas.
— Ai, que lindo aquele despertador — disse eu, pegando
o objeto em cima de uma mesinha com cara de velha que
era parte da sua herança. — Adorei! Onde foi que você
comprou?
— Hã... foi a Graça que me deu de presente.
— Ah, sei. — Então avistei outra coisa que amei.
— Olha só que espelho lindo — disse, prendendo a
respiração e correndo para tocar a trabalhada moldura de
madeira pintada de verde com uma cobiça quase
explícita. — Onde conseguiu isso?
— Hã... foi a Karen que me deu — explicou ele, meio
encabulado.
Aquilo explicava o caleidoscópio de peças, a miscelânea
de estilos diferentes no apartamento.
As namoradas de Daniel deviam ter tentado, cada uma a
seu tempo, deixar a sua marca pessoal nos objetos de
decoração do lugar. O problema é que cada uma delas
tinha um gosto diferente.
— Estou surpresa por Karen não exigir este espelho de
volta — disse eu.
— Na verdade, ela o quis de volta sim — admitiu Daniel,
baixinho.
— Então, por que ele ainda está aqui?
— Ela desligou o telefone na minha cara depois de me
comunicar que o queria de volta, e desde então tem se
recusado a atender os meus telefonemas, de modo que
não sei como devolvê-lo.
— Eu posso levá-lo para casa, mais tarde — sugeri, toda
animada, já imaginando aquele espelho pendurado na
parede do meu quarto.
— Não, não... — completei, depressa. — Não posso levar
não. Ela ia descobrir que estive aqui, e acho que não ia
ficar nem um pouco satisfeita.
— Lucy, você tem todo o direito de estar aqui... — disse
Daniel, mas o ignorei. Sabia que tinha todo o direito de
estar ali, mas tinha certeza de que Karen ia encarar isso
de forma diferente.
— Vamos ver agora o cômodo mais importante da
casa — disse, encaminhando-me para o quarto. — O que
comprou de novidades?
Atirei-me com determinação na cama de Daniel e fiquei
rolando um pouco ali, de um lado para outro.
— Então é aqui que tudo acontece, não é? — perguntei.
— Não sei do que você está falando — murmurou ele —,
a não ser que seja dormir.
— Mas o que é isso aqui? — quis saber, beliscando o
edredom e puxando-o para cima com dois dedos. — Isso
tem toda a pinta de ter vindo daquela loja de cama e mesa,
a Habitat. Eu achava que máquinas de fazer amor como
você tinham colchas feitas de pele sobre a cama. Não que
eu saiba a diferença exata entre uma colcha e um
edredom.
— Bem, eu tenho uma dessas, mas a tirei e deixei
guardada quando você falou que vinha aqui em casa. E
retirei o espelho do teto também. Só não tive tempo ainda
de desmontar a câmera de vídeo, que fica escondida.
— Você é repulsivo, sabia? — disse, distraída. Ele sorriu
de leve.
— Imagine só — continuei, olhando para ele de onde
estava, estendida na cama. — Estou na cama de Daniel
Watson. Bem, por cima das cobertas, pelo menos, o que já
deve servir para alguma coisa. Milhares de mulheres estão
morrendo de inveja de mim.
— Pelo menos duas, com certeza — completei, pensando
em Karen e Charlotte.
Então fiz o que sempre fazia quando me via no quarto do
Daniel.
— Adivinhe quem sou, Daniel — provoquei. Então
comecei a me retorcer toda, fazendo pequenos gemidos de
êxtase.
— Ai, Daniel... ai, Daniel... — arfava, baixinho.
Esperei que ele começasse a rir, como fazia
normalmente, mas continuou sério.
— Adivinhou quem é? — quis saber.
— Não.
— Dennis — respondi, triunfante.
Ele sorriu sem muita vontade. Lembrei que eu já havia
feito aquela piadinha muitas vezes antes.
— Então, qual é a sua atual companheira de cama? —
perguntei, mudando de assunto.
— Ah, deixe pra lá.
— Mas existe alguma atualmente?
— Não exatamente.
— Mas como? Quer dizer que você paquerou uma
mulher por mais de quatro horas e não conseguiu seduzi-
la com o seu papo tipo "sou tão inocente, não sou um
devasso como os outros, sou um cara muito legal", depois
de uma dose extra de charme? Você deve estar perdendo o
seu toque de mestre, Daniel! — exclamei.
— Devo estar.
Ele não estava sorrindo como fazia sempre.
Simplesmente saiu do quarto. Aquilo era alarmante. Então,
pulei da cama e corri atrás dele.
— E como é que pode o seu apartamento estar tão limpo
e arrumadinho? — perguntei, desconfiada, quando
chegamos de volta à sala.
Estava me sentindo envergonhada, porque, apesar de
Karen, Charlotte e eu fazermos rodízio para faxinar o
apartamento todas as semanas, ele continuava uma zona.
Sempre começávamos cheias de boas intenções, mas,
depois de um ou dois dias, nossa determinação para
manter o apartamento impecável começava a perder fôlego,
e falávamos coisas como:
"Charlotte, se você limpar o banheiro no meu lugar,
empresto o meu vestido de camurça pra você usar na festa
de sexta à noite" e "Não enche o saco, Karen, eu limpei
isso, sim senhora... quer dizer, não deu pra limpar com
esponja de aço, né?... A Charlotte acabou com o nosso
estoque: usou tudo nela, depois que dormiu com aquele
dinamarquês. Não é minha culpa que não tenha saído
tudo, não foi por falta de esfregar" e "Eu sei que hoje é
domingo à noite, estamos todas esticadas no sofá e nas
poltronas vendo tevê e estamos em um estado de
relaxamento tão grande que é quase comatoso, mas vou
ter que passar o aspirador na sala. Portanto, sinto muito,
mas vocês vão ter que sair daí, e também têm que desligar
a tevê, porque preciso usar a tomada... ei, não gritem
comigo! Não gritem! Se vai atrapalhar tanto assim, acho
que posso deixar a limpeza pra outra hora. não que eu
queira, mas se vocês têm certeza de que preferem que eu
não limpe agora...".
O que precisávamos mesmo era pagar a alguém que
fizesse a faxina, pelo menos uma vez por semana, mas
Karen vetava a idéia todas as vezes que ela surgia. "Por
que pagar para alguém fazer uma coisa que nós mesmas
podemos fazer?", argumentava ela. "Somos jovens, fortes e
capazes para o serviço!"
Só que a gente não fazia o serviço nunca,
— Daniel, você tem alguma refugiada filipina de
dezesseis anos que já é casada e para quem você paga
menos de um salário mínimo para vir até aqui fazer toda a
faxina para você?
— Claro que não — respondeu ele, ofendido.
— Nem mesmo uma daquelas coitadas que fazem ponta
era novela, em papel de empregada, com avental, lenço na
cabeça, problemas de coluna e o joelho vermelho, que vem
aqui de vez em quando para espanar o pó, beber chá e
reclamar da vida?
— Não — garantiu Daniel. — Eu faço toda a limpeza, na
verdade.
— Sei... — disse eu, sem acreditar. — Então aposto que
você pega a sua atual namorada pra Cristo e a obriga a
passar sua roupa toda e lavar o banheiro.
— Não faço nada disso.
— Ué, por que não? — quis saber. — Tenho certeza de
que elas adorariam. Se qualquer pessoa aparecesse na
minha frente e se oferecesse para passar a minha roupa
em troca de favores sexuais, eu não conseguiria recusar.
— Lucy, eu me ofereço para passar toda a sua roupa em
troca de favores sexuais — disse Daniel na mesma hora.
— Qualquer pessoa menos você, devo ter esquecido de
mencionar — corrigi.
— Sério, Lucy, é que na verdade gosto de fazer trabalhos
domésticos — disse ele.
Lancei-lhe um olhar de deboche e disse:
— E você ainda diz que eu é que sou estranha...
— Eu não digo isso, Lucy — disse ele, parecendo
magoado.
— Não? — perguntei, surpresa. — Pois devia... Quanto a
mim, odeio trabalhos domésticos. Se existe um inferno
sendo preparado para quando eu morrer, e não vejo razão
para achar que não exista, com certeza isso vai incluir eu
ter que passar todas as roupas de Satanás. E passar
aspirador de pó, isso é que é o pior! É a Sala 101 * dos
trabalhos domésticos, para mim, e vou ser obrigada a
passar aspirador de pó no inferno todos os dias.
— Eu sou como a Mãe Natureza — acrescentei.
— Como assim? — perguntou Daniel.
— A Mãe Natureza rejeita os aspiradores de pó, é por
isso que não existem aspiradores de pó naturais. Só que
nem ela rejeita esse aparelho com tanta força quanto eu.
Daniel deu uma risada. Graças a Deus, pensei. Ele
estava muito sério, o que era estranho.
— Vamos lá, venha até aqui, Lucy — disse Daniel,
colocando o braço em volta da minha cintura. Senti uma
fisgada de pânico até compreender que ele estava apenas
me empurrando pela sala até onde estava o sofá.
— Você não queria ficar deitada? — lembrou ele.
— Queria.
— Pois este é o lugar certo para isso.
— E quanto ao chocolate que você me prometeu? — quis
saber, sem aceitar ser enrolada. Ficar deitada não tinha
graça nenhuma sem chocolate. E chocolate é muito mais
gostoso de se comer quando a gente está deitada.
— Já está vindo. — E saiu da sala para ir pegar.
Esse foi o dia em que o tempo virou.
Estávamos no fim de agosto, e embora o calor não
estivesse mais sufocante, ainda estava muito quente, e
todas as janelas da sala de Daniel estavam abertas.
De repente, como se um interruptor tivesse sido ligado, o
vento começou, o farfalhar das folhas se intensificou, o
céu escureceu e ouvimos o primeiro troar ameaçador da
tempestade.
— Isso foi um trovão? — perguntei, esperançosa.
— Parece que sim.
Corri para a janela e me debrucei para fora. Um saco
plástico que provavelmente estivera na calçada o verão
inteiro sem ser perturbado começou a rodopiar na brisa.
Em poucos segundos, a chuva começou e o mundo se
transformou.
As ruas e os jardins, que eram de cor bege, secos e
empoeirados, se transformaram em escuros e luzidios, e o
esverdeado brilhante das folhas ficou preto, quase de
repente.
Era lindo.
O ar ficou com um odor de verde, muito perfumado e
fresco. O cheiro de terra molhada subia até onde eu estava,
e eu me debruçava ainda mais, de modo cada vez mais
precário, para fora da janela.
De vez em quando meu rosto era atingido por gotas de
chuva tão grossas que pareciam pedradas.
Eu amava os temporais. O único momento em que
realmente me sentia em paz comigo mesma era durante
uma tempestade. Todo aquele alvoroço exuberante
conseguia me acalmar.
Aparentemente isso não acontecia apenas porque eu era
esquisita. Havia uma explicação científica para esse fato.
Tempestades com relâmpagos enchiam o ar com íons
negativos, embora eu não tenha certeza de o que eles são.
Só sei que fazem nos sentirmos bem. Quando soube disso,
cheguei a comprar um ionizador, só para tentar recriar o
efeito de uma tempestade sempre que quisesse.
Mas nada se comparava à coisa real.
Houve mais um trovejar forte, e a sala foi cortada por
uma luz prateada, com uma vibração muito intensa.
Durante o efêmero espocar da luz prateada, a mesa de
Daniel, as cadeiras e todas as outras coisas em volta
pareceram perplexas, como pessoas acordadas
subitamente por alguém que acendeu a luz do quarto.
A chuva caía em cascatas e dava para eu sentir o
ribombar dos trovões bem no fundo de mim.
— Isso não é demais? — perguntei, virando-me para trás
e sorrindo para Daniel.
Ele estava em pé, poucos metros atrás de mim, me
observando. Olhava-me fixamente, com uma intensidade
estranha e curiosidade no olhar.
Na mesma hora me senti sem graça. Ele achou que eu
ficara completamente doida, ali, curtindo a chuvarada.
Então, o olhar intenso e engraçado desapareceu de seu
rosto e ele sorriu, dizendo:
— Eu havia me esquecido de que você sempre gostou de
chuva — disse ele. — Uma vez você me disse que, quando
chove, sente que a sua parte de dentro e a parte de fora
combinam e se completam.
— Eu disse isso? — Fiquei embaraçada. — Não é de
admirar que você ache que sou doida.
— Mas eu não acho isso — disse ele.
Sorri para ele. Ele sorriu de volta, um sorriso meio torto,
engraçado.
— Acho você incrível, Lucy. Isso me desmontou.
Houve um longo intervalo. Tentei pensar em algo que
servisse de insulto a ele ou a mim, mas não me veio nada
à cabeça. Qualquer coisa servia para dissolver a tensão.
Mas não consegui dizer uma palavra. Fiquei muda. Tinha
a certeza de que ele dissera "incrível" como um elogio, mas
não sabia como responder a isso.
— Saia da janela — disse ele, afinal. — Não quero que
você seja atingida por um raio.
— Ora, Daniel, temos que reconhecer, se é possível que
isso aconteça com alguém, é bem capaz de acontecer
comigo — disse eu, e nós dois rimos com muita vontade.
Embora continuássemos afastados um do outro. Ele
fechou as janelas, abafando os sons da tempestade.
Mesmo assim, os trovões reclamavam, rugiam e
explodiam sobre as nossas cabeças. A chuva continuava,
torrencial, e quando deu cinco horas da tarde estava
quase tão escuro como se estivesse de noite. Exceto
quando um relâmpago brilhava e clareava a sala toda,
iluminando-a por um ofuscante segundo. A água escorria
pelas vidraças.
— Isso está me parecendo o fim do verão — disse Daniel.
Senti um pouco de tristeza, mas só por um momento.
Eu sempre soube que o verão não ia durar para sempre,
e que era hora de tocar a vida para a frente.
De qualquer modo, eu também gostava do outono. O
outono era a estação das botas novas.
Finalmente, todas as emoções do temporal se
esvaziaram, e a chuva se acomodou em um tamborilar leve
e constante. Calmante, hipnotizante, aconchegante.
Enfiei-me debaixo de um edredom, no sofá, aproveitando o
deleite de me sentir bem acomodada, confortável e segura.
Li meu livro e comi chocolate.
Daniel ficou sentado na poltrona, comendo biscoitos
salgadinhos, lendo os jornais e assistindo à tevê com o
som bem baixinho.
Acho que ficamos duas horas sem dizer uma palavra um
ao outro.
De vez em quando eu suspirava, me espreguiçava e dizia:
"Deus, isso é bom demais" ou "Sirva-me de outra uva,
Copernicus". Daniel sorria para mim quando, eu falava
essas coisas, mas não acho que isso conte como conversa.
A sensação de fome foi a única que, finalmente, foi capaz
de fazer com que nos comunicássemos.
— Daniel, estou morrendo de fome.
— Bem...
— E não venha me dizer que fiquei aqui comendo
chocolate a tarde inteira e não é possível que eu esteja
com fome.
— Eu não ia falar isso. — Ele pareceu surpreso. — Sei
que você tem um segundo estômago só para biscoitos e
doces. Quer que eu leve você a algum lugar para
comermos alguma coisa?
— Eu vou ter que sair do sofá para isso?
— Ah, já entendi o seu problema. — Riu ele. — Quer
uma pizza?
— Com pão de alho pra acompanhar? — perguntei,
esperançosa.
— E queijo — completou ele, com a voz suave.
Que grande sujeito!
Abrindo a gaveta de um armário modulado sofisticado,
Daniel pegou montes de cardápios e folhetos de pizzarias.
— Dê uma olhada nestes aqui e resolva qual você quer.
— Tenho que fazer isso?
— Não, só se quiser.
— Mas, se eu não der uma olhada neles, como é que vou
poder escolher entre os diferentes tipos?
Assim, ele leu para mim em voz alta todos os sabores e
ingredientes.
— Massa fina ou tradicional, Lucy?
— Fina.
— Farinha comum ou integral?
— Comum! Farinha integral?... que idéia revoltante.
— Pequena, média ou grande?
— Pequena — respondi. Ele ficou em silêncio.
— Tá legal, então... média.
Depois que o pedido foi efetuado, a conversa parou
novamente.
Assistimos à tevê, comemos, quase não falamos. Eu não
me lembrava de me sentir tão feliz assim em muito tempo.
Não que isso signifique muito, se considerarmos que eu
andara à beira do suicídio por semanas.
Durante toda a tarde e a noite, o telefone só tocou duas
vezes, mas quando Daniel atendia, a pessoa desligava. Eu
desconfiava de que provavelmente era uma das centenas
de ex-namoradas dele. Isso fez com que eu me sentisse
desconfortável, porque aquilo me fazia lembrar do tempo
em que u também costumava fazer isso com qualquer
homem que terminasse comigo. Se eu soubesse o novo
telefone de Gus, teria feito exatamente aquilo no mínimo
umas dez vezes por dia.
Mais tarde, Daniel me deixou em casa. Insisti para
saltar na esquina, no sinal de trânsito.
— Não — argumentou ele. — Você vai ficar ensopada.
— Por favor, Daniel — implorei. — Estou com medo de
que Karen veja o seu carro.
— E o que há de errado com isso?
— Ela vai transformar a minha vida em um inferno.
— Mas nós temos todo o direito de vermos um ao outro.
— Talvez — concordei. — Mas sou eu que tenho que
conviver com ela. Você não seria tão valente se ela fosse a
sua companheira de apartamento.
— Então vou entrar com você e acertar as coisas com
ela — ameaçou.
— Não! — exclamei. — Isso ia ser terrível.
— Escute, Daniel — disse, um pouco mais calma. — Eu
converso com ela sobre isso, tudo vai ficar bem.









CAPÍTULO 58
Enquanto eu corria pela rua cheia de poças, com a
chuva escorrendo pelo corpo, fiquei agoniada sobre o que
deveria dizer a Karen quando ela me perguntasse por onde
eu andara. A coisa mais fácil seria mentir, é claro, só que
ela ia acabar descobrindo.
De qualquer modo, por que deveria mentir? Eu não
fizera nada de errado, disse a mim mesma.
Tinha todo o direito de ver Daniel, ele era meu amigo, já
era meu amigo há muitos anos, muito antes de ele
conhecer a Karen, muito antes de eu mesma conhecer
Karen, por falar nisso.
Tudo me parecia perfeitamente razoável quando era dito
dessa forma.
Porém, assim que enfiei a chave na porta, minha
coragem fugiu correndo.
— Em que porra de lugar você esteve?
Karen estava me esperando, seu rosto parecia um trovão
e havia um cinzeiro com um metro de cinzas e guimbas na
mesa, na frente dela.
— Hã...
Eu poderia ter mentido, tranqüilamente, mas era óbvio
que ela já sabia.
Como é que ela sabia? Quem será que me entregara?
Descobri mais tarde, por Charlotte, que tinha sido o
Adrian. Depois que o pub fechara, Karen e Charlotte
resolveram alugar um filme para ajudar a passar algumas
horas do domingo à tarde, e Adrian perguntara a elas
quem era "o palhaço pintoso com o tremendo carrão" com
quem eu tinha saído.
— Ele parecia à beira das lágrimas — disse Charlotte. —
Acho que ele gosta de você, Lucy.
Tudo tinha sido culpa minha, é claro. Se eu tivesse me
encontrado com Daniel no meu apartamento, em vez de
armar todo aquele esquema, não teria sido descoberta
daquele jeito. Honestidade era sempre a melhor política.
Ou então cobrir os rastros de forma decente.
— Então, o que está havendo? — quis saber Karen, com
a voz aguda. Seu rosto estava muito pálido, a não ser
pelas bochechas, que estavam muito vermelhas. Ela
parecia uma demente de tanta fúria, nervos ou algo assim.
— Não está havendo nada — afirmei, louca para
tranqüilizá-la. Não apenas por preocupação com a minha
segurança física, mas por conhecer bem o inferno que é
quando desconfiamos de que o homem que amamos
encontrou outra pessoa.
— Não me venha com essa.
— Sério, Karen, só dei uma passada no apartamento
dele. Foi uma visita totalmente inocente.
— Inocente, sei... Nada do que aquele homem faz é
inocente. E sabe quem foi que me avisou sobre isso? Você
mesma, Lucy Sullivan!
— Comigo é diferente...
— Ah, não, não é não, Lucy. — E deu um sorriso
amargo. — Não fique aí se achando o máximo.
— Mas eu não estou me achando...
— Está sim! É assim mesmo que ele faz. Ele me fez
sentir como se eu fosse a única garota do mundo.
— Não, não é disso que estou falando, Karen. Eu quis
dizer que comigo é diferente porque não estou interessada
nele, nem ele em mim, somos apenas amigos.
— Não seja tão ingênua... Enfim, sempre suspeitei de
você, fazendo questão o tempo todo de dizer que não o
achava lindo...
— Estava sendo apenas lúcida...
— ...Além do mais, ele não ia se dar ao trabalho de
perder tempo com você se não pretendesse ganhar esse
troféu. Ele não resiste a um desafio. Vai tentar uma transa
só pelo fato de você agir o tempo todo como se não
estivesse a fim.
Abri a boca, mas não consegui falar nada.
— E é verdade que ele deixou que você dirigisse o carro
dele?
— É.
— Canalha! Ele nunca me deixou dirigir. Em seis meses,
ele não me deixou dirigir nem uma vezinha.
— Mas você não sabe dirigir.
— Ah, mas ele podia ter me ensinado, não podia? Se
tivesse o mínimo de decência, ele teria dado umas aulas
de direção para mim.
— Hã...
— E então, ele já está saindo com outra mulher por
aí? — perguntou, torcendo o rosto todo ao tentar sorrir.
— Acho que não — disse, para tranqüilizá-la. — Não se
preocupe.
— Eu não estou preocupada com isso — ridicularizou
ela. — Por que estaria preocupada? Afinal, fui eu que
terminei com ele.
— Claro. — Era difícil saber o que dizer.
— Você não vai tornar a se encontrar com ele. Não vai
trazer meu ex-namorado para dentro da minha própria
casa.
— Mas eu não faria isso. — Achei que estava sendo
cuidadosa, mostrando consideração pelos sentimentos
dela, mas Karen fez com que eu me sentisse insensível e
egoísta.
— E aposto que ele meteu o pau em mim...
Não sabia o que responder. Tinha receio de que ela
ficaria magoada se eu dissesse que ele nem tocara no
nome dela.
— ... Olhe, não quero que ele saiba de nada do que
acontece na minha vida. Como é que posso ter um pouco
de privacidade se a amiga com quem divido o apartamento
está saindo com o meu ex?
— Mas não é nada disso...
Eu me sentia arrasada com a culpa e o remorso. Odiava
a mim mesma por estar provocando aquele sofrimento em
Karen, e já não conseguia compreender como pudera
considerar aquilo justificável.
Então o raio me atingiu:
— Eu proíbo você de se encontrar com ele! — Karen
falou isso olhando dentro dos meus olhos.
Aquela era a minha deixa para levantar os ombros,
engolir em seco e dizer a Karen que ela não tinha o direito
de proibir que eu me encontrasse com ninguém.
Mas não fiz nada disso.
Estava me sentindo culpada demais para enfrentá-la.
Não tinha o direito de me colocar contra ela. Eu era uma
amiga-da-onça, uma péssima companheira de moradia,
um ser humano desprezível. Não pensei em como seria
ficar sem ver Daniel nunca mais, porque queria apenas
resolver as coisas com Karen.
— Tudo bem — concordei, abaixando a cabeça e saindo
da sala.
CAPÍTULO 59
Tornei a sair com Daniel na noite seguinte. Não sei o que
estava acontecendo comigo. Sabia muito bem que estava
proibida de vê-lo, e estava morrendo de medo de Karen,
estava petrificada.
Só que, quando ele me telefonou e perguntou se poderia
me levar a algum lugar para jantarmos depois do
expediente, por algum motivo respondi que sim. O mais
provável é que eu tenha concordado simplesmente pelo
fato de que fazia séculos desde a última vez que alguém
me levara para jantar e pagara a conta.
Embora, pensando melhor, talvez fosse uma espécie de
rebelião, ainda que secreta e particular. Um desafio, como
se eu estivesse debochando de Karen balançando dois
dedos bem debaixo do seu nariz, embora estivesse usando
luvas de pegar panelas para isso.
Pouco antes de Daniel chegar à minha sala, resolvi
retocar a maquiagem. Apesar de estar saindo com Daniel,
um programa noturno era sempre um programa noturno,
e nunca dava para saber quem poderíamos conhecer de
interessante. Ao pegar o delineador, fiquei preocupada ao
reparar que estava me sentindo meio nervosa e trêmula.
Pelo amor de Deus, é claro que eu não estava a fim de
Daniel!, pensei, horrorizada. Então me tranqüilizei, vendo
que aquilo era apenas o meu velho conhecido, o pavor.
Pavor de Karen e do que ela poderia fazer comigo se
descobrisse. Ai, que alívio! Era muito melhor estar nervosa
de medo e não de empolgação.
Quando Daniel entrou na minha sala, às cinco horas
(usando um crachá de visitante, pois ele jamais faria papel
de Gus), eu me senti tão feliz por vê-lo, apesar do terno,
que senti uma fisgada de raiva compreensível contra
Karen. Cheguei a pensar em bater de frente com ela, mas
a idéia se dissolveu na mesma hora.
— Vamos a um pub antes de jantar — avisei Meredia,
Megan e Jed. — Vocês podem ir conosco, se quiserem.
Mas eles recusaram o convite. Meredia e Jed estavam
com aquela cara de "ele não é o Gus", e me olhavam com
olhares desconfiados e de censura enquanto eu vestia o
casaco.
Mamãe arranjou um novo namorado, e eles queriam que
mamãe voltasse para papai.
Idiotas.
Mamãe também queria voltar para o papai, mas o que é
que ela podia fazer? Recusar uma refeição grátis ia trazer
Gus de volta, correndo?
Megan recusou a oferta, anunciando para Daniel, com
ar satisfeito:
— Obrigada pelo convite, e espero que fiquem bastante
ofendidos se eu dispensar a saída com vocês. O problema
é que não estou a fim de passar a noite com um cara
assim todo certinho como você, Daniel. Marquei um
encontro com um homem de verdade.
Como eu, Megan sentia uma forte necessidade de punir
Daniel por ele ser bonito, simpático e transformar
mulheres inteligentes em palermas derretidas. Mesmo
assim, aquilo me pareceu meio grosseiro. E quem seria
esse tal de homem de verdade de quem ela estava
enchendo a bola? Provavelmente um daqueles gigantes
tosquiadores de ovelhas que não se barbeavam há muitos
dias e não trocavam de cueca há mais tempo ainda.
Assim, Daniel e eu fomos ao pub sozinhos.
— Karen me telefonou — informou ele, assim que nos
sentamos.
— Ah. — Senti um friozinho na barriga. — O que foi que
ela queria?
Será que eles dois iam reatar?
— Ela me mandou ficar longe de você — disse ele.
— Mas que cara-de-pau a dela, hein? — explodi,
aliviada. — E você, o que respondeu?
— Respondi que nós dois éramos adultos e podíamos
fazer o que nos desse na telha.
— Ai, por que você teve que dizer isso pra ela? —
choraminguei.
— E por que não?
— Para você está tudo bem, ser um adulto e fazer o quer
der na telha... Você não tem que conviver com ela. Se eu
tentar ser adulta e fazer o que me der na telha, ela me
mata.
— Mas...
— Qual foi a reação dela quando você falou isso? —
perguntei.
— Ela pareceu muito chateada comigo.
— Como assim? — Fiquei desanimada.
— Ela me disse... deixe-me ver se consigo lembrar
exatamente quais as palavras que ela usou. Ah!... disse
que sou horrível na cama. E, é claro, disse que o meu
pênis é um dos menores que ela já viu na vida.
— Naturalmente — concordei.
— E que a única vez em que ela viu um menor foi no
sobrinho dela de dois meses, e que não era de espantar
que eu tenha tantas namoradas, porque é óbvio que estou
apenas tentando provar a mim mesmo que sou homem.
Todo aquele papo de membro pequeno fazia parte do
repertório de uma mulher largada pelo namorado, mas
havia o perigo de Daniel ficar preocupado pelo
desencadear de "toda a fúria do Inferno", segundo a versão
de Karen. Porém, pelo jeito como ele sorria ao contar
aquilo, não parecia preocupado.
— O que mais ela falou para mim, aos berros?... — disse
ele, tentando lembrar, pensativo. — Bem que eu gostaria
de me lembrar de tudo, porque a cena foi muito boa, mas
posso perguntar a qualquer um do escritório, porque todos
ouviram junto comigo.
— Mas entendi que ela tinha apenas telefonado para
você... — comentei, intrigada.
— E telefonou mesmo. Mas todo mundo em minha sala
conseguiu ouvir. Ah, consegui lembrar mais um pouco!...
Ela jura que viu dois pêlos pubianos grisalhos em mim, e
disse que só saía comigo porque eu a levava de carro até o
trabalho e ela economizava a passagem. Disse também
que o meu cabelo está ficando ralo na parte de trás da
cabeça, e que vou ficar tão careca quanto o Right Said
Fred antes dos trinta e cinco anos, e nenhuma garota vai
querer chegar perto de mim.
— Que vaca — disse eu. Aquela de ficar tão careca
quanto o vocalista do Right Said Fred foi muito baixo.
Tínhamos de tirar o chapéu para Karen.
— E que coisas horríveis ela falou a meu respeito? —
Cruzei os braços com força, para me preparar para o que
vinha.
— Nada.
— Sério?
— Sério.
Daniel estava mentindo. Quando Karen ficava furiosa,
atacava todo mundo, indiscriminadamente.
— Não acredito em você, Daniel. Vamos lá, o que ela
falou de mim?
— Nada, Lucy.
— Eu sei que você está mentindo, Daniel. Aposto que ela
contou que às vezes encho meu sutiã com pedaços de
algodão.
— Ah, isso ela contou, mas eu já sabia.
— Como?! Não, não me conte, não quero nem saber.
Tudo bem, aposto que ela falou que devo ser horrível de
cama, porque sou inibida demais. Ela sabe que isso ia me
deixar muito chateada.
Daniel parecia agoniado.
— Ela falou isso? — fiz questão de saber.
— Algo parecido — murmurou.
— O quê, exatamente, ela disse?
— Ela disse que a gente ia se dar muito bem um com o
outro, porque provavelmente um é tão horrível na cama
quanto o outro — admitiu ele.
— Safada, sem-vergonha — disse, mostrando admiração
por ela.
— Karen é muito boa em saber o que machuca mais as
pessoas.
— Mas ela não estava falando sério sobre você — atalhei
em seguida, ansiosa para tranqüilizar Daniel. — Ela
sempre me falou que você era ótimo de cama, e que o seu
pênis é bonito e muito grande.
Os dois operários da mesa ao lado da nossa, no pub,
olharam para nós com muito interesse.
— Obrigado pela força, Lucy — disse Daniel, de forma
calorosa.
— E eu já soube também, por uma fonte confiável, que
você também é muito boa de cama.
— Gerry Baker? — perguntei. Gerry Baker era um colega
de Daniel com que eu ficara por alguns dias.
— Gerry Baker — confirmou Daniel, meio sem graça.
— Eu avisei a você para não perguntar a Gerry sobre o
meu desempenho na cama — reclamei, zangada.
— Mas eu não perguntei — protestou Daniel, meio
nervoso. — Apenas aconteceu de ele mencionar de
passagem que você era boa de cama e...
Um dos operários piscou para mim e disse:
— Eu acredito nisso, querida.
O outro operário pareceu indignado e na mesma hora
pediu desculpas a Daniel:
— Sinto muito, amigo, desculpe o meu companheiro. Ele
andou bebendo mais do que devia. Não quis faltar ao
respeito com a sua namorada.
— Tudo bem — respondi, bem depressa, antes que
Daniel se sentisse obrigado a defender a minha honra. —
Não sou a namorada dele não.
O que era o mesmo que dizer que estava tudo bem se ele
me insultasse.
Os operários sorriram aliviados, mas ainda levou mais
algum tempo para convencer Daniel de que eu não me
ofendera com eles.
— É com você que estou pau da vida — expliquei.
— Mas eu não perguntei nada a Gerry — murmurou
Daniel. Ficou com cara de muito envergonhado, como era
de esperar. — Ele deixou isso escapar sem querer, e não
falou com a intenção de...
— Tá bom, chega — interrompi. — Você está com muita
sorte. Estou muito revoltada com o que Karen falou de
mim para me preocupar com você e Gerry trocando idéias
sobre as minhas calcinhas.
— Gerry sequer mencionou suas calcinhas —
tranqüilizou-me ele.
— Ótimo.
— Pelo que ouvi, você não as usava por tempo suficiente
para que ele reparasse nelas...
— Brincadeira... — avisou correndo quando viu o olhar
de ódio que lancei para ele.
De volta a Karen, eu disse:
— Ela não está achando realmente que está rolando
alguma coisa entre nós dois. Sabe muito bem que somos
apenas amigos.
— Exato! — confirmou Daniel na mesma hora. — Foi
isso exatamente o que falei para ela, que éramos apenas
bons amigos.
E nós dois rimos daquilo, com vontade.








CAPÍTULO 60
Se eu não estivesse tão revoltada com Karen, jamais
teria participado da Grande Sessão de Fofocas que
aconteceu em seguida.
Aquilo não era uma coisa honrada nem ética, fazer
fofoca e meter o malho na minha amiga, colega de
apartamento e companheira do sexo feminino. Pior ainda
era fofocar com um homem. Enfim... sou apenas humana.
Uma bosta na cama, não é? Que cara-de-pau gigantesca
a dela.
É claro que não sai nada de construtivo de um festival
de fofocas. Mais tarde eu ia me odiar por aquilo, vocês
sabem como é, o que vai sempre volta para nós, o meu
carma negativo ia retornar triplicado, pe-re-ré, pe-re-ré e
assim por diante. Mas resolvi que conseguia viver com
aquele peso.
Fazer fofoca era o mesmo que ir ao McDonald's para a
minha psique. Eu não conseguia resistir na hora, e depois
de comer sempre ficava com uma sensação de enjôo... E a
fome voltava dali a dez minutos.
— Fale-me sobre o namoro de você com a Karen. O que
você fez para deixá-la com tanto ódio assim? — perguntei
a Daniel.
— Não sei — afirmou ele.
— Imagino que seja o fato de você ser egocêntrico, um
canalha egoísta que quebrou o coração dela.
— E eu sou assim, Lucy? É isso o que você pensa de
mim? — E fez cara de chateado.
— Bem... É, eu acho.
— Mas, Lucy — insistiu ele. — Eu não sou não. Não sou
nada disso. As coisas entre nós não eram desse jeito.
— Então, como é que era? Quero saber por que foi que
você não falou para ela que a amava — disse, arregaçando
as mangas para fofocar melhor.
Ela ia ver só!... Insinuar que sou uma inútil na cama.
— Eu não disse a Karen que a amava simplesmente
porque não a amava — suspirou ele.
— Mas, por que você não a amava? — indaguei. — O
que havia de errado com ela?
Nesse ponto, prendi a respiração. Apesar do que Karen
dissera a respeito de Daniel, e de mim, era muito
importante que ele não dissesse coisas cruéis a respeito
dela, ele tinha de tratá-la com respeito. Era importante
que ele se comportasse como um cavalheiro.
Eu não me esquecera de que ele era um homem e,
portanto, era basicamente o inimigo.
Por mim estava tudo bem se ele destruísse a reputação
de Karen, divulgando alguns segredos bem escolhidos,
mas Daniel não tinha permissão de tratá-la de outra forma
que não fosse o mais extremo respeito. Pelo menos até que
eu resolvesse o contrário.
— Lucy — disse ele com todo o cuidado, escolhendo bem
as palavras e olhando para mim, para avaliar a reação em
meu rosto. — Não quero dizer nada a respeito de Karen
que possa ser mal interpretado e pareça detestável.
Resposta certa.
Nós dois sorrimos, aliviados.
— Compreendo a sua situação, Daniel — afirmei,
balançando a cabeça, muito séria.
Pronto, agora já era o bastante de todo aquele papo. Já
havíamos observado as formalidades usuais, e a partir
daquele instante eu queria saber tudo a respeito de Karen.
Quanto mais escandaloso, melhor.
— Tudo bem, Daniel — continuei, falando rápido. — Eu
não vou interpretar nada errado. Pode me contar tudo.
— Lucy — disse ele, meio constrangido. — Não sei não...
Isso não me parece correto...
— Tudo bem, Daniel, você já me convenceu de que é um
cara realmente legal — tranqüilizei-o.
— Mesmo, de verdade? — perguntou.
— Mesmo — afirmei, sem sinceridade. — Agora quer me
contar logo de uma vez a porcaria da história? Daniel,
como todos os homens, precisava ser persuadido com
paciência. Os homens gostam de apregoar que não é da
natureza deles fazer fofocas, mas, como todos sabem, eles
adoram arrasar com uma pessoa pelas costas, e quanto
mais sangue, melhor.
Os homens me fazem rir quando atiram os olhos para
cima e com a maior cara de santinhos dizem "ai, essa
doeu!", sempre que uma mulher faz um comentário
desagradável sobre alguém. Os homens são muito mais
fofoqueiros do que as mulheres.
— Lucy, qualquer coisa que eu venha a lhe contar, e veja
bem, não estou dizendo que vou contar, não é para você
passar adiantr para ninguém — afirmou ele, com
expressão austera.
— Claro que não — concordei, com a cara séria. Será
que Charlotte ainda vai estar acordada quando eu chegar
em casa?
— Nem mesmo para Charlotte — acrescentou ele.
Cretino!
— Ah, puxa... deixe pelo menos que eu conte para a
Charlotte — pedi, com cara de emburrada.
— Não.
— Por favor.
— Não, Lucy. E se você não prometer, não vou lhe
contar nada.
— Prometo... — disse, com a voz cantarolada.
Não havia problema. Falar era fácil, e eu não estava sob
juramento.
Dei uma olhada rápida em Daniel e reparei que ele mal
estava conseguindo manter o rosto sério e compenetrado.
Tentava segurar o riso, mas não estava conseguindo. Senti
uma onda de satisfação ao perceber que eu ainda era
capaz de fazê-lo rir.
— Puxa, Lucy. — Ele respirou fundo e finalmente
começou a contar. — Você sabe que não quero falar mal
de Karen.
— Ótimo — reagi, decidida. — Nem eu gostaria que você
fizesse isso.
Nossos olhos se cruzaram mais uma vez e sua boca se
torceu ligeiramente. Ele olhou para os dois lados por cima
dos ombros, fingindo avaliar o pub, mas eu sabia que ele
estava apenas tentando disfarçar o sorriso.
Fora um erro muito grande de Karen insultar Daniel e a
mim ao mesmo tempo, porque aquilo nos unira contra ela.
Até que o ferrão das ofensas dela parasse de doer,
seríamos aliados. Nada une mais duas pessoas de forma
tão completa e dedicada quanto o ressentimento contra
uma terceira pessoa.
Finalmente, Daniel pigarreou e começou a falar:
— Vai parecer que estou tentando jogar toda a culpa do
que aconteceu nas costas dela — disse ele —, mas Karen
na verdade não se importava muito comigo. Ela nem
mesmo gostava muito de mim.
— Parece que você está tentando jogar toda a culpa do
que aconteceu nas costas dela — olhei firmemente para
ele.
— Mas é verdade, Lucy, com toda a honestidade! Ela
não estava nem aí para mim.
— Seu mentiroso de cara lavada — debochei. — Ela
estava completamente cativada por você.
— Não, não estava — afirmou ele, com um ar amargo
que me pegou de surpresa. — Ela estava completamente
cativada pela minha conta bancária, ou pelo menos pela
conta bancária que ela imaginava que eu tinha. Deve ter
confundido o valor total das minhas dívidas com o saldo
das minhas aplicações.
— Ah, Daniel, sem essa. Nenhuma mulher sai com um
homem por causa do dinheiro dele. Isso é história da
carochinha — afirmei.
— Karen saía. Sim, o tamanho era importante para ela.
No caso, aqui, o tamanho da minha carteira.
Fiquei com vontade de soltar uma gargalhada, mas me
pareceu muito triste.
— E ela vivia tentando me modificar — continuou ele,
ainda triste. — Não gostava de mim do jeito que eu era.
Ficou desapontada porque descobriu que levou gato por
lebre.
— Acho que isso está mais me parecendo a história de
um gato que fugiu dela mais depressa do que uma
lebre. — Não consegui resistir à piadinha.
— Eu não fiz isso — reclamou ele, ofendido.
— De que modo ela tentava modificar você? — perguntei,
bem gentil. Não queria que ele ficasse tão ofendido que
parasse de me contar as coisas.
— Ela me dizia que eu não levava o meu emprego muito
a sério. Disse que eu devia ser mais ambicioso. E vivia
tentando fazer com que eu aprendesse a jogar golfe. Dizia
que mais acordos eram fechados no campo de golfe do que
numa mesa de reuniões.
— Mas você trabalha com outro lance, na área de
pesquisas. Você não fecha acordos com ninguém, fecha?
— Exatamente — disse ele.
— E você se lembra de quando a levei para aquela festa
com o pessoal do meu trabalho, na última semana de
julho?
— Não — respondi, conseguindo morder a língua antes
de gritar para ele "como é que eu ia saber aonde é que
você a levava? Você nem me telefonava mais, para me
manter atualizada sobre o que acontecia na sua vida...".
— Bem, Lucy, você precisava ver o jeito como ela se
comportou na festa.
Senti um tremor de empolgação e cheguei mais para
perto, o mais possível, para ouvir as coisas horríveis que
ele estava a ponto de me contar.
— O jeito como ela se jogou em cima de Joe...
— Joe, o seu chefe, é esse Joe? — perguntei.
— ...Esse mesmo. Foi horrível, Lucy. Ela praticamente se
ofereceu para dormir com ele, em troca de melhores
perspectivas de promoção para mim.
— Meu Deus, isso é terrível — disse, ficando vermelha
de vergonha por ela. — Logo Joe, entre tanta gente. Você
não tentou impedi-la de pagar esse mico?
— Claro que tentei, mas você sabe como ela é cabeça-
dura.
— Que tortura, meu Deus, que situação. — Torci as
mãos de aflição.
— Lucy, morri de vergonha por ela — disse Daniel. Ficou
pálido e suado, só de lembrar do caso. — Eu me senti
realmente horrível pela situação dela.
— Aposto que sim.
Joe era gay.
Ficamos sentados ali, em silêncio. Nossos pensamentos
estavam ocupados por imagens da pobre Karen sacudindo
a peitaria diante de Joe, e sacudindo em vão.
— Mas, tirando os problemas da sua carreira e do
dinheiro, vocês se divertiam juntos? — quis saber. — Você
gostava dela?
— Ah, sim — respondeu ele, com firmeza.
Fiquei calada.
— Bem, ela era uma pessoa legal, acho — e suspirou. —
O que ela não tinha muito é senso de humor. Nenhum, na
verdade.
— Isso não é verdade, — Senti que tinha que falar aquilo.
— Não, você tem razão, Lucy. Ela tinha senso de humor
sim. É daquele tipo de pessoa que morre de rir diante de
gente que escorrega em cascas de banana.
O sentimento de culpa lutava dentro de mim com a
vontade de arrasar com ela.
A culpa venceu a batalha,
— Mas ela é muito bonita. Não é? — perguntei.
— Muito — concordou ele,
— E tem um corpo lindo, não tem? — perguntei,
pressionando-o. Ele me olhou com uma cara estranha.
— Tem — respondeu. — Acho que tem.
— Então, por que você desistiu de tudo isso?
— Porque não estava mais a fim dela. Soltei uma risada
de ironia.
— Rá! Até parece. Uma loura peituda...
— Mas ela era fria — protestou ele. — É o maior corta-
tesão quando a pessoa com quem você transa nem mesmo
gosta de você. Lucy, ao contrário do que você pensa a meu
respeito, e a respeito dos homens em geral, peitos grandes
e muito sexo não são as coisas mais importantes na
minha lista de prioridades. Existem outros fatores também.
— Como o quê? — perguntei, desconfiada.
— Bem, senso de humor é um deles, E também seria
legal se eu não tivesse que pagar sozinho por tudo o que a
gente fazia.
— Daniel, por que você de repente ficou assim tão
estranho com essa história de dinheiro, heín? — Eu estava
surpresa. — Não é do seu feitio ser tão pão-duro.
— Não é pela grana, o problema é o dinheiro. — E riu. —
Não, Lucy, falando sério, eu não me importo com o
dinheiro, mas o problema é que ela jamais se ofereceu,
pelo menos, para dividir alguma coisa. Isso é que me
deixava injuriado. Seria legal se ela tivesse me levado a
algum lugar e pagado a conta, só para variar.
— Mas talvez ela não tenha assim tanta grana — sugeri,
meio em dúvida.
— Ah. — Aquilo fez com que ele parasse de falar. Ficou
pensativo e calado por algum tempo. — Não... —
finalmente disse.
— Não o quê?
— Mesmo assim eu não a amo.
Comecei a rir. Não consegui evitar. Deus ia me castigar
por aquilo.
— Acho que, no fundo — explicou Daniel, com ar
triste —, é que eu já estava de saco cheio dela.
— De novo? — perguntei.
— O que quer dizer com "de novo", Lucy?
— E que foi exatamente isso que você falou sobre a
Graça: que ela o deixava entediado, de saco cheio. Talvez
você tenha um limiar de tédio muito baixo.
— Não, não tenho. Você nunca me deixa entediado.
— Nem o seu carro. Mas ele também não é a sua
namorada — argumentei, com esperteza.
— Mas...
— E essa misteriosa namorada nova que você ainda não
conseguiu levar para a cama... Ela o deixa entediado? —
perguntei, de forma simpática.
— Não.
— Ah, dá um tempo, Daniel... Aposto que daqui a três
meses você vai estar reclamando comigo sobre o quanto
ela é sacal.
— Provavelmente você tem razão — disse ele. — Você
geralmente está certa.
— Ótimo. Agora leve-me a algum lugar e me dê comida.
Qualquer comida, menos pizza.
Essa fora uma das maiores desvantagens de Gus, seu
medo de qualquer rango estrangeiro. A única comida da
qual ele não tinha medo era pizza.
Fomos ao restaurante indiano que ficava ao lado do pub.
Queria ficar séria e desabafar um pouco com Daniel a
respeito de Gus. O problema é que não consegui fazê-lo
ficar quieto para um papo sério. Sempre que eu lhe fazia
uma pergunta, ele cantarolava algum provérbio, fazendo
trocadilho com o nome da comida. Aquilo, sem dúvida, era
muito divertido, mas eu queria falar sobre assuntos sérios,
coisas do coração. Do meu coração. Mas Daniel não era
Gus, Pelo menos havia uma boa chance de ele não me
espoliar até o último centavo. Isso era um lado positivo.
— Daniel, você acha que Gus e eu nos víamos
demais? — perguntei no momento em que o garçom serviu
o arroz pillau, feito no forno e acompanhado de pequenos
bhajees com cebola.
— Não se â-bhajee demais que o traseiro aparece —
comentou Daniel, colocando os bhajees lado a lado. — Não
sei como responder a isso, Lucy, não sei mesmo.
Aquele alto astral todo de Daniel parecia um pouco
estranho. Mas, não, talvez não fosse. Ele costumava ser
assim mesmo, engraçado, antes de minhas amigas
começarem a dar em cima dele. Na verdade ele ainda era
muito engraçado, mas aquele não era o momento para
ficar de brincadeira, meu dever era discipliná-lo.
Reconheçamos, ninguém mais conseguiria fazer isso.
— No fundo — continuei —, não acho que o meu
problema com Gus tenha sido nos vermos demais, não. Às
vezes eu queria ficar com ele menos do que ele queria ficar
comigo e...
— Sua vez... — interrompeu ele. — Fale um provérbio.
Olhei para um prato de frango grelhado que o garçom
carregava e soltei:
— Quando pobre come frango, um dos dois está
doente. — Apontei para o frango que passava para ele
saber do que eu estava falando. — E então, Daniel, você
acha que vou conseguir superar isso?
— Olhe, aí vem o korma que a gente pediu — anunciou
ele, apontando para o prato com castanhas, amêndoas,
creme de leite e condimentos. — Não devore a comida,
korma devagar: a pressa é inimiga da refeição —
acrescentou ele, chegando o prato para mais perto de mim
e afastando-o em seguida. — Claro que você vai conseguir
superar a perda de Gus, Lucy. Vamos, é a sua vez de
inventar um provérbio.
Olhei para a mesa ao lado e vi um prato de tarka daal,
lentilhas com alho, gengibre e coentro. Na mesma hora me
veio a inspiração:
— Quem daal aos pobres ou empresta... adeus. Quando
é que você acha que vou superar esse problema, Daniel?
— Deixe-me ver — disse ele, com cuidado. — Vou ter
que pensar bastante agora, Lucy. Ah, sim. Já sei.
Meu coração deu um pulo de esperança. Será que
Daniel sabia quando é que eu ia conseguir superar a
perda de Gus?
— Quem não arrisca não pe-tikka. Essa foi boa, não
foi? — E sorriu.
Fiz cara de quem não entendeu nada.
— Tikka de pescado — explicou ele, com toda a
paciência, para a minha cara aparvalhada. — Filé de peixe
com creme de leite, maçã e champignons.
— Tá bom, mas e quanto ao meu problema com Gus? —
perguntei, com a voz fraca. — Ah, que se dane. Não vale a
pena tentar levar um papo sério com você. O que é isto
aqui?
— Vegetais com molho curry.
— O.k. Quem curry cansa, quem anda, alcança.
Ele levou mais um momento para pensar em outro
provérbio. Viu no cardápio a descrição de dhorme de
camarão e anunciou:
— Camarão que dhorme, a onda leva.
Parei um garçom que passava e pedi uma porção de nan,
pequenos pãezinhos indianos. Na mesma hora falei:
— Nan se fala de corda em casa de enforcado.
— Nan se deixa para amanan o que se pode fazer depois
de ama-nan — completou Daniel.
Passamos o resto da noite em convulsões de riso.
Sabíamos que estávamos nos divertindo muito porque as
pessoas da mesa ao lado foram reclamar de nós com o
maître. Nem me lembrava da última vez em que me
divertira tanto. Bem, provavelmente fora uma das noites
em que saíra com Gus.
Quando cheguei em casa, Karen não estava esperando
por mim, já tinha ido dormir.
Essa era uma das grandes vantagens de ela não ter
nenhum respeito por mim. Significava que eu podia fazer
as coisas debaixo do nariz dela, desobedecendo às suas
ordens explícitas, e jamais passaria pela sua cabeça que
eu faria isso.


CAPÍTULO 61
Na manhã seguinte, quando cheguei ao trabalho, Megan
disse:
— Aquele asqueroso do Daniel acabou de ligar. Disse
que vai tornar a ligar mais tarde.
— O que foi que ele fez contra você, Megan? — perguntei,
surpresa.
— Nada. — Foi a vez dela de parecer surpresa.
— Então por que você se referiu a ele desse jeito? —
Havia um tom de defesa na minha voz.
— Mas é essa palavra que você usa para falar dele... —
protestou Megan.
— Ah! — Fiquei abalada. — Acho que é mesmo.
Tecnicamente ela estava certa, sem dúvida. Eu era muito
cruel
quando falava de Daniel, é claro que sim, o tempo todo,
mas não falava nada daquilo a sério.
— É assim que nós duas sempre nos referimos a ele,
Lucy — lembrou-me ela. Parecia preocupada, e não era
para menos. Quando Megan conheceu Daniel e foi logo
afirmando que não gostava muito do gênero supergato que
ele fazia e não conseguia ver motivo para tanta
empolgação por parte de todo mundo, eu me animei. Ela
subiu no meu conceito, como um exemplo de mulher
inteligente, e era assim que eu falava dela para quem
quisesse ouvir. "Megan disse que Daniel não ia ter a
menor chance na Austrália", comentava alegremente com
todo mundo, inclusive com o próprio Daniel. "Megan disse
que ele é certinho demais, muito arrumadinho, e que ela
gosta de homens mais selvagens e rudes do que ele."
Agora, Megan estava preocupada, achando que eu
modificara as regras. A temporada de caça a Daniel estava
fechada.
Eu não modificara regra alguma, pensei, sentindo-me
desconfortável, mas me soou estranho ouvir Megan
chamar Daniel de asqueroso. Foi horrível, para falar a
verdade. Senti como se eu estivesse sendo desleal com ele,
especialmente depois de ele ter sido tão legal comigo, além
de ter pago pelo jantar.
Nesse momento Meredia entrou, fazendo tudo
estremecer, seguida por Jed, e acabei esquecendo o Daniel,
porque Jed era muito engraçado. Logo ao chegar ele
pendurou o casaco, olhou em volta para Megan, para
Meredia e depois para mim, esfregou os olhos e disse:
— Ah, não... Então é tudo verdade, eu não sonhei. Achei
que tudo fora um pesadelo. Isso é horrível, HORRÍVEL!
Ele fazia aquilo quase todas as manhãs. Todas nós
ficávamos orgulhosas dele. O dia prosseguia.
Eu mal acabara de ligar o meu computador (o que
significa que já deviam ser umas dez para as onze) quando
a minha mãe telefonou e disse que estava vindo para o
centro da cidade e gostaria de se encontrar comigo.
Não gostei nem um pouco daquilo, mas ela insistiu.
— Preciso lhe contar uma coisa — disse, toda misteriosa.
— Mal posso esperar — respondi, com toda a paciência.
As "coisas" que ela precisava me contar geralmente eram a
respeito do vizinho da casa ao lado que roubara a tampa
de nossa lata de lixo ou dos gatos que tentavam abrir as
tampas das embalagens de leite com a unha, embora ela
já estivesse cansada de pedir ao leiteiro que fechasse o
portão quando saísse, ou algo igualmente devastador.
O toque estranho era ela estar vindo até a cidade. Ela
jamais fazia isso, embora morasse a apenas trinta
quilômetros do centro de Londres.
Trinta quilômetros e cinqüenta anos de distância.
Eu não estava nem um pouco a fim de me encontrar
com ela, mas achei que devia, porque não a via desde o
início do verão. Não que a culpa fosse minha. Eu tinha ido
visitá-la um monte de vezes... Bem, uma ou duas, pelo
menos, e só encontrara papai em casa.
Concordei em me encontrar com ela para almoçarmos
juntas, embora não exatamente nesses termos, pois acho
que ela não estava a par do conceito exato de "almoço".
Era uma mulher do tipo "vamos pedir só um chá com
sanduíches".
— Encontre-se comigo no pub do outro lado da rua, aqui
em frente ao prédio em que trabalho, à uma hora — sugeri.
Mas ela ficou escandalizada com a idéia de se sentar
desacompanhada em um pub para esperar por mim.
— O que as pessoas vão pensar? — perguntou,
alarmada.
— Tudo bem — suspirei. — Chegarei lá um pouco antes,
e então a senhora não vai ter que ficar esperando sozinha.
— Não — disse ela, parecendo em pânico, — Essa idéia é
tão má quanto a outra. Imagine uma mulher solteira
sozinha em um lugar público,
— O que há de errado com isso? — zombei, começando a
contar a ela que eu vivia indo a pubs sozinha, mas resolvi
não falar nada. senão ela ia começar a soltas lástimas, do
tipo "ai, acabei criando uma garota de vida largada!...".
— Eu queria apenas um lugarzinho qualquer onde
pudéssemos tomar uma xícara de chá — tornou a sugerir.
— Tudo bem, então. Tem uma cafeteria perto da...
— Nada que seja muito sofisticado — interrompeu ela,
ansiosa, apavorada com a possibilidade de se ver em uma
situação do tipo "qual desses cinco garfos devo usar?". Só
que ela não precisava se preocupar com isso, pois eu
também não me sentia muito à vontade nesse tipo de
lugar,
— A cafeteria não é muito sofisticada, não —
tranqüilizei-a. — É um local bem agradável, relaxe.
— E o que eles servem lá?
— Comida normal — acalmei-a. — Sanduíches,
cheesecake, coisas desse tipo.
— Será que tem bolo Floresta Negra? — perguntou,
esperançosa. Ela conhecia bolo Floresta Negra.
— Provavelmente — afirmei. — Se não tiver, deve ter
alguma coisa parecida.
— E eu tenho que pedir o chá no balcão ou é preciso...?
— A senhora se senta à mesa, mamãe, e a garçonete
anota o seu pedido.
— E posso simplesmente ir entrando e me sentar onde
quiser ou tenho que...
— Espere até que a moça a acompanhe até uma das
mesas vagas — aconselhei.
Quando cheguei, ela já estava sentadinha à mesa,
parecendo uma matuta na cidade grande, pouco à vontade,
como se achasse que não tinha o direito de estar ali.
Usava um sorriso nervoso do gênero "estou bem" e
mantinha a bolsa bem apertada debaixo do braço, a salvo
dos assaltantes que, segundo ouvira, atacavam em todo
lugar em Londres. "Eles não vão se dar bem à minha custa
não", era o que suas mãozinhas miúdas pareciam
anunciar.
E havia também algo estranho com a sua roupa. Ela
era... era... como dizer? Era bonita.
Ainda por cima, estava usando batom vermelho. Ela
jamais usava batom, exceto em casamentos. E às vezes em
funerais, quando não gostava da pessoa que falecera.
Eu me sentei do lado oposto da mesa, em frente a ela,
sorri meio sem jeito e me perguntei o que será que ela
poderia estar querendo me contar.
















CAPÍTULO 62
Ela estava se separando do meu pai.
Era isso que ela queria me contar (não era exatamente o
caso de ela querer me contar, seria mais exato afirmar que
ela tinha de me contar).
O choque me provocou náuseas, literalmente. Fiquei
surpresa por ela ter esperado eu pedir um sanduíche
antes de me dar a notícia, pois detestava desperdício.
— Não acredito — disse, com a voz rouca, buscando em
seu rosto um sinal de que aquilo não era verdade. Tudo o
que notei, porém, foi que ela estava usando delineador,
com pontinha virada para cima no canto do olho e tudo.
— Sinto muito — disse ela, humilde.
O mundo pareceu desmoronar em volta, e me senti
confusa. Eu me via como uma mulher independente, de
vinte e seis anos, que já deixara a casa dos pais,
construíra a própria vida, e não tinha mais nenhum
interesse nas peripécias sexuais que seus pais pudessem
estar aprontando. Só que, naquele momento, senti receio e
raiva, como se fosse uma menina com quatro anos e
abandonada.
— Mas por quê? — perguntei. — Por que a senhora está
deixando o papai? Como pode?
— Porque, Lucy, aquele tem sido um casamento apenas
de aparência há muitos anos. Lucy, é claro que você já
sabia disso, não sabia? — perguntou ela, encorajando-me
a concordar.
— Não, eu não sabia de nada disso — respondi. — Para
mim é novidade.
— Lucy, mas você deve ter reparado — insistiu ela.
Minha mãe estava exagerando um pouco, me chamando
de "Lucy" o tempo todo. Ficava tentando pegar no meu
braço, como se estivesse implorando alguma coisa.
— Pois não reparei e não sabia de nada — repeti. Ela
não ia conseguir me fazer concordar com ela, não importa
o quanto tentasse.
O que estava acontecendo?, perguntei a mim mesma,
horrorizada. Os pais das outras pessoas se separavam,
mas os meus não. Especialmente pelo fato de os meus
serem católicos.
Um lar estável era o único motivo de eu ter aturado pais
católicos e suas tolices por tanto tempo. Isso era um
acordo tácito.
Minha parte envolvia, entre outras coisas, ir à missa
todos os domingos, jamais usar sapatos de verniz em um
encontro e me abster de doces por quarenta dias antes da
Páscoa. Em troca, os meus pais tinham de permanecer
eternamente juntos, mesmo que odiassem um ao outro
profundamente.
— Pobre Lucy... — suspirou ela. — Você jamais
conseguiu encarar de frente nada que fosse desagradável,
não é? Sempre fugia ou enfiava o nariz em um livro
quando a coisa ficava feia.
— Ai, que foda — reagi, zangada. — Pare de pegar no
meu pé. A senhora é que é a errada nessa história, sabia?
— Desculpe — disse ela, com toda a gentileza. — Não
devia ter falado isso.
Aquilo me deixou ainda mais chocada. Uma coisa era ela
me dizer que estava abandonando o meu pai, mas o que
acabara de acontecer era algo totalmente inusitado. Não
só ela não berrara comigo, ralhando por eu ter soltado um
palavrão, como também pediu desculpas para mim?
Olhei fixamente para ela, paralisada de pavor. A coisa
devia ser mesmo muito séria.
— Lucy — tornou ela a dizer, ainda mais gentil —, seu
pai e eu já não nos amávamos há anos. Sinto muito que
isto represente um choque tão grande para você.
Eu nem conseguia falar. Estava testemunhando o
momento da destruição do meu lar e de mim mesma. Meu
senso de identidade já era amorfo sem precisar de mais
essa. Tinha medo de desaparecer no ar por completo se
uma das minhas principais referências de autode-finição
se desintegrasse.
— Mas, por que agora? — apelei, depois de ficarmos
sentadas sem falar nada por alguns momentos. — Se
vocês já não se amavam mais há anos, no que não
acredito, de qualquer modo, por que a senhora escolheu
este momento em especial para largá-lo?
E de repente me bateu o motivo. O penteado diferente, a
maquiagem, as roupas novas, tudo começava a se
encaixar.
— Ai, meu Deus — disse eu. — Eu não acredito. A
senhora conheceu alguém, não foi? Arranjou um... um...
namorado.
Ela não me olhou nos olhos, a megera, e senti que
acertara na mosca.
— Lucy — implorou ela. — Eu me sentia tão solitária...
— Solitária? — perguntei, sem acreditar. — Como é que
a senhora podia se sentir solitária se tinha o papai?
— Lucy, por favor, compreenda — suplicou ela. — Viver
com : seu pai era como viver com uma criança.
— Não — reagi. — Não tente colocar a culpa nele. Foi a
senhora que criou o problema, a culpa é sua.
Ela fixou o olhar nas próprias mãos e não disse nada
para se defender.
— Afinal, quem é ele? Quem é esse seu... esse seu...
novo namorado? — Joguei na cara dela.
— Por favor, Lucy — murmurou ela. Sua suavidade
estava me incomodando, eu me sentia muito mais à
vontade quando ela me alfinetava e criticava.
— Conte logo — exigi.
Ela ficou me olhando sem dizer nada, com lágrimas nos
olhos. Por que não queria me contar quem era?
— É alguém que eu conheço, não é? — perguntei,
ligando as antenas.
— Sim, Lucy. Sinto muito, Lucy, jamais imaginei que
isso pudesse acontecer...
— Então me diga simplesmente quem é — pedi, com a
respiração já curta e ofegante.
— É...
— Sim?
— É o...
— QUEEEM? — quase gritei.
— É o Ken Kearns — revelou ela.
— Quem? — Fiquei pensando no nome, meio tonta.
Quem é Ken Kearns?
* Ken Kearns. Você o conhece, é o Sr. Kearns, da
lavanderia.
— Ah, o senhor Kearns — disse, lembrando-me
vagamente do velho careca com casaco de lã, sapatos de
plástico e dentadura postiça que parecia ter vida própria.
Que alívio. Por mais ridículo que possa parecer, por
alguns momentos fiquei morrendo de medo de que o novo
namorado de minha mãe fosse Daniel. Especialmente por
ele andar tão misterioso a respeito de sua nova namorada,
e ainda mais com a minha mãe flertando com Daniel
quando ele foi visitá-la comigo aquela vez e, depois, pelo
jeito de ele falar que a minha mãe era uma mulher bonita...
Ótimo, fiquei feliz por não ser Daniel, mas, fala sério, o
Sr. Kearns, da lavanderia?! Ela não ia conseguir achar
alguém mais horroroso nem que tentasse.
— Deixe ver se entendi isso direito — disse, meio
zonza. — O Sr. Kearns, aquele com dentadura postiça
grande demais, é o seu novo namorado.
— Ele está trocando a dentadura — comentou ela, cheia
de lágrimas.
— Isso me dá nojo — disse eu, balançando a cabeça. —
A senhora realmente me deixa enojada.
Ela não gritou comigo nem me repreendeu como
normalmente fazia quando eu lhe dizia algo desrespeitoso.
Em vez disso, se mostrou toda martirizada e humilde.
— Lucy, olhe para mim, por favor — pediu ela, as
lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. — Ken faz
com que eu me sinta uma adolescente, não entende?... Eu
sou uma mulher, uma mulher com carências...
— Não quero saber a respeito das suas carências
repugnantes, muito obrigada — disse, tentando apagar da
minha mente a ultrajante imagem de minha mãe se
esfregando com o Sr. Kearns entre os cabides da loja.
Ela continuava sem mover um só músculo para se
defender, mas eu a conhecia bem. Mais cedo ou mais
tarde ela ia acabar reagindo.
— Lucy, estou com cinqüenta e três anos, esta talvez
seja a minha última chance de encontrar a felicidade.
Certamente você não pode me negar isso, não é?
— A senhora e a sua felicidade. Bem, e quanto a papai?
E quanto à felicidade dele?
— Eu tentei fazê-lo feliz — defendeu-se ela, baixinho —,
ma$ nada funcionou.
— Conversa fiada — reagi. — A senhora sempre tentou
transformar a vida dele em um inferno. Por que cargas
d'água não caiu fora alguns anos atrás?
— Mas... — disse ela, com a voz fraca.
— Onde é que a senhora vai morar? — interrompi,
sentindo enjôo.
— Com Ken — sussurrou ela.
— E onde é que ele mora?
— Naquela casa amarela em frente à escola. — Ela
tentou, mas não conseguiu esconder o tom de orgulho na
voz. Ken, o Rei das Lavanderias, pelo visto tinha alguma
grana.
— E quanto aos seus votos de casamento? — perguntei.
Eu sabia que dizer aquilo era tocar bem na ferida. — E
quanto às promessas que a senhora fez, em uma igreja, de
que ficaria com papai para sempre, na saúde e na doença,
nas horas boas e nas ruins?
— Por favor, Lucy — disse, numa voz quase inaudível. —
Não consigo descrever o quanto lutei com a minha
consciência. Rezei, rezei tanto, pedindo uma orientação...
— A senhora é uma hipócrita — exclamei. Não que
aquilo me importasse em algum nível moral, mas eu sabia
que ia atingi-la, e aquela era a minha prioridade. — A
senhora me enfiou pela goela abaixo os ensinamentos da
Igreja Católica a vida toda. Vivia malhando as mães
solteiras e as mulheres que faziam abortos, e acabou
fazendo uma coisa tão terrível quanto elas. A senhora é
uma adúltera, quebrou o seu precioso sétimo
mandamento.
— Sexto — retrucou ela, com a velha cara azeda fazendo
uma participação especial na cena.
Ah-ah!! Eu sabia que conseguiria dobrá-la.
— O que foi? — perguntei, com cara de nojo.
— Eu quebrei o sexto mandamento. O sétimo é "não
furtar", você não aprendeu nada naquelas aulas de
catecismo, não é?
— Viu só, viu só? — vociferei, com aquela sensação
amarga de triunfo. — Lá vem a senhora de novo, julgando
os outros, colocando-se como sentinela moral. Bem, que
aquele que não tem nenhum pecado atire a primeira pedra.
Ela levantou a cabeça e torceu as mãos. De volta ao
papel de mártir.
— E o que o padre Colm tem a dizer sobre isso? — quis
saber. — Aposto que ele não está mais tão amiguinho da
senhora agora, depois que a senhora se transformou em
uma... em uma... uma destruidora de lares.
— E então? — tornei a perguntar, ao ver que ela não
respondia.
— Eles me disseram para eu não preparar mais os
arranjos de flores do altar — finalmente admitiu. Uma
lágrima solitária lhe descia lentamente pelo rosto,
deixando atrás de si uma trilha esbranquiçada ao escorrer
pela base mal aplicada.
— Fizeram muito bem — bufei.
— E o comitê para obras de caridade não quer mais a
torta de maçã que eu sempre fazia para o bazar — disse
ela, com outras lágrimas começando a escorrer pela sua
face. Seu rosto ficou listrado como um pijama.
— Fizeram muito bem também! — afirmei, enfurecida.
— Acho que eles pensaram que isso podia ser algo
contagioso — disse ela, dando um pequeno sorriso. Fiquei
olhando com frieza para ela e, depois de alguns segundos,
o sorriso se desfez.
— E que hora maravilhosa a senhora escolheu para me
contar, hein?... — acusei-a, de forma injusta. — Como é
que vou poder voltar para o trabalho agora e realizar o
meu serviço da tarde com tranqüilidade depois de ouvir
isso?
Essa alegação era mais do que injusta, porque Ivor
estava fora e eu ia passar a tarde toda sem fazer nada
mesmo, mas isso não vinha ao caso.
— Lucy, desculpe — pediu ela, baixinho —, mas preferi
contar a você logo de cara. Não queria que descobrisse por
outra pessoa.
— Tudo bem — disse eu, de forma brusca. — Agora já
contou. Agradeço muitíssimo, e agora, adeus.
Não coloquei dinheiro algum sobre a mesa. Ela que
pagasse pelo meu sanduíche, já que tinha sido a causa de
eu não conseguir comê-lo.
— Espere, por favor — pediu, elevando a voz. — Não vá
embora ainda, Lucy, espere mais um pouco. Por favor, me
dê a oportunidade de explicar tudo, é só o que lhe peço.
— Então vá em frente — afirmei. — Aposto que isso é
bem engraçado.
Ela respirou fundo e começou:
— Lucy, sei muito bem que você sempre amou muito
mais o seu pai do que a mim...
Fez uma pausa, para o caso de eu precisar contradizê-la.
Continuei calada.
— ...Mas tudo foi sempre muito difícil para mim —
continuou. — Eu precisava ser a parte forte, tinha que ser
a disciplinadora, porque ele não fazia esse papel. Sei
perfeitamente que você o considerava muito divertido, e
que eu era a mesquinha e cruel, mas um dos dois tinha
que fazer o papel de mãe ou pai de vocês.
— Como ousa?... — reagi. — Papai foi um pai duas, dez
vezes melhor do que a mãe que a senhora foi.
— Mas ele era tão irresponsável... — começou ela a
protestar.
— Não fale comigo a respeito de responsabilidade —
interrompi. — E quanto às suas responsabilidades? Quem
vai tomar conta do papai? — perguntei.
Embora já soubesse a resposta para essa pergunta.
— Por que alguém deveria tomar conta do seu pai? —
perguntou ela. — Ele tem apenas cinqüenta e quatro anos,
e não tem nenhuma doença.
— A senhora sabe que ele precisa de alguém para tomar
conta dele — disse eu. — Sabe muito bem que ele é
incapaz de cuidar de si mesmo.
— E qual o motivo de isso ser dessa forma, Lucy? —
perguntou ela. — Muitos homens vivem sozinhos, homens
muito mais velhos do que o seu pai, e que, no entanto, são
capazes de tomar conta de si próprios.
— Mas papai não é como os outros homens, e a senhora
sabe disso — argumentei. — Não pense que pode fugir da
raia assim tão fácil.
— E por que o seu pai não é como os outros homens? —
perguntou ela.
— A senhora sabe por quê — respondi, zangada.
— Não, não sei. Conte-me o motivo.
— Não vou mais ficar aqui conversando sobre esse
assunto com a senhora — reagi. — A senhora sabe que
papai precisa de alguém que olhe por ele, apenas isso.
— Você não consegue encarar a verdade de frente, não é,
Lucy? — perguntou ela, olhando para mim com aquela
carinha de santa e os olhos de bichinho sofredor que me
deixavam enfurecida. Era pura compaixão fingida aquela
cara preocupada de assistente social.
— Não consigo encarar que verdade? — perguntei. —
Não há nada para encarar, a senhora está falando coisas
ainda mais sem sentido do que de costume.
— Ele é alcoólatra — disse ela, com suavidade. — É isso
que você não consegue encarar.
— Quem é alcoólatra? — perguntei, enojada das
manipulações dela. — Papai não é um alcoólatra. Já
entendi qual é a sua... Acha que pode xingar o meu pai e
dizer coisas terríveis a respeito dele, para que as pessoas
possam sentir pena da senhora e digam que é muito
correto abandoná-lo. Bem, a mim a senhora não engana.
— Lucy, ele é alcoólatra há muitos anos, provavelmente
já era antes mesmo de casarmos, mas eu ainda não
conhecia os sintomas naquela época.
— Isso é papo-furado — bufei. — Ele não é alcoólatra, a
senhora deve me achar uma perfeita idiota. Alcoólatras
são aqueles homens que vagueiam pelas ruas com casacos
imundos e barbas grandes, falando sozinhos.
— Lucy, os alcoólatras existem de muitas formas e
maneiras diferentes. Aqueles homens que andam pelas
ruas são exatamente iguais ao seu pai, a única diferença é
que eles têm um pouco menos de sorte.
— Ninguém tem tão pouca sorte quanto uma pessoa que
é casada com a senhora — atirei na cara dela.
— Lucy, você nega que o seu pai bebe muito?
— Ele bebe um pouco — admiti. — Por que não deveria
beber? A senhora o fez infeliz por todos esses anos.
Minhas lembranças mais antigas são da senhora gritando
com ele, sabia?
— Desculpe, Lucy — disse ela, com as lágrimas voltando
a rolar pelo rosto. — Nossa vida era tão difícil, jamais
tínhamos dinheiro algum, seu pai não conseguia arrumar
emprego, pegava o pouco dinheiro que eu escondia para
comprar comida para você e seus irmãos, e o gastava todo
em bebida. Eu era obrigada a ir até a mercearia e dar a
eles alguma desculpa esfarrapada, dizendo que não
conseguira passar no banco antes de a agência fechar, e
eles me vendiam fiado. Eles sabiam muito bem do meu
problema, entenda, e eu tinha o meu orgulho, Lucy, sabia?
Aquilo não era nada fácil para mim. Tinha sido criada
para esperar muito mais da vida do que aquilo.
Ela estava chorando sem parar agora, mas eu não me
compadeci. Aquilo não significava nada para mim.
— E eu o amava, amava de verdade — soluçou ela. —
Eu tinha apenas vinte e dois anos e o achava lindo. Ele
vivia me dizendo que ia parar de beber e eu vivia na
esperança de que as coisas fossem melhorar. Acreditava
nele todas as vezes, e todas as vezes ele me decepcionava.
E minha mãe foi em frente, desfiando a ladainha, um
catálogo de acusações. Contou como ele já estava bêbado
na manhã seguinte ao casamento.
Relatou como ela entrou em trabalho de parto para ter
Chris e teve que ir para o hospital sozinha, porque ele
estava sumido, provavelmente caído, bêbado, em algum
lugar. Contou como ele ficou nos fundos da igreja durante
toda a cerimônia de crisma de Peter, cantarolando: "Os
homens do outro lado da cerca"...
Eu não queria nem ouvir. Resolvi que já estava na hora
de voltar para o trabalho.
Ao me levantar para sair, disse:
— Sei que a senhora não está nem aí para isso, mas
pode deixar que vou cuidar dele. Provavelmente vou fazer
um trabalho bem melhor do que a senhora jamais fez.
— Está falando sério, Lucy? — Ela pareceu pouco
impressionada.
— Estou.
— Boa sorte, então. Você vai precisar.
— Como assim?
— Você é boa para lavar lençóis? — perguntou,
enigmática.
— Do que a senhora está falando?
— Você vai descobrir — encerrou ela, com ar cansado. —
Você vai descobrir.

CAPÍTULO 63
Voltei para o trabalho em estado de choque,
A primeira coisa que fiz foi ligar para papai, para me
certificar de que ele estava bem, mas ele me pareceu
incoerente e confuso, o que me deixou doente de tão
preocupada.
— Vou direto para aí assim que sair do trabalho, logo
mais, papai — prometi. — Tudo vai ficar bem, por favor,
não se preocupe.
— Quem vai tomar conta de mim, Lucy? — perguntou,
parecendo muito, muito velho. Senti vontade de matar a
minha mãe.
— Eu tomarei conta do senhor — prometi, fervorosa. —
Vou cuidar do senhor para sempre, não se preocupe.
— Você não vai me abandonar? — perguntou ele, de
forma patética.
— Nunca — afirmei, sincera como jamais fora na vida.
— Você vai passar a noite aqui? — perguntou.
— Claro que vou, vou ficar sempre com o senhor.
Depois liguei para Peter. Ele não estava no trabalho,
então presumi que mamãe já tivesse lhe dado a notícia, e
ele, um edipiano idiota como nenhum outro, devia ter ido
para casa e àquela altura estava deitado em um quarto
escuro, esperando morrer de desgosto.
Para confirmar minha idéia, liguei para a casa dele, e ele
mesmo atendeu o telefone, com uma voz rouca e um pesar
profundo. Garantiu-me que ele, também, odiava a nossa
mãe. Só que eu sabia muito bem que ele a odiava por
motivos totalmente diferentes dos meus e, portanto, não
tínhamos nada em comum. Peter estava se sentindo
arrasado não pelo fato de minha mãe ter trocado meu pai
por outro homem, e sim por ela não ter trocado meu pai
por ele.
Em seguida, liguei para Chris e soube que mamãe já o
informara da novidade logo de manhã cedo. Fiquei
aborrecida por ele não ter me ligado, me preparando com
antecedência para o que eu ia ter de enfrentar. Por conta
disso, armamos um pequeno barraco pelo telefone, o que
foi ótimo, pois consegui tirar papai da cabeça por algum
tempo. Chris se mostrou tremendamente aliviado quando
eu disse que ia passar a noite com papai. ("Puxa, Lucy,
valeu mesmo, vou ficar lhe devendo essa.") Chris e a
Responsabilidade não se conheciam muito bem, acho que
jamais haviam se encontrado cara a cara.
Depois, liguei para Daniel e contei a ele o que acontecera.
Ele era uma pessoa boa para contarmos essas coisas,
porque era totalmente solidário. Além do mais, ele sempre
demonstrou gostar muito da minha mãe. Eu estava
satisfeita por dar a ele a oportunidade de constatar a
megera que ela era.
Daniel não comentou nada sobre a minha mãe fujona.
Simplesmente se ofereceu para me levar de carro até meu
pai.
— Não — recusei.
— Sim — disse ele.
— De jeito nenhum — tornei a recusar. — Estou muito
transtornada, não sou uma boa companhia. Além do mais,
a viagem é longa e cansativa, e quando eu chegar lá, vou
querer ficar sozinha com o meu pai.
— Tudo bem — disse ele. — Mesmo assim, eu gostaria
de estar com você.
— Daniel — suspirei —, é obvio que você deve estar
precisando de ajuda psiquiátrica, e estou sem tempo agora
para lidar com os seus problemas mentais.
— Lucy, seja sensata — disse ele, com firmeza.
Demos uma boa risada diante dessa idéia.
— Daniel, você está me pedindo algo impossível. Pare de
criar expectativas inalcançáveis para mim, senão você vai
se decepcionar.
— Agora me escute — gritou ele. — Eu tenho carro, é
um longo caminho até lá, você vai ter que passar no seu
apartamento para pegar algumas roupas e outras coisas.
Não tenho nenhum compromisso para hoje à noite. Vou
levar você de carro até Uxbridge e não quero ouvir mais
recusas, já está decidido!
— Uau! — reagi, divertida e ligeiramente impressionada
com ele, apesar das circunstâncias terríveis. — Você está
parecendo um daqueles heróis machões de romances
açucarados! Dê uma olhada em suas coxas. Aposto que
elas ficaram todas musculosas só com esse discurso.
Daniel não tinha a menor idéia de sobre o que eu estava
falando.
Estranho, eu jamais pensara nas coxas de Daniel até
aquele momento. Tinha uma vaga suspeita de que elas já
eram musculosas. Senti uma espécie de nervoso, e então
parei com a zoação.
— Obrigada, Daniel — desisti. — Se realmente não se
incomoda, ia ser de muita ajuda se você pudesse me levar
até lá.
O terror de mamãe abandonando papai não fizera
desaparecer o medo que eu tinha de Karen, ou do que ela
faria se descobrisse que Daniel estava me acompanhando
até Uxbridge. Para sorte minha, ela ainda não havia
voltado do trabalho quando Daniel e eu saímos do
apartamento.
Passamos no supermercado, a caminho de casa, para
comprar mantimentos para o papai. Gastei uma fortuna,
comprando tudo o que lembrava que talvez ele gostasse.
Guloseimas, bolinhos de frutas, macarrão de letrinhas,
torrinhas inglesas, mães-bentas, balinhas coloridas e uma
garrafa de uísque. Não ligava a mínima para o que a
minha mãe dissera sobre ele ser alcoólatra. Não acreditava
naquilo. E mesmo se acreditasse, não me importava. Teria
dado a ele qualquer coisa que o fizesse se sentir um pouco
melhor, sabendo que ainda havia alguém que o amava.
Ia montar um novo lar para ele, todo feito de amor,
pensava eu, com zelo missionário.
Estava até gostando daquilo. Ia mostrar à minha mãe
como é que se fazia.
Ao chegarmos lá, Daniel e eu encontramos papai jogado
em uma poltrona, bêbado e choroso. Fiquei abalada ao vê-
lo assim tão aborrecido, porque, de certa forma, achava
que ele ia ficar feliz por mamãe ter caído fora da sua vida,
deixando-o em paz. Quase esperava encontrá-lo aliviado,
já que agora íamos ser apenas ele e eu.
— Pobre papai, pobrezinho. — Larguei as sacolas em
cima da mesa e corri para onde ele estava.
— Ah, Lucy — disse ele ao me ver, balançando a cabeça
lentamente. — Ah, Lucy, o que vai ser de mim agora?
— Vou tomar conta do senhor. Olhe aqui, tome um
drinque, papai — sugeri, fazendo gestos para Daniel pegar
a garrafa de uísque.
— Puxa, seria muito bom, Lucy — concordou papai, com
o rosto tristonho. — Seria ótimo.
— Tem certeza, Lucy? — perguntou Daniel, baixinho.
— Não comece... — sussurrei, irritada. — A mulher dele
acabou de abandoná-lo, deixe-o beber a porcaria de um
drinque.
— Calma, Lucy — disse ele, pegando uma garrafa vazia
de uísque ao lado da poltrona onde papai estava e
estendendo-a na minha direção. — É que eu simplesmente
não quero matar o seu pai.
— Mais uma dose não vai fazer mal — afirmei, teimosa.
Subitamente, senti pena de mim mesma e de papai. Antes
de perceber o que estava acontecendo, já estava tendo um
pequeno chilique.
— Pelo amor de Deus, Daniel! — berrei. Então saí da
sala e bati a porta atrás de mim.
Escancarei a porta do quarto "bom" que dava para a rua
e me atirei, no auge do chilique, em cima do sofá "de boa
qualidade" que havia ali, com estrutura de metal e forrado
de veludo cotelê. Aquele quarto vivia fechado, à espera de
visitas. Como jamais tínhamos visitas, porém, ele
permanecia intacto e imaculado, nas mesmas condições
em que fora montado, em 1973. Era como entrar no túnel
do tempo.
Sentei-me e comecei a chorar, sentindo-me ao mesmo
tempo ousada por estar sobre o sofá bom, reservado
apenas para padres e parentes da Irlanda, que eram os
únicos autorizados a sentar ali.
Em poucos momentos Daniel entrou, como eu já sabia
que faria.
— Já serviu o drinque a ele? — perguntei, em tom de
acusação.
— Já — afirmou ele, passando a mão por sobre a
mesinha com tampo de vidro fumê. Sentou-se a seguir no
sofá fossilizado. Colocou o braço em volta do meu ombro,
como eu sabia que ele faria. Daniel era bom para aquele
tipo de coisa, era simpático e previsível. Eu sempre tinha
certeza de que ele faria a coisa certa.
Então ele me puxou para junto dele e colocou-me no
colo, com uma das mãos em volta dos meus ombros e a
outra por trás dos joelhos. Eu não esperava aquilo, mas
fiquei feliz em aceitar. Um monte de demonstrações de
carinho, era disso que eu estava precisando.
Eu me permiti aproveitar o momento e me aninhei nos
braços dele, chorando mais um pouco. Daniel era ótimo
para chorarmos e desabafarmos, porque havia algo de
muito tranqüilizador e protetor nele. Deixei-me levar e
enfiei o rosto no ombro do terno dele, enquanto ele
levantava a mão e me fazia um cafuné carinhoso,
enquanto falava coisas como "pronto, pronto, Lucy, não
chore..." Foi muito agradável.
Ele tinha um cheiro gostoso. Meu nariz estava grudado
no pescoço dele e o seu perfume era envolvente. Másculo e
doce.
Muito sexy, na verdade, avaliei, com surpresa. Pelo
menos seria sexy se não estivesse vindo de Daniel.
Distraída, me pus a imaginar como seria o gosto dele. Na
verdade, eu estava tão junto dele que tudo o que tinha de
fazer era colocar a ponta da língua para fora e lamber a
pele do seu pescoço.
Parei com aquilo na mesma hora. Não podia sair por aí
lambendo homens, mesmo sendo apenas Daniel.
Ele continuava acariciando o meu cabelo com uma das
mãos e enfiou a outra por trás da minha nuca, onde
começou a fazer uma espécie de massagem gostosa com o
polegar e o indicador.
Suspirei e me senti ainda mais relaxada junto dele. Era
maravilhoso, muito tranqüilizante.
Hummmm, pensei, sentindo um conforto agradável e
um ligeiro tremor por dentro. Gostoso e assim meio...
De repente me toquei de que não estava mais chorando.
Entrei em pânico, compreendendo que precisava me soltar
dos braços de Daniel imediatamente. Eu só deveria me
aconchegar a homens com os quais estivesse
emocionalmente envolvida, ou se estivesse consolando
algum amigo, e não era o caso ali. Estava nos braços de
Daniel sob falsos pretextos, pois minha fragilidade se
acabara junto com as lágrimas.
Torcendo para ele não achar que eu era ingrata, tentei
me desvencilhar dos braços dele.
Ele sorriu para mim, seu rosto junto do meu, como se
soubesse de algo que eu desconhecia. Ou talvez algo que
eu deveria saber.
Às vezes a beleza de seu rosto, do tipo que se via a toda
hora em revistas, me deixava irritada e chateada, pensei.
E os dentes dele pareciam mais brancos do que de
costume, ele devia ter ido ao dentista há pouco tempo.
Aquilo me irritava também.
Senti um calor desconfortável, não sabia por quê.
Devia ser por havermos chegado a um estado esquisito
de explosão emocional. A enxurrada de felicidade ou
tristeza já passara, e ficar ali de mãos dadas, ou
abraçados, ou vertendo um restinho de lágrimas ou
qualquer coisa desse tipo se tornou terrivelmente
embaraçoso. Talvez por isso é que eu sentia que precisava
escapar dele, pensei, em busca de uma razão para o
sentimento.
Não me sentia muito à vontade com demonstrações
explícitas de afeto.
Pelo menos não quando estava sóbria.
Daniel, porém, nem parecia notar que eu queria escapar
dos seus braços. Tentei empurrar o corpo para fora do
círculo dos braços dele, mas nada aconteceu. Outra onda
de pânico me atingiu.
— Obrigada — funguei, olhando para ele e tentando
fazer o agradecimento soar bem normal. E, mais uma vez,
torci o corpo, em uma nova tentativa de me afastar dele. —
Desculpe pela cena, Daniel.
Eu tinha de escapar dali, pensei, de modo frenético.
Estava me sentindo sem graça e estranha nos braços dele,
embora não fosse o tipo normal de estranheza e embaraço.
Ele estava me deixando perturbada.
Comecei a perceber uma porção de coisas nele que não
reparara durante os momentos em que estava ocupada,
chorando.
Como, por exemplo, o fato de ele ser tão grande. Eu
estava acostumada com homens menores. Era diferente
ser abraçada por alguém tão grande quanto Daniel.
Diferente assim, no sentido de aterrorizante.
— Não se desculpe — disse ele.
Fiquei esperando que ele me lançasse um sorriso meio
debochado, mas isso não aconteceu. Ele continuou
olhando para mim com olhos sombrios e sérios, e não se
moveu.
Olhei fixamente para ele de volta. Uma tranqüilidade
baixou entre nós. Uma espera. Momentos antes, eu
sentira segurança. Agora eu sentia tudo, menos isso. E
não conseguia prender a respiração, estava toda ofegante.
Daniel se inclinou ligeiramente e dei um pulo. Mas ele
estava apenas afastando o cabelo que me caíra sobre a
testa. O toque de sua mão lançou um arrepio que me
percorreu o corpo todo.
— Mas eu tenho que me desculpar — consegui balbuciar,
nervosa, incapaz de encará-lo. — Você me conhece. Sabe
que adoro me sentir culpada.
Ele não riu. Mau sinal.
E continuou agarrado, sem me soltar. Um sinal ainda
pior.
Para o meu horror, senti um poderoso surto de atração
sexual por ele, que quase me derrubou do seu colo.
Fiz mais uma tentativa para me desvencilhar dele.
Acho que não me esforcei o bastante.
— Lucy — disse ele, colocando a mão no meu queixo e
levantando bem de leve o meu rosto, para me obrigar a
olhar para ele. — Eu não vou soltar você; portanto, pare
de tentar escapar.
Ai, meu Deus, pensei. As cartas estavam abertas em
cima da mesa. Não estava gostando do tom de sua voz.
Bem, na verdade estava gostando sim, até muito... Se eu
não estivesse tão apavorada sobre o que aquilo significava,
teria adorado até.
Algo de muito estranho estava rolando ali. Por que a
Atração Sexual estava batendo à nossa porta, chamando a
mim e a Daniel para brincar lá fora? Por que logo agora?
— Por que você não vai me soltar? — gaguejei, olhando
para ele, tentando ganhar tempo. Fiquei vagamente
distraída pelas pestanas dele. Eram indecentes de tão
longas e grossas. E a boca de Daniel sempre fora assim
tão sexy? Ele estava com uma cor linda na pele, levemente
bronzeada em contraste com a brancura da camisa.
— Porque — explicou ele, olhando para mim — eu quero
você. Caraca! Minhas entranhas se retorceram todas com
uma espécie de emoção apavorada. Estávamos chegando
perto de um limite, prestes a cruzar a fronteira de uma
terra desconhecida. Se eu tivesse um pingo de bom senso,
iria dar um basta naquilo, naquele exato momento.
Só que não tinha senso algum. Não consegui me segurar.
E, mesmo que quisesse, certamente não conseguiria
impedi-lo.
Por séculos antes de acontecer, eu já sabia que ele ia me
beijar.
Seu rosto pairou no ar, nossas bocas quase se tocando,
aproximando-se cada vez mais, milímetro a milímetro.
Durante anos o seu rosto fora tão familiar para mim, e
agora ele me parecia um estranho, um estranho muito
atraente.
Era aterrorizador.
De um jeito muito gostoso.
Finalmente, quando meus nervos já estavam retesados a
ponto de eu gritar, e eu tinha certeza de que não
agüentaria esperar nem mais um segundo, ele inclinou a
cabeça e colocou os lábios sobre os meus. Seu beijo me
inundou por dentro como uma bebida borbulhante.
Retribuí o beijo.
Porque — é uma vergonha admitir isso — eu queria
beijá-lo também.
Detestei a situação, porque foi maravilhoso.
Foi o beijo mais fantástico que experimentara em toda a
minha vida, e vinha de Daniel. Que coisa horrível sentir
aquilo. Se ele descobrisse, seu ego ia entrar em órbita.
Tinha de cuidar para que ele jamais ficasse sabendo disso,
pensei na hora.
Reparei em um monte de coisas nas quais jamais
reparara. Notei como as costas dele eram largas e firmes,
enquanto passava as mãos ao longo do tecido encorpado
de seu terno.
Não era de admirar que ele soubesse beijar assim tão
bem, considerando-se a sua prática, pensei, enquanto
tentava me afastar aos poucos.
Então ele tornou a me beijar e eu pensei: Ah, o mal já
está feito mesmo; perdido por um, perdido por mil, é
melhor aproveitar de uma vez.
Ele era delicioso. Tinha uma boca perfeita e a pele era
suave. Tinha um cheiro sexy de almíscar.
Era um homem, um homem de verdade.
Ai, meu Deus, pensei na mesma hora... Nunca vou
superar essa mancada.
Ele jamais vai me deixar esquecer esse mico. Que
vergonha. Depois de todas as zoações que eu fizera com
ele, por sua galinhagem.
Se eu não estivesse tão ligada, poderia até cair na risada
por tudo aquilo.
Karen ia me matar, percebi. Já podia me considerar
morta. Como permiti que isso acontecesse?, perguntei a
mim mesma, chocada.
Mas... como conseguiria evitar?
Todos esses pensamentos entravam por um lado,
passavam voando pela minha cabeça e saíam pelo outro
lado, enquanto meu desejo por ele ia aumentando a cada
vez.
De vez em quando uma vozinha lá no fundo me
lembrava: "Sabe quem é esse cara? Esse é o Daniel, caso
você ainda não tenha reparado. E já se ligou no lugar em
que vocês estão? Sim, exatamente, vocês estão no quarto
bom da casa. Em cima do sofá do padre Colm."
Eu tremia por dentro, completamente a fim dele. Queria
transar com ele ali mesmo, naquela hora, no sofá do padre
Colm e com papai no cômodo ao lado. Não me importava.
Tudo o que Daniel fazia era me beijar. Beijava minha
boca e me acariciava nos lugares mais recatados. Eu não
sabia se estava impressionada ou chateada por ele não
estar tentando me palmear toda, nem me empurrar de
costas no sofá, enfiando a mão por baixo da minha saia.
Finalmente ele se afastou de mim e disse:
— Lucy, você não imagina há quanto tempo eu esperava
por isso.
Tínhamos que reconhecer: ele era bom naquilo. Parecia
intenso e apaixonado. E parecia lindo! Suas pupilas
estavam totalmente dilatadas. Seus olhos estavam quase
pretos e seu cabelo estava todo em desalinho, muito sexy,
bem diferente do visual bem penteado de sempre. A
expressão do seu rosto é que era o melhor de tudo: ele
parecia mesmo um homem apaixonado ou, pelo menos,
cheio de tesão.
Não era de espantar que tantas mulheres ficassem
caidinhas por ele.
— Tá bom, Daniel... — reagi, com a voz trêmula,
tentando sorrir — ... aposto que você fala isso para todas
as garotas.
— Não, estou falando sério, Lucy — disse ele, com a voz
séria e um tom sério, olhando para mim com seriedade.
— Eu também — disse, em um tom leve.
A sanidade, pelo jeito, já começava a voltar, relutante,
para a minha cabeça inconstante. Embora todo o meu
corpo continuasse tremendo de desejos não saciados.
Olhei para Daniel, querendo acreditar nele, embora
soubesse que jamais poderia.
Ficamos sentados lado a lado, um pouco mais separados,
ele parecendo triste, eu parecendo triste, mas ainda em
seus braços, sabendo que já ficara ali tempo demais, mas
sem querer ir embora.
— Por favor, Lucy — disse ele, colocando as duas mãos
no meu rosto, segurando-o com tanto carinho e cuidado
como se a minha cabeça fosse um balde de ácido sulfúrico
transbordante.
Nesse momento a porta se abriu e papai entrou no
quarto, cambaleando. Embora Daniel e eu tenhamos dado
um pulo para cima, como se fôssemos ágeis cabritos,
papai conseguiu perceber o que estava rolando e fez uma
cara de choque e aborrecimento.
— Meu bom Deus — rugiu. — Vocês estão se agarrando,
é?... Esta casa virou Sodoma e Gomorra.

CAPÍTULO 64
Minha vida mudou muito nos dias que se seguiram. De
uma hora para outra eu tinha uma casa nova, ou uma
velha, dependendo do ponto de vista. Resolvera dar a
notícia de imediato para as amigas do apartamento, pois
estava louca para começar logo a minha nova vida,
ansiosa para mostrar a todos o quanto eu estava
comprometida com aquilo.
Alguém tinha de se mudar para a casa de meu pai, para
tomar conta dele, Eu era a candidata óbvia.
Mesmo que Chris e Peter tivessem se oferecido, eu teria
insistido em assumir o lugar, por mim mesma. Não que
eles tivessem se oferecido, os patifes preguiçosos. Ficaram
indignados diante da possibilidade. Até que ia ser muito
bom para qualquer um dos dois. Minha mãe sempre fizera
tudo por eles, desde o dia em que nasceram, e devido a
isso eles mal sabiam preparar um banho, muito menos
administrar uma casa. Era um milagre que tivessem
conseguido aprender a dar laço no cadarço dos próprios
sapatos. Não que eu fosse muito melhor na área de
prendas do lar, porém, de algum modo, conseguia me virar.
E estava disposta a aprender como preparar iscas de peixe,
pensava, arrebatada. Seria um trabalho de puro amor.
Todo mundo tentou me convencer a não voltar a morar
em Uxbridge. Karen e Charlotte não queriam que eu fosse
embora, quanto mais não fosse, pela trabalheira que ia
dar ter de arrumar uma nova pessoa que servisse para
dividir o apartamento.
— Mas não há nada de errado com o seu pai —
comentou Karen, intrigada. — Muitos homens conseguem
viver por conta própria, Por que você tem que ir morar
com ele, literalmente? Não dá para passar lá dia sim, dia
não, sabe com é, pedir a um vizinho para ficar de olho,
revezar com os seus irmãos, esse tipo de coisa?
Eu não ia conseguir explicar o problema a Karen. Fazer
as coisas pela metade não ia me satisfazer, eu tinha de
resolver tudo direito. Resolvera me mudar de volta para
aquela casa, a fim de cuidar do meu pai como ninguém
jamais cuidara dele, como sempre deveria ter sido. Estava
contente, satisfeita por tê-lo todinho para mim, íamos ser
apenas nós dois. Estava me sentindo amarga e zangada
com a minha mãe por sua leviandade, mas isso era de
esperar dela. Sentia alívio por ela ter saído de cena,
finalmente.
— Mas deve ser horrível para você voltar a morar com
seus pais — disse Charlotte, parecendo horrorizada. —
Quer dizer, pai... — acrescentou ela, depressa. — Pense só,
Lucy, como é que você vai conseguir transar com seus
namorados? Não tem medo de que seu pai entre
enfurecido no quarto, pegue você no ato e comece a berrar,
dizendo que você não pode fazer esse tipo de coisa debaixo
daquele teto?
— Será que ele vai determinar a que horas você vai ter
que chegar em casa? — continuou ela, jogando conversa
fora, sem reparar que eu estava me encolhendo toda. —
Será que ele vai dizer "você não pode ir para a rua vestida
desse jeito" ou "parece uma prostituta com essa
maquiagem toda" e outras coisas desse tipo? —
perguntou. — Você pirou.
O problema de Charlotte é que ela conseguira escapar
da casa dos pais há pouco tempo. As lembranças de viver
sob o jugo do pai ainda estavam muito frescas em sua
cabeça.
Ela ainda estava curtindo a liberdade recém-adquirida.
Isto é, nos dias em que não se sentia à beira do suicídio,
corroída pela culpa.
— E se o seu pai arrumar uma nova namorada? —
continuou ela. — Não vai ser nojento se você entrar em
casa e pegá-lo no flagra, transando?
— Mas... — tentei interromper. A idéia do pobre papai
arrumando uma namorada nova era quase cômica. Tão
engraçada quanto a idéia de eu mesma começar a
namorar alguém.
Um namorado não estava no cardápio. O beijo em
Daniel fora um fato isolado. Uma chance única que jamais
se repetiria na vida. Venham, corram todos, porque o
produto está acabando!
Naquele dia, depois que papai nos pegou em pleno pós-
beijo, olhou para nós com os olhos vidrados, por algum
tempo. Ficamos encolhidos, como devíamos, debaixo do
seu olhar de desaprovação. Então ele se retirou do quarto,
enquanto Daniel e eu nos recompúnhamos. Esperei um
pouco para meu coração disparado voltar ao normal e
minha respiração se acalmar. Daniel esperou um pouco
para a sua ereção baixar e ele voltar a caminhar direito
(descobri isso algum tempo depois).
Ficamos sentados lado a lado no sofá, a imagem perfeita
de uma timidez muda.
Fiquei com vontade de morrer.
Tudo aquilo era tão horrível.
Ficar me esfregando com Daniel! Me esfregando com
Daniel. Me esfregando com... Daniel. E ser pega no flagra
por papai, que humilhação. Uma parte de mim sempre ia
ter catorze anos.
De qualquer modo, eu estava em estado de choque, com
mamãe abandonando papai. E, de certo modo, estava
além do choque por Daniel ter se agarrado comigo.
Aquilo era esquisito demais só de pensar.
Não sei explicar por que razão ele teve um efeito tão
grande em mim. Decidi que estava provavelmente me
sentindo vulnerável, devido à desintegração da unidade
familiar.
Quanto aos motivos do Daniel, bem, quem sabe? Ele era
um homem, eu era uma mulher (bem, mais ou menos, no
fundo eu me sentia mais como uma garotinha). Acho que,
basicamente, eu simplesmente estava ali.
Tudo ficou bagunçado na minha cabeça, era muita
agitação para um dia só, e eu queria que Daniel e eu
voltássemos ao normal. A melhor maneira de fazer isso era
agir de forma normal. Assim, resolvi insultá-lo:
— Você se aproveitou de mim — resmunguei. — Seu
canalha, grosso — acrescentei, só por garantia.
— Eu me aproveitei? — perguntou ele, surpreso.
— Isso mesmo — reagi. — Você sabia que eu estava
abalada por causa do pobre do meu pai. E então me
insultou com aquele papo suave que costuma jogar para
cima de todas as garotas e me agarrou.
— Desculpe — disse ele, parecendo horrorizado. — Não
foi essa a minha intenção.
— Esquece — suspirei, com cara de virtuosa. — Vamos
simplesmente esquecer o que aconteceu. Mas não
podemos deixar que aconteça de novo.
Aquilo era maldade minha, eu bem sabia, porque a
culpa era dois, para dançar o tango são necessárias duas
pessoas etc. etc, eu já estava com a cabeça cheia demais, e
não precisava ficar e cada tentando decidir se gostava dele.
Não ia mais pensar naquilo, resolvi. Eu era boa nessa
história de não pensar nas coisas desagradáveis.
Naquela época eu nem desconfiava do quanto era boa
nisso.
Depois de uns dez minutos, Daniel saiu de fininho,
morrendo de vergonha. Papai ficou na porta, quase
sacudindo os punhos pelas costas dele enquanto o
observava ir embora, até se certificar de que Daniel já fora
de vez. Nós não chegamos nem a oferecer a ele uma xícara
de chá de despedida. Minha mãe ia se virar no túmulo se
soubesse disso.
Eu torcia para que isso acontecesse.












CAPÍTULO 65
Daniel apareceu em Uxbridge para me ver uns dois dias
depois do episódio do grande amasso. Eu estava tão
envergonhada e confusa que ficaria feliz se nunca mais
tornasse a vê-lo, mas ele havia me perturbado.
Primeiro, telefonou para o meu trabalho, logo no dia
seguinte, e me pediu que o encontrasse para almoçar. Eu
lhe disse que não queria.
— Por favor, Lucy — tornou a pedir.
— Por quê? — perguntei. — Ah, não!...
— Ah, não o quê?
— Se vier me dizer que nós precisamos conversar, eu
mato você — avisei.
Megan, Meredia e Jed levantaram a cabeça tão depressa
que quase ficaram vesgos de tão interessados.
— Na verdade, precisamos realmente conversar — disse
Daniel — a respeito do seu apartamento. Meu
apartamento?
— O que é que tem o meu apartamento? — Estava
surpresa.
— Pelo menos me deixe falar com você.
Aquilo era, evidentemente, uma desculpa, mas resolvi
deixar a coisa rolar.
— Passe lá em casa amanhã à noite, então — concordei,
finalmente.
Para minha preocupação, me senti animada e feliz
diante da perspectiva de vê-lo. Tinha de parar com aquilo.
— Eu passo aí e a pego depois do trabalho — ofereceu
ele.
— Não — reagi, depressa. De jeito nenhum eu ia querer
agüentar uma viagem inteira de metrô com ele. Ia acabar
sofrendo combustão instantânea de tão embaraçada que
ia ficar.
Assim que coloquei o fone no gancho, Megan, Meredia e
Jed caíram em cima de mim como urubus.
— Quem era?
— Era Gus?
— O que está havendo?
— Você e ele estão transando de novo? — clamaram.
Eu estava tremendamente nervosa enquanto esperava a
chegada de Daniel.
Minha cabeça ficava pesando os prós e os contras... Bem,
na verdade, os contras e os contras de tudo aquilo. Ficar
de amassos com Daniel fora um grande erro. Qualquer
esfrega-esfrega adicional seria levar a falta de cuidado ao
extremo.
Tudo bem, eu achava que estava gostando dele, mas
sabia que não era verdade.
O choque de ver minha mãe abandonar meu pai tinha
confundido as minhas emoções, e eu simplesmente estava
achando que gostava dele.
O beijo de Daniel fora o resultado de um conjunto de
circunstâncias muito incomuns.
Vamos encarar os fatos de forma objetiva, pensei,
enquanto escovava os cabelos com força. Papai me olhava
com olhar terno. Não ficaria tão terno quando descobrisse
para quem eu estava escovando os cabelos.
De um lado, lá estava eu, imaginei, de forma teatral.
Confusa, vulnerável, carente, uma criança recém-saída de
um lar destroçado, pronta para se apaixonar pela primeira
pessoa que lhe oferecesse um pouco de afeto.
Do outro, estava Daniel. Um homem habituado a muito
sexo, e que já não transava há alguns dias. Devido a isso,
naturalmente, ele não era muito exigente a respeito de
quem agarrar. Eu estava bem ali... e ele me agarrou.
Viu só? Uma prova de que ele era pouco exigente.
Além do mais, Daniel era um homem que adorava um
desafio. O que Karen me revelara aos gritos na noite de
domingo serviu para confirmar o que eu sempre soube:
Daniel era capaz de tentar agarrar a própria mãe se
sentisse que ela ia reagir e brigar com vontade.
Mas não vou sucumbir, pensei, com ar sombrio.
Pelo menos naquela vez eu ia resistir ao impulso
autodestrutivo. Não ia me interessar por Daniel. Ia bancar
a diferente.
Assim que abri a porta da frente para ele, minha
resolução de não me interessar por ele fraquejou, depois
se dissolveu. Ele estava lindo, muito atraente, o que foi
uma espécie de choque desagradável. Como era possível
ele me parecer tão sexy de uma hora para outra? Ele
jamais conseguira passar essa impressão antes. Pelo
menos não para mim. Para meu grande desapontamento,
me comportei de forma assanhada, parecendo uma
garotinha tímida, rindo feito uma idiota.
— Oi — cumprimentei, encarando o nó da sua gravata.
Ele se inclinou para me beijar, e um berro veio lá de
dentro da cozinha:
— Ei, você! — Era papai. — Deixe minha menininha em
paz, seu verme.
Daniel recuou na mesma hora. Eu me senti como uma
pessoa faminta que acabara de ver um saco de batatas
fritas passar bem debaixo do seu nariz para depois ser
recolhido.
— Entre — convidei, falando para o colarinho dele.
Eu estava terrivelmente sem graça. Ao guiá-lo pelo
vestíbulo, bati com o quadril de forma violenta na quina
da mesinha do telefone, mas fingi que não doeu. Não
queria que ele oferecesse um beijinho para a dor passar,
porque eu ia acabar aceitando.
— Tire o paletó. — Encarei o bolso do terno.
Fiquei revoltada pelo efeito que ele estava conseguindo
sobre mim. Estava na cara que eu tinha dificuldades para
respirar direito, embora apenas por alguns instantes, é
claro. A causa era a separação dos meus pais, mas mesmo
assim eu não podia dar bandeira.
Resolvi que não ficaria a sós com ele e, depois que ele
fosse embora, jamais ia revê-lo, nunca mais, ia manter a
decisão para sempre. Bem, talvez não para sempre, mas
pelo menos por um bom tempo. Até eu voltar ao meu
normal, o que quer que isso significasse.
Como parte do meu plano astuto, forcei Daniel a ir para
a cozinha, onde meu pai estava sentado, de antenas
ligadas.
— Boa-noite, Sr. Sullivan — cumprimentou Daniel,
nervoso.
— Você tem mesmo a maior cara-de-pau, não é,
rapaz? — rugiu papai. — Voltar aqui depois de ter se
comportado como se a minha casa fosse um... fosse um
puteiro.
— Por favor, papai. — Eu estava morrendo de
vergonha. — Não vai tornar a acontecer.
— É preciso ter colhões de aço para agir com esse
descaramento — murmurou papai.
Então, graças a Deus, ele calou a boca.
— Você gostaria de uma xícara de chá? — perguntei ao
ombro de Daniel.
— Quando é que você vai servir os crepes? —
interrompeu papai, sem a menor cerimônia.
— Que crepes?
— Sempre comemos crepes às quartas.
— Mas hoje é quinta.
— Ah, é? Bem, então, quando é que você vai servir o
cozido? — E olhou para mim com ar desolado.
— Desculpe, papai, prometo entrar na rotina da casa a
partir da semana que vem. Dá para nos ajeitarmos com
uma pizza hoje ã noite?
— Uma pizza daquelas que as pessoas pedem pelo
telefone? — subitamente ele se interessou.
— Claro. — Que outro tipo poderia haver?, perguntei a
mim mesma.
— Não é uma daquelas congeladas? — O olhar
esperançoso que exibiu era de cortar o coração.
— Nossa, não.
— Ótimo — afirmou, com alegria. — E podemos tomar
uma cervejinha para acompanhar?
— Claro.
Desconfiei que ele estava realizando um antigo sonho.
Minha mãe teria torcido o nariz diante de uma
extravagância como aquela.
Quando liguei para a pizzaria, papai insistiu em falar
pessoalmente com o homem que preparava as pizzas, a
fim de discutir quais os ingredientes disponíveis,
— O que são anchovas? Ah, é? Então vou querer um
pouco sim, claro. O que são alcaparras? Ah... pode
espalhar um pouco disso, então. Escute, você acha que as
anchovas (ele pronunciava heinchovas) vão combinar com
o abacaxi?
Eu tinha de reconhecer a paciência de Daniel, embora
continuasse sem conseguir olhar nos seus olhos.
Quando as pizzas e as cervejas chegaram, nós três nos
sentamos em torno da mesa da cozinha. Tão logo acabou
de comer, papai recomeçou a olhar fixamente para Daniel.
A tensão era insuportável.
Papai não olhava direto para Daniel. Olhava com cara
feia sempre que Daniel estava olhando para outro lugar,
mas desviava o olhar depressa na hora em que Daniel
jogava os olhos nele. Daniel desconfiou que meu pai
estava lhe lançando olhares ameaçadores, e tentou pegar
papai no ato. Ficava bebendo a cerveja, descontraído e
então, em um microssegundo, girava a cabeça e olhava
para papai, a fim de flagrar a careta. Nesse instante, em
outro microssegundo, papai também girava a cabeça e
molhava o bico na cerveja com a cara mais inocente,
parecendo um anjo.
Aquilo rolou durante horas. Pelo menos foi assim que
me pareceu.
A atmosfera estava tão carregada que, quando acabamos
com a cerveja, entramos com a maior disposição no uísque.
Nas poucas vezes em que papai se virava para gritar
insultos para algum político que aparecia na televisão
(coloque a língua para fora, para vermos como ela está
preta de tanta mentira que você fala!), Daniel fazia um
monte de caretas e gestos enérgicos com a cabeça,
indicando a porta e sugerindo que saíssemos dali e
fôssemos para outro cômodo da casa. Provavelmente a
sala de estar, para um repeteco do esfrega-esfrega.
Eu o ignorava.
Finalmente, porém, meu pai resolveu ir para a cama.
Todos nós já estávamos bem altos a essa altura.
— Você vai ficar aqui a noite toda? — papai quis saber,
dirigindo-se a Daniel.
— Não — respondeu ele.
— Bem, então, caia fora — enxotou ele, se levantando.
— O senhor se importaria se eu trocasse uma
palavrinha com Lucy a sós, Sr. Sullivan? — pediu Daniel.
— Se eu me importaria? Imagine. — E começou a
tropeçar nas palavras. — Depois da forma como vocês dois
se comportaram na outra noite, é claro que eu me importo.
— Sinto muito pelo que houve — disse Daniel, com
humildade — Posso assegurar ao senhor que aquilo não
vai tornar a acontecer.
— Promete? — pediu papai, muito sério.
— Prometo — afirmou Daniel, solenemente.
— Tudo bem, então — aceitou papai.
— Obrigado — disse Daniel.
— Veja bem, estou confiando em vocês dois, hein? —
completo* papai, balançando o indicador na nossa
direção. — Nada de ficar com altas gracinhas, viu?
— Nenhuma — prometeu Daniel. — Não vamos fazer
gracinhas de nenhum tipo, nem altas, nem médias, nem
baixas.
Papai lançou-lhe um olhar desconfiado, enquanto
parecia avaliar se Daniel não o estava levando na
brincadeira. Daniel, no entanto, exibiu a expressão mais
honesta, do tipo "o senhor pode confiar em mim quanto à
sua filha, Sr. Sullivan".
Ainda não completamente convencido, papai foi para a
cama.
É claro que eu esperava que Daniel pulasse em cima de
mim no instante em que papai fechou a porta. Fiquei meio
decepcionada quando isso não aconteceu. Estava louca
para lutar contra ele, tentando afastá-lo, para depois ficar
a noite toda chamando-o de tarado.
Ele me confundiu toda ao pegar na minha mão com
suavidade e falar com carinho.
— Lucy — disse ele. — Preciso conversar com você sobre
uma coisa muito importante.
— Ah, claro... — exclamei, com sarcasmo, — Conversar
sobre a minha... — risadinha — ... moradia.
Conhecia um pretexto de longe, como qualquer mulher.
— Isso mesmo — confirmou ele. — Espero que você não
pense que estou me metendo na sua vida. Na verdade eu
sei que você vai achar que estou me metendo de qualquer
modo, mas, por favor, não entregue as chaves, não abra
mão da sua vaga no apartamento assim tão depressa.
Aquilo me derrubou. Eu realmente não estava
imaginando que ele viesse mesmo conversar sobre os
meus problemas de moradia.
— Mas, por que não? — perguntei.
— O que estou dizendo é que você não deve se precipitar
e fazer algo que não vai poder desfazer depois — explicou.
— Eu não estou fazendo isso — argumentei.
— Está sim — afirmou Daniel. Que coragem a dele! —
Lucy, você está muito confusa neste momento para tomar
uma decisão racional.
— Não, não estou — neguei, já com os olhos cheios de
lágrimas. Talvez ele tivesse razão, mas eu não podia
reconhecer esse fato sem brigar um pouco antes.
Tomei um gole bem grande de uísque.
— Não faz sentido algum, faz? — perguntei. — Morar
com meu pai e pagar o aluguel de um apartamento no
centro?
— Mas pode ser que você não queira mais ficar morando
com o seu pai daqui a algum tempo — sugeriu ele.
— Deixe de bobagens — reagi.
— Bem, sua mãe pode resolver voltar para casa. Pode
acertar as coisas com o seu pai — disse ele.
Essa idéia me deixou preocupada.
— E pouco provável — explodi.
— Bem, e se acontecer de uma noite você estar na
cidade, perder o último metrô para casa e não quiser
gastar mil libras de táxi até Uxbridge? Não seria mais
sensato ter um cantinho para dormir em Ladbroke
Grove? — sugeriu ele.
— Mas, Daniel — argumentei, desesperada —, eu não
vou mais fazer noitadas na cidade. Essa parte da minha
vida se encerrou. Quer mais uísque?
— Sim, obrigado. Lucy, estou muito preocupado com
você — disse ele, exibindo uma cara inquieta.
— Pois não fique — retruquei, chateada e frustrada. — E
não me venha com essa cara bonitinha, porque eu não
sou uma das suas... das suas... mulheres! Obviamente
você não faz idéia da seriedade do que acaba de acontecer
com a minha família. Minha mãe abandonou o meu pai e
tenho responsabilidades pela frente.
— A mãe de um monte de gente abandona o marido todo
dia. E o pai dessas pessoas segue com a vida — garantiu
Daniel. — Eles não precisam que as filhas desistam de
tudo e passem a agir como se tivessem entrado em um
convento.
— Daniel, eu quero fazer isso, não é sacrifício algum.
Preciso fazer isso, não tenho outra escolha. Não me
importo se não puder mais sair para me divertir. Além do
mais, eu já não estava mais me divertindo mesmo.
Meus olhos estavam à beira das lágrimas diante da idéia
de tanta bondade e devoção filial.
— Por favor, Lucy, espere pelo menos um ou dois
meses. — Ele não pareceu tão comovido com a história
quanto eu.
— Ah, tá bom, então... — concordei.
— Isso é uma promessa?
— Acho que sim.
E então levantei os olhos e fitei Daniel bem nos olhos.
Nossa, ele era muito bonito, um pedaço de homem. Quase
entornei o uísque.
Estava louca para a sessão de assédio começar. Tinha
tanta certeza de que ele tinha armado tudo aquilo só para
me ver, a fim de tentar ficar de esfregação, que queria só
ver se ele ia embora sem pelo menos tentar.




CAPÍTULO 66
O que fiz em seguida foi algo fora do meu feitio.
Agora, coloco a culpa na quantidade de bebida que
tomara. Combinada com o trauma. Somada com o fato de
que eu não transava há séculos.
Sabem aquela força de vontade quando estamos a fim de
uma pessoa, no duro, mas conseguimos nos segurar
porque temos certeza de que não vai ser uma boa? Pois
esse tipo de força de vontade não existe na vida real. Pelo
menos não no meu caso. O coração sempre governou a
minha cabeça.
O tesão sempre governou a minha cabeça.
— Talvez já esteja na hora de eu começar — disse, com a
voz mole.
— Começar o quê?
— A me divertir.
De modo intencional, ainda que um pouco instável, eu
me levantei, encarei Daniel bem nos olhos e andei em
torno da mesa até o lugar em que ele estava. Enquanto ele
continuava sentado, olhando meio desconfiado para mim,
puxei uma mecha do meu cabelo, colocando-a na frente de
um dos olhos, de forma sedutora, rebolei de forma devassa
e me sentei no colo dele, colocando os braços em volta de
seu pescoço.
Cheguei meu rosto bem perto do dele.
Nossa, ele era lindo! Olhe só para essa boca maravilhosa,
Lucy, a qualquer segundo ela vai estar beijando você. Era
daquilo que eu precisava, um pouco de sexo descontraído
e muito carinho. E quem melhor para isso do que Daniel?
Claro que eu não estava apaixonada por ele. Estava
apaixonada pelo Gus. Mas eu era uma mulher, e tinha
minhas necessidades. Por que só os homens tinham
direito a uma trepadinha sem compromisso? Eu também
queria uma dessas, o que quer que isso significasse.
— Lucy, o que está fazendo? — perguntou ele.
— O que está lhe parecendo? — Tentei fazer minha voz
soar rouca e sexy.
Ele não me enlaçou com os braços. Eu me agitei e
cheguei ainda mais perto dele.
— Olha lá, você prometeu ao seu pai... — Ele parecia
preocupado.
— Não, não fui eu. Foi você que prometeu.
— Fui eu? Tudo bem então, eu prometi ao seu pai.
— Você mentiu — disse eu. Novos tons baixos e ardentes.
Esse jogo de sedução era muito divertido, decidi. E
incrivelmente fácil de armar.
Eu estava doida por aquilo. Ia me divertir como não me
divertia há séculos.
— Lucy, não — disse ele.
Não? Não?! Eu estava ouvindo coisas?
Ele se levantou e escorreguei do colo dele.
Caí sentada no chão, ligeiramente tonta. A humilhação
devastadora ainda não chegara. Foi impedida de entrar
pela minha intoxicação. Com certeza, porém, estava a
caminho.
Aquilo era doloroso demais. Daniel podia agarrar
qualquer mulher que quisesse. O que havia de errado
comigo? Eu não era assim tão repugnante, era?
— Lucy, considero tudo isso um elogio, mas...
Nesse momento fiquei injuriada.
— Elogio?! — rugi. — Não me venha com essa de ser
condescendente não, seu cretino. Você gosta de dar, mas
não gosta de receber. Flerta comigo e, quando eu pago pra
ver, foge da raia.
— Lucy, não se trata disso. Você está muito aborrecida,
confusa e seria tirar vantagem...
— Eu decido isso — afirmei
— Olhe, Lucy, sinto muita atração por você...
— Mas não quer transar comigo — terminei a frase por
ele.
— Isso mesmo, não quero transar com você.
— Caramba, isso é que é ser humilhada —
murmurei
Então, contra-ataquei.
— Qual foi aquela da outra noite? — exigi saber. —
Aquela protuberância na sua calça não era um revólver.
Você certamente provou que a cobra estava pronta para
dar o bote.
O rosto dele se contorceu, e a princípio achei que era de
aversão, até que percebi que Daniel estava prendendo o
riso.
— Com quem você aprendeu essa expressão, Lucy?
— Com você mesmo, pelo que lembro.
— Sério? Ahn, acho que foi mesmo.
Fez-se um instante de silêncio e olhei para os pés. Eles
pareciam ser quatro. Não, dois. Não, eram quatro de novo.
— Lucy, olhe para mim com atenção — persuadiu-me
ele, com paciência. — Quero falar uma coisa para você.
Levantei o rosto vermelho de vergonha a fim de olhar
para ele.
— Quero deixar bem claro que não quero transar com
você — explicou. — Porém, assim que as coisas
assentarem e a poeira baixar, você não estiver tão abalada
e sua vida não estiver tão tumultuada, eu gostaria de fazer
amor com você.
Essa foi muito boa.
Comecei a rir, e ri sem parar.
— Qual foi a graça? — Ele parecia confuso.
— Ah, Daniel, dá um tempo! Que coisa ridícula e safada
de se dizer. "Gostaria de fazer amorrr com você, mas não
no momento." Por favor, deixe eu gastar um pouco do meu
semancol. Consigo sacar quando estou sendo rejeitada.
— Você não está sendo rejeitada!
— Então deixe ver se entendi a coisa direito. Você
gostaria de fazer amorrr comigo — imitei a sua voz, com
crueldade.
— Isso mesmo — confirmou ele, baixinho.
— Mas não agora. Se isso não é rejeição, não sei o que
pode ser. Gargalhei novamente.
Ele me magoara e me humilhara, e eu queria pagar na
mesma moeda.
— Por favor, Lucy, me escute...
— Não!
Nesse ponto, ou fiquei mais sóbria ou consegui me
acalmar um pouco.
— Olhe, Daniel, sinto muito por tudo o que aconteceu.
Não estou com o controle total das minhas faculdades
mentais. Foi um erro terrível.
— Não, não foi...
— E agora acho que já está na hora de você ir embora, é
um longo caminho até a sua casa.
Ele me olhou com um ar muito triste.
— Você está legal? — perguntou.
— Ah, qual é? Pare de se considerar tão importante —
reagi, rabugenta. — Já fui rejeitada por homens muito
mais bonitos do que você. Assim que a humilhação suicida
passar, vou ficar bem.
Ele abriu a boca para soltar uma nova rodada de
lugares-comuns.
— Adeus, Daniel — disse, com firmeza.
Ele me beijou no rosto. Fiquei dura, como se fosse de
pedra.
— Ligo para você amanhã — avisou ele, quando chegou
à porta da rua.
Dei de ombros.
As coisas nunca mais seriam as mesmas. Nossa, eu
estava deprimida.












CAPÍTULO 67
No dia seguinte, fiz minha mudança oficial do
apartamento de Ladbroke Grove. Charlotte e Karen
ficaram na porta, dando-me adeuzinhos, depois de Karen
ter me obrigado a deixar uma montanha de cheques pré-
datados para garantir o aluguel.
— Adeus, Karen. Pode ser que eu nunca mais veja
você — disse eu, na esperança de fazê-la se sentir culpada.
— Ai, não fale assim, Lucy. — Era Charlotte, à beira das
lágrimas. Ela era toda sentimental.
— Vamos nos ver sim — replicou Karen —, quando a
conta do telefone chegar.
— Minha vida está acabada — afirmei, com frieza.
— Mas — acrescentei —, se o Gus telefonar, não deixem
de informar para ele o número lá de casa.












CAPÍTULO 68
Morar com papai não foi do jeito que imaginei que fosse.
Achei que queríamos as mesmas coisas. Eu ia devotar a
minha vida à missão de tomar conta dele e fazê-lo feliz, e
ele ia me retribuir, permitindo a si mesmo ser bem
cuidado e permanecendo feliz.
Algo, porém, havia saído errado, porque eu não o estava
fazendo feliz. Ele nem mesmo parecia querer ficar feliz.
Vivia chorando, e eu não conseguia compreender por
quê. Achava que ele devia estar contente por ter se livrado
da minha mãe, pois estava bem melhor comigo ali.
Eu não sentia saudades dela e não entendia por que ele
sentia.
Eu transbordava de amor e preocupação por ele, e
estava bem preparada para fazer qualquer coisa por ele,
passar o tempo que fosse necessário com ele, paparicá-lo,
cozinhar para ele, trazer-lhe qualquer coisa que quisesse
ou de que necessitasse. A única coisa que eu não queria
era ouvi-lo dizer o quanto a amara.
Só queria tomar conta dele se ele fosse ficar feliz com
isso.
— Talvez ela volte para mim — repetia ele o tempo todo.
— Talvez — murmurava eu, pensando: O que há de
errado com ele?
Apesar disso, felizmente, ele jamais fez nada prático
para tentar reconquistá-la. Não fez grandes demonstrações
de paixão, como ficar do lado de fora da casinha amarela
de Ken, berrando desaforos para ele, até acordar os
vizinhos. Ou grafitar a porta da frente do rival, pintando a
palavra "adúltera" em letras verdes fluorescentes. Ou
esvaziar as latas de lixo de toda a vizinhança bem na
calçada de Ken, para que, quando ele saísse de manhã,
para mais uma árdua jornada de trabalho na tinturaria,
acabasse atolado até os tornozelos em cascas de batatas e
latas enferrujadas e sujas. Ou fazer um piquete na porta
da tinturaria, com cartazes dizendo: "Esse homem roubou
a minha mulher. Não lavem suas camisas aqui".
Embora não conseguisse compreender sua dor, eu
tentava amenizá-la. Mas tudo o que conseguia fazer era
empurrar comida e bebida nele, além de tratá-lo como um
convalescente inválido, sugerindo algumas das (poucas)
amenidades e distrações oferecidas pela nossa casa. Tipo
assim, perguntando a ele, em tom carinhoso, se queria
assistir à tevê. Futebol? Novela? Ou sugerindo que ele
fosse para a cama descansar um pouco.
Cama e tevê eram as nossas únicas atividades
recreativas.
Ele quase não comia, não importa o quanto eu insistisse.
Nem eu. Porém, apesar de saber que eu ficaria legal,
receava que ele começasse a definhar.
Antes do fim da primeira semana, eu já estava exausta.
Achava que o meu amor por ele serviria para me dar
uma energia ilimitada, e que quanto mais ele exigisse de
mim, melhor eu ia me sentir, e quanto mais eu fizesse por
ele, mais eu ia querer fazer.
Tentei com todas as forças agradá-lo, e isso me
desgastou, exigindo uma quantidade absurda de energia.
Eu o observava com avidez, prevendo qualquer
necessidade que ele pudesse sentir, e fazia as coisas para
ele, mesmo quando ele me assegurava de que não era
preciso.
De repente fiquei surpresa ao notar que me sentia um
caco.
As menores atividades já representavam uma
dificuldade imensa para mim.
Como o fato de eu levar pelo menos uma hora e meia de
viagem para o trabalho todas as manhãs. Eu ficara mal
acostumada com a viagem de meia hora que fazia quando
morava em Ladbroke Grove, lugar onde eu tinha inúmeras
linhas de metrô, ônibus e táxis para escolher.
Já havia esquecido como era ter de fazer baldeações
entre as linhas ao vir do subúrbio, onde havia apenas um
trem disponível e, se eu o perdesse, a espera pelo seguinte
seria de vinte minutos.
No passado eu fora uma especialista na antiga arte de
escolher as melhores estações de transferência entre as
linhas do metrô, para chegar mais rápido. O problema é
que eu morara na cidade por muito tempo e perdera a
maioria dessas habilidades.
Esquecera como cheirar o ar, olhar para o alto (e para o
painel eletrônico) e sentir que o meu trem ia sair em um
minuto e não ia dar tempo de comprar o jornal. Já não
conseguia sentir as vibrações de uma plataforma lotada e
notar em um relance que três trens seguidos passaram
lotados e, se estivesse a fim de entrar no seguinte, tinha
de começar a empurrar e me espremer entre as pessoas
para ficar bem na frente da porta de entrada do que ia
chegar.
Eu costumava saber dessas coisas por instinto. Passava
de uma linha para outra quase como se estivesse unida
em um mesmo corpo com o sistema de trens subterrâneos,
ser humano e máquinas trabalhando em sincronia e
harmonia perfeitas.
Aquele tempo terminara.
Embora antes eu sempre chegasse atrasada no trabalho,
poderia chegar a tempo, se quisesse. Agora, não tinha
escolha. Encontrava-me à mercê da companhia do metrô
de Londres e seus vários mecanismos para provocar
atrasos, objetos obstruindo as linhas, corpos atirados
sobre os trilhos, problemas de sinalização e tráfego intenso,
ou alguém que esquecera um pacdte cheio de sanduíches
de queijo sobre um banco e provocara um alarme de
bomba.
Tinha de acordar muito cedo. Antes de a primeira
semana terminar, descobri que papai tinha um pequeno
problema noturno, e tornou-se óbvio que eu teria de me
levantar ainda mais cedo.
No trabalho, eu ficava o tempo todo preocupada com ele,
pois logo ficou bem claro que ele não podia ser deixado
sozinho em casa por nenhum período de tempo. Tomar
conta de papai era parecido com vigiar uma criança. Do
mesmo jeito que uma criança, ele não tinha medo nem
avaliava as conseqüências dos seus atos. Achava que não
havia nada de mais em sair de casa e deixar a porta aberta.
Não simplesmente destrancada, mas escancarada. Não
que ele tivesse muito o que roubar, mas, enfim...
Assim que eu saía do trabalho, ia voando para casa.
Qualquer coisa poderia ter acontecido. Quase todo dia
havia uma crise de algum tipo.
Perdi a conta das vezes em que ele dormiu deixando a
torneira da banheira aberta ou o gás ligado. Ou uma
panela fervendo ou seca, queimando, esquecida sobre uma
das bocas do fogão. Ou sentado com o cigarro aceso
lentamente incendiando a almofada sobre a qual estava
recostado.
Muitas vezes eu chegava do trabalho exausta e
encontrava água quente escorrendo e pingando do teto da
cozinha. Ou sentia um cheiro de queimado e encontrava
uma frigideira toda preta, com o fundo carbonizado, sobre
o fogão aceso, enquanto papai dormia a sono solto,
desmoronado na poltrona.
Não havia mais noites na cidade para mim. Achei que
não ia ligar, e estava envergonhada por descobrir que me
importava, sim.
Ir para a cama cedo também não garantia que eu ia
dormir o suficiente, porque papai normalmente me
acordava no meio da noite e eu tinha de levantar para
ajudá-lo.
Papai urinou na cama na primeira noite em que voltei
para casa.
A tristeza que senti quase me atirou além dos limites da
sanidade.
"Não consigo suportar isso, não consigo!", pensei,
desesperada. "Por favor, meu Deus, ajude-me a suportar
essa dor."
Testemunhar a perda de toda a dignidade de meu pai
era quase insuportável para mim.
Ele me acordou mais ou menos às três da manhã para
me contar o que acontecera.
— Sinto muito, Lucy — disse ele, parecendo
humilhado. — Sinto muito, me desculpe.
— Está tudo bem — acalmei-o —, pare de se desculpar.
Dei uma rápida olhada em sua cama e vi que não havia
condições de ele continuar a dormir ali.
— Por que não vai dormir no quarto dos meninos
enquanto, o senhor sabe, limpo a sua cama? — sugeri.
— Pode deixar que eu vou — concordou.
— Então vá — encorajei.
— Você não ficou brava comigo? — perguntou ele, com a
voz mansa.
— Brava? — respondi. — Mas por que eu ficaria brava
com o senhor?
— Você vai até lá para me dar boa-noite?
— Claro que vou.
Então ele deitou na cama de solteiro de Chris e puxou
as cobertas até o queixo, sua pele enrugada de velho cheia
de pontas brancas da barba por fazer.
Acariciei seu cabelo grisalho, já ralo, e o beijei na testa,
inundada na mesma hora por um forte sentimento de
orgulho, e a sensação de o quanto estava cuidando bem
dele. Ninguém jamais poderia cuidar de nenhuma pessoa
tão bem quanto eu ia cuidar de papai.
Assim que ele tornou a pegar no sono, arranquei os
lençóis da cama e os coloquei para lavar. Em seguida,
peguei uma bacia com água quente, sabão e desinfetante e
esfreguei o colchão com força, para limpá-lo.
A única coisa que me deixou preocupada em toda aquela
história foi que, na manhã seguinte, quando papai
acordou e se viu na cama de Chris, ficou confuso e
assustado. Não sabia como tinha ido parar ali, pois não se
lembrava de nada do que acontecera durante a noite.
Quando ele molhou a cama, na noite em que cheguei,
achei que aquilo tinha acontecido pelo fato de ele estar
chateado, e que se tratava de um evento isolado. Mas não
era.
Acontecia quase todas as noites. Às vezes mais de uma
vez. Às vezes na cama de Chris também.
Quando isso acontecia, eu fazia com que ele se mudasse
para a cama de Peter. Felizmente ele conseguia se segurar
e nunca molhou a cama de Peter, porque não havia mais
nenhuma cama para onde ele pudesse ir, a não ser a
minha.
Ele sempre ia me acordar para me contar o que
acontecera e, nas primeiras vezes, eu levantava, o
consolava e o trocava de cama.
Depois das primeiras noites eu já estava tão exausta que
resolvi deixar a minha limpeza noturna para fazer de
manhã, antes de ir para o trabalho.
Eu não podia deixar aquilo sem desinfetar até a noite
seguinte, e pedir para papai ajudar na limpeza do colchão
estava fora de questão.
Em vez disso, coloquei o despertador para tocar trinta
minutos antes da minha nova hora de levantar, que já era
terrivelmente cedo. Assim, dava tempo de limpar o que
precisasse ser limpo ou lavado a cada manhã.
Quando ele me acordava para avisar que molhara a
cama, eu simplesmente o mandava trocar de cama e
tentava pegar no sono novamente.
Só que isso era muito difícil, porque ele ficava arrasado,
sentindo-se culpado toda vez que aquilo acontecia, e
queria conversar, dizendo que estava muito chateado por
causa daquilo e queria ter certeza de que eu não estava
brava com ele. Às vezes ele ficava nessa cantilena durante
horas, chorando e dizendo que era um fracasso, mas ia
tentar fazer com que aquilo nunca mais tornasse a
acontecer. Por estar tão cansada, eu achava difícil não
perder a paciência com ele. Isso, porém, ia arrasá-lo ainda
mais, e eu sabia que, se estourasse, ia acabar me sentir
corroída pela culpa, por isso ouvia tudo, dormia cada vez
menos horas e ficava ainda mais impaciente quando tudo
se repetia.
E todas as vezes, como se fossem cochichos no fundo da
minha cabeça, me vinha a lembrança do que minha mãe
dissera a respeito de ele ser alcoólatra. Vigiava tudo o que
ele bebia. E me parecia que era demais. Bem mais do que
eu me lembrava de vê-lo beber quando eu era mais jovem.
Por outro lado, eu não sabia se estava sendo apenas
influenciada pelo que minha mãe dissera, então tentava
empurrar essa idéia para fora da cabeça.
Talvez ele realmente estivesse bebendo demais, sim, mas
e daí? Sua mulher tinha acabado de abandoná-lo, por que
ele não deveria beber?






CAPÍTULO 69
Rapidamente, desenvolvi uma nova rotina na minha vida.
De noite, ia correndo até a lavanderia para secar os
lençóis que deixara para lavar antes de ir para o trabalho.
Depois, preparava o jantar dele. Sempre havia alguma
pequena crise para resolver, porque papai vivia queimando
as coisas, quebrando-as ou perdendo-as.
Não sei bem em que momento o cansaço se transformou
em ressentimento. Mantive essa mudança escondida por
muito tempo, porque sentia vergonha dela. Usando um
poço de sentimento de culpa e orgulho mal colocado,
consegui esconder o sentimento até de mim mesma por
algum tempo.
Comecei a sentir falta da minha vida antiga.
Queria sair, tomar um porre, ficar acordada até tarde,
pegar as roupas de Karen e Charlotte emprestadas e jogar
conversa fora com as meninas, especulando se os rapazes
eram bem-dotados ou não.
Estava cansada de ficar vigilante o tempo todo, e de
sempre ter de estar por perto para ajudar meu pai.
Uma grande parte do problema era o fato de que eu
queria ser perfeita para ele. Queria ser a pessoa que
tomava conta dele melhor do que qualquer outra.
Só que eu não podia fazer tudo sozinha e, depois de
algum tempo, também não queria. Aquilo deixara de ser
um desafio e se transformara em um fardo.
Eu tinha consciência de que era uma mulher jovem, e
que cuidar de papai não era responsabilidade minha.
Mas preferia morrer a ter de admitir isso.
Tomar conta de nós dois me parecia muito mais difícil
do que cuidar apenas de mim. Aquilo era muito mais do
que apenas o dobro.
E as despesas eram muito mais do que o dobro também.
Em pouco tempo, o dinheiro se transformou em uma
preocupação real. Antes, eu achava que tinha problemas
financeiros, sempre sentia que não havia grana suficiente
para comprar coisas essenciais, do tipo sapatos novos e
roupas. Agora, no entanto, estava aterrorizada por
descobrir que não tinha o suficiente nem para cobrir as
despesas essenciais do tipo comida para nós dois.
Não conseguia descobrir para onde aquele dinheiro todo
estava indo. Pela primeira vez na vida, fiquei com medo de
perder o emprego, um medo real.
Tudo se modificara agora que eu tinha um dependente.
Subitamente compreendi por que os noivos sempre
prometiam durante o casamento "até que a morte nos
separe". Deviam estar falando da morte financeira.
Só que eu não era casada com o meu pai.
Era fácil ser generosa com o dinheiro quando eu estava
com bastante grana. Jamais imaginei que poderia ter
ressentimentos com o meu pai. Sempre achei que, se ele
precisasse, eu lhe daria até mesmo a minha roupa do
corpo.
Mas isso não era verdade. À medida que o dinheiro
ficava mais curto, eu me ressentia de ter de dar alguma
grana a ele. Sentia má vontade quando ele dizia para mim
todas as manhãs, antes de eu ir para o trabalho: "Lucy,
meu amor, dá pra você deixar um dinheirinho em cima da
mesa? Umas dez libras, se você tiver."
Ressentia-me com as preocupações. Detestava ter de
pegar empréstimos no banco. Não gostava de ficar sem
dinheiro para gastar comigo mesma.
E odiava o que aquilo tudo estava fazendo comigo: a
mesquinharia de ficar vigiando cada garfada que ele dava,
ou ficar vigiando cada garfada que ele não dava. Já que eu
me dava ao trabalho de comprar comida para ele e
prepará-la, o mínimo que ele podia fazer era comer a droga
da comida, pensava, zangada.
Papai recebia auxílio-desemprego a cada duas semanas,
mas eu não sabia onde é que ele enfiava o dinheiro. Eu
bancava todas as despesas da casa só com o meu salário.
"Será que ele não podia, pelo menos, comprar um litro
de leite?", pensava às vezes, com uma raiva impotente.
Comecei a me sentir cada vez mais isolada. Tirando o
pessoa! que trabalhava comigo, a única pessoa que eu via
era o meu pai.
Nunca mais tornara a sair com os amigos com quem
costumava me encontrar. Não havia tempo, porque era
muito importante ir direto para casa assim que o
expediente terminava. Karen e Charlotte viviam dizendo
que iam até lá em casa para me fazer uma visitinha, mas,
pelo jeito como falavam, parecia que aquela era uma
viagem para um país longínquo. De qualquer modo, era
até um alívio que elas não aparecessem. Acho que não ia
conseguir fingir que estava feliz por duas horas inteiras.
Morria de saudades de Gus. Criava fantasias nas quais
ele aparecia para me resgatar. Só que não havia a mínima
chance de eu me encontrar com ele por acaso enquanto
estivesse morando em Uxbridge.
A única pessoa da minha outra vida que eu via de vez
em quando era Daniel. Ele estava sempre "dando uma
passadinha", e eu odiava aquilo.
Todas as vezes que eu atendia a campainha e era Daniel,
o meu primeiro pensamento era o quanto ele era grande,
sexy e atraente. Então, logo em seguida, pensava na noite
em que tentara me jogar para cima dele e ele se recusara a
me levar para a cama. Ficava vermelha de vergonha só de
lembrar a cena.
Para piorar, como isso já não fosse o suficiente para
aturar, ele fazia perguntas constrangedoras o tempo todo:
"Por que você está tão abatida?" e "Você vai até a
lavanderia outra vez?" e "Por que as panelas estão todas
queimadas e com os cabos quebrados?".
"Posso fazer alguma coisa para ajudar?", Daniel vivia
perguntando o tempo todo. Mas o meu orgulho me
impedia de contar a ele o quanto as coisas estavam difíceis
com o meu pai.
Eu respondia apenas: "Vá embora, Daniel, não há nada
para você fazer aqui."
A situação da grana piorou.
A coisa mais sensata a fazer seria desistir da minha
parte no apartamento em Ladbroke Grove. Afinal, o que eu
tinha a ganhar ajudando a pagar o aluguel de um lugar
aonde eu jamais ia?
Subitamente, porém, compreendi que não queria fazer
isso e ficava apavorada com a possibilidade de acabar
tendo de tomar essa atitude. Meu apartamento no centro
era o último elo que eu tinha com a minha antiga vida. Se
aquilo desaparecesse, isso seria um sinal de que eu nunca
mais voltaria, que ia ficar presa em Uxbridge para sempre.
CAPÍTULO 70
No fim de algum tempo, por puro desespero, fui fazer
uma consulta com o clínico geral do bairro, que, aliás, era
o Dr. Thornton, o mesmo homem que me receitara
antidepressivos muitos anos antes.
Para todos os efeitos, eu ia em busca de conselhos a
respeito do fato de papai molhar a cama toda noite, mas,
na realidade, era um velho e simples pedido de socorro.
Uma esperança de que ele me dissesse que o fato que eu
sabia ser verdade na realidade não era.
Eu detestava ir ao consultório do Dr. Thornton. Não só
porque ele era um velho rabugento, que já devia estar
aposentado há muitos anos, mas também, principalmente,
porque ele achava que toda a nossa família era constituída
de malucos. Ele já havia lidado comigo e com a minha
depressão. E houve aquela outra vez, quando Peter estava
com quinze anos e caiu-lhe nas mãos, por acaso, uma
enciclopédia médica. Peter ficou convencido de que tinha
todas as doenças que vira no livro. Mamãe ficava com ele
para cima e para baixo no ambulatório, enquanto ele ia
trilhando de forma hipocondríaca o caminho de todas as
doenças, em ordem alfabética. Exibiu sintomas de Acne,
Agorafobia, Alzheimer, Angina, Ansiedade e Antrax, até
que finalmente alguém o dedurou. Nem mesmo a Acne era
real. Embora a Ansiedade fosse verdade, por medo de que
a mamãe arrancasse o couro dele.
A sala de espera do médico parecia a ante-sala do Juízo
Final, entulhada de gente até as sancas, junto do teto
(modo de falar, porque paredes divisórias não têm sancas).
Havia um monte de crianças brigando umas com as
outras, mães berrando enlouquecidas e velhos tossindo os
pulmões para fora.
Quando finalmente me foi concedida uma audiência com
Sua Alteza Curandeiríssima, ele estava apoiado na mesa,
parecendo exausto e mal-humorado, já com a caneta
posicionada sobre o bloco de receitas.
— Em que posso ajudá-la, Lucy? — perguntou, com ar
cansado. Eu sabia que o que ele estava querendo dizer na
realidade era:
"Eu me lembro de você, menina. Você é uma daquelas
malucas da família Sullivan, não é? O que houve, pirou de
novo?"
— Bem, na verdade o problema não é comigo — comecei,
um pouco hesitante.
Na mesma hora eíe pareceu interessado.
— Trata-se de uma amiga sua? — perguntou ele,
esperançoso.
— Mais ou menos — concordei.
— Ela acha que pode estar grávida? — perguntou. — É
isso, não é?
— Não, é...
— Ela está com um sangramento misterioso?—
interrompeu ele, animado.
— Não, não, nada disso...
— Menstruações muito longas?
— Não...
— Caroço no seio?
— Não — respondi, quase rindo. — Não sou eu, não...
sério. Trata-se do meu pai,
— Ah, ele — exclamou ele, meio aborrecido. — Bem, e
por que ele não veio? Você não pode simplesmente vir no
lugar do doente, não faço diagnósticos virtuais.
— Como assim?
— Já estou farto disso — explodiu. — Agora é tudo na
base do telefone celular, da Internet, são só joguinhos de
computador e vôos simulados. Nenhum de vocês quer
saber mais da realidade.
— Hã... — disse, chocada, sem saber como reagir diante
dessa overdose de sarcasmo típica do luddismo,* Ele
estava ainda mais excêntrico desde que o vira pela última
vez.
— Todos vocês acham que não precisam fazer nada —
continuou ele, em voz alta. Seu rosto estava vermelho. —
Podem simplesmente ficar sentados em casa, com seus
modems e seus computadores, crentes que estão vivendo,
achando que não precisam levantar os traseiros
preguiçosos da cadeira nem para interagir com outros
seres humanos. Basta mandar um e-mail para o médico,
descrevendo os sintomas, não é assim?
Eu, hein! Médico, cura-te a ti mesmo. Acho que o Dr.
Thornton estava com um parafuso a menos.
De repente, tão subitamente quanto surgira, a agitação
desapareceu do seu rosto.
— Muito bem... Diga-me então, o que há de errado com
o seu pai? — E suspirou, recostando-se na cadeira.
— É um pouco embaraçoso — disse eu, meio sem graça.
— Por quê?
— Bem, ele não acha que esteja acontecendo alguma
coisa de errado com ele... — comecei, tentando relatar com
cuidado a complicada história.
— Olhe, se ele não acha que há coisa alguma de errado
com ele, e você acha que há, quem está com problema é
você — disse o Dr. Thornton, de forma brusca.
— Não, escute, o senhor não está entendendo...
— Estou sim — interrompeu. — Não há nada de errado
com Jamsie Sullivan. Se ele parar de beber, vai ficar ótimo.
— Talvez não fique assim tão ótimo — acrescentou,
analisando melhor, como se estivesse falando para si
mesmo. — Só Deus sabe em que estado o fígado dele está
agora. Provavelmente em estado desesperador.
— Mas...
— Lucy, você está me fazendo perder tempo. Estou com
uma sala de espera lotada lá fora, gente doente de verdade,
que precisa de cuidados. Em vez disso, recebo todas as
mulheres da família Sullivan entrando em minha sala
como uma praga, em busca de cura para um homem que
já decidiu que vai beber até cair duro, mortinho da silva.
— Como assim, todas as mulheres da família
Sullivan? — perguntei.
— Você... sua mãe. A sua mãe já é considerada parte da
mobília por aqui.
— Sério? — perguntei, com a voz aguda, pega de
surpresa.
— Bem, para falar a verdade, agora que estamos falando
nela, já não a vejo há algum tempo. Resolveu mandar a
filha no lugar, não foi?
— Hã... não foi isso não.
— O que foi então? O que aconteceu?
— Ela largou o meu pai — informei, esperando um olhar
compreensivo.
Em vez disso, ele soltou uma gargalhada. Ou quase isso.
O Dr. Thornton estava realmente se comportando de uma
forma muito estranha.
— Então ela finalmente tomou coragem — disse ele,
abafando uma risadinha enquanto eu olhava para ele, com
a cabeça meio de lado, perguntando-me o que havia de
errado com aquele homem.
E que papo era aquele de dizer que papai resolvera beber
até cair duro? Por que o assunto voltava sempre para
papai e a bebida?
Alguma coisa no fundo da minha mente começou a
descer lentamente e se encaixar no lugar, e isso me
assustou.
— E você assumiu a casa a partir do momento em que a
sua mãe caiu fora, não foi? — perguntou ele.
— Se o senhor está querendo saber se estou cuidando
do meu pai, a resposta é sim — afirmei.
— Lucy, vá para casa — suspirou ele. — Não há nada
que você possa fazer pelo seu pai, já tentamos de tudo. Até
ele próprio resolver parar de beber, ninguém mais vai
poder fazer nada por ele.
Mais coisas se encaixaram na minha cabeça.
— Olhe, o senhor entendeu tudo errado — afirmei,
lutando contra uma coisa que eu já sabia que era
verdade. — Não vim aqui para falar da bebida dele. Vim
consultá-lo porque há uma coisa errada com ele, que não
tem nada a ver com bebida.
— Ah, é? O quê? — perguntou o médico, com
impaciência.
— Ele anda molhando a cama.
Fez-se silêncio. Aquilo o obrigaria a calar a boca, pensei,
nervosa, esperando que fosse verdade.
— Urinar na cama é um problema emocional —
continuei, esperançosa. — Não tem. nada a ver com
bebida.
— Lucy — ele me olhou com ar sombrio —, isso tem
tudo a ver com a bebida.
— Não sei do que o senhor está falando — reagi,
sentindo-me enjoada com tanta apreensão. — Não
compreendo por que o senhor está me dizendo todas essas
coisas sobre o meu pai e a bebida.
— Não sabe? — Ele franziu a testa. — Mas você deve
saber, é claro que sabe. Como é que pode morar com ele
na mesma casa e não saber?
— Eu não moro com ele — disse —, pelo menos não
morava há anos. Acabei de voltar.
— Mas a sua mãe não lhe contou tudo a respeito
do...? — perguntou ele, olhando para o meu rosto
contorcido de ansiedade. — Ah. Ah, entendo. Ela não
contou.
Senti um tremor nas pernas, porque já pressentia o que
ele estava prestes a me contar. Aquele era o desastre que
andei a vida inteira evitando, e agora estava cara a cara
com ele. Esse era o problemão. Quase senti alívio por não
poder mais fugir para evitá-lo.
— Bem — suspirou o Dr. Thornton —, seu pai é um
alcoólatra crônico.
Meu estômago se retorceu todo. Eu já sabia e, no
entanto, não tinha a confirmação final.
— O senhor tem certeza? — perguntei.
— Você realmente não sabia, não é? — perguntou ele, de
forma menos mal-humorada.
— Não — disse eu, — Agora, porém, que o senhor está
me dizendo, não consigo entender como é que só fui
descobrir agora.
— Isso é muito comum — explicou ele, com ar
cansado. — Vejo isso o tempo todo, todo mundo sabe que
alguma coisa de muito irregular está acontecendo em uma
casa e age como se não houvesse nada errado.
— Oh! — exclamei,
— É como se as pessoas tivessem um elefante
circulando pela sala de estar. Todos ficam andando na
ponta dos pés em volta dele, fingindo que não o enxergam.
— Ah, é? — tornei a exclamar. — Bem, e o que posso
fazer?
— Para ser bem franco, Lucy — ele disse —, essa não é
bem a minha especialidade. Conheço apenas remédios
contra males físicos. Se o seu pai tivesse, digamos, uma
unha encravada ou problemas de intestino, eu poderia
sugerir um monte de tratamentos. Esse, porém, é um caso
de terapia familiar, psicodrama e problemas de
relacionamento e confronto. Não é o tipo de coisa com a
qual eu esteja familiarizado. Tudo isso apareceu depois
que me formei.
— Ah.
É um caso de terapia familiar, psicodrama e problemas
de relacionamento e confronto. Não é o tipo de coisa com a
qual eu esteja familiarizado. Tudo isso apareceu depois
que me formei.
— Ah.
— Mas você está se sentindo bem? — perguntou,
esperançoso.
— Esta revelação foi um choque para você? Porque de
choque entendo, isso eu sei tratar.
— Vou ficar bem — disse, levantando-me para sair.
Precisava sair dali para lidar com as coisas que ele
acabara de me contar. Tinha de sair bem depressa.
— Espere um instante — sugeriu ele, falando mais
rápido. — Eu posso lhe passar uma receita.
— Receita para o quê? — respondi. — Para um pai novo?
Um que não seja alcoólatra?
— Não fique assim.,. — disse ele. — Quer remédios para
dormir? Tranqüilizantes? Antidepressivos?
— Não, obrigada.
— Bem, tenho mais uma sugestão que pode ser de
alguma ajuda — anunciou ele, pensativo.
Senti a esperança ricochetear dentro do peito.
— Sim? — perguntei, quase sem fôlego.
— Forros de plástico para o colchão.
— Forros de plástico? — perguntei, desanimada.
— Sim, você sabe para que servem, eles evitam que a
urina penetre no colchão e...
Saí da sala.
Fui para casa em estado de choque. Quando cheguei,
papai estava dormindo sentado, com um buraco de brasa
recém-aplicado no braço da poltrona. Ele esticou o
pescoço para trás quando entrei.
— Será que você podia dar um pulinho no bar para mim,
Lucy? — pediu ele.
— Tudo bem — concordei, chocada demais para
argumentar. — O que quer que eu traga de lá?
— Qualquer coisa que você consiga comprar serve —
respondeu ele, humilde.
— Ah, sei... — disse, com frieza. — Então o senhor quer
que eu ainda pague pela bebida.
— Bem... — disse ele, com o olhar vago.
— Mas o senhor recebeu o auxílio-desemprego há menos
de dois dias — reagi. — O que fez com ele?
— Ah, Lucy. — E riu, de um jeito meio cruel. — Mas
você é mesmo igualzinha à sua mãe, cuspida e escarrada.
Saí de casa, abalada e enjoada. Será que eu era
igualzinha à minha mãe? Fiquei com aquilo na cabeça.
Quando cheguei ao bar, comprei para ele uma garrafa de
uísque decente, em vez daquele troço vagabundo do Leste
Europeu que ele geralmente consumia. Mas continuava
aflita, doida para gastar mais dinheiro com ele, então
comprei dois maços de cigarros, quatro barras de
chocolate e dois sacos de batatas fritas.
Quando minha despesa atingiu a marca das vinte libras,
consegui respirar tranqüila de novo, certa de que a minha
extravagância acabara de destruir qualquer semelhança
que houvesse entre mim e minha mãe.
Não conseguia parar de pensar no que o Dr. Thornton
me contara. Não queria acreditar nele, mas não havia
outro jeito. Tentei analisar papai do jeito que costumava
vê-lo e, a seguir, sob a luz do alcoolismo, e o ângulo do
alcoolismo combinava melhor. Serviu nele como uma luva.
A revelação do Dr. Thornton derrubara o primeiro
dominó, e o resto estava caindo sucessivamente, em uma
velocidade espantosa.
Como vinho tinto derrubado por sobre uma toalha
branca, aquele novo conhecimento foi se espalhando e
preenchendo toda a minha vida, de volta às minhas
lembranças mais antigas, manchando tudo por dentro.
E as coisas deviam, mesmo, parecer manchadas. Elas
estavam manchadas.
Fiquei analisando a minha vida, o meu pai, toda a
minha família, virando-a de cabeça para baixo, e de
repente tudo fez sentido. Estava detestando enxergar as
coisas do jeito que realmente eram.
O pior é que papai começou a me parecer diferente.
Como uma pessoa que eu jamais tivesse visto antes. Eu
não queria que a imagem do homem que eu amava tanto
começasse a oscilar e a desaparecer bem diante dos meus
olhos. Precisava amá-lo. Ele era tudo o que me restara.
Continuei a olhar para ele, disfarçadamente, pensando
em todas as coisas que haviam acontecido, todos os sinais.
Tentei controlar aquilo, ou pelo menos olhar para um
pedacinho da minha vida de cada vez, a fim de dosar as
partes desagradáveis, dividindo-as em fragmentos fáceis
de engolir. Tentava me proteger, para não me sentir
massacrada pela perda de tudo.
Mas não conseguia evitar a sensação de vê-lo com
outros olhos.
Ele já não me parecia mais tão adorável, bonito, fofinho
e divertido. Eu o via bêbado, torto, gaguejante, totalmente
incapaz e muito egoísta.
Não queria pensar essas coisas do meu pai, aquilo era
insuportável. Ele era a pessoa que eu mais amara no
mundo, talvez a única que eu tivesse realmente amado em
toda a minha vida. E de repente descobria que a pessoa
que eu adorara por tanto tempo nem sequer existia.
Não era de admirar que eu o achasse tão engraçado
quando menina. É fácil sermos brincalhões quando
estamos bêbados. Não era à toa que ele cantava tanto. Não
era de espantar que ele gritasse tanto.
A única coisa que me impedia de pirar era a esperança
de que talvez eu pudesse modificá-lo.
Só conseguia admitir para mim mesma, de forma
relutante, que ele tinha um problema de bebida se
pudesse me convencer de que era um problema
solucionável.
Eu já ouvira a respeito de pessoas com problemas de
bebidas e que melhoraram. O que eu precisava era
descobrir tudo a respeito daquilo. Eu ia cuidar dele. Meu
pai conseguiria voltar, curado, e todos viveriam felizes
para sempre.














CAPÍTULO 71
Então resolvi marcar outra consulta com o Dr. Thornton.
Estava cheia de esperanças, convencida de que havia um
jeito de salvar papai,
— Será que o senhor não pode lhe receitar um remédio
para que ele não sinta mais vontade de beber? —
perguntei, confiante de que devia existir no mercado um
medicamento contra isso.
— Lucy — disse ele —, não posso receitar nada que você
possa dar para ele,
— Certo — concordei na mesma hora. — Pode deixar
que eu vou trazê-lo até aqui em pessoa, e então o senhor
vai poder receitar.
— Não — disse ele, aborrecido. — Você não entendeu.
Não existe cura para o alcoolismo.
— Não fale essa palavra.
— Por que não, Lucy? É o nome do problema.
— Mas então... o que vai acontecer?
— Simplesmente ele vai morrer se não parar de beber
logo — respondeu o médico.
O medo me deixou zonza.
— Mas, então, temos que fazê-lo parar — disse,
desesperada. — Tenho certeza de que já soube de gente
que bebia demais e conseguiu parar. Como é que eles
conseguiram?
— A única coisa que sei que pode funcionar é o AA —
afirmou ele.
— O que é iss...? Ah, o senhor quer dizer os Alcoólicos
Anônimos? — perguntei, compreendendo, — Bem, acho
que ele não precisa ir até lá. Isto é, aquele lugar é cheio
de... de... alcoólatras.
— Exato!
— Mas, não, vamos falar sério. — Quase ri. — Homens
fedorentos, com calças presas na cintura por pedaços de
corda grossa e sacos plásticos em volta dos pés? Ora,
doutor, o meu pai não é nem um pouco desse jeito.
Embora, pensando bem, meu pai vivia com um cheiro
meio estranho, parecia não tomar tantos banhos quanto
deveria, mas eu não ia contar nada disso ao Dr. Thornton.
— Lucy — disse ele —, alcoólatras existem de todas as
formas e tamanhos, homens e mulheres, velhos e jovens,
fedorentos e perfumados.
— Sério? — perguntei, cética.
— Sério.
— Até mulheres?
— Sim. Mulheres com casas lindas, maridos, empregos,
filhos, roupas chiques, sapatos elegantes, perfumes caros
e cabelos maravilhosos... — E parou de falar
abruptamente, como se tivesse se lembrado de alguém em
particular.
— Mas, quando eles vão a esse lugar, o AA, o que
acontece?
— Eles não bebem mais.
— Nunca mais?
— Nunca mais.
— Nem mesmo no Natal, em festas de casamento, nas
férias e coisas desse tipo?
— Não.
— Acho que ele não ia topar isso não — declarei, meio
em dúvida,
— É tudo ou nada — explicou o médico. — No caso do
seu pai, tem que ser nada.
— Tudo bem — suspirei, — Se esta é a nossa única
opção, vamos contar a ele a respeito dessa organização, os
Alcoólicos Anônimos.
— Lucy — disse o Dr. Thornton, parecendo novamente
aborrecido. — Ele sabe do AA. Seu pai já sabe disso há
muitos anos.
Tentei trazer o assunto à baila naquela mesma noite,
como quem não quer nada. Fiquei tentando rodear a hora
de falar sobre aquilo até que, no fim, papai já estava
bêbado antes que eu começasse a falar.
— Papai — chamei-o, com a voz meio trêmula —, o
senhor não acha que anda bebendo um pouco demais?
Ele apertou os olhos e olhou para mim. Jamais o vira
daquela maneira. Ele parecia diferente. Como um velho
bêbado, desagradável e cruel, um daqueles que vemos
largado pelas ruas, cambaleando, berrando insultos
ininteligíveis e tentando bater em todos, mas em situação
de tão completa bebedeira que não consegue atingir
ninguém.
Ele estava me observando, analisando-me com atenção,
como se eu fosse o inimigo.
— Minha mulher acabou de me abandonar — disse, de
forma agressiva. — Você vai me negar um drinque depois
disso?
— Não — respondi. — Claro que não. Eu não era muito
boa nessas coisas.
— Entenda uma coisa, papai — continuei, cautelosa,
detestando cada segundo daquela conversa. Eu não era
mãe dele, era sua filha. Não era eu que devia estar
ralhando com ele, devia ser o contrário.
— O problema é o dinheiro — continuei, quase sem voz.
— Já entendi, já entendi! — reagiu ele, elevando a
voz. — Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Você é mesmo
igualzinha à sua mãe. Então por que não me abandona
também? Vá, ande logo, pode ir. A porta é bem ali.
Isso colocou um fim na conversa.
— É claro que não vou abandoná-lo — sussurrei. —
Jamais vou abandonar o senhor.
Não ia admitir, de jeito nenhum, que a minha mãe
estava certa em fazer o que fez.
Só que, pouco depois desse incidente, papai pareceu
piorar muito. Ou talvez eu é que estivesse mais alerta a
essa altura. Tornou-se óbvio que ele bebia todas as
manhãs. E provocava brigas no pub perto de casa. E umas
duas vezes a polícia o trouxe para casa, no meio da noite.
Mesmo assim, eu procurava me segurar. Não podia me
deixar esfacelar porque não havia ninguém para ajudar a
recolher meus cacos de volta.
Voltei ao Dr. Thornton mais uma vez, e ele simplesmente
balançou a cabeça de repente, assim que me viu entrar na
sala, e disse:
— Desculpe, mas não inventaram nenhuma cura
milagrosa. A não ser que isso tenha acontecido hoje de
manhã.
— Não, espere! — disse, nervosa. — Andei lendo a
respeito de hipnose. Será que o meu pai não poderia ser
hipnotizado para parar de beber? Sabe como é, do mesmo
jeito que as pessoas são hipnotizadas para parar de fumar
ou de comer chocolates?
— Não, Lucy — assegurou ele, parecendo chateado. —
Não há provas científicas de que a hipnose funcione
nesses casos, e, mesmo que houvesse, a pessoa que vai
ser hipnotizada tem que desejar desistir dos cigarros ou lá
o que seja. Seu pai nem ao menos admite que bebe demais,
portanto não há a mínima chance de ele chegar à
conclusão de que deve parar.
— Além do mais — acrescentou, com um ar
presunçoso —, se ele quiser parar de beber, então já
estará pronto para o AA.
Virei os olhos para cima. Ele e a droga dos Alcoólicos
Anônimos.
— Tudo bem — disse, desencorajada. — Esqueça a
hipnose. Que tal acupuntura?
— O que é que tem? — perguntou ele, sem expressão.
— Será que não podíamos fazer isso? Levá-lo a alguém
que lhe espete uma agulhinha na orelha? Ou em algum
outro lugar?
— Em algum outro lugar pode ser... — murmurou. Achei
aquilo detestável.
— Não, Lucy — encerrou ele.
Assim, como último recurso, peguei o telefone dos
Alcoólicos Anônimos no catálogo e liguei, a fim de
perguntar como eu devia proceder com o meu pai. Embora
eles tenham me atendido de forma muito gentil e
simpática, disseram-me que não poderiam fazer nada pelo
meu pai até o momento em que ele admitisse que tinha
um problema. Aquilo me fez lembrar que, realmente, eu já
sabia disso de algum lugar, de ouvir falar ou ler em uma
revista. E disseram mais uma coisa: se a pessoa admitir
que tem um problema, metade do problema já está
resolvido. Só que não acreditei naquilo.
— Ora, vamos lá... — argumentei, contrariada. — O
pessoal da organização de vocês existe para fazer as
pessoas pararem de beber, então vocês devem ter como
fazê-lo parar.
— Sinto muito — disse a mulher com quem eu estava
falando. — Ninguém pode fazer isso, a não ser ele próprio.
— Mas ele é alcoólatra — explodi. — Ninguém espera
que um alcoólatra consiga parar de beber por conta
própria.
— Não — concordou ela. — Mesmo assim, eles têm que
resolver parar por conta própria.
— Escute, acho que você não compreendeu o
problema — expliquei. — Ele sempre teve uma vida muito
difícil, a mulher dele acabou de abandoná-lo e, de certa
forma, ele tem que beber para superar isso.
— Não, não tem — retrucou ela. De forma gentil.
— Isso é ridículo — exclamei. — Será que posso falar
com o seu chefe? Preciso conversar com um especialista
no problema. Meu pai é um caso muito especial.
Ela riu. Isso me deixou ainda mais chateada.
— Todos nós achávamos que éramos casos muito
especiais — disse ela. — Se eu tivesse ganho um centavo
para cada alcoólatra que já me falou isso, estaria rica.
— Do que você está falando? — perguntei, com frieza.
— Bem, eu sou alcoólatra — explicou ela.
— É mesmo? — perguntei, surpresa. — Sua voz não
demonstra.
— E como você acha que a minha voz deveria
parecer? — perguntou ela.
— Bem... devia parecer arrastada, meio bêbada, imagino.
— Não tomo um drinque sequer há muito tempo, quase
dois anos — explicou ela.
— Nadinha?
— Nadinha.
— Ah, fala sério... nadinha mesmo?
— Não. Nadinha mesmo.
Ela não devia beber muito, pensei, se conseguiu se
manter abstêmia por dois anos. Provavelmente era aquele
tipo de pessoa que bebe umas quatro doses de sidra na
sexta-feira à noite.
— Olha, eu lhe agradeço — disse eu, já me preparando
para desligar. — Acho que o meu pai não é nem um pouco
como você. Ele bebe uísque, e começa a beber logo de
manhã cedo — expliquei, quase como se estivesse
contando vantagem. — Para ele ia ser muito mais difícil
parar. Jamais conseguiria ficar sem uma dose de bebida
por dois anos.
— Eu começava a beber logo de manhã cedo — afirmou
a mulher.
Engoli em seco. Não acreditava nela.
— Meu drinque favorito era conhaque. Puro —
continuou ela.
— Uma garrafa por dia — acrescentou quando viu que
eu continuava sem dizer nada. — Não era nem um pouco
diferente do seu pai.
— Mas ele é velho... — expliquei, em desespero. — Você
não me parece velha.
— Há gente de todas as idades no AA. Muitas pessoas
aqui são velhas. Olha, posso enviar alguém até aí para
conversar com o seu pai — sugeriu.
Só que pensei na mesma hora no quanto ele ficaria
zangado por causa daquilo, e como ia se sentir humilhado,
e achei melhor não.
Nesse momento, ela me deu o telefone de outro grupo
chamado Al-Anon, e disse que era uma organização que
auxiliava amigos e familiares de alcoólatras, e que eles
poderiam me ajudar.
Assim, como último recurso, liguei para eles. Cheguei
até mesmo a ir a uma de suas reuniões, na expectativa de
receber todo tipo de dica para ajudar papai a parar de
beber: como esconder a birita em pontos estratégicos da
casa, como batizar as bebidas, completando-as com água,
como persuadi-lo a ficar sem beber até depois das oito da
noite, esse tipo de coisa.
Fiquei revoltada ao ver que não havia nada desse tipo.
Todos ali ficavam falando o tempo todo sobre como
estavam tentando abandonar o marido alcoólatra,
namorado, esposa, filha, amigo ou sei lá mais quem a ficar
por conta própria, para que eles próprios conseguissem
viver as suas vidas. Um sujeito falou sobre a sua mãe, que
vivia bêbada, e como ele sempre acabava se apaixonando
perdidamente por mulheres que também tinham
problemas com a bebida.
Todos falavam de uma coisa chamada "co-dependência",
conceito que eu conhecia, por ter lido tantos livros de
auto-ajuda, mas não conseguia enxergar como poderia ser
aplicado ao meu caso e ao de meu pai.
— Você não pode modificar o seu pai — disse-me uma
mulher. — Ao fazer isso, você está apenas tentando evitar
os próprios problemas.
— Mas o meu pai é o meu problema — retruquei, com
cara de ofendida.
— Não, não é — rebateu ela.
— Como vocês podem ser tão insensíveis? —
perguntei. — Eu amo o meu pai.
— Você não acha que tem direito a uma vida melhor? —
quis saber ela.
— Mas não posso simplesmente abandoná-lo —
continuei, falando com firmeza.
— Isso talvez seja a melhor coisa que você vai fazer, em
toda a sua vida.
— A culpa ia me matar — argumentei, com cara de
santa.
— Culpa é apenas auto-indulgência — disse ela.
— Como ousa dizer isso? — reclamei. — Não faço idéia
do que você está falando.
— Fui casada com um alcoólatra — informou ela. — Sei
exatamente o que você está enfrentando.
— Sou apenas uma pessoa normal que, por acaso, tem
um pai com problemas com a bebida. Não sou como vocês,
que são um bando de...de...perdedores que precisam vir a
reuniões idiotas como essa para conversar sobre como vão
fazer para se livrar do alcoólatra que existe em suas vidas.
— Foi exatamente isso o que eu disse logo que vim para
cá — rebateu ela.
— Meu Deus — repliquei, zangada. — Tudo o que quero
é ajudá-lo a parar de beber. O que há de tão errado nisso?
— O que há de errado é que você não pode ajudá-lo —
respondeu ela. — Você é totalmente impotente com relação
a ele e ao álcool que ele consome. Mas não é impotente
com relação à sua vida.
— Eu tenho responsabilidades.
— Com você mesma. As coisas nunca são assim tão
simples. Quando a pessoa parar de beber, o co-
dependente não fica automaticamente bem.
— O que quer dizer com isso?
— Bem, que tipo de relacionamento você tem com outros
homens?
Não respondi.
— Muitas mulheres como nós — continuou ela —
passam um sufoco para conseguir relacionamentos felizes.
— Eu não sou uma mulher como você — disse, em tom
de deboche.
— Você ficaria abismada ao descobrir quantas de nós
têm o tipo errado de relacionamentos, sempre com o tipo
errado de homens — disse ela, com delicadeza. — Isso é
devido ao fato de que as nossas expectativas no
relacionamento sempre se baseiam no que aprendemos
convivendo com o álcool em nossas vidas.
— Olhe, vou lhe dar o meu telefone — completou. —
Ligue para mim se precisar conversar com alguém. A
qualquer hora.
Fui embora sem pegar o número.
Mais um caminho explorado. Mais um beco sem saída.
Agora, o que é que eu ia fazer?
Tentei dar menos dinheiro ao meu pai. Mas ele
implorava, chorava, e a culpa que eu sentia era tão
horrível que acabava entregando-lhe a quantia que ele
pedia, mesmo sabendo que eu de fato não tinha aquele
dinheiro.
Oscilava entre a sensação de estar furiosa e uma tristeza
tão profunda que parecia que o meu coração ia se partir.
Às vezes eu odiava o meu pai, e às vezes o amava.
Fui me sentindo cada vez mais aprisionada e
desesperada.





















CAPÍTULO 72
O Natal foi horrível. Não pude ir a nenhuma das
centenas de festas e porres coletivos para os quais fui
convidada. Enquanto todo mundo usava roupas curtas,
pretas e cintilantes (inclusive alguns homens), eu estava
no trem, a caminho de casa, em Uxbridge. Enquanto todas
as garotas estavam metendo o pau no chefe, ou se
agarrando com ele, eu estava em casa, pedindo pelo amor
de Deus a papai que ele voltasse para a cama, garantindo-
lhe que não tinha importância que ele tivesse molhado a
cama mais uma vez.
Acho que minha fada madrinha deve ter entendido
errado as instruções, porque, em vez de ela me dizer "você
vai dançar no salão a noite toda!", ela falou "você vai
limpar o xixi do salão a noite toda!".
Mesmo que eu tivesse alguma outra pessoa que tomasse
conta de papai, não dava para eu ir a lugar nenhum,
porque estava dura demais para pagar uma rodada de
drinques.
Papai começou a beber ainda mais, animado pela época
das festas de fim de ano. Não sei exatamente por que
aconteceu isso. Afinal de contas, ele não precisava de um
pretexto para beber mais.
Para piorar o meu estado de autopiedade, só recebi dois
cartões de Natal. Um de Daniel e outro de Adrian, da
locadora.
O Dia de Natal propriamente dito foi o pior de todos.
Chris e Peter não apareceram nem para me ver nem para
ver papai.
— Não quero que pareça que estou tomando partido. —
Foi a desculpa de Chris.
— Não quero deixar mãezinha chateada. — Foi a
desculpa de Al Jolson, isto é, de Peter.
Foi um dia horrível. A melhor coisa que aconteceu é que
papai já estava quase em coma alcoólico às onze da
manhã.
Estava tão desesperada para ter alguém com quem
conversar e desabafar, qualquer pessoa que servisse para
diluir a presença de papai, que me senti quase ansiosa
para voltar ao trabalho.

















CAPÍTULO 73
Já que o Natal fora tão terrível, eu, tolamente, esperava
a chegada do Ano-Novo com um pouco mais de esperança.
No dia 4 de janeiro, porém, papai embarcou em um
porre federal, um dos maiores das últimas semanas. Ele
obviamente planejara com cuidado a forma de obter a
grana para a bebida, porque, quando tentei comprar um
pacote de jujubas no caminho do trabalho, vi que todo o
meu dinheiro sumira da bolsa. Poderia ter corrido de volta
para casa e tentado evitar que ele bebesse a grana toda,
porém, por algum motivo, não quis me dar àquele trabalho.
Ao chegar à cidade, tentei sacar um pouco de dinheiro
em um caixa eletrônico, mas a máquina engoliu o meu
cartão. "Você está com sua conta no vermelho,
espantosamente além do limite, entre em contato com o
seu gerente o mais rápido possível", era o que a mensagem
piscava na tela. Jamais farei isso, pensei. Se eles me
querem, vão ter de vir até aqui para me pegar (jamais
conseguirão me agarrar com vida etc. etc).
Tive de pedir dez libras emprestadas a Megan.
Ao voltar para casa, encontrei debaixo da porta uma
carta oficial com palavras ameaçadoras. Era do meu banco,
instruindo-me a devolver o talão de cheques
imediatamente.
As coisas começaram a escapar ao meu controle.
Tentava superar o medo glacial que crescia dentro de mim.
Onde tudo aquilo ia parar?
Ao me encaminhar para a cozinha, alguma coisa estalou
debaixo dos meus sapatos. Olhei para baixo e vi que todo
o carpete da sala estava coberto de cacos de vidro. O piso
da cozinha também. A mesa estava cheia de cacos, pratos
quebrados, pires e tigelas. No quarto da frente, o tampo de
vidro fume da mesinha lateral estava em mil pedacinhos,
livros e fitas estavam todos espalhados pelo cômodo. Toda
a parte de baixo da casa (ou o que sobrara dela) estava em
pedaços.
Obra de papai.
Ele já ensaiara algumas sessões de quebradeira antes,
mas nada tão espetacular quanto aquilo.
Naturalmente, ele não estava em parte alguma.
Fui da cozinha para o quarto da frente e voltei para a
cozinha outra vez, sem conseguir acreditar na extensão
dos estragos. Se alguma coisa era quebrável, ele a
quebrara. Mesmo que não fosse que-brável, ele tentara
quebrá-la. Havia uma bacia amarela, de plástico, no chão
da cozinha, e papai tinha, pelo jeito, tentado destruí-la de
todas as formas, a julgar pela borda cheia de pontas e
dobras. No quarto da frente havia uma prateleira cheia de
medonhos bibelôs de porcelana, cãezinhos, meninos e
sinos, dos quais minha mãe gostava tanto. Pois o meu pai
eliminara todos da face da Terra. Senti uma fisgada de
tristeza pela minha mãe. Ele sabia muito bem o que
aquelas pecínhas significavam para ela.
Nem consegui chorar. Simplesmente comecei a limpar
tudo.
Quando estava agachada, recolhendo os caquinhos de
porcelana quebrada de cima do carpete, o telefone tocou.
Era a polícia, informando que papai acabara de ser preso.
Fui cordialmente convidada a ir até a delegacia para soltá-
lo, sob fiança.
Estava sem dinheiro e sem energia.
Resolvi chorar.
Depois, decidi ligar para Daniel.
Milagrosamente, ele estava em casa. Não sei o que teria
feito se ele não estivesse.
Eu estava chorando tanto ao telefone que ele não
conseguiu entender nada do que eu estava dizendo.
— É o papai, — Chorava, sem conseguir falar direito.
— O que aconteceu com ele?
— Nada... tudo.
— Lucy, o que houve, afinal? Aconteceu ou não alguma
coisa com ele?
— Ai, pelo amor de Deus, dá pra você vir até aqui agora
mesmo?
— Vou o mais rápido que puder — prometeu ele.
— Traga um monte de dinheiro — acrescentei.
Ele chegou dois cãezinhos de porcelana, um sininho e
meia mesinha mais tarde.
— Desculpe a demora, Lucy — pediu ele, assim que abri
a porta. — Custei a compreender você. É algum problema
com o seu pai?
Ele chegou mais perto para colocar os braços em volta
de mim, mas eu me afastei, meio zonza. A última coisa
que minha panela fervente de emoções precisava era de
um acesso de atração sexual.
— Foi sim, um problema com o meu pai — confirmei
enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto. — Ele
está...
— Ferido? — completou ele, para mim. — Sei, deu para
perceber que era algo desse tipo. Desculpe, mas não deu
para entender muita coisa, mas... nossa. O que aconteceu
nesta casa? Um terremoto?
— Não, é que...
— Vocês foram assaltados. Não toque em coisa alguma,
Lucy.
— Não, nós não fomos assaltados porcaria nenhuma —
explodi, com nova crise de choro. — Aquele idiota, canalha
e bêbado do meu pai é que destruiu todas essas coisas.
— Não acredito, Lucy. — Ele parecia horrorizado de
verdade, o que fez com que eu me sentisse ainda pior.
— Mas, por quê? — perguntou Daniel, passando as
mãos pelos cabelos.
— Sei lá. Mas as coisas ficaram ainda piores. Ele foi
preso.
— Desde quando a polícia prende uma pessoa por
quebrar coisas na própria casa? Nossa, este país está se
parecendo cada dia mais com uma grande delegacia.
Qualquer dia vai ser considerado ilegal deixar a torrada
queimar ou então comer sorvete direto da caixa, e...
— Cale a boca, seu liberal de araque, leitor de jornais
conservadores. — E comecei a rir, sem conseguir evitar. —
Ele não foi preso por quebrar bibelôs. Nem sei o motivo de
sua prisão, mas tremo só de pensar.
— Então ele vai ter que ser solto sob fiança?
— Isso mesmo.
— Certo, Lucy, direto para o fodomóvel. Vamos salvá-lo.
Papai tinha sido acusado de um milhão de coisas.
Bebedeira, causar desordem nas ruas, provocar tumultos,
acarretar danos à propriedade alheia, tentativa de
agressão, comportamento obsceno, e a lista seguia,
interminável. Jamais imaginei que chegaria o dia em que
eu ia ter de comparecer a uma delegacia para liberar meu
próprio pai sob fiança, depois de sua prisão.
Quando papai foi libertado da cela, estava manso como
um cor-deirinho, toda a energia e agressividade se fora.
Daniel e eu o levamos para casa e o colocamos na cama.
Então, preparei uma xícara de chá para Daniel.
— Muito bem, Lucy... e agora, o que nós vamos fazer a
respeito disso? — perguntou ele.
— Nós? "Nós" quem? — perguntei, na defensiva.
— Você e eu.
— O que isso tudo tem a ver com você?
— Pelo menos uma vez na vida, Lucy, só essa vezinha,
será que dá para você parar de entrar em confronto
comigo? Estou apenas querendo ajudar.
— Não quero a sua ajuda.
— Quer sim — afirmou ele. — Se não quisesse, não teria
me telefonado. Não é vergonha alguma, Lucy —
acrescentou. — Não há necessidade de você se mostrar tão
melindrada.
— Você também ficaria melindrado se o seu pai fosse
alcoólatra — exclamei, enquanto as lágrimas me escorriam
pelo rosto novamente. — Bem, talvez ele não seja
propriamente alcoólatra e...
— Ele é alcoólatra. — Daniel estava com ar sombrio.
— Pode chamá-lo do que quiser — solucei. — Estou
cagando e andando para ele ser alcoólatra ou não. Tudo o
que sei é que meu pai é um bêbado que está arruinando a
minha vida.
Solucei por mais algum tempo, colocando para fora o
fardo de meses e meses de estresse, e deixei tudo escorrer
rosto abaixo.
— Você sabia? — perguntei a Daniel. — Já sabia a
respeito do meu pai?
— Hã, eu... já.
— Mas como?
— Chris me contou.
— E por que ninguém contou para mim?
— Eles contaram.
— Bem, então por que ninguém veio me ajudar?
— Eles tentaram. Você não deixou.
— E o que vou fazer agora?
— Que tal sair fora e deixar outra pessoa tomando conta
dele?
— Ah, isso não — reagi, com medo.
— Tudo bem. Se você não quiser se mudar daqui, não
precisa fazer isso, mas há um monte de gente que tem
condições de ajudá-la. Além dos seus irmãos, há pessoas
que vêm prestar esse serviço em casa, assistentes sociais,
empresas de cuidados domiciliares e vários profissionais
desse tipo. Você vai continuar sendo capaz de cuidar dele,
mas não precisa mais fazer isso sozinha.
— Vou pensar no assunto.
À meia-noite, enquanto Daniel e eu ainda estávamos
sentados, com cara desgostosa, à mesa da cozinha, o
telefone tocou.
— O que será agora? — perguntei, receosa.
— Alô? — atendi.
— Será que eu poderia falar com Lucy Sullivan? —
gritou uma voz que me pareceu familiar.
— Gus? — perguntei, sentindo a alegria me inundar por
dentro.
— Aqui fala o próprio — berrou ele.
— Oi!! — Fiquei com vontade de sair dançando. — Como
foi que você conseguiu meu telefone?
— Encontrei aquela branqueia loura com cara de
assustada no McMullens, e ela me contou que você estava
morando onde Judas perdeu as botas. E, veja só... não é
que tenho pensado muito em você e sentido saudades?
— Sério? — Estava quase chorando de alegria.
— Sério, Lucy. Então eu falei para ela: "Diga para mim o
número do telefone da Lucy, que vou ligar e convidá-la
para dar uma saída comigo." Portanto, aqui estou, Lucy,
ligando e convidando você para dar uma saída comigo.
— Que ótimo — disse, maravilhada. — Eu adoraria me
encontrar com você.
— Então está certo. Fale qual é o seu endereço e eu vou
para aí já, já.
— Você quer dizer, neste instante?
— E quando mais?
— Olhe, agora não é um bom momento, Gus. — Eu me
senti muito ingrata.
— Bem, quando pode ser, então?
— Depois de amanhã,
— Combinado. Quinta-feira, depois do seu trabalho. Eu
passo lá para pegar você.
— Ótimo.
Desliguei e me virei para Daniel, com os olhos brilhando.
— Era o Gus — informei, quase sem fôlego.
— Deu pra sacar.
— Ele estava pensando em mim.
— Estava, é?...
— Quer me ver.
— Que sorte a dele você ser tão compreensiva.
— Por que você está tão pau da vida, hein?
— Será que não lhe ocorreu fazer um pouco de jogo duro
com ele, Lucy? Eu ficaria mais satisfeito se você não
tivesse cedido assim tão fácil.
— Daniel, o fato de Gus ter ligado foi a melhor coisa que
me aconteceu em muitos meses. Não estou com energia
para ficar brincando de joguinhos com ele.
Daniel deu um sorriso rápido e tenso.
— Então é melhor preparar toda a sua energia para
brincar de joguinhos com ele na quinta à noite — avisou
ele, bem direto.
— E daí se isso acontecer? — perguntei, zangada. — Eu
tenho direito a uma boa transa, sabia? Por que você está
com esse papo de pai antiquado pra cima de mim?
— Porque você merece muito mais do que ele. E
levantou-se da cadeira, perguntando:
— Tem certeza de que não precisa que eu passe a noite
aqui?
— Tenho sim, obrigada.
— E você vai pensar sobre aquilo que eu disse, a
respeito de arrumar ajuda para cuidar do seu pai?
— Tá, vou pensar.
— Eu ligo amanhã. Até logo.
Quando ele se inclinou para me dar um beijo... no
rosto... eu disse:
— Ahn... Daniel... dá para você me emprestar alguma
grana?
— Quanto?
— Ahn... vinte, se você puder. Ele me deu sessenta
libras.
— Divirta-se com Gus — disse ao sair.
— Este dinheiro não é para gastar com Gus — repliquei,
na defensiva.
— Eu não disse que era.






















CAPÍTULO 74
Fiquei além da empolgação só de pensar que ia rever o
Gus. Obviamente, pelo fato de eu ter estado fora de
circulação por uns três meses, um pouco da animação era
devido à velha síndrome do confinamento. Mas não se
tratava disso, apenas. Eu ainda era louca por ele. Jamais
perdera as esperanças de que as coisas poderiam dar certo
para nós. Estava tão animada que consegui deixar minhas
preocupações com meu pai em compasso de espera.
Quando contei ao pessoal do escritório que ia me
encontrar com Gus, foi um rebuliço. Meredia e Jed
soltaram um suspiro de alegria, depois deram os braços
um ao outro e vieram pulando pela sala, derrubando uma
cadeira pelo caminho. Então, ao mudar de direção, o
generoso quadril de Meredia esbarrou em um porta-
objetos que saiu voando e foi parar no chão, espalhando
clipes, rolos de fita adesiva, canetas e marca-textos por
toda parte.
Eles ficaram quase tão agitados quanto eu,
provavelmente porque tanto sua vida social quanto a
romântica andavam monótonas, como a minha, e eles
estavam contentes por algum tipo de diversão, pessoal ou
por tabela.
Só Megan pareceu não gostar da notícia.
— Gus? — perguntou ela. — Você vai tornar a sair com
Gus} O que aconteceu? Onde foi que você o achou?
— Eu não o achei, ele ligou para mim.
— Ele é um canalha mesmo — exclamou.
Houve um coro de discordância em uníssono de todos
nós.
— Não, ele não é canalha não! — berrou Meredia.
— Deixe-o em paz, ele é um grande sujeito! — gritou Jed.
— Então, o que houve? — quis saber Megan, ignorando-
os. — Ele ligou para você... e depois?
— Pediu para sair comigo — disse eu.
— E explicou o porquê desse pedido? — interrogou
ela. — Ele falou o que queria de você?
— Não.
— E você vai se encontrar com ele?
— Vou.
— Quando?
— Amanhã.
— Podemos ir junto? — implorou Meredia, enquanto se
agachava para recolher um monte de grampos do chão.
— Não, Meredia, dessa vez não — determinei.
— Não acontece nada de interessante conosco —
reclamou ela, fazendo beicinho.
— Ah, não diga isso — lembrou Jed, de forma jovial,
tentando animá-la. — E quanto à simulação de incêndio?
Tínhamos passado por uma simulação de incêndio no
prédio, uma semana antes, e, para ser justa, foi muito
divertido. Especialmente porque fomos avisados por
antecipação. É que Gary, do Departamento de Segurança
do edifício, deu a dica para Megan, em uma inútil
tentativa de conseguir algum avanço em suas investidas
sexuais sobre ela. Assim, duas horas antes de o alarme
disparar, já estávamos com os casacos, bolsas e sacolas
prontinhos, em cima da mesa, preparados para a largada.
De acordo com o memorando que circulara algum tempo
antes, eu deveria ser monitora no caso de combate a
incêndios, mas não tinha a menor idéia de como proceder,
e ninguém me explicou nada. Assim, em vez de ficar por
ali, aproveitamos a muvuca completa que se instalou e
fomos correndo para a Oxford Street, a fim de visitar
algumas lojas de sapatos.
— Não se encontre com ele, Lucy — disse Megan.
Parecia preocupada.
— Está tudo bem — tranqüilizei-a, comovida por sua
atitude protetora. — Eu sei cuidar de mim.
Mas ela balançou a cabeça, afirmando:
— Ele não é flor que se cheire, Lucy.
E em seguida permaneceu estranhamente calada.
No dia seguinte, quando Jed chegou para trabalhar,
informou que não conseguira pregar o olho a noite toda,
de tanta empolgação. Depois, reclamou o dia inteiro que
estava com friozinhos na barriga.
Fez questão de examinar cuidadosamente minha
aparência, antes de meu encontro com Gus.
— Boa sorte, agente Sullivan — desejou-me. — Todos
nós contamos com você.
Já fazia muito tempo desde que eu me sentira assim tão
jovem e feliz. Como se a vida apresentasse novas
possibilidades.
Gus estava me esperando do lado de fora do prédio, e
dava a impressão de estar trocando insultos com Winston
e Harry (depois descobri que estava mesmo). Assim que eu
o vi, meu estômago deu uma cambalhota. Ele estava lindo,
com o cabelo preto e brilhante caindo por sobre os olhos
verdes.
Os quatro meses que haviam se passado não
prejudicaram em nada o seu jeito atraente.
— Lucy! — berrou ele assim que me viu, e veio
caminhando lentamente na minha direção, com um
balanço sexy, abrindo os braços.
— Gus — sorri, quase sem fôlego, torcendo para que ele
não reparasse que as minhas pernas estavam tremendo de
excitação e nervoso.
Ele atirou os braços em torno do meu corpo e me
abraçou com força, mas a minha felicidade, já pronta para
decolar, freou bruscamente ao sentir o cheiro de álcool
que emanava dele.
Não era nem um pouco estranho para Gus feder a álcool.
Na verdade, era mais estranho quando ele não fedia a
álcool. Aquela era uma das coisas que eu achava atraente
nele.
Ou, melhor, havia, no passado, achado atraente nele.
Pelo jeito, aquilo mudara em mim.
Por um momento senti uma fisgada bem definida de
raiva: se eu estivesse a fim de passar a noite com um
bêbado fedorento, poderia ter ficado em casa mesmo, com
papai. Minha noitada com Gus era para ser a Grande
Escapada, e não uma figurinha repetida.
Ele recuou um pouco para poder me olhar melhor, mas
manteve os braços em volta de mim enquanto sorria,
sorria, sorria sem parar.
Acabei me animando.
Estava tonta por me sentir assim tão perto dele, apenas
a um beijo de distância daquele rosto lindo e sexy.
Estou com Gus, pensei, sem acreditar. Estou com o
homem dos meus sonhos nos braços.
— Vamos beber alguma coisa, Lucy — sugeriu ele.
Senti aquela sensação de novo, uma fisgada de
aborrecimento.
Ora, surpresa!... surpresa!, pensei, chateada. Imaginara
que íamos fazer alguma coisa mais criativa na noite da
nossa reconciliação. Eu era mesmo uma idiota.
— Vamos lá! — Ele me agarrou e começou a caminhar
bem depressa. Para falar a verdade, ele quase saiu
correndo. Devia estar doido para tomar um drinque,
pensei, enquanto eu tropeçava, correndo atrás dele.
Chegamos a um pub próximo, onde já havíamos estado
uma montanha de vezes no passado. Era um dos pubs
favoritos de Gus, ele conhecia o barman e quase toda a
clientela.
Ao passar pela porta, atrás do apressado Gus,
subitamente me dei conta... Eu odeio este pub. Jamais
reparara naquilo antes, mas sempre me sentira pouco à
vontade ali.
O lugar era sujo e ninguém limpava as mesas, nunca.
Vivia cheio de homens que ficavam me encarando sempre
que eu entrava, e os atendentes eram extremamente
grosseiros com as mulheres. Ou talvez agissem assim
apenas comigo.
Tentei manter uma atitude positiva, porém.
Estava ali com Gus, e ele continuava lindo. Era uma
graça, muito divertido e sexy. Apesar de continuar usando
aquele casaco de pele de carneiro medonho, que eu
suspeitava que tinha pulgas.
Houve uma momentânea quebra da tradição no
momento em que Gus pediu o primeiro drinque: foi ele que
pagou.
E transformou aquele gesto em uma superprodução
cheia de efeitos especiais.
Foi assim:
Naturalmente, assim que nós entramos, sentamo-nos à
mesa e eu peguei a bolsa na mesma hora, como sempre
fazia quando estava com Gus. Quando estava com todo
mundo, lembrei, com ar sombrio. Em vez de me dizer o
que queria beber, como normalmente fazia, ele deu um
pulo e só faltou rugir, dizendo:
— NÃO, NÃO! De jeito nenhum!
— O que foi? — perguntei, meio irritada.
— Guarde o seu dinheiro, guarde o seu dinheiro — disse,
fazendo amplos gestos com o braço e acenando para mim
no estilo "deixe que eu pago", do mesmo jeito que os tios
bêbados fazem em casamentos. — Essa rodada é por
minha conta!
Aquilo foi como um raio de sol que saía das nuvens. Gus
tinha dinheiro. Era um sinal que significava que tudo ia
acabar bem, que Gus ia cuidar direitinho de mim.
— Está bem — sorri.
— Não, eu insisto — disse, falando mais alto, fazendo
movimentos com as mãos para a frente e para trás na
direção da minha bolsa.
— O.k. — disse eu.
— Vou me sentir insultado se você não me deixar pagar
a bebida. Vou considerar uma ofensa pessoal se você não
me permitir pagar essa rodada — insistiu ele, magnânimo.
— Gus — disse eu. — Eu não estou discutindo.
— Oh... oh... tudo bem, então. — E pareceu meio
decepcionado. — O que você vai querer?
— Um gim-tônica — murmurei, humilde,
Ele voltou logo depois com o meu gim, uma tulipa de
cerveja e uma dose de uísque para ele.
Seu rosto estava contorcido de indignação.
— Puxa vida — reclamou. — Isso é roubo em plena luz
do dia. Sabe quanto é que me cobraram por esse gim-
tônica?
Muito menos do que vou ter de gastar para pagar a
próxima rodada, pensei. Por que será que ele precisava
sempre tomar dois drinques de cada vez, quando todo
mundo tomava apenas um?
Tudo o que respondi, porém, foi um fraco "desculpe",
porque eu não queria arruinar a noite com a qual sonhara
tanto.
O mau humor dele não durou muito. Nunca durava.
— Saúde, Lucy. — Sorriu, brindando com a tulipa dele
de encontro ao meu gim de custo exorbitante.
— Saúde. — Acompanhei, tentando aparentar
sinceridade.
— Bebo, logo existo—filosofou ele, dando um sorriso e
bebendo metade da cerveja de um gole só.
Sorri, mas tive de fazer um esforço. Normalmente eu
adorava as observações geniais que ele fazia, mas não
naquela noite.
As coisas não estavam caminhando do jeito que eu
imaginara.
Eu não sabia exatamente o que conversar com Gus, e
ele, pelo jeito, nem queria se dar ao trabalho de falar
também. Antes, sempre tínhamos um monte de coisas
sobre o que conversar, lembrei, com melancolia. De
repente, ali havia apenas um clima estranho e silêncios
tensos, pelo menos de minha parte.
Queria desesperadamente que tudo desse certo, queria
forçar as coisas para quebrar aquela barreira de tensão,
mas não estava com disposição nem de dar a partida na
conversa.
Gus também não fazia esforço algum nesse sentido. Na
verdade, ele nem parecia estar reparando no silêncio. Não
estava reparando em mim também, conforme descobri
depois de algum tempo.
Era um homem em paz consigo mesmo e com o mundo,
bem acomodado em sua cadeira, com seus drinques e
seus cigarros, confortável, satisfeito com tudo aquilo,
inspecionando o pub, acenando com a cabeça e piscando
para as pessoas que conhecia, um espectador do mundo.
Tão relaxado quanto um lagarto ao sol.
Sorrindo, ele matou os dois drinques em uma velocidade
recorde, foi até o bar e voltou com mais duas doses.
Nem ao menos me ofereceu uma bebida. Nem uma dose
pequena. Por falar nisso, agora que eu estava lembrando o
fato, ele quase nunca havia me oferecido coisa alguma. Só
que eu não me lembrava de ter me incomodado com aquilo
antes. Bem, certamente me sentia incomodada naquele
momento.
Ficamos sentados ali, calados, eu sem dizer uma palavra,
muda devido às minhas expectativas não alcançadas,
enquanto ele bebia seus dois drinques e fumava um
cigarro. De repente, entornou de um só gole o que restava
da cerveja e, antes mesmo de terminar de engolir, falou,
ofegante:
— Agora é a sua vez, Lucy.
Como um robô, levantei-me da cadeira e perguntei o que
ele queria.
— Uma cerveja e uma dose de uísque — pediu ele, com
cara de inocente.
— Algo mais? — perguntei, sarcástica.
— Muito obrigado, Lucy — replicou ele, parecendo
deliciado. — Já que você é uma garota tão legal, podia me
trazer um pouco de fumo.
— Fumo?
— Cigarros.
— Ah, cigarros? De que marca?
— Benson and Hedges.
— Quantos? Uns mil?
Ele pareceu achar aquilo muito engraçado.
— Apenas os vinte que vêm no maço, a não ser que você
queira realmente me comprar mais.
— Não, Gus, não quero — disse, com frieza.
Enquanto esperava para ser atendida no bar, fiquei
tentando descobrir por que estava tão pau da vida.
A culpa era só minha, decidi. Eu mesma preparara o
meu desapontamento. Chegara ali com tantas expectativas,
e tão carente...
Ansiava que Gus fosse legal comigo, me cobrisse de
atenções, me dissesse que sentiu saudades, que eu era
linda e que ele estava loucamente apaixonado por mim.
E ele não fizera nada disso. Não perguntou como eu
estava, não explicou por onde andara nem por que não me
procurara por quase quatro meses.
Mas talvez eu exigisse demais dele. Estava me sentindo
tão infeliz com o resto da minha vida que tinha a
esperança de que Gus pudesse ser o meu salvador.
Alguém que cuidasse de mim, alguém a quem eu pudesse
entregar a minha vida, dizendo "tome, cuide disso".
Queria o serviço completo.
Relaxe, aconselhei a mim mesma enquanto tentava
olhar fixamente para o barman. Divirta-se. Pelo menos
você está com ele. Ele não apareceu de volta? E continua o
mesmo cara esperto e divertido que sempre foi. Então, o
que mais você quer?
Voltei para a mesa, carregada de drinques e esperanças
renovadas.
— Muito bem, Lucy — recebeu-me Gus, e caiu de boca
nos copos com a avidez de uma mulher no período pré-
menstrual que se vê diante de uma tigela de creme de
nozes.
Segundos depois, anunciou:
— Vamos tomar mais um. E lembrou de
acrescentar:
— Você paga!
Alguma coisa despencou dentro de mim e se despedaçou
no chão.
Eu não era uma instituição de caridade. Pelo menos
deixara de ser.
— E mesmo? — perguntei, sem conseguir esconder a
minha raiva. — Desde quando eles começaram a aceitar ar
fresco como moeda corrente?
— Sobre o que está falando, Lucy? — perguntou ele,
olhando para mim, desconfiado. Sentiu algo em mim com
o qual ele não estava nem um pouco familiarizado.
— Gus — expliquei, com uma satisfação amarga. —
Fiquei dura. Aquilo não era bem verdade, sobrara um
pouco para eu voltar para casa, e até mesmo para
comprar um pacote de batatas fritas no caminho, mas eu
não queria contar, pois ele ia tentar me adular para
conseguir tudo se soubesse que ainda havia algum.
— Você é uma mulher muito cruel. — Riu ele. —
Imagine, tentando me apavorar desse jeito...
— Estou falando sério.
— Ah, sai dessa, pára com isso, Lucy — exclamou, em
tom de brincadeira. — Sei que você tem um daqueles
cartões mágicos que fazem a maquininha cuspir dinheiro
pelo buraco e tocar um sininho.
— Sim, mas...
— Bem, e então, o que estamos esperando? Vá até lá,
Lucy, avante, não temos tempo a perder. Corra até lá e
pegue a bufunfa enquanto fico aqui tomando conta do
nosso lugar.
— E quanto a você, Gus?
— Bem, acho que vou aceitar mais uma cerveja
enquanto você vai até lá, obrigado.
— Não, estou perguntando se você não tem um cartão
eletrônico, Gus.
— Eu?!... — Ele deu um urro e começou a rir sem
parar. — Você está falando sério?
Ele ria e ria, sem parar, e de repente fez cara de quem
achava que eu tinha pirado.
Fiquei sentada, em silêncio, esperando que ele
terminasse a cena.
— Não, Lucy — continuou ele, limpando a garganta e
finalmente se acalmando, embora a sua boca continuasse
tentando rir. — Não tenho um cartão desses não, Lucy.
— Bem, nem eu, Gus.
— Eu sei que você tem — ele debochou. — Já vi você
usando um.
— Mas eu não tenho mais.
— Ah, pára com isso.
— Sério, Gus.
— Ué... por que você não tem mais?
— A máquina engoliu o meu cartão. Ele foi bloqueado,
porque eu não tinha mais dinheiro algum na conta.
— É mesmo? — Ele pareceu aturdido.
Aquilo ia mostrar a ele, pensei, com uma certa
satisfação.
Depois, me senti envergonhada. Não era justo descontar
tudo em Gus só porque eu estava chateada com papai.
Subitamente me deu vontade de contar a Gus tudo o
que estava me acontecendo, explicar a ele o motivo de eu
estar assim tão estranha e mal-humorada. Queria
compreensão e perdão, solidariedade e afeto. Assim, sem
esperar nem mais um segundo, lancei sobre ele toda a
saga, detalhando como eu tinha ido morar com o meu pai,
estava bancando tudo em casa e dava dinheiro para ele,
até ficar sem nada para mim...
— Lucy — interrompeu Gus, de forma gentil.
— Sim? — atendi, esperançosa, já esperando um pouco
de apoio.
— Já sei o que vamos fazer — concluiu ele, com um
sorriso brilhante.
— Sabe? — Que bom!, pensei.
— Você tem um talão de cheques, não tem? —
perguntou ele. Talão de cheques. Talão de cheques?! O
aue aquilo tinha a ver
com o fato de eu estar infeliz?
— Olha, é que eu conheço o barman — continuou Gus,
com os olhos brilhando. — Ele pode descontar um cheque
seu se eu der o meu aval.
Engoli em seco. Não era aquilo que eu esperava ouvir.
— Vamos, preencha o cheque, Lucy, e estamos
novamente no páreo. — E sorriu.
— Mas, Gus. — Embora eu não devesse, estava me
sentindo como uma estraga-prazeres. — Estou sem
dinheiro na conta. Na verdade, já até estourei o limite do
cheque especial, e estourei bonito.
— Ah, não se preocupe com isso — aconselhou Gus. —
Trata-se apenas de um banco, o que podem fazer contra
você? A estrutura econômica é baseada no roubo, Lucy,
vamos derrotar o sistema.
— Não — disse, quase pedindo desculpas. — Eu não
posso fazer isso.
— Bom, isso é uma falta de sorte sua, Lucy. Com esse
cavalo manco que você está montando, é melhor voltar
logo para casa — disse ele, com cara amarrada. — Tchau,
Lucy, foi bom rever você.
— Ah, tá legal — suspirei, pegando a bolsa e o talão de
cheques, tentando não pensar no aterrorizante telefonema
que fatalmente eu ia receber do meu gerente.
Gus tinha razão, pensei. Afinal de contas, tratava-se
apenas de dinheiro. Não consegui, porém, evitar a
sensação de que era eu que dava e dava, sempre, o tempo
todo, e de repente desejei alguém que desse alguma coisa
para mim, só para variar.
Preenchi um cheque, e Gus foi direto para o balcão, com
ele na mão. Pelo tempo que demorou, e pela cara do
barman, acho que ele não estava sendo muito fácil de
convencer.
Finalmente Gus voltou, cheio de drinques.
— Missão cumprida. — Sorriu, enfiando um monte de
notas no bolso. Reparei que a braguilha de sua calça
estava presa por um alfinete de fralda.
— Cadê meu troco, Gus? — pedi, tentando manter a voz
sem raiva.
— Ei, o que há com você, Lucy? — resmungou ele. —
Você está muito mão-fechada e implicante comigo.
— E mesmo? — Estava sentindo enjôo de tanto segurar
a fúria. — Por que você acha que estou sendo pão-dura e
implicante? Não fui eu que banquei quase todos os
drinques que tomamos esta noite?
— Bem — disse ele, com cara de indignado. — Se você
vai começar a me jogar as coisas assim na cara, me diga
logo quanto é que estou lhe devendo que devolvo, assim
que conseguir alguma grana.
— Ótimo! — reagi. — Vou fazer isso mesmo.
— Tome, pegue o seu troco — disse ele, jogando em cima
da mesa um monte de notas amarrotadas e algumas
moedas.
Chegáramos ao ponto em que ficara óbvio que a noite
estava arruinada, sem salvação. Não que tivesse sido um
sucesso até ali. Pelo menos, até aquele momento, eu ainda
tinha esperança de que as coisas fossem melhorar.
Sabia que aquilo era um insulto, mas peguei uma por
uma das notas e comecei a contar o dinheiro que sobrara.
Eu preenchera um cheque de cinqüenta libras, e ele me
devolvera mais ou menos trinta. Drinques para dois,
mesmo um dos dois sendo Gus, não custava vinte libras.
— Cadê o resto do meu troco? — perguntei.
— Ahn, o resto?... — Ele estava chateado, mas tentava
disfarçar. — Achei que você não ia se importar e paguei
um drinque para Vinnie, o barman, para que ele facilitasse
as coisas e trocasse o cheque. Achei que era uma coisa
justa e decente.
— E quanto ao resto?
— É que na hora em que eu estava no balcão, Keith
Kennedy apareceu e achei que devia acertar as coisas com
ele também.
— Acertar as coisas com ele?
— Pagar um drinque para ele, que tem sido uma pessoa
tão legal comigo ultimamente, Lucy.
— Mesmo assim, ainda fica faltando um bocado de
grana — afirmei, admirando a própria firmeza.
Gus deu uma risada, mas me pareceu aguda e meio
forçada.
— É que eu... estava devendo dez libras para ele —
admitiu, finalmente.
— Você devia dez libras a ele e resolveu pagar a dívida
com o meu dinheiro? — perguntei, com a maior calma.
— Hã... foi. Não pensei que você fosse se importar. Você
é igual a mim, Lucy, um espírito livre. Não dá importância
ao dinheiro.
E foi em frente, começando a cantar a cançãoImagine,
de John Lennon, só que o único verso do qual ele parecia
se lembrar era aquele que falava como seria o mundo se
ninguém tivesse posses. Gus apresentou um tremendo
show, abrindo os braços com ar de súplica e fazendo
caretas criativas enquanto cantava: — Ó, Lucy, imagine
um mundo sem posses... imagine um mundo sem posses...
Vamos, cante comigo, você sabe a letra... Imagine... sem
posses... Ta-rã-rã, dã-dã-dã-dã...
Parou de cantarolar, esperando que eu começasse a rir.
Como não ri, ele continuou cantando o refrão, só que
mudando a letra:
— Você diz que eu sou frouxo... Que eu não passo de
um bun-dão...
No passado, eu ficaria encantada com a sua cantoria.
Teria morrido de rir, por fim comentaria que ele não era
fácil, e o perdoaria. Mas, naquela noite, não.
Não dei uma palavra. Não consegui. Estava cheia de
tanta indignação. Sentia que era uma idiota completa.
Estava envergonhada demais comigo mesma para sentir
raiva.
A noite inteira fora um exercício para tentar tapar o sol
com a peneira, tentando esconder de mim mesma o
quanto estava chateada. Agora, a máscara caíra e tudo
estava às claras.
Por que será que havia no ar a estranha sensação de
que aquilo vivia acontecendo comigo?, perguntei a mim
mesma. Fiz uma rápida avaliação da minha vida e
compreendi que o motivo era exatamente este: aquelas
coisas viviam acontecendo comigo, de verdade.
Acontecia todos os dias com o meu pai. Eu acabava me
metendo em apuros financeiros só para conseguir algum
dinheiro para ele.
Não era de estranhar que a situação me parecesse tão
familiar.
Gus não vivia se encostando em mim para conseguir
alguma grana? Ele jamais tivera um centavo.
Ficava feliz de lhe dar dinheiro, no início. Achava que o
estava ajudando, que ele precisava de mim.
Perceber tudo aquilo de repente me deu enjôo. Eu era
uma tola, uma babaca. Todo mundo já sabia disso, menos
eu. Era uma bundo-na. Vejam, a pobre Lucy, vive tão
desesperada em busca de amor e afeto que está disposta
até a pagar por isso. Ela é capaz até de lhe dar a roupa do
corpo, pois acha que você merece usá-la mais do que ela.
Você jamais vai passar fome ao lado de Lucy, mesmo que
ela própria passe. Mas e daí? O que importa ela?
Gus não era o único namorado que eu bancara
financeiramente. A maioria deles não tinha empregos. E
mesmo os que possuíam empregos conseguiam viver
sempre duros.
Por todo o resto da noite, senti como se estivesse fora do
meu corpo, olhando para mim e Gus. Ele ficou
completamente bêbado.
Eu devia ter me levantado dali e ido embora, mas não
consegui. Estava fascinada, repelida por aquilo, mas
estarrecida com o que presenciava. Não conseguia olhar
para outro lugar.
Ele queimou minha meia com o cigarro aceso e nem
notou. Entornou metade de um copo de cerveja em mim e
nem reparou, também falava engrolado, dizia um monte
de besteiras, começava a contar uma história, dava mil
voltas e esquecia sobre o que estava falando.
Ficou batendo papo com o casal da mesa ao lado e
continuou a falar, mesmo quando se tornou óbvio que os
estava aborrecendo.
Pegou uma nota de cinco libras do bolso, depois de ter
me falado que não tinha um centavo, e interrompeu a
conversa do casal da mesa ao lado, mais uma vez,
balançando a nota na direção deles, apontando para a
efígie da rainha Elizabeth e gritando:
— Venham ver a foto da minha namorada. Foi tirada
quando ela fez vinte e um anos. Olhem só, ela não é linda?
Aquilo era o tipo de coisa que ia me deixar sem ar de
tanto rir no passado. Agora, era apenas embaraçoso e,
pensando melhor, simplesmente chato.
Quanto mais bêbado ele ficava, mais sóbria eu
permanecia. Eu já quase não falava mais nada, e Gus não
reparava ou não se importava.
Será que ele sempre fora daquele jeito?, eu me
perguntava.
A resposta era sim, é claro.
Ele não mudara. Eu sim. Via as coisas de modo
diferente.
Pouco importava a ele que eu estivesse ali ou não. Eu
era apenas uma fonte de dinheiro.
Daniel tinha razão. Como se eu já não estivesse me
sentindo desconfortável o suficiente, tinha de admitir que
aquele presunçoso estava com a razão. E nunca mais ia
me deixar esquecer esse fato. Embora, pensando melhor,
talvez ele não me zoasse tanto... Daniel já não me parecia
tão presunçoso quanto eu costumava achar. Na verdade,
ele não era nem um pouco presunçoso. Era um cara legal.
Pelo menos me pagava um drinque de vez em quando. E
um jantar também, de vez em quando...
Fiquei ali sentada, com um copo vazio diante de mim,
por mais de uma hora. Gus nem notou.
Foi ao banheiro, demorou mais de vinte minutos, não
deu nenhuma explicação nem pediu desculpas pela
demora ao voltar. Não havia nada de incomum naquele
comportamento. As noites com Gus eram sempre daquele
jeito.
De algum modo, eu vivia rodeada de homens que
bebiam demais, se aproveitavam de mim e eu não
conseguia entender como foi que aquilo acontecera.
Mas me dei conta de que já aturara demais!
Na hora de o pub fechar, Gus arrumou uma briga com
um dos caras que serviam no balcão, uma ocorrência
igualmente bem comum. Começou com o barman, que
disse, a certa altura, dispensando o pessoal:
— Ei, vocês não têm casa, não?
Gus decidiu que aquilo era algo terrível de se dizer,
porque acontecera um terremoto na China alguns dias
antes.
— E se um chinês estivesse aqui e ouvisse você falando
assim? — berrou Gus, zangado. Descrever o resto das
baboseiras incoerentes que se seguiram a isso seria um
tédio só, se colocado em palavras. Basta completar
dizendo que o barman foi fisicamente empurrando Gus até
a porta, enquanto ele se remexia todo, berrando:
— Espero que você morra implorando por um padre!
E pensar que um dia eu admirara aquele tipo de
comportamento, achando que Gus era uma espécie de
rebelde.
Ficamos em pé na calçada enquanto a porta do pub era
batida com força às nossas costas.
— Tudo bem, Lucy. Direto para casa agora — disse Gus,
cambaleando ligeiramente e olhando para mim meio fora
de foco.
— Para casa? — perguntei, com educação.
— E... — disse ele.
— Tá legal, Gus — disse eu, com suavidade. Ele sorriu,
o sorriso de um homem vitorioso.
— Onde é que você está morando agora? — perguntei.
— Continuo em Camden — disse ele, de modo vago. —
Por quê?
— Bem, então vamos direto para Camden — decidi.
— Não — reagiu Gus, alarmado.
— Por que não? — perguntei.
— Não podemos — explicou ele. — E por que não?
— Ah, porque... porque não.
— Bem, você não vai para a minha casa, porque é a casa
do meu pai.
— Mas, por que não? Eu tenho a impressão de que o seu
velho e eu íamos nos dar muito bem.
— Tenho certeza de que sim — concordei. — É isso que
eu receio.
Havia alguma coisa por trás daquilo, eu desconfiava há
muito tempo. Provavelmente Gus tinha uma namorada em
Camden, uma mulher com quem ele vivia, algo desse tipo.
Mas eu não me importava. Não teria encostado nele nem
com uma vara de pescar. Não conseguia compreender o
motivo de eu ter gostado tanto dele um dia. Ele me parecia
um gnomo, um duende baixinho e bêbado. Usando um
casaco nojento de pele de carneiro e um suéter por baixo,
marrom e imundo.
O encanto se quebrara. Tudo nele me revoltava o
estômago. Até mesmo o cheiro dele era horrível. Nojento,
aquele cheiro parecia o de um carpete pela manhã, depois
de uma festa bem animada.
— Pode guardar as suas desculpas — disse eu. — Não
precisa me explicar por que você não pode me levar até o
seu apartamento. Você nunca me levou lá, na verdade.
Economize suas histórias ridículas.
— Que histórias ridículas? — perguntou ele, com
alguma dificuldade para pronunciar "ridículas".
— Vamos ver... — disse eu. — Você poderia me dizer que
está tomando conta de uma vaca para o seu irmão, e que
não há lugar algum no apartamento para ela ficar, a não
ser o seu quarto, e ainda por cima ela é tímida e tem medo
de estranhos.
— É mesmo? — perguntou ele, pensativo. — Sabe que
você tem razão, essa história tem a minha cara mesmo.
Você é uma mulher excepcional, Lucy Sullivan.
— Não, Gus, não sou não. — Sorri. — Não sou mais não.
Aquilo deixou a sua cabeça já cheia de álcool ainda mais
confusa.
— Então, viu só, Lucy? — argumentou. — Vamos ter
que ir mesmo para a sua casa.
— Eu vou para lá — expliquei. — Você não.
— Mas... — disse ele.
— Adeuzinho — cantarolei.
— Não, espere, Lucy! — gritou, alarmado.
Eu me virei e sorri para ele, com ar benévolo, dizendo:
— Sim?
— Como é que vou fazer para chegar em casa? —
perguntou.
— E eu tenho cara de quem consegue prever o
futuro? — perguntei, com cara inocente.
— Mas, Lucy, eu não tenho um centavo... Coloquei o
meu rosto bem diante do dele e sorri. Ele sorriu de volta.
— Francamente, meu caro — e abri um sorriso —, eu
não ligo a mínima para isso.
A vida inteira eu quis falar essa frase
— O que quer dizer com isso, Lucy?
— Quero dizer, em uma linguagem que você vai
compreender melhor — e fiz uma pausa para dar mais
impacto, quase colando meu rosto no dele —, VÁ SE
FODER, GUS!
Fiz uma pequena pausa para respirar bem fundo e
continuei:
— Vá extorquir grana de outra otária, seu baixinho
canalha e bêbado! Estou fechada para negócios!
Dei meia-volta e saí pela rua, com um sorriso satisfeito
como o de um gato, deixando Gus olhando para mim.
Alguns segundos mais tarde, notei que estava indo na
direção errada, pois a estação do metrô ficava para o outro
lado. Assim, voltei pelo mesmo caminho, torcendo para
que o porcalhão já não estivesse lá para me ver.

















CAPÍTULO 75
Estava transtornada de tanta raiva.
Fui até Uxbridge, mas só para pegar as minhas coisas.
Os outros passageiros do metrô olhavam para mim de
forma estranha e mantinham distância. Fiquei me
lembrando de como eu havia sido cruel com Gus, e uma
voz triunfante dentro da minha cabeça ficava repetindo
que é preciso ter coragem para ser cruel.
Com um ar divertido, embora amargo, fiquei me
perguntando o que será que meu pai conseguira destruir
durante a minha ausência. Era bem capaz de o bêbado
idiota ter colocado fogo na casa. Caso realmente ele tivesse
feito isso, eu esperava que também tivesse conseguido
queimar a si próprio no fogo.
Pela quantidade de álcool dentro dele, aquilo provocaria
um incêndio de grandes proporções. Apesar de tudo,
comecei a rir. Senti novos olhares estranhos dos outros
passageiros. Iam levar mais de uma semana para
conseguir apagar o meu pai. Ele ia ficar brilhando tanto
no meio das chamas que era capaz de ser avistado do
espaço sideral, tal e qual a Muralha da China.
Se conseguissem ligá-lo a um gerador, ele poderia
fornecer eletricidade para toda a cidade de Londres por
uns dois dias.
Eu o odiava.
Descobrira o quanto havia deixado Gus me tratar mal, e
aquilo era uma cópia exata do jeito que meu pai me
tratava. Eu só conseguia amar homens duros, bêbados e
irresponsáveis. Porque foi isso o que meu pai me ensinara.
Só que agora eu já não sentia mais como se o amasse.
Estava cheia. Ele podia muito bem tomar conta de si
próprio dali pra frente. E eu não daria mais dinheiro para
nenhum dos dois. Gus e papai haviam se fundido em uma
mesma pessoa no meu caldeirão de ódio.
Papai jamais acariciara os cabelos de Megan na minha
frente, mas, mesmo assim, eu estava furiosa com ele por
ter feito isso. Gus não havia me enchido de lágrimas
quando eu era criança, nem me dissera que o mundo era
um buraco, mas isso não era motivo para eu perdoá-lo por
ter feito isso.
Estava até grata, tanto a meu pai quanto a Gus, por
serem tão terríveis comigo. Por terem conseguido me levar
até um ponto em que eu já não me importava mais com
eles. E se eu jamais tivesse conseguido isso? Se eles
tivessem sido um pouco melhores comigo, a situação
poderia se eternizar, e eu continuaria perdoando-os a cada
vez, pelo resto da vida.
Lembranças de outros relacionamentos voltavam à
minha cabeça, casos que eu achava que já havia
esquecido. Outros homens, outras humilhações, outras
situações em que eu resolvera transformar em missão a
tarefa de cuidar de uma pessoa difícil e egoísta.
Com a raiva pouco familiar, outra emoção estranha
subiu à superfície. Esse novo sentimento se chamava
Autopreservação.




CAPÍTULO 76
— Você é tão sortuda — suspirou Charlotte, com cara de
inveja.
— Por quê? — perguntei, surpresa. Não conseguia
descobrir ninguém que tivesse menos sorte do que eu.
— Porque agora seus problemas estão todos
resolvidos — afirmou ela.
— Estão?
— Estão. Quem me dera que o meu pai fosse alcoólatra,
quem me dera que eu odiasse a minha mãe.
Essa conversa bizarra com Charlotte aconteceu no dia
seguinte àquele em que em deixei meu pai e voltei para o
meu apartamento em Ladbroke Grove. Só esse papo já era
quase o suficiente para me fazer ter vontade de voltar a
morar com papai.
— Se pelo menos eu pudesse ser como você —
continuou Charlotte. — Meu problema é que o meu pai
quase não bebe, e eu adoro a minha mãe.
— Não é justo — acrescentou ela, com ar amargo.
— Charlotte, me explique esse seu raciocínio. Sobre o
que você está falando?
— Homens, é claro. — Ela pareceu surpresa. — Garotos,
caras, rapazes, gatos, aqueles com cassetetes pendurados.
— Mas o que têm eles?
— É que agora você vai encontrar o seu príncipe
encantado e viver feliz para sempre.
— Vou, é? — Aquilo era gostoso de ouvir, mas fiquei
pensando em onde será que ela estava conseguindo aquela
informação.
— Vai sim! — E balançou um livro na minha frente. — Li
tudo isso aqui. É um daqueles seus livros doidos. Fala de
pessoas como você, explica por que você sempre arranja
homens iguais ao seu pai... Você sabe, aqueles que bebem
demais, não querem nenhum tipo de responsabilidade e
tudo o mais.
Senti uma fisgada de dor, mas deixei que ela
continuasse a falar.
— A culpa não é sua — explicou ela, consultando o
livro. — Veja só, a criança... essa é você, Lucy, sente-se
infeliz. E pelo fato de que, bem, não sei exatamente, mas
pelo fato de as crianças serem burras, imagino, ficam
achando que a culpa é delas. Acham que é função delas
fazer o pai se sentir melhor. Viu só?
— Acho que vi. — Ela tinha razão. Eu tinha tantas
lembranças de papai chorando, e jamais sabia por quê.
Mas me lembrava muito bem da necessidade intensa de
saber que aquilo não era culpa minha. E do medo de que
ele jamais voltasse a ser feliz novamente. Teria feito
qualquer coisa para ajudá-lo a se sentir melhor.
Charlotte continuava, de forma descontraída, a tentar
encaixar a minha vida nas teorias do livro:
— E à medida que a criança, novamente você, Lucy, vai
ficando mais velha, ela passa a sentir atração por
situações em que os sentimentos da infância são... que
droga de palavra é essa? Re... re... rep...?
— Replicados — completei, ajudando-a.
— Uau, Lucy! Como é que você sabia? — Ela ficou
impressionada. Mas é claro que eu sabia, já lera aquele
livro um monte de vezes. Bem, pelo menos, uma.
Estava bem familiarizada com as teorias dele. Só que eu
jamais achara que elas se aplicavam ao meu caso, até
aquele momento.
— Essa palavra significa "copiados", não é, Lucy?
— Sim, Charlotte.
— Ah, sei... então você sentia que o seu par era um
bebum e tentava fazê-lo se sentir melhor. Mas não
conseguia. Não que fosse culpa sua, Lucy — acrescentou,
depressa. — Isto é, você era apenas uma garotinha e o que
poderia fazer? Esconder as garrafas?
Esconder as garrafas.
Foi como se um sino badalasse dentro da minha cabeça,
e eu voltei no tempo, mais de vinte anos antes.
Subitamente me lembrei de um dia em que eu, ainda
muito novinha, talvez com quatro ou cinco anos, ouvi
Chris falar para mim: "Venha comigo, Lucy, vamos
esconder as garrafas. Se escondermos as garrafas, eles
não vão mais ter motivo para brigas."
Uma onda de tristeza me inundou ao lembrar-me da
garotinha que escondeu uma garrafa de uísque que era
quase do tamanho dela na cesta onde o cachorro dormia.
Charlotte continuava com a matraca solta, então eu tive
de guardar a lembrança para mais tarde.
— Então a criança... ainda é você, Lucy... fica adulta e
conhece todo tipo de homens. Só que aqueles pelos quais
ela se sente mais atraída são os que têm os mesmos
problemas do pai... O seu pai, no caso, entendeu?
— Entendi.
— A mulher adulta se sente mais confortável e à vontade
com um homem que bebe demais ou é irresponsável com
dinheiro, ou que costuma usar de violência... — continuou
ela, lendo alto.
— Meu pai jamais foi violento. — Eu estava quase às
lágrimas.
— Ora, ora, Lucy. — Charlotte balançou o dedo com
calma na minha direção. — Estes são apenas exemplos.
Significa que se o pai sempre jantava vestindo uma
fantasia de gorila, a filha cresce e se sente mais à vontade
com namorados que usam casacos de pele ou têm as
costas peludas. Entendeu?
— Não.
Charlotte suspirou com paciência exagerada.
— Significa que você sempre preferiu rapazes que viviam
mamados, não tinham empregos fixos, às vezes eram
irlandeses e faziam você se lembrar do seu pai. Só que
você não conseguia fazer o seu pai mais feliz, então era
como se pressentisse que aquela era uma segunda chance
e achasse: "Bem, pelo menos este aqui eu posso consertar,
apesar de não ter conseguido consertar o meu pai."
Entendeu?
— Talvez. — Ouvir tudo aquilo era tão doloroso que eu
quase pedi para ela parar.
— Com certeza — disse Charlotte, de modo firme. — Não
que você tenha feito tudo isso de propósito, Lucy. Não
estou dizendo que a culpa foi sua. Foi a sua consciência
que fez isso.
— Você quer dizer minha subconsciencia. Ela consultou
o livro e exclamou:
— Ué... é isso mesmo, foi a swèconsciência. Qual será a
diferença? Eu não tinha forças para explicar.
— Foi por isso que você sempre se apaixonou por
sujeitos por-ras-loucas, como Gus e Malachy, e... qual é
mesmo o nome daquele que despencou da janela?
— Nick.
— Isso mesmo, Nick. Como ele está, por falar nisso?
— Ainda na cadeira de rodas, pelo que sei.
— Ai, isso é terrível — exclamou ela em tons
subitamente sussurrados. — Ele ficou leijado?
— Não, Charlotte — disse, de forma brusca. — Ele está
muito melhor, mas diz que a cadeira de rodas é muito
mais prático para andar por aí, já que ele vive se mijando
nas calças o tempo todo.
— Ah, ainda bem — suspirou Charlotte, aliviada. —
Achei que o pinto dele tivesse escangalhado.
Não fazia a menor diferença se Nick tinha perdido ou
não o uso dos genitais. Na maior parte do tempo ele vivia
tão bêbado que nem conseguia se levantar. Se a sua
carteira não tivesse sido roubada numa noite de sábado,
ainda cedo, acho que o nosso relacionamento jamais teria
se consumado.
Charlotte continuava:
— Agora que você sabe o motivo de escolher sempre os
homens errados, não vai mais fazer isso. — E sorriu para
mim. — Vai dizer a todos os sujeitos que são esponjas de
bebida como Gus para cair fora da sua vida, vai conhecer
o homem certo, e vocês serão felizes para sempre!
Não consegui retribuir o seu sorriso fulgurante.
— Só pelo fato de eu saber o motivo de escolher os
homens errados, isso não significa que vou parar de fazer
isso agora, sabia? — E ri, desesperada.
— Besteira — declarou ela.
— Pode ser que eu me transforme em uma mulher cruel
e amarga, e passe a odiar todos os homens que bebem.
— Não, Lucy, você vai permitir a você mesma ser amada
por um homem que seja digno de você — leu ela,
devagar. — Capítulo 10.
— Só que, antes disso, vou ter que reaprender os
hábitos de uma vida inteira... Não esqueçamos que eu
também já li este livro. Capítulo 12.
Minha ingratidão deixou-a preocupada.
— Por que você está se comportando assim de forma tão
estranha, hein? — perguntou. — Você não faz idéia de o
quanto é sortuda. Eu daria qualquer coisa para ter uma
família desajustada.
— Pode acreditar em mim, Charlotte, você não ia gostar.
— Ia sim — disse ela, com firmeza,
— Pelo amor de Deus, por quê? — Eu estava ficando
cada vez mais perturbada com tudo aquilo.
— Porque se não há nada de errado comigo nem com a
minha família, como vou poder explicar o fato de todos os
meus relacionamentos serem um desastre? Não vou ter
mais ninguém em quem colocar a culpa, a não ser em
mim mesma.
Ela olhou novamente para mim, com um ar de inveja e
ressentimento.
— Lucy, você não acha que o meu pai é um tirano
cruel? — perguntou, esperançosa.
— Não — respondi. — Não o conheço muito bem, mas
ele me parece ser um homem muito bom.
— Você não acha que ele é fraco, ineficiente, com pouco
espírito de liderança? Não acha que ele inspira
desrespeito? — continuou ela, perguntando coisas que lia
em voz alta no livro.
— Ao contrário — afirmei. — Ele parece inspirar muito
respeito.
— Então você diria que ele é um controlador
monstruoso? — implorou ela. — Um melagomaníaco?
— A palavra é megalomaníaco e... não, eu não acho.
— Desculpe, Charlotte — acrescentei. Ela estava
arrasada.
— Bem, Lucy, sei que a culpa não é sua, mas foi você
que inventou todas essas coisas.
— Inventei o quê? — quis saber, já pronta para me
aborrecer.
— Bem, você não as inventou, exatamente — retirou
ela. — Só que eu não ia saber nada a respeito dessas
coisas se não fosse por você.
— Você conseguiu colocar um monte de idéias na minha
cabeça — acrescentou, com cara amarrada.
— Nesse caso, eu devia ganhar uma medalha —
murmurei.
— Isso é cruel de se dizer — reclamou ela, com os olhos
brilhantes, cheios de lágrimas prontas para serem vertidas.
— Desculpe — disse eu. Pobre Charlotte. Como era
horrível ser brilhante apenas o suficiente para reconhecer
a extensão da própria burrice.
Mas ela nunca ficava de baixo astral por muito tempo.
— Vamos lá, conte-me novamente a parte em que você
mandou o Gus se foder — pediu ela, toda empolgada.
Então, não pela primeira nem pela última vez, contei.
— E como foi que você se sentiu? — perguntou ela. —
Poderosa? Vitoriosa? Eu adoraria ter a coragem de fazer a
mesma coisa com aquele porco do Simon.
— Você tem falado com ele ultimamente?
— Transei com ele na terça à noite.
— Sim, mas você tem falado com ele ultimamente?
— Não exatamente. Isso a fez rir.
— Ah, Lucy, estou tão contente por você ter voltado. — E
suspirou. — Senti saudades.
— Senti saudades de você também.
— E agora que você voltou, podemos ter aqueles
maravilhosos papos a respeito do Fred...
— Quem? Ah, Freud.
— Hein...? Fale de novo, como é que se pronuncia
mesmo?
— Como em "debilóide", só que arrastando no óide.
Froyd!
— Froyd — murmurou ela. — Bem, eu estava lendo a
respeito de Froyd. Então, Froyd costumava dizer que...
— Charlotte, o que está fazendo?
— Treinando para a festa de sábado. — E exibiu
subitamente um ar amargo. — Já não agüento mais que
os homens pensem que só porque eu tenho peitos grandes
sou burra. Vou mostrar a eles. Vou dar uma aula sobre o
Fred, isto é, o Froyd. Embora eu ache que eles
provavelmente não vão nem notar, porque os homens
nunca escutam o que eu falo, batem papo só com os meus
seios.
E ficou com ar sombrio por um instante.
— E você, o que vai usar na festa? Já tem séculos desde
que você saiu para ir a um lugar decente.
— Eu não vou à festa.
— O quê?
— Não vou. Ainda é cedo demais para isso. Charlotte
começou a rir sem parar.
Pelo jeito como ela ria, pessoas tentando superar o pai
alcoólatra disputavam a taça de mais ridículos com os que
tropeçavam em mangueiras e caíam dentro de piscinas
com roupa e tudo ou ficavam trancados do lado de fora no
meio da noite usando uma fantasia de coelho e eram
obrigados a pedir ao vizinho (que já achava que o sujeito
era maluco) para usar o telefone.
— Sua grande tola — gargalhava Charlotte. — Pelo jeito
como você fala, até parece que está de luto.
— E estou mesmo — repliquei, de forma recatada.


















CAPÍTULO 77
A raiva que senti na noite em que saí com Gus me
impeliu a sair da casa de meu pai com o mínimo de
angústia e peso na consciência. Voltei a morar com Karen
e Charlotte, esperando que a vida voltasse ao normal.
Não sei como pude imaginar que ia escapar assim tão
fácil.
Levou menos de um dia para que a Culpa, a velha
pistoleira de aluguel, acompanhada de seus capangas,
começasse a me perseguir. Eles vieram para cima de mim
com tudo, e continuaram assim, dia após dia. Fiquei
quase irreconhecível, e levei a maior surra do Pesar, da
Raiva e da Vergonha.
Sentia como se o meu pai tivesse morrido. De certa
forma, ele morrera mesmo: o homem que eu pensara que
era meu pai não existia mais. Jamais existira, na verdade,
só mesmo na minha cabeça. Mas eu nem podia usar luto,
porque ele ainda estava vivo. Pior do que isso, estava vivo
e eu optara por abandoná-lo. Perdera o direito de sentir
pesar.
Daniel foi maravilhoso. Disse-me para não me preocupar
com nada, que ele ia arrumar as coisas. Só que eu não
podia deixar que ele fizesse isso. Tratava-se da minha
família, do meu problema, e era eu que tinha de cuidar
das coisas. Antes de mais nada, arranquei as cabeças de
Chris e Peter de onde eles a haviam enfiado, dentro da
areia, como avestruzes. Para ser justa com os dois
imprestáveis, eles me disseram que iam ajudar a cuidar do
papai.
Daniel sugerira contactar alguém do serviço de
assistência social. Houve um tempo em que eu achava que
isso era a coisa mais vergonhosa de se fazer com o papai.
Agora, porém, eu estava além dessa fase, a bateria da
minha vergonha ficara descarregada.
Assim, comecei a ligar para um monte de autoridades
locais. No primeiro número me disseram que eu teria de
ligar para outro departamento, e quando liguei para o
número informado me garantiram que o pessoal do
primeiro número é que era o responsável por cuidar de
casos como aquele.
Então, quando tornei a ligar para o primeiro número de
novo, eles me informaram que as regras haviam mudado e,
a partir de agora, era realmente o pessoal do segundo
número que deveria me prestar assistência.
Gastei mais ou menos um milhão de horas em tempo do
meu empregador pendurada no telefone, e tudo o que
ouvia era "esse caso não é da nossa área".
Finalmente, quando viram que papai era um perigo para
si mesmo e para os outros, transformaram-no em
prioridade, e designaram uma assistente social e uma
empregada para ficar cuidando dele.
Eu estava esgotada.
— Ele vai ficar bem, Lucy — prometeu Daniel. — Está
sendo bem cuidado.
— Mas não por mim. — Eu estava me sentindo
dilacerada pela sensação de fracasso.
— Não é função sua cuidar pessoalmente dele —
argumentava Daniel, de forma gentil.
— Eu sei, mas... — replicava, sentindo-me muito mal.
O mês de janeiro seguia. Todo mundo estava duro e
deprimido.
Ninguém saía muito, mas eu não saía para lugar
nenhum. A não ser com Daniel.
Pensava no meu pai o tempo todo, tentando justificar
para mim mesma o que fizera.
As coisas haviam chegado a um ponto em que eu tinha
de escolher entre mim e ele, decidi. Um dos dois tinha de
ficar comigo, mas não havia o bastante de mim para ser
dividido pelos dois.
Eu me escolhera.
A sobrevivência não era uma coisa muito bonita de se
apreciar. Sobreviver à custa de outra pessoa era ainda
mais desagradável. Não houve lugar para amor, nobreza
ou sentimento pelo meu próximo — no caso, papai. A
coisa se resumia a mim, apenas a mim.
Eu sempre me achara uma pessoa legal, simpática,
generosa e altruísta. Foi um choque descobrir que, na
hora em que a coisa pegava fogo, a simpatia e a
generosidade eram apenas um verniz. Por trás eu era um
animal selvagem e enfurecido, como todo mundo.
Não gostei muito dessa minha imagem, não gostei muito
de mim, embora isso não fosse nenhuma novidade.
Meredia, Jed e Megan andavam intrigados com o meu
estado de espírito. Ou, melhor, meus vários estados de
espírito. A cada dia eu apresentava uma emoção diferente,
e eles se chegavam loucos para saber como eu estava, a
fim de oferecer conselhos e opiniões.
Como eu disse, era janeiro e ninguém saía muito.
— O que está sentindo hoje? — perguntavam em coro,
assim que eu colocava os pés no escritório.
— Raiva. Raiva por não ter tido um pai decente quando
era pequena.
Ou...
— Tristeza. O homem que eu amei, o homem que
sempre achei que meu pai fosse acabou de morrer.
Ou...
— Incapacidade. Eu deveria ter sido capaz de cuidar
dele. Ou...
— Culpa. Sinto-me tremendamente culpada por tê-lo
abandonado. Ou...
— Ciúme. Sinto ciúme das pessoas que aproveitaram
uma infância normal.
Ou...
— Tristeza...
— O quê? Outra vez? — reclamou Meredia. — Já
tivemos tristeza uns dois dias atrás.
— É... eu sei — concordei. — Só que dessa vez é um tipo
diferente de tristeza, agora é tristeza por mim mesma.
Tínhamos todo tipo de discussões maravilhosas e
metafísicas. Eu os provocava com um monte de conversas
a respeito de sobrevivência em circunstâncias extremas.
— Vocês se lembram daqueles rapazes que estavam no
avião que caiu nos Andes? — perguntei.
— Aqueles que comeram a carne dos outros passageiros
mortos para sobreviver? — perguntou Meredia.
— E foram hostilizados pelo resto da cidade, ao voltarem
para casa, por terem comido seus vizinhos? — perguntou
Jed.
Ali, no escritório, a gente não se limitava a ler apenas os
tablóides.
— Isso mesmo — confirmei. — Então vocês acham que é
melhor morrer com honra ou enfiar as mãos na lama
nojenta durante a luta ignóbil pela sobrevivência?
Argumentávamos contra e a favor por horas a fio, e
analisávamos questões morais da maior relevância.
— Qual será o gosto de carne humana? O que
acham? — perguntava Jed. — Acho que ouvi alguém dizer
que se parece um pouco com frango.
— Peito ou coxa? — perguntou Meredia, pensativa. —
Porque, se for peito, até que eu não me importaria, mas se
fosse coxa, eu não ia conseguir suportar.
— Nem eu — concordei. — A não ser que fosse embebida
em molho de churrasco.
— Mas eles tinham algum molho para passar? Maionese,
ket-chup ou algo assim? — especulou Jed.
— Será que o piloto tinha um sabor diferente dos outros
passageiros? — quis saber eu.
— Ah, muito provavelmente. — Meredia confirmou com
a cabeça, com ar de quem conhecia o assunto a fundo.
— E vocês acham que eles cozinharam a carne ou
comeram todo mundo cru? — perguntou Megan.
— Provavelmente cru — disse eu.
— Argh! Acho que vou vomitar — reagiu Megan.
— Sério? — Todos nós olhamos para ela, surpresos.
Megan não era assim tão fresca.
— Mas, Megan, você nem esteve na gandaia ontem —
argumentei, confusa.
Ela estava mesmo pálida. Mas aquilo podia ser devido ao
seu bronzeado que, finalmente, desaparecera.
Ela colocou a mão no peito e começou a fazer gestos com
a mão para cima e para baixo, como quem vai colocar tudo
para fora.
— Você vai mesmo vomitar? — perguntei, alarmada. Jed,
na mesma hora, colocou um cesto de papéis no colo dela.
Nós três ficamos olhando fixamente para Megan,
adorando o drama, com a esperança de que ela pudesse
vomitar tudo e trazer um pouco de empolgação para o
nosso dia. Mas ela não fez isso. Depois de alguns minutos
de suspense, jogou o cesto de papéis no chão e sentenciou:
— Certo, já estou legal. Vamos fazer uma votação. Os
que forem a favor de comer os vizinhos mortos levantem
as mãos.
Três mãos se levantaram.
— Vamos lá, Lucy — pediu Jed, — Levante a mão.
— Não tenho certeza...
— Lucy, quem você permitiu que sobrevivesse? Você ou
o seu pai? Hein?
Com a maior vergonha, levantei a mão. Então, enquanto
Meredia ainda estava com a mão levantada, Jed fez
cosquinhas embaixo do seu braço. Ela se remexeu toda,
dando gritinhos e risadinhas, enquanto falava:
— Ohhhh, seu pequeno... — Sem dar bola para a platéia,
começaram a se chamar de nomes estranhos enquanto
fingiam estar lutando. Levantei as sobrancelhas de forma
significativa e olhei para Megan, que fez a mesma coisa
comigo.
Janeiro foi se arrastando, cinzento. E minha vida social
continuava parada.
Reavivei o relacionamento mais regular que tinha com
Adrian, da locadora de vídeos.
Tentei alugar Quando um Homem Ama uma Mulher, e
acabei saindo da loja com A Dupla Vida de Veronique, de
Krzysztof Kies-lowski. Quis alugar Lembranças de
Hollywood e de algum modo acabei levando O Carteiro e o
Poeta (versão original em italiano e sem legendas). Implorei
a Adrian que me deixasse levar Despedida em Las Vegas,
mas, em vez disso, ele me entregou um filme chamado
Eine Sonderbare Liebe, que eu nem me dei ao trabalho de
assistir.
Não precisava sair de casa, porque havia uma
verdadeira novela se desenrolando, ao vivo, no trabalho.
Meredia e Jed se tornaram muito chegados. Muito
chegados mesmo. Saíam sempre do trabalho exatamente
na mesma hora, embora isso, por si só, não significasse
muita coisa, pois todos os empregados do prédio se
ejetavam das cadeiras no exato segundo que o relógio dava
cinco horas. O caso é que os dois também chegavam, de
forma significativa, no mesmo horário. E o seu
comportamento no escritório era muito amoroso e
cúmplice. Estavam sempre de gracinhas um com o outro,
fingindo timidez, rindo feito bobos e ficando vermelhos.
Além do mais, tinham uma brincadeirinha só entre eles, e
na qual ninguém mais podia entrar, que era a de Meredia
ficar atirando balinhas, jujubas e uvas para cima,
formando um arco que atravessava a sala de um lado a
outro, enquanto Jed tentava agarrá-las com a boca, para
depois ficar aplaudindo com os braços moles, imitando
foca.
Eu invejava a felicidade deles.
Estava adorando ver que eles estavam se apaixonando
ali, bem diante dos meus olhos. Porque já não podia mais
contar com Megan para me fornecer elementos românticos.
Ela mudara. Não parecia mais a Megan de antes, e a
queda brusca no número de rapazes que ficavam azarando
o escritório era a prova disso. Agora, já podíamos sair da
sala sem termos de empurrar um monte de caras e afastá-
los do caminho, pedindo: "Dá pra dar licença, por favor?"
Eu não conseguia descobrir o que havia de tão diferente
nela, até que enfim me bateu: É claro! O bronzeado. Já era.
O inverno finalmente conseguira derrubá-la e a despira do
lindo tom dourado, iluminado por uma luz interior âmbar
e translúcida. Ela desbotara e deixara de ser uma deusa
magnífica para se transformar em uma garota comum e
meio robusta cujos cabelos às vezes pareciam um pouco
ensebados.
Mas notei que não eram apenas os seus belos atributos
físicos que haviam desaparecido. Ela já não era a pessoa
espevitada, feliz e cheia de energia de antes. Já não ficava
tentando descobrir o verdadeiro nome de Meredia. Muitas
vezes ficava irritada e mal-humorada, e isso me
preocupava.
Isso era um grande avanço, se considerarmos o quanto
eu andava ocupada sentindo pena de mim mesma, mas a
verdade é que eu estava preocupada com ela.
Tentei descobrir o que estava errado, e não foi apenas
por curiosidade mórbida. Fiquei rodeando o assunto, até
que um dia, meio hesitante, lhe perguntei se ela sentia
falta da Austrália. Ela se virou para mim e gritou:
— Tudo bem, Lucy, estou morrendo de saudades de
casa, sim! Agora, pare de me perguntar o que há de errado
comigo.
Eu sabia como ela se sentia. Passara a minha vida
inteira sentindo saudades de casa. A única diferença entre
nós duas era que eu não sabia onde nem o quê era a
minha casa.
Assim que descobri que a felicidade de Megan era
movida a energia solar, fiquei doida para lhe proporcionar
um pouco de sol.
Apesar de não ter condições de lhe comprar uma
passagem para a Austrália, eu podia dar a ela, de presente,
um vale para uma clínica de bronzeamento artificial perto
do trabalho. Mas quando o entreguei a ela, Megan ficou
estarrecida. Olhou para aquilo como se fosse uma
sentença de morte e finalmente soltou, com a voz
embargada:
— Não, Lucy... Não posso aceitar.
E foi nesse momento que fiquei preocupada de verdade
com ela. Não que Megan fosse uma pessoa pão-dura, mas
ela demonstrava um grande respeito pelo dinheiro,
especialmente pelas coisas que eram grátis. Mesmo assim,
por mais que eu insistisse, ela continuava a dizer que era
muito simpático de minha parte, mas ela jamais poderia
aceitar o presente.
Assim, no fim acabei indo lá eu mesma, e tudo que o
tratamento fez por mim foi acrescentar oito milhões de
sardas às que eu já tinha.





CAPÍTULO 78
A única pessoa que eu ainda via socialmente era Daniel.
Ele estava sempre disponível para sair comigo, porque
continuava sem namorada, no que deve ter sido o maior
período sem namorada em sua vida, desde que nascera.
Eu não me sentia culpada pelo tempo que ele gastava
comigo, porque reconhecia que estava apenas mantendo-o
afastado do caminho do mal, além de evitar que alguma
pobre mulher desavisada se apaixonasse por ele.
Eu sempre gostava muito de vê-lo, mas, no fundo, sabia
que era apenas porque ele preenchia o vácuo da ausência
de um pai na minha vida. E achava que era muito
importante dizer-lhe exatamente isso, pois não queria que
ele ficasse com a idéia de que eu — Deus me livre —
estivesse gostando dele. Assim, toda vez que nos
encontrávamos, a primeira coisa que eu dizia era:
— É legal sair com você, Daniel, mas só pelo fato de que
você está preenchendo um espaço vazio na minha vida.
E ele se mostrava estranhamente controlado, sem soltar
uma daquelas piadinhas vulgares sobre qual dos meus
espaços vazios ele gostaria de estar preenchendo.
Isso acabava por me deixar um pouco triste, com
saudade da época em que ele falava gracinhas sugestivas
como essa o tempo todo.
Usei a frase do espaço vazio tantas vezes que, no final,
era ele que continuava a frase. Sempre que eu falava:
— Oi, Daniel, legal você ter vindo... — ele me
interrompia, completando:
— Sim, sim, eu sei disso, Lucy, mas é só porque estou
preenchendo o espaço vazio que seu pai deixou em sua
vida.
Saíamos juntos duas ou três vezes por semana e, por
algum motivo, jamais tive coragem de contar isso a Karen.
Eu queria contar, é claro, mas estava tão preocupada em
diminuir o número de vezes em que saía com Daniel que
não tinha energia suficiente para enfrentar Karen.
Pelo menos era nisso que eu gostava de acreditar. E era
muito difícil ficar sem ver Daniel todas essas noites.
— Pare de me chamar para sair! — ralhei com Daniel,
certa vez em que ele me preparou um jantar em seu
apartamento.
— Desculpe, Lucy — pediu, humildemente, enquanto
picava cenouras.
— Não posso me deixar ficar muito dependente de você
não — reclamei —, e há uma grande chance de isso
acontecer, porque, sem o papai, abriu-se um grande vazio
em minha vida...
— ...E o seu instinto imediato é preenchê-lo — terminou
ele, para mim. — Você está muito vulnerável neste
momento, muito carente, e não pode se dar ao luxo de se
colocar muito próxima de ninguém.
Olhei para ele com admiração.
— Muito bem, Daniel. Agora, termine a frase.
Especialmente, não devo ficar muito próxima de quem? De
quem, especialmente, devo evitar me colocar muito
próxima?
— Especialmente de um homem — disse ele, com
orgulho.
— Exato — sorri para ele. — Nota dez!
Eu adorava o fato de ele saber tantas coisas daquele tipo,
psico-baboseiras. Especialmente quando considerávamos
o fato de que ele era um homem bonito, que adorava fazer
muito sucesso com as mulheres e não tinha necessidade
de ficar consumindo psicologia de revistas.
— Ah, por falar nisso — disse eu —, está a fim de ir ao
cinema comigo amanhã?
— Claro que sim, Lucy, mas você não acabou de me
dizer que não quer ficar muito perto de um homem e...
— Não quis dizer você — disse, distraída. — Você não
conta como homem.
Ele me lançou um olhar magoado.
— Ah, você sabe o que eu quis dizer. — Fiquei
irritada. — E claro que você é um homem para outras
mulheres, mas, para mim, você é apenas um amigo.
— Mesmo assim sou homem — murmurou —, mesmo
sendo seu amigo.
— Daniel, você não vai esquentar com isso agora, vai?
Pense só... Não é muito melhor, para mim, estar em sua
companhia do que com algum outro cara por quem eu
possa me apaixonar? Então, não é?
— Sim, mas... — Ele parou de falar. Parecia confuso.
Ele não era o único. Eu já não sabia se estava a salvo
com Daniel porque ele me deixava fora de perigo ou se eu
estava me colocando em um perigo ainda mais mortal por
ficar perto demais dele. Entre os prós e os contras, achei
que era mais seguro com ele do que sem ele. E mantinha
as barreiras levantadas simplesmente lembrando a ele que
elas continuavam lá. Estava tudo bem, permanecer em
companhia dele, desde que eu lembrasse a nós dois, o
tempo todo, que isso não era legal. Ou algo desse tipo. No
fundo, era mais fácil nem pensar nessas coisas.
De vez em quando eu me lembrava da noite em que ele
tinha me beijado, e ficava mais do que feliz, ficava até
mesmo empolgada só de lembrar cada um dos detalhes
daquele momento. Porém, sempre que eu recordava
aquela cena — e, para falar a verdade, isso era muito
raro —, na mesma hora, mais do que depressa, eu
lembrava também da outra noite em que ele não quis me
beijar, e a sensação de vergonha que se seguia a essa
lembrança colocava um ponto final na parte boa, no
mesmo instante.
Enfim, Daniel e eu acabamos voltando à nossa velha
fase, e ficamos tão relaxados um com o outro, tão à
vontade, que já conseguíamos rir juntos do nosso rápido
contato romântico/sexual.
Bem, quase.
Às vezes, quando ele me perguntava: "Quer outro
drinque?", eu forçava uma risada e dispensava, como
quem não quer nada, dizendo: "Não, não, já bebi muito.
Afinal, não quero repetir o mico daquela noite na casa do
meu pai, quando tentei seduzir você."
Eu sempre morria de rir ao dizer isso, esperando que o
riso afastasse de vez qualquer resto de vergonha ou
embaraço. Daniel jamais ria de verdade, quando eu falava
assim, mas, por outro lado, ele não precisava, pois o mico
era meu.

CAPÍTULO 79
Janeiro se transformou em fevereiro. Os arbustos de
açafrão e os pequenos sininhos brancos começaram a
florir. As pessoas começavam a sair de seus casulos,
especialmente depois que acabavam de receber o salário e
tinham algum dinheiro pela primeira vez desde o
holocausto financeiro do Natal. Meredia, Jed e Megan
perderam o interesse na minha vida pessoal, agora que
eles já tinham dinheiro para cair na gandaia e viver vidas
próprias. O que era uma tremenda pena, porque eu ainda
tinha tanto a lhes oferecer: não havia um dia sequer em
que eu não estivesse me torturando, com vergonha e auto-
recriminação.
Ia visitar papai uma vez por semana. Todo domingo,
porque eu sempre tinha tendências suicidas aos domingos,
de qualquer jeito, e seria uma pena desperdiçá-las. No
entanto, por mais terrível que a minha auto-recriminação
fosse, aquilo não era nada quando comparado ao ódio que
papai sentia por mim. Evidentemente, eu recebia esse
sentimento de desprezo e hostilidade com alegria, pois
sentia que aquilo era simplesmente o que eu merecia.
Fevereiro foi se chegando para os lados de março e eu
ainda era a única criatura em estado de hibernação.
Mesmo sabendo que papai estava sendo bem cuidado, no
sentido de cuidados físicos, eu me sentia podre, corroída
pela culpa. E Daniel era a única pessoa com quem eu me
sentia à vontade para me lamentar.
Não importa o que as pessoas digam, existe um limite de
tempo para alguém ficar de luto, seja por um pai, por um
namorado ou um par de sapatos que a loja não tinha no
seu tamanho. O limite de tempo de Daniel para me
agüentar, no entanto, era muito maior do que o de
qualquer outra pessoa.
Ninguém mais no escritório se dava sequer ao trabalho
de me ouvir. Às segundas, quando alguém perguntava: "E
aí, como foi o fim de semana?", eu sempre respondia:
"Horrível, gostaria de estar morta!", e nenhum deles ligava
a mínima,
Acho que teria enlouquecido se não fosse por Daniel. Ele
era exatamente igual a um terapeuta, só que não me
cobrava quarenta libras por hora, não usava calças de
veludo cotelê nem sandálias com meia.
Nem sempre eu estava sombria ou arrasada quando me
encontrava com ele, mas, quando isso acontecia, ele era
ótimo. Todas as vezes ele me ouvia repetir a mesma
lengalenga, relatando os mesmos sentimentos de angústia.
Eu podia me encontrar com ele para tomar um drinque
depois do trabalho, me largar na cadeira ao lado e dizer:
"Não me interrompa se você já tiver ouvido, mas o caso é
que...", e me lançava em outra saga a respeito de, digamos,
uma noite insone, um domingo lacrimoso ou uma noite
infeliz em que eu me sentira preocupada, culpada ou
envergonhada por causa de papai. Daniel nunca reclamou
nem uma vezinha da minha falta de material novo.
Jamais levantou a mão como um policial que interrompe
o tráfego e diz: "Não, calma aí! Espere um instante, Lucy,
acho que essa história eu já ouvi."
E ele tinha todo o direito de agir assim. Porque, se
Daniel estava ouvindo uma história relacionada com os
meus infortúnios e tristezas, então ele já devia tê-la ouvido
um milhão de vezes. Às vezes as palavras eram
ligeiramente diferentes, mas o enredo era sempre o mesmo.
Pobrezinho.
— Desculpe, Daniel — dizia eu. — Bem que eu gostaria
que as minhas tragédias fossem um pouco mais variadas.
Deve ser um saco para você.
— Está tudo bem, Lucy. — E sorria. — Eu sou feito um
peixinho dourado, tenho memória muito curta. Toda vez
que eseuto uma história sua, é como se fosse a primeira
vez.
— Bem, se você tem certeza disso — dizia eu, meio sem
graça.
— Tenho sim — confirmava ele, com a cara animada. —
Vamos lá, conte-me novamente sobre o trato imaginário
que você fez com o seu pai.
Lancei-lhe um olhar rápido, meio de lado, para ver se ele
não estava me zoando, mas ele não estava.
— Certo — disse, meio envergonhada, tentando (mais
uma vez achar as palavras adequadas para exprimir o que
eu sentia. — É como se eu tivesse feito um trato com o
meu pai.
— Que tipo de trato? — dizia ele, com o mesmo tom de
voz que um comediante usa para dar a deixa para a fala
seguinte do colega, servindo de escada para a frase final
da cena. Nós faríamos uma grande dupla, juntos.
— Está tudo na minha cabeça — explicava. — E como se
eu tivesse dito: "Tudo bem, papai, sei que abandonei o
senhor, mas a minha vida ficou uma porcaria depois disso,
porque me odeio demais por ter salvo a mim em vez de
salvar o senhor. Portanto, estamos iguais. Quites!" Isso faz
algum sentido para você, Daniel?
— Totalmente — concordou ele, pela enésima vez.
Eu me surpreendia ao reparar o quanto apreciava o
altruísmo de Daniel. Ele tinha sido tão bom para mim
durante toda a crise com o meu pai.
— Você é um cara muito legal — disse a ele, certa noite,
quando consegui parar de me lamentar para tomar fôlego.
— Não, não sou não. Eu não aturaria isso de mais
ninguém, só de você. — E sorriu.
— Mesmo assim, não posso ficar dependente demais de
você — acrescentei depressa. Eu não falava aquela frase
há pelo menos cinco minutos, e o sorriso dele me
intimidara. Precisava neutralizá-lo. — Estou no rebote
emocional, sabia?
— Sim, Lucy.
— Estou tentando superar a perda do meu pai, entende?
— Sim, Lucy.
Queria que a minha vida continuasse naquele estado de
crepúsculo para sempre, pois assim não precisava ter
nenhum contato de verdade com ninguém, exceto o meu
terapeuta, isto é, Daniel. Até o dia em que Daniel decidiu
que já me aturara demais, o que ameaçou destruir o
maravilhoso mundinho seguro que eu criara.
Ele nem me avisou com antecedência.
Uma noite, quando nos encontramos e eu disse o de
sempre:
— Oi, Daniel, é legal vê-lo, mas só porque você está
preenchendo um espaço vazio em minha vida. — Ele
segurou minha mão e disse, com toda a delicadeza:
— Lucy, já não está na hora de parar com isso?
— Qu... O quê? — perguntei, sentindo que o chão me
fugia de sob os pés. — Sobre o que você está falando?
— Lucy, a última coisa que eu quero é deixar você
chateada, mas andei pensando e fiquei me perguntando se
já não é hora de você tentar superar isso — continuou,
com um tom ainda mais gentil. A expressão de meu rosto
estava na linha mais baixa da escala de choque, onde está
escrito rigor mortis.
— Talvez eu não devesse ter paparicado tanto você —
disse ele. Parecia chateado. — Talvez isso tenha sido mau
para você.
— Não, não — apressei-me em dizer. — Você foi ótimo
para mim... Brilhante.
— Lucy, acho que já está na hora de você começar a sair
de novo — sugeriu ele, em um tom suave que só
conseguiu me apavorar.
— Mas estou saindo, estou na rua, agora. — Estava
apreensiva. Para não dizer na defensiva. Sentia que os
meus dias sob o abrigo seguro estavam terminando.
— Quando eu falo em sair, é sair mesmo, sair — disse
Daniel. — Quando é que vai começar a viver direito
novamente? Ver outras pessoas? Ir a festas?
— Só quando a culpa que sinto pelo meu pai for embora,
é claro.
— E olhei para ele, meio desconfiada. — Daniel, você
devia me compreender.
— Tá... Então você não pode viver a sua vida porque se
sente culpada a respeito do seu pai?
— Isso. — Esperava que, com aquilo, o assunto estivesse
encerrado, mas não estava, pois Daniel replicou:
— A culpa não vai embora sozinha. Você tem que fazer
com que isso aconteça.
Ah, não! Eu não queria ouvir aquilo.
Decidi influenciá-lo lançando um dos meus olhares
femininos bem charmosos, dando uma piscadela recatada.
— Por favor, não olhe para mim desse jeito, Lucy —
disse ele, — Isso não funciona.
— Merda — murmurei, e então fiquei sentada,
embaraçada, em um silêncio mal-humorado.
Tentei lançar-lhe uma careta, mas também não
funcionou. Dava para ver que ele estava falando sério.
— Lucy — disse ele —, não quero deixá-la chateada, por
favor, deixe-me ajudá-la. — Para ser justa com ele, Daniel
parecia mesmo bastante angustiado.
Dei um suspiro e desisti, dizendo:
— Está bem, seu patife sem coração, ajude-me
então.
— Lucy, sua culpa provavelmente vai diminuir, mas não
vai desaparecer de todo. Você vai ter que aprender a
conviver com ela.
— Mas eu não quero isso.
— Eu sei, mas vai ter que querer. Não pode
simplesmente jogar sua vida fora até que em algum
momento, no futuro distante, você deixe de sentir culpa,
pode ser que isso jamais aconteça.
Eu ficaria bem feliz se fosse assim.
— Você é como a Pequena Sereia, Lucy — comentou ele,
subitamente mudando de assunto.
— Sou, é? — Meus olhos brilharam de prazer. Agora sim
aquela conversa estava muito mais do meu agrado. E o
meu cabelo parecia mesmo longo, brilhante e cacheado,
agora que ele mencionara.
— Ela teve que sofrer a agonia de caminhar sobre o fio
da navalha em troca de se sentir capaz de sobreviver na
terra seca. Você fez o mesmo tipo de acordo: pagou pela
sua liberdade com culpa.
— Ah. — Nem falou do meu cabelo.
— Você é uma boa pessoa, Lucy, não fez nada de errado
e merece ter uma vida legal — explicou ele. — Pense nisso,
é tudo o que lhe peço.
Então pensei no assunto. E pensei no assunto. E pensei
no assunto. Fumei um cigarro e pensei no assunto. Bebi
meu gim-tônica e pensei no assunto. Enquanto Daniel foi
até o balcão pegar outro drinque, pensei no assunto.
Finalmente, eu disse:
— Pensei no assunto, Daniel. Talvez você tenha razão.
Talvez já esteja na hora de eu tocar a vida pra frente.
A verdade completa é que talvez eu estivesse ficando
entediada de tanta tristeza em estado bruto. Cansada de
ser auto-indulgente. E poderia ter continuado nessa por
muito mais tempo, durante anos, provavelmente, se
Daniel não tivesse puxado as minhas rédeas.
— Ótimo, Lucy — ele ficou empolgado. — E, já que estou
sendo bem malvado com você, vou aproveitar a chance
para falar que talvez já esteja na hora de você fazer uma
visitinha à sua mãe,
— Que é isso? — perguntei, com a língua afiada. — Você
virou a porcaria da minha consciência agora?
— E já que você está completamente pau da vida
comigo — sorriu —, acho que é melhor dizer logo que já
está na hora de você parar de aturar os desaforos do seu
pai. Chega de ficar se punindo. Você já pagou o seu débito
com a sociedade, e sua sentença já foi cumprida.
— Isso quem tem que julgar sou eu — retruquei,
zangada. Chega de ficar me punindo, ora, que audácia.
Era óbvio que Daniel não havia sido criado como um bom
católico. Eu nem conseguia imaginar uma vida que não
envolvesse muitas crises de autoflagelação.
Embora, pensando melhor, talvez dar um refresco a mim
mesma fosse uma boa idéia, uma opção muito tentadora e
agradável, na verdade. E, enquanto eu estava naquela
linha divisória, quase cedendo, Daniel falou a seguinte
frase, que mudou tudo para mim:
— Pense só, Lucy, se você se sente assim tão culpada,
pode voltar a cuidar do seu pai, a qualquer hora que
queira.
Essa sugestão me deixou indignada. Eu jamais faria
aquilo. Nunca. E foi só nesse momento que percebi o que
Daniel estava tentando me dizer. Eu escolhera a liberdade
porque era isso que desejara ter. Já que a consegui, era
melhor usá-la.
Olhei para ele e a compreensão disso iluminou-me o
rosto.
— Você tem razão, sabia? — disse, baixinho. — A vida é
para ser vivida.
— Ah, pelo amor de Deus, Lucy. — Ele pareceu
chocado. — Não tinha um clichê melhor do que esse não?
— Seu palhaço. — E sorri para ele.
— Você não pode ter medo para sempre — disse ele,
aproveitando o meu momento de bom humor. — Não pode
ficar aí se escondendo dos próprios sentimentos, das
outras pessoas.
Fez uma pausa para dar ênfase e continuou:
— Lucy, você não pode se esconder dos homens.
Nesse ponto comecei a achar que ele estava indo longe
demais. Queria me fazer correr antes mesmo de eu
aprender a andar.
— Um namorado! — disse, alarmada. — Você ainda quer
que eu arranje um namorado depois de todos os desastres
pelos quais passei?
— Por Deus, Lucy, espere um pouco — disse Daniel.
Agarrou-me pelo braço como se eu estivesse a ponto de
sair correndo para fora do restaurante e me oferecesse em
casamento ao primeiro homem que aparecesse. — Não de
imediato. Eu quis dizer em algum momento, não agora...
— Mas, Daniel — choraminguei. — Eu sou péssima para
julgar homens. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto
eu sou imprestável nessa área.
— Não, Lucy, quero apenas que você pense a respeito do
assunto — disse ele, com ansiedade.
— Não posso acreditar que você ache que eu já esteja
pronta para um namorado — reagi, surpresa.
— Lucy, eu não quis dizer... o que estou falando é que...
— Mas eu confio na sua sensibilidade — disse, meio em
dúvida. — Se você acha que é o melhor para mim, então é
porque deve ser mesmo.
— É só uma sugestão, Lucy. — Daniel pareceu nervoso.
Mas alguma coisa cutucara um canto da minha mente,
bem lá no fundo, a lembrança da alegria que era estar
apaixonada. Vagamente, eu me lembrava de como tinha
sido bom. Talvez, ao ficar cheia de estar infeliz, eu também
tivesse ficado cheia de estar sem uma companhia
masculina.
— Não, Daniel — disse, com ar sério e pensativo. —
Agora que você tocou no assunto, talvez não seja uma má
idéia.
— Espere um instante, Lucy, eu apenas disse que...
Olhe, pensando melhor, é uma má idéia, sim, uma idéia
péssima, me desculpe por ter falado nisso.
Levantei a mão com ar autoritário.
— Bobagem, Daniel, você tinha toda a razão em dizer
tudo isso para mim. Obrigada.
— Mas...
— Sem mas nem meio mas, Daniel, você tem toda a
razão. Na próxima vez que souber de uma festa, estou
dentro — terminei, de forma definitiva.
Depois de alguns minutos triunfantes, perguntei, com
uma voz bem fraquinha:
— Mas nós vamos continuar nos vendo, não vamos? Não
todo dia, como agora, mas, você sabe...?
E ele replicou, com ar decidido:
— Claro que vamos, Lucy, claro que nós vamos
continuar nos vendo.
Não me passou pela cabeça, nem por um momento, que
Daniel pudesse estar com algum outro motivo para querer
se afastar de mim, para querer que eu voasse com as
próprias asas. Que a sua preocupação com a minha
independência talvez não fosse totalmente altruísta. Que,
talvez, ele tivesse uma namorada nova esperando por ele,
impaciente, em algum lugar. Torcendo para que eu fizesse
logo a minha reverência final para o público e caísse fora
do palco para que ela pudesse assumir seu recém-
conquistado posto sob os refletores. Jamais duvidei que a
preocupação dele comigo fosse genuína, sincera e
desinteressada. Confiei nele de forma completa. E, por
causa disso, decidi ir em frente com aquilo que ele
sugerira.


CAPÍTULO 80
A nova Lucy, Uma força radiante. Independente,
Renascida. De volta à cena. Mais em forma do que nunca.
Um aperto de mão firme. Conhecendo gente nova. Cheia
de interação social. Com muito flerte. Uma mulher forte.
Uma mulher que sabe o que quer.
Nossa, era de deixar qualquer uma exausta.
E era tão chato. Até onde eu enxergava, o que
Reaprender a Viver significava mesmo era simplesmente
ficar longe de Daniel. Ou ao menos cortar drasticamente a
quantidade de tempo gasto com ele. E eu sentia falta dele,
terrivelmente. Ninguém era tão divertido quanto ele. Mas,
enfim, aquilo tudo era para o meu próprio bem, até mesmo
eu conseguia ver isso, e regras eram regras.
De qualquer forma, não foi o sufoco total que eu
esperava, porque ele continuava a me telefonar todo dia. E
eu sabia que ia me encontrar com ele no sábado seguinte,
porque tínhamos combinado de sair juntos para
comemorar o seu aniversário.
Essa história de Reaprender a Viver era mais fácil de
falar do que de fazer. Eu estivera fora de circulação por
muito tempo e não tinha mais ninguém com quem sair.
Entrei de penetra em um drinque depois do expediente
com Jed e Meredia, e foi um erro. Os dois se comportaram
como se eu fosse invisível.
Na noite seguinte, saí com Dennis e, embora ele tivesse
me prometido uma noite selvagem, de tanta agitação,
aquilo também acabou sendo um desastre. Para começar,
ele se recusou a ir a qualquer pub que não fosse gay, e
passei a noite toda desesperadamente tentando fazê-lo
olhar para mim enquanto ele se rebolava todo na cadeira,
de um lado para outro, olhando para rapazes com
camisetas brancas apertadas, bem por cima dos meus
ombros. Mal consegui puxar assunto com ele. E quando
ele, finalmente, se dignou a onversar comigo, só falou de
Daniel. O que era uma irresponsabilidade da parte dele.
Desse jeito, ele estava apenas alimentando o meu vício, em
vez de me curar dele.
Megan ainda continuava muito desanimada com a sua
Desordem Afetiva Sazonal, pois, quando sugeri sair para
tomar um porre e arrumar namorados, ela simplesmente
suspirou e disse que estava muito cansada.
Assim, sobraram Charlotte e Karen e, com todo o
respeito, amigas que dividiam o apartamento eram uma
espécie de último recurso, pois eu podia sair e ficar
bêbada com elas a qualquer hora.
— Será que vocês não tinham nada melhor para a gente
fazer do que vir a um pub chamado O buraco é mais
embaixo para ficar rodeada de operários escoceses
entornando cerveia em cima de nós? — reclamei.
— Não que eu tenha alguma coisa contra operários
escoceses — acrescentei, depressa, ao notar a cara feia
que Karen armou.
— Deixe comigo. — Charlotte, com ar misterioso, bateu
com o dedo na ponta do nariz e, com a presteza de um
mágico que tira um coelho da cartola, arrumou uma festa
para irmos no sábado à noite. O primo do irmão do
namorado da garota que dividia o apartamento com uma
colega do mesmo andar que ela resolvera dar uma festa,
porque estava sem namorada há muito tempo.
Exatamente por esse motivo, Charlotte, Karen e eu éramos
extremamente bem-vindas.
No sábado à noite, os preparativos para a festa eram
exatamente iguais aos dos velhos tempos. Charlotte e eu
abrimos uma garrafa de vinho e começamos a nos
aprontar juntas, no meu quarto.
— Será que vai ter alguns caras bem legais lá hoje à
noite? — perguntou Charlotte enquanto tentava passar
rímel nos cílios inferiores com a mão ligeiramente bêbada.
— Estou me perguntando é se vai haver algum cara
nessa festa — comentei, meio em dúvida. —
Especialmente se o anfitrião está oferecendo essa tal
comemoração só para ver se consegue sair com alguma
garota.
— Não se preocupe — tranqüilizou-me Charlotte,
balançando a mão. — Tem que ter alguns caras por lá, e
um ou dois deles provavelmente vão ser legais.
— Não me importo que não sejam tão legais assim,
contanto que não sejam como o Gus — disse eu.
Karen entrou quase marchando no quarto e abriu o meu
guarda-roupa.
— Quer dizer que a sua fase de trazer para casa
lunáticos sem um tostão no bolso que roubam nossas
garrafas de tequila já acabou, Lucy? — quis saber ela,
enquanto futucava por todos os meus cabides com uma
rapidez impressionante.
— Sim, acabou.
— Ai, merda — exclamou Charlotte. — Alguém aí me
arruma um lenço de papel, o rímel borrou meu rosto todo!
— E essa mudança toda aconteceu por causa dessa
história do seu pai? — perguntou Karen, ignorando
Charlotte.
— Quem sabe? Talvez eu já tenha amadurecido e
terminado mesmo com a fase dos músicos sem grana —
afirmei.
— É ruim, hein! — disse Charlotte, enquanto pegava um
lenço de papel e o passava com todo o cuidado sobre as
marcas de rímel espalhadas nas bochechas. Não estava
disposta a abrir mão de sua teoria. — Vamos ser realistas,
Lucy, você já não é uma garotinha. Froyd diz que...
— Ah, cale a boca, Charlotte — lançou Karen. — Volte
para os seus livrinhos infantis de Enid Blyton. Lucy, onde
está o seu casaco de camurça? Eu queria usá-lo esta noite.
Meio a contragosto, entreguei o casaco a ela. Finalmente,
ficamos prontas.
— Lucy, você está linda! — elogiou Charlotte.
— Não estou não.
— Está sim. E eu, ficou parecendo que estou usando
blush cinza?
— Não muito. De qualquer modo, você está linda.
Na verdade, dava para ver riscos do rímel no lugar onde
ela o espalhara sobre o rosto, mas o táxi já estava
chegando e não havia tempo para Charlotte refazer a
maquiagem. Quando chegássemos à festa, eu a mandaria
para o banheiro para retocar tudo.
— Karen, temos que aprender com Lucy ao vê-la em
ação esta noite — disse Charlotte. — Aposto que ela vai
fisgar o homem mais bonito e rico da festa, e sair de lá
com ele.
— Não, não vou não. — Eu não queria deixar Charlotte
desapontada. Minha transformação não podia acontecer
assim, de modo miraculoso e repentino, como ela
esperava. — Homens decentes já andam tão raros na
praça. Por que você acha que assim, de repente, vou topar
com um sujeito lindo, maravilhoso e que idolatra o chão
onde piso só porque descobri que o meu pai é alcoólatra?
— Você vai, sim. — Ela estava inflexível.
— Escutem aqui uma coisa — avisou Karen. — Se tiver
algum homem bonito e bem gato dando sopa por lá,
podem ter certeza de que ele já está reservado para mim.
A palavra "Daniel" continuava suspensa no ar entre mim
e Karen, sem ser pronunciada.
Então, de forma destemida, Karen a pronunciou:
— Lucy, você se lembra de quando eu achava que
andava rolando algum lance entre você e Daniel? —
perguntou, com uma risada ameaçadora. — Bem, saiba
que eu ainda não estou completamente convencida de que
você não tem um tesão enrustido por ele.
— Não que vá adiantar alguma coisa para você —
continuou ela. — Vamos ser francas, agora, Lucy. — E
lançou um olhar de loura sofisticada para o meu corpo
baixo e sem peitos. Automaticamente, respondi ao seu
olhar fazendo cara de envergonhada e sem valor. — Você
não é exatamente o tipo de mulher de que ele gosta, é?
Na verdade, eu não era. Isso era uma versão oficial. O
próprio Daniel já me informara disso. A lembrança da
noite em que ele me dispensara continuava bem marcada
na minha cabeça.



CAPÍTULO 81
Assim que cheguei à festa, avistei alguém especial, um
cara por quem eu me interessaria na mesma hora, em
minha outra vida. Era jovem, com cabelos alourados pelo
sol, típicos de surfista, e longos o bastante para indicar
que ele não era corretor da Bolsa. Ele era bonito e agitado,
difícil de encarar, e tinha olhos brilhantes que faiscavam.
As centelhas que saíam de seus olhos provavelmente
haviam sido obtidas por meios químicos. Dava para ver, só
de olhar para ele, que jamais conseguira chegar na hora
em um único lugar em toda a sua vida.
Seu suéter era o que eu no passado poderia ter descrito
como "com personalidade" e "diferente", quando a palavra
horrível teria funcionado melhor. Falava alto e estava
animado, contando uma história que envolvia movimentos
grandes e largos com os braços. O grupo em volta dele
estava se dobrando de tanto rir. Por outro lado, todos
pareciam drogados. Provavelmente ele estava contando a
eles sobre uma das vezes em que havia sido preso, pensei,
de forma cruel.
Tentei me segurar. Quando foi que eu começara a ficar
assim tão amarga? Não era justo encaixar todo cara mal
vestido e com o cabelo comprido na mesma categoria de
Gus.
Aquele sujeito louro ali, por exemplo, podia até ser legal,
generoso, com um bom coração e muita grana.
Olhei para ele e pensei: "Sabe de uma coisa, ele é uma
gracinha."
Ele me pegou bem na hora em que estava olhando para
ele, piscou e sorriu para mim. Eu virei a cara.
Alguns minutos mais tarde, alguém bateu em meu
ombro. Eu me virei e era ele: o canarinho louro bonitinho
e que falava alto.
— Oi! — berrou ele. Seus olhos tinham um
surpreendente tom prateado, bem brilhante. O padrão de
seu suéter parecia ter sido idealizado durante um ataque
epiléptico.
— Oi. — Sorri. Não pude evitar, foi uma coisa totalmente
automática.
— Saquei você lá do outro lado da sala — sorriu —, e
saquei que você estava me sacando também. Fiquei
imaginando se você não estava a fim de ir comigo até a
varanda, a fim de fumar uma tora de baseado da melhor
qualidade e...
Parou de falar na mesma hora quando viu que eu fiquei
olhando para ele fixamente. Não queria ser mal-educada,
mas tinha que verificar meus sinais vitais para saber se
estava me sentindo atraída por ele. Só que não me
aconteceu nada por dentro, eu continuava fria como uma
pedra.
— Hã... acho melhor não... — desculpou-se ele. — Foi só
uma idéia. — Afastou-se de mim, andando de costas, e o
sorriso fora substituído por um olhar de apreensão e
nervoso. — Idiotice minha eu falar isso, porque não transo
drogas, nem chego perto... "Recuse sempre!" é o meu lema.
Voltou correndo para os amigos e o ouvi falar que eu era
uma policial disfarçada. Todos ficaram com uma cor
acinzentada no rosto e, como se fossem um corpo único,
saíram de fininho da sala.
O que quer que ele imaginara ter reconhecido em mim —
os sinais que eu costumava emitir para atrair homens
daquele tipo — havia sumido. Deve ter sido apenas o
fantasma do meu antigo jeito que surgira por alguns
centésimos de segundo e o induzira ao erro.
Uma pena, pensei, porque ele era mesmo uma graça.
Mais tarde, ouvi alguém reclamar de que não havia
ninguém na festa vendendo drogas. Tive a gentileza de me
sentir culpada.
Era uma festa horrorosa, caidaça... Os vizinhos nem
chamaram a polícia. A música era horrível, não havia
quase nada para se beber nem um homem, um sequer,
que fosse interessante.
Pelo menos ninguém por quem eu me interessasse.
Karen ficou logo com as calcinhas pegando fogo por
causa de um cara grande, com o corpo muito malhado,
cujo pai, diziam na festa, era muito rico. Com sua
determinação habitual, ela foi apresentada a alguém que
sabia de uma pessoa que era amiga de outra que conhecia
o Mister América grandalhão, e acabou conseguindo ficar
de papo com ele.
Charlotte e eu ficamos sentadas no sofá enquanto todo
mundo em volta ignorava a gente por completo. Eu estava
de saco cheio daquele lugar, chegava a arrastá-lo pelo
chão. Charlotte mantinha um contínuo sistema de
comentários sobre todo mundo que passava, do tipo "olhe
aquele ali, Lucy, o jeito como ele fica com os braços
estendidos ao longo do corpo, uma clássica demonstração
de fixação anal tentativa" e "veja aquela outra, Lucy,
parece desesperada pelo afeto do cara ao lado; quando era
bebê, não deve ter sido alimentada no seio".
E eu resmungava:
— E "fixação anal retentiva" que se fala, e o cara de
mãos dadas com a mulher carente é o marido dela.
Como eu lamentava o dia em que Charlotte colocara as
mãos nos meus livros de psicologia prática para mulheres
infelizes.
O tédio continuava. Pelo menos havia a caminhada até o
ponto de táxi e o churrasco grego na esquina para
curtirmos depois que saíssemos dali.
Karen circulava como um cisne em volta do touro
premiado.
— Garotas! — disse para Charlotte e para mim, com
uma cara de "sou tão charmosa, vocês não acham?". —
Este aqui é o Tom. Ele queria que eu o apresentasse a
vocês duas... sabe lá Deus por quê.
Charlotte e eu rimos. Porque sabíamos que estaríamos
em apuros se não o fizéssemos.
— Tom, esta é a Charlotte e esta é a Lucy.
De perto até que ele não parecia tão mau, na verdade.
Olhos castanhos, cabelos castanhos, um rosto bem
simpático. O problema é que eu não conseguia parar de
imaginá-lo todo coberto de molho de churrasco, pronto
para ser servido.
A pessoa que estava ao meu lado no sofá se levantou
para acudir uma amiga que desabara dentro do banheiro.
Tom perguntou a Karen se ela não queria se sentar no
lugar que vagara.
— Não — garantiu ela. Porque preferia ficar ali em pé ao
lado dele, é claro.
— Tem certeza? — perguntou ele, intrigado.
— Absoluta. — E ria alegremente para ele. — Adoro ficar
em pé.
— Tudo bem — respondeu ele, muito intrigado a essa
altura. Para completar, e para o horror de Karen, que
deixou cair o queixo de espanto, ele se sentou bem ao meu
lado.
Rápida como um raio, em um exercício estratégico de
diminuição de danos, Karen se sentou no braço do sofá,
junto de Charlotte. Na verdade, ela se sentou em cima de
Charlotte. Então se debruçou toda por cima de nós, para
poder conversar com o Senhor Filé, quase apagando a
mim e Charlotte.
Mas ela estava desperdiçando o seu tempo.
— Fiquei tão feliz por ter sido apresentado a Karen —
comentou Tom comigo.
Sorri, de modo educado.
— Porque — continuou ele — andei observando você a
noite toda, e estava tentando arrumar coragem para
chegar em você e puxar assunto.
Sorri, de modo educado, novamente.
Caramba! Karen ia me trucidar.
— Então eu mal pude acreditar na minha sorte quando
acabei conhecendo a sua amiga,
— Sobre o que vocês estão falando? — sorriu Karen.
— Estava só contando a Lucy como fiquei contente
quando consegui ser apresentado a você — disse Tom.
Karen jogou os cabelos para trás, em um gesto de
triunfo.
— É que passei a noite toda me perguntando como
conseguiria me aproximar de Lucy — explicou ele
Karen congelou o movimento, com os cabelos no ar. Até
as pontas dos fios pareciam ter ficado rígidas de repente.
Jogou aquele olhar estilo: "Lucy, você vai morrer por
causa disso, sua vaca", para cima de mim.
Eu me encolhi toda no sofá. Alguns dias mais tarde, me
contaram que todas as plantas do apartamento morreram
naquela mesma noite.
Eu não achava Tom nem remotamente atraente. Afinal,
eu era quase vegetariana.
— Que bom que servi de alguma coisa para você, Tom —
disse Karen, com um tom corrosivo. Ficou em pé e foi, a
passos largos, para o outro lado da sala.
Tom e eu olhamos um para o outro, ele em choque, eu
morrendo de medo. Então, de repente, nós dois caímos na
gargalhada.
Era bem típico que Tom estivesse a fim de mim. Porque
eu não estava a fim dele. Eu nem sequer reparara nele.
Sempre achei que a melhor forma de fazer os homens
ficarem interessados em mim era não me interessar por
eles. Só que a coisa tinha de ser a sério. Fingir que não
estava a fim jamais funcionava. Os homens sempre
sacavam que, quando os ignorava e levantava o queixo de
forma altaneira e esnobe, eu estava, na verdade, quase
babando por eles (ouvi essa frase de um deles, exatamente
desse jeito).
Charlotte, obviamente em uma manobra suicida, correu
atrás de Karen, e me deixou ali batendo papo com o
musculoso Tom. Fiquei comovida pela sua pequena
confissão a respeito daquela história de ficar todo nervoso
para falar comigo etc. etc. E ele me pareceu um cara legal.
E claro que pareceu: queria me levar para a cama... quase
estremeci só de pensar. Ele era tão... grande, seria como
transar com um boi.
Não era como Daniel. Ele também era grande, mas era
grande assim, de um jeito legal. Distraída, me pus a
pensar onde é que ele deveria estar naquela noite. De
repente me veio um pensamento horrível: talvez ele
estivesse em uma festa como aquela, fazendo o papel de
Tom, tentando convencer alguma garota a voltar para casa
com ele. Meu estômago se contorceu todo de medo e me
deu uma vontade louca de ligar correndo para ele, na
esperança de que pudesse encontrá-lo em casa, já na
cama... sozinho.
— Ah, não — disse para mim mesma, horrorizada. — Eu
bem que avisei você, Lucy, de que era capaz de isso
acontecer.
Será que, mesmo depois de tudo o que eu dissera,
acabara ficando dependente demais de Daniel?
Forcei a mim mesma a ficar sentada ali, bem quietinha.
Não podia simplesmente telefonar para ele só para
perguntar se ele estava na cama com alguém. E, por falar
nisso, por que é que eu queria tanto saber?
Isso me apavorou tanto que serviu para me acalmar. Eu
jamais havia sido possessiva com Daniel. Jamais me
importara com as pessoas com as quais ele batia papo, ou
quem ele seduzia, quem levava para casa, colocava em
cima da cama e começava a tirar as roupas dela, devagar
e...
O pânico começou a surgir de novo. Ele já estava sem
namorada há muito tempo, e aquilo não podia continuar
para sempre. Ia acabar acontecendo, ele ia encontrar
alguma garota legal, em algum momento. Mas... se ele
começasse a sair com alguém, o que ia acontecer comigo?
Como é que eu ia me encaixar na vida dele?
O que estava acontecendo?, perguntei a mim mesma,
cheia de medo. Eu estava agindo como se estivesse com
ciúmes, como se... como se... como se eu gostasse de
Daniel. Não, não, não queria nem pensar! NÃO IA PENSAR
NAQUILO, quase berrei, bem alto.
Minha cabeça voltou ao presente. Tentei focalizar o
pobre Tom, porque ele me perguntara alguma coisa e
parecia estar esperando avidamente por uma resposta.
— O quê? — perguntei, me sentindo meio tonta.
— Lucy, nós dois podemos sair juntos uma noite dessas?
— Mas eu não estou a fim de você, Tom — soltei, sem
querer. Na verdade o que eu quis dizer foi "não é de você
que estou a fim".
Ele me pareceu meio desbundado.
— Desculpe — disse eu. — É que eu não estava
prestando atenção...
Mas eu estava prestando atenção, sim. Descobri que
ficara muito possessiva com Daniel, e obviamente Daniel
sentira aquilo. Provavelmente ele estava achando que eu
estava a fim dele. Que cara-de-pau.
— Quero apenas levá-la para jantar, Lucy — disse Tom,
humildemente. — Você precisa estar a fim de mim para
isso?
— Desculpe, Tom.
Eu mal conseguia falar com ele. Daniel queria era se ver
livre de mim, compreendi, então. Esse era o motivo de todo
aquele papo de eu precisar começar a viver de novo.
Pequena Sereia, francamente! Ele estava apenas tentando
desgrudar as minhas mãos de cima dele, dedo por dedo.
De repente, senti uma pontada de humilhação, que
rapidamente se transformou em raiva. Tudo bem, então,
pensei, enfurecida, não quero mais papo com Daniel, de
jeito nenhum. Ia arranjar um namorado novo só para
mostrar a ele. Ia aceitar sair com Tom, nos
apaixonaríamos e seríamos felizes de verdade.
— Tom, eu adoraria sair com você — disse. Fiquei com
vontade de estar morta.
— Que legal. — Sorriu Tom. Se eu não estivesse com
tanta pena dele, até que seria legal dar-lhe um soco na
cara.
— Quando você quer sair comigo? — perguntei,
tentando enfiar à força um pouco de entusiasmo na voz.
— Que tal agora? — perguntou ele, cheio de esperança,
Apenas com um pequeno levantar de sobrancelha
consegui
transmitir a Tom que ele estava correndo o perigo de
morrer ali, em questão de segundos.
— Desculpe — pediu ele, amedrontado. — Desculpe,
desculpe, desculpe. Que tal amanhã à noite?
— O.k.
Então ficou combinado. E bem na hora, porque a festa
logo a seguir caiu do galho, deu dois suspiros e depois
morreu.









CAPÍTULO 82
Eu estava decidida a nunca mais tornar a ver Daniel. O
único problema é que, no dia seguinte, tínhamos
combinado de sair para almoçar, em comemoração ao seu
aniversário. Senti que não podia cancelar aquilo. Não
apenas era algo que já fora combinado há semanas, como,
enfim, era o aniversário dele.
Talvez eu me sentisse aliviada, mas tentava não pensar
no assunto. Isso era fácil, porque a atmosfera entre mim e
Karen ficara péssima. Ela estava sem falar comigo, e
andava de um lado para outro pelo apartamento, abrindo
todas as portas só para poder batê-las, logo em seguida,
fazendo um estrondo.
Era muito desagradável. Eu me arrependi amargamente
de ter comentado que ia sair com Tom. Devia estar fora de
mim quando aceitei. Tom era horrível, Karen seria a
companhia ideal para ele. Eu tinha certeza de que não ia
me apaixonar por ele nem provar nada para Daniel.
O medo terrível de que Daniel tivesse conhecido uma
nova garota voltou de mansinho enquanto eu dormia. Eu
tinha certeza de que o terror que eu sentira na noite
anterior era uma suspeita. Já não era apenas uma idéia,
se transmutara em premonição.
Tentei me comportar de forma sensata enquanto me
aprontava para sair. Tinha quase certeza de que não
estava a fim de Daniel, de certo modo. O que sentia por ele
não era nada romântico nem sexual. Na mesma hora,
lembranças do Grande Beijo voltaram, sem convite, mas
eu as bloqueei (eu ainda era muito boa nessa coisa de
bloquear as lembranças indesejáveis, era uma habilidade
maravilhosa). Mas será que eu acabara ficando
dependente demais dele, como amigo? Na esteira da
desintegração da minha família, será que eu começara a
gostar dele?
Bem, se era isso, aquilo tinha de ter um fim.
Eu estava satisfeita comigo mesma por ser tão sensata.
Embora tudo aquilo durasse apenas um minuto. O pânico
voltava quase na mesma hora.
E se ele estivesse na cama com elanaquele exato
momento?
No fim, acabei telefonando para ele. Não consegui me
segurar. Fingi que estava ligando só para confirmar o
lugar onde ia me encontrar com ele, embora estivesse farta
de saber que era na Estação Green Park do metrô, às duas
horas. Para meu alívio, ele não estava com voz de quem
tinha uma mulher na cama, ao seu lado. Embora nunca
pudéssemos ter certeza. A vida de Daniel não era como
naqueles filmes idiotas em que as mulheres ficam dando
griti-nhos e risadinhas quando estão na cama.
Foi uma bênção eu estar às turras com Karen, porque
assim não foi preciso inventar desculpas elaboradas
quando saí para me encontrar com Daniel.
Se ela estivesse falando comigo, ia acabar desconfiando
de alguma coisa, porque, em uma tentativa de provar a
Daniel que eu não era uma bundona na cola dele, me
produzi toda. Meu vestido curtinho com casaquinho
combinando não eram uma proteção apropriada para um
dia frio de março como aquele, mas eu não ligava. O
orgulho ia me manter aquecida.
Ele já estava esperando do lado de fora da entrada da
Estação Green Park, no horário marcado. Quando apareci,
toda agitada, tremendo de frio, correndo na direção dele
com minhas sandálias de tirinhas, ele me lançou um
sorriso tão intenso e fulgurante que quase perdi o
equilíbrio e torci o tornozelo. Fiquei chateada e meio
desconfiada. De que ele estava rindo tanto? Será que era a
alegria de ter uma nova namorada secreta em sua vida
que o fazia dar um sorriso tão largo? Será que era algum
tipo de brilho pós-transa que fazia com que ele parecesse
tão lindo?
— Lucy, você está maravilhosa — disse ele. Depois, me
deu um beijo no rosto e minha pele se arrepiou toda. —
Você não está com frio?
— Nem um pouco — disse, com ar vago, enquanto
examinava discretamente o pescoço dele, em busca de
marcas de chupão, batom, arranhões, dentadas etc.
— Aonde vamos, Lucy? — perguntou ele.
Não consegui descobrir nenhum sinal de recente
atividade sexual nele, mas, como a maior parte de seu
corpo estava coberta por um casacão de inverno, não
havia motivos para respirar aliviada.
— É surpresa — informei, enquanto imaginava se ele
colocara a gola do casaco para cima a fim de esconder o
pescoço cheio de marcas vermelhas. — Vamos logo,
porque estou morrendo de frio!
Droga!, pensei, ao ver que falara a verdade sem querer.
Nossos olhos se encontraram, e a sua boca começou a
tremer nos cantos, enquanto ele tentava segurar o riso.
— Nem pense em me zoar — ameacei.
— Eu não ia fazer isso — disse ele, com humildade.
Levei-o até a rua Arbroath, e quando chegamos à porta
do restaurante Shore apontei para a vitrine e disse:
— Ta-rám!
Ele pareceu impressionado, e fiquei feliz. O restaurante
Shore era um dos mais novos e badalados de Londres,
freqüentado por modelos e atrizes. Pelo menos era o que
as revistas diziam. Aquela, provavelmente, ia ser a
primeira e última vez que eu ia lá.
Assim que colocamos o pé lá dentro, percebi que tinha
subestimado a informação de que o Shore era um lugar
descolado, badalado e chique. Foi a grosseria dos
funcionários que provou o quanto o lugar era realmente o
máximo!
O recepcionista, um rapaz jovem com cara triste, olhou
para mim de cima a baixo como se eu tivesse acabado de
fazer xixi na entrada, de cócoras.
— Sim? — sibilou ele.
— Uma mesa para dois, no nome de...
— Reservaram a mesa com antecedência? — ele me
interrompeu. Imediatamente me deu vontade de dizer:
"Escute aqui, seu babaca, você é apenas o recepcionista,
sabia? Sinto muito pelo fato de que vou gastar mais em
uma refeição aqui do que você ganha em uma semana de
ralação, mas tentar estragar o nosso almoço não vai
ajudar em nada a distribuição de renda no país. Já
pensou em fazer algum curso noturno para subir na vida?
Podia voltar a estudar e tentar passar em alguns
concursos. Aí, talvez, conseguisse um emprego mais
decente."
Porém, como era o aniversário de Daniel e eu queria que
tudo corresse maravilhosamente bem, humildemente
respondi:
— Sim, reservei uma mesa. Está no nome de Sullivan.
Mas eu disse essa frase para o ar. Ele já saíra de trás do
seu pequeno pódio e estava beijando o ar em volta de uma
mulher toda vestida de Gucci, que chegara atrás de nós.
— Kiki, querida — cumprimentou ele, com um jeito
fresco. — Como estava Barbados?
— Sabe como é... apenas Barbados! — E passou na
minha frente. — Acabamos de pousar. David está
estacionando o avião.
Ela deu uma olhada em volta do restaurante. Daniel e
eu, na mesma hora, nos encostamos à parede.
— Somos apenas nós dois — informou ela. — Uma mesa
junto da janela seria ótimo.
— Você... hã... reservou mesa? — Tossiu discretamente
o recepcionista.
— Ai, que distração! — E sorriu de forma gélida. — Sei
que eu devia ter ligado do celular, mas tenho toda a
confiança em você, Raymond.
— Hã... o nome é Maurice — disse Raymond. Ele
pronunciou "Môôôrriiiss".
— Que seja — ela acenou, dispensando a informação. —
Simplesmente nos arrume uma mesa, e depressa. David
está morrendo de fome.
— Sem problemas, meu bem, vamos encontrar um
lugarzinho para vocês em algum lugar. — E sorriu. —
Deixe tudo por conta de Môôôrriiiss,
Verificou seu livro de reservas. Era como se Daniel e eu
tivéssemos nos mesclado com o padrão do papel de parede.
Mesmo que não houvesse nenhum.
— Vamos ver... — murmurava Maurice, ansioso. —
Mesa dez! Eles estão saindo...
Continuava a me ignorar e a Daniel. Odeio você!, pensei.
Se eu estivesse ah sozinha, teria esperado por toda a
eternidade. Mas estávamos ali por causa do aniversário de
Daniel, e eu queria que ele se divertisse e, portanto, decidi
assumir o problema e resolvê-lo com as próprias mãos.
— Desculpe-me, Maurice — pronunciei Morris. — Daniel
está morrendo de fome também. Para falar a verdade, ele
está quase tão faminto quanto David. Gostaríamos de ir
logo para a nossa mesa, por favor. Aquela que nós
deixamos reservada.
Daniel deu uma gargalhada. Maurice virou os olhos
vidrados para mim. Arrancou dois menus à força de seu
montinho e lançou para Kiki um olhar do tipo "meu Deus,
dá pra acreditar?", e saiu na nossa frente pelo restaurante,
em alta velocidade. Parecia ter uma moeda de dez
centavos espetada entre as nádegas de sua bunda magra,
e lhe doía muito não deixá-la cair. Apertado. Muito
apertado, travado... Era tenso o rapaz.
Arremessou os menus em uma mesinha e sumiu. Queria
se livrar da gente o mais depressa possível. Pessoas
comuns, argh!
Daniel e eu nos sentamos. Daniel não parava de rir.
— Essa foi grande, Lucy!
— Desculpe a cena, Daniel. — Sentia-me quase às
lágrimas. — E que eu queria muito que você curtisse este
almoço, porque é o seu aniversário, você tem sido muito
bom para mim, tenho tanto para lhe agradecer, o que
andou fazendo a noite passada?
— Como? — Ele pareceu confuso. — Você quer saber o
que eu fiz ontem à noite?
— Hã... quero — assumi. Não planejei soltar aquilo tão
de repente.
— Saí para tomar umas cervejas com Chris.
— E quem mais?
— Mais ninguém. Ufa!
O alívio foi grande, mas durou apenas trinta segundos,
só até eu descobrir que haveria milhares de outras noites
de sábado no futuro, estendendo-se até a eternidade. E em
cada uma delas havia uma chance de que Daniel
conhecesse uma mulher.
Aquilo me deixou com o farol tão baixo que mal
conseguia ouvir o que ele dizia. Parece que estava falando
sobre nós irmos à apresentação de um comediante
naquela noite.
— Não, Daniel, espere — disse eu, bem depressa —, eu
não posso sair com você esta noite.
— Não pode?
Aquilo era desapontamento?, perguntei a mim mesma,
esperançosa.
— Marquei um encontro com um cara quente —
respondi.
— Sério? Isso é muito legal, Lucy. — Ele precisava
parecer assim tão empolgado por causa daquilo?
— Sim, é ótimo. — Eu me sentia na defensiva e
zangada. — Ele não é um bêbado nem um vagabundo sem
grana. Tem um emprego, um carro e Karen estava a fim
dele.
— Que legal — disse ele. De novo! Confirmei com a
cabeça, em um gesto rápido.
— Bom trabalho — elogiou ele, com entusiasmo.
Bom trabalho?, pensei, com raiva. Será que eu estava
em um estado tão patético?
O dia subitamente pareceu nublado. Fiquei sentada ah,
em silêncio. Aniversário dele ou não, eu me sentia muito
revoltada com Daniel para ser simpática.
— Portanto — avisei —, acho que você não vai me ver
muito de agora em diante.
— Entendo, Lucy — disse ele, gentil. Eu queria chorar.
Continuei sentada, com a cara amarrada, olhando para
a mesa. Daniel deve ter entrado no meu clima, porque, de
forma pouco comum para ele, também ficou muito calado.
Apesar da grosseria dos atendentes, o almoço não foi um
sucesso. A comida estava boa, mas eu não queria comer
nada. Estava muito pau da vida com Daniel. Como ele
ousava ficar assim tão feliz por mim? Como se eu fosse a
aleijada que arrumou um namorado ou algo assim.
Felizmente, o comportamento rude dos garçons nos deu
a oportunidade de ter alguma coisa sobre o que conversar.
Todos eles eram tão condescendentes, com ar de
superioridade, e alguns, pura e simplesmente, grossos à
moda antiga, que, perto do fim do almoço, começamos,
com hesitação, a nos comunicar de novo.
— Babaca! — Daniel me lançou um sorriso enquanto o
nosso garçom ignorava acintosamente o nosso chamado
para pedir o café,
— Canalha estúpido — concordei, sorrindo. Quando a
conta chegou, voamos em cima dela.
— Não, Daniel — insisti —, deixe que eu pago, pelo seu
aniversário.
— Tem certeza?
— Tenho. — Sorri. Mas não por muito tempo, ao ver o
valor que ia ter de pagar.
— Deixe que eu pague a metade — sugeriu Daniel ao ver
minha cara de estarrecida.
— De jeito nenhum.
Novas briguinhas. Daniel tentava pegar a conta da
minha mão, eu a afastava dele etc. No final, ele, de forma
gentil, deixou que eu pagasse.
— Obrigado por um almoço adorável, Lucy.
— Não foi assim tão adorável, foi? — perguntei,
tristonha.
— Foi, sim — confirmou ele, de forma vigorosa e
honrada. — Eu queria mesmo vir até aqui para conhecer o
lugar, e agora já sei como ele é.
— Prometa-me uma coisa, Daniel — pedi, com ar
fervoroso.
— Qualquer coisa.
— Que você jamais vai voltar aqui por vontade própria,
sob hipótese alguma.
— Prometo, Lucy.
Caminhamos juntos até a estação do metrô, e então fui
até o ponto do ônibus. Estava me sentindo muito
deprimida.
Tom se mostrou um perfeito cavalheiro.
Tocou a campainha às sete em ponto, como combinado.
E, também como combinado, não subiu até o apartamento.
O que lhe faltava em graça, elegância e feições suaves ele
mais do que compensava com instinto de autopreservação.
Não era nada bobo, e suspeitava que Karen era má
perdedora e vingativa.
Desci correndo as escadas e fui até onde ele estava me
esperando, no carro. Senti um pequeno choque ao vê-lo
sentado atrás do volante.
Não havia nada de errado, só que ele tinha um jeito de
quem estaria mais à vontade pendurado no gancho em um
açougue, para exibição. Ainda tornava as coisas piores por
usar uma camisa vermelha. Torci para que ele jamais
colocasse piercing no nariz.
Ele me levou a um restaurante. Foi o mesmo
restaurante A Roupa Nova do Imperador ao qual eu fora
com o Daniel no almoço. Maurice estava lá, seu turno
ainda não acabara. Ele olhou com aversão e sem querer
acreditar no que via quando Tom entrou como um estouro
de boiada porta adentro e veio arranhando o chão com o
casco, trazendo-me a seu lado.
Tom me ofereceu jantar, me deu vinho, depois tentou me
carregar para o seu apartamento, com idéias de fazer
"sessenta-e-nove" comigo, imagino.
Não tinha a menor chance.
Era um cara legal, mas eu não iria para a cama com ele
nem que fosse o último homem do planeta. Ele me
adorava por isso.
Seus olhos brilhavam de admiração por mim enquanto
eu o dispensava.
— Gostaria de tornar a sair comigo durante a semana,
Lucy? — perguntou, com avidez. — Poderíamos ir ao
teatro.
— Talvez... — concordei, meio em dúvida.
— Bem, não precisa ser teatro — continuou ele,
ansioso. — Podemos ir jogar boliche. Ou andar de kart. O
que você escolher, na verdade.
— Vamos ver — disse eu, sentindo-me mal. — Eu
telefono para você.
— O.k. — concordou ele. — Aqui está o meu número. E
este aqui é o telefone do meu trabalho. Este outro é o meu
celular. Este aqui embaixo é o fax. O último é o meu e-
mail. E aqui está o meu endereço.
— Obrigada.
— Ligue a qualquer hora — disse, com fervor. — A
qualquer hora do dia ou da noite.
Charlotte soltou a bomba na quinta à noite. Chegou
correndo do trabalho, toda afobada.
— Adivinhe quem foi que encontrei? — guinchou ela.
— Quem? — Karen e eu perguntamos, em uníssono.
— Daniel — sorriu ela. — E ele está de namorada nova!
Eu não podia ver meu rosto, mas senti que fiquei pálida.
— Está de o quê nova? — sibilou Karen. Não parecia
assim tão abalada.
— Namorada — confirmou Charlotte. — E ele estava
lindo. Pareceu muito feliz por me ver.
— E como é que ela era, a piranha? — perguntou Karen,
entre dentes.
Graças a Deus por Karen. Ela estava perguntando todas
as coisas horríveis que eu não conseguia fazer passar pela
garganta.
— Linda — descreveu Charlotte, com entusiasmo. — É
toda mignon e delicada, eu me senti uma elefanta perto
dela. Tem um monte de cabelos pretos, bem cacheados.
Parece uma boneca, e faz lembrar a Lucy. E Daniel está
louco por ela, vocês deviam ter visto a linguagem corporal
dele...
— Lucy não parece uma boneca — interrompeu Karen.
— Ah, parece sim.
— Não parece não. Há uma diferença entre ser baixinha
e parecer uma boneca, sua tonta.
— Bem, ela se parecia com Lucy, de rosto. E o cabelo
também — berrou Charlotte.
— Mas pensei ter ouvido você dizer que ela era linda —
fungou Karen.
A princípio, achei que ela estava fungando daquele jeito
só para mostrar desprezo. Quando, porém, começou a
fungar sem parar e balançar os ombros, seguindo-se uma
sessão de soluços, percebi que ela estava chorando.
Sorte a dela. Em sua posição de ex-namorada, lhe era
permitido chorar por ele. Eu não tinha aquele direito.
— O nojento, asqueroso, canalha safado! — fumegou
ela. — Como ele ousa estar feliz longe de mim? Ele não
devia conhecer ninguém, era para acabar descobrindo que
não conseguiria viver sem a minha presença. Tomara que
ele perca o emprego, que sua casa pegue fogo e desabe,
quero que ele pegue sífilis... não, não, espere... AIDS, não,
não... pior ainda... acne, ele ia detestar isso.
Tomara que sofra um acidente de carro e seu fodomóvel
sofra perda total, e seu pinto fique preso nas ferragens de
uma moedora de carne e depois ele ainda seja preso por
um crime que não cometeu e...
As coisas normais que falamos quando descobrimos que
o ex-namorado teve a audácia de estar namorando outra
pessoa.
Charlotte dava tapinhas nas costas dela para acalmá-la,
mas eu saí de fininho. Não sentia nada por ela, estava
muito ocupada, sofrendo por mim mesma.
Estava em estado de choque.
Acabara de descobrir que estava apaixonada por Daniel.
Mal podia acreditar na minha estupidez, sem mencionar
a minha falta de mancômetro. Suspeitara, por algum
tempo, que gostava dele. Deixar aquilo passar já fora
muito descuido. Mas estar apaixonada por ele, apaixonada,
e não ter me dado conta disso já era negligência criminal.
E pensar no quanto eu gargalhara ao ver todas as
mulheres que haviam se apaixonado por ele no decorrer
dos anos. Mal sabia que um dia aquilo ia acontecer comigo.
Sem dúvida, havia alguma grande lição a ser aprendida
daquilo: "Não zoe os outros para não ser zoada", ou algo
assim.
Não conseguia raciocinar direito, porque as fisgadas
provocadas pelas lágrimas de ciúme estavam me
colocando em estado de demência.
Pior do que o ciúme era o medo de que eu tivesse
perdido Daniel para sempre. Já fazia tanto tempo que ele
não saía com ninguém que eu começara a pensar nele
como propriedade minha.
Grande erro.
Então, fiz a coisa mais idiota que poderia fazer: liguei
para ele.
Ele era a única pessoa que ia conseguir me confortar e
aplacar a minha dor, mesmo tendo sido a mesma pessoa
que a causara.
Aquilo era uma atitude estranha, chorar no ombro de
um amigo por causa de um coração partido, quando a
pessoa no ombro de quem eu estava chorando era, na
verdade, a mesma pessoa que fizera o estrago. Mas eu
jamais conseguia fazer as coisas do jeito normal mesmo.
— Daniel, você está sozinho? — Esperava que ele fosse
dizer que não.
— Estou.
— Posso dar uma passada aí?
Ele não disse "está tarde" ou "o que é que você quer?",
nem "não dá para esperar até amanhã?". Simplesmente
disse:
— Pode deixar que eu passo aí e apanho você.
— Não — reagi. — Eu pego um táxi, a gente se vê já, já.
— Aonde você vai? — Karen me pegou no flagra,
tentando escapar sorrateiramente pela porta da frente.
— Sair — respondi, com um fiapo de desacato. A
infelicidade tinha me tirado um pouco o medo dela.
— Sair para onde?
— Simplesmente sair.
— Você vai se encontrar com Daniel, não vai?
Ou ela era muito observadora ou altamente paranóica e
obsessiva.
— Vou. — Encarei-a de frente.
— Sua babaca burra, você não tem a mínima chance
com ele.
— Eu sei. — E desci as escadas.
— Mesmo assim você vai? — perguntou ela, com
surpresa e um pouco de zanga na voz.
— Vou.
— Você não pode ir lá! — ladrou ela, falando sílaba por
sílaba.
— Quem é que disse? — A essa altura, eu já estava no
meio do segundo lance de escadas, de onde era muito
mais fácil ser valente.
— Eu proíbo você de ir lá!
— Já estou indo...
Ela ficou incandescente de tanta raiva. Mal conseguia
falar.
— Não quero que você faça papel de idiota — finalmente
conseguiu articular.
— Pode ser que não, mas acho que você adoraria me ver
fazer papel de idiota.
— Volte aqui!
— Se manca — disse, corajosa, e caí fora.
— Vou esperar por você! — berrou. — É melhor voltar
para casa...











CAPÍTULO 84
No táxi, pelo caminho, decidi que a única coisa que
podia fazer era contar a Daniel o motivo de eu estar tão
abalada, embora um coro de tragédia grega dentro da
minha cabeça ficasse me implorando para que eu não
fizesse aquilo.
"Você sabe que a última coisa que uma mulher deve
dizer para o homem que ama é que ela o ama!", cantava o
coro na minha cabeça, e clamava: "Especialmente quando
ele não está apaixonado por voce.
— Eu sei! — reagi, desesperada. — Mas é diferente,
comigo e com Daniel. Ele é meu amigo, ele vai me tirar
dessa. Vai me lembrar do quanto ele é terrível com as
namoradas.
"Procure outra pessoa com quem desabafar", cantava o
coro grego. "O mundo está cheio de gente, por que contar
logo para ele?"
— Ele vai me livrar da dor, vai fazer com que eu me
sinta melhor. "Mas..."
— Ele é o único capaz disso — disse, com firmeza e
determinação. "Você não nos engana...", cantou o coro.
"Sabemos que você está aprontando alguma."
— Calem a boca, não estou, não — protestei.
Eu conhecia bem aquela história vitoriana. "Ele não
pode descobrir, jamais, o quanto o amo, pois não
suportaria que ele sentisse pena de mim." Especialmente
se o cara não fosse muito legal, começasse a rir do caso e
contasse a história toda aos amigos, quando eles saíssem
para caçar gansos. Mas nada daquilo se aplicava a mim,
decidi. Não precisava manter a dignidade com Daniel.
Quando ele abriu a porta para mim, senti-me tão feliz de
vê-lo que meu coração deu um pulo.
Droga, pensei, então é verdade mesmo, eu realmente
estou apaixonada por ele.
Corri direto para os seus braços. Ser amiga dele tinha
um monte de vantagens das quais eu não tinha a mínima
intenção de desistir só porque ele arranjara uma
namorada nova.
Pendurei-me no pescoço de Daniel com toda a força, e
ele, justiça seja feita, me abraçou bem apertado.
Ele deve ter achado que eu estava me comportando de
modo muito estranho, mas, sendo o cara decente que era,
não tocou no assunto. Eu ia explicar tudo a ele logo em
seguida, decidi. Por enquanto, porém, queria ficar bem ali
onde estava. Ele ainda era meu amigo, eu ainda tinha o
direito de ser abraçada por ele. E por alguns momentos eu
podia ficar ali, fingindo que ele era meu amante.
— Desculpe por tudo isso, Daniel, mas preciso que você
seja meu amigo neste momento.
Mentira, é claro, mas não podia dizer "desculpe por tudo
isso, Daniel, mas quero me casar com você e ser a mãe
dos seus filhos".
— Eu vou ser sempre seu amigo, Lucy — murmurou ele
enquanto acariciava o meu cabelo.
Grande coisa!, pensei, de modo amargo, mas só por um
momento. Ele era um grande amigo. Não era sua culpa
que eu fosse idiota o suficiente para me apaixonar por ele.
Depois de algum tempo, senti-me forte o bastante para
me desembaraçar dele.
— Então, o que há de errado com você? — perguntou-
me ele. — É alguma coisa com o seu pai?
— Ah, não, nada desse tipo.
— Tom?
— Quem? Ah, não, coitado do Tom, não é nada com ele.
Por que as pessoas por quem não nos apaixonamos
sempre se apaixonam por nós, Daniel?
— Não sei dizer, Lucy, mas é assim que as coisas são.
E você não sabe nem metade da história, pensei,
nervosa. Tomei fôlego e disse:
— Daniel, preciso falar com você.
Mas quando tentei contar a ele o que havia de errado
comigo, não foi tão fácil quanto imaginei que seria. Na
verdade, foi esquisito e embaraçoso.
A idéia romântica que eu construíra de voar nos braços
dele, esperando que me beijasse e magicamente acabasse
com a minha dor, se evaporara, Ele tinha uma nova
namorada, pelo amor de Deus! Eu não tinha direito algum
sobre ele. O que poderia falar? "Olha, Daniel, quero que
você termine com a sua nova namorada"? Claro que não!
— Hã... Lucy, o que você quer falar comigo? —
perguntou, depois que os segundos começaram a passar e
eu continuava sem dizer nada,
Fiquei olhando para minhas mãos durante séculos,
tentando achar as palavras certas.
— Charlotte me disse que você arranjou uma namorada
nova, e eu fiquei... hã... com ciúmes — consegui soltar,
finalmente. Não conseguia olhar para ele nos olhos e me
encolhi toda.
Talvez contar aquilo a ele não fosse uma boa idéia.
Talvez fosse uma péssima idéia.
Eu não devia ter ido até lá. Compreendi que só podia
estar doída. Devia ter ido para a cama e esperado, quieta.
A dor ia acabar passando.
— Só porque ela é baixinha e tem cabelo escuro —
acrescentei, depressa, em uma tentativa de recuperar um
pouco do terreno e da dignidade perdida. Eu estava errada
a respeito da dignidade: precisava manter a minha com ele.
Não tenho problemas quando você transa com louras
peitudas, mas fico me lembrando o tempo todo daquela
noite na casa do meu pai, quando você me dispensou e
fiquei achando que era porque eu não era o seu tipo. Não
me senti muito bem quando Charlotte contou que a garota
nova que você conheceu se parecia um pouco comigo,
porque fiquei pensando... O que havia de errado comigo
naquela noite, então?...
— Ah, Lucy. — Ele deu uma espécie de risada. Estava
rindo de mim ou para mim? Aquilo era bom ou mau?
— Acho que a Sascha realmente se parece um pouco
com você — disse ele. — Eu nem tinha reparado, mas,
agora que você mencionou o fato...
Sascha. Tinha de ser um nome assim. Por que ela não
podia se chamar Madge?
— Enfim, era isso que havia de errado comigo — disse,
falando depressa, em uma tentativa atrasada de recuperar
o terreno perdido. — Nada de importante, reagi com
exagero ao fato, como sempre. Você sabe como é que sou.
Bem, de qualquer modo, foi bom desabafar. Agora, tenho
que ir andando...
Levantei-me para ir embora, e se tivesse saído naquela
hora, naquele segundo, teria evitado a chegada da minha
raiva. Mas não, acabamos nos encontrando bem na porta,
e ela chegou cambaleando, suada e ofegante, cansada da
longa jornada do outro lado da cidade.
"Desculpe por ter me atrasado", disse ela, quase sem
fôlego, apertando o peito. "O engarrafamento estava
horrível! Mas, agora, cheguei!...", e, com isso, girei o corpo
e fiquei de frente para Daniel, furiosa, dizendo:
— Você podia ter me contado, sabia, que tinha arranjado
uma namorada nova. Em vez de ficar me dando aqueles
conselhos todos, aquela... bosta toda — joguei na cara
dele — ... me dizendo que eu precisava começar a sair
mais. Bastava apenas me avisar que eu estava atrasando
o seu lado e que a Sascha precisava de você mais do que
eu. Eu teria compreendido, sabia?
Ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas não deixei.
— Se você me queria fora do seu caminho, era só falar.
Você acha que eu ia me importar, que ia ficar cheia de
ciúmes? Que presunção a sua! Você se acha lindo, não é?
Acha que toda mulher é louca por você.
Mais uma vez, ele tentou falar alguma coisa, parecia
estar balançando a cabeça, tentando negar alguma coisa,
mas ele não tinha a mínima chance.
— Nós éramos para ser amigos, sabia, Daniel? Como é
que você pôde fazer isso, ficar fingindo que estava
preocupado comigo? Que se importava comigo?
— Mas...
— Quando é óbvio que a única pessoa com quem você se
importa é com você mesmo!
Essa é a parte, na maior parte das brigas, em que a
troca de insultos aos berros se transforma em um
lamentar choroso. E aquela não foi exceção. Dava para
acertar o relógio de tanta precisão. Minha voz começou a
vacilar, quase no final da escala de firmeza, e compreendi
que estava perigosamente próxima de cair no choro.
Mesmo assim, não fui embora. Como uma idiota, fiquei ali,
parada, na esperança de que ele pudesse ser legal comigo,
de que pudesse me dizer algo que fizesse com que eu me
sentisse melhor.
— Eu não estava fingindo — protestou ele. — Eu estava
preocupado de verdade com você.
Odiei aquele olhar de pena que senti em seus olhos.
— Bem, pois não precisava — disse, com grosseria. —
Sei cuidar de mim muito bem sozinha.
— Sabe mesmo? — Ele me pareceu pateticamente
esperançoso, Que ousadia!
— Claro que sei! — joguei na cara dele.
— Isso é ótimo — disse ele.
Como é que ele podia ser tão cruel?, perguntei a mim
mesma, sentindo a dor me cortar ao meio.
Era fácil para ele, compreendi, então. Muito fácil. Ele já
havia feito isso um monte de vezes, com um monte de
mulheres, por que eu receberia tratamento especial?
— Adeus, Daniel! Espero que as coisas corram muito
bem para você e a sua maravilhosa Sascha — disse eu,
com sarcasmo.
— Obrigado, Lucy, e desejo também toda a sorte do
mundo para você e o seu rico Tom.
— E por que você está sendo assim tão desagradável
agora? — perguntei, surpresa.
— E por que você está sendo assim tão desagradável
agora? — perguntei, surpresa.
— Qual é o seu palpite a respeito? — Sua voz de repente
aumentou em vários decibéis.
— E como é que posso saber? — berrei de volta.
— Acha que é a única que pode ter ciúmes? — gritou ele.
Parecia furioso.
— Sei que não — disse eu. — Só que, para ser franca,
Daniel, não estou dando a mínima para os ciúmes de
Karen neste instante.
— Mas de que diabos você está falando? — perguntou
ele. — Eu estou falando de mim, Estou louco de ciúmes
também! Passei meses e meses esperando pelo momento
certo, esperando que você conseguisse superar os
problemas com o seu pai. Fiz tudo o que pude para
impedir a mim mesmo de dar uma cantada em você. Tive
tanta paciência que só faltava me matar.
E fez uma pausa para tomar fôlego. Fiquei olhando para
ele, sem conseguir falar. Antes de conseguir colocar tudo o
que sentia para fora, ele começou a gritar de novo:
— E então! — ele rugiu na minha cara. — E então,
quando finalmente consegui convencer você de que já
estava na hora de voltar a ter um relacionamento com um
homem, você vai e sai com outro cara! Eu queria dizer que
era eu. Queria que você pensasse em ter um
relacionamento comigo, e, em vez disso, um cara riquinho,
sortudo de uma figa, se dá bem com você.
Minha cabeça girava enquanto eu tentava absorver tudo
aquilo.
— Espere um instante, dá um tempo aqui. Por que você
está dizendo que Tom é um sortudo de uma figa? —
perguntei. — Só porque ele é rico?
— Não! — berrou Daniel. — Porque ele está saindo com
você, é claro!
— Mas ele não está saindo comigo — reagi. — Saí com
ele apenas uma vez, e fiz isso só para deixar você chateado.
Não que tenha funcionado.
— Não que tenha funcionado? — soltou Daniel. — É
claro que funcionou! Tomei um porre tão grande no
domingo à noite que fiquei de ressaca na segunda e não
fui nem trabalhar.
— Sério? — perguntei, momentaneamente distraída pela
informação. — Você ficou assim, tipo vomitando? Ficou
assim tão mal?
— Não consegui comer nada até terça à noite — disse ele.
Houve um pequeno silêncio e, por um momento, éramos
apenas
Daniel e Lucy novamente.
— E que lance foi aquele mesmo de você querer passar
uma cantada em mim? — perguntei.
— Nada, esqueça aquilo — disse ele, com a cara
amarrada.
— Conte logo! — berrei.
— Não há nada a contar — murmurou ele. — É que
simplesmente era muito difícil manter minhas mãos longe
de você, mas eu sabia que era o que eu devia fazer, porque
você estava vulnerável demais. Se alguma coisa tivesse
acontecido entre nós naquele momento, eu ficaria
eternamente achando que você tinha topado apenas por
estar confusa.
— Foi por isso que vim com aquele papo de trazer você
de volta para o mundo dos vivos — continuou ele. —
Queria que estivesse com a cabeça clara e tivesse
condições de tomar decisões por si mesma, para que
quando eu a convidasse para sair, e você aceitasse, eu não
sentisse que estava me aproveitando da situação.
— Me convidar para sair? — perguntei, cautelosa.
— Para sair, para sair — disse Daniel, meio tímido. —
Assim, feito namorado e namorada.
— Sério? — perguntei. — Tá falando sério? Então aquele
papo todo de que eu devia conhecer gente nova não era só
para me tirar do caminho para a Sascha entrar?
— Não.
— Mas, então, quem é essa tal de Sascha, afinal? —
perguntei, com ciúmes.
— Uma garota do meu trabalho.
— E ela é parecida comigo?
— Acho que faz lembrar você um pouco. Embora ela não
chegue nem perto de ser tão maravilhosa quanto você —
comentou ele, de passagem. — Nem tão engraçada, nem
tão sexy, nem tão linda ou inteligente.
Fiquei sentada, muito quieta. Aquilo estava prometendo.
Mas não o bastante.
— Há quanto tempo você vem saindo com ela? —
perguntei.
— Mas eu não estou saindo com ela! — Ele pareceu
chateado.
— Mas a Charlotte disse que...
— Por favor! — Daniel colocou a mão na testa, como se
estivesse com dor de cabeça. — Aposto que Charlotte falou
um monte de coisas, e você sabe o quanto gosto dela, mas
nem sempre ela entende as coisas do jeito certo.
— Então você não está saindo com a Sascha? —
perguntei.
— Não.
— E por que não está?
— Achei que não seria certo sair com ela sabendo que
estou apaixonado por você.
Meu cérebro entrou em estado de choque. As palavras
chegaram muito antes dos sentimentos.
— Oh... — disse eu, surpresa.
Não conseguia achar nada para dizer. Para mim já teria
sido bom o bastante se ele dissesse que gostava de mim.
Nossa, isso era demais!
— Eu não devia ter dito isso. — Daniel pareceu arrasado.
— Por que não? Não é verdade?
— É claro que é verdade! Não saio por aí dizendo para
um monte de mulheres, a torto e a direito, que estou
apaixonado por elas. Só que não quero deixar você
assustada. Por favor, Lucy, esqueça o que falei.
— Não esqueço não — disse, irritada. — Essa é a coisa
mais legal que alguém já falou para mim.
— É mesmo? — perguntou ele, esperançoso. — Quer
dizer que você também...
— Sim, sim... — E abanei a mão, distraída. Queria um
tempinho para me concentrar no que ele me dissera. Não
podia ficar dando atenção a ele.
— Eu amo você também — acrescentei. — Acho que o
amo há séculos.
Felicidade e alívio começaram a me formigar por dentro,
aumentando de intensidade até se transformar em um
fluxo constante, para finalmente jorrar como se estivesse
escorrendo por um cano quebrado. Mas eu precisava ter
certeza.
— Você está mesmo apaixonado por mim? — perguntei,
meio desconfiada.
— Ai, meu Deus, estou!
— Desde quando?
— Há muito tempo.
— Desde a época do Gus?
— Desde muito antes do Gus.
— E por que você nunca me contou isso?
— Porque você ia se acabar de tanto rir, ia me zoar, me
humilhar e...
— Eu não faria isso — repliquei, ofendida.
— Ah, faria sim.
— Faria?
— Sim, Lucy.
— É... talvez fizesse mesmo — concordei, relutante.
— Puxa, desculpe, Daniel — precisava me desculpar
muito com ele —, mas eu tinha que ser má e implicante
com você, porque você é atraente demais!
— E isso é um elogio — acrescentei.
— Sério? — perguntou ele. — Mas todos os caras com
quem você saía eram completamente diferentes de mim.
Como é que eu podia competir com um cara como o Gus?
Ele tinha razão. Até há bem pouco tempo eu não
suportaria um namorado que não tivesse um terrível
problema de falta de grana e não bebesse demais.
Refleti um pouco mais sobre isso.
— Você está mesmo, de verdade, apaixonado por mim,
Daniel?
— Sim, Lucy.
— Não, estou falando apaixonado a sério?
— Sim, a sério.
— Bem, nesse caso, será que podemos ir para a cama?



CAPÍTULO 85
Aturdida pela minha audácia, levei-o pela mão até o
quarto.
Estava dividida, cheia de tesão, por um lado, e morrendo
de vergonha, por outro. Porque, no fundo, eu ainda tinha
medo de que alguma coisa pudesse sair terrivelmente
errada.
Era muito fácil para ele sair por aí me dizendo que me
amava, mas o teste verdadeiro, o lance mais importante,
era o da cama.
E se eu fosse uma merda na cama?
E quanto ao fato de que tivéramos apenas amizade por
mais de dez anos? O potencial para haver inibições era
alto. Como é que podíamos ficar todos melosos e
românticos um com o outro sem cair na risada?
E se ele me achasse horrorosa? Daniel estava
acostumado a mulheres com peitos imensos. O que diria
ao ver meus seios achatados como dois ovos fritos?
Estava tão nervosa que quase mudei de idéia.
Mas também nem tanto assim.
Tinha uma oportunidade de dormir com ele e estava
disposta a ir até o fim. Eu o amava. E também estava
muito a fim dele.
Entretanto, após a minha iniciativa promissora, quando
audaciosamente o carreguei pela mão, meu ataque de
galinhagem acabou. Ao chegar ao quarto dele, fiquei sem
saber exatamente o que fazer. Será que eu deveria me
envolver sedutoramente com as pontas do edredom?
Será que devia empurrá-lo de costas sobre a cama e
pular em cima dele? Não ia conseguir, aquilo era
mortificante.
Sentei-me quieta, bem na pontinha da cama. Ele se
sentou ao meu lado.
Puxa, essa parte era muito mais fácil quando eu estava
bêbada. — O que foi? — sussurrou ele.
— E se você me achar medonha?
— E se você achar que eu sou medonho?
— Mas você é lindo! — Dei uma risadinha.
— Você também.
— Estou tão nervosa — cochichei.
— Eu também.
— Não acredito em você.
— Mas estou sim, sinceramente — afirmou ele. — Olhe
aqui, sinta só os batimentos do meu coração.
Aquilo me deixou cabreira. No passado, sempre que eu
esticava a mão para sentir os alegados batimentos do
coração de um rapaz, a minha mão era colocada sobre o
membro ereto do tal rapaz, e depois esfregada para cima e
para baixo ao longo do citado membro, em alta velocidade.
Só que Daniel realmente colocou a minha mão sobre o
seu coração. E, sim, era verdade. Parecia estar havendo
um bocado de movimento dentro do seu peito.
— Eu amo você, Lucy — disse ele.
— Eu amo você também — afirmei, tímida.
— Deixe eu lhe dar um beijo — pediu ele.
— O.k. — Levantei o rosto, mas fechei os olhos. Ele
beijou meus olhos, minhas sobrancelhas, foi beijando ao
longo da minha testa, junto do cabelo, e depois veio
descendo lentamente até o pescoço. Beijos leves e
sedutores que quase não dava para agüentar de tão
prazerosos. Então ele beijou o canto da minha boca e
suavemente puxou meu lábio inferior com os dentes.
— Pode pular a parte de me deixar com as costas
arqueadas de prazer — reclamei — e me beije direito.
— Bem, se a minha forma de beijar não está de acordo
com as expectativas da madame... — E riu.
Então fez aquele jeito maroto, com a boca torta, que ele
sabia fazer tão bem. E eu o beijei. Não consegui me
segurar.
— Achei que você havia dito que estava nervosa —
comentou ele.
— Shh... — Coloquei meu dedo sobre seus lábios. —
Quase me esqueci disso por um segundo.
— Que tal se eu me deitar aqui na cama e você deitar
bem aqui junto de mim, em meus braços? — perguntou
ele, enquanto me puxava para trás, junto dele, por sobre a
cama. — Isso é muito teatral para você?
— Não, isso foi legal, embora tenha sido feito de forma
desajeitada — disse eu para o peito dele.
— Há alguma chance de você tornar a me beijar,
Lucy? — sussurrou ele.
— O.k. — sussurrei de volta. — Mas não quero nenhum
movimento brusco e astuto de sua parte, como arrancar o
meu sutiã de uma vez só, por exemplo.
— Não se preocupe, Lucy, vou ficar só apalpando, de
forma meio desajeitada.
— E não me venha com essa de perguntar: "Ora, o que é
isso, Lucy?", e fazer surgir as minhas calcinhas de trás da
minha orelha. Entendeu? — perguntei, com a cara feia.
— Mas esse era o meu truque especial — reclamou
ele. — E a coisa mais espetacular que consigo fazer na
cama.
Tornei a beijá-lo e relaxei um pouco. Era maravilhoso
ficar ali deitada, tão junto dele, inalando o cheiro de
Daniel, tocando o seu rosto maravilhoso. Nossa, ele era
muito sexy!
— Você me ama mesmo? — tornei a perguntar.
— Lucy, eu amo você tanto, tanto...
— Não, quero saber se me ama no duro, de verdade
mesmo.
— No duro, sério, de verdade mesmo — disse ele,
olhando-me nos olhos. — Mais do que já amei qualquer
outra pessoa, mais do que você pode imaginar.
Relaxei por um segundo. Apenas por um segundo.
— Sério mesmo? — perguntei.
— Sério.
— Não, Daniel, estou perguntando na boa, é sério
mesmo}
— Sério, sério!
— O.k.
Houve um curto silêncio.
— Você não se incomoda de eu ficar perguntando toda
hora, não é? — perguntei.
— Nem um pouco.
— É que preciso ter certeza total.
— Compreendo perfeitamente. Você acredita em mim?
— Acredito.
Continuamos deitados, sorrindo um para o outro.
— Lucy? — disse Daniel.
— Que foi?
— Você me ama de verdade?
— Daniel, eu amo você de verdade.
— Não, Lucy — disse ele, meio sem graça. — Eu quero
saber se você me ama de verdade, sério mesmo. No duro,
realmente?
— Realmente, no duro, eu amo você, Daniel.
— Sério?
— Sério.
Muito, muito devagar, ele começou a tirar as minhas
roupas, conseguindo de forma magistral abrir zíperes e
arrancar botões de pressão que eram difíceis de ser
arrancados. A cada vez que abria um botão, me beijava
por mais ou menos uma hora antes de abrir o seguinte.
Ele me beijou em toda parte. Bem, quase em toda parte,
graças a Deus ele deixou meus pés em paz. A Fergie, do
conjunto Black Eyed Peas, ia ter muito que explicar: os
homens pareciam achar que precisavam lamber os dedos
dos pés das mulheres antes de completar suas tarefas na
cama. Há alguns anos, a onda era cunni-lingus, que eu
sempre achei a parte mais chata do sexo. Enfim, eu não
gostava de homens chegando com a boca perto dos meus
pés, a não ser que eu tivesse sido avisada com
antecedência. Pelo menos com antecedência suficiente
para ir à pedicure e dar uma caprichada.
Ele me beijou, abriu botões, continuou me beijando e
abaixou a minha blusa no ombro, só de um lado, tornou a
me beijar, abaixou a blusa no outro ombro, me beijou de
novo, não fez comentários sobre as manchas de tinta cinza
nas minhas calcinhas brancas, me beijou novamente,
disse que os meus seios não pareciam ovos fritos, tornou a
me beijar, disse que eles pareciam pãezinhos de
hambúrguer, me beijou de novo.
— Você é tão linda, Lucy — dizia ele, sem parar. — Eu
amo você. Até que fiquei sem roupa nenhuma.
Havia algo de muito erótico em estar nua enquanto ele
ainda estava completamente vestido.
Cobri meus seios com os braços e me encolhi toda de
lado, como uma bola.
— Coloque seu instrumento para fora — disse eu, dando
uma risadinha.
— Você é tão romântica, Lucy — disse ele, tirando um
dos meus braços de cima do peito, e depois o outro.
— Não fique escondendo o seu corpo — pediu. — Você é
linda demais!
Com carinho, forçou meus joelhos a se afastarem do
peito também.
— Pára com isso — pedi, tentando esconder minha
excitação. — Como é que pode?, eu estou aqui, sem um
fiapo de roupa sobre o corpo e você ainda está todo vestido?
— Posso tirar as roupas também, se você quiser —
brincou ele.
— Então tire — disse eu, tentando ser esperta.
— Peça para eu tirar.
— Não.
— Então é você que vai ter de tirar minha roupa.
E eu tirei as roupas dele. Meus dedos tremiam tanto que
mal consegui abrir os botões da camisa. Mas valeu a pena.
Ele tinha um peito lindo. Com a pele lisa e uma barriga
perfeita, bem reta.
Tracei a linha de pêlos que saía do umbigo dele com a
unha, descendo até o cinto, e um arrepio me percorreu por
dentro quando o ouvi gemer.
Com o canto dos olhos, dei uma olhada rápida na parte
da calça que ficava entre suas pernas e fiquei assustada e
excitada, quando notei o jeito como o tecido estava
esticado.
Finalmente consegui reunir coragem suficiente para
começar a abrir lentamente as suas calças. O problema é
que eu não estava acostumada a homens que usavam
terno. As calças de Daniel tinham um sistema de botões e
zíperes tão complicado que rivalizava com o sistema de
segurança de Fort Knox.
Finalmente, conseguimos liberar sua ereção esticada por
trás da cueca.
Ele passou no teste das roupas íntimas. O que era bem
mais do que o que se podia dizer das minhas. As calcinhas
que eu estava usando já tinham visto dias melhores, a
maior parte deles dentro da máquina de lavar, misturadas,
por engano, com roupas pretas.
Ele era lindo. E havia algo que o tornava ainda mais
atraente para mim. Ele não era perfeito. Embora seu corpo
fosse lindo, não era elaboradamente malhado, com a
musculatura toda esculpida como a daqueles caras que
passavam a vida na academia.
A sensação de sua pele sobre a minha era indescritível.
Tudo me parecia tão mais sensível! A pele da parte de
dentro dos meus braços parecia formigar quando eu os
envolvia nas costas dele.
A sensação da firmeza de suas coxas em contato com a
maciez das minhas me deixava toda mole, e sua ereção de
encontro à minha umidade era explosiva.
Todo o embaraço se fora. Apenas o desejo permanecera.
Quando eu via o seu olhar, não sentia mais uma
necessidade de rir histericamente. Havíamos conseguido
ultrapassar a linha: não éramos mais Daniel e Lucy,
éramos um homem e uma mulher.
Não mencionamos controle de natalidade, mas, quando
o momento chegou, nos comportamos como dois adultos
responsáveis vivendo os tempos modernos do HIV positivo.
Ele fez surgir uma camisinha e eu o ajudei a colocá-la. E
então, nós... hã... vocês sabem.
Ele gozou em menos de três segundos. Era de virar a
cabeça, de tão erótico, ver o rosto de Daniel se contorcer
todo em êxtase, êxtase provocado por mim.
— De-desculpe, Lucy — gaguejou ele. — Não consegui
me segurar. Você é tão linda, e eu a desejava há tanto
tempo...
— E eu achava que você fosse brilhante na cama —
reclamei, para implicar com ele. — Nunca me disseram
que você era uma mercadoria defeituosa, com ejaculação
precoce.
— Mas eu não sou — protestou, ansioso. — Isso não
acontecia desde a minha adolescência. Deixe passar uns
cinco minutos e eu vou provar isso pra você.
Fiquei envolvida no círculo formado pelos seus braços e
ele continuou com a constante cobertura de beijos,
enquanto acariciava minhas costas, minhas coxas e o meu
estômago.
E em um espaço de tempo admiravelmente curto,
conseguiu se preparar para fazer amor comigo novamente.
A segunda vez levou séculos, e ele fez tudo de forma bem
lenta, quase me levando à loucura, com toda a atenção
focada apenas em mim, no que eu queria e sentia.
Ninguém jamais fora assim tão generoso e desprendido
comigo na cama. E atingi o clímax como jamais havia
conseguido antes, estremecendo e vibrando
involuntariamente, com os olhos arregalados de tanto
choque e prazer.
Dessa vez, quando ele gozou, manteve os olhos abertos e
olhou para mim. Quase me dissolvi com aquilo de tão
erótico que foi.
Nós nos abraçamos fortemente, era como se não
conseguíssemos ficar próximos um do outro o suficiente.
— Gostaria de poder abrir a minha pele para colocar
você todinha dentro de mim — disse ele. E também senti o
que ele queria dizer.
Ficamos em silêncio por algum tempo.
— E então, até que não foi assim tão mau, foi? —
perguntou Daniel. — Do que é que você estava com medo?
— De um monte de coisas. — Ri. — De que você pudesse
achar que eu tinha um corpo horrível. De que você
pudesse me obrigar a fazer coisas estranhas.
— Você tem um corpo lindo. E que coisas estranhas são
essas? Sacos plásticos e laranjas?
— Bem, não exatamente, porque você não é membro do
Parlamento inglês, mas outras coisas.
— Agora eu fiquei bolado. O que é que anda rolando por
aí?
— Você sabe — disse eu, meio sem graça.
— Não sei não — afirmou ele.
— Bem — expliquei —, é que tem alguns homens que
falam assim, tipo "dá para você plantar uma bananeira,
gata?... isso... não se preocupe com a dor, já me disseram
que depois de um tempo fica mais fácil de agüentar. Agora,
mantenha as suas pernas em um ângulo de cento e trinta
graus uma da outra, porque vou tentar entrar por trás, e
aí você vai poder mexer o corpo todo, fazendo um
movimento de pinça, fechando mais ou menos oito graus,
não, eu disse oito graus, você está fechando dez graus,
sua burra, está querendo me matar?", esse tipo de coisa.
Ele começou a rir sem parar, e isso foi maravilhoso
também. E então, agora mais sonolentos e mais relaxados,
fizemos amor de novo.
— Que horas são? — perguntei, mais tarde.
— Umas duas da manhã.
— Você vai ter que trabalhar de manhã?
— Vou. Você vai também?
— Vou, acho que era melhor a gente tentar dormir um
pouco — disse eu.
Mas não dormimos.
Eu estava morrendo de fome, então Daniel foi até a
cozinha e voltou com um pacote de biscoitos de chocolate.
Ficamos ali, deitados na cama, e comemos tudo,
abraçados um ao outro, nos beijando e falando sobre
muitas coisas e nada em particular.
— Acho que eu devia entrar para uma academia — disse
ele, com cara de lamento, espetando o estômago com o
dedo. — Se eu soubesse que isto ia acontecer, teria
começado a malhar há alguns meses.
Isso, mais do que qualquer outra coisa, me fez sentir
ligada a ele. Quando acabamos com os biscoitos, ele me
ordenou:
— Levante-se. Eu me levantei.
Ele começou a sacudir o lençol com vigor, para limpar as
migalhas.
— Não aceito que a mulher que eu amo durma sobre
migalhas de biscoito de chocolate — explicou.
Enquanto eu sorria para ele, o telefone tocou e eu dei
um pulo de quase um metro. Daniel atendeu.
— Alô... Oi, alô, Karen... sim, na verdade eu estou na
cama. Silêncio.
— Lucy? — perguntou ele, lentamente, como se jamais
tivesse escutado o meu nome. — Lucy Sullivan?
Outro silêncio.
— Lucy Sullivan, a garota que divide o apartamento com
você? Essa Lucy Sullivan? Sim, ela está bem aqui, ao meu
lado.
— Sim, isso mesmo, bem aqui ao meu lado, na cama —
disse ele. — Você quer falar com ela?
Fiz todos os tipos de gestos frenéticos de negação, formei
uma cruz com os dois dedos indicadores e os segurei com
firmeza, bem diante do fone.
— Ah, sim! — respondeu Daniel, todo alegre. — Três
vezes. Não foram três vezes, Lucy?
— O que foram três vezes? — perguntei.
— O número de vezes que nós fizemos amor nas últimas
duas horas.
— Hã... foi sim... três — disse eu, baixinho.
— Foi sim, está confirmado, Karen... Três vezes. Mas
estamos planejando fazer mais uma vez antes de o dia
raiar. Há mais alguma coisa da qual você queira ser
informada?
Ouvi gritos e desaforos de Karen. Deu para ouvir até o
barulho do fone sendo desligado, de tanta força que ela
usou para batê-lo na cara de Daniel.
— O que foi que ela disse? — perguntei.
— Que espera que peguemos Aids um do outro.
— Só isso?
— Hã... sim.
— Pára com isso, Dan, o que mais ela disse?
— Lucy, não quero deixar você chateada...
— Então, tem que me contar, agora.
— Ela disse que dormiu com o Gus enquanto você
estava saindo com ele.
Daniel ficou olhando para mim com preocupação.
— Isso a deixou chateada?
— Não, estou mais é aliviada. Eu sempre senti que havia
mais alguém. Mas, e você, ficou chateado?
— Por que eu deveria ficar chateado? Eu não estava
saindo com o Gus...
— Não, mas estava saindo com Karen na mesma época
em que eu estava saindo com o Gus. Se ela dormiu com o
Gus, então...
— Ah, entendi — disse ele, com uma cara alegre. — Isso
quer dizer que ela me chifrou.
— Você se importa? — perguntei, preocupada.
— É claro que não me importo. Não ligo a mínima para o
fato de Karen ter dormido com ele. Era você dormindo com
ele que me deixava chateado.
Continuamos em silêncio depois de nosso círculo de
felicidade ter sido rompido.
— Vou ter que me mudar de lá — disse eu, finalmente.
— Pode se mudar para cá — ofereceu ele.
— Não seja ridículo — reagi. — Estamos um com o outro
há apenas três horas e meia. Não é um pouco cedo para
começar com esse papo de morar junto?
— Morar junto? — Daniel pareceu chocado. — Quem é
que falou em morar junto?
— Você.
— Não, eu não! Tenho o maior medo da sua mãe para
fazer uma sugestão como esta; viver em pecado com a sua
única filha.
— Bem, nesse caso, sobre o que você está falando?
— Lucy — disse ele, meio sem graça —, é que eu estava...
hã... você sabe... perguntando a mim mesmo se...
— O quê?
— Será que não haveria alguma chance...? Você sabe...?
— Alguma chance de quê?
— Você provavelmente vai achar que é muita ousadia de
minha parte pedir uma coisa dessas, mas é que eu a amo
tanto que...
— Daniel! — implorei. — Por favor, me conte logo sobre
o lance em que você está pensando.
— Você não precisa me dar a resposta agora mesmo,
nem nada assim, correndo.
— Dar a resposta para o quê?
— Pode levar o tempo que quiser pensando no assunto,
leve séculos, se achar melhor.
— Pensar EM QUE ASSUNTO? — berrei.
— Desculpe, eu não queria deixar você tão irritada, mas
é que eu, hã... bem...
— Daniel, o que você está tentando me dizer?
Ele fez uma pausa, respirou bem fundo e soltou, de uma
vez só:
— Lucy Carmel Sullivan, você aceita se casar comigo?

EPÍLOGO
Hetty nunca mais voltou ao escritório, se divorciou de
Dick, abandonou Roger, se livrou das saias de tweed,
comprou um monte de leggings, se matriculou em uma
faculdade de estudos femininos e agora está envolvida
romanticamente com uma sueca de cara sisuda chamada
Agnetha. Segundo as informações de Meredia, nenhuma
das duas depila os sovacos.
Frank Erskine também nunca mais voltou a trabalhar.
Aposentou-se mais cedo e saiu da empresa sem festinha
de despedida. Dizem que anda jogando muito golfe.
Adrian agora só trabalha na locadora nos fins de
semana, pois arrumou uma vaga em um curso para
cineastas, onde espera conhecer uma garota bem legal que
saiba tudo a respeito de cinema, de Walt Disney a Quentin
Tarantino.
A Graça, namorada de Daniel, com quem ele estava
pouco antes de conhecer Karen, virou manchete no
tablóide Notícias do Mundo, por fazer sexo com um famoso
político.
Jed foi morar com Meredia e os dois parecem
incrivelmente felizes. Apesar de sua baixa estatura, Jed se
mostra um cão de guarda contra qualquer um que se
aproxime da gigantesca Meredia, e está tendo muitas
oportunidades de provar isso.
O verdadeiro nome de Meredia é Valerie, e ela tem trinta
e oito anos. Descobri isso por acaso, quando subi para
levar uma bronca no Departamento de Pessoal, por chegar
atrasadíssima ao trabalho. A ficha de Meredia estava
aberta bem em cima da mesa de Blandina, não consegui
me segurar e olhei.
Não contei a Megan. Para falar a verdade, não contei a
ninguém.
Charlotte ainda não conheceu um homem que a leve a
sério, e anda falando em se submeter a uma cirurgia para
redução de seios.
Vai tentar uma vaga na faculdade de psicologia. Assim
que aprender como se soletra isso.
Karen começou a sair com Simon logo depois que eu e
Daniel ficamos juntos, e os dois estão combinando
perfeitamente os seus estilos de vida. Compram um monte
de roupas caras, vão a bares badalados, daqueles que
acabaram de inaugurar, e estão aparecendo em revistas de
arquitetura.
Dennis ainda não encontrou seu Príncipe Encantado,
embora esteja se divertindo à beça enquanto procura. Teve
um choque tremendo quando soube que Michael Flatley
abandonou o elenco do Riverdance, mas já se recuperou.
Megan está grávida.
E Gus é o pai. Pelo jeito, estavam juntos desde o verão
em que eu ainda estava saindo com ele. Foi Megan que
escreveu o discurso de despedida que Gus fez para mim.
Embora eu nunca mais o tenha visto, imagino que a
iminente paternidade não o tornou menos irresponsável. A
pobre Megan vive constantemente exausta e parecendo
infeliz. Sinto muito por ela, falando sério. Não estou
dizendo isso do jeito que fazemos quando não sentimos a
mínima pena da pessoa e, no fundo, até mesmo a odiamos.
O meu coração se compadece dela, de verdade.
Minha mãe ainda está morando com Ken Kearns, e os
dois parecem adolescentes apaixonados. Ken já está de
dentadura nova, e seus dentes parecem daqueles bem
caros, de luxo, top de linha. Minha mãe está cada dia mais
jovem. Daqui a pouco vão se recusar a servir bebida a ela
nos pubs. Mamãe e eu tivemos uma espécie de momento
de reconciliação, e embora ainda não sejamos grandes
amigas estamos trabalhando para isso.
Meu pai continua bebendo, mas está sendo bem cuidado.
Tem uma assistente social que toma conta dele e uma
empregada. Chris, Peter e eu fazemos rodízio para visitá-lo.
Sempre que é a minha vez, Daniel vai até lá comigo, o que
é ótimo, porque assim papai divide por nós dois os
insultos que iriam só para mim. Ainda me sinto culpada,
acho que sempre vou me sentir, mas é só culpa, e isso não
vai me matar.
Daniel vive me pedindo para que eu me case com ele, e
vivo dizendo para ele: se manca!
— Seja prático — argumentei. — Quem é que ia me
entregar a você no altar? Mesmo que papai não me odiasse,
ele não iria conseguir ficar sóbrio o suficiente para
caminhar reto pela nave da igreja, mesmo comigo
segurando seu braço.
O verdadeiro motivo pelo qual ainda não aceitei me
casar com Daniel, porém, é que morro de medo de ser
abandonada no altar. Obviamente ainda não me
acostumei a ter um cara que é legal junto de mim o tempo
todo. Daniel vive dizendo que vai me amar para sempre,
jamais vai me deixar e que, tirando a remoção do seu
pinto para me dar de presente, dentro de um jarro cheio
de camisinhas, se casar comigo é a coisa mais radical que
ele pode pensar para me convencer de sua devoção infinita.
Eu já disse a ele que vou pensar no assunto. A parte do
casamento, é claro, não a remoção do dito-cujo.
E, se a gente se casar mesmo, quero que a Sra. Nolan
seja a minha dama de honra.
Daniel jura que me ama. Certamente ele age como se
estivesse falando sério.
E, sabem de uma coisa, estou quase acreditando nele.
De uma coisa estou certa: eu amo Daniel.
Portanto, vamos esperar para ver...
FIM


Créditos:

* Personagem em conflito interno, protagonista do filme Bonequinha de Luxo e
interpretada por Audrey Hepburn. (N.T.)
* A mais popular telenovela inglesa, no ar há vários anos. (N. T.)
* No original, The quick brown fox jumps over the lazy dog, frase usada, em
inglês, para testar teclados de computador, pois todas as letras do alfabeto são
usadas para escrevê-la. (N. T.)
** Conhecida loja de roupas da Inglaterra (N.T.)
* Famoso programa matinal de variedades na televisão inglesa. (N.T.)
* Novelas australianas que fizeram sucesso na TV inglesa (N.T.)
* Ator inglês, famoso por beber demais. Faleceu em 1999, por excesso de
álcool. (N.T.)
* Ponto famoso no centro de Londres, cercado de importantes lojas e
restaurantes. (N.T.)
* Personagem infantil da tevê inglesa que tem a forma de uma bolha cor-de-
rosa. (N.T.)
* Referência à canção "Maria", do filme A Noviça Rebelde. (N.T.)
* Bebida usada desde a antiguidade, uma simples mistura de água e mel que
pode ser fermentada, tornando-se alcoólica.(N.T)
* Instrumento de origem celta, tipicamente irlandês, que tem a forma de um
tambor baixo e se toca com as mãos ou com baquetas(N.T)
** Escritor irlandês famoso por usar elementos de nonsense, humor e
sarcasmo em seus livros(N.T)
* Citação do poema épico Marmion, de Sir Walter Scott, poeta e escritor
escocês.
* Famosa feira de produtos e acessórios novos, usados e artesanais, em
Londres (N.T)
* Coreógrafo que divulga a dança e o sapateado típocos da Irlanda através dos
grupos Lord of the Dance e Riverdance. (N.T.)
* Citação bíblica (Provérbios 16:18). (N.T.)
* Citação do primeiro ato de Hamlet. (N.T.)
* Droga vasodilatadora ingerida por inalação com efeitos semelhantes aos do
lança-perfume. (N.T.)
* Nome pejorativo pelo qual os irlandeses se referem aos escoceses e aos
ingleses em geral. (N.T.)
* Pessoa que serve de guru e domina outra por completo. Personagem do
romance Trilby, de George Du Mauríer. (N.T.)
* Referência à letra de "I whistle a happy tune* do musical da Broadway O Rei
e Eu. (N.T.)
* Semtex — Explosivo usado por grupos terroristas na Irlanda do Norte. (N.T.)
* Primeiras palavras de uma antiga bênção irlandesa. (N.T.)
* Organização não governamental britânica com fins humanitários. Tem sede
em Oxford e representantes em todo o mundo. (N.T.)
* Sala 101 é o lugar onde fica guardada a pior coisa do mundo. Referência ao
romance 1984, de George Orweil. (N.T,)
* Movimento inglês do século XVIII, que era contrário às máquinas,
responsabilizando-as pelo desemprego e miséria social. (N.T)

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